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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANA CRISTINA NASCIMENTO GIVIGI DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA: O uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano Vitória 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ANA CRISTINA NASCIMENTO GIVIGI

DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA:

O uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano

Vitória 2009

Ana Cristina Nascimento Givigi

DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA:

O uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço.

Vitória 2009

Ana Cristina Nascimento Givigi, 1968- Do ressentimento à potência: o uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano/ Ana Cristina Nascimento Givigi – 2009. 219 f. Orientador: Carlos Eduardo Ferraço.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação.

1 . 2. . 3. I. Ferraço, Carlos Eduardo. II. Universidade

Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. III. Título.

CDU 370.19

Ana Cristina Nascimento Givigi

DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA:

O uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação.

Aprovada em

COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço Universidade Federal do Espírito Santo Orientador _________________________________________ Prof. Dr. Hiran Pinel Universidade Federal do Espírito Santo ________________________________________ Profª Drª Heliana de Barros Rodrigues Conde Universidade Estadual do Rio de Janeiro _________________________________________ Prof. Dr. Kleber Jean Matos Lopes Universidade Federal do Sergipe ________________________________________ Profª Drª Leila Domingues Machado Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Profª Drª. Maria Elizabeth de Barros Universidade Federal do Espírito Santo

“O que quer dizer amar alguém? É sempre apreendê- l o numa massa, extraí-lo de um grupo, mesmo restrito, do qu al ele participa,

mesmo que por sua família ou por outra coisa; e dep ois buscar suas próprias matilhas, as multiplicidades que ele encerra e que são talvez de uma natureza completamente diversa. L igá-las às

minhas, fazê-las penetrar nas minhas e penetrar nas suas. Núpcias celestes, multiplicidades de multiplicidades. Não e xiste amor que não seja um exercício de despersonalização sobre um corpo sem

órgãos a ser formado; e é no ponto mais elevado des ta despersonalização que alguém pode ser nomeado, rece be seu

nome ou pré-nome :” À SIDNEY E LEILA GIVIGI , que não desistiram de mim... À ROSANA GIVIGI , que me afeta profundamente... À FRANCELLE , que me atravessa e comigo dá passagem ao amor.

AGRADECIMENTO ESPECIAL

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de

um modo ou de outro..."

Clarisse Lispector

Quando comecei a escrever a escrever esse texto de agradecimento só o queria singelo. Não pretendia revisá-lo vez alguma. E assim o fiz. Era 19 de março de 2008. Eu estava com o coração apertadinho por um desentendimento corriqueiro no trabalho. Coisas do cotidiano que antes despertariam em mim nada mais do que o cinismo. Adociquei, eu acho. Não gosto muito de comportamentos mordazes. Mas, o que eu ia dizendo é que neste dia de mormaço deparei-me com um e-mail de Carlos. Foi como se o paradoxo se instalasse, entre os rebuscamentos do desenvolvimento local tão debatido no meu dia laboral e sinais tão deslizantes, abertos, singelos... Carlos é palavra aberta, descontínua, aparição, clareira, é sossego que vibra. Todo canto que o encontro sinto possibilidades de céu aberto, de chão molhado, de cachorro latindo, de criança viçosa balançando ao vento. De repente, meu coração se dissipou. Acho que é isso, Carlos faz com que o que está impregnado na gente se dissipe sem apontar rumo certo. Indica o caminho do sol e espera, talvez, a volta de quem aceita ir. Ele é cortejo de insetos. (Risos). Eu o vejo e imagino aquela porção de cigarras, formigas, baratinhas, moscas, joaninhas e pernilongos cantarolando para uma festa na mata. Carlos ensaia meu ludismo, faz acordar meus versos infantes, quem sabe, poéticos. Foi também por ele (antes, é claro, por mim), confesso, que terminei esse trabalho. Por não querer deixar que as vaidades pensem que ele sustenta egos descomprometidos. Mas, principalmente, terminei essa tese porque os dias com ele me consentiram morte e ressurreição e construção de sentidos. Às voltas com seu fascinante carinho, inteligência, sentimento de homem público – da universidade pública – pude ensaiar minhas andanças pelo cotidiano. Pude ter fôlego em vários afogamentos. Pude deixar cavalo alado, hipopótamo branco, lebre esperta, cachorros do mato, cobras corais, preguiças e ariranhas serem hibridizados em produção acadêmica. A mim foi permitido transcender em língua, fala, palavra, o que é noite pura e/ou é dia claríssimo, sem, outrora, nenhuma possibilidade de tradução. Não se tratava de um combate entre o que se vive e o que se reproduz em códigos lingüísticos. Mas, de ter do lado, em todos os momentos que me dei o direito, alguém que é pura intensidade, cujo conteúdo é a singeleza e que me levou a desejar prestar contas daquilo que, pequeno ou grande, eu mesma podia fazer. É assim...Carlos é unidade singela e complexa. Esse texto de agradecimento não se pretende em moldes acadêmicos. Nem sequer anseia oferecer louros. É mesmo uma declaração de amor, de agradecimento e de reverência ao meu querido amigo. Esse trabalho também é de Carlos Eduardo Ferraço. Não vale por ser bom ou ruim, por almejar aprovação e reconhecimento. Vale pelo caminho, pela viagem, pelos pés dos andarilhos, vale porque é a estrada que importa. Vale por mim, pelos homens e mulheres, meninos e meninas do caminho. Vale por poder compartilhá-lo com Carlos. E por saber que para ele também é isso que importa. Com amor...

AGRADECIMENTOS

“Cada um passa por tantos corpos em cada um”. G. Deleuze O que me afeta é o que me move. Foi a solidariedade de Marisa Valladares e a cumplicidade de Francelle Ferreti que me estimulou o prolongamento. Tinha eu energia quase nenhuma para ir. A força que se encontrava comigo era a da inércia. Compúnhamos, eu e a inércia, um ser de tipo tosco por volta de abril de 2009. Nas mãos, uma pedra olho de tigre que recebi de um amigo querido que mora longe, conhecido como Sete Garfos e o maravilhoso encontro com a querida Marisa que teceu-me uma folha de cumplicidade que me afetou e, por isso, acidentalmente, escancarou uma porta. Marisa é uma das mais importantes intercessoras de meu trabalho; ela e as afetações que me trouxe. Este trabalho até onde chegou é também resultado dessa entrada estranha que continua aberta, derramando, vazando, escapando.

Francelle acompanhou meus movimentos e, na torrente de força que Marisa trouxe, despejou seu carinho ficando comigo acordada, cuidando de meus filhotes-cachorrinhos e tecendo mil olhares de luz em minha direção, obrigada a você, meu amor. Obrigada por me lançar em direção ao melhor de mim. Tantos outros são importantes. Desde o início pensei: “vou escrever os agradecimentos ao longo do tempo para não esquecer ninguém”, mas não o fiz. Tenho medo de esquecer, mas sei que o que se transformou em presente está em meu corpo cuja memória é só intensidade. A eles só posso agradecer e oferecer esse trabalho que é de autoria múltipla, “tantos corpos em cada um”... A meus pais, Sidney e Leila, que talvez sejam os maiores merecedores deste momento porque são do time dos que nunca desistem e mostram que o cuidado é uma porta aberta para o coração; Aos meus queridos irmãos: Rosana, meu par, meu ímpar, por ser tão capaz de fazer da vida um lugar bom de se viver; Cíntia, por sua estranha forma de ser tão fiel e dedicada; a Júnior, pelo socorro e por sua inteligência irradiante; ao Alan, silencioso e sintético, mas sempre presente, a vocês, obrigada mesmo; A Tito, nossa continuidade tão descontínua; A Liamara Cararo, pelo laço eterno, por encontrar o melhor de mim, por ter me ajudado a enfrentar dias tão sombrios com intensidade, por ter aberto caminhos e, por todos os dias, sempre e para sempre; A Helena, por sua fé e dedicação, pelo tempo, por gostar tanto de mim e pela amizade; A Nikita e Pandinha, por todos os dias de gratuita companhia (Se Virginia Woolf reconhecia o amor entre Flush e Elizabeth e Paul Auster, o de Mr. Bones e Willy, por que eu não poderia?); A João Barreto, cuja existência é para mim arte pura de carne e osso, por suas observações criteriosas e brilhantes, por não abandonar minha loucura; A Vanessa Maia, pela austeridade no momento correto, por não dar chances a minha auto-piedade, por aprender a crer mais em sua potência, pelo amor que tenho por ela; A Helder, pela longa caminhada, pela permanência e constância, e Elda, por ter chegado e ficado; A Maria Alayde, pela disciplina, pela companhia nos corredores do PPGE, por abrir as portas de sua casa, pela fé que me trouxe em mim;A Jair Paiva, por suas

curiosas intervenções que me ajudam, a José Américo, Iguatemi, Nelma e Vitor pelos dias de debate nas salas do PPGE; A Cláudio Vereza, amigo querido e bondoso, cuja doçura e calor me fizeram seguir; Aos profissionais do Presta, pela competência, pela ajuda e porque acreditam que das cinzas se faz fogo, especialmente à querida Maruza, por me perceber, me acolher e me implicar; A Rogério, companheiro querido e Valois, “o inventivo”, pela experiência, pelas palavras e por estarem no meu caminho; A Lena Azevedo, por sua paciência, sua sensatez e seu abraço; A Eva e Verônica, cujo sentimento de urgência envergonhou minha complacência com a dor; A Fernando e Wilson pelas discussões acaloradas de inteligência, política e amor; A João Paste, por enfrentar o diabo e permanecer doce; A Mayra, sempre linda, pela beleza com que passeia no meu coração; A Claudinho Rocha, Adriana Machado e Marcelo Ciano por terem me dado o prazer de trabalhar com eles e aprender sobre lealdade; A Marina, Lílian, Lurdinha, Sandro, Dilcéa e João, Lienir, Vanessa, Arlete, Mariana, Elivelton, Iriny, pela oportunidade que me deram permitindo-me não naufragar; A Marinely, Débora e Aline, pelo primeiro trabalho depois da chuva; A Thiago, Adriana, Hérica, Sonia, Jaciana e Eliane, amigos do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência, pelas reflexões sobre violência, sobre vida e resistência, mas principalmente por aceitarem ser uma equipe e experimentar o coletivo em mim, obrigada mesmo; Aos irmãos Rewan, em especial comunhão, Denise, Sandra, Adédio, Clarissa, Vinicius, Igor, Suely, Roulien, Penha, Lucia, por terem ficado ao meu lado e me mostrarem outras vibrações; A Silvio Ramos, pela oportunidade e confiança renovada, pelo carinho, por sua seriedade como homem público; A Karoll, Walter, Paulo, Godinho, Alexandre Wernersbach, ao querido Denilson e à Raquel –que acaba de chegar- por conviverem diariamente com meus humores; A Fernando Liotto, que chegou ao fim deste trabalho, mas o revolveu por inteiro com sua curiosidade, interesse e pistas; Muito especialmente a Fabio que está cravado em mim, Vivi que ouve minhas lágrimas, Ana Claudia que deixa seu sabor à minha vida, Jennifer que olha com força e enlaça, a Priscila que tem a força das águas, a Daniel Rosindo que me ensinou a ficar, a Luiz Claudio que tem bravura e perseverança, a Izabella que ultrapassa meus limites, a Marcio Pavan, o querido chato que alimenta, a Felipe que está na luz comigo, a Leonardo que é corajoso e honesto, a Samuel que me recebeu, a André que multiplica seu som, a Audina que tem um grande coração e a minha madrinha Penha, que não permite que eu me esqueça de mim; A Coordenação do PPGE e professores pela compreensão e aceite ao meu recurso que me proporcionou a continuidade no programa; A Ines, Ana e Robson da Secretaria do PPGE pelos serviços prestados; A Capes pela bolsa; A Beth Barros cuja energia transborda pelos corredores do PPGE causando inveja até a quem deseja não desejar, por suas observações durante a qualificação do meu texto, pelo crédito ao meu trabalho e pela oportunidade de acompanhar, por um tempo, o grupo de pesquisa que coordena;

Ao povo de Beth: Cristiana Bonaldi e Fabio, especialmente, pela força com que me tocam, Nando Chuchu, Arthur e Cida (pelo novo encontro depois de tantos outros), Dani, Jair Ronchi pelos dias de debate, pesquisa e festa; A Leila Domingues pelas dicas e reflexões, por me encorajar, por encontrar as flechas do meu trabalho; A Hiran Pinel, pelos recortes em quadros sobre meu trabalho, dando passagem para um encontro com um estilo de escrever, por me ajudar na abordagem e pela emoção; A Heliana e Kleber por aceitarem a vir na minha defesa apesar das agendas e trabalhos; A todos meninos e meninas, homens e mulheres que vivem e àqueles que morreram assassinados durante esse trabalho, um deles entrevistado, a todos que permanecem, negociam e tentam construir para si um corpo sem órgãos; A todos vocês por terem confiado em mim quando tudo que eu precisava era isso.

Figure with meat. 1954. Francis Bacon

“Todo Homem que sofre é vianda” (Giles Deleuze)

“Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo que nos atinge”

(Nietzsche)

LISTA DE SIGLAS NA - Narcóticos Anônimos OMS - Organização Mundial de Saúde MEC - Ministério da Educação e Cultura EJA - Educação de Jovens e Adultos SEME - Secretaria Municipal de Educação CEBRID - Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicoativas SISNAD - Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas EMEF - Escola Municipal de Ensino Fundamental CPTT - Centro de Prevenção e Tratamento do Toxicômano e Alcoolista SENAD - Secretaria Nacional Anti-Drogas AL-ANON – Associação de Parentes e Amigos de Alcoólicos PRESTA - Programa de Recuperação a Toxicômanos e Alcoolistas COESAD - Conselho Estadual Antidrogas UnB - Universidade de Brasília

SISNAD - Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas

IESBEM – Instituto Espírito Santense Bem-Estar Menor

DST - Doença Sexualmente Transmissível

SUS - Sistema Único de Saúde

CAPS AD - Centros de Atenção Psicossocial para Àlcool e Drogas

APRENDA - Associação de redução de Danos de São Paulo

ABORDA - Associação de Redução de Danos

PRUS - Problemas relacionados ao uso de substâncias

PAI- PAD - Prevenção e Atenção ao Uso de Álcool e Drogas na Comunidade

PROAD - Programa de Orientação e Atendimento ao Dependente

UNIAD - Unidade de Tratamento e Pesquisa em Álcool e Drogas

PSF - Programas de Saúde da Família

UBS - Unidades Básicas de Saúde

EDIB´s - Intervenções Breves

RESUMO Esse trabalho cartográfico tem como espaço o cotidiano escolar e suas ligações rizomáticas com aquilo que se convencionou estratificar como “mundo das drogas”. Trata de um mergulho na superfície de sentidos provocados pelo uso-desuso de drogas dos meninos e meninas da escola de ensino fundamental regular noturno e as modulações que inferem na retina de quem os vê e com eles convive – professores, funcionários, amigos, pais. Pretende essa cartografia migrar nas veias das linhas de fuga que pulsam quando o uso alerta à vida para construir para si um corpo sem órgãos que, ao mesmo tempo, abra mão da vida ressentida e dê passagem à potência. De fluxo em fluxo de quanta os jovens estudantes desfazem a perspectiva fechada das formações, pedagogias e currículos e clamam por novos sentidos para seu corpo-drogado-pulsante. Partem de produções de abertura que caracterizam a experimentação do “vivo”, as doenças do “vivo” para edificação contumaz da “grande saúde”, modulação da vida que deixa fruir a vitalidade e acolhe no corpo a doença-saúde como momentos distintos próprios de quem aceita viver. Tudo há de passar pelo crivo da vida se a disposição for aceitá-la como processo errático. Contudo, não se trata só de resistência ao organismo e à estratificação, mas também de abrir mão da transcendência e da unidade para que nas forças imanentes o corpo-drogado seja capaz de não se lançar ao abismo embarcando numa linha de fuga suicida. Estavam os meninos e meninos infames na porta das escolas, nas clínicas, nos meios-fios, nas beiras do manguezal e, seguindo a trilha cotidiana, tentei lançar um feixe de luz sob essas “vidas cinzas”. A infâmia dos meninos deve-se à lógica de suas experiências que, adversa à informação e opinião moderna, nutre-se de padecimento, vida e paixão e, por isso, não preenche de cores fáceis da tela viril da estruturação racional. Falam da escola, dos gostos e sentimentos, da política e investimento sobre os corpos – a biopolítica. Cartografá-los é, de um modo peculiar, dizer dos investimentos no desejo que geram as representações, das biotecnologias, das propostas formativas fechadas, da escola que não os afeta e apontar um campo fértil onde possíveis combinações de políticas de expansão podem ampliar, rasgar e redefinir o espaço da política. Para isso, políticas estatais de gestão do corpo são reconhecidas em sua contingência e dilaceradas, a todo momento, por movimentos moleculares de expansão da vida, que não podem ser catalogados. São, portanto, políticas da expansão da vida, que acolhem as demandas dos meninos e, sem nomeá-las, vitaliza o corpo vigilante e vigiado por políticas estatais a acionar concomitantemente a máquina abstrata de mutação. Lógicas múltiplas irrigam o cotidiano escolar que, se capazes de distender-se, serão também capazes de positivar as experiências dos usuários de drogas como passagens vitais e, por isso mesmo, eivadas da possibilidade virtual de serem focos de grande saúde. Descritores: usuários de drogas, ressentimento, gra nde saúde, cotidiano escolar, políticas de expansão da vida.

ABSTRACT This cartographic work has as its space the school environment and its rhizomatic relations with that, which conventionally is classified as “the world of drugs”. It is a dive in the surface of the meanings caused by the use-disuse of drugs by boys and girls in a regular evening Elementary School and the modulations that they produce in those who see them and live with them – teachers, employees, friends, parents. This cartography also intends to migrate in the veins of the exit routes that pulsate when the use warns the life to build to itself a body without organs that, at the same time, gives up the resentful life and opens up to power. From flow to flow of quanta, the young students break a closed perspective of formations, pedagogies and curriculums and cry out for new meanings for their pulsating-drugged-body. They depart from productions of openings that characterize the experimentation of the “living”, the illnesses of the “living” for obstinate constructions of the “great health”, modulation of life that enjoys the vitality and welcome in the body the illness-health as proper distinct moments of those who agree to live. Everything will have to pass through the strainer of life if the disposition is to accept it as an erratic process. However, it is not only resistance to the organism and to the stratification, but also to the stoppage of transcendence and of unity so that in the immanent forces the drugged-body might be able not to jump to the abysm in a suicidal exit route. The infamous boys and girls were in front of schools, in clinics, in the sideways, and, following the quotidian trek, I tried to cast some light on these “gray lives”. The shame of the boys is due to the logic of their experiences that, contrary to the modern information and opinion, feed upon the suffering, life and passion and, therefore, does not fill of easy colors the manly canvas of rational structures. They talk about the school, the tastes and feelings, about politics and investments in their bodies – the biopolitics. To map them is, in a peculiar way, to affirm their investments in the desires that generate the representations, the biotechnologies, the closed formative proposals, the school that does not affect them and finally to point to a fertile field where possible combinations of expansionist policies may amplify, tear apart and redefine the space of politics. In order to do this, management state politics of the body are recognized in their contingency and torn, all the time, by molecular movements of expansion of life, which cannot be catalogued. They are, hence, politics of expansion of life that shelter the demands of the boys and, without naming them, vitalize the watchful and watched by state politics that start, simultaneously, the abstract machine of mutations up. Multiple logics fortify the school environment that, when capable to become distended, will be also able of rewarding the experiences of the drug users as vital and, because of that, overflowing with the virtual possibility of being sources of great health. Keywords: drug users, resentment, great health, sch ool environment, politics of expansion of life.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO AO CAMINHOLÍNGUAEXPERIÊNCIA DOS MENINO S- MENINAS

E O USO-DESUSO DE DROGAS(...E A ESCOLA)............ ......................................19

1.1 AS LINHAS POR SI MESMAS: IMPLICAÇÕES DE CARTOG RAFAR NO E O

COTIDIANO...............................................................................................................25

1.2 AINDA SOBRE AS LINHAS: O FOGO QUE COSPE FAGULHA S AO

TEMPO.......................................................................................................................30

1.3 FORJANDO A TRILHA: PRIMEIROS PASSOS NO FOGO... ...........................35

2 MAS AFINAL, QUEM (O QUE? QUAIS?) SÃO ESSES SOB O FOGO?

....................................................................................................................................37

2.1 EIS O FOGO!......................................................................................................38

2.1.1 Acontecimento-tempo-espaço um................ .................................................38

2.1.2 Acontecimento-tempo-espaço dois.............. .................................................39

2.1.3 Acontecimento-tempo-espaço três.............. .................................................40

2.1.4 Acontecimento-tempo-espaço quatro........... ...............................................41

2.1.5 Acontecimento-tempo-espaço cinco............. ................................................43

2.1.6 Acontecimento-tempo-espaço um, dois, três... e o múltiplo do espaço

escolar .......................................................................................................................45

2.2.E SUAS FAÍSCAS, LABAREDAS E CINZAS!............ ........................................59

2.3 RENASCER DAS CINZAS: A CONFABULAÇÃO DA VERDADE SOBRE O

FOGO!........................................................................................................................79

3 DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA: DA DOENÇA À GRANDE

SAÚDE.......................................................................................................................95

3.1 As experiências-calcário e as experimentações-g eo: calcificações,

modulações e passagens............................. ...........................................................95

3.2 Na experimentação, a vibratilidade, a captura, o mal-estar: a vida e doença

através do vivido.................................. ..................................................................108

3.3 Transformar em chama o que somos e o que nos a tinge...........................121

4 POLÍTICAS DE EXPANSÃO DA VIDA NO COTIDIANO: DAND O LUZ A UMA

ESTRELA DANÇARINA.................................. ........................................................139

4.1 POLÍTICAS DE GESTÃO ESTATAL: PRIMEIRO FRAGMENTO , POLÍTICAS

DE PREVENÇÃO NA EDUCAÇÃO E OS JOGOS DE PODER E

VERDADE................................................................................................................154

4.1.1 O cotidiano entre a informação e gestão do c orpo e a lógica de paixão da

experiência: políticas de formação e educação...... ............................................159

4.2- SEGUNDO FRAGMENTO DE PODER E VERDADE: POLÍTICA S DE

ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DO ALCOOLISTA E USUÁRIO DE OUTRAS

DROGAS.................................................................................................................178

4.3 – DISTENDER A LINHA, EXPANDIR O ESPAÇO PÚBLICO, CRIAR A

RESISTÊNCIA: COMO É POSSÍVEL DANÇAR E FLAMEJAR?.... .......................190

5 – FINALMENTE: POSITIVAR A VIDA, DAR PASSAGEM À PO TÊNCIA,

FORTALECER O CONATUS............................... ...................................................203

6 – REFERÊNCIAS..................................................................................................209

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CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO AO CAMINHOLÍNGUAEXPERIÊNCIA DOS MENINOS - MENINAS E O USO - DESUSO DE DROGAS (... E A ESCOLA. ..)

- “Minha mãe é uma panaca. Concorda com tudo que eu faço. Sabe o nome dela? Santa! Não teria nome melhor para ela. Mas, eu paro de beber quando eu quiser. Que doente, que nada! Quando eu tiver 24 anos eu vou parar.” G., alcoolista, 18 anos, estudante do ensino médio, morto em briga por tiros depois de uma festa na Universidade Federal d e Espírito Santo/2002.

Há vida onde parece estar a anunciação da morte? Saúde necessariamente exclui a

variabilidade produzida pela doença? Abrigar as diferenças sob padrões de

normalidade/anormalidade cria estabilidade? Ânsia de receitas para a vida... talvez

todos queiram tê-las.

Dona Santa criou, para manter seu afeto, uma forma de aceitação das ações

cotidianas de G. Ele se entendia potente para controlar seus sentidos e desejos.

Relacionava-se com as variabilidades, para muitos chamadas de doença,

justificando-se ao acreditar no domínio sobre elas.

Tantos outros lidam com a existência de modo parecido: sentimentos fabricam jeitos,

acessos, interrupções – formas de viver que consideram boas para o dia-a-dia. Não

se trata de julgar as escolhas, mas, caminhando entre as pessoas, ouvir delas se

seus modos geram potência, se ultrapassam a cultura do ressentimento e da reação,

se pulsam livremente para outras e outras escolhas necessárias. Tenho chamado

este movimento potente de ‘expansão’; como se fora um pulsar de possibilidades

que se traduzem em caminhos para a vida. Não excluo o direito à morte, mas o

abandono propositalmente.

Tecendo e tecendo, o cotidiano vai processando histórias múltiplas que se cruzam,

se entrecortam, por vezes se assemelham e, por outras, se afastam diametralmente.

É por aí, tateando, que encontro sentidos variados para cada instante.

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Eles e elas usam drogas. Eles e elas observam quem usa drogas. Eles e elas não

estão nem aí para as drogas? E, por aí, vai acontecendo a vida. Foi por entre esses

espaços, tão diurnos para uns e noturnos para outros, que passei quatro anos em

busca de sentir objetos-humanos que gritam e sussurram coisas, sons. Formas

disformes plastam-se/plasmam-se, cotidianamente, em paredes rigidamente

cimentadas, que, ironicamente, não resistem a tempestades - sequer de lágrimas.

Meninos e meninas arrasam noções, ‘certamente estruturais’, sem qualquer

compromisso de deixar modelos nos lugares. E por que haveria o dia de se aliar às

vaidades da linguagem ansiosa? Por que haveria a imanência dos acontecimentos

de acordar-se à transcendência da língua? Pasmem! A vida não duela com o código.

Desdenha-o como que desnecessário, embora o reconheça como pressuposto de

outro grau. Em graus diferentes se tece o caminho, língua e experiência amando-se,

desprezando-se, tornando-se figurações sem figuras (DELEUZE, 2007).

Ouvidos atentos. Fui até a escola buscá-los. Advertência: não ensejava entendê-los

e interpretá-los. A pesquisa não sobreviveria “[...] à tomada de poder pelo

significante” (DELEUZE 1995 a, p.17). Talvez, até porque sequer quis transformá-los

em objetos que, de tão escorregadios e deslizantes, expuseram-me a mim mesma,

revolvendo minha ética própria, minha experiência tão semelhante, tão diferente. Foi

mesmo a multiplicidade que realizou a entrega. Dediquei-me a eles, sinceramente

‘dedicando-me’ a mim. Narradora praticante, essa pesquisa é também e, talvez só, a

minha própria experiência. Se há nela virtudes, deve-se ao fato de que, durante esse

período, ela foi minha resistência, minha forma, minha estilística.

A priori, a escola de ensino fundamental de Vitória, no turno noturno, constituía-se

meu campo de trabalho e pesquisa. Fiz um desenho de percurso entre as escolas

situadas nas periferias da cidade, onde a questão apresentava-se de forma menos

velada, sendo objeto de constantes matérias de jornais. Não fui a todos os espaços

que planejei. Havia dificuldades para o acesso por conta do assunto a ser abordado.

Os disparos apontavam a alvos variados e, para mim, foram indícios de formação de

uma trilha um tanto enlouquecida. Não era um plano seguir trilhas, mas como os

meninos e meninas não permaneciam nas escolas, pensei em acompanhá-los, até

onde me permitissem. As linhas levaram-me a outras e outras. Por vezes, pedi

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socorro ao decalque, que é sempre aquilo que quase se sacraliza, que se faz

hereditário e tem sempre uma explicação inscrita num universo genético-geológico,

mas, não funcionou. Estampado sobre um mapa, que se constituía por arremessos,

o decalque fluidificava-se e eu migrei por uma trilha que se desenhava pelo

lançamento, pela fuga, mas também pela captura e pela estratificação. Penso ser

um mapa do cotidiano, que não se faz como fotografia. O mapa não é um desenho

de localização, nem o cotidiano é um lugar. Não é figura, significado, mas

‘agrimensura e cartografia’: são matérias, relatos, sons de datas e velocidades

diferentes que se agenciam, conforme os movimentos de expansão, numa

multiplicidade... (DELEUZE, 1995a).

Tentei sentir as modulações da distância entre eles e eles, eles e seus professores,

eles e sua família, eles e o equipamento social à disposição do problema que eles

parecem oferecer à sociedade. Modulações que são distâncias e aproximações a

partir das variações. Estamos sempre sob variações e é delas que se modula o

olhar. As continuidades são distâncias entre os olhares, sob as variações e as

modulações, as suas intensidades. Nesse jogo perspectivo, desfazem-se clivagens

abissais entre sujeito e objeto, significado e significante. Trata-se de saber como a

“[...] verdade de uma variação aparece ao sujeito” (DELEUZE 1991, p. 40).

Para sentir os efeitos modulares na formação/educação do menino/menina, segui os

disparos, que logo resultaram em pistas lançadas no cotidiano. Estive em escolas

que me remeteram a outras. Dessas outras, segui às clínicas de tratamento que, por

sua vez, me lançaram em salas de mútua ajuda. Fui às calçadas, quando me

impediram de entrar no espaço físico da escola. Educadores me indicaram projetos.

Não poderia me privar de seguir as linhas, se meu intento era apontar os sentidos

que se produzem nas vidas destituídas da disciplina diária tradicional e

rotinizada pelo uso das drogas . Mas, houve espaços com os quais não consegui

lidar e me abstive de seguir as pistas. Também não pude registrar em gravador a

maioria das conversas. Até mesmo para o registro escrito tive que esperar algum

tempo. De ponta de pés, idas e idas, fui chegando até eles.

Nem sempre cheguei como eu supunha. Gostaria de tê-los achado nas carteiras e

nas bibliotecas. Que fosse nos pátios da escola! Eu os queria aos montes como

acho que são. Mas, não foi assim. De início pareciam objetos raros. Quase nunca

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transpunham os portões. Algo me dizia que não poderia entrar pela porta da escola,

sob pena de não alcançá-los onde eles estariam: como ostras, grudados à margem.

Fazem parte dos movimentos do ecossistema-vida, mas estratificam-se em dutos,

muitas vezes em linguagens petrificadas em si, em signos que não se remetem a

outros. Comunicações sem sons. Eu titubeava entre um ânimo solidário e um medo

aterrador: o que eu iria falar sobre esses que se desintegram à cada toque??

Ao ouvir os usuários de drogas no ambiente da escola e seguir a trilha – o portão

dela, as ‘beiradas’, quem dela se exclui, os pais, aqueles que a recomendam, as

pessoas para quem as drogas anunciaram uma morte-vida, a recuperação, o

Estado, as vozes perdidas - extrapolei o campo, antes delimitado (a

escolaprédiomuro), e desfiz o foco. De certa forma, isso foi como se eu tivesse

aberto mão de um pretenso controle do cotidiano. Mas, na verdade, era o cotidiano

daqueles meninos e meninas que não era simétrico à minha possibilidade

cartográfica.

Os dados estatísticos que uso são apenas portas de entrada para a conquista de

outros terrenos mais arenosos. Não busquei analisá-los como política da verdade e

nem tampouco me pus a digeri-los. São intermediários de conversas, sussurros,

negações e afirmações.

Eu tinha algumas pistas, mas parte delas desapareceu. Eram pistas-informação,

mas que não ressoaram. Por exemplo, eu sabia que a Guarda Municipal de Vitória

possuía um trabalho ou um plano de alcançar usuários de drogas numa perspectiva

de redução de danos. Mas, isso não existia para os meninos/meninas na escola.

Então, era mais um não-funcionamento produtivo. Políticas estatais que faziam

funcionar um modo omisso-produtivo, por que a vida continuava a acontecer.

Também, no começo almejava problematizar o uso do álcool e seus abusos,

especialmente por conta da naturalização do uso desta substância sob a alegação

da repetição e hábito cultural. Mas, duas questões surgiram. A primeira delas é que

o desenvolvimento de dependência a substâncias que alteram o ânimo e humor,

quase nunca se limita a uma só droga. Outra coisa é que o processo uso-desuso de

drogas, na maioria dos casos, tem o álcool como objeto inicial de retomada do uso

após breves ou longos períodos de desuso. Ou seja, na prática, é difícil dizer que

23

alguém é dependente de uma só substância se o uso do álcool, na maioria das

vezes, acompanha todas as outras. Em segundo lugar, a relação das pessoas com

as drogas é ambígua: primeiro, porque a maioria não classifica o álcool como droga:

depois, porque nem sempre há disposição para falar das variabilidades da vida. E eu

não pude (nem quis) ‘classificar’ aqueles que não se vêem nos grupos de usuários.

Contudo, em alguns momentos, falo de ‘adictos’: somente quando usuários assim se

nomeiam.

São adictos aqueles que o dizem e assim se consideram. Há uma escolha pelo

termo ‘adicção’. No Dicionário de Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de

Holanda, adicto tem o sentido de (1) afeiçoado, dedicado, apegado e (2) adjunto,

adstrito, dependente. Há ex-usuários que se auto denominam ‘adictos em

recuperação’ e estão ligados, por opção, a Narcóticos Anônimos, uma associação

comunitária de caráter anônimo, cuja adesão se faz pelo desejo de parar de usar

drogas.

A adicção é um termo cambaleante em sua construção. De cara, parece ter uma

força identitária. Parece ser um portal de resgate, uma explicação para um

comportamento obsessivo, uma forma-padrão de justificar o uso desmedido de

alguma substância, coisa ou objeto. E assim funciona para alguns: é um frescor

saber-se ‘adicto’ quando o pensamento sobre si indica ‘loucura, vadiagem e

imoralidade’! Mas, na verdade, a ‘adicção’ é usada neste trabalho de outra forma. É

como um encontro com outras possibilidades regulatórias, como um cuidar de si,

dobrar-se sobre sua própria força.

O termo indica uma doença. Eu o uso somente na medida em que é uma percepção

de si, do corpo, de modo de ser, somente como passagem de forças outras. Por

esse outro funcionamento, é possível que a adicção funcione com uma

desconstrução de planos eternos, de fardos pesados, de passados ressentidos e

aponte para um outro modo de viver que não seja um escorregador, uma gangorra,

um embarque suicida numa linha de fuga.

O adicto seria aquele que adiciona algo à vida para que ela se torne feliz, prazerosa,

cujo modo de ser funciona no ritmo do consumo capitalístico: sempre há algo que se

reveza no lugar de algo desejoso por substituir. Não há a percepção da produção

24

constante, que é negada em nome de um sentimento de ‘vazio e falta’. Quando

alguém se diz ‘adicto em recuperação’ pode ter nesse sentido admissivo uma

confissão somente, mas, também, liberta outras formas ainda não experimentadas

para além do hábito de ‘fazer uso’, de ‘consumir’. A adicção é um rito de passagem,

mas pode tornar-se um estrato, uma plástica calcária e impeditiva de outro modo de

ser. Para um membro de Narcóticos Anônimos:

“A doença da adicção constitui uma prática obsessiva, compulsiva e egocêntrica que caracteriza uma espécie de servilidade. Essas práticas tornam-se uma doença física, depois de ser uma doença espiritual” (adicto em recuperação do Grupo Jucutuquara de Narcóticos A nônimos) 1

Narcóticos Anônimos (NA) é uma organização mundial, criada em meados de 1953,

embora já se caracterizasse, anteriormente, como um movimento no interior da

organização Alcoólicos Anônimos. Existe hoje em 130 países. Nove grupos situam-

se nos bairros da cidade de Vitória, local de minha pesquisa.2 A adicção refere-se,

também, ao álcool, considerado uma droga como qualquer outra para NA e para a

Organização Mundial de Saúde (OMS). Não me proponho a discutir NA, mas fazer

uso do termo adicção. A irmandade está na minha pesquisa como resultado de uma

trilha. Fui levada até lá.

Enfim, o estudo descartou, de vez, meu intento de abordar somente o uso do álcool

e suas implicações. Tornou-se muito difícil abandonar a questão do uso

concomitante de outras drogas psicoativas, tão presentes na escola, até porque a

questão, na verdade, não era o tipo de drogas ou sua ação biofísica e/ou fisiológica,

mas a produção de seres para quem o efeito-transe-droga tornou-se fundamental,

gerando variadas interferências no processo de vida-educação-escola.

Assim, o que estava valendo como objetivo primeiro do meu estudo era revolver

e produzir, a partir das vivências, um campo de com plexidades tecido no

cotidiano para geração de sentidos , a partir dos quais possa (ou não) germinar

1 Como os sujeitos da pesquisa são, também, autores consultados, suas falas serão dispostas no texto como citações, marcadas com um traço para destacá-las de outras. 2 Ao todo no Espírito Santo são vinte e quatro grupos em funcionamento, até abril de 2009. Os membros de NA aderem a um programa de Doze Passos, que são para eles princípios de orientação individual; Doze Tradições, que são princípios de ‘recuperação’ coletiva, e Doze Conceitos, que são princípios de organização e estruturação de grupo.

25

novas práticas discursivas na escola sobre o uso de álcool e outras drogas,

base para políticas de expansão da vida . Dessa forma, alargando o que se

entende por espaço público, dotando-o da discussão pública do que já é prática de

um grupo – o uso de drogas – penso que forneço possibilidades de expansão de

sentidos e práticas formais no trato com a diferença.

Dito de outra forma: nas pistas do cotidiano, as relações de forças explodem em

uma nova plástica social. A vida, assim vista, libera forças de criação que se

atualizam em relações de guerra, de disjunção, cujos acordos formarão campos de

visibilidade a cada momento histórico. O que ainda quer de si a pesquisa?

1.1 AS LINHAS POR SI MESMAS: IMPLICAÇÕES DE CARTOGRAFAR NO E O COTIDIANO

Não se trata de trazer à luz. O que proponho é fugir do modelo ótico platônico

(PELBART, 1989), dotando de força o pensamento (enunciável) e a prática social

(visível). Não se trata de um referente e significante, mas de palavras e coisas que

se articulam num campo louco de forças, de acordo com um modo de

funcionamento, uma máquina abstrata que vive num ‘entre’.

A vida é ‘produtivamente’ uma fabricação! É impossível estancar as linhas de fuga e

os acontecimentos. E o pensamento é de outra ordem, diferente da vida. Ou seja, e

em segundo lugar, não se trata da velha dicotomia entre a teoria e prática. Discursos

são modos práticos de operação concreta, que realizam dispositivos concretos.

Andando, ouvindo e sentindo a vida dos meninos e meninas, usuários de drogas,

tento falar sobre o que é, ainda, ‘estranho!’, mas como uma relação inesgotável de

forças, cujo resultado é sempre diferença entre elas.

O conhecimento é hostil ao objeto, sempre o agride, indispõe-se com ele, mostra

sua diferença e só no cansaço chega a um acordo. Não há paz quando se quer

definir, especialmente por que não há luta contra o conhecido “[...] é quase

contraditório e absurdo querer tomar por objeto o não-estranho”(NIETZSCHE 2001,

p. 251). É o estrangeiro que nos inquieta, por isso é o estranho sempre o objeto do

conhecimento, não se guarda com ele relação de amor. Os afetos da pesquisa são

26

outros, caso contrário a relação de forças estaria subsumida no resultado que é o

acordo. Assim, aposto na conciliação – um discurso sobre o objeto em construção –

apenas como metáfora, como plástica e aquietação. Só nesta forma os instintos

apaziguam-se e encontram expressão não aniquiladora.

Também não vou buscar interpretação do que está subtendido nas falas; ainda que

haja excesso de ‘indizibilidades’, estas estão maquinicamente operando aflorações,

não se escondem, quando antes, movem os gestos concretos e reais. Foi difícil

escapar da resposta que funcionasse como reguladora e acolher o disparate que

chega junto com a fala desterritorializada.

Falo, então, em terceiro lugar e novamente, de um conhecimento perspectivo, já o

disse, modulado por suas próprias variações: que aceita inúmeros conhecimentos,

sem causa e efeito, que por não querer a origem, escuta as várias linhas/lanças. Por

ser infinito, o perspectivismo somente acolhe, intempestivamente, os conhecimentos

e os põe à luta, ao jogo da existência.

É necessário entender que não se trata de um relativismo vulgar que produz uma

infinidade de sujeitos e um tanto de verdades, mas do radicalismo da produção da

verdade das variações que se mostram delineando provisoriedades de linguagens

que são sujeitos-meninos, sujeitos-nuvens, sujeitos-ruas, sujeitos-educadores,

sujeitos-fluxos, que, por ora, são indeterminados, posto que o que vale é a variação

infinita. Assim, o ponto de vista é apenas o envoltório de uma modulação/variação

que exibe uma verdade a um sujeito, gerando, ao mesmo tempo, sujeito-verdade

provisório. Esse, por sua vez, modula-se em distâncias contínuas e variáveis (nunca

contíguas) numa realidade que se dá somente por meio de variações (DELEUZE,

1991). Mas, enfim, o que quer essa pesquisa?

Tampouco quis julgar. Fiz uma tentativa extra-moral e ambiciosa, necessária para

criar novas palavras para o sentido: ouvir os ditos do cotidiano, as risadas sobre o

instituído (ora! ... também o instituído!), a vida e as serializações, sem atribuir valor

ao valor.

Ainda seguindo a trilha, tive que aprender a ouvir. Muitas vezes, as palavras não

tinham sons comuns. Como optei por chegar na surdina, sem passagem pela

27

hierarquia da escola ou sem motivações oficiais de palestras e questionários

formais, na maioria das vezes, esperei muito para ouvir sobre drogas. Mostrava

reportagens, poesias e músicas a meninos que brincavam ou namoravam, até ouvir

uma palavra sobre drogas. Tive enfrentamentos com o que considerava pouco ou

mesquinho, enquanto via que a força do outro não pode ser valorada sem o risco de

dissecá-lo sob a frieza de um instrumento cortante. Transpus sem muita dor ‘as

cachorras’, as ‘preparadas e popozudas’. Ouvi rap e hip-hop (amo hip hop!) com

emoção.

Quando tudo se tornou muito inacessível, usei da familiaridade com alguns jovens

do bairro em que resido (Maria Ortiz), onde a maior parte desta pesquisa foi

realizada, para chegar a outros na escola do bairro. Sentei-me nos meios fios, nos

bares e nas calçadas das escolas para sentir os fluxos que por lá passavam.

Os espaços pelos quais andei estão rasgados: são sempre descontínuos e estão em

guerra metafórica por outros modos de pensar que não aqueles instituídos. Saberes

sujeitados, insurretos, locais e diferenciais estão por toda parte abrindo passagem

(FOUCAULT, 1999). Ora esmagados, ora disfarçados, anunciam uma história plural

não contada. Diferenciam-se do bom senso, do juízo, do senso comum eivado de

moralidades modernas e trazem narrativas estranhas, esdrúxulas, bizarras ao

julgamento da elegância do racionalismo. São esses espaços que fabricam meu

objeto. “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar

diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é

indispensável para continuar a olhar ou a refletir” (FOUCAULT, 2001, p. 13).

Como pensar diferente do que se pensa? Aceitando a metáfora da batalha por

outros modos de pensar, destituídos de moralizações fáceis. Tarefa árdua que

insiste em observar os efeitos da realidade na produção da subjetividade, sem

atribuir-lhe valores precoces. Que relações de força estão emergindo nos discursos

sobre o uso de drogas?

Cuidado: que posso produzir ao colocar em funcionamento uma economia da

verdade? Se reconheço que estou em campo ‘pecaminoso’, a idéia é deixar emergir

as histórias múltiplas com seus sentidos singulares, sequer privando-as de sua

própria ‘má consciência’, ressentida que seja, mas confessa por si, dita por si.

28

Observo as táticas do poder, não uma aplicação, mas uma historiografia política, de

trânsito e não de depósito.

O poder circula, funciona sem aplicar-se, quem a ele se submete também o exerce,

faz seus jogos, suas trocas, suas armadilhas: constitui um modo de ser, em outras

palavras “[...] o poder transita pelos indivíduos que ele constituiu” (FOUCAULT 1999,

p. 35). Procurei entender como a circularidade é investida, colonizada e utilizada em

momentos sedimentados, ou seja, quais são os jogos que capturam as tramas

infinitesimais em favor de uma lógica que, num piscar também lhe escapa, irrompe

em outra.

Em quase todos os momentos, a circularidade deste poder produziu efeitos sobre o

meu corpo. À medida que ia ouvindo os meninos e meninas, especialmente, mas

também educadores e pais, faltava-me fôlego, como se aquilo se bastasse. Não

consegui escrever ininterruptamente, como há algum tempo atrás. Sentia-me fraca.

Fui (sou), às vezes, um efeito do ressentimento, e em outras, transvaloro através do

texto que para mim é prático-político, é sentimento. Tive raiva, emocionei-me,

esgotei-me. Bebi garrafas e garrafas de café. O mergulho na superfície alterou meu

corpo, meu diálogo, minha escuta e me senti, muitas vezes, débil para escrever,

pesquisar. Também desisti, entreguei pontos, desatei. Encontrei intercessores que

me desataram a garganta e o lápis (muitas vezes escrevo a lápis!). Retomei gerando

letrinhas covardes, outras corajosas.

Por fim, a pesquisa quis operar genealogicamente. Não foi uma busca por origem,

mas a recusa dela, por meio da invenção de modos de novas inserções na história

daquilo que já existe assujeitadamente. Para além dos atavismos e

hereditariedades, mas também por eles, a genealogia parte de um ponto

miscigenado, misógino que não faz emergir uma origem e nem um Eu. Não

reconhece Adão e Eva, não identifica um mal original na maçã ou em Caim.

A genealogia quer o irmão que partiu e encontrou outra terra, da qual todos

desconfiam, mas que, definitivamente, fez habitar o mundo. É em busca dessa

incerteza concreta que se vai, perscrutando o que se fez segredo como mais um

duplo da realidade. Onde se cria o corpo, e o intervém com a história, está a

genealogia (FOUCAULT,1996), mostra um como a ruína do outro. Por isso, ao invés

29

de purezas essenciais e ideais, a contaminação e o nojo. Ao invés das

determinidades e teleologias, o surpreendente ‘efeito da afecção’. Nada de rótulos, a

não ser que sejam caminhos molares, destruídos pela recusa a uma meta-história

‘autosignificada’.

É assim: ao invés de atribuir um gosto hierárquico, uma proteção ao discurso do

usuário de drogas, ele escapa da coerção do discurso formal, especialmente por que

não segue a lógica da operação formal. Está em expansão e não em oposição, em

atividade constante:

[...] a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir destas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprende. Isso para reconstituir o projeto em conjunto (FOUCAULT,1999, p. 16).

Desassujeitar saberes não é dar vozes. Os sons estão ali, basta escutá-los, basta

estar atenta às forças que se relacionam avidamente. Essa atividade de escuta

também é ouvir-se a si: prestar atenção. O cotidiano é, pois, sempre uma operação

de escuta de mim mesma, ao buscar, no cotidiano, os saberes que ali se relacionam,

busco a mim, já que percebo meu próprio assujeitamento no assujeitamento do

outro. Tornei-me “[...] caçacaçador” (FERRAÇO, 2003).

Lancei-me ao cotidiano, certa da minha distinção, mas pronta a não criar

metodologias de controle, não falar sobre, mas movimentar uma série de operações

sem modelos, inscritas no saber ordinário que não almeja a formalização e o

unitarismo. Não se trata de competir com as formas de funcionamento da ciência,

nem de desejar status similar, mas de no/por/entre o cotidiano perceber as

delicadezas realizando deslocamentos variados, testes inconfessáveis, movimentos

bruscos que aflorem muitos sentidos.

Não há limite no cotidiano. Esta tensão estará presente. Não haverá como tratar de

forma finita o que é infinito sem angústia e pecado. Ainda assim, ao narrar me coloco

à disposição de “[...] fazer valer as dimensões de autoria, autonomia, legitimidade,

beleza e pluralidade de estéticas dos discursos dos sujeitos cotidianos” (FERRAÇO

30

2003, p.171). Sou, de algum modo, narradora praticante, dando ao curso do

cotidiano minha própria forma de narrar e sentir.

Caminhar no cotidiano é inventá-lo. Ele não está lá como um dado, mas a paisagem

se faz com o desenvolvimento de um olhar perdido, viajante, meio vagabundo “[...]

passeante ocioso” (PAIS, 2003, p. 51). É, antes de tudo, uma nova construção, meio

que volátil, cuja aparência é sempre uma relação de forças, de contornos que se

desfazem assim que os movimentos se procedem constantemente. Mas, há de ter

uma performance, um nexo que mostre a capacidade do cotidiano, por meio das

falas, dos gestos, do que se consegue dizer.

Nada de evitar os momentos caóticos, nem conter a revolta manifesta no cotidiano,

“[...] mas partilhar dela, integrando redes de relações que aparecem e desaparecem

nos temposespaços subjetivos” (FERRAÇO, 2006, p. 37). Contudo, o objetivo não é

formar um discurso unitário, emancipatório, mas mostrar um campo, certa de sua

infinitude, em que os modos de funcionamento existem e anseiam por outros novos,

que de lá irrompem incessantemente. Não é negar o jogo, pelo contrário, é ser

participante dele, afirmar seu caráter de jogo, oferecendo instabilidade às regras,

desarmando-as para percepção da possível inventividade de outras novas. Assim,

“[...] trazendo muito mais problematizações do que explicações, mais dúvidas que

certezas, pois entendemos que também com dúvidas e incertezas, podemos nos

aproximar da complexidade da educação e, por efeito, da vida” (FERRAÇO, 2006, p.

5).

A trilha era farta, estrada de meio, intermezzo, para produção de políticas públicas

que, penso, só podem ser efeitos, modos de funcionamento tensos para despertar

de novos sentidos.

1.2 AINDA SOBRE AS LINHAS: O FOGO QUE COSPE FAGULHAS AO TEMPO

As linhas de um mapa são conexões que não param de ser conectar. Não são

estratos e hierarquias, mas estes também passam por aí: percepções, mimeses,

escatologias, fluxos e intensidades se confluem e convergem. São níveis

incompletos de pesquisa, sem nenhuma metalinguagem e metateoria. Para

31

continuar combinando o prefixo, são metamorfoses, mas sempre outras, sem

continuum evolutivo, algo diferente da lagarta-borboleta.

Experimentei a fogueira que o cotidiano faz com a unidade, a verdade e a

continuidade, ainda que as mantenha em outro grau, o do microfacismo do código

lingüístico: lá estão intactas unidade, verdade e continuidade. Não são

superposições, idéias-negativas/ideologias. São estratos, rostidades forjadas e

endurecidas em máscaras de ferro que, em momentos abrasivos da vida,

experimentam o fogo. Mas, nada as salva de se solidificarem novamente em

fragmentos plúmbeos sufocantes. Ninguém escapa da vida e de processos que não

estão isentos às coerções da dominação.

Práticas discursivas articuladas em biopolítica cospem pedras, fogos e flores.

Técnicas de individualização e procedimentos de totalização dão a luz a pacotes de

desejos em preto-branco-purpurina (é preciso que sejam desejados!). Mas, como era

de se esperar (ou não?), um êxtase diferenciado, como um modo de ser incômodo,

estoura em processo de criação e a ressentida-solução-equipamento mostra suas

impossibilidades de dominação total. Um modo de vida e de ser por seu caráter de

“[...] reabrir virtualidades relacionais e afetivas [...]” (FOUCAULT,1981, p. 4) quebra a

grade quase exata da instituição moderna e, ‘instituindo novo instituinte’, lança pistas

de um direito de inusitado status: eis que pode aflorar uma nova relação.3

Falo de um devir minoritário que se insubordina à dominação estatal somente

porque é devir e não deseja ser um nada-maioria, nada tem a ver com exclusividade

ou reivindicações. “Não é atingir uma forma (identificação, imitação, mimese), mas

encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação [...]”

(DELEUZE,1997, p. 11).

Essa ‘purpurina’ - brilhos extáticos - no (do) devir, esse mal-estar constante que não

deseja formas (mas que pode cair na rede do mais severo estrato que busca

abandonar), que institui-se em permanente criação, fui buscar entre as cristalizações

cotidianas dos meninos-meninas-corpos-drogados na escola. Por entre as trilhas de

3 Refere-se Foucault a um devir-gay que ultrapassa as definições das práticas-sexuais desejantes próprias ao homossexual. Obviamente como não estou falando propriamente de sexualidade, uso o conceito em movimentação dele mesmo na minha pesquisa.

32

que falei, encontrei, portanto, vida, morte, escola, mangue, sexo, rua, bar, boca,

estado, polícia, liberdades, e, como disse, fui até onde pude.

Dei forma a muitas questões e nenhuma resposta. Não almejei respostas. A

pesquisa ensinou-me a expandir as perguntas, esticá-las em processo criativo. E fui:

o que faz a existência ir ao encontro de substâncias que alteram quimicamente o

humor? O que é alterar-se tanto e perder-se do fio de vontade que levava ao uso?

Como é só querer usar? O que é ser um dependente químico? Que acontece no

espaço entre o desejo e gosto de usar, entre a alegria do uso e a dependência do

uso? O que há quando não mais se pergunta ao corpo sua vontade, por que o

desejo obstruiu-se em si, ele é necessidade, ‘adicto’ da necessidade material do

uso? Como é viver com a vontade embotada, encalhada em si mesma? O que

significa esgotar a vida, submetê-la à sobrevida, cadente pulsação suspirante por

ar? O que institui-se no processo de doença? Como se expande para além das

caracterizações binárias? Como isso tudo acontece na escola-fragmento de vida?

Que efeitos são produzidos, petrificados, dinamizados neste reboliço vital?

Essas questões desfolharam-se em outras, como planta viva, planta-carnívora.

Nessa trilha eu fui atrás de seiva e carne exposta como ‘vianda’: na escola, dos que

dela saíram, dos que ficam na porta, dos pais, dos que educam, dos que

administram, dos que planejam políticas de educação... ver, ouvir, sentir e,

provisoriamente, falar do que pude compreender com minha própria disposição.

Tentei tocá-los com versos, notícias, palavras, olhares, perguntas, por mil entradas,

produzindo mil orifícios e, quantos mais, outros haviam.

A busca de uma quadratura específica não estava em minha proposta, mas a

pesquisa devia ajustar minha relação com a paisagem e com o mundo. Isto pode ser

perigoso na medida em que poderia tomar “[...] a simplificação dos ritmos de base da

temporalização [...]” (GUATTARI,1988, p. 104), eliminando as complexificações

somente para que o que eu diga seja entendido. E daí, como última e exaustiva

ressalva: o diálogo com o cotidiano não é para mim uma tentativa de gerar padrões

de usuários para que as políticas estatais possam mostrar-se eficientes no ‘combate’

às drogas. Por isso, os cenários de ‘gestão de risco’ estão cientes de seu caráter

provisório, contingente e caricatural. Pretendem-se espaços sem fronteiras, cheios

da infinita construção do ‘público’ num mundo colonizado e privatizado. Se falo de

33

políticas estatais que perpassam políticas de expansão, só o faço apenas para

anunciar o ilimitado sentido criativo que habita/flutua na construção de um lugar

(lugar?) ‘público’.

É certo que o espaço dialógico é entrecortado por fluxos que estouram as fronteiras

do diálogo. Assim, o movimento de expansão que arrisco em indicar é uma

acusação às fronteiras, uma esperança às desgastadas políticas de inclusão, uma

denúncia do integralismo estúpido que coesiona multidões de seres-padrões-

máquina social. Aponto para a construção de um corpo sem órgãos, cuja imagem

múltipla e indelével é o movimento e o único resguarde é a prudência enquanto

política estético social.

Veja que não se trata de dispensar políticas sociais, mas de sugerir que os

procedimentos de inclusão caricaturam o diálogo, podendo até ressecar (o que não

descarta as criações outras) a linguagem-experiência que levaria a uma ética para

além dos modelos racionais e funcionais do Estado Moderno.

As relações se dão numa sociedade que necrosa e vive, muitas vezes, de seu

próprio processo de putrefação. Sociedade que desloca, que desordena, mas

precisa acomodar a desordenação em algum lugar modelar, aparentemente rígido -

inventa-se o Estado e as leis, mas aceita-se toda ordenação paralela - como um

‘lixo’ constante, servil (BAUMAN, 2005). Há um lugar para os drogados. Finalmente

e cinicamente, há um lugar para a escória!

Essa economia mundializada – economia também de desejos – produz designações

dinâmicas e multilocais livres de determinações e geradora de auto-limitações:

constrói um indivíduo ficcional centrado em si – eu e ‘mim’, ficção pura! Segundo

Beck (2003)4, uma cosmopolitização banal, carente de reais socialização de

potencialidades de diferenciações.

Uma nova economia dos desejos é também uma nova modulação da linguagem. Em

atrito constante está o corpo vibrátil – à deriva da sensibilidade, cujo existir é afetado

pelo encontro com outros corpos com suas repulsas, amores, afetos e expressões

4 À qual ele antepõe uma possibilidade de individuação rica e destruidora de categorias atuais. Tais categorias constituíam-se base da teoria social até então. Uma vez desfeitas, será preciso rever a teoria social a partir de reais categorias de diferenciação.

34

(ROLNIK, 2006). Esse existir anseia por âncoras que lhe acalmem a náusea do

‘sem-lugar’ ou do ‘todo-lugar’. Desterritorializações constituem, ao invés de

polarizações entre o sem e o todo, num ‘entre-lugares’ nos planos materiais e

imateriais, o que equivale a dizer que o sujeito criado nas ‘Luzes’ do projeto

racionalista se liquefaz a cada novo sentido desafiando a veracidade proposta pelas

teorias essencialistas que sugerem um lugar originário e um sentido primeiro.

O risco funciona como código descritivo-analítico, prático-político, temeroso de

sedimentar-se como nova verdade prático-teórica. A busca de um lugar objetivo e

subjetivo ao sol das certezas contrasta com a dificuldade de ser escória e anúncio

possível de um novo tempo. Daí a questão: a pesquisa não pretende apontar solo. O

resultado será a própria trilha. O cotidiano resulta na acessibilidade ao próprio

cotidiano como solo da vida. Nada há além do que se pode fabricar. A trilha é a

própria fabricação de si e da vida.

O que pretendo apontar está na trilha: é o além-homem que baila como estrela

dançante, abusando da falência das redes! Está inscrito numa nova prudência, num

outro acordo que se revela toda vez que a vida potente toma conta do terreno que ia

morrer. O super-homem/além-homem nietzschiano não é uma prevenção, uma

imagem no espectro, um tipo ideal. É uma ética de crítica afirmativa, não de

enfrentamento, mas de expansão, de descobertas de outras estradas que afirmam

(muito mais que negam) potências, que geram óvulos variados de algo que se

fermenta no novo. Não se trata de embate com um modelo, porque isso é aceitação

de que há um modelo e que a este se deve negar. Trata-se de aberturas que

entendem as massas homogêneas, os efeitos-padrões, como mais um, dentre

tantos. Saio do embate morte-vida, doença-saúde, exclusão-inclusão para um fluxo

vital de grande saúde e expansão de políticas afirmativas.

Trilhando arrisquei proceder através da desconstrução/desobramento. Esse

‘desobramento’ é um não-trabalho. Tal qual Pelbart (1989) na sua análise de

Bataille, à esteira de Blanchot: é necessário aguardar o desfalecimento da obra e

entregar-se ao não-fazer para que a linguagem se constitua, noutros termos “[...]

desobrar [...]”5. Dispus-me ao desfalecimento de minha própria experiência-figura

5 Pelbart dedica-se a análise da produção da palavra poética: uma certa recepção de uma presença da ausência, cujo processo importa em “duas noites”, uma de devoração daquilo que está e é, e outra

35

para o encontro com figurações, um modo de operação de captação de forças

(DELEUZE, 2007). Era preciso desbloquear a tela branca dos seus slogans e

clichês, tal qual Bacon em sua arte.

1.3 FORJANDO A TRILHA: PRIMEIROS PASSOS NO FOGO

Assim encontrei relações fugidias. Iniciei o ‘desobramento’ mesmo sem saber o

modus operandis. No caminho sob o fogo não há uma estrada pronta. Saltita-se

procurando o solo possível. São os saltos que os constituem. O fogo é uma condição

incerta, depende de ventos e da perspicácia de quem arde na sua presença. Sem

esperança alguma de não se queimar, o caminhante clama por um espaço

aconchegante que nunca chega. Foi Caio (nome fictício) de 9 anos, aluno que

abandonou a escola, quando da minha visita ao Centro de Prevenção e Tratamento

ao Toxicômano e Alcoolista de Vitória6, que me lançou, subjetivamente, em fogo.

Não reconheci sequer um móvel, uma parede que seja. Caio me fez desbloquear a

tela branca cheia das minhas histórias:

- “Por que eu tô em tratamento? Ah, tia (rindo) porque minha vida é uma merda! Eu gosto de brincar e não posso porque fico vidrado na meiota e na pedra. Aí resolvi mudar” .

Caio é dependente de álcool e crack7 e, como uma criança supostamente ‘normal’,

cansou-se de não poder brincar. Só isto. Cansou-se. Não pode. Está vidrado. Não é

a morte que ele teme. Só não aguenta não poder brincar. Tramas complexas

mostram-me uma nova plasticidade social. A rigidez dos territórios explode ante as

afirmações singelas: quero só brincar!

Encontrei vida em Caio. Vida sem brincadeira e desejo de vidabrincadeira.

Curiosamente é a vida que vibra em visibilidades mórbidas, avolumadas pela mídia.

do cessar o trabalho, demanchar-se, desobrar, que caracteriza uma experiência limite. De algum modo encontrei na experiência limite da linguagem uma passagem análoga à experiência de uma relação sem anterioridade (do grau de uma relação sem gramática pude ver, deslocando-me uma experiência inaudível e, por isso, irredutível às palavras). 6 Fui até lá entender como a instituição delimitava sua atuação nas escolas de Vitória. 7 Crack é o nome dado a uma substância derivada da pasta da cocaína, a qual se misturam outros agentes. É ‘fumada’, geralmente, numa lata, que funciona como um cachimbo.

36

Ali, no coração da transgressão ela pede passagem: meio sem jeito, acidental,

fazendo alarde ou emudecida.

Foi assim também que cheguei ao cotidiano escolar noturno do ensino fundamental

de Vitória (mas, não estive somente aí), olhando como o medo, a alegria, o susto, a

incompetência, a vontade, a fábrica de sentidos que está no que se chama ‘mundo

das drogas’ chega à escola, tecendo complexos cenários. É possível elaborar

políticas de expansão que dotem de sentido esse espaço?

Só se pode falar de ‘mundo das drogas’ temporariamente, inadequadamente. É de

modos de existir que falo. Este recorte não pode representar uma segmentação

deles. Antes, desejo sentir quantas dimensões se cruzam nessa ‘dimensão’ da vida.

Também não falo como carência sobre a diminuta existência de políticas estatais

para prevenção e tratamento a usuários de drogas que tenham qualquer relação e/

ou passagem pelo/no cotidiano dos usuários, por que a ausência de políticas formais

é simplesmente uma ‘política’, a da existência de políticas sem efetividade e

afetação. Não falta, produz e reproduz a inexistência como modo formal e

institucional de funcionar uma rede de negação e desatenção. E mais ainda, não

proponho tratamento, mas quero entender que equipamentos estão à disposição

quando a escolha é ‘tratar-se’ e que usos os sujeitos fazem destes equipamentos.

Assim, qualquer não funcionamento não é uma falta, mas uma intensa forma de

relações que geram a pouca existência ou inexistência.

Por fim, por meio das presenças-ausências de políticas formais, pude problematizar

o espaço da política como descontinum infinito de produção de modos de ser.

37

CAPÍTULO 2

MAS AFINAL, QUEM (O QUE? QUAIS?) SÃO ESSES SOB O FO GO?

São acontecimentos que forjam fagulhas, meninos, respirações, pais e mães,

pânicos, tios e avós, nuvens, educadores, ventos e mangues. Histórias são

trançadas a partir de muitas vivências. Por segregação e ordenação geram

caminhos por, entre, sobre e sob o uso e desuso de drogas.

Os modos de existência que daí emergem são lapsos do tempo que, somente por

relação com o espaço, podem apresentar-se à língua. Acontecimentos são modos,

formas, pessoas, lugares ou coisas. Podem ser individuações sem sujeitos. Mas,

não se trata de uma representação que se impõe no lugar de, mas que antes mostra

a relação quase óbvia do tempo com o tempo. O acontecimento desliza

sobre/por/entre o sujeito/modo/coisa que ele ocasiona num espaço que se mede por

pura aspiração geológica. É em relação com o espaço que o tempo se torna

passado, presente e futuro. O instante aprisiona-se em unidade, a unidade se

quantifica em números que dantes eram sempre “[...] irredutível quando nele se

pensa e o número é descontínuo quando se constrói” (BERGSON, 1988 apud

COELHO, 2004, p.236).

Ainda que os procedimentos gerem sucessões, os acontecimentos não se separam

dos tempos mortos (DELEUZE, 1992b), indefiníveis, por assim dizer. Não se pode

captar as virtualidades, que se sucedem no instante, sem segregá-las. Por isso

mesmo, o acontecimento é sentido encarnado, mas seu material é da ordem de dois

planos: do sentido e da linguagem (DELEUZE, 2000). O que se vê é o momento da

disjunção, da incorporação do inaudível em som: síntese disjuntiva

(ZOURABICHVILI, 2004). Esse é um portal; o acontecimento encarnado é uma

entrada para o mapa. É um ponto qualquer, uma forma qualquer reconhecível, um

acidente que aponta para desertos secretos e povoados. Desertos silenciosos que

encontram ruídos. Frios que entram em contato com um nível de calor que possibilita

a combustão.

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Combustão. Resultado de energia mecânica sobre um corpo aparentemente inerte,

mas cheio de virtudes à espera de passagem. Basta ativar, basta poder respirar e o

fogo se faz. Fogo é a forma de uma possível combustão que já é passado. Libera

assombros e zumbis que assustam. Podem criar ossatura e serem matéria de outras

formas de existir. O fogo libera seus demônios para criar outras energias na

natureza. Mas, é necessário que os demônios venham cautelosamente para o

mundo dos vivos e passem a habitá-los com outras máscaras, tornando-se o outro

do outro. Nunca mais a mesma coisa.

2.1 EIS O FOGO!

O fogo é um acontecimento. Esses sob/sobre/entre o fogo são o próprio fogo!

2.1.1 (Acontecimento-tempo-espaço um)

São 15 horas de uma segunda feira. Acontecimento-tempo-espaço. Às 18:40 horas,

Maria Alice8 iria para a Escola Municipal de Ensino Fundamental Edna de Mattos

Gáudio, