Do Big Bang Ao Universo Eterno - Mario Novello

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Do big bang ao Universo eterno

Mrio Novello

Do big bang ao Universo eterno

2a edio

Copyright 2010, Mrio Novello

Copyright desta edio 2010:Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) [email protected] / www.zahar.com.br

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CIP-Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

N83d2.ed.

Novello, Mrio, 1942-Do big bang ao Universo eterno / Mrio Novello. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

ApndicesInclui bibliografia e glossrio ISBN 978-85-378-0237-3

il.

10-3983

1. Cosmologia. 2. Evoluo. I. Ttulo.

CDD: 523.1CDU: 524

Somente no final da dcada de 1970 descobriu-se a primeira soluo analtica das equaes da teoria da relatividade geral de Einstein, representando uma cosmologia sem singularidade. Essa soluo descreve um Universo eterno espacialmente homogneo, colap- sando a partir do vazio. Seu volume total diminui com o passar do tempo csmico, at atingir um valor mnimo, e, a partir da, entra na atual fase de expanso.Este livro dedicado a meu amigo e colaborador Jos Martins Salim, com quem tive a alegria de desco- brir esse modelo de Universo eterno.

Prefcio 9Prlogo 11Antecendentes 17

1. A fase hegemnica do big bang (1970-2000) 21Comentrios 26a) Energia necessria para a criao da matria 26b) Einstein e o big bang 28

2. O tomo primordial ou o modelo cosmolgico do big bang 30Modelo cosmolgico-padro 30A questo fundamental da cosmologia 33

3. O primeiro cosmlogo da evoluo: Alexander Friedmann 35O sistema de arbitragem 36Einstein: rbitro, ou do outro lado da produo cientfica 37Comentrios 40a) Teoria da gravitao 40b) Teoria da relatividade especial 43c) Teoria da relatividade geral (gravitao) 46d) Dependncia csmica das leis fsicas 48

4. Uma pergunta malformulada 50 Transformando a questo fundamental da cosmologia em questo axiomtica 51

Sumrio

Comentrios 55a) Teorema 55b) A deformao do tempo 57c) Dialeto newtoniano 58d) Voltar ao passado 60e) Sobre Gdel 63f) Cenrios de Universos eternos dinmicos 66

5. O programa do Universo eterno 68 Steady state: a batalha perdida 70 Princpio cosmolgico perfeito 71

6. A expanso acelerada do Universo,ou em busca de novas formas de energia 73A energia escura: novos campos no Universo? 75

7. Diferentes modelos de big bang, diferentes modelos de Universo eterno 78Universo magntico 79Comentrios 81a) Singularidade no eletromagnetismo clssico 81b) Buraco negro no gravitacional 82c) O primeiro exemplo (1979) de um cenrio do Universo eterno dinmico 83d) Ftons e grvitons: eletrodinmica e gravitao 84e) Universo cclico 85

Concluso 88Eplogo 90

Apndice I: Dilogos sobre o comeo do mundo 95 Apndice II: Cronologia comentada da cosmologia 116 Glossrio 125Referncias bibliogrficas 130

A cosmologia tem como tarefa a refundao da fsica. Recen- temente ocupei-me de expor esta ideia e mostrar as razes que sustentam esta afirmao.* Mas meu propsito aqui de outra natureza. Neste livro, dedico-me a apresentar historicamente as circunstncias que esto levando o modelo cosmolgico conhe- cido como big bang a perder o carter hegemnico que ostentou desde os anos iniciais da dcada de 1970 at h pouco tempo. Examinarei tambm o modelo cosmolgico que, nos ltimos anos, vem atraindo a ateno dos cientistas: o cenrio de um Universo eterno dinmico.

M. Novello, O que cosmologia?.

Prefcio

Em dezembro de 2007, conclu, com meu colaborador Santiago Bergliaffa, a redao de um artigo que uma revista cientfica me convidara a escrever, e que nos ocupou intensamente aquele ano todo. Tratava-se de analisar de modo crtico as diferentes propos- tas que os cosmlogos produziram, ao longo do sculo XX at os nossos dias, envolvendo modelos cosmolgicos no singulares, isto , modelos que se opem frontalmente ao antigo cenrio-padro chamado big bang.O resultado dessa anlise em que examinamos mais de 400 trabalhos cientficos foi um artigo longo, de mais de 100 pginas, que ganhou o ttulo de Bouncing cosmologies.* Quan- do, no final do mesmo ano, enviamos o texto para a prestigiosa revista Physics Report, nos demos conta de que aquele era um momento simblico do fim do paradigma paralisante do modelo explosivo. Com efeito, era a primeira vez, desde os anos 1970 data que marca o comeo da hegemonia do cenrio da grande exploso , que uma revista cientfica de to elevada reputao na comunidade internacional da cincia abria tamanho espao para examinar a questo crucial da cosmologia, a origem do Universo, fora do contexto simplista do cenrio big bang.**

O termo ingls bouncing poderia ser traduzido por ricochete.** Neste livro, no me deterei na apresentao dos detalhes tcnicos que sustentam meus comentrios. O leitor mais dedicado, e cujo interesse se prolonga at as anlises formais especficas sobre as quais os argumentos aqui reunidos se baseiam, pode consultar o artigo mencionado.

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12Do big bang ao Universo eterno

Prlogo

Nesse cenrio, o momento singular, caracterizado por uma condensao mxima pela qual o Universo passou h uns poucos bilhes de anos, identificado ao comeo do Universo e no permite anlise ulterior. Em oposio, no cenrio no singular, o Universo no tem um comeo separado de ns por um tempo finito em nosso passado; aquele momento de condensao m- xima nada mais que um momento de passagem de uma fase anterior para a atual fase de expanso.No modelo cosmolgico do Universo eterno, nesses cenrios no singulares, d-se um passo a mais, ao procurar uma explicao racional para a expanso do volume total do Universo. Dito de outro modo, trata-se de retirar o limite que os cientistas se impu- seram arbitrariamente, no sculo XX, rumo anlise do que teria ocorrido antes do momento de mxima condensao, produzindo aquele estado nico, especial, a partir do qual o volume total do espao aumentaria com o passar do tempo csmico, exibindo uma expanso.O presente livro, baseado no artigo de 2007 e em uma srie de conferncias que realizei ao longo de 2007 e 2008, introduz o leitor no especialista seguinte questo: o Universo teve um comeo em um tempo finito, ou ele eterno?Neste momento, talvez fosse relevante abrir um pequeno parntese para um comentrio pessoal que me parece bastante significativo e exemplifica muito bem por que se manteve durante tanto tempo a exagerada hegemonia de que desfrutou o cenrio big bang.Quando, h uma dcada, eu estava passando um perodo de colaborao com cientistas da Universidade de Lyon, na Frana, fui convidado pelo Conselho Cultural de Villeurbane regio onde est situada aquela Universidade a apresentar uma con- ferncia para o grande pblico sobre os avanos da cosmologia. Ao conversar com alguns professores sobre a palestra, comentei que iria apresentar as duas alternativas que os cientistas haviam

elaborado para descrever as origens do Universo: as propostas do big bang e do Universo eterno.Um professor da Universidade de Lyon fez ento um co- mentrio que me espantou enormemente. Embora conhecendo minhas crticas a este modelo, disse que eu deveria falar apenas do big bang, acrescentando que no caberia enfatizar as dificuldades de princpio que ele possui. Para as pessoas que no so especia- listas em cosmologia, e mesmo para cientistas de outras reas, continuou, no se devem explicitar dvidas que os cosmlogos possam ter sobre a evoluo do Universo. Segundo ele, isso s contribuiria para reduzir o status dessa cincia, abrindo espao para o aparecimento de explicaes de carter no cientfico e at transcendentais. Acrescentou que isso se devia particularidade da cosmologia e grandiosidade do objeto de seu estudo, estas centenas de bilhes de galxias e estrelas que podemos observar no Universo.Respondi-lhe que aquilo ia contra meu propsito de ensinar, entendendo que esta funo tem por principal atributo pr em d- vida todo conhecimento, incluindo aquele que se pretende isento de crticas. E tambm que vivamos uma situao de transio, na qual o antigo modelo big bang perdia seu carter absolutista e hegemnico o que efetivamente aconteceu na dcada seguinte. Ademais, acrescentei, deveramos ter todo cuidado ao deixar sair dos laboratrios e passar para a sociedade informaes que os cientistas esto longe de poder demonstrar com toda certeza. Mais ainda: como essas verdades provisrias alcanam imediatamente as pginas dos jornais cotidianos e das revistas no especializadas, devemos, logo que possvel, esclarecer e enfatizar essa condio efmera, com mais razo ainda quando se trata de questes en- volvendo tema to sensvel quanto o comeo de tudo.Embora o problema da origem do Universo no tenha, para os cosmlogos, importncia primordial pois um dentre vrios com que se defrontam na produo de uma explicao racional a

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Prlogo13

respeito dos diversos fenmenos observados no Universo , para a maioria das pessoas ele apresenta um interesse fantasticamente grande, que vai muito alm da simples curiosidade eventual e passageira. A razo para isso tem a mesma origem daquela que impulsionou os povos do passado, ao longo da histria de todas as civilizaes, a produzir mitos cosmognicos sobre a criao.O estudo desses diferentes modos de conceber, nas civiliza- es antigas, de onde e como surgiu tudo que existe possui uma bibliografia vasta e bastante especfica.* Quanto forma cientfica de organizar e divulgar essa questo, a quase totalidade de textos de fcil acesso se limita verso da criao explosiva. Isso seria aceitvel se ela fosse validada pela observao, sem que houvesse qualquer explicao alternativa. Mas, ao contrrio, como veremos, ela precisamente o modelo que inibe uma histria racional com- pleta do Universo.Nas ltimas trs dcadas, houve uma exagerada exposio e exaltao do big bang. Por outro lado, existe um desconhecimento quase completo a respeito do cenrio do Universo eterno. Este livro pretende equilibrar a situao. Em alguns captulos, acres- centei comentrios sobre assuntos abordados no texto. No final do livro, inclu um glossrio com o intuito de complementar infor- maes e reunir definies simplificadas de termos tcnicos.**Antes de comearmos nossa caminhada, porm, devo fazer um comentrio adicional. Nos ltimos anos, por diferentes razes, a cosmologia tem estado permanentemente sob os holofotes da mdia, seja na imprensa, na televiso ou mesmo em discos com-

Talvez um dos mais interessantes seja o livro La naissance du monde, que contm um relato bastante completo sobre as cosmogonias dos principais povos da Antiguidade. Ver E. Cotta Mello, Estudo sobre as cosmogonias nas civilizaes antigas.** No Apndice II apresenta-se uma cronologia da cosmologia, incluindo os momentos simblicos mais importantes desta cincia.

pactos. fcil constatar que muitas das informaes referentes ao big bang so produzidas sem que se obedea ao compromisso fundamental que qualquer divulgador da cincia seja ele cien- tista ou no deve cumprir. Como a divulgao cientfica se destina, na maior parte das vezes, a no especialistas que no possuem as ferramentas formais para avaliar criticamente o que lhes apresentado , toda afirmao que se faz e que no teve ainda sua veracidade confirmada pelos mtodos convencionais, absolutos e universais da cincia deve exibir para o ouvinte e/ou o leitor sua condio limitada ou provisria. Caso contrrio, como j comentei, esse uso indevido do status elevado que a cincia possui nada mais ser que uma mscara atrs da qual se esconde um poder poltico que no ousa se declarar como tal.*

M. Novello, Cosmos et contexte.

Antecedentes

Mesmo sem ter produzido uma explicao racional sobre a ori- gem do Universo, o modelo big bang isto , a ideia de que o Universo foi criado por uma grande exploso que teria aconte- cido h cerca de poucos bilhes de anos dominou o cenrio cosmolgico durante a maior parte da histria moderna da cosmologia, em particular dos anos 1970 a 2000. Isso pode ser atribudo a vrias circunstncias que adiante teremos oportuni- dade de esclarecer.Embora essa imagem extremamente simplista do que teria ocorrido no incio da atual fase de expanso do Universo no tenha sido ainda abandonada de todo, devemos reconhecer que ela no est mais dotada do vigor e da hegemonia que possua no passado recente. So vrias as causas dessa mudana de paradigma no imaginrio do cientista. Como veremos, uma das mais relevantes est associada a observaes astronmicas recentes, que foram in- terpretadas como se a expanso do Universo estivesse acelerada. H aqui, contudo, um detalhe que tem faltado s anlises envolvidas na questo do big bang e que vai alm do simples exame deste modelo e de seu possvel poder explicativo. verdade que, ao ser indagado se o Universo singular?, ou se existiu um momento nico de criao deste nosso Universo?, grande nmero de cosmlogos respondeu que sim embora com maior frequncia nas duas ltimas dcadas do sculo passado. Mas a indagao, embora explicite uma necessidade atvica do homem, estava malformulada. Essa no era a pergunta adequada,

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pois, para respond-la, necessrio empreender uma extrapolao impossvel de ser controlada pela observao direta.A boa questo esta sim, possuindo consequncias cientfi- cas relevantes um pouco menos preciosa, menos exuberante, em aparncia, menos abrangente, embora bem mais fundamental. A pergunta que deve ser feita esta: pode a cincia produzir uma explicao racional para a evoluo do Universo se o big bang for identificado com o comeo de tudo que existe? Para entendermos completamente a questo, precisamos esclarecer as propriedades deste modelo. No entanto, possvel, antes disso, esboar uma primeira viso das dificuldades intransponveis que um cenrio explosivo provoca. Essa concluso depende diretamente do modo pelo qual os cientistas constroem uma descrio racional do Universo.*De um modo geral, a fsica se organiza a partir do princpio de Cauchy, que descreve o modo pelo qual se d o concerto entre teoria e observao. Ao se realizar uma experincia, obtm-se certo nmero de informaes sobre dado processo fsico. Com a repetio desta ou de outras observaes, amplia-se o conhe- cimento de diferentes propriedades associadas ao fenmeno em questo. Esse processo ento descrito por uma teoria que permite conhecer a evoluo temporal do fenmeno e sobre ele inferir previses. Novas observaes permitem ento verificar a validade ou no das previses. O procedimento bastante geral e at uma histria do Universo pode ser estabelecida segundo tal modo convencional de organizao.Assim, o cientista produz uma explicao dos fenmenos segundo o esquema observao-teoria-observao. Para que

* Os prximos pargrafos so um tanto tcnicos, mas indispensveis para que o leitor possa entender como se organiza o pensamento cientfico a fim de produzir um modelo cosmolgico completo.

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Antecedentes19

se possa seguir o procedimento convencional na cosmologia, indispensvel obter observacionalmente informaes sobre as ca- ractersticas do Universo em dado momento. S assim se poderiam elaborar e testar teorias globais a respeito de sua evoluo. Se, por alguma razo, em determinado momento, no for possvel medir quantidades fsicas de natureza global associadas ao Universo como um todo, esse modo de proceder no pode ser adotado.H vrias condies para que o procedimento possa ser efe- tivado. A mais simples e fundamental delas requer que todas as grandezas envolvidas sejam descritas por quantidades finitas. Isso se deve ao carter finito de toda observao, pois qualquer medida demanda um nmero real e finito para caracteriz-la. Assim, ao identificar o comeo de tudo a uma exploso inicial como faz a proposta do cenrio big bang em que quantidades a princpio observveis atingiriam, segundo o modelo, o valor infinito (como a densidade de energia total do Universo), esta condio bsica no estaria preenchida.Segue-se da, como consequncia inevitvel, a impossibilidade de construir uma cincia da natureza envolvendo a totalidade do que existe: no seria possvel construir uma base terica a partir da qual se estabeleceria uma histria completa do Universo. A cosmologia no descreveria esta totalidade. Assim, no modelo big bang stricto sensu, a cosmologia no poderia se constituir como cincia.

1 A fase hegemnica do big bang(1970-2000)

Embora a ideia de que o Universo est em expanso fosse bem- aceita desde a observao feita por Edwin Hubble, no final da dcada de 1920, foi somente na segunda metade dos anos 1960 que ela passou a ser entendida como consequncia natural de uma grande exploso que teria ocorrido h cerca de poucos bilhes de anos. Dois grandes acontecimentos concorreram para isso, um de natureza observacional e outro de natureza terica, formal.Em 1964, dois radioastrnomos americanos, Arno Penzias e Robert Wilson, detectaram estranhos sinais bastante regulares que foram interpretados mais tarde como resqucios de uma fase extremamente quente do Universo. Isso foi resultado da observa- o de uma radiao eletromagntica que os fsicos conhecem de suas experincias em laboratrios terrestres e que no passam de gros de energia da luz (de frequncia de onda no visvel), ftons em grande quantidade que se comportam como se esti- vessem em equilbrio trmico.* Uma utilizao simples da lei de conservao de energia permitiu concluir, a partir da observao, que a temperatura de equilbrio desse gs de ftons foi maior no passado. Em verdade, entre sua temperatura e o fator de escala ou raio do Universo existe uma relao importante: elas so

* Esta radiao j havia sido detectada anteriormente, em 1941; no entanto, sua importncia na descrio do cosmo passou praticamente despercebida dos fsicos. (Cf. Apndice II, Cronologia comentada da cosmologia.)

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inversamente proporcionais. Isso significa que, quanto maior o volume do espao, menor a temperatura, e vice-versa.Por outro lado, houve uma evoluo formal, consubstan- ciada em alguns teoremas que, a partir de consideraes gerais envolvendo a evoluo de processos descritos pela interao gravitacional, levaram interpretao de que uma singularidade inicial imediatamente associada ao big bang seria uma caracterstica tpica do Universo.Essas duas descobertas foram cruciais no sentido de criar con- dies para o estabelecimento e ascenso do modelo explosivo de Universo. Entre os fsicos, o impacto desses resultados foi notvel. Nas palavras de Steven Weinberg: Aquilo que a descoberta, em 1965, da radiao csmica de fundo de 3 Kelvin realizou de mais importante foi nos forar a considerar seriamente a ideia de que houve efetivamente um comeo do Universo.*Em verdade, no foi essa descoberta que induziu os fsicos a pensar que teria havido um instante de criao do Universo. A verdadeira responsvel por isso foi a ideologia que estava alm das observaes, e que os levou a concluir abruptamente que, se o Universo tivesse sido mais quente no passado, no deveria haver limite superior sua temperatura. Consequentemente, ela teria atingido o valor infinito em um tempo separado de ns por um valor finito uns poucos bilhes de anos. Teria havido uma grande exploso inicial dando origem a tudo que existe!Conquistar uma posio de destaque junto comunidade cientfica foi uma tarefa rdua para o modelo big bang. O livro j mencionado de Weinberg serviu e muito para isso. Afinal, uma afirmao to eloquente e peremptria quanto a que citamos, feita por um laureado com o Prmio Nobel, certamente tem grande repercusso entre os fsicos. No exagero afirmar que foram

* S. Weinberg, Les trois premires minutes de lUnivers.

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A fase hegemnica do big bang23

atitudes como a de Weinberg e seus seguidores que permitiram cosmologia penetrar em territrios da cincia dos quais ela era at ento excluda.Para citar dois exemplos, foi a partir de ento que tanto o Cen- tro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) quanto o Laboratrio Fermi de Chicago (Fermilab) passaram a integrar a cosmologia entre suas atividades principais de investigao.* Nesse momen- to, a cosmologia comeou a ser considerada uma rea atraente de pesquisas. Mais importante que isso, havia uma razo de natureza extrnseca para que o cenrio explosivo fosse bem-visto pela comunidade de fsicos destes e de outros centros na Europa e nos Estados Unidos, tambm envolvidos no mesmo objetivo, intimamente relacionado crise das altas energias,** na dcada de 1970. Essa parte da fsica requeria e ainda requer, para seu desenvolvimento, a construo de enormes aceleradores extraordi- nariamente dispendiosos e cuja construo enfrentava obstculos polticos tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.Ora, o cenrio descoberto pelo matemtico russo Alexander Friedmann, que descreve um Universo dinmico, em expanso, como um processo evolutivo, permitiu vislumbrar um territrio novo. Ele foi ento escolhido para substituir, no imaginrio dos fsicos, a ausncia de mquinas de acelerar partculas, impossveis de se construir por razes financeiras.As causas aceitas para essa substituio estavam associadas ao sucesso da cosmologia. Com efeito, o modelo-padro do Universo baseia-se na existncia de uma configurao que descreve seu contedo material como um fluido perfeito em equilbrio ter- modinmico, cuja temperatura T varia com o inverso do fator de

* Cern e Fermilab so importantes centros de pesquisa que tradicional- mente abrigavam grande nmero de cientistas dedicados a pesquisas de tomos e de partculas mais elementares.** Tambm conhecida como fsica de partculas elementares.

escala; isto , quanto menor o volume espacial total do Universo, maior a temperatura.Assim, nos primrdios da atual fase de expanso, o Universo teria passado por temperaturas fantasticamente elevadas, excitan- do partculas, expondo o comportamento da matria em situaes de altssimas energias bastante semelhantes s que se encontram nos grandes aceleradores de partculas. E, o que era mais conve- niente, quase de graa, sem novos custos bastava olhar para o cu. Este se tornou o estopim para que o modelo big bang fosse aceito como uma boa teoria por parte daqueles cientistas que trabalhavam com a fsica das altas energias e depois por toda a comunidade de fsicos.Embora se tenha feito certo esforo para que o big bang passasse a desfrutar de aceitao e, mais que isso, de consagrao como a boa descrio da dinmica do Universo, transpor isso para a sociedade foi bastante mais fcil, e no aconteceu por acaso. O sucesso da ideia fora do crculo cientfico, na sociedade em geral, se deve ao fato de que ela possui vrias caractersticas que foram e ainda so consideradas vantajosas para uma descrio da totalidade. A aceitao da existncia de um momento singular o instante de criao (identificado com a exploso) , por exemplo, est intima- mente relacionada ao imaginrio de vrias sociedades arcaicas.Esse modo de descrever a criao, os momentos iniciais do Universo, tem seu anlogo em diversas religies que identificam em suas cosmogonias o tempo mtico/mgico no qual os deuses se debruaram para alm de suas atividades usuais a fim de em- preender a criao do mundo. Na comunidade judaico-crist, em particular, a ideia de um comeo nico e singular pareceu a muitos incluindo o papa Pio XII* uma descrio cientfica

* Na edio de maio de 2008 do Osservatore Romano, o diretor do Ob- servatrio do Vaticano, Jose Gabriel Funes, afirmou estar convencido da

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A fase hegemnica do big bang25

da criao do Universo bastante aceitvel e at desejvel, posto que de fcil adaptao aos ensinamentos de livros religiosos fun- damentais, como a Bblia.*Modelos alternativos sustentando a ideia de que o momento de condensao mxima no uma barreira intransponvel e pode ser analisado como resultado da existncia de uma fase anterior s passaram a ser considerados competitivos com o modelo big bang, por parte do establishment, na virada do sculo XXI. Os defensores desses cenrios argumentam que a extenso de dura- o do Universo no mensurvel, arrastando o que poderamos chamar de momento de criao para o infinito passado.Tanto o modelo big bang quanto os diferentes modelos de Universo eterno produzem dificuldades de compreenso que vo alm da simples questo tcnica. Nas ltimas dcadas, a sociedade parece ter se acostumado a retirar o peso formal do modelo big bang. Isso se deve sua popularizao, graas enorme publici- dade que a mdia e alguns cientistas, em livros, jornais e revistas no cientficas, produziram nos ltimos anos. Como a alternativa principal o cenrio do Universo eterno no desfruta ainda dessa popularidade, algumas questes de princpio surgem e no so sublimadas pela mdia, deixando transparecer dificuldades atribudas a este modelo, mas que em verdade so genricas, inerentes a toda e qualquer cosmologia.

validade da teoria do big bang para explicar a origem do mundo, conside- rando-a completamente compatvel com a existncia de Deus.* Curiosamente, as civilizaes antigas elaboraram tambm mitos cos- mognicos que podemos associar a universos eternos, nos quais a criao ocorreu em uma poca to remota que no podemos sequer contar quan- to tempo se teria passado desde ento, La naissance du monde.

Comentrios

a) Energia necessria para a criao da matria

Uma das grandes novidades trazidas pela mecnica quntica foi a descoberta de que cada partcula material possui sua simtrica, chamada antimatria. Assim, por exemplo, o eltron, que tem uma unidade elementar de carga eltrica, possui sua antipartcula, chamada antieltron ou psitron.

Criao de par virtual: um fton energtico cria um par virtual de partculas, no caso, um eltron e sua antipartcula, chamada psitron ou antieltron.

O psitron tambm tem uma unidade elementar de carga eltrica, mas de sinal oposto. Assim, quando um eltron encontra um psitron, eles se aniquilam. A carga eltrica total, ou seja, a soma de cada carga individual, zero e deve permanecer zero depois da aniquilao. O que resulta desse processo? Nada mais que ftons, os gros elementares de luz.

Aniquilao da matria: um eltron e sua antipartcula, o psitron, se aniquilam, gerando um fton.

De modo anlogo, e inversamente, um fton pode se trans- formar em um par partcula/antipartcula. Se a energia desse fton for igual ou superior soma das energias necessrias para criar um eltron e um psitron, o fton pode gerar um par virtual eltron-psitron.

Um fton energtico cria um par virtual de partculas um eltron e um psitron que imediatamente se aniquilam, gerando um fton.

Logo imediatamente a seguir, o par se aniquila pelo processo anterior e gera novamente o fton.

Aniquilao da matria: um eltron e sua antipartcula, o psitron, se aniquilam, gerando um fton, que cria um par de partculas um eltron e um psitron.

O processo pode se repetir em um nmero extremamente grande de vezes. Iremos ver, no captulo referente instabilidade do vazio quntico, como esse processo pode estar na origem da formao do Universo.

Sucesso de processos de criao/destruio de pares de partcula/ antipartcula e ftons (no exemplo, o par eltron/antieltron).

Diz-se que essa sucesso de criao/destruio de partculas virtual porque ela no produz efetivamente matria pois se trata de uma srie de processos de soma nula.Por outro lado, a gravitao o prprio colapso ou a ex- panso do Universo capaz de transformar aquela srie de virtualidades em um mecanismo de criao de matria real. possvel, assim, que a matria tenha origem no prprio processo de evoluo do Universo.Essa possibilidade cria uma incmoda e curiosa situao que pode ser resumida do seguinte modo: a matria que gera gravi- tao formada pelo processo dinmico gerado pela gravitao.

b) Einstein e o big bang

H uma interveno, feita pelo criador da cosmologia moderna, que decidi apresentar aqui, pois nela Albert Einstein se posiciona frontalmente contra o big bang por razes que ficaram esquecidas e agora remontam cena. Diz ele em seu livro de 1948, intitulado O significado da relatividade:

Em relao questo da singularidade inicial dos modelos cos- molgicos, eu gostaria de dizer o seguinte: a teoria atual da re- latividade se baseia na diviso da realidade fsica em um campo mtrico (a gravitao), por um lado, e o campo eletromagntico e a matria, por outro. Na realidade, o espao provavelmente ter

carter uniforme, e a teoria atual somente ser valida como um caso limite. Para grandes valores do campo e da densidade de matria, as equaes do campo e at as prprias variveis que intervm nestas equaes no possuem significado real. No possvel, assim, admitir a validade de tais equaes para densidades de campo e de matria muito elevadas. Consequentemente, no se pode con- cluir dessas equaes [da relatividade geral], ao serem aplicadas ao Universo, que o incio da expanso do Universo se identifique com uma singularidade no sentido matemtico. Tudo que deve- mos reconhecer que as equaes [da relatividade geral] no so aplicveis nessas regies.*

* A. Einstein, El significado de la relatividad, p.154.

2 O tomo primordial ouo modelo cosmolgico do big bang

Para realizar o que prometemos antes, e para que nossa descrio no seja demasiadamente longa, vamos comear a anlise pelas grandes linhas de investigao que dominaram o cenrio da cos- mologia a partir dos anos 1970.Isso significa que no irei descrever nem comentar alguns dos mais importantes modelos cosmolgicos simples que rece- beram os nomes de seus criadores, como os de Einstein (1917), De Sitter (1919), Kasner (1923) e Gdel (1949). A nica exceo ser o modelo de Friedmann (1919), por sua enorme atualidade. Isso no significa que os outros possam ser eliminados da anlise cosmolgica. Por exemplo, qualquer estudo consequente sobre a estrutura do tempo e a causalidade no pode ignorar as profundas questes formuladas por Gdel na apresentao de seu modelo cosmolgico. Simplesmente quero limitar o foco de nossa aten- o, e para isso devemos restringir o alcance da anlise.*

Modelo cosmolgico-padro

Ao longo do sculo XX, os cientistas desenvolveram um cenrio- padro baseado na ideia de que o Universo um processo em evoluo e seu volume total aumenta com o passar do tempo. Tal

* Em Mquina do tempo e O que cosmologia?, dediquei-me anlise dessas questes.

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modelo fornece uma descrio bastante boa de sua evoluo desde os tempos recentes at aproximadamente alguns bilhes de anos atrs, e ele foi aceito pela quase totalidade dos cosmlogos. Quanto ao que teria ocorrido quando o Universo estava no momento de mxima condensao, a unanimidade desaparece: o modelo big bang sustenta que o incio, ocorrido h poucos bilhes de anos, foi singular, explosivo; o modelo de Universo eterno advoga que esse incio pode ser prolongado por muito mais tempo. Ambas as des- cries esto baseadas em algumas poucas hipteses essenciais que devemos deixar claras. Vamos resumi-las de modo esquemtico:

1. Existe um tempo csmico global que permite dividir o espa- o-tempo quadridimensional em termos de uma estrutura identificada com um espao tridimensional (que chamamos simplesmente de espao) e uma dimenso temporal (ou tempo).2. A fora gravitacional, principal responsvel pelos efeitos globais no Universo, descrita pela relatividade geral. Nessa teoria, a gravi- tao determina a geometria do espao-tempo, e sua intensidade medida pela curvatura dessa geometria.3. A fonte dessa curvatura se identifica a um fluido perfeito, isto , seu contedo material descrito por uma distribuio contnua de energia/matria.4. Em grandes domnios do espao, alm de uma certa escala de distncia de valor bastante elevado, a estrutura do Universo es- pacialmente homognea e isotrpica. Isso significa que qualquer lugar do Universo possui propriedades iguais. Em particular, em qualquer direo que apontemos nossos telescpios, as mesmas caractersticas sero observadas.

Vamos comentar brevemente cada uma dessas quatro con- dies que so pr-requisitos de todo modelo cosmolgico, seja ele singular (como o big bang) ou eterno.

32Do big bang ao Universo eterno

O tomo primordial31

O Universo, a totalidade do que existe, descrito como uma estrutura em quatro dimenses na qual se impe a separao do espao tridimensional e do tempo unidimensional. Essa diviso do mundo em termos quase newtonianos possvel quando se admite a hiptese de que em nenhum lugar existe um caminho, capaz de ser percorrido por um observador real homem ou mquina , que possa levar ao passado. Tal hiptese funciona como um eficiente instrumento de trabalho e simplifica muito a descrio dos fenmenos, sem acarretar uma restrio muito forte s possveis configuraes do Universo. Na verdade, somente o modelo cosmolgico de Gdel (ver adiante), dentre todos os co- nhecidos com algum destaque, no preenche esta condio.A segunda condio decorre do status de que a relatividade geral desfruta atualmente. Ela produziu uma descrio da fora gravitacional compatvel com todas as observaes realizadas. bem verdade que at hoje no foi possvel detectar, por observao direta, as ondas gravitacionais uma das previses que a teoria sugere.*A terceira hiptese talvez seja um dos pontos mais fracos da lista. No temos evidncia a no ser indireta da totalidade da matria e energia existentes, e, por conseguinte, do modo pelo qual elas podem ser descritas. A ideia de um fluido perfeito, resqucio da era em que a cosmologia carecia de observaes con- sistentes, constitui uma configurao bastante simples e que pode servir como uma primeira aproximao do verdadeiro contedo material-energtico relevante para a disciplina.Quanto ao quarto item, ele se sustenta a partir da generaliza- o das observaes locais para todo o Universo, o que consiste em

No entanto, uma nova gerao de detectores espalhados pelo mundo talvez em breve nos permita caso elas realmente existam observar essas ondas.

uma aplicao do princpio estendido de Coprnico, segundo o qual no ocupamos lugar especial no Universo. Isso significa que, se observarmos em nossa vizinhana homogeneidade espacial e isotropia, ento essa caracterstica deve ser estendida para todos os demais pontos do Universo.

A questo fundamental da cosmologia

Para completar essa introduo, devemos notar que, ao longo do sculo XX, a cosmologia passou por trs momentos cruciais, que podem ser simbolizados de um modo simples, como se fossem formados pelas respostas dadas a trs questes fundamentais:

1. O Universo esttico ou dinmico?2. A evoluo do Universo estacionria ou varia no uniforme- mente com o tempo?3. Houve um comeo em um tempo finito de nosso passado, ou o Universo eterno?

A primeira questo dominou o cenrio da cosmologia desde o incio da segunda dcada do sculo XX at o final dos anos 1930; a segunda questo passou a ser predominante at a metade dos anos 1960; e, desde ento, vivemos em plena era da terceira das questes principais.O sculo passado nos legou uma histria fascinante sobre a viso que os cientistas produziram e que constituiu um desenvolvi- mento notvel no conhecimento dos aspectos globais da natureza, modificando em profundidade a imagem que a cincia possua do Universo. Passou-se de uma situao em que a totalidade do que existe era identificada com uma configurao imvel, esttica, congelada, para a viso atual, na qual o Universo entendido como um processo evolutivo a que se pode atribuir uma histria.

No primeiro movimento de construo da cosmologia relati- vista, parecia natural para Einstein aceitar a priori, sem embasa- mento observacional que o Universo no uma estrutura din- mica. Assim, ele criou em 1917 o primeiro modelo cosmolgico, descrito globalmente por uma geometria esttica, independente do tempo. Sem ter sua disposio os meios necessrios para confron- tar seus argumentos a priori sobre o Universo com a observao, Einstein chegou a essa geometria, soluo de suas equaes da gravitao, graas a uma argumentao formal, guiada somente pelo preconceito de uma ideologia. A partir da hiptese de ausncia de dependncia temporal na geometria que descreveria o Universo considerado em sua totalidade, sem a possibilidade de confrontar seus argumentos com a observao, Einstein produziu o primeiro modelo cosmolgico do sculo XX.A fora dessa ideologia era to grande que, para poder levar adiante seu projeto de instituir uma cosmologia a partir de suas equaes da relatividade geral, Einstein foi obrigado a modificar sua ento recm-criada teoria da gravitao. Introduziu uma constante universal que possui uma caracterstica etrea, resqucio dos absolutismos csmicos da cincia newtoniana. Foi essa a nica estrutura material que sua imaginao produziu para constituir a fonte dessa geometria inerte e imutvel.Mas aquilo que parece bvio ou natural para uma pessoa ou grupo de pessoas em uma dada poca pode parecer totalmente desqualificado, intil ou desprovido de interesse em outro pe- rodo, em outro contexto. Isso ocorre mesmo quando se trata de uma observao, pois o substrato terico no qual uma observao ganha significado e se insere no corpo formal de conhecimentos aceitos como verdadeiros tambm se submete a essa regra. Com a cosmologia no poderia ser diferente, como logo ficou evidente. A dcada de 1920 foi o perodo principal em que se estabeleceram as bases para o que viria a ser o cenrio-padro da cosmologia, graas principalmente ao trabalho seminal de um cientista russo.

3 O primeiro cosmlogo da evoluo: Alexander Friedmann

Dificilmente iremos encontrar, na histria da cosmologia mo- derna, personagem to importante quanto o matemtico e fsico russo Alexander Friedmann (1888-1925). Nos ltimos anos, graas a uma ao internacional liderada principalmente por cientistas originrios de sua cidade natal, So Petersburgo, um congresso internacional que leva seu nome lhe dedicado a cada dois anos.* Alguns comentrios sobre sua descoberta so importantes para situar e evidenciar o impacto de seu trabalho na evoluo da cosmologia desde as primeiras dcadas do sculo passado.No final dos anos 1920, Friedmann submeteu publicao na revista alem Zeitschrift fur Physik uma anlise da questo cosmolgica distinta daquela contida na soluo original proposta pelo fundador da cosmologia moderna. A principal novidade con- sistia em tratar a questo como um processo dinmico, no qual, contrariamente ao modelo de Einstein, exibia-se uma evoluo do Universo, uma dependncia temporal de suas propriedades mais fundamentais e, em particular, de sua geometria. No en- tanto, o apriorismo de um Universo esttico a famosa hiptese introduzida por Einstein em seu primeiro modelo cosmolgico mostrou-se to fortemente reacionrio que conseguiu evitar, por mais de um ano, a publicao do trabalho de Friedmann.

O Departamento de Fsica da Universidade Federal de Joo Pessoa, Paraba, j sediou mais de uma vez esse congresso. Em 2008, ali foi rea- lizado o ltimo Friedmann Seminar.

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H uma curiosidade relativa publicao desse artigo semi- nal da cosmologia moderna que vale um desvio de sua descri- o para nos determos numa questo colateral, pois talvez ela seja til para o leitor conhecer os mecanismos pelos quais uma produo cientfica chega a alcanar a notoriedade. Ns no pene- traremos os bastidores dos modos pelos quais a cincia como ativi- dade social se organiza, se estrutura e adquire uma prtica de ao. Mas faremos um comentrio que permitir ao leitor que tem pou- co acesso aos mecanismos de produo e articulao de trabalhos cientficos ter conhecimento dos obstculos que esses trabalhos so obrigados a ultrapassar para conquistar o lugar de destaque que alguns realmente merecem.

O sistema de arbitragem

As revistas cientficas nas quais so publicados os trabalhos ori- ginais desenvolvidos nos institutos de pesquisas, laboratrios ou universidades possuem uma caracterstica singular que talvez no seja do conhecimento do leitor no cientista. Ao submeter um artigo que contenha pesquisas originais, capazes de fazer avanar o conhecimento, todo pesquisador sabe que deve obedecer a uma sequncia de procedimentos tpicos convencionais. Dentre eles, o mais singular e especfico consiste no fato de que o editor da revista ir encaminhar o trabalho para um ou mais cientistas que serviro como seus juzes ou rbitros. Tais cientistas que permanecem no anonimato e, o mais das vezes, sem remunerao para exercer essa atividade sero praticamente os responsveis no somente por analisar a qualidade do artigo como tambm por avaliar se ele no se desvia demasiado da linha editorial do peridico. Dito de modo mais simples, so eles que tero maior peso para decidir se o artigo submetido preenche ou no as con- dies de aceitabilidade que a revista se impe.

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O primeiro cosmlogo da evoluo37

Esse sistema possui inmeras dificuldades e certamente pode funcionar muitas vezes como fator de manuteno das ideias e conceitos aceitos pela maioria. Mas assim que a totalidade das revistas cientficas funciona. Creio que no difcil imaginar que este sistema eventualmente permite que se pratiquem enormes injustias.

Einstein: rbitro, ou do outro lado da produo cientfica

Quando Friedmann submeteu seu trabalho revista alem Zeits- chrift fur Physik, a principal questo, para os editores, se relacio- nava dificuldade de encontrar um cientista capaz de entender e avaliar a relevncia de seu artigo. Quem escolher para dar um parecer sobre tema to pouco comum entre os fsicos de ento? Quem poderia servir de consultor para um artigo sobre cosmo- logia numa poca em que o nmero de cientistas interessados na questo se contava nos dedos de uma mo? Quem deveria ser chamado a dar um parecer sobre o artigo de Friedmann que no o prprio Einstein?Aceitando servir como consultor da revista para onde Fried- mann enviara seu trabalho intitulado Sobre a curvatura do espa- o, em um primeiro momento Einstein rejeitou o artigo como se ele fosse destitudo de interesse. Depois de resistir por mais de um ano a uma forte presso de cientistas em especial de fsicos de So Petersburgo que haviam reconhecido no trabalho uma nova viso da cosmologia no interior da teoria da relatividade geral, Einstein aceitou por fim que ele fosse publicado.Insatisfeito com sua mudana de deciso, contudo, ele re- digiu uma nota intitulada Nota acerca do trabalho Sobre a curvatura do espao de A. Friedmann , tambm publicada na revista Zeitschrift fur Physik, em que apontava um erro de clculo no artigo de Friedmann. Literalmente, Einstein dizia naquela

pequena nota que o resultado obtido por Friedmann de um Universo cujas propriedades geomtricas dependiam do tempo lhe parecia suspeito (no original, verdarchtig). Finalmente, em momento posterior mas sem mostrar entusiasmo algum pela nova viso cosmolgica , admitiu que o artigo estava correto, e que o erro era seu.*O que havia no artigo para induzir um dos grandes cientistas do sculo XX a assumir to infeliz atitude e impedi-lo de aceitar a maravilhosa novidade que Friedmann trazia para o territrio da fsica, a saber, a dinmica do Universo? A reao parece ainda mais chocante quando, ao analisarmos o suposto erro que Einstein atribuiu ao artigo de Friedmann, v-se de imediato que Einstein estava errado. A deciso dessa disputa contra o criador da rela- tividade geral to simples de ser concluda que somos levados a procurar explicao em alguma forma de razo no cientfica. Talvez um mero preconceito, ou a arrogncia, tenha impedido Einstein de reconhecer de imediato a justeza dos clculos de Friedmann.Mas, afinal, de que tratava o artigo? O que poderia ele trazer de to contrrio sua viso de mundo para Einstein lhe devotar tamanha averso? No texto de Friedmann, apresentava-se pela primeira vez uma nova soluo das equaes originais da teoria da relatividade geral. Nela, contrariamente viso esttica do modelo de Einstein, o autor demonstrava a possibilidade de se construir uma cosmologia dinmica, com uma evoluo ideia nova, seminal, cheia de potencialidades na gestao de uma viso aberta do Universo e que ainda hoje domina o cenrio da cosmologia.

Em seu livro Early Expanding Universe and Elementary Particles, o fsi- co russo de So Petersburgo Andrey Grib relata com detalhes a relao Einstein-Friedman com referncia publicao do artigo de seu conter- rneo.

As caractersticas que esse modelo atribui ao Universo so bastante simples e compem-se de uma srie de simetrias que permitem resolver as intricadas equaes da teoria da relativi- dade geral contidas nas seguintes hipteses simplificadoras:

1. A curvatura do espao-tempo a medida da intensidade do campo gravitacional, de acordo com a relatividade geral.2. O principal responsvel pela curvatura pode ser descrito como um fluido contnuo de densidade de energia E e presso P.3. Entre E e P existe uma relao simples que se escreve P = s E, onde s uma constante a ser especificada pelo modelo e que s pode assumir valores positivos menores que 1.4. Tanto E quanto P dependem somente do tempo global, isto , o espao tridimensional homogneo: suas propriedades so as mesmas em qualquer ponto.5. O Universo possui uma singularidade inicial em que o volume total do espao zero, e a densidade de energia infinita.6. Embora a fora gravitacional seja somente atrativa, suas partes esto se afastando uniformemente umas das outras. Isso vale para todas as galxias. Assim, cada galxia v todas as demais se afastarem dela.

Esse modelo terico, cujas hipteses, poca, no eram sustentadas por qualquer observao efetiva, resultou num bom cenrio, capaz de descrever as propriedades observadas do Univer- so em grande escala. As observaes de afastamento das galxias feitas por Hubble, em 1929, e a deteco de uma radiao cs- mica de fundo por Penzias e Wilson vieram tornar a geometria que Friedmann descobrira formalmente o cenrio-padro da cosmologia nas ltimas dcadas do sculo XX.

Comentrios

a) Teoria da gravitao

Em 1915, o fsico alemo Albert Einstein produziu uma pequena revoluo conceitual na estrutura da geometria do espao e do tempo, alterando profundamente a teoria da gravitao proposta trs sculos antes por Isaac Newton e, desse modo, retirando da Inglaterra a honra de ter sido o bero do cientista que havia des- vendado o segredo da interao gravitacional. At chegar a esse ponto, a histria bem longa, e minha inteno trat-la apenas como uma pequena introduo para tornar mais clara a questo que estamos analisando aqui.No final da Idade Mdia, graas ao longo trabalho desenvol- vido por grande nmero de astrnomos como Tycho Brahe e Johan Kepler , j se conseguira acumular um nmero sufi- ciente de informaes sobre o mundo supralunar, permitindo o aparecimento de uma fantstica especulao a respeito da existncia de uma fora universal capaz de atuar sobre qualquer forma de matria. Apoiando-se em observaes locais, feitas em nossa vizinhana terrestre, acreditando na hiptese reducionista da unidade do mundo e apossando-se da simplificao formal como instrumento poderoso na elaborao da realidade, no final do sculo XVI os astrnomos estavam preparados para lanar a hiptese da existncia da lei de gravitao universal. Foi o que Isaac Newton fez ao caracterizar a atrao gravitacional como uma fora que se espalharia instantaneamente por todo o espao e seria tanto mais intensa quanto mais prxima do corpo material que a originara.A lei universal da gravitao proposta no sculo XVI permitiu unificar todos os processos de atrao de qualquer corpo material. Assim, toda forma de matria, seja na Terra (como no famoso exem- plo da ma), seja em corpos celestes (como planetas e estrelas),

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obedece a um nico tipo de fora, a gravitao universal. O efeito dessa fora por exemplo, a atrao exercida por uma estrela como o Sol seria sentido em todo o espao, sendo que sua intensidade diminuiria com o inverso do quadrado da distncia.Essa primeira formalizao da lei universal da gravitao foi certamente um imenso passo na descrio dos fenmenos astronmicos, permitindo melhor classificar e compreender os movimentos de corpos materiais em nossa vizinhana, obtendo enorme sucesso ao exibir as causas de diversas regularidades no cu, e em particular o movimento dos planetas girando ao redor do Sol.Durante quase 300 anos, os fenmenos que os astrnomos observavam nos cus foram bem-descritos por essa lei. No havia qualquer necessidade observacional capaz de diminuir a certeza de sua validade por parte dos astrnomos. Entretanto, razes de natureza terica, advindas de profundas alteraes ocorridas na fsica, nos ltimos anos do sculo XIX e no comeo do XX, pro- duziram um modo novo de descrever a realidade que resultou incompatvel com a formulao newtoniana.A descrio newtoniana ainda poderia ser usada como uma expresso aproximada dos fenmenos gravitacionais para explicar, de modo simples, por que, por exemplo, se eu soltar de minha mo esta caneta com que estou escrevendo este texto, ela cair. Entendemos que isso ocorre graas fora que a Terra exerce sobre a caneta. Entretanto, tal explicao simples deve ser abandonada quando se trata de descrever processos na presena de campos gravitacionais muito intensos.Antes de entrarmos nessa anlise, devemos explicitar uma caracterstica da teoria newtoniana, pois embora no provocasse qualquer dificuldade formal para sua aceitao, ela estava na ori- gem da crtica maior que surgiu quando, na segunda dcada do sculo XX, Einstein produziu uma nova teoria da gravitao. Qual era essa propriedade que passou invisvel aos olhos dos antigos?

A descoberta da existncia da atrao universal, que permitiu a compreenso de propriedades regulares observadas no movimen- to de planetas vizinhos, trazia embutida a ausncia do tempo. A lei newtoniana tratava do movimento e, consequentemente, da passagem do tempo; e, no entanto, ela no apresenta nenhuma referncia ao tempo. Isto , a ao de um corpo sobre outro, essa interao universal que permitia compreender as leis locais de movimento dos planetas, era ela mesma instantnea: no exigia um passar do tempo para exercer sua ao; no precisava de tempo para que sua influncia se fizesse sentir; ela se propagava como se possusse uma velocidade infinita; ou, para ser mais exato, no se propagava.Essa propriedade aparece hoje, aos olhos modernos dos cien- tistas, como totalmente inadmissvel, pois mesmo os ftons os gros de luz que se movimentam com a maior velocidade possvel exigem tempo para ir de um lugar a outro. Um raio de luz leva alguns minutos para sair do Sol e chegar Terra. E, quanto mais longe, maior seu tempo de percurso. Sabemos mesmo que, como as estrelas possuem um processo evolutivo, tendo um tempo de existncia finito, podemos estar vendo no cu uma estrela que j no existe mais. Sua distncia pode ser to grande que, quando enxergamos a luz por ela emitida, e que demorou tanto tempo para atravessar os espaos siderais, a estrela talvez no exista mais, tendo explodido e dado origem a poeira estelar o que s poder ser observado da Terra em futuro longnquo.No entanto, nos sculos que se seguiram a essa descoberta newtoniana e at o incio do sculo XX, a condio instantnea da ao gravitacional era entendida como uma propriedade na- tural, igual s suas outras caractersticas. O fato de no ser ob- servvel no produzia desconforto de princpio para os cientistas. Em verdade, sequer era possvel formular a questo: o tempo no aparecia como um ingrediente importante no modo newtoniano de descrever a ao gravitacional. Somente sua ao sobre um

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O primeiro cosmlogo da evoluo43

corpo estava associada a uma variao temporal. O tempo apa- recia como uma varivel importante quando se acompanhava o movimento de um corpo sob a fora gravitacional, mas no era mencionado entre as caractersticas dessa fora.Foi somente no final do sculo XIX e incio do sculo XX que a instantaneidade da fora gravitacional comeou a ser entendida como um verdadeiro problema, uma dificuldade associada ao modo newtoniano de descrever esse campo de fora.* Para entendermos essa mudana de atitude, devemos nos referir revoluo feita na fsica, no comeo do sculo XX, por diversos cientistas, dentre os quais podemos citar Henri Poincar, Hendrik Anton Lorentz e Albert Einstein, entre outros. Essa mudana foi sintetizada por Einstein no que chamou de teoria da relatividade especial.**

b) Teoria da relatividade especial

De um modo geral, exceto em uns poucos momentos singulares excepcionais, a atividade cientfica um trabalho coletivo. E no somente nos caminhos pelos quais, a partir de observaes de fenmenos na natureza, se estrutura uma mudana no modo de descrever a realidade, mas no prprio incio da anlise crtica de uma dada descrio formal, capaz de gerar uma mudana de para- digma. O caso da relatividade especial no fugiu a essa regra.No final do sculo XIX, os fsicos haviam conseguido or- ganizar uma descrio da realidade sustentada em dois grandes esquemas conceituais, dois pilares sobre os quais praticamente

Existe a possibilidade moderna de repensar essa interao a longa dis- tncia sem que haja uma ao intermediria. O leitor interessado pode consultar F. Hoyle e J.V. Narlikar, Action at a Distance in Physics and Cosmology.** Tambm chamada por alguns autores de teoria da relatividade restrita.

toda a fsica se erguia: a mecnica e o eletromagnetismo. A mec- nica permitia descrever movimentos dos corpos materiais gerados por quaisquer tipos de fora. Alm das foras de contato entre os corpos, o eletromagnetismo constitua, com a gravitao, as duas nicas foras de longo alcance conhecidas.*Havia, entretanto, uma grande diferena na explicao en- volvendo o modo pelo qual essas foras poderiam exercer suas aes sobre os diferentes corpos. A gravitao era pensada, desde Newton, como uma fora instantnea, isto , exibindo sua pre- sena nas regies mais longnquas, nos domnios interminveis do Universo, como se possusse uma velocidade infinita para sua ao. A fora eletromagntica parecia totalmente distinta.Michael Faraday e seus contemporneos elaboraram a fan- tstica noo de campos de fora, que iria constituir o paradigma moderno de toda forma de interao entre dois corpos quaisquer. Esse modo novo, chamado de campo proposto na descrio das foras eletromagnticas, supe a existncia de uma ao contgua no espao e no tempo de tal modo que um movimento contnuo exercido por um agente do campo se propaga a partir de uma fonte geradora de uma fora eletromagntica.Contrariamente gravitacional, a fora eletromagntica no exercida sobre e por qualquer corpo. Para interagir dessa forma, um corpo material deve possuir uma qualidade especial, particular, intrnseca, que se chamou carga eltrica. Esta carga desempenharia um papel anlogo, na fora eletromagntica, quele assumido pela massa, na fora newtoniana gravitacional. Por que alguns corpos possuem carga eltrica e outros no,os fsicos no sabem. Trata-se de uma constatao, da observao

A situao a mesma na fsica moderna: ainda hoje, somente essas duas foras possuem longo alcance (ou, como se costuma dizer, alcance in- finito).

continuada e jamais violada de que, para exercer uma fora ele- tromagntica, um corpo deve possuir essa qualidade especial, a carga eltrica. O valor dessa carga vai determinar a intensidade do campo por ela gerada. Quanto maior a carga, maior a intensidade de campo, mais forte a ao eletromagntica. Tudo se passa como se cada corpo carregado produzisse em sua volta um estado de tenso ou campo de foras apto a exercer sua influncia sobre corpos carregados que seria tanto maior quanto mais prximo da carga. Curiosamente, a intensidade do campo eletromagn- tico varia inversamente com a distncia, de modo semelhante interao gravitacional.No final do sculo XIX, ficou claro que um corpo carregado cria em sua volta um estado de tenso que se propaga com velo- cidade finita. Essa velocidade associada ao processo de interao constitua a principal diferena entre o eletromagnetismo e a gravitao. Essas duas vises do mecanismo pelo qual ocorre uma interao so irreconciliveis, e a necessidade de escolher entre um ou outro modo passou a ser o grande problema a ser resolvido.A observao permitiu decidir entre essas duas formulaes formais quando se descobriu que se deveria aceitar a velocidade da luz (no vcuo) como absoluta e mxima para qualquer forma de propagao. A partir desse momento, no era mais possvel considerar que a formulao newtoniana representava a fora gravitacional e sua velocidade de propagao infinita.Alguns anos antes de construir uma nova teoria da gravita- o, Einstein realizou um trabalho formidvel de sntese no que chamou de teoria da relatividade especial, envolvendo algumas questes que, no final do sculo XIX, haviam colocado em con- tradio a mecnica e o eletromagnetismo. Em sua teoria, pu- blicou a frmula que lhe angariou enorme fama, ao afirmar que, embora energia e matria pudessem ter configuraes distintas e mltiplas, elas poderiam ser entendidas de modo unificado. A

frmula E = Mc2 permite quantificar a energia mxima possvel de se obter a partir de um corpo material de massa M.*A identificao entre matria e energia permitiu estender a lei de Newton no somente a corpos materiais (uma ma, um planeta), mas tambm a energias (como, por exemplo, a radiao eletromagntica constituda por ftons, os gros elementares da luz). A observao do eclipse solar em Sobral, no Cear, em 29 de maio de 1919, permitiu comprovar que a luz tambm sofre atra- o gravitacional. Quando a luz passa na vizinhana de um corpo massivo, como o Sol, por exemplo, ela desviada de sua trajetria. Esse passo, que conduziu mxima generalizao estabelecendo a universalizao da interao gravitacional, permitiu a Einstein pensar a fora gravitacional como nada mais que modificaes produzidas na geometria do espao-tempo quadridimensional com o qual descrevemos a localizao e os movimentos dos corpos.

c) Teoria da relatividade geral (gravitao)

O carter universal da fora gravitacional propiciou, no sculo XX, a primeira grande modificao da teoria de Newton, produzida pelo fsico alemo Albert Einstein. Com efeito, podemos constatar que todo corpo atrado por outro corpo qualquer independentemen- te de suas constituies qumicas. No h forma de matria e/ou energia imune ao dessa fora. Tudo que existe sofre a interao gravitacional. Talvez o modo mais contundente de nos referirmos a esse carter universal da gravitao esteja contida na afirmaoCaio, logo existo!.**

Algumas evidncias levam a crer que foi Henri Poincar o primeiro cien- tista a explicitar a relao entre a massa inercial de um corpo e a energia que lhe pode ser associada.** M. Novello, Os jogos da natureza.

Isso significa que no h qualquer corpo material ou forma de energia que esteja isenta de interao gravitacional. Toda ma- tria, todo corpo, toda partcula, elementar ou no, toda forma de energia possuem interao gravitacional. Essa propriedade nica, pois a outra fora de longo alcance conhecida a fora eletromagntica no a possui. Com efeito, existem corpos ma- teriais compostos ou elementares como a partcula chamada neutrino que podem passar inclumes por uma regio onde exista um campo eletromagntico sem que sejam de alguma forma influenciados por ele: esses corpos no possuem interao eletromagntica!Foi precisamente o carter universal da fora gravitacional que permitiu pens-la como uma fora completamente distinta de todas as outras conhecidas pelos fsicos. Posto que tudo que existe sente a ao de um campo de fora gravitacional, no se- ria possvel perguntou-se Einstein substituir sua descrio por algum tipo de fenmeno associado natureza do substrato nico que permeia toda a matria e energia, que est em contato ntimo com toda matria e energia existentes, ou seja, o contnuo espao-tempo?Nesse momento Einstein introduziu outro conceito, argu- mentando que a fora gravitacional poderia ser identificada estrutura da geometria do espao-tempo. Ato seguinte, foi levado a modificar a teoria ento vigente, argumentando que a dinmica newtoniana somente uma teoria aproximada, capaz de descrever campos fracos. A nova dinmica requeria uma relao entre a geometria e o contedo material/energtico existente na regio onde se passa a interao gravitacional.A teoria da relatividade especial, de 1905, foi o ponto cul- minante de uma longa aventura do pensamento, unificando a descrio da fsica, ao fundir o espao tridimensional ao tempo e formar uma nova unidade chamada estrutura espao-tempo. A geometria desse espao-tempo consiste em uma configurao

rgida, imvel, capaz de servir de arena ou pano de fundo para todos os processos fsicos.Na teoria da relatividade geral, em 1915, Einstein deu um enorme passo ao sugerir que a fora gravitacional poderia ser descrita como uma modificao efetiva da geometria do espao- tempo. As equaes dessa teoria relacionam o modo pelo qual dada distribuio de matria ou energia de qualquer forma de- termina a geometria do espao-tempo.

d) Dependncia csmica das leis fsicas

Existe uma questo subjacente a toda cincia que pretende estender o domnio de sua aplicao ao Universo. Em geral ela deixada de lado por constituir uma questo de princpio, mas devemos ao menos informar o leitor de sua existncia. Trata-se da extrapola- o das leis fsicas que conduziu ao que se costuma chamar de a questo copernicana.Traduzida para a cosmologia relativista, ela adquiriu uma formulao estabelecida de modo simples pelo fsico ingls sir Paul Dirac: as leis fsicas so universais, vlidas em qualquer lugar do Universo? Devemos considerar verdade absoluta a hiptese de que as leis fsicas so independentes do espao e do tempo? As diferentes formas de matria e energia comportam-se de acordo com as mesmas leis em qualquer lugar do Universo?Sabemos que esse comportamento depende no somente das caractersticas da matria em exame, mas tambm de sua circuns- tncia que, simplificadamente, identificaremos aqui com sua vizinhana no espao-tempo , daquilo que est em contato com ela. Essa dependncia, no entanto, pode ser incorporada s leis fsicas que garantem o modo como se modifica a interao entre um dado tipo de matria e o meio no qual ela se encontra.

Mas no estamos tratando dessa alterao, que bem conhe- cida dos cientistas desde longa data e pode ser, de um modo ou de outro, incorporada s leis. Tratamos aqui de outra caracterstica, de difcil acesso observacional: a extrapolao das leis fsicas para regies de caractersticas bastante distintas das que esto sob nos- so controle observacional. Desse modo, as prprias leis da fsica poderiam depender do espao e do tempo.H uma linha de investigao que pretende encontrar indcios dessa variao na observao de algumas propriedades especiais do Universo. No trataremos de tais propostas neste livro, pois isso nos obrigaria a examinar o que chamei de metacosmologia.*

M. Novello, Cosmos et contexte.

4 Uma pergunta malformulada

Depois da descrio do modelo cosmolgico de Friedmann, que nos permitiu explicar o significado rigoroso do que se costuma chamar big bang, podemos retomar a questo que nos formulamos no incio e repetimos aqui: pode a cincia produzir racionalidade se o Universo for singular? Pode-se construir uma histria causal do Universo se o big bang for identificado com o comeo de tudo? possvel desenvolver uma cincia do Universo se a hiptese de que houve um comeo singular nico para tudo que existe for verdadeira?Estes so os problemas que deveriam estar em foco, no centro de todas as atenes, mas que infelizmente foram deixados de lado. A resposta negativa a todas essas perguntas permite entender por que, no modelo de criao big bang, no possvel desenvolver racionalmente uma cincia completa do Universo. Isso se deve ao fato de que o modelo do tomo primordial exige a identificao de um ponto singular com o momento de criao do Universo: o volume total do espao tridimensional seria, naquele momento, naquele ponto, estritamente zero.Por conseguinte, quantidades fsicas, como densidade total de energia e matria, deixariam de ser observveis, pois assumiriam rigorosamente o valor infinito que no faz parte do resultado de medida alguma que se possa em princpio realizar. Desse modo, no poderamos jamais ter acesso a informao alguma sobre o que estaria na origem daquele momento, nem s suas proprieda- des internas nem reconhec-las como tais. O Universo teria

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uma origem que no poderia ser descrita racionalmente. Assim, o programa de descrio racional do mundo encontraria uma barreira intransponvel.Seria desejvel e mesmo mais, indispensvel empreen- der uma anlise detalhada das razes que levaram grande parte dos cientistas a limitar suas anlises do Universo ao interior de tal fronteira conceitual completamente fechada. No minha inteno, contudo, me ocupar aqui dessa questo.

Transformando a questo fundamentalda cosmologia em uma questo axiomtica

O Departamento de Astrofsica de Oxford vivia uma intensa ati- vidade nos anos 1970, graas principalmente aos esforos e organizao do professor Dennis Sciama. Ele havia adquirido posio de destaque no cenrio internacional por seus estudos sobre a teoria da gravitao, em particular pelas anlises afeitas no interior da relatividade geral, examinando diversos fenmenos tratados pela astrofsica.Entretanto, sua fama maior seria outorgada pela excelncia de seus alunos e colaboradores, um grupo seleto formado por cientistas extremamente competentes e inovadores que revolu- cionaram o estudo da astronomia no Ocidente, desenvolvendo enormemente a cosmologia e a astrofsica relativista. A lista deles, embora pequena, sem dvida notvel. A maior parte desconhecida do grande pblico, exceto por alguns poucos que, por diferentes razes, ganharam notoriedade internacional para alm do crculo de cientistas, como o matemtico Roger Penrose, o astrofsico Wolfgang Rindler e o fsico Stephen Hawking.Numa noite de janeiro de 1972 fui convidado pelo professor Dennis Sciama ento meu orientador para uma reunio no All Souls College. Essas reunies ocorriam sem periodicidade e

52Do big bang ao Universo eterno

Uma pergunta malformulada51

em geral dependiam de alguns detalhes referentes ao seminrio a que assistamos todas as quintas-feiras. Naquele dia, o semin- rio fora dado por Roger Penrose, e como nesse perodo ele morava fora de Oxford, havia decidido passar a noite no clube a que os professores tinham acesso no College.A reunio na verdade, nada mais que uma pequena e bas- tante frugal ceia, em que se servia um vinho quente de qualidade duvidosa tinha a funo explcita de propiciar a continuao dos debates gerados pelo seminrio. Todos ali pareciam concordar com a argumentao bastante elegante, concisa e matematica- mente bem-estruturada com a qual Roger sintetizara resultados a que cientistas deste grupo e de outros haviam chegado. A tnica, em particular, fora posta sobre os teoremas que matemticos, como Penrose e Geroch, e fsicos, como Hawking e Ellis, haviam demonstrado nos ltimos anos. Dennis argumentava, em tom de sntese, que os trabalhos do grupo haviam promovido duas grandes conquistas.Por um lado, haviam posto por terra a argumentao do grupo de fsicos associado ao mais brilhante cientista da Unio Sovitica Lev Landau , liderados pelo seu mais antigo e ntimo cola- borador, Evgeni Lifshitz. Este afirmara ter mostrado que a soluo mais geral das equaes que descrevem a gravitao (isto , a teoria da relatividade geral), e que representaria uma situao genrica, no poderia assumir valor infinito, ou seja, no deveria apresentar forma alguma de singularidade do campo gravitacional.Se a afirmao de Lifshitz fosse verdadeira, a soluo mais geral das equaes da teoria da relatividade geral deveria ser re- gular, bem-comportada, isto , no deveria conter regies onde o campo gravitacional pudesse assumir valores maiores que qual- quer nmero real. Como a intensidade do campo gravitacional, nessa teoria, identificada curvatura do espao-tempo, isso significava que a curvatura deveria ser limitada, seu valor no poderia jamais ser infinito.

Por conseguinte, o famoso ponto de singularidade, ou big bang, identificado com o valor zero do volume total do espao tridimensional que permitia associar ao Universo um momento nico de criao, no seria mais que uma particularidade depen- dente das simetrias, que, por circunstncia especial, o Universo poderia ter adquirido. No seria consequncia de uma necessidade formal inerente s equaes que descrevem o campo gravitacional. Seria uma curiosa possibilidade, no uma caracterstica genrica que deveria exibir qualquer Universo em que valessem as equaes da relatividade geral. O Universo poderia ter tido uma evoluo completamente distinta: suas propriedades seriam casuais, no seriam obrigatrias. O Universo o que por puro acaso, no por uma obrigatoriedade formal.Em ostensiva oposio a essa afirmao, segundo os teoremas de Penrose e outros, o ponto singular de criao no deveria ser atribudo a uma particularidade especial desse Universo, mas a uma propriedade genrica das equaes da relatividade geral. A singularidade, segundo eles, seria inevitvel.Por outro lado, continuava Sciama na exaltao a seus cola- boradores, haviam transformado a ideia vaga e especial da criao do Universo como processo nico e singular de onde toda matria e energia haviam se originado em um modelo mate- maticamente coerente, sustentado por uma verdadeira mquina de guerra formal, em que a teoria da relatividade geral atuava como seu principal instrumento.Essas ideias forneciam um grande apoio formal ao cenrio cosmolgico big bang, cuja base estava precisamente na geome- tria proposta pelo cientista russo Alexander Friedmann que, em 1919, encontrara uma soluo das equaes da relatividade geral representando o Universo como um processo em expanso a partir de uma singularidade.A crena geral que comeou a aparecer na cincia anglo- sax e se espraiou rapidamente por toda a comunidade cientfica

internacional era de que se havia conseguido axiomatizar aquela que certamente deveria ser considerada a mais formidvel das questes da cincia: a origem do Universo. Os argumentos con- tidos nos teoremas pareciam to convincentes que seus aspectos prticos, aquilo que qualquer pessoa sem maiores conhecimentos tcnicos especficos poderia inferir, a superficialidade de suas consequncias, se alastraram rapidamente, ganhando inmeros adeptos no interior da comunidade cientfica e um nmero maior de seguidores, mais fervorosos ainda, fora dela.Podemos concluir da que estavam preenchidas as condies para que o big bang fosse transformado em um mito moderno de criao de tudo que existe. E foi precisamente o que aconteceu: o big bang passou ento a ser entendido como a boa descrio do Universo ao longo de toda sua histria, a ser visto como uma ver- dade cientfica, absoluta e sem possibilidade de questionamento. Afirmava-se nos mais diferentes lugares de conferncias cien- tficas internacionais a programas de rdio e televiso , que o grupo que produzira os teoremas realizara na cosmologia tarefa semelhante que seus colegas britnicos Alfred North Whitehead e Bertrand Russel haviam produzido no comeo do sculo XX, ao elaborar o caminho que os conduziu a propor a reduo da matemtica lgica. Dizia-se que eles haviam conseguido trans- formar a questo cosmolgica em uma questo axiomtica no interior de uma dada teoria da gravitao.Graas ao sucesso dos teoremas da singularidade, as indaga- es que caberia cosmologia responder pareciam ter se reduzido a pequenos detalhes, pois sua origem, aquilo que estaria no co- meo de todo o processo de evoluo, j estava bem-estabelecido: a exploso inicial ou big bang!A eficcia desse mtodo de anlise foi tamanha que ainda mais de duas dcadas se tornaram necessrias para reduzi-los sua verdadeira dimenso: cenrios matemticos possveis no interior de uma dada teoria. Nada mais que isso. Uma leitura crtica dos teo-

remas mostrou que algumas das pr-condies necessrias para sua aplicao no esto presentes nas observaes efetuadas no Universo real. As hipteses de base, que sustentam suas concluses, no foram confirmadas pelas descries das propriedades do Universo que os cosmlogos tm elaborado a partir de observaes recentes. Em parti- cular, como j dissemos, a aceitao de que o Universo est acelerado elimina completamente uma das hipteses bsicas dos teoremas e serviu como grande estmulo ao status elevado que os modelos de Universo com bouncing com uma fase colapsante anterior fase atual de expanso mereceram recentemente. Essa situao colo- cou os teoremas de singularidade em sua verdadeira dimenso, isto , como nada mais que uma elegante estrutura matemtica que consequncia de uma teoria geomtrica da fora gravitacional.

Comentrios

Somente a ttulo de complementao para os leitores interessa- dos, acrescento aqui um dentre vrios exemplos de teoremas da singularidade demonstrados por Penrose, Hawking e outros. Eu o apresentarei no do modo como ele foi estabelecido original- mente e publicado,* mas com uma linguagem menos tcnica que todavia no altere a inteno do autor.

a) Teorema

As quatro sentenas abaixo no podem ser simultaneamente verdadeiras:

1. O Universo est em expanso.2. A energia e a presso so ambas positivas.

S. Hawking, The occurrence of singularities in Cosmology, p.187.

3. O caminho de um observador pode ser estendido arbitraria- mente para o passado.4. Existe um tempo csmico global.

H uma diferena grande entre as duas primeiras e as duas outras. As do primeiro grupo so afirmaes que podem ser de- cididas por observaes, experincias efetivamente realizadas; as outras duas constituem sentenas genricas que extrapolam propriedades locais conhecidas para regimes inatingveis e esto fora de nosso controle observacional. Vamos examinar um pouco melhor o que cada uma delas est querendo dizer.A primeira sentena trata da dinmica do Universo e sua condio de no constituir o sistema esttico proposto por Eins- tein. H vrias observaes envolvendo o desvio da frequncia da luz vinda das estrelas longnquas que permitem inferir que o Universo est em expanso e que o aumento do volume espacial um efeito global.A segunda afirmativa trata das propriedades fsicas que a mat- ria/energia responsvel pelo campo gravitacional csmico deveria satisfazer. Embora no seja aceitvel considerar que a densidade de energia negativa, os fsicos conhecem vrias situaes nas quais a presso do sistema pode assumir valores no positivos. Em particular, o prprio fluido csmico introduzido por Einstein por meio da constante cosmolgica possui essa propriedade.A terceira sentena quer dizer que um corpo material qual- quer, clssico (isto , no quntico), no pode ser aniquilado. Ele tem uma persistncia que precisamente o que permite lhe atribuir realidade e durao; ele no pode desaparecer do espao-tempo.Quanto quarta afirmativa, ela certamente a mais difcil de ser compreendida fora de seu contexto tcnico, e quase impossvel de ser posta sob julgamento observacional. De um modo simplista, a sentena traduz a certeza do bom senso de que no possvel

voltar ao passado. Eu me dediquei a examin-la em outro livro,* mas aqui farei alguns comentrios para que o leitor possa ter um pouco mais de informao sobre ela.

b) A deformao do tempo

Kurt Gdel, um dos maiores pensadores do sculo XX, revolucio- nou a lgica e produziu uma anlise to profunda sobre a questo do tempo na teoria da relatividade que, ainda hoje, passados mais de 50 anos de seu trabalho seminal sobre o Universo em rotao, continua intrigando os cientistas, incapazes de compreender totalmente o alcance de seus comentrios a esse respeito.Em 1950, Gdel foi convidado a participar de uma obra co- letiva intitulada Albert Einstein, Philosopher and Scientist, na qual cientistas de diversos pases reuniam-se para homenagear o criador da teoria da relatividade geral uma das descobertas mais imagi- nativas do sculo XX. Pareceu-lhe natural que a nica investigao digna de seu interesse e ao mesmo tempo de uma homenagem a seu grande amigo deveria envolver uma anlise da questo tempo- ral. Foi precisamente o que fez. Gdel realizou ento um trabalho de flego e empreendeu uma crtica to formidvel que, daquela poca aos dias atuais, desperta comentrios contraditrios, alm de suscitar questes que os fsicos no conseguiram resolver.Para entender a extenso da proposta de Gdel, devemos comear por entender o alcance da revoluo provocada pela teoria da relatividade restrita, na qual se substitua o tempo global nico que permeava a fsica clssica (newtoniana) por diferentes tempos, cada qual dependente daquele que descreve um dado fenmeno fsico. Essa mirade de tempos, um para cada

* M. Novello, Mquina do tempo.

observador, foi construda a partir da constatao de que existe na natureza uma velocidade mxima de propagao de qualquer tipo de informao: a velocidade da luz. Entendemos tambm de um s golpe por que no vivenciamos em nosso cotidiano esses diferentes tempos e usamos no dia a dia um tempo s, comum a todos ns, como se a verdade cientfica da diferenciao dos tem- pos e sua dependncia do estado de movimento de cada relgio no devesse ser aplicada em nossa realidade.Por que podemos proceder assim? Por que podemos ignorar, em nosso cotidiano, a dependncia dos relgios em relao s diferentes velocidades de observadores distintos? Pela razo que j comentamos: as velocidades que experimentamos em nosso coti- diano so extremamente pequenas comparadas velocidade da luz. Por conseguinte, extremamente pequena a diferena entre esses tempos medidos por observadores ns que se movimentam com velocidades convencionais e possveis sobre nosso planeta.

c) Dialeto newtoniano

Aqui me parece conveniente fazer uma pequena pausa para um comentrio genrico envolvendo a fsica do sculo XX. At o fim do sculo XIX, as verdades cientficas que a fsica exibia pareciam compreensveis para os no cientistas, o que no ocorreu com as explicaes contidas nas mais importantes teorias do sculo XX. Tanto a teoria da relatividade restrita ou geral quanto a teoria quntica cercaram-se de uma aura quase transcendental junto intelligentsia, pelas dificuldades de compreenso por parte daqueles que no dominam suas formulaes. Essa caracterstica tem a mesma origem: essas teorias tratam de situaes que no so facilmente observadas no cotidiano.A fsica newtoniana lidava com propriedades capazes de ser explicadas por consideraes do dia a dia, isto , envolviam

fenmenos que possuam baixas velocidades, pequenas presses, temperaturas no extremamente elevadas caractersticas asso- ciadas dimenso humana.Por outro lado, a nova fsica se erguia sobre experincias pro- duzidas, sofisticadas e de difcil acesso. Elas tratavam, por exem- plo, do que ocorre quando se atingem velocidades fantasticamente grandes, prximas da velocidade da luz 300 mil quilmetros por segundo; de corpos extremamente pequenos (da ordem de um tomo ou menores), ou de situaes envolvendo estruturas enormes como galxias, contendo centenas de bilhes de estrelas. Passava-se, assim, de estruturas que envolviam a dimenso humana para muito alm ou muito aqum dela.Costumo chamar essa situao de a questo do dialeto newto- niano, querendo com isso explicitar as fronteiras do que tratava a fsica clssica (at o incio do sculo XX) para a nova fsica, relativista e quntica, surgida nas primeiras dcadas do sculo passado. Nesse novo territrio de explicao, fenmenos que parecem impossveis de realizar no mundo efetivamente ocorrem. Por exemplo, como entender, de modo newtoniano, usando nossa experincia corprea, sentenas como: para ir de um ponto do espao a outro, no nvel quntico, no preciso passar por todos os pontos intermedirios; embora a cada momento eu caminhe para meu futuro, estou ipso facto me aproximando de meu passado.O leitor no acostumado com essas afirmaes da fsica do s- culo XX certamente ter dificuldade de faz-las entrar em seu sis- tema lgico, construdo com suas experincias prprias em seu cotidiano. Essa dificuldade ocorre porque tais propriedades no so comuns, no so acessveis em nosso dia a dia. Ao contrrio, so propriedades da matria em circunstncias muito especiais, a que s podemos ter acesso por meio de um embasamento formal sofisticado que no que se transformou a fsica moderna. E, no entanto, elas formam a teia que sustenta a racionalidade do mundo, e devemos entend-las como algo constitutivo da reali- dade que a cincia revela.

d) Voltar ao passado

Todos ns, alguma vez em nossa vida, j nos deparamos quer por curiosidade, quer at por simples jogo ou brincadeira com a interrogao por que no podemos viajar ao passado?. Se fizermos essa pergunta a nossos amigos ou vizinhos, depois de passado o momento dos comentrios bem-humorados que a pergunta evoca, todos reconheceremos no saber a resposta.A cincia, que, at o advento da relatividade geral, tratara des- se problema apenas por seu lado formal, lgico, gerando aporias, s conseguiu se manifestar abertamente com Gdel.O pensador austraco, de modo inesperado e contundente, ensinou que essa impossibilidade de visita ao passado se explica porque o campo gravitacional nas vizinhanas da Terra fraco! Na verdade, Gdel mostrou, usando para isso a teoria da relatividade geral de Einstein, que se podem encontrar situaes normais, isto, que no violam qualquer lei fsica convencional, nas quais possvel existir caminhos que levem ao passado. Dito de outro modo, caminhos que, contrariamente nossa intuio e nossa certeza newtoniana cotidiana, possuem a inesperada propriedade de, ao se avanar para o futuro, no se estaria automaticamente se afastandodo passado. Assim, ao caminhar

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Uma pergunta malformulada61

Trajetria de um corpomaterial qualquerO cone representa a propagao da luz. Como a matria se movimenta com velocidade inferior da luz, a trajetria do corpo deve passar por dentro deste cone hipottico.

a cada momento para o futuro local, acabaremos por nos apro- ximar de nosso passado.Gdel demonstrou que a ideia temporal com que nor-

teamos nossas relaes cotidianas no mundo no pode ser gene- ralizada para todo o Universo. Haveria a possibilidade de que, em algum lugar no cosmo, o campo gravitacional tornasse possvel a existncia desses ca- minhos. A anlise de Gdel se baseia na teoria da gravitao de Einstein, que transformou aquilo que entendamos como fora newtoniana gravitacional em uma estrutura universal capaz de alterar as propriedades do espao e do tempo. Como, segundo Eins- tein, podemos atribuir a estrutura da geometria do espao-tempo ao contedo energtico-material nele existente, a prpria estrutura causal pois disso que estamos

Violao da causalidade global no Universo de Gdel Embora em cada ponto o corpo material viaje dentro do cone de luz (causalidade local), como sua trajetria (no espao-tem- po) fechada, o viajante anda sempre para o futuro, mas se aproxima de seu passado.

falando est subordinada fora gravitacional.Ao ser consultado sobre o que pensara do trabalho de Gdel, Einstein teria dito No gostei. Isso compreensvel, pois Gdel co- locara em xeque a coerncia causal da relatividade geral, bem como a moderna viso da cosmologia relativista, que se baseia funda- mentalmente na possibilidade da existncia de um tempo global, absoluto, csmico. A quase totalidade dos cientistas seguiu Einstein naquele comentrio de carter no cientfico, somente opinativo. A crtica profunda que Gdel produziu sobre a questo temporal comea aos poucos a despertar os fsicos de seu aca- lanto newtoniano. Estamos sendo levados, inexoravelmente, a examinar, no cenrio cosmolgico, a questo fundamental que ele apresentou: podemos estabelecer um tempo nico global para

nosso Universo? Os cosmlogos fazem da afirmativa a esta questo um dos pilares do modelo-padro aceito pelos cientistas.Mas possvel que, isolado ou no, Gdel, afinal tenha ra- zo: um caminho ao passado no deve ser entendido como uma impossibilidade sustentada por paradoxos lgicos. Sua existncia depende das propriedades fsicas globais de nosso cosmo e est contida no modo de descrio do Universo que decidimos fazer. Essa questo exige que aprendamos como conciliar os possveis caminhos ao passado com as convencionais afirmaes causais que a cincia faz.A cosmologia, que tem como tarefa a refundao da fsica, no pode deixar de lado a questo colocada por Gdel. Alguns cientistas, liderados pelo fsico ingls Stephen Hawking, produzi- ram um princpio de proteo causal pelo qual, sem qualquer argumentao formal de sustentao, arrogantemente estipulam que, como as curvas ao passado de Gdel no existem em nossa vizinhana, elas tambm no existem no Universo. Esta soluo lembra a adotada pela Rainha Vermelha em Alice no Pas das Maravilhas; quando confrontada com uma questo difcil e cuja soluo no lhe parecia acessvel, ela declarava: Vamos mudar de assunto. Para Gdel a existncia ou no de caminhos ao passado a questo principal da cincia, se ela quer produzir um discurso aberto sobre o tempo referente a todo o Universo. E ela no pode ser decidida por um apriorismo.Assim, decidiu-se por aceitar que, na descrio do Universo, podemos usar por conveno um tempo gaussiano, global. O matemtico alemo Carl Friedrich Gauss mostrou que localmente se pode organizar uma descrio das localizaes no espao e no tempo o que chamamos de sistema de coordenadas tal que, em uma dada regio do espao-tempo, possvel definir um tempo nico, comum para um conjunto de observadores. Trata-se de uma simples escolha particular de descrio e que no implica considerao alguma sobre as caractersticas do mundo.

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Assim como o mapa no o territrio, um sistema de co- ordenadas no passa de uma conveno que nos permite fazer referncia a acontecimentos que ocorrem em um dado lugar em certo tempo. Os valores numricos a que nos referimos para carac- terizar espacial e temporalmente um evento, qualquer ocorrncia, nada mais so que convenes feitas para que, de modo eficiente e prtico, diferentes observadores possam trocar informaes a respeito do mundo fsico.Desde o maravilhoso modo pelo qual Friedmann havia ela- borado um modelo cosmolgico dinmico, pareceu a todos que essa caracterizao por meio de um tempo nico global gaussiano introduzido pelos pais fundadores da cosmologia moderna, aproximando o mximo possvel a descrio contempornea do Universo ao modo newtoniano clssico era perfeitamente na- tural, matematicamente justificvel para se construrem modelos de Universo, solues exatas das equaes da relatividade geral. Gdel rompeu com essa tradio argumentando que campos gravitacionais possuindo como fonte da curvatura do espao- tempo fluidos materiais dotados de rotao, essa caracterizao gaussiana deveria ser revista. E, ao exibir seu modelo cosmolgico, comprovou formalmente que tinha razo, embora sua soluono seja um bom modelo para o Universo.

e) Sobre Gdel

Gdel era fascinado pela rotao. Recentemente, em uma visita ao Instituto de Cosmologia e Astrofsica de Pescara, beira do Adritico, um fsico italiano que vivera em Princeton poca de Gdel confidenciou-me que, anos depois da descoberta do famoso Universo em rotao, foi procur-lo em seu gabinete de trabalho no prestigioso Institute for Advanced Studies. Teve ento a curiosidade de aproveitar aquele momento nico que

Gdel lhe concedera um dilogo com uma figura to isolada e fechada sobre si constitui certamente um evento raro a fim de lhe perguntar de onde teria ele tirado a inspirao para pensar aquele Universo girante com caractersticas to excepcionais, to diferente de tudo que at ento (e mesmo depois!) os cosmlogos haviam produzido. Gdel, sem um momento de hesitao, teria lhe mostrado a janela (na verdade, uma pequenssima fresta de janela por onde, naquele entardecer, os ltimos raios do Sol conseguiam a duras penas atingir o escuro interior de sua sala de trabalho) e, apontando para o ptio, lhe perguntou: Voc pode me mostrar a fora algo que no esteja girando? semelhana de certos artistas, como o pintor Van Gogh, que parecem ver o mundo como um processo mgico, em que cada ponto de observao, cada evento cotidiano, cada processo de reflexo de luz se deixa descrever como uma fonte de energia que irradiada permanente e continuamente minsculas reprodues de inumerveis estrelas como o Sol , Gdel via a natureza como sequncia maravilhosa de processos em permanen- te movimento, que no permanecem em linha reta, exibindo-lhe o que ele descrevia como ininterrupta rotao.Possivelmente a genialidade dele estava menos em pensar situaes inesperadas e pouco comuns, e mais em deixar-se levar pela exuberncia implcita ou explcita que cada acontecimento, cada mnimo movimento que chega at ns possui; e em usar essa percepo para elaborar uma representao da realidade. Mesmo que, primeira vista, ela parecesse afastada de qualquer evidncia direta ou indireta de observao, parecendo no obedecer s leis convencionais da fsica. Por mais estranha, inusitada e esdrxula que pudesse parecer aos outros cientistas e no cientistas, essa representao do mundo, esses momentos ininterruptos de cria- o, lhe permitia produzir um cenrio incomum do Universo. Embora o cenrio parea ter seu ponto fundamental de apoio em fantasias formais, na verdade ele reside em cnones reconhe-

cidos que a cincia no consegue mostrar serem inaplicveis ao nosso Universo.O modelo cosmolgico de Gdel no parece se adequar ao Universo observvel. Entretan