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Associação de Linguística Aplicada do Brasil | Anais Eletrônicos do 10º Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada 1 Do desenho infantil às narrativas orais: estilo e subjetividade no processo de produção textual na alfabetização. Wellington Barbosa Silva (UFAL) 1 Resumo: Considerando o processo de produção textual como um momento particular do processo de aquisição da linguagem, acredita-se que a criança ao entrar em contato com as diferentes formas de representação escrita da língua que fala, caminha rumo à reconstrução de sua história individual e da relação que se estabelece com a linguagem, chegando, inclusive, a manipular conscientemente essa linguagem, de um modo diferente daquele como manipula a fala. Neste novo modo de produção de linguagem, pode-se dizer que a criança faz uso de uma forma particular da escrita, produzindo interpretações, textos próprios e inscrevendo-se em uma discursividade, marcada por um tipo de abstração que determina uma forma própria de racionalidade e de individualização em suas produções escritas. Dessa forma, o presente trabalho pretende analisar o papel do desenho infantil e das narrativas orais no processo de produção textual de diferentes sujeitos buscando observar marcas de seu trabalho individual com a língua que possam ser tomadas como indícios de um estilo em construção na manifestação de seu querer discursivo. Para isso, procuro articular alguns conceitos da Psicologia (LOWENFELD e BRITTAIN, LUQUET, MÈREDIEU, PIAGET, etc.), da teoria enunciativo-discursiva (BAKHTIN), da teoria de aprendizagem sociointeracionista (VYGOTSKY) e de autores que trabalham com a narrativa oral (BRUNER, FRÉDÉRIC FRANÇOIS, MARLEAU-PONTY, etc.). A metodologia utilizada é a da pesquisa qualitativa de cunho etnográfico e da pesquisa ação. Apresenta, ainda, uma abordagem multidisciplinar amparada nas possibilidades de se trabalhar dentro da pesquisa interpretativa (MOITA LOPES, 2002). Palavras-chave: desenho infantil, narrativas orais, alfabetização, estilo. Abstract: Considering the process of textual production as a particular moment in the process of language acquisition, it is believed the child to get in touch with the different forms of written representation of language speaks, walks toward rebuilding its individual history and the relationship that is established with the language, reaching even consciously manipulate this language in a manner different from that to 1 [email protected]

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Do desenho infantil às narrativas orais: estilo e subjetividade

no processo de produção textual na alfabetização.

Wellington Barbosa Silva (UFAL)1

Resumo: Considerando o processo de produção textual como um momento

particular do processo de aquisição da linguagem, acredita-se que a criança ao

entrar em contato com as diferentes formas de representação escrita da língua que

fala, caminha rumo à reconstrução de sua história individual e da relação que se

estabelece com a linguagem, chegando, inclusive, a manipular conscientemente

essa linguagem, de um modo diferente daquele como manipula a fala. Neste novo

modo de produção de linguagem, pode-se dizer que a criança faz uso de uma forma

particular da escrita, produzindo interpretações, textos próprios e inscrevendo-se em

uma discursividade, marcada por um tipo de abstração que determina uma forma

própria de racionalidade e de individualização em suas produções escritas. Dessa

forma, o presente trabalho pretende analisar o papel do desenho infantil e das

narrativas orais no processo de produção textual de diferentes sujeitos buscando

observar marcas de seu trabalho individual com a língua que possam ser tomadas

como indícios de um estilo em construção na manifestação de seu querer discursivo.

Para isso, procuro articular alguns conceitos da Psicologia (LOWENFELD e

BRITTAIN, LUQUET, MÈREDIEU, PIAGET, etc.), da teoria enunciativo-discursiva

(BAKHTIN), da teoria de aprendizagem sociointeracionista (VYGOTSKY) e de

autores que trabalham com a narrativa oral (BRUNER, FRÉDÉRIC FRANÇOIS,

MARLEAU-PONTY, etc.). A metodologia utilizada é a da pesquisa qualitativa de

cunho etnográfico e da pesquisa ação. Apresenta, ainda, uma abordagem

multidisciplinar amparada nas possibilidades de se trabalhar dentro da pesquisa

interpretativa (MOITA LOPES, 2002).

Palavras-chave: desenho infantil, narrativas orais, alfabetização, estilo.

Abstract: Considering the process of textual production as a particular moment in the

process of language acquisition, it is believed the child to get in touch with the

different forms of written representation of language speaks, walks toward rebuilding

its individual history and the relationship that is established with the language,

reaching even consciously manipulate this language in a manner different from that to

1 [email protected]

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manipulate speech. In this new mode of language production, it can be said that the

child makes use of a particular form of writing, producing interpretations, texts

themselves and enrolling in a discourse marked by a kind of abstraction that

determines its own form of rationality and individualization in their written productions.

Thus, this study aims to examine the role of children's drawing and oral narratives in

the process of textual production of different brands observe individuals seeking their

individual work with the language that can be taken as evidence of a style in

construction in the manifestation of his discursive want. For this, I try to articulate

some concepts of Psychology (LOWENFELD and BRITTAIN, LUQUET, MÈREDIEU,

PIAGET, etc. ), the theory of enunciation - discursive ( BAKHTIN), the interactionist

learning theory ( VYGOTSKY ) and authors working with the narrative oral (

BRUNER, FRÉDÉRIC FRANÇOIS, MARLEAU - PONT, etc.). The methodology used

is the qualitative ethnographic and action research. It also presents a multidisciplinary

approach supported the possibilities of working within the interpretive research (

MOITA LOPES , 1996).

Keywords: Child drawing, oral narratives, literacy, style.

1. Introdução

O estudo do desenho infantil começou no final do século XIX e de acordo com

Mèredieu (1995) estava relacionado aos trabalhos iniciais da psicologia experimental, que

posteriormente, proporcionaram novas reflexões nos campos da pedagogia, da sociologia e

da estética. A princípio, houve o descobrimento da originalidade da infância, que guiado

pelas influências das ideias de Rousseau i , levaram a “distinguir diferentes etapas no

desenvolvimento gráfico da criança” (MÈREDIEU, 1995, p.2). Além disso, segundo a mesma

autora, essas ideias correspondem, também, ao período em que as crianças passaram a ter

acesso a papel e lápis, materiais que até então eram muito caros e, consequentemente,

muito restritos (MÈREDIEU, 1995).

Paralelamente, as concepções hegemônicas sobre a infância e o trabalho criativo

das crianças modificaram-se progressivamente, principalmente com os trabalhos de

psicólogos sobre a mentalidade infantil, o que possibilitou reconhecer que [...] “a criança não

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é mais aquela maquete do adulto, aquele adulto miniaturizado que queriam ver nela”. (Idem.

p. 03). Assim, a maneira de perceber o desenho infantil evoluiu e o que antes era apenas

considerado em relação à arte adulta, passou a ceder lugar a uma decifração das produções

no que elas podiam apresentar de mais autêntico e original.

