DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana,...

13
DO REFUGO AO REFÚGIO - A CORRESPONDÊNCIA ENTRE A PRODUÇÃO CAPITALISTA E A PRODUÇÃO DA MASSA SOBRANTE José Maria Ferreira de Oliveira 1 Adriana Gonzaga 2 O modo de produção capitalista, globalizado e hegemônico, vem, na contemporaneidade, demonstrando de forma contundente e cruel, sua natureza excludente, a partir do movimento de geração, acomodação e eliminação do que o próprio sistema produz, mas não reconhece, como os 'sobrantes' ou 'sobras humanas' - aquelas pessoas que não conferem importância econômica no arranjo global a ponto de terem um papel irrelevante em meio às constantes e cíclicas transformações, crises e guerras, provocadas pelos desajustes socioeconômicos inerentes ao capitalismo. A velocidade com que esse movimento vem acontecendo, chama a atenção para o modo como a vida humana é descartável, transformada em vítima de um sistema de controle usado, inicialmente, também, para atender as necessidades impostas - ou sugeridas - pelo capitalismo, transformando necessidades humanas em desejos ilimitados. Os movimentos diaspóricos desse século coloca em xeque a fragilidade humana diante das crises e a incapacidade das economias em absorver dignamente uma grande quantidade de pessoas refugiadas em seus microssistemas econômicos. Entretanto, o que se vê é a criação de barreiras à entrada e permanência nos territórios procurados, ampliando, cada vez mais, a geração de 'refugo' diante da experiência de imigração e refúgio. Dessa forma, refugo e refúgio se correspondem, passando a ser objeto de análise deste artigo. A partir desta perspectiva, o presente artigo, fruto de uma pesquisa, propõe uma reflexão em relação aos acontecimentos denunciados pela condição daqueles que são expulsos por interesses camuflados e silenciados pela grande mídia, simplesmente tratados ora por deslocamento de imigrantes, ora por refugiados, ora por asilados. Quase que literalmente estes sem nome, sem identidade, sem origem; é massa de “refugo” produzida pelo sistema socioeconômico-político transnacional vigente. Este artigo se 1 Bacharel em Administração pela UNIBENNET – RJ; Graduando em Ciências Contábeis, UNILASALLE – RJ. E-mail: [email protected] 2 Economista; Professora Universitária – UNILASALLE - RJ; Mestre em Engenharia de Produção, com ênfase na área de Responsabilidade Social, pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

Transcript of DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana,...

Page 1: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

DO REFUGO AO REFÚGIO - A CORRESPONDÊNCIA ENTRE A PRODUÇÃO

CAPITALISTA E A PRODUÇÃO DA MASSA SOBRANTE

José Maria Ferreira de Oliveira1

Adriana Gonzaga2

O modo de produção capitalista, globalizado e hegemônico, vem, na

contemporaneidade, demonstrando de forma contundente e cruel, sua natureza

excludente, a partir do movimento de geração, acomodação e eliminação do que o

próprio sistema produz, mas não reconhece, como os 'sobrantes' ou 'sobras humanas' -

aquelas pessoas que não conferem importância econômica no arranjo global a ponto de

terem um papel irrelevante em meio às constantes e cíclicas transformações, crises e

guerras, provocadas pelos desajustes socioeconômicos inerentes ao capitalismo. A

velocidade com que esse movimento vem acontecendo, chama a atenção para o modo

como a vida humana é descartável, transformada em vítima de um sistema de controle

usado, inicialmente, também, para atender as necessidades impostas - ou sugeridas -

pelo capitalismo, transformando necessidades humanas em desejos ilimitados. Os

movimentos diaspóricos desse século coloca em xeque a fragilidade humana diante das

crises e a incapacidade das economias em absorver dignamente uma grande quantidade

de pessoas refugiadas em seus microssistemas econômicos. Entretanto, o que se vê é a

criação de barreiras à entrada e permanência nos territórios procurados, ampliando, cada

vez mais, a geração de 'refugo' diante da experiência de imigração e refúgio. Dessa

forma, refugo e refúgio se correspondem, passando a ser objeto de análise deste artigo.

