DISTÚRBIOS DA ORALIDADE E O PACIENTE ADICTO – UM … · pela completude um dia ... O...
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DISTÚRBIOS DA ORALIDADE E O PACIENTE ADICTO –
UM ESTUDO DE CASO
Autor: Ricardo Rentes – Rentes, R.
Universidade de São Paulo – USP
Brasil – 2013
Autor Responsável: Ricardo Rentes
Rua Pensilvânia, 360, apto 34, Brooklin – São Paulo – Brasil – CEP: 04564-000
Tels: (11) 5044-4909 e (11) 97283-7590
E-mail: [email protected]
Número total de palavras do artigo: 7.981 palavras
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Título: DISTÚRBIOS DA ORALIDADE E O PACIENTE ADICTO –
UM ESTUDO DE CASO
Title: ORALITY DISORDERS AND ADDICT PATIENT –
CASE STUDY
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo compreender a relação entre distúrbios da
oralidade e o funcionamento adicto. É utilizado como base teórica a psicanálise de
Winnicott e o aporte de demais autores. O método utilizado foi a abordagem qualitativa
e Estudo de Caso Clínico. O objeto de estudo foi um paciente, adolescente, do sexo
masculino, 17 anos, usuário de cocaína e suas figuras parentais, mãe e padrasto, todos
moradores da cidade de São Paulo – Brasil. Foi empregado como procedimento a escuta
psicanalítica, o relato das sessões, as entrevistas sem-dirigidas e as observações clinicas
durante o período de 1 ano. Os resultados alcançados denotam um cenário composto por
uma mãe totalmente invasiva, um pai literalmente ausente e inexistente. Foi constatado
que a relação dual pode ser também destrutiva e aniquiladora. Contudo, foi percebido na
figura afetiva do padrasto frente ao paciente, a possibilidade do paciente emergir e
transpor as barreiras e as fronteiras limítrofes da não existência humana, para a
possibilidade de Ser no mundo. Em ralação ao uso da cocaína, a droga era para o
paciente a única forma de sobreviver, de Ser e de existir. De forma patológica a droga o
alimentava. Esse alimento, essa sensação de completude ao usar a droga era passageira,
não permanecia com o paciente, ao que sempre era necessário fazer mais uso de
cocaína. Ao final do processo contatou-se que as funções parentais desempenhadas pelo
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padrasto, ofertaram, dentro de suas limitações e particularidades, o contorno que o
paciente necessitava. Após 1 ano houve o rompimento gradativo do paciente com droga.
Palavras-chave: Oralidade, Droga, Relação, Padrasto e Alimento.
ABSTRACT
The present work had the objective to comprehend relation between orality disturbs and
addiction function. Winnicott’s and some other authors are the base for this analyzes as
theory. The method used was the qualitative approach and clinic study. The object of
study was male adolescent patient of 17 years old cocaine addict and his parental
figures: mother and step-father all living in São Paulo – Brazil. Was applied as
procedure the psychoanalytical listening. The report of the section. The semi directed
interviews and clinical observations during 1 year. The results show a composite
scenario by a mother casting and super protector mother. A inexistent biological father.
It was proved that the relation son/mother cam be destructive and annihilating.
Although it was noted that the step-father figure towards the patient causes a benefit in
his soul bring him to overcome his barriers to reborn to life. In relation to the use of
cocaine the drug was the only way the patient could be a human and live to be himself.
In a pathological way the drug would the subsistence his, this nourishment and this
sensation of completeness during the use of the drug was momentaneous and he needed
to use again to full human again. At the end of the process it was show that the step-
father offered among its limitations and particularities the support/the holding that the
patient needed. After 1 year there was the gradual disconnection of the patient with the
drug.
Key Words: Orality. Drug. Relation. Step-father. Nurishment.
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I. INTRODUÇÃO
Ao se falar de distúrbio da oralidade, podemos ter a impressão que o assunto
abordado tratará de questões voltadas somente ao que comumente conhecemos como
distúrbios alimentares, por exemplo, à anorexia, a bulimia e a obesidade mórbida.
Tais manifestações tratadas por muitos como doenças, são a meu ver
sintomáticas, aqui compreendidas como um grito de algo preso, um grito sem som, algo
até então impossibilitado de ser vivido, algo que vem dizer através do corpo, através da
boca, um dizer muitas vezes indizível, não verbal, mas sim um corpo falante, um corpo
que grita, engordando, emagrecendo, danificados pelo uso abuso de drogas e assim por
diante.
O que fica entendido é que a manifestação muitas vezes ocorre através do gesto
mais primitivo, ao que esse corpo sintoma diz algo a todo tempo sem cessar. Muitas
vezes a questão das oralidades e seus distúrbios tornam-se um enigma indecifrável, ao
passo que buscamos uma explicação verbal, totalmente racional. Perante a isso, muitas
vezes, não encontramos respostas, não encontramos esse outro, o outro que sofre, o
outro sozinho em seu corpo.
O que me resta ver? O que me resta encontrar? A boca, somente a boca, a porta
de entrada para um mundo muitas vezes vazio, desconhecido, recalcado e abandonado.
Essa boca pode estar aberta engolindo o mundo, sem censura, sem limites, como
única forma de sobrevivência. Pode também estar fechada, cerrada, intocável e
incrédula, uma boca que impossibilita o entrar de qualquer coisa, de qualquer alimento,
de qualquer manifestação do outro. Temos também aquela que agride, que vomita, que
devolve de forma agressiva o que não lhe pertence mais, entre tantas outras.
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A boca por mim escolhida não seria nenhuma dessas, ou talvez uma mistura de
todas, o que confesso ainda não saber responder. A que escolhi para aqui trabalhar é
aquela que elege, aquela boca que busca o prazer, a sensação de onipotência e a busca
pela completude um dia vivida, mas ao mesmo tempo, a boca que também mantém um
namoro com a morte, com um suposto apagamento do Eu, uma boca destrutiva, a boca
adicta.
Por mais estranho que possa parecer, a salvação desse Eu no campo psíquico é
muitas vezes a destruição dessa vida. É contraditório, mas destruir nesse sentido pode
significar a única possibilidade de gesto espontâneo e singular. A forma suicida de se
sentir vivo e real, de libertar-se daquilo que o aprisiona, daquilo que o impossibilita de
Ser. Muitas vezes a relação dual é destrutiva e aniquiladora e a droga pode entrar como
o remédio, o interdito necessário, um destruir a si para se salvar desse outro.
É essa boca que escolho olhar e dizer, uma boca que assusta, que afasta e devora
tudo a todo o momento, inclusive a minha posição enquanto analista, esse será o meu
objeto de estudo. Estou me referindo ao funcionamento de um paciente adicto, de um
usuário de drogas, neste caso em específico usuário de cocaína. Ele foi por mim
atendido durante mais ou menos 10 meses, 2 vezes por semana em meu consultório
particular localizado na cidade de São Paulo.
O cenário era composto por uma mãe totalmente invasiva, um pai literalmente
ausente e inexistente e um padrasto que antes foi por mim denominado como distante e
evasivo e que hoje posso chamá-lo de melhor parceiro.
Percebi intensamente através desse caso que a vivência do ser necessita ocorrer,
o vir-á-ser clama pelo que Winnicott denominou de um ambiente facilitador, ofertando
ao sujeito a possibilidade de emergir e transpor as barreiras e as fronteiras limítrofes da
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não existência humana, para a possibilidade de Ser. Sendo assim, o vir-á-ser depende de
um outro significante.
Esse ser, dotado da possibilidade de ofertar ao outro um recomeço e porque não
um começo, faz com que o veja e o compreenda a partir do caso clínico a ser citado e
estudado. A possibilidade de tornar-se um a partir de outro um.
Podemos nos perguntar onde entra o distúrbio da oralidade nesse caso? A
resposta se inicia no sintoma apresentado, sendo ele a porta de entrada para a construção
de uma relação, não mais somente pela boca, com a droga, com o objeto subjetivo e
fragmentado, mas sim a constituição de uma relação humana, inteira, a evolução das
partes para o todo.
Quando falamos em oralidade geralmente pensamos nas fases do
desenvolvimento propostas por Freud, difundidas por Melanie Klein e relidas por
Lacan. Importantíssimas para o entendimento desse processo, porém, nesse recorte optei
em não utilizar propriamente esse referencial.
Meu encontro teórico é com outras escolas da psicanálise, ao que ocorre uma
identificação com a visão de mundo e de homem, sua constituição e desenvolvimento.
Refiro-me aqui a escola inglesa de psicanálise, em particular o pensamento do
Psicanalista D. W. Winnicott., sendo este muito citado ao longo do meu relato, assim
como autores mais contemporâneos da psicanálise que de alguma maneira se referem e
se afinam ao pensamento de Winnicott.
Uma das coisas que mais me chamou a atenção no caso estudado foi o
funcionamento da mãe, horas depressivo e horas psicótico, pronto a enlouquecer
qualquer um, pronto a me enlouquecer, a me devorar. Esse era também o contexto
vivido pelo jovem Pedro, nome fictício a ser usado nesse trabalho.
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Tudo isso dava a sensação de que a relação do paciente com a droga era a única
coisa prazerosa em sua vida, era a única forma de sobreviver, a única coisa que entrava
em seu Ser, e que de certa forma, patológica ou não, o alimentava.
O mais interessante e ao mesmo tempo aterrorizante, era perceber que esse
alimento, essa sensação de certo contorno, era passageiro, não permanecia em Pedro, ao
que sempre era necessário mais e mais. Deixava-o cada vez com mais fome. Nesse caso
o que entrava não permanecia e a vivencia do vazio se tornava constante e
desestruturante.
O interessante é que o sintoma envolvendo a oralidade ocorria em todos os
envolvidos, a mãe, se pudesse, engoliria o filho, o pai deixou a todos com fome, o
padrasto não se autorizava a alimentar e como se não bastasse, a relação transferêncial e
contratransferencial comigo era maciça, visceral, concreta, eu ficava com fome, eu não
saía satisfeito das sessões, queria mais, e ao mesmo tempo havia horas, por diversas
vezes, que eu ficava enojado e fisicamente indisposto.
Em contrapartida, como desafio e superação de tais sintomas vividos por mim,
me deparo comigo mesmo debruçado e apaixonado pelo caso, principalmente em
função do pedido gritante do jovem e sua solicitude apresentada, bem como toda a
disponibilidade interna e do amor devotado que encontrei na figura de Manoel, nome
fictício designado ao padrasto.
O desespero e a agonia causada pela fome deixam de existir e daí em diante,
passo a me alimentar pelos pequenos resultados, pelos pequenos gestos de alimento que
recebia.
O estímulo para falar sobre o caso foram todos esses sintomas, à fome, o enjoo,
a satisfação e a sensação de saciedade que senti durante o período de 1 ano de
atendimento, sintomas esses explicitados melhor no decorrer desse trabalho.
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II. APRESENTAÇÃO E RELATO DO CASO
Chega ao consultório, um casal afirmando que seu filho Pedro de 17 anos havia
se tornado um “viciado em drogas”, ao que a mãe inicialmente afirmou que Pedro
estava fazendo uso de drogas de forma abusiva e em todos os lugares, escola, amigos e
dentro de casa. Segundo ela o adolescente concordou em solicitar ajuda.
Na sequencia afirmou: “Agora deu para me roubar, já pegou dinheiro da minha
bolsa e vendeu um relógio que eu tinha... Não sabemos mais o que fazer... Às vezes fica
um tempo com a avó, lá ele usa também, tenho certeza, mas minha mãe diz que ele não
da trabalho, eu não gosto que ele vá para lá, eu sou a mãe é comigo que ele deve
ficar...” (sic)
Até então o padrasto, aqui nomeado de forma fictícia de Manoel, não havia se
manifestado, até que relata: “Tem outra coisa, que eu acho importante você saber: ele
não é meu filho biológico, quando casei com a mãe dele ele já tinha uns 4 anos... Como
ele não é meu filho não posso me meter muito, não concordo com uma série de coisas,
mas...”
A mãe aqui designada como Ângela, completa que desde o momento em Pedro
nasceu, o pai biológico nunca participou em nada na educação do jovem, desaparecendo
logo nas primeiras semanas de nascimento do filho.
Em relação à família, o Genograma familiar se apresenta da seguinte forma:
Padrasto 45 anos / Mãe 42 anos / Pedro 17 anos (filho único). Em entrevistas iniciais,
não apareceu à existência de antecedentes familiares em relação a uso de drogas de
maneira geral.
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Relatam, tanto Ângela como Manoel, que Pedro começou a dar trabalho no
inicio da adolescência que antes era até introspectivo demais com poucos amigos e
sempre muito calado.
Em dados de sua história pregressa, Pedro nascera em hospital, parto cesárea,
peso e estatura normal, sem a ocorrência de nenhum tipo de complicação. Foi
amamentado até os seis anos de idade, que segundo a genitora o paciente só deixou de
mamar por uma iniciativa própria de Pedro e não por uma interrupção por parte dela, ao
que afirma: “Não me sentia mais mãe depois disso, depois que parei de amamentar, na
verdade cheguei a pensar até que meu filho não me amava mais... eu levava o peito
para ele, punha ele em diversas posições mais nada dava certo... Ele me rejeitava e isso
me causava muita dor... Sei que ele era apenas uma criança, mas era isso que eu sentia
e ficava muito mal. Perguntava para ele se ele me amava mesmo por que fazia isso
comigo, ele me abraçava, mas logo depois me rejeitava, não entendia essa atitude...”
(sic).
Contatou-se também, através de Ângela, que Pedro não chegou a engatinhar
muito, pois a mãe tinha medo que seu filho caísse e se machucasse. Começou a andar
por volta dos dois anos, pois permanecia a maior parte do tempo no colo. Com relação
ao desenvolvimento da fala, esta apareceu mais ou menos no mesmo tempo em que
começou a andar.
Já na escola sempre foi mais introspectivo, com poucos amigos, e pouco
participava das aulas, embora muito inteligente e com ótimas notas em provas.
Em relação à vida atual, como namoro, amigos, entre outras coisas, Pedro pouco
fala, e segundo sua família, nunca chegou um namorou mais longo e possui poucos
amigos.
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Uma vez a mãe de Pedro me ligou e relatou: “Ele chegou descabelado aí outro
dia não foi? E com uma camisa sem passar? Sabe, parece que ele faz isso só para me
provocar, ele pegou justamente a que eu não havia passado, tentei fazer mudar de
roupa, pentear o cabelo, mas ele chegou até a me empurrar para fora do seu quarto,
isso nunca havia acontecido, eu fiquei assustada, na verdade eu fiquei indignada
Em outra ocasião, questionando o fato do filho querer sair para uma festa chegou
a relatar em um atendimento: “Você não conhece a rua onde moramos, muito perigosa
e ele não sabe se defender, por isso quando ele quer sair sou eu que o levo para onde
ele quiser... Não tenho muita coisa para fazer mesmo, é um prazer para mim... E
também é bom pois assim eu vejo com quem ele está andando e saindo... Vivo hoje para
meu filho”.
O padrasto de Pedro sempre o acompanhava, em todas as sessões, a pedido da
mãe. Manoel chegava a dormir no sofá da sala de espera. Quando questionei tal
necessidade a mãe, a mesma me relatou: “O meu filho não possui condições de ir até o
seu consultório... Ele atravessa as ruas de olhos fechados, pois ele tem muito sono. Ele
levanta muito cedo e está indo dormir muito tarde, aí sente muito sono de manhã...
Então o padrasto tem que acompanhá-lo, pois se não pode acontecer algo com ele,
como por exemplo, ser atropelado, ser assaltado essas coisas...”.
No primeiro contato com Pedro o mesmo se portou de maneira um tanto evasiva,
recusando-se a falar qualquer coisa. Num segundo momento, é desafiador, agressivo e
bastante provocativo. Assume que faz uso constante de drogas e que precisa delas.
Nomeia sua Mãe como “babaca e ignorante” e Manoel “é um idiota que faz tudo o que
ela manda”. Pedro durante um bom tempo, eu diria meses, vazia de tudo para testar o
ambiente analítico, como por exemplo, logo nessa primeira sessão arrotava na minha
presença repetidas vezes, esperando um reação, olhava para mim e perguntava: “Não
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vai fazer nada, não vai mandar cuspir? Tem medo que eu cuspa em você? Sabia que eu
já fiz isso com a minha mãe?”.
Em outra sessão, Pedro me olhava várias vezes de forma fixa e profunda. Em
uma dessas vezes ele solta uma larga gargalhada e diz: “Você é engraçado, eu no seu
lugar teria nojo de mim” e completa: “Acho que meus pais tem, na verdade todo
mundo, faço mesmo de propósito, prefiro ficar sozinho na minha do que ter um bando
de gente enchendo o meu saco...”
Em outro momento Pedro retoma a sessão anterior que fez menção ao nojo que
as pessoas sentiam dele, e relata: “Outro dia eu falei do nojo, mas na verdade eu sinto
nojo dela... da idiota da minha mãe, às vezes tenho vontade de matá-la de acabar com
tudo”(sic).
Depois de um tempo, após uns 6 meses mais ou menos, Pedro falava do prazer
da droga num tempo passado, do quanto era bom se desligar, ficar fora de si, fora do
mundo. Contudo no tempo presente, afirma que a droga passou a ser um ritual
obrigatório, chegando a dizer: “Antes ela vinha quando eu chamava agora é ela que me
chama, eu vou mesmo, não tenho nada a perder, o que me incomoda é o fato de sentir
que ela manda em mim, da mesma forma que a merda da minha mãe... Minha mãe
então é uma droga ou a droga é a minha mãe? (solta uma gargalhada um tanto tensa e
desesperada)” (SIC).
Durante os 6 primeiros meses, Pedro continuava a usar drogas, após isso
denotou uma frequência menor. O Padrasto continuava a dormir no sofá da sala de
espera, mas não a pedido da mãe de Pedro. Agora de alguma maneira, que não sabia
qual, Manoel acreditava que estava ajudando Pedro com a sua presença.
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Em uma das sessões Pedro entra em meu consultório, com as mãos cheias de
bombons, que havia pegado na recepção da clinica. Nesse dia Manoel não havia
comparecido junto com ele. Pedro voltou ao pote de doces umas duas vezes, acabando
com todos os bombons. Na sequência pede para ir ao banheiro e com a porta aberta,
provoca o vomito. Ao retornar para a sala, pega o seu Ipod e os fones de ouvidos em sua
mochila, fecha os olhos e começa a ouvir musica, chegando a alguns momento até a
cantarolar o que ouvia. Na sequência, desliga tudo, guarda em sua mochila e me diz:
“Preciso dormir, vou dormir um pouco”. Permanece assim, dormindo, até o final da
sessão.
Pedro durante esse período teve grandes brigas com sua mãe ao que a mesma me
liga e afirma: “Que terapia é essa, ele está pior do que quando entrou, agora ele diz
que sou culpada de tudo, acredito que ele não vá mais para a terapia, vou avisar para
ele se despedir de você”.(sic)
Manoel por sua vez discorda e afirma que o mesmo não vai parar com o
processo, que agora seria ele o responsável financeiro pelo custeio das sessões. Após tal
decisão Manoel torna-se cada vez mais participativo no processo psicoterapêutico de
Pedro.
O casamento, segundo Manoel, já não andava muito bem, antes mesmo do inicio
da análise de Pedro. Dois meses após esse comentário, Manoel relata que a separação
foi inevitável. Semanas depois chega para mim à informação de que a avó materna de
Pedro havia falecido.
Nesse momento, Pedro tem uma recaída séria e foi encontrado pelo padrasto
caído em uma praça, perto da casa da avó. Segundo Manoel uma vizinha da avó havia
ligado para Ângela e que a mesma havia dito que era para ligar para Manoel, que ele era
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o responsável. Diante disso, o padrasto foi ao encontro de Pedro, colocou-o no carro e o
encaminhou para hospital, para receber os cuidados necessários.
Após sua melhora, Pedro afirma ter brigado sério com sua mãe e que para lá não
voltaria mais. Quando Manoel questiona o porquê de tal postura, o jovem afirma que
sua mãe havia o responsabilizado pelo falecimento de sua avó.
O Padrasto oferece para Pedro a oportunidade de passar alguns dias em seu
apartamento, até as coisas se acalmarem, mas que após isso deveria retornar para a casa
de sua mãe, ao que Pedro aceita.
Pedro ao retornar para a casa da mãe, a mesma é taxativa e diz: “aqui você só vai
morar se for do meu jeito, se usar droga ou mesmo me desrespeitar te coloco para
fora...” (sic).
Após alguns meses, o padrasto recebe uma proposta profissional no interior do
estado de SP e me informa que continuará a arcar com o processo analítico de Pedro.
Esse último desconhecia o fato de que seu padrasto iria embora para outra cidade.
No dia seguinte, quando Manoel deu a noticia para Pedro, o jovem
imediatamente sai correndo, se perdendo de Manoel. Na sequência Pedro me liga e
solicita me ver.
Chegando ao consultório, encontro Pedro na porta da clinica, andando de um
lado para o outro, com sintomas evidentes de uso cocaína. Já na sala, ainda de pé relata:
“Vou perder a única pessoa na vida que acredita em mim, não consigo entender, era
tudo mentira então? Ele não acredita em mim... ele me enganou direitinho, assim como
você também... Por causa disso vai me deixar ir embora... Ele indo embora não tem
mais grana para o seu bolso e aí já era também, perdi tudo então, é isso...”(sic).
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Na sequência, Pedro bate a porta e sai. Entrei em contato com Manoel e o
mesmo afirma que não consegue falar com Pedro, até que a mãe entra em contato e
afirma que Pedro chegou à casa em estado lamentável, sujo, e totalmente alterado.
Ângela afirma já ter encontrado a solução, uma clinica de reabilitação que se
prontificou a ficar com ele por um período mínimo de 1 ano em internação compulsória.
Diante disso Manoel sem pensar muito solicita a autorização da mãe de Pedro
para que o mesmo venha morar com ele no interior, ao que a mãe aceita.
Ao entrar no quarto de Pedro para dar a notícia, Manoel presencia o adolescente
batendo a baça na parede, todos seus objetos no chão, uma porção de papel rasgado,
tudo espalhado pelo quarto, roupas, calçados, revistas, entre outras coisas.
Ao perguntar o que era aquilo, Pedro afirma necessitar da droga que irá até o
ponto de vendo do tráfico de drogas buscar. Com um par de tênis na mão sai correndo
em direção a rua.
Manoel, desesperado, corre atrás de Pedro e diz ao jovem: “Se você quer usar,
muito bem vamos lá, não sei o posso fazer mais, vim aqui te levar comigo, mas tudo
bem onde é fica, entre no meu carro que eu te levo”(sic). Segundo Manoel, Pedro olha
estatelado para ele, e de maneira acelerada entra no carro do padrasto e o aguarda para
levá-lo no ponto de venda de drogas. O padrasto entra no carro com a esperança de
Pedro mudar de ideia. Ângela vê a cena e diz: “vocês se merecem”(sic).
Chegando ao ponto de venda, Pedro manifesta o ímpeto de sair do carro e ir em
direção ao local. Nesse momento Manoel segura o braço de Pedro e diz: “quem vai
buscar sou eu, sua mãe me disse que você deve dinheiro aí, é perigoso, me fala onde é e
quem procurar, sou eu quem vai buscar, não você”.
Nesse momento Pedro passa todas às coordenadas para o seu padrasto e ao ver
Manoel saindo Pedro o chama e diz: “Manoel não precisa mais, eu não quero, volta,
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vamos embora”. Manoel relata que ao entrar no carro encontra Pedro de cabeça baixa,
chorando. Manoel então abraça Pedro e chora também.
Na sequência Manoel diz que percebeu o quanto estava envolvido com Pedro e
então resolve falar de suas intenções de levar Pedro para morar com ele, diante disso o
jovem o abraça bem forte e mais uma vez chora.
Na sessão seguinte, ambos vão ao consultório e Manoel faz questão que Pedro
compareça em mais algumas sessões para se despedir e para que eu repassasse para ele
algumas orientações acerca do estado emocional de Pedro.
Pedro chora muito nas sessões finais e pede para levar um enfeite do meu
consultório, uma caixinha de madeira que eu guardava papel com algumas anotações e
caneta. Afirma que sempre que entrava no consultório, ficava imaginado o que teria
dentro dela até o dia que teve coragem e pediu para ver.
Constatou que lá dentro havia algumas anotações dentre elas o numero de
telefone de seu padrasto. Pedro afirma que agora dentro dessa caixinha guardaria
também um número de telefone, só que dessa vez seria o meu número.
Após a mudança de cidade, mantive contato com ambos via telefone e e-mail.
Pedro teve algumas recaídas, principalmente diante de algumas decepções e frustrações
como fim de namoro, por exemplo, bem como discussões com Manoel acerca de limites
e regras.
Hoje faz mais de ano que Pedro está abstêmio. Entrou na faculdade de
engenharia, mesma profissão de Manoel. Atualmente ainda se sente um tanto sozinho,
sendo essas palavras do próprio jovem. Em relação a sua mãe, Pedro manteve pouco
contato com Ângela, somente por telefone. Após algum tempo, o mesmo preferiu não
procurá-la mais.
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III – DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E ANÁLISE DO CASO
Logo de inicio, uma invasão se caracterizava a minha frente, personificada pela
figura materna. A sensação era a de estar amarrado à mesa, satisfeito, sem fome mesmo
assim ser obrigado a engolir tudo, o tempo todo.
Através dos relatos de Pedro, sentia a vivência do jovem em relação a sua mãe
como algo destrutivo e aniquilador. A sensação era de que sentir fome de viver só era
possível a partir do olhar dessa mãe, somente ela tinha o que ofertar. Pedro não podia
escolher o que receber, o que desejar, tudo já era sabido, tudo já estava escolhido.
A sensação que dava ao ouvir essa mãe é que tudo o que destoava dela tornava-
se seco, sem vida, doente, e por que não drogado. Talvez aos olhos de Pedro, fugir dessa
vida seria exatamente viver.
Isso me faz pensar na revolta que Ângela sentia de Pedro pelo fato do mesmo
usar cocaína. Não foi tão fácil chegar a essa consideração, acredito eu que por causa de
todo estigma em volta do mundo das drogas e do fato de ser natural e esperado que uma
mãe se revolte com um filho que faz uso de drogas. Aos poucos fui percebendo que no
momento em que Pedro fazia uso, a sensação que passava é que ia estragando seu
próprio corpo, corpo esse que Ângela denotava entender como sendo seu, como sendo
parte dela. Usar droga então é aqui um estragar-se para sobreviver, como uma forma
cindida de cisão-escravisão. Ao mesmo tempo em que se libertava de um se aprisionava
em outro. Diante disso podemos encontrar respaldo no conceito de repetição elaborado
por Freud em que nos diz:
Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condições de resistência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua (acts out). A resposta é que repete tudo o que já avançou a partir das fontes do recalcado para sua personalidade manifesta —suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. (Freud, 1914/1996, p.167)
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É interessante observar que desde o inicio da vida de Pedro, a relação
estabelecida é a dual. O terceiro não tinha muito espaço, nem o pai nem o padrasto
inicialmente. A ausência da função paterna nos faz pensar que provavelmente Ângela de
alguma maneira não desejou a entrada desse terceiro na relação, ou então, pela ausência
dessa figura a saída foi se voltar a Pedro como única forma de existir.
Essa união, essa simbiose patógena, de certo modo, foi alimentada e permitida
por Pedro durante alguns anos. Contudo a entrada na adolescência parece que permite a
Pedro uma fuga, um sobreviver morrer com a droga.
Contudo, o que Pedro talvez demorou um pouco para se dar conta, é que a droga
era apenas uma substituta dessa mãe invasiva, pois a mesma também o invadia e decidia
por onde Pedro deveria caminhar, chegava sem pedir licença, manifestada através da
vontade, da abstinência, a obrigatoriedade de tê-la por perto, uma vontade não da ordem
do desejo, mas da ordem da necessidade. Dessa forma parece que a droga assim como
sua mãe, era imperativa.
Pedro então, assim como na relação com sua mãe, passou a responsabilizar a
droga por tudo o que lhe acontecia, se apresentado ao mundo através da cocaína. Antes
Pedro vinha ao mundo pelos olhos de sua mãe, era ela quem decidia o que ele iria vestir,
comer, com quem ele deveria sair e assim por diante. Agora a droga fazia o mesmo,
decidia quando, como e quanto de cocaína Pedro deveria usar.
O apagamento do sujeito realizado pela invasão materna se repetia, ou era
substituído por uma nova invasão, nesse caso a cocaína tornava-se protagonista na vida
de Pedro. A relação continua transicional fragmentada, algo entra e preenche um vazio,
tomando conta do lugar, porém de maneira provisória, violenta e enlouquecedora.
Em dado momento Pedro começa a perceber a escravidão em que estava
inserido. O senhorio havia mudado, mas o trabalho escravo era muito parecido. Isso fica
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evidente em uma de suas falas durante os atendimentos, quando se vê escravo da droga
assim como se sentia escravo de sua mãe.
Um ponto interessante é que a vida do processo analítico começou a aparecer
quando a figura materna se distanciou um pouco a partir da minha recusa perante seus
comportamentos altamente invasivos.
Outro fator importante, é que em determinado momento de sua obra, Winnicott
(2002) afirma que o analista deve estar para o paciente assim como a Mãe está para o
seu Bebê. Mas que mãe seria essa? Entendia e possuía a clareza de que eu não poderia
ser outra Ângela.
Compreendia, que durante o processo psicoterápico eu deveria ocupar certos
lugares, pensar que durante o processo de dependência absoluta vivenciada pelo bebê
nos primeiros estágios de amadurecimento, segundo Winnicott citado por Dias,
ambiente (a mãe ou quem desempenha esse papel) se adapta as necessidades de seu
filho - ambiente facilitador - indo ao seu encontro, regredindo, e até mesmo
“adoecendo” para o seu bebê, tornando-se uma unidade, um só corpo. O intuito é
propiciar ao bebê a ilusão de que ele mama em si mesmo. (Dias, 2003)
Não sei se Pedro chegou a isso comigo na relação terapêutica, mas pude
observar mais adiante essa relação acontecer com Manoel, neste caso o padrasto pode
adoecer para o enteado.
Vale ressaltar que o termo adoecer entra aqui como algo saudável, pois a
regressão da figura materna ou de quem ocupa esse lugar, indo ao encontro de seu bebê
é visto como algo primordial para o desenvolvimento e aquisição da vivencia de estar
no mundo. (Dias, 2003)
Esse adoecer é provisório, enquanto o bebê necessitar de alguém ao seu lado do
ponto de vista emocional em sua totalidade, tempo esse de dependência e vivencia
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necessária para o bom desenvolvimento de todo ser humano, o tempo da ilusão, o tempo
da vivencia da onipotência. (Winnicott, 2002)
Contudo, segundo Winnicott (2002) somente uma alguém saudável pode
adoecer; quem já está doente geralmente não consegue tal proeza de adoecimento pelo
outro. O que vemos às vezes é um adoecer para o outro, porém dessa posição não
consegue mais sair, ou seja, vai ao encontro do outro e lá permanece, estabelecendo
uma relação de completa invasão. Foi assim que pude ir compreendendo o movimento
de Ângela perante Pedro, um ir sem volta.
O que se vê no caso de Pedro, é que provavelmente em função do que foi visto
durante 1 ano de atendimento, e principalmente em função dos comportamentos de
Ângela, é que desde bebê, Pedro vem se adaptando ao mundo materno e não o contrário
proposto por Winnicott (2002). É de se pensar mais uma vez se esta mãe estava
saudável para adoecer para o seu filho.
Tal tipo de vinculação não soma, mas sim subtrai, ou seja, o que deveria gerar
inicialmente um só corpo, fusão da mãe e bebê, para num momento secundário gerar
dois, deixa de ocorrer, ao que permanece um só corpo, um só Ser, alguém deixa de
existir pelo outro, a mãe sobrevive e o filho padece, buscando através de fragmentos,
elementos que o preencham e venham dizer de si, venham dizer quem ele é. Era esse o
sentimento vivido por Pedro dentro do setting, uma busca de si através das drogas.
Parece que para Ângela é como se a separação com seu filho Pedro fosse vivida como a
morte. Safra, G. fala da saúde em poder se separar, em que diz:
O paradigma da morte está no próprio processo de nascer, em que os movimentos que levam ao nascimento, criam também a possibilidade do abandono do estado anterior. No processo maturacional, a criança, pela capacidade de repudiar, coloca sob domínio de sua capacidade criativa a separação do objeto, o que permite que a separação seja algo a ser usufruído e não só lamentado. Há pacientes que buscam a capacidade de criar a separação desesperadamente, pois
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vêm de ambientes em que a separação procurada foi compreendida como movimento destrutivo.(Safra,1999).
O meu intuito então era tentar resgatar algum momento de proteção, de ambiente
protegido, de dependência absoluta, para num momento seguinte, responsabilizá-lo por
suas escolhas, inclusive pelo fato de que caberia a ele e não ao outro a defesa contra as
invasões sofridas. (Dias, 2003) Após isso, resignificar o encontro humano, na tentativa
de promover um novo espaço, um novo ser junto e um novo ser separado.
Diante do episódio do vômito dos bombons, cheguei a fazer uma interpretação,
um paralelo, ou seja, se algo que está fora faz mal, alguém permitiu a entrada, nesse
caso, dos bombons em seu corpo, da mesma forma que a relação de Pedro com a droga,
ou seja, como o problema estava fora, drogas e bombons, a um ausentar-se de suas
responsabilidades.
O olhar de Winnicott (2001) perante o sujeito e o mundo, principalmente dentro
de uma relação analítica, implica também em uma mudança de postura por parte do
analista perante uma determinada demanda. O analista, lidando com casos de pacientes
com um funcionamento mais primitivo, terá que aceitar como uma de suas práticas
terapêuticas o fato de existir no mundo subjetivo do sujeito. Caso isso aconteça o
analista passa a ser o objeto subjetivo do paciente.
Diante disso, sobreviver a essa destrutividade vivida ao extremo, fazia parte
daquilo que acreditava ser essencial para o segmento do processo. Entendia e ainda
entendo que só se pode perder quem um dia teve, só pode separar quem um dia juntou.
A meu ver, falhas nessa junção ocorreram não gerando necessariamente uma psicose,
embora em muitas vezes identificava angustias psicóticas em Pedro, porém não o via e
nem o entendia como um paciente psicótico.
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Percebi que o que ocorria ali a minha frente, eram muitas vezes, como dito
anteriormente, angustias psicóticas, como esvaziamento do eu, uma sensação de
ausência de contorno psíquico, a relação com objetos parciais, por exemplo, a droga, e
uma enorme vivencia do vazio.
Comecei a entender que Pedro repetia algo na tentativa de busca de uma
solução. Se as relações não se completavam, se não havia um verdadeiro encontro, ao
menos havia um pedido, uma busca. A pergunta era: O que ele buscava? A resposta
naquele momento era: Buscava algo que pudesse entrar e permanecer dentro de si.
Aqui lembro de um trecho do livro de McDougall, J, onde a mesma cita o
conceito de transicionalidade de Winnicott, ao que afirma:
Uma tal clivagem cria uma potencialidade adictiva; em lugar do objeto transicional que falta, o Eu pode ligar-se a um objeto transitório: uma droga ou um Outro, utilizando como uma droga. Esse ser será chamado a preencher a função ‘transicional’, e será destinado a proporcionar ao indivíduo o sentimento de ser real, vivo e válido: destinado enfim a preencher lacunas do Eu, lacunas de sentido no que diz respeito a sua própria identidade e a sua maneira de pensar o mundo. (McDougall, J. 1982, p.62)
Um dos desafios era ofertar a Pedro uma nova possibilidade de relação
transicional. Do contrário sempre me colocaria no lugar da droga, ou seja, ofertava a
mim o papel de responsável pela resolução de seus problemas, papel esse possivelmente
ofertado aos demais ao seu redor, como sua mãe, por exemplo, que por mais inadequada
que fosse, não poderia ser totalmente responsabilizada. Aqui acredito ser relevante citar
outro trecho de Mcdougall que diz:
Assim, no imaginário do indivíduo que se equilibra através de relações transicionais, o outro será considerado inteiramente responsável por tudo o que lhe ocorrer, o indivíduo espera que o outro lhe traga a felicidade e não se trata de uma esperança, mas sim de um dever; quando, mais cedo ou mais tarde, o objeto se revela estar aquém dessa expectativa, o individuo o acusa de ter sido pouco preocupado com sua felicidade e de ter demonstrado pouca intuição a respeito do que estava acontecendo, de ser enfim responsável por todas as suas desgraças. Inconscientemente, ele procura a prova de que o outro deseja que ele exista e deseja que ele tenha desejos próprios. (McDougall, J. 1982, p.62)
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Tentava ofertar a Pedro o encontro com aquilo que lhe faltava, com aquilo que
na verdade falta a todos nós, gerando por consequência a partir da falta à sensação de
incompletude.
Mas como fazer isso? Como promover a visão de tal ausência? Uma vez que eu
supunha um vazio enorme em Pedro?
Sempre eu tentava fazer com que Pedro olhasse para si além da droga e além dos
olhos de sua mãe, além dos olhos da droga, que em sua vida se personificava. O jovem
no início se negava sentir e viver esses questionamentos, dizia que não conseguia, que e
que não fazia sentido. Mais adiante afirmava ter medo de olhar e nada encontrar. Mais
uma vez o vazio ganhava força e a busca pela droga também na tentativa de
preenchimento de tal vazio.
Que dor seria essa? O que não poderia ser visto e com isso vivido? Do que
fugia? Onde se escondia? Que vazio era esse?
Percebi que a dor de viver tornava-se altamente ameaçadora, pois viver era para
ele ser parte de sua mãe, comer sempre o que lhe era ofertado. A recusa de tal alimento
indigesto fazia com que Pedro permanecesse com fome, sendo a droga o alimento mais
fácil ao alcance de suas mãos. Um alimento desumanizado, que coisificava sua relação
consigo mesmo, um falso alimento que saciava e na sequência deixava um buraco
maior, ao que a cada vez Pedro sentia mais fome, uma fome insaciável, uma fome
eterna.
Nesse momento a ideia de fome eterna, me remete ao que Winnicott (1994)
chamou de Medo do Colapso, termo utilizado para designar o sentimento e a sensação
de cair para sempre, vivência essa muito comum em quadros de pacientes psicóticos,
onde o contorno psíquico geralmente encontra-se evidentemente fragmentado.
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Mais uma vez, a impressão que dava é que o namoro com a morte, através da
droga, era a única forma de destruir aquilo que o incomodava, aquilo que estava
grudado em seu ser, impregnado em seu dia a dia. A única forma de alimentar-se. A
droga era o veneno salvador, o veneno que mataria sua fome e ao mesmo tempo o
deixaria cada vez com mais fome. A relação fragmentada com a droga passou a
escravizar e não mais suprir.
Pensando dessa forma, buscar a droga, não seria necessariamente uma busca
pela morte, pelo veneno, mas sim uma forma de busca de alimento, busca de
completude, de significação.
Contudo era uma relação ambivalente, uma busca de vida através de um
movimento muitas vezes altamente destrutivo.
A busca de Pedro pela vida fica mais evidente quando o outro entra nesse lugar
de ambiente facilitador (Winnicott, 1990). Estou me referindo a Manoel, padrasto do
jovem, ao que considerei fundamental para o desenvolvimento do adolescente, para o
andamento do processo. Sem ele, não sei se eu, enquanto analista, conseguiria
sobreviver a tudo o que aconteceu na relação terapêutica, a transferência maciça e os
testes de sobrevivência.
Esse novo momento, essa nova possibilidade de um encontro humano, seja com
o analista ou com outra pessoa, pode levar o indivíduo a uma possibilidade de retomada
em sua linha de desenvolvimento e nessa relação resignificar suas experiências ou ainda
ter a chance de, em alguns casos, vivenciar o até então nunca vivenciado. (Dias, 2003)
Pedro obteve isso com Manoel, que sobreviveu perante os testes. O momento
mais lindo do atendimento se passa com os dois, sem necessariamente a minha
presença.
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No momento em que Manoel, no auge de seu desespero, se debruça por
completo na vida de Pedro, a ponto de naquele momento passar por cima de tudo o que
acreditava, de seus valores, das leis, de tudo, olhando somente para Pedro e para a
necessidade do mesmo, marca literalmente toda a sua disponibilidade interna perante o
jovem.
Estou me referindo ao momento em que Manoel se oferece para ir buscar a
droga para Pedro. Chegou a ir perto do ponto de venda, se arriscou, tentou proteger o
enteado do tráfico e se colocou empaticamente de maneira literal no lugar dele. Afirmou
não saber mais o que fazer, mas que não queria que Pedro sofresse.
Diante disso, entendo que Pedro vivenciou a onipotência por completo, teve ao
seu alcance alguém sadio disposto a adoecer por ele. Ao perceber isso, ao perceber tal
gesto, Pedro provavelmente chega aonde queria, foi alimentado e de forma especial que
o deixou saciado.
Nesse caso, tal alimento não sai, não foi embora, pelo contrário permaneceu
através do gesto de Manoel. Dessa forma não havia naquele momento mais espaço para
droga, pois Pedro não se encontrava mais com fome, estava preenchido.
Aqui entra a busca de Pedro de forma mais evidente, utilizando inicialmente a
droga como forma de completude. Winnicott citado por Dias (2003) parte da concepção
de que o psiquismo e seus conteúdos não são inatos e sim adquiridos a partir do
amadurecimento que é facilitado pelo ambiente, através do um outro, vejamos:
[...] o bebê vive pelo fato de ‘estar vivo’ e de haver alguém que responde satisfatoriamente a este fato; ele amadurece por ser dotado de uma tendência inata ao amadurecimento e pelo fato de haver alguém facilitando a realização desta tendência. ( 2003, p.79)
Pensando nisso, na tentativa de se iniciar um caminho, Manoel oferta a Pedro a
possibilidade de um novo começo. Isso me faz lembrar outra afirmação de Winnicott
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em que o mesmo lindamente diz: “É um sofisticado jogo de esconder em que é uma
alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado” (1983, p.169).
Na hora em que Manoel mostra-se disposto a adoecer em prol de Pedro,
permitiu-se brincar de esconde-esconde em um mundo permeado por dor, sofrimentos,
prazeres extremos, o mundo das drogas, porém volta de lá com Pedro ao seu lado, a
brincadeira solitária acaba quando Pedro é encontrado, ao que uma nova brincadeira a
dois se inicia.
É relevante destacar que seria estranho ouvir alguém defendendo um padrasto
que se disponibilizou a comprar drogas para o enteado. Contudo somente quem
acompanhou de perto o caso e que esteja disposto a entender o que significa esse
adoecer perante o pensamento de Winnicott (2002) é que conseguirá compreender que
só se pode adoecer para o outro quem está saudável, quem já está doente não possui
essa disponibilidade. O saudável nesse caso é além de poder adoecer, poder retornar
desse adoecimento, situação essa vivida na relação dual de Pedro e Manoel, ao que em
dado momento Manoel regride para Pedro, para posteriormente retornar com ele.
IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pedro inicialmente gritava através dos sintomas adictos, porém ao mesmo
tempo, durante um período, um grito sem voz, um grito mudo, sem espaço para a
escuta. O não entendimento por parte de todos os envolvidos dos sintomas apresentados
através dessa oralidade, deixa de ofertar ao outro a possibilidade do gesto, da palavra,
do Ser, tendo muitas vezes como caminho a morte subjetiva, o drogar-se.
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Caso não fosse percebido e achado, o perdedor, o faminto, nesse caso Pedro,
diante de tal caminho, numa tentativa de busca de vida através da morte, torna-se adicto.
O soma volta a ter momentaneamente cor, a ter fala, mesmo que dentro de uma adição,
de um “barato” ou mesmo alucinação. De primeiro momento, torna-se o inconsciente
dizível e sintomático. O não ser, o não dito ofertado por esse vincular aniquilador torna-
se palpável e concreto através de tais sintomatologias.
Mesmo carregado de sofrimento, se consegui mais uma vez ver a saúde pela luta
por uma sobrevivência, vinculado a um pedido de ajuda, de socorro, o berro viciado por
um outro saudável, por um outro que oferte algum tipo de alimento. Deve surgir o
contorno como limite e o olhar como possibilidade de vir-a-Ser, compondo o tão
necessitado encontro humano.
Sentia em Pedro e na sua relação com a droga, de que o medo não era
necessariamente o de morrer, mas o de talvez nunca ter existido, ou seja, pois só pode
morrer quem um dia viveu ou perder quem um dia já teve.
Pode-se pensar que na ausência de um vínculo saudável, a relação adicta ganha
espaço, muitas vezes alimentado pela loucura do outro, numa espécie de prisão
subjetiva, ao que drogar-se pode significar mais uma vez se defender-se e porque não
sobreviver, o veneno droga como único alimento, como única saída.
Por último deve-se lembrar que relação de vinculo ocorre entre dois seres, um é
o que necessita e posteriormente deseja o lugar e o outro é o que oferta. Não existe
sentido um sem o outro.
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Sinta fome, a falta é que promove a busca, e que todos possam encontrar em
seus caminhos uma infinidade de Manoeis, seja como olhar devotado, seja como
parceiro enquanto ego-auxiliar do analista.
Por fim, como um representante ideal do caso, podemos citar Mamede, que
lindamente nos ensina:
O ser humano, a fim de que possa acontecer e emergir como si mesmo, precisa iniciar seu processo de constituição a partir de uma posição, de um lugar. Esse lugar não é um lugar físico, é um lugar na subjetividade de um outro. Não é verdade que o fato de uma criança ter nascido garanta que ela tenha tido um início como um ser participante do mundo humano. É muito grande o número de pessoas que vivem no mundo sem pertencer a ele, que vivem nele sem que tenham tido início como um ser frente a um outro. Há necessidade, para o acontecer humano, que a criança seja recebida e encontrada por um outro humano, que lhe dê esse lugar, que lhe proporcione o início de si mesma. Não é possível se falar de alguém sem que se fale de um outro (Mamede, 2006 pp. 18 e 19).
V- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dias, E. O. (2003) A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott. Rio de Janeiro: Ed.
Imago.
Freud, S. (1996). Obras completas de S. Freud - Recordar, repetir e elaborar. V. XII.Rio de Janeiro: Ed. Imago.
Mamede, M. C. (2006) Cartas e retratos: Uma clinica em direção à ética. São Paulo:
Ed. Altamira.
Mcdougall, J. (1992) Teatros do Eu – Ilusão e Verdade no Palco Psicanalítico– Rio de
Janeiro: Ed. Francisco Alves.
Safra, G. (1999) A face estética do Self – Teoria e Clínica. São Paulo: Ed. Unimarco.
Winnicott, D. W. (2002) Os Bebês e suas Mães. São Paulo: Ed. Martins Fontes.
________. (1990) Natureza Humana. Rio de Janeiro: Ed. Imago.
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Winnicott, D. W. (1983) O ambiente e os processos de maturação. Estudos sobre a
teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas.
________. (1994) Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas.
________. (2001) A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Ed. Martins
Fontes.