Para muitos pesquisadores, o desenho infantil apresentava-se como uma forma de

revelar o desenvolvimento cognitivo, emocional e expressivo da criança, reconhecendo que a

história do desenvolvimento humano passava por fases/períodos evolutivos. A partir daí, o

desenvolvimento gráfico infantil passou a ser considerado objeto de estudo e ganhou

diferentes abordagens, visto o interesse de diferentes profissionais na época, tais como:

psicólogos, sociólogos, psiquiatras, educadores, psicanalistas e outros especialistas. Entre

eles podemos nos referir, por exemplo, a Georges Henri Luquet (1969), Viktor Lowenfeld e

Brittain (1977), Florence de Mèredieu (1995), Vygotsky (1991, 2005, 2009), Analice Pillar

(1996), Merleau-Ponty (1990, 2012), dentre outros.

Esses autores privilegiaram um ou outro aspecto do trabalho infantil, como o

cognitivo, afetivo, motor, gráfico e estético. Entretanto, o pano de fundo de suas análises

estava sempre vinculado a uma visão maturacionista do desenho, concebido enquanto

produção basicamente individual e desligada do contexto sociocultural no qual as crianças

encontravam-se inseridas.

Nesses estudos, alguns pontos do desenvolvimento do desenho infantil foram

tratados de modo bastante semelhante e não se têm evidenciado trabalhos de pesquisa que

apresentem uma análise linguístico-discursiva sobre a presença deste elemento nas

produções escritas das crianças em processo de aquisição da língua escrita.

2. Diferentes acepções sobre o Desenho Infantil.

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O antropólogo e pesquisador do desenho infantil Georges Henri Luquet (1969) foi

um dos primeiros estudiosos a se dedicar ao estudo do desenho da criança, principalmente

no que se refere a sua evolução cognitiva. Ele inicia seus estudos utilizando-se de dados

coletados da observação de sua filha durante um período de aproximadamente cinco anos.

Nesse período, o pesquisador colheu e enumerou cerca de quinhentos desenhos, tendo o

cuidado de anotar informações sobre as circunstâncias de produção, as ações e os

comentários que a menina fazia no processo de criação.

A partir desses dados, Luquet procurou entender como a criança desenha,

buscando definir um processo progressivo e evolutivo do ato criador para elaborar um

sistema gráfico produzido pela criança. Ele distinguiu, a partir de suas observações, quatro

estágios de desenvolvimento do desenho infantil, onde julgava haver, nos desenhos das

crianças, uma busca de representação da realidade. Em sua concepção, Luquet acreditava

que o desenho da criança não mantinha as mesmas características do início ao fim, o que

para o pesquisador necessitava organizar um sistema de distinção das etapas pelas quais as

crianças passavam em seu processo de criação, já que do início ao fim o desenho infantil era

essencialmente realista e cada uma das fases necessitava ser caracterizada por uma

espécie determinada de realismoii (LUQUET, 1969).

Para o autor, o termo realismo passa a ser utilizado para justificar que o desenho

infantil é realista, pois a criança, ao desenhar, tem a intenção de representar fielmente um

objeto, como ela o vê. Desta forma, a criança revela em suas representações gráficas muitos

detalhes e características minuciosas do objeto visualizado por ela, os quais muitas vezes

não são percebidos aos olhos de um adulto.

Dentro desta concepção, Pillar (1996) afirma que o desenho infantil é a reprodução

de um modelo interno que a criança possui do objeto. Ao utilizar a expressão “modelo

interno”, a autora busca fazer referência à realidade psíquica que existe no pensamento da

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criança, o que, por sua vez, dá origem ao ato criador, pois o ser humano possui uma

representação mental do objeto e uma maneira de representá-lo através de desenhos.

Do mesmo modo que Georges Henri Luquet, os pesquisadores Viktor Lowenfeld

(1976) e Viktor Lowenfeld e Brittain (1977), também estabeleceram diferentes concepções

teóricas sobre os estágios evolutivos do desenvolvimento gráfico infantil. Para esses autores,

os estágios de evolução do desenho infantil é uma forma de entender o “[...] desenvolvimento

intelectual e emocional das crianças, pois conforme as crianças se relacionam mais

estreitamente com o mundo ao seu redor, vão evoluindo os seus desenhos” (FERREIRA,

2003, p. 21). Assim, baseando-se na interação social e no desenvolvimento integral da

criança, esses estudiosos desenvolveram quatro estágios evolutivos do desenho na criança,

são eles: o estágio da garatuja, o estágio pré-esquemático, o estágio esquemático e o

estágio do realismo nascente.

O primeiro estágio proposto pelos autores Viktor Lowenfeld e Brittain, o estágio das

garatujas, dura aproximadamente dos dois aos quatro anos de idade. Nesta fase, a criança

começa a construir os seus primeiros rabiscos espontâneos e os traços desordenados.

Segundo os autores, esses traços vão se transformando, aos poucos, em garatujas mais

organizadas e controladas pela coordenação motora da criança. Entende-se que neste

período a criança faz garatuja pelo prazer de elaborar os seus gestos e movimentos, pois

ainda não tem a intenção de realizar as suas representações gráficas.

Logo após o estágio das garatujas, surge o estágio pré-esquemático, que se inicia

aos quatro anos e dura até aos sete anos de idade. Este é um período muito importante para

o desenvolvimento da criança. Agora, ela passa a criar conscientemente modelos que

apresentam alguma relação com o mundo que a rodeia. Todo o seu trabalho de formas

passa a adquirir significado e revela o início da compreensão gráfica. O que antes era

envolvida numa atividade cinestésica, “nesta nova etapa, está empenhada no

estabelecimento de uma nova relação com o que pretende representar”. (LOVEMFELD;

BRITTAIN, 1977, p. 147)

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O próximo estágio, denominado esquemático, começa aos sete anos e estende-se

até os nove anos de idade. Durante este estágio, a criança “desenvolve o conceito definido

da forma. Seus desenhos simbolizam parte do seu meio, de um modo descritivo;

habitualmente, ela repete uma e outra vez o esquema que criou para representar um

homem” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p.55) enquanto nenhuma experiência intencional a

influenciar para que o mude. A expressão esquema citada pelos autores refere-se às

diferentes formas utilizadas pela criança para desenhar uma figura.

O último estágio proposto pelos autores, o realismo nascente, começa aos nove

anos e dura até doze anos. Os desenhos das crianças “são mais detalhados do que suas

obras anteriores, e já não coloca os objetos em filas ordenadas, em toda a largura do fundo

do papel” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p.56). Assim, a criança “(...) passa a se interessar

agora muito mais pelas minúcias e deixa de fazer os desenhos grandes e livres que eram

seus prediletos de anos anteriores” (Ibidem). Com base na explanação dos autores,

podemos observar que o desenho infantil sofreu algumas modificações. Neste último estágio,

ele apresenta mais detalhes, pois a criança agora começa a ter maior consciência do mundo

à sua volta, já que o compreende e o interpreta ao seu modo.

Já para Piaget (1969, 1978,) o surgimento do desenho infantil compartilha o

processo de desenvolvimento humano, passando por etapas que caracterizam a maneira da

criança se situar no mundo, conforme discutido anteriormente. Segundo Piaget, a forma de

uma criança conhecer o objeto passa por significativas transformações em sua evolução, no

processo de adaptação ao meio que se dá por sucessivos movimentos de equilibração.

Inicialmente, predomina a ação nas relações com o objeto, visto como o período

sensório-motor que se estende até os dezoito meses aproximadamente. Posteriormente, a

ação é substituída pela representação. Nessa etapa, pré-operacional ou simbólica, a criança

ainda não opera mentalmente sobre os objetos, o que ela só conseguirá fazer a partir de

aproximadamente sete anos. O período simbólico se caracteriza pelo desenvolvimento da

capacidade de representação, em suas diferentes manifestações - a imitação, o brinquedo a

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imagem mental, o desenho e a linguagem verbal. Essa capacidade é fundamental para a

continuidade do processo de desenvolvimento: torna possível, no período operatório, a

transformação exclusivamente mental do objeto.

Influenciado pelo principio do materialismo dialético, Vygotsky (1991) considerou o

desenvolvimento humano como um processo de apropriação, pelo homem, da experiência

histórica e cultural. Para este autor, organismo e meio exercem influência recíproca na

constituição do sujeito, uma vez que o biológico e o social não se apresentam dissociados.

Nesta visão, o sujeito se constitui como tal através de suas interações sociais, ao tempo em

que passa a ser visto como alguém que transforma e é transformado nas relações

produzidas em uma determinada cultura.

Segundo Vygotsky (2005), o homem se produz na e pela linguagem, e é na

interação com outros sujeitos que formas de pensar são construídas por meio da apropriação

do saber da comunidade na qual está inserido o sujeito. Esta relação entre sujeito e mundo é

sempre uma relação mediada, na qual, entre eles existem elementos que auxiliam a

atividade humana. Estes elementos de mediação são os signos e os instrumentos. Nisso, o

trabalho humano, que une a natureza ao homem e cria, então, a cultura e a história do

homem, desenvolve necessariamente a atividade coletiva e as relações sociais, a partir da

criação e da utilização de diferentes instrumentos sociais.

Esta atividade da qual Vygotsky (1991) fala é mais do que um simples reflexo ou

resposta a um estimulo externo. Para ele, a atividade implica o processo de transformação

do mundo e do comportamento humano por meio da própria relação homem-mundo que se

realiza na e pela atividade de trabalho. Segundo ele, esta atividade se diferencia da dos

outros animais por seu caráter mediatizado, ou seja, pela capacidade de utilizar-se de

instrumentos psicológicos (sistema de signos linguísticos) e instrumentos materiais (pás,

foice, martelo, etc.) no processo de desenvolvimento do ser humano.

Em Vygotsky (Idem), ao contrário de Piaget, o desenvolvimento, principalmente o

psicológico ou mental (que é promovido pela convivência social, pelo processo de

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socialização, além das maturações orgânicas), depende da aprendizagem na medida em que

se dá por processos de internalização iii de conceitos, que são promovidos pela

aprendizagem social, principalmente aquela planejada no meio escolar, Ou seja, para

Vygotsky, não é suficiente ter todo o aparato biológico da espécie para realizar uma tarefa se

o indivíduo não participa de ambientes e práticas específicas que propiciem a aprendizagem.

Não podemos pensar que a criança vai se desenvolver com o tempo, pois esta não tem, por

si só, instrumentos para percorrer sozinha o caminho do desenvolvimento, que dependerá

das suas aprendizagens mediante as experiências a que foi exposta.

Vygotsky (1991, 2009) considera que, da mesma forma que a linguagem, o desenho

também é uma forma de representação, um signo. Ele vai buscar a gênese do sistema

simbólico no gesto, no brinquedo, no desenho, considerados como os precursores do

processo de desenvolvimento da linguagem escrita. Para o autor,

O desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem

verbal. Nesse sentido, os esquemas que caracterizam os primeiros

desenhos infantis lembram conceitos verbais que comunicam somente os

aspectos essenciais dos objetos. Esses fatos nos fornecem os elementos

para passarmos a interpretar o desenho das crianças como um estágio

preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita. (VYGOTSKY, 1991,

p.127)

O desenho é compreendido por Vygotsky (1991) como um estágio preliminar do

desenvolvimento da escrita, tendo ambos as mesmas origens de construção: a linguagem

falada. Enquanto a escrita não oferece segurança para refletir o pensamento desejado, a

criança emprega o desenho como meio mais eficiente para exprimir seu pensamento. Então

em cada período do desenvolvimento infantil, a imaginaçãoiv atuará de uma maneira tal que

respeite a escala de seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 2009).

Em Merleau-Ponty (1990, 2012) o desenho da criança é a primeira maneira de

estruturar as coisas, isto é, através do ato de desenhar que a criança narra sua percepção

das coisas no e com o mundo. Aqui vale pensar a imaginação da criança como ato de

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investigar e se mostrar diante do mundo pelo desenho. Quando está desenhando a mão se

encarrega de trazer para o real o corpo em seu estado operativo, afirmando seu estado de

linguagem. Para o autor, a linguagem assemelha-se às coisas e às ideias que ela passa a

exprimir, “é o substituto do ser, e não se concebem coisas ou ideias que venham ao mundo

sem palavras. Seja mítico ou inteligível, há um lugar em que tudo o que é ou que será

prepara-se ao mesmo tempo para ser dito”. (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 33). Da mesma

forma,

[...] a linguagem nunca diz nada, ela inventa uma gama de gestos que

apresentam entre si diferenças suficientemente claras para que a conduta da

linguagem, à medida que se repete, se recorta e se confirma ela própria, nos

forneça de maneira irrecusável a feição e os contornos de um universo de

sentido. (Idem, p. 70-71) (grifos do autor)

A linguagem, vista por este ângulo, nos encaminha a perceber o que ela tende a

significar, aos sentidos que estão além das palavras ditas ou escritas, ao pensamento do

autor, enfim, ao movimento de interação e de troca de experiências culturais entre sujeitos

que se unem e se distanciam através da línguav que falam. A língua seria para este autor,

um aparelho extraordinário que permitiria aos sujeitos exprimir uma quantidade “indefinida de

pensamentos ou de coisas com um número finito de signos, escolhidos de maneira a compor

exatamente tudo o que se pode querer dizer de novo e a comunicar-lhe a evidencia das

primeiras designações das coisas” (Idem, p. 30). Além disso, todo o processo de constituição

e compreensão da linguagem se dá na relação entre um eu e um outrem localizados

socialmente.

Essas discussões permitem-nos apontar que a criança atribui significados aos seus

desenhos, relacionando conhecimentos, experiências, situações imaginárias e emoção, o

que supõe a interação de aspectos do contexto social com os aspectos constitutivos do

universo particular das crianças. E assim, a “leitura” que os sujeitos fazem de suas próprias

produções podem determinar o vínculo que as crianças estabelecem com as diferentes

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linguagens com as quais têm acesso na escola e que são, por vezes, apresentadas,

contadas e discutidas durante as atividades em sala de aula.

3. Do desenho infantil às narrativas orais: a criança tecendo seus discursos.

Como sujeito social, pode-se dizer que a criança significa o mundo, dialogando com

os elementos da cultura, apropriando-os a partir de uma lógica diferenciada (a lógica infantil).

Tal cultura historicamente elaborada é formada a partir de um repertório de produções

culturais – jogos, brincadeiras, músicas, histórias que expressam a especificidade do olhar

infantil, olhar este construído ativamente através do processo histórico de interação

sociocultural. Segundo Bruner (2001, p. 17) a cultura é sempre produzida pelo homem, ao

mesmo tempo em que “forma e possibilita o funcionamento de uma mente distintamente

humana. Nesta visão, a aprendizagem e o pensamento estão sempre situados num contexto

cultural e dependem de recursos culturais” para serem constituídos.

Por isso, a criança deve ser reconhecida como um sujeito que interpreta o mundo a

partir de relações sociais de cada sujeito construídas dentro e a partir do contexto cultural.

Este contexto, por sua vez, estrutura-se por meio de representações simbólicas, que vão ser,

ao mesmo tempo, alimento e produto do pensamento. A representação seria responsável por

dar forma às experiências significativamente humanas; representação que vai tornar

novamente presente vivências que, por sua importância, mereçam ser permanentemente

lembradas.

O Psicólogo Bruner (1986) também destaca o papel da linguagem no

desenvolvimento humano, colocando-a como uma ferramenta essencial no processamento

do mundo, no planejamento e na ação humana, assim como na “modernização” da mente

através da história e da cultura. Este autor concorda com “[...] a visão de que o homem

estava sujeito ao jogo dialético entre a natureza e a história, entre suas qualidades como

criatura da biologia e como um produto da cultura humana” (p. 76).

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Na visão do autor, não se pode compreender o ser humano e sua ação sem

conhecer tanto a cultura como a biologia, e não podemos entender a ação humana sem

considerar o seu caráter situacional. A cultura, então, não pode ser vista simplesmente como

algo acrescentado à mente natural, pois aquela é constitutiva desta. A cultura cria uma rede

de expectativas mútuas entre os humanos, uma espécie de sintonia que não é vista em

nenhuma outra espécie.

Com esta postura, Bruner acredita que a capacidade tipicamente humana de contar

o que se viveu e os meios de conceitualizar que acompanham o ser humano tornam-se tão

habituais que passam a organizar formas de estruturação da experiência coletiva. Essas

formas narrativas, segundo o autor, possibilitam a organização de um contexto adequado

para o relato de vivências pessoais. Elas determinam quais aspectos da experiência vivida

serão expressos, e como, tornando a atribuição de significados possível.

Para François (2009) a narrativa também é discurso no sentido que os efeitos da

verbalização de um locutor encontram a interpretação favorável de um receptor. O autor

afirma que todo locutor precisa administrar diferentes aspectos como a linguagem, a língua,

as relações com sua própria fala e as relações intersubjetivas. Sob esta perspectiva, no que

se refere à produção textual, ele nos alerta para duas questões importantes: o privilégio ao

que “deve ser dito” (normativo) em detrimento do que “pode ser dito” (confirmado), assim

como o julgamento sobre o que torna uma história digna de ser contada.

Segundo François (Idem), o mais importante na narrativa é a possibilidade da

interação entre aquele que narra e aquele que a recebe; um encontro que acontece no

momento em que o ponto de vista do narrador incide sobre o receptor, o mobiliza ou o

surpreende. A narrativa se efetiva quando possibilita uma construção conjunta, ou seja,

quando os sujeitos partilham do prazer de vivenciar algo novo, inusitado.

Assim, a inserção da criança no campo da linguagem é, “no sentido forte do termo,

‘dialógica’, ou seja, é na e pelas trocas verbais e, entre outros, pelo viés da fala do outro,

como linguagem, que lhe é dirigida, que se realiza a apropriação linguageira”. (Idem, p. 26).

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Portanto, a criança, pelo uso do jogo e da criatividade, é capaz de brincar também com as

palavras, com a liberdade de dizer “o que lhes vem à cabeça”, fazendo com que o esquisito e

o inesperado revelem novas potencialidades do sistema e da riqueza humana, partilhando o

particular de cada um. “Além disso, ao mesmo tempo, o fato de dizer “cada um” já nos mostra

que essa particularidade é particularidade de todos os homens, que estão todos nessa

situação de partilhar alguma coisa com os outros, mas não sabemos exatamente o quê”

(FRANÇOIS, 2009, p.197).

4. Gêneros discursivos e estilo como marcas da atividade singular do sujeito.

Os trabalhos elaborados, atualmente, no campo dos estudos da linguagem sobre as

marcas de individualidade dos sujeitos e, consequentemente, a construção de seu estilo nas

produções textuais vêm apresentando importantes resultados sobre a temática e

incorporando significativas reflexões sobre questões que estão intrinsecamente relacionadas

a este objeto.

As discussões contemporâneas sobre o estilo não deixam de levar em consideração

as contribuições de Mikhail Bakhtin ([1929] 2002, [1953, 1953] 2006) e seu chamado Círculo,

cujas ideias têm tido atualmente grande influência sobre estudiosos de diferentes áreas das

ciências humanas e sociais e provocando rupturas epistemológicas sobre a linguagem

humana.

Para Bakhtin ([1952, 1953] 2006), essa capacidade de trabalhar com a linguagem

vai além da frase ou da oração e se estende na direção do que ele chama de "tipos

relativamente estáveis de enunciados", "o todo discursivo", isto é, os gêneros do discurso, os

quais os falantes são produtores desde o início de suas atividades de linguagem. Portanto,

os gêneros do discurso são diferentes formas de uso da linguagem que variam de acordo

com as diferentes situações interativas e representam o resultado do trabalho realizado pelos

sujeitos em diversos processos de troca verbal.

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Como produto de trocas sociais, o gênero discursivo está ligado a uma situação de

comunicação concreta e também a um contexto mais amplo que constitui o conjunto das

condições de vida de uma determinada comunidade linguística. Como os atos sociais

vivenciados pelos grupos são diversos, consequentemente a produção dos discursos

também o será. Para Bakhtin, os gêneros discursivos são produzidos de acordo com as

diferentes esferas de atividade do homem.

De acordo com Bakhtin ([1952, 1953] 2006), no domínio dos gêneros discursivos os

sujeitos podem descobrir a sua individualidade, o que lhes permitiria realizar, com perfeição,

a sua intenção discursiva, que pode ser a de convencer, persuadir, impressionar, agradar,

etc.; enfim, o sujeito que enuncia mantém-se em atitude responsiva, exigindo-a também de

seu parceiro para que a interação seja sustentada.

É por meio da composição de um gênero do discurso, que emergem as marcas do

sujeito, isto é, ele é perceptível por intermédio da “linguagem do enunciado” (BAKHTIN,

[1952, 1953] 2006, p. 265). A presença subjetiva é mais evidente ou não, conforme o gênero

do discurso em questão. Para Bakhtin (Idem), os gêneros da esfera da literatura ficcional

favorecem o “reflexo da individualidade”: a presença ou marca da subjetividade. Na verdade,

o gênero do discurso permite-nos perceber parte daquilo que constitui o sujeito falante,

enquanto indivíduo, por meio da linguagem.

É a partir desta concepção teórica de gêneros do discurso como enunciados típicos

que Bakhtin analisa o estilo e faz suas críticas à estilística tradicional. Definindo o gênero

como “tipos de enunciados relativamente estáveis” quanto ao conteúdo, à construção

composicional e ao estilo, para ele, o conceito de estilo está ligado ao de gênero do discurso.

Isto é, o estilo é um dos elementos constitutivos dos gêneros discursivos, o que o leva a

afirmar: “Onde há estilo há gênero”. O vínculo entre estilo e gênero é indissolúvel,

constitutivo. E isso se percebe claramente quando se analisa a questão sob a ótica da

funcionalidade do gênero em que cada esfera da atividade e da comunicação discursiva tem

seu estilo peculiar.

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A respeito dos gêneros do discurso, o autor diz que todo enunciado, seja oral,

escrito, seja primário, secundário, ou qualquer campo da comunicação discursiva é

individual, e por esse motivo reflete a individualidade do autor, ou seja, notamos o estilo

individual do sujeito em seu enunciado. É certo que nem todo enunciado é permitido o estilo

individual do autor, Bakhtin diz que na grande maioria dos enunciados essa individualidade

não é permitida, que o estilo é um componente muito importante, porque integra a unidade de

gêneros do enunciado como seu elemento. Então, para Bakhtin,

Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de

transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Nenhum

fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema da

língua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentação

e elaboração de gêneros e estilos. (BAKHTIN, [1952, 1953] 2006, p. 268)

Acreditamos, dessa forma, que para os sujeitos concretizarem as suas intenções

discursivas, escolhem uma forma de comunicação adequada ao contexto social em que se

encontra, isto é, organiza um gênero do discurso. A intenção do locutor se realiza acima de

tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da

especificidade de cada contexto da comunicação verbal, das necessidades de uma temática

e de seus interlocutores. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este abra mão

de sua individualidade e de sua subjetividade, vai adaptando-se e ajustando-se ao gênero

escolhido, compondo-se e desenvolvendo-se na forma do gênero determinado.

5. Analisando alguns dados.

Ainda que uma teoria linguística da narrativa mais próxima da fala da criança possa

contribuir para este estudo, não se pretende aqui traçar distinções ou fixar características do

discurso infantil, mas investigar o que a criança é capaz de dizer e como ela o faz. François

(2009), embora não tenha aproximado seus estudos da Psicanálise, enfoca algumas

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contribuições pertinentes à produção narrativa, especialmente a infantil. De início, o linguista

vai construindo sua visão da narrativa respondendo a questão:

Por que narrar? Certamente, podemos narrar por muitas razões: por

exemplo, para a se divertir, ou porque alguém nos pede. Mas oposição livre

escolha/obrigação é válida para quase toda atividade. Talvez, mais

especificamente porque no narrar, da criança ao idoso, somos

surpreendidos no tempo, e nenhum discurso teórico dá conta dessa

dimensão de repetição-novidade, esperado-surpresa, que é a vida de cada

um de nós. Narrar é, seguramente, um jogo. Talvez seja o jogo mais sério.

(FRANÇOIS, 2009, p. 44).

Para este autor, podemos observar algumas especificidades da produção infantil,

como: sua apropriação da linguagem por meio de diversos gêneros discursivos; sua posição

temporal diante do texto, aproximando-se e distanciando-se em uma mesma narrativa; sua

heterogeneidade ao narrar; sua imprevisibilidade, narrando “sem rodeios” e tornando, muitas

vezes, o discurso um acontecimento; sua organização dominante, conduzindo a criança a

falar muitas vezes em razão das circunstâncias e a propósito da história, ao contrário de dizer

em razão dela; sua criatividade, misturando diversos textos, pensamentos e elementos do

discurso e, por fim, o caráter fictício, do qual a criança lida melhor que o adulto.

Neste contexto, o sujeito que produz e conta suas historias através dos mais

diferentes meios de expressão é o sujeito central que dá a sua interpretação da narrativa, dá

vida ao seu discurso e possibilita aos que ouvem a sua ressignificação a partir das

interpretações realizadas do universo humano.

É com o intuito de perceber esse processo de ressignificação que analisamos as

produções seguintes, buscando ver, no trabalho das crianças com o desenho e as narrativas

orais, seus discursos e seus estilos sendo construídos a partir do diálogo com outros dizeres

historicamente marcados no tempo e no espaço das interações sociais.

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Figura 1: Produção 1

Era uma vez uma princesa. Ela tava andando. Aí ela tava andando para

pegar as maçãs. Aí o bruxo estava lá. Aí veio a bruxa, aí a bruxa queria pegar

a princesa pra matar a princesa, aí o bruxo foi lá e jogou um feitiço na bruxa,

e a bruxa foi embora e morreu. Aí ele voltou deu um abraço na princesa, a

princesa pegou as maçãs e viveram felizes para sempre.

De início, podemos perceber que em sua narrativa, a criança nos apresenta uma

linearidade em sua história ao utilizar uma organização que compreende a situação inicial, o

princípio (era uma vez...); uma transformação, processo (veio a bruxa, aí a bruxa queria pegar

a princesa pra matar); e a situação final, término ( e viveram felizes para sempre), que

contribuem para a coesão e a coerência no discurso narrativo.

Isto se dá pelo fato de a criança, ao elaborar sua narrativa, buscar organizá-la de

forma coerente, recorrendo a um “roteiro” que se encontra armazenado em sua memória e

que é recuperado para a construção de seu discurso, ou seja, uma narrativa que se constitui

com começo, meio e fim articulados entre si pelos elementos linguísticos e discursivos que

são apresentados de forma singular em sua produção.

Na produção da criança, também podemos verificar o articulador conversacional

“aí”, servindo como elemento linguístico responsável por estabelecer a relação de

causalidade entre os fatos narrados pelo sujeito e pela continuidade das ações

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desenvolvidas pelos personagens, além de favorecer à progressão temporal e semântica da

narrativa, pelo acréscimo de novas informações ao seu discurso.

A narrativa da criança ilustra que ela conta histórias do que viu e viveu e, ao mesmo

tempo, assume o papel de narrador e conta para seus interlocutores outras histórias. Embora

seus repertórios narrativos não sejam totalmente revelados por meio de seus desenhos e de

aspectos de determinadas narrativas com as quais teve acesso e tenta reproduzir, é

importante destacar que, ao narrar, a criança esta também atribuindo significações aos

dados da cultura”, e nessa atribuição, a narrativa oral é ponderada como um material valioso

para a reflexão e para a vida imaginativa infantil.

Além disso, os desenhos são representativos dos elementos e personagens que

constituem sua história narrada. Nesse sentido, a narrativa que se desenvolve na ação de

desenhar não comporta apenas ideias, mas apresenta significações ao estabelecer a ligação

entre a criança e o mundo. O gesto torna-se modulação de uma certa maneira de existir que

é originalmente sensível por ser pensante.

Dessa forma, entendemos que o ato de narrar uma história imaginária está

intimamente relacionado com as ligações de tempo, num movimento de retorno aos dados e

fatos mais relevantes para o sujeito, ou causa que unem os acontecimentos da história e,

quando preservados na narração da criança, revelam sua organização do real e objetividade

do pensamento infantil (PIAGET, 1969).

Observamos que o desenho que a criança produz é acompanhado de verbalizações

que se referem às figuras e motivos inscritos no papel, de modo por vezes paradoxal e fora

da expectativa dos adultos. Este aspecto do processo de criação infantil faz-nos entender o

papel do sujeito produtor de discursos que busca sua autonomia no processo e que

surpreende seus interlocutores pela maneira como se inscreve no mundo a partir de suas

criações (este aspecto pode ser evidenciado quando a criança introduz um bruxo no enredo

de sua história).

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Poder acompanhar o ato de elaboração do desenho ou captar as opiniões

expressas pela criança sobre suas próprias produções pode nos encaminhar para uma maior

compreensão do trabalho que o sujeito desenvolve com a linguagem e nos possibilitar

identificar os significados atribuídos por ele aos signos sociais que utiliza para

representar/comunicar sua maneira particular de ver e posicionar-se no mundo. O desenho e

sua fala são constitutivos de um modo de expressão infantil cujas regras não são as mesmas

da expressão adulta, e por isso precisam ser vistos em sua singularidade.

A criança ao fazer a leitura das imagens que criou desencadeia um complexo

processo que envolve operações de identificação, de inferência e de ordenação na

constituição do sentido, que é produzido por um sujeito social em diferentes contextos de

interlocução e compartilhado por uma coletividade.

Através da narrativa, aquilo que é particular dos sujeitos narradores, a sua vida,

ganha outra significação e pode provocar interesses distintos, pelo fato dela ser inesperada,

ou esperada por seus interlocutores. “Contar nos oferece não seres reais, mais maneiras de

ser, maneiras de ser que em um sentido do termo ‘imaginário’, nos apresenta diferentes

‘nós’, ou uma zona instável entre eu e não eu” (FRANÇOIS, 2009, p. 199), contar pode ser

um estado afetivo elementar para representar essas maneiras de ser que são antes de tudo

sentidas.

No desenvolvimento da atividade narrativa, posterior à produção dos desenhos, a

criança passa a rever as imagens produzidas e começa a realizar um processo ativo de

recordação e de atribuição de significados às imagens visualizadas, pois “quando uma

criança libera seus repositórios de memória através do desenho, ela o faz à maneira da fala,

contando uma história. (VYGOTSKY, 2001, p. 127). Este movimento a faz evocar

lembranças antigas e/ou recentes que passam a auxiliá-la na construção de sua narrativa

oral.

A narração de sua história é realizada a partir de sua memória sobre diferentes

narrativas contadas (narrativas que envolvem princesas e bruxas) e de suas experiências

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anteriores com essa forma de linguagem. Vemos que ela evoca lembranças de narrativas

literárias infantis que permeiam seu contexto social e servem de inspiração para sua

produção, de outro modo ela não poderia inventar nem (re)contar. No entanto, a combinação

dos elementos da história que ela usa no ato de criação de seu discurso se apresenta como

algo novo, não mais uma repetição do que foi ouvido, mesmo que mantenha a base da

história narrada para ela anteriormente.

A criança vai trazendo nuances, detalhes novos, expressões e entonações próprias.

Narrando a história, a criança vai agregando diferentes elementos, invertendo a ordem,

estabelecendo relações múltiplas e assim fazendo mostrar que a linguagem infantil é liberta

de um caminho único, sendo fonte de criação, principalmente quando o narrar é favorecido

pela complementaridade do outro, pelos ajustamentos permitidos a partir da interação num

grupo.

Observamos, então, a contribuição organizacional da informação verbal, por meio

dos sentidos que a criança atribui aos elementos visuais apresentados em sequência para

narrar sua história. Ao mesmo tempo, identificamos também a imprevisibilidade, o que

segundo François (2009), ocorre porque a criança não tem a preocupação de reproduzir o

que lhe vai ser apresentado, mais tarde, como a boa maneira de contar, ela produz

espontaneamente seu discurso. Recorrendo ao imprevisível, ela e mostra mais criativa,

fazendo com a narrativa coisas diversas, surpreendentes, que não aconteceria com um

adulto.

Por tudo isso, podemos dizer que a criança que tem contato com histórias

desenvolvem mais a imaginação, a criatividade e a capacidade de discernimento e crítica; na

medida e que se torna ouvintes e leitores críticos, as crianças assumem o protagonismo de

suas próprias vidas e de seus próprios discursos. Isso tudo somado à experiência que a

narração oral proporciona no desenvolvimento e uso de diferentes formas de linguagem,

pode contribuir para a melhoria do processo de aprendizagem da leitura e da escrita.

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Figura 2: Produção 2

Era uma vez um lindo leão que morava na floresta, que cuidava da floresta

muito bem, ele era o rei. Ele não deixava nenhum mal acontecê-la com a

floresta e os animais, e sempre cuidou muito bem dela. Ele sempre gostava

de brincar com os seus amigos da floresta. Quando foi um dia ele viu uns

homens destruindo a floresta e matando os animais, os peixinhos, mais ele

salvou os animais e a floresta porque sabia que sem a floresta não podia

viver.

Com relação a esta produção, vale lembrar que coube aos sujeitos presentes em

sala de aula (professor, demais alunos, pesquisador) atuarem como interlocutores do gênero

discursivo que a criança elaborou a partir de seus desenhos. Esta situação vem reforçar a

importância do outro nas diferentes situações de interação social. É importante dizer que o

outro é sempre importante ao longo de todo o processo de interação com a linguagem e

passa a ganhar destaque nessa fase inicial da aquisição da escrita, não só por ver, ouvir e

interpretar os discursos que a criança elaborou, mas por estar presente na própria linguagem

que a mesma passa a usar na elaboração de seus enunciados, o que nos faz apontar uma

relação entre seu contexto extra-escolar, as leituras feitas pelo professor para ela (a criança)

e a linguagem (o léxico, os temas etc.) usada ao seu redor.

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Vê-se que os desenhos produzidos pela criança, apresentam-se marcados por

outros desenhos, por outros gêneros discursivos vistos no meio social no qual está inserida

(o rei leão, a floresta, os peixes, etc.), o que marca a presença de uma

intertextualidade/interdiscursividade na constituição de suas produções, assim como uma

interação dialógica constante entre gêneros discursivos e os sujeitos sociais. Os desenhos

presentes na produção da criança constituíram-se como o resultado da apropriação feita pelo

sujeito de todos os insumos linguísticos ou não, mas que estiveram presentes durante o

processo de leitura e produção textual, ou seja, daquilo que foi construído na interação social

em sala de aula.

Assim, é importante percebermos que a criança foi construindo uma imagem da

situação por ela descrita, baseada principalmente nas interações que ela desenvolveu dentro

e fora da sala de aula. Ela passa a elaborar, a partir das imagens, hipóteses sobre o tipo de

discurso que poderia envolver seus interlocutores e a explorar cada vez mais esse discurso

em suas produções – “devemos cuidar da natureza; devemos também ajudar a natureza; a

gente tem que se unir para cuidar da natureza e do mundo”. Conforme se pode observar na

produção apresentada, a criança produtora de discursos trabalhou com uma imagem de um

interlocutor crítico, que pode compartilhar de sua visão socioambiental e que é capaz de

entender, por exemplo, os desenhos e os argumentos de seus enunciados.

Ainda com relação a esse dado, é importante retomar aqui a observação de

Mèredieu (2005) sobre o fato de que a produção desses desenhos está relacionada ao

desenvolvimento da função simbólica na criança e, portanto, ao desenvolvimento da

linguagem e da escrita, já que é exatamente o que vemos aqui. Conforme o texto narrado, é

possível perceber que a linguagem oral da criança já estava bastante desenvolvida o que,

aliado ao conhecimento que ela já tinha da escrita, vai permitir também um desenvolvimento

de seus desenhos que agora, associados a sua própria escrita, serão utilizados para

manifestar sua vontade discursiva. Para Bakhtin,

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A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um

certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada especificidade de um

dado campo da comunicação discursiva, por considerações

semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação

discursiva, pela composição pessoal de seus participantes, etc. A intenção

discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em

seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e

desenvolve-se em uma determinada forma de gênero. (1952, 1953] 2006, p.

282)

Diante da produção da criança, podemos perceber inicialmente que estamos diante

de duas linguagens diferentes que vão sendo utilizadas de acordo com o seu querer-dizer.

Num primeiro momento, o desenho ocupa o lugar da escrita, uma vez que a produção textual

é desenvolvida com imagens que acreditamos fazer parte do imaginário das crianças. Noutro

momento, passa ser utilizado como referência para a narrativa oral feita para os seus

interlocutores, apresentando um espaço de manifestação discursiva. Em seguida, há uma

concomitância dessas duas linguagens e a produção de um gênero discursivo capaz de

revelar a maneira singular como a criança produziu suas narrativas.

Como mostra o dado apresentado, a criança vai constituindo a sua subjetividade ao

longo de suas produções, explorando, neste momento, as questões que lhe chama a atenção

ou que faz parte de sua memória discursiva, quer seja pela escolha dos personagens, quer

seja pela narrativa elaborada. Desse modo, através da manipulação dos discursos que

circulam ao seu redor e daqueles que estão em sua memória, vai construindo seus próprios

discursos, marcando suas posições e construindo, assim, significados para aquilo que

produz. O desenho e a narrativa oral constituem-se, neste momento, em espaços

importantes na manifestação do querer-dizer e é através dessas duas linguagens que seu

estilo vai sendo constituído, permitindo-lhe deixar marcas subjetivas em suas produções.

Parece-nos que no início do processo de aquisição da língua escrita é o desenho,

seja elaborado pela criança, seja retirado de outro lugar, que motiva a produção de gêneros

discursivos pelo sujeito em sala de aula. Este vê um texto no desenho e passa a narrá-lo

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para que um adulto letrado registre aquilo que está em sua imaginação. É, portanto, o

desenho que incita seu intuito discursivo, que será manifestado posteriormente através do

gênero escrito. Mais uma vez, parece-nos que as produções discursivas vão sendo

construídas através de uma reagrupagem de enunciados sobre a problemática apresentada

(neste caso específico, o meio ambiente).

Vemos, também, que as produções infantis apresentam elementos simbólicos

(desenhos) representativos de uma temática da época em que foi escrito, sendo, portanto,

imprescindível a exploração tanto da imagem quanto da narrativa oral na elaboração de sua

vontade discursiva. Conforme Bakhtin ([1952, 1953] 2006, p. 283), “a vontade discursiva

individual do falante só se manifesta na escolha de um determinado gênero e ainda por cima

na sua entonação expressiva”, e é justamente essa escolha feita pela criança aqui analisada,

que contribui para dar o caráter crítico-analítico dessa produção. Ao escolher estes

elementos, o sujeito passa a expressar o seu querer-dizer, elaborando-o a partir do gênero

escolhido, sem, contudo, deixar de imprimir nesse gênero a marca de sua individualidade.

Nessa atividade discursiva esteve implicado o aspecto dialógico que caracteriza as

interações sociais. A criança ao enunciar escolheu os recursos expressivos que, segundo

sua avaliação (fruto de sua história), poderiam melhor veicular a sua intenção. Essa

avaliação, contudo, no momento mesmo em que se instaura a interação, passa a ser a

condição para a sustentação da atividade interativa, ou seja, o sujeito que enuncia está, cada

vez que o faz, avaliando o contexto da enunciação (com tudo o que isso implica) para nele

poder manter a sua intenção como sujeito discursivo. No contexto da enunciação estão

implicados o outro para quem se dirige o enunciado (o que, por sua vez, implica no

conhecimento que o sujeito que enuncia tem desse outro) e o gênero segundo o qual se

organiza seus discursos.

Ao optar por um gênero discursivo em que narrativa e imagens são constitutivos de

sua forma composicional, a criança produtora de discursos começou a articular esses dois

recursos para expressar aquilo que pretendia dizer, o que nos faz entender que os desenhos

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e a narrativa oral parecem ocupar lugares complementares na produção infantil, ou seja,

desenhos e narrativa dizem um em relação ao outro e não são redundantes.

Comparando desenho e narrativa, vemos que os argumentos usados pelas crianças

na produção oral também podem ser lidos no desenho desde que se olhe para essa

produção a partir da perspectiva crítica adotada por ela. Embora os recursos sejam

diferentes, na produção acima podemos ver a posição crítica da criança diante da situação

apresentada

Através destas observações, pode-se observar a emergência e a manutenção de

alguns temas e recursos de linguagem ao longo da produção da criança, como as questões

sociais, as produções narrativas, as marcas de argumentação e a emergência de desenhos;

tudo mostrando as escolhas que a mesma fez em seu trabalho com a linguagem, o que lhe

permitiu desenvolver um estilo próprio através do qual pode imprimir marcas pessoais a sua

produção. Os desenhos constituíram-se, portanto, para a criança numa atividade intelectual

ao longo de todo o processo de produção escrita, permitindo-lhe, inclusive, deixar marcas de

seu estilo nas escolhas linguísticas, nas escolhas dos personagens, na seleção do gênero e

da tipologia textual. “A escolha dos meios linguísticos e dos gêneros de discurso é

determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela ideia) do sujeito do discurso (ou autor)

centradas no objeto e no sentido. É o primeiro momento do enunciado que determina as suas

peculiaridades estilístico-composicionais.” (BAKHTIN, [1952, 1953] 2006, p. 289).

É importante ressaltar que, ao longo de todo esse processo, o que está em jogo é,

realmente, a vontade discursiva da criança, ou seja, a relação entre desenho e narrativa em

sua produção está atrelada à sua necessidade de se expressar. Desse modo, a autonomia

em sua produção ocorreu quando aquilo que ela pretendia dizer pôde ser dito através de

desenhos e da palavra narrada, à medida que seu olhar foi se tornando cada vez mais crítico

e sua produção revelou a possibilidade de se colocar como autora de seus próprios

discursos.

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Por fim, percebemos que a criança se apropriou das diferentes formas de

manifestação de linguagem ao imergir nas variadas formas de comunicação verbal, que se

associam a diferentes esferas da comunicação humana e que definem os infinitos gêneros

discursivos existentes. Pensando assim, e partindo da ideia de que cada esfera de utilização

da língua elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que, segundo Bakhtin,

são chamados de gêneros discursivos é que consideramos que o gênero discursivo

elaborado pela criança tem um conteúdo temático determinado: seu objeto discursivo e sua

finalidade discursiva, sua orientação de sentido específica para com ele e os outros

participantes da interação.

6. Considerações finais.

A partir das discussões tecidas anteriormente, neste trabalho, torna-se possível

afirmar que o desenho infantil pode ter mais do que a intenção de figurar a realidade que

rodeia uma criança. As produções mostram que, mais do que figurar, seus desenhos têm

como função expressar suas ideias, provocar, brincar, manifestar suas escolhas, marcar

suas posições. Seus desenhos, enfim, assim como seus discursos orais, são um espaço no

interior do qual os sujeitos produtores de discursos se constituem como sujeitos de

linguagem.

Já a narrativa pode ser caracterizada como um ato de linguagem que faz referência

a uma série de ações ou acontecimentos situados no passado, sejam esses reais ou

ficcionais, mas que são capazes de manter uma relação entre uma série de acontecimentos

presentes ou futuros. A narrativa faz uso da possibilidade de representação simbólica da

linguagem e representa algo passado em termos de tempo, no entanto, ela transcende este

tempo e espaço e passa a funcionar como uma referência a algo que não está presente no

momento, mas que pode ser dito e imaginado.

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Observando os dados analisados, percebemos que o desenho infantil acompanhado

da “narrativa oral” é resultado da interação das crianças com os diferentes sujeitos sociais e

com os objetos culturalmente situados, o que nos leva a reconhecer que a relação que elas

estabeleceram com a linguagem é fruto do processo dialético que define a própria linguagem.

Por tudo isso, e por o considerarmos como construção humana, como atividade

criadora, o desenho infantil e as narrativas orais implicam um trabalho composicional

específico, uma arquitetônica, como diria Bakhtin. A reunião de imagens, a caracterização de

personagens, a descrição das cenas, o desenrolar da trama, os modos de narrar, as

escolhas de palavras e pontos de vistas, a imagem de possíveis interlocutores; tudo isso faz

parte desse trabalho, cujo produto final transcende o momento de criação e passa a adquirir

uma existência autônoma, um estilo individual, que produz efeitos no próprio autor e

naqueles que o recebem.

Notas

i Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos primeiros a conceber a criança como um ser dono

de uma personalidade, diferente do adulto, com necessidades próprias e uma mentalidade

relacionada a tais necessidades. Segundo o filósofo e educador, “a criança é uma criança, não um

adulto”, dando a entender que as crianças são diferentes dos adultos e têm seus próprios modos de

pensar e resolver problemas, modos que não são necessariamente inferiores aos dos adultos. (COX,

2007, p. 4).

ii A noção de realismo defendida por Luquet é construída em oposição às ideias de “idealismo” e

“decorativo” tão amplamente difundidas na França no final do século XIX e início do Século XX e

apareceu na sua tese de doutoramento publicada com o título “Les dessins d’un enfant” (os desenhos

de uma criança) em 1913. iii

Segundo Vygotsky, ocorrem duas mudanças qualitativas no uso dos signos: o processo de

internalização e a utilização de sistemas simbólicos. A internalização está relacionada ao recurso da

repetição onde o sujeito apropria-se da fala do outro, tornando-a sua. O processo de internalização é

fundamental para o desenvolvimento do funcionamento psicológico humano, pois envolve uma

atividade externa que deve ser modificada para tornar-se uma atividade interna.

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iv Vygotsky (2009) usa sem distinção os termos imaginação e fantasia. Para a Psicologia, imaginação

ou fantasia estão diretamente relacionadas à atividade criadora do ser humano. “Comumente,

entende-se por imaginação ou fantasia algo diferente do que a ciência denomina com essas palavras.”

(p. 14)

v Para Maurice Merleau-Ponty, a língua dispõe de um certo numero de signos fundamentais,

arbitrariamente ligados a significações-chave; ela é capaz de compor qualquer significação nova a

partir daquelas, portanto de dizê-las na mesma linguagem, e finalmente a expressão exprime porque

reconduz todas as nossas experiências ao sistema de correspondências iniciais entre tal signo e tal

significação, de que tomamos posse ao aprender a língua, e que, por sua vez, é absolutamente claro,

porque nenhum pensamento permanece nas palavras, nenhuma palavra no puro pensamento de

alguma coisa. (2012, p. 30).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, [1929] 2002.

______. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,

[1952, 1953] 2006.

BRUNER, Jèrome. A cultura da educação. Trad. Marcos A. G. Domingues. Porto Alegre: Artmed

Editora, 2001.

______. Jerome. Realidade mental mundos possíveis. Trad. Marcos. A. G. Domingues. Porto

Alegre: Artes Médicas, 1986.

COX. Maureen. Desenho da Criança. Trad. Evandro Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,

2007.

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