A partir desta perspectiva, o presente artigo, fruto de uma pesquisa, propõe uma

reflexão em relação aos acontecimentos denunciados pela condição daqueles que são

expulsos por interesses camuflados e silenciados pela grande mídia, simplesmente

tratados ora por deslocamento de imigrantes, ora por refugiados, ora por asilados. Quase

que literalmente estes ‘sem nome’, ‘sem identidade’, ‘sem origem’; é massa de “refugo”

produzida pelo sistema socioeconômico-político transnacional vigente. Este artigo se

1 Bacharel em Administração pela UNIBENNET – RJ; Graduando em Ciências Contábeis, UNILASALLE – RJ. E-mail: [email protected] 2 Economista; Professora Universitária – UNILASALLE - RJ; Mestre em Engenharia de Produção, com ênfase na área de Responsabilidade Social, pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

Page 2: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

2

dispõe, também, investigar a questão dos refugiados como condição de sobrantes do

sistema econômico vigente. Logo, se faz necessário estudar e entender o que autores

vêm discutindo sobre questões importantes, como modernidade, diáspora, refúgio,

exclusão; bem como a transversalidade destas inquietações disciplinares com o objetivo

de contribuir com interpretações que apontem maior profundidade a respeito da

conjuntura atual e capitalismo, para que se possa ter um panorama mais fidedigno do

momento delicado pelo qual a Humanidade está passando. Nesse sentido, como forma

de delimitação do objeto, pretende-se discutir as tensões contemporâneas de um

capitalismo em crise, enfatizando o movimento diaspórico “refugado” resultante da

guerra e do terror no início do século XXI e em decorrência a existência de uma massa

cada vez maior de pessoas abrigadas em campo de refugiados, incapazes de retomar à

mínima condição de normalidade da natureza da vida, ficando à margem do sistema.

Para alcançar os resultados pretendidos, este trabalho tem como orientação e

base a taxionomia estabelecida por Vergara (1997) que qualifica este tipo de pesquisa a

partir do método de investigação de caráter exploratório quanto aos fins e

essencialmente qualitativa. Assim, foram realizados levantamentos bibliográficos

capazes de fornecer o instrumental analítico, efetuados junto às bases de dados de

institutos especializados.

A VIDA ENTRE O REFUGO E OS QUASE-HUMANOIDES

Segundo a teoria econômica, o refugo tem origem no processo produtivo a partir

de materiais que não poderão ser mais utilizados, ou por estarem defeituosos ou

estragados, portanto, será posto à parte, desprezado (MARTINS, 2009).

Etimologicamente, a palavra refugo vem do latim refugu, e, segundo o dicionário

Aurélio, significa resto, inútil, rejeitado. Richard Sennett, ao analisar o processo de

produção no sistema capitalista, acentua o fato da flexibilização, que traz novas

estruturas de poder e controle. Segundo o autor, “a nova economia política trai o desejo

pessoal” (SENNETT, 2009, p.54), pois desvincula o desejo natural, inerente ao ser

humano em relação ao desejo proposto ou imposto pelo sistema que ele define como o

novo capitalismo. A modernidade capitalista pressupõe a crença na existência de redes

Page 3: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

3

elásticas, portanto flexíveis, como forma de intervenção, criando espaços para que o

sistema seja fragmentado e desta forma receber as devidas intervenções, para que o

mesmo seja aceito ou incorporado pelas sociedades capitalistas. O desejo controlado

pelo sistema produz uma rede flexível para construir e sedimentar uma sociedade capaz

de ser conduzida e determinada pelas volatilidades.

A junção entre os nódulos na rede é mais frouxa; pode-se tirar uma

parte, pelo menos em teoria, sem destruir outras. O sistema é

fragmentado; aí está a oportunidade de intervir. Sua própria

incoerência convida nossas revisões. (SENNETT, 2009, p.55)

A fragmentação trouxe às sociedades modernas um determinado comportamento

de desprendimento do seu passado de forma a orientar-se para o novo, criando

condições para que nada detenha o fluxo do capital, ao aceitar a fragmentação como

uma metodologia sistêmica de organizar e entender as relações socioeconômicas do

novo capitalismo.

O modelo de produção é orientado para que o que for produzido seja percebido e

consumido, por um novo agente social determinado pelo sistema. Para que essa relação

se perpetue, deve entrar em cena a figura ‘quase humanoide’, de um ser criado para dar

continuidade e sustentabilidade ao sistema econômico vigente, que se percebe quase que

exclusivamente como cidadão-consumidor, e introjeta as virtudes disseminadas pelo

sistema: ser volátil, ser flexível, ser fragmentado. A ideia é que esse novo agente social

reflita a linha de produção, isto é, a mesma orientação que se desenvolve ali deverá ser a

mesma que se constrói a antropologia do cidadão-consumidor. Neste sentindo, Sennett

(2006) esclarece:

(...) que não concordamos com aqueles que interpretam o surgimento

do paradigma do mercado como um processo espontâneo originado,

sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de

uma estrita racionalidade econômica. Pelo contrário, a usurpação de

uma pretensa racionalidade econômica por parte do paradigma do

mercado só foi possível porque se conseguiu impor, em nome de uma

determinada ‘racionalidade econômica’, uma reformulação total do

‘sentido possível’ da vida humana em sociedades complexas.

(SENNETT, 2006, p. 292)

Page 4: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

4

As sociedades modernas são orientadas em seu desejo de alcançar o estereótipo

de sociedade modelo, definida por Laburthe-Tolra (1997, p.21) como aquela “voltada

antes para o futuro que para o passado” tendo a modernidade como um valor. O

modelo de sociedade moderna, a partir do evento modernidade é aquele que foi imposto

a ferro e fogo sob o signo da racionalidade científica. O modelo paradigmático original

– o paradigma é tratado aqui como modelo ou padrão, que sustenta a nova lógica

econômica atribuída às sociedades - a ser imitado ou copiado por outras sociedades é

aquele anunciado pelas sociedades europeias e norte-americanas capitalistas modernas,

como o melhor modo de se viver, a melhor forma de se organizar-se socialmente, o

melhor jeito de produzir, de se relacionar, de governar, de inculturar-se, etc. Essa

promessa do bem viver envolve lazer, organização social, cultura, religião, formação,

educação e economia. Esse é o modelo de sociedade ‘perfeita’, capaz de compreender

todas as nuances da existência humana, suas necessidades, sonhos e realizações, por

isso a sociedade é difusa, ou seja, voltada para fora, pois externaliza um modelo que

está no plano dos sonhos, idealizado para ser quase que inalcançável. E, ao mesmo

tempo, dentro desta lógica moderna, não cabe qualquer outra forma de interação, porque

todas as sociedades devem convergir ao modelo único de difusão.

(...) o modelo da modernidade, segundo os próprios termos de

Eisenntadt, “propaga-se” para fora de seu âmbito de origem, noutras

palavras, difunde-se. A teoria da modernidade é uma teoria da difusão.

Liga-se, desta maneira, a uma corrente de pensamento sociológico

segundo a qual as mudanças sociais dão-se, sobretudo, pela difusão

das informações a partir de um centro que é suposto produzi-las.

(LABURTHE-TOLRA, 1997, p.21)

Aquelas sociedades que ousarem vislumbrar outras perspectivas de interação,

estarão sujeitas à conversão pela força, legitimando, assim, as guerras e invasões, para

que aja a sobreposição de um modelo sobre o outro.

A modernização é, assim, percebida como o rolo compressor

destinado a esmagar todas as civilizações para reduzi-las ao modelo

do Ocidente industrializado. Por isso a teoria da modernização é

também chamada de teoria da convergência das civilizações, já que se

presume que todas aproximam-se de um modelo único.

(LABURTHE-TOLRA, 1997, p.21)

Page 5: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

5

Enfim, as sociedades da Europa e América do Norte apresentam-se como o

paradigma original a ser seguido e agem de forma não tão sutil, cerceando umas

sociedades e constrangendo outras a negarem seu modelo originário, até corromperem-

se ao modelo difuso. Como num jogo de sedução, tais grupos hegemônicos se

apresentam como sociedades perfeitas em sua organização sócio-político-econômica,

capazes de satisfazerem as necessidades individuais, bem como realizar seus desejos no

curto-prazo.

Para entrar nesta lógica de modernidade, as sociedades têm por incumbência

(SENNETT, 2009) romper com seu passado, implementando um movimento de

mudança sob o paradigma do progresso, criando condições de aceitação para irromper

no processo de fragmentação de suas matrizes culturais, a fim de flexibilizá-las.

RELAÇÕES FLUIDAS E PESSOAS INÚTEIS

A fluidez da modernidade capitalista se sustenta na dissociação da natureza e do

humano. À natureza são aplicadas as práticas tecno-científicas e ao humano as práticas

político-sociais, num descompasso. Em conformidade com Laburthe-Tolra (1997), esta

dissociação provoca fragmentações que criam espaços que, segundo Baumann (2001),

geram condições para que a fluidez capitalista preencha as lacunas formadas,

transformando o que se estabelece das relações do humano com o humano e deste com a

natureza, rompendo drasticamente com a cosmovisão, pois a sociedade da tradição tinha

uma forma de ver, entender e se colocar no mundo, diferentemente da modernidade

capitalista. Assim, a natureza deixa de ser parceira do humano para se tornar sua serva.

Em oposição à essa visão, Latour(1991)3 argumenta sobre a indissociabilidade

entre a natureza e o humano, pois os fatos técnicos-científicos repercutem ao mesmo

tempo nos fatos sociais e políticos, e a isto ele denomina como fatos ‘híbridos’, ou seja,

estão intrinsecamente associados, de tal forma que não existe a possiblidade deles

acontecerem em espaços diferentes. É por esse motivo que a modernidade capitalista

tem dificuldade em lidar com esses fatos híbridos, “pois mantém a ilusão de que fatos

3 apud LABURTHE-TOLRA, 1997, p. 23

Page 6: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

6

de natureza e fatos de sociedade são criados em espaços diferentes, por pessoas

diferentes” (LABURTHE-TOLRA, 1997, p. 23).

É com o advento da modernidade capitalista que uma nova forma de cultura é

gestada e posteriormente manifestada, sedimentando sua identidade: a inutilidade

humana. SENNETT (2006), desenvolve a ideia de que a produção capitalista provocou

uma desestabilização nos processos de produção, deslocando o movimento desta

inutilidade a partir do advento das cidades fabris. Tal movimento foi deflagrado pela

inquietação e reacomodação no novo modelo de produção urbano-industrial, que forçou

o camponês a buscar refúgio nas cidades – os chamados ‘refugiados agrícolas’ expulsos

do campo para que a lógica capitalista promovesse um rearranjo econômico, social e

político alterando a relação entre trabalho e produção.

Estes refugiados agrícolas foram expulsos de sua condição natural de labor, a

partir do momento em que a terra se transforma em mercadoria, perdendo a possiblidade

de explorá-las, não restando outra saída a não ser refugiarem-se nas cidades, numa

tentativa de reposicionarem-se junto às novas matizes, inauguradas pelo novo modelo

(HUBBERMAN, 2010). A condição dos camponeses, ligados ao modo anterior de

produção, os colocava em posição de desvantagem de inclusão, surgindo daí o grande

desafio de se adaptarem ao novo sistema produtivo.

O conceito de “fatores de produção” evoluiu ao longo da história do

pensamento econômico. Nos clássicos, havia ainda uma forte

preocupação com a reprodução dos fatores necessários – os não-

necessários, os sobrantes sempre foram um problema – à produção.

Aos poucos, porém, o Capital passou a ser considerado como o fator

de produção por excelência. Todo o resto só é visto ainda como fator

de produção na medida em que o Capital o necessita. Isto implica,

logicamente, numa exclusão dos fatores não produtivos. Em suma, a

vida do homem se deslocou do centro da economia. (ASSMANN;

HINKELAMMERT, 1989, p.307)

Com o aprimoramento do modo de acumulação capitalista, novas situações de

refúgio se expandiram de forma tentacular. Com muito esmero e encantamento, o

capitalismo continua a estabelecer formas e métodos de expansão, para que se manifeste

de forma mais leve e sutil, podendo intervir e corromper as culturas que o contrapõe.

Page 7: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

7

Percebe-se este aprimoramento do sistema quando se deflagra uma devastadora

destituição proposital de valores, de potenciais e de talentos, tornando os indivíduos

simplesmente invisíveis perante os olhos da grande maioria da sociedade,

desaparecendo do contexto da produção, tornando-se uma massa sobrante. (SENNETT,

2006)

Diante do pesadelo da inutilidade, o sistema nada tem a oferecer para que o

indivíduo não caia no esquecimento e se posicione fora das matrizes de produção. O

sistema só se torna pungente porque gera sobras. O lucro não inclui – somente um

agente se beneficia - uma empresa ou uma elite econômica - enquanto os outros agentes

econômicos se movimentam para que essas sociedades particulares continuem a

acumular seus lucros. Nota-se que a pujança capitalista se estrutura através das elites

regionais que concentram o capital. Isso é bastante perceptível nas análises econômicas

e contábeis – os lucros são destinados para quem investe seu capital, e quem tem o

poder de investir é justamente aquele que o detém. Portanto, este conserva a riqueza

daqueles que o financiam, sustentando um sistema de concentração do lucro. O que era

um bem distributivo torna-se um bem cumulativo. Então, para gerar novos bens, a teoria

econômica fundamenta-se no sacrifício - de todas as coisas que envolvem o processo de

produção - para gerar novos bens. “ Nessa seleção de talentos, são deixados no limbo

os considerados carentes de recursos internos. Já não podem ser considerados úteis ou

valiosos, não obstante o que realizaram” (SENNETT, 2006, p.120).

FRAGMENTOS

O sistema financiado a partir da concentração dos lucros, cria seus próprios

mecanismos de sustentação, através das intervenções nos espaços em que as redes

tramadas pelas sociedades sejam mais flexíveis. A fragmentação chegou a tal ponto que,

na atualidade, reflete um descompasso nas relações humanas. Sennett (2006), ao

abordar o assunto, aponta em direção ao surgimento de um novo ente social, ao que ele

denomina como consumidor-cidadão-expectador.

Page 8: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

8

Nesta mesma perspectiva, os autores de ‘Para além do espírito do império’ são

contundentes em admitir a criação de uma nova subjetividade humana, que não está

valorada por ser humana, mas sim, sedimentada na relação de consumo de mercadoria,

cujo valor não está na existência humana, mas sim, nas coisas. Daí a proposição da

coisificação do ser humano e transposição do valor àquilo que ele consegue consumir:

“Exatamente como a cadeira é despojada de sua existência, o valor de uma cadeira já

não está em seu uso e nem como foi produzida. Aqueles cujas vidas estão envolvidas no

capitalismo também são despojados de sua existência” (RIEGER, MIGUEZ SUNG ,

2012, p.62). Está aí o nascimento de uma nova subjetividade social.

Nessa mesma linha de discussão, Sennet (2006) destaca a questão da potência e

do potencial na propagação do culto ao consumo como matriz de controle. Segundo o

autor “Assim é que as diferenças de imagem adquirem fundamental importância na

obtenção de lucros. Quando as diferenças podem ser de certa forma infladas, o

comprador potencial estará vivenciando a paixão do consumo” (p.135). A propagação

do culto ao consumo, uma das matrizes de controle do sistema, é a forma como o

capitalismo dissemina sua ideologia nas relações sociais, encantando o cidadão, aquele

que tem o potencial ao consumo, pois é quem está mais próximo ao sistema. A mesma

estruturação que é feita no sistema de produção, é feita no sistema social. Consumir

deixou de ser um simples ato de compra. Isto só foi possível quando o mesmo processo

de valoração dado às coisas e ‘mercadorias’ foi transposto às relações que envolvem o

ser humano.

Exatamente como o valor dos bens consumíveis depende de sua

posição no mercado, e assim de seu relacionamento com outros bens

consumíveis, independente do seu valor de uso, o valor da

subjetividade das pessoas expresso no seu trabalho também depende

desses fatores. O valor é assim, uma relação entre pessoas expressa

como relação entre coisas. (RIEGER, MIGUEZ SUNG , 2012, p.63-

64).

Quanto mais prósperas e avançadas as sociedades de consumo, mais se

submetem e se tornam subserviente ao modelo imposto, e, dessa forma, aqueles que

não consomem ou que não tem perspectivas de consumir, não podem ser elevados ao

status de humano – é a sobra, é o refugo.

Page 9: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

9

REFUGO E REFUGIO

O início do século XXI testemunha, na atualidade, o mais profundo movimento

capitalista de inutilização da vida. O mar mediterrâneo se torna o referencial de

sacrifícios, cemitério e memorial de mortes e vidas atormentadas por causa de uma

racionalidade econômica, concentrada em uma economia de mercado expansionista e

universal. Nela, as perseguições são construídas por um poder que em sua metodologia

utiliza a guerra e a concentração de riquezas como partes de uma ordem sacrifical de

vidas humanas.

Na contemporaneidade sistematicamente testemunha-se a tentativa de alentar os

corações a respeito das crueldades e vitimações deflagradas na condição humana de

refugiados. “Os orçamentos militares do mundo superam anualmente toda a dívida

externa acumulada do Terceiro Mundo” (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989,

p.294) Mais destruidor do que constatar tal estatística, é perceber, conforme os autores,

“ que as técnicas psicológicas de ‘engenharia social’ de tipo militarista invadem a

publicidade e áreas significativas das artes”. Na prática, percebe-se o crescimento da

indústria dos jogos virtuais que tem a violência como base.

Na formulação econômica de Adam Smith4, deflagrou-se o pressuposto

sacrifical, tendo como justificativa a remuneração do capital e sua expansão. A

violência fazia parte desta cosmovisão, colocando-se como parte natural e normal de se

ver e conceber o mundo. Porém, o que chama a atenção é que nas sociedades modernas,

a violência e o sacrifício são substancialmente paradigmáticos. Se se tornam paradigmas

pode-se matar, violentar e despojar porque é justificável, sob a perspectiva econômica –

no lucro – e sob a perspectiva social – na implantação da “pax romana”, sabendo que

esta é o modus operandi do império de se organizar e expandir.

A ideologia do sacrifício seria, então, o emaranhado econômico que postulava

que, para produzir-se riqueza, seriam necessários sacrifícios inerentes ao processo de

produção. Dessa forma, a nova ordem econômica é dotada de leis naturais autônomas,

4 SMITH, apud ASSMANN, HINKELAMMERT, 1989

Page 10: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

10

visto que nas sociedades anteriores a natureza era o fator determinante no processo de

produção.

Na articulação da economia de mercado há uma prerrogativa de disfarçar ou

ocultar a metodologia e a materialidade de um processo vitimatório, estruturado e

anunciado como uma boa notícia para se chegar à realização do milagre do

desenvolvimento. A partir deste ideal, instaura-se modelos de dominação

fundamentados no emprego contínuo e sistemático da força e da violência. Porém, aos

olhos das sociedades, estas complexas tramas só se justificam porque vem disfarçada de

uma ideologia, legitimada pela própria construção do paradigma. Assmann;

Hinkelammert (1989) comentam sobre o “ disfarce estrutural do sacrificialismo”, como

sendo a “forma que a ideologia sacrifical assume quando se identifica inteiramente com

a formulação dos procedimentos econômicos” (p.305). O disfarce vem de uma própria

ideologia intrínseca ao sistema, e para Baumann (2001) os disfarces estão conectados

com a modernidade líquida quando discute sobre o tempo e o espaço, afirmando que as

variantes extremas da estratégia êmica são hoje, e como sempre o encarceramento,

deportação e assassinatos. Consequentemente pode-se deduzir: sob a forma de

sacrifício.

Tendo por base o referencial teórico, analisa-se o movimento de vitimação

imposto aos povos que habitam parte do Oriente Médio. O argumento sustentado neste

artigo é que os sacrifícios de vidas humanas são produto da expansão do capital

hegemônico colonialista e universal. Para a sociedade moderna capitalista, isto se

tornou um paradigma, um modelo de um modo de produção que se reflete num mundo

político-social-econômico e nas relações humanas como um todo, até mesmo na

compreensão de um novo ens humano fabricado a partir deste paradigma.

Nazanín Armanian, cientista política, no artigo publicado na revista Carta Maior,

sob o título de ‘12 razões da guerra contra a Síria’, elucida e argumenta o arquétipo

articulado pelas economias globais ‘notáveis’, como por exemplo, eliminar os rivais de

Israel, sem a percepção das destruições de países muçulmanos, pois do contrário,

configuraria islamofobia. Apelam ao cenário mundial para a necessidade de enfrentar o

inimigo do ocidente: o extremismo islâmico. Arquitetam um novo modelo sócio-

Page 11: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

11

político – econômico e cultural para o novo Oriente Médio. Segundo a autora, com

inevitáveis “dores de parto”, citando Condoleezza Rice.

Efetivar o ousado projeto de controle militar de todo o mediterrâneo. O

obstáculo para a concretização imediata dessa ação é a Síria, único país fora da área da

OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte; proporcionar a dominação da

chamada Eurásia, cuja fronteira inicial a partir da Ásia é a Síria, e a partir da Europa, a

fronteira final, é a Síria. Desestabilizar a relação entre Síria e Moscou,

consequentemente destruir qualquer relação comercial com a Rússia; Controlar a rota da

seda; a urgência da instalação do gasoduto árabe, porém para o êxito, é necessário

mudar o regime de poder na Síria, levando ao poder o regime sunitas aliados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em conta os principais aspectos levantados e argumentados por esta

pesquisa, pode-se concluir que existe uma real necessidade de contínuo aprofundamento

das questões apresentadas; a humanidade encontra-se na atualidade na encruzilhada da

“competição” ou “cooperação”.

Por um lado, testemunha-se o crescimento da ideologia da guerra, sustentada por

uma cultura patriarcal que só consegue entender a resolução dos conflitos por este viés.

Esta mesma cultura sedimentou e propagou a cultura do capital que se modernizou,

globalizou, consequentemente continua produzindo guerras econômicas, políticas e

sociais; impondo estruturas desiguais, injustas e violentas.

Para entender este movimento denominado como diaspórico, que neste artigo

percebe-se como refugo, faz-se necessário ouvir as vozes silenciadas, mergulhar no mar

real da travessia e procurar desatar os ‘nós’ do simbólico ocultados no êxodo destes

povos (pessoas) em busca de uma ‘terra prometida’ onde derrama democracia,

igualdade, oportunidades, liberdade, fraternidade; terras, estas, que antecipam o paraíso

– o futuro - prometido pelo sistema que transforma ‘bens e serviços’, a ‘excelência da

vida’ em refugo.

Page 12: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

12

Denúncia e anúncio são movimentos dicotômicos nesta travessia, ecoam através

do signo verbal calado profundas situações de abandono, menosprezo e de

desintegração da vida. Murmúrios que jamais penetrarão a audição dos controladores

das redes onipresentes e oniscientes que se julgam capazes de conduzir o bem-estar das

sociedades através de sua mão invisível e redentora.

De tudo o que foi exposto através desta incursão científica; entende-se que a

Academia possui papel relevante em apontar as estruturas que sustentam esta lógica;

bem como oferecer às sociedades reflexões que colaborem no processo de

decomposição dos disfarces fluídos em nossa cultura, para que se desvelem, entre

outros, os véus que encobrem a exortação do refúgio – ‘refugo’.

BIBLIOGRAFIA

ARMANIAN, N – 12 razões da guerra contra a Síria, disponível em:

http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FInternacional%2F12-razoes-da-guerra-

contra-a-Siria%2F6%2F34567/>. Acesso em 28 de maio de 2016.

ASSMANN, H, HINKELAMMERT, F. – A idolatria do mercado – Ensaio sobre

economia e teologia. São Paulo: Ed. Vozes, 1989.

BAUMAN, Zigmunt - Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

________________ - Globalização as consequências humanas. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar Editor, 1999.

FERREIRA, Aurelio B. H. – Novo Aurélio século XXI. Rio de Janeiro, 3 Ed., Nova

Fronteira, 1999.

HUBERMAN, L – História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro, Ed. LTC, 2010.

HINKELAMMERT, F – As armas ideológicas da morte, São Paulo, Edições Paulinas,

1983.

MARTINS, Eliseu – Contabilidade de custos, São Paulo, Editora Atlas, 2009.

Page 13: DO REFUGO AO REFÚGIO - encontro2016.rj.anpuh.org · sem qualquer violência à natureza humana, através da aplicação de ... porque todas as sociedades devem convergir ao modelo

13

RIEGER, J. MIGUEZ, N.; SUNG Jung M. - Para além do espírito do império - Novas

perspectivas em política e religião. São Paulo: Paulinas, 2012.

SENNETT, R – A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2007.

____________ A cultura do novo capitalismo, Rio de Janeiro, Editora Record, 2006

TOLRA, P. L, WARNIER, J. P – Etnologia antropologia. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997.

VERGARA, Sylvia Constant – Projetos e Relatórios de Pesquisa em Administração.

São Paulo: Atlas, 1997.

WOOD, E. M. - A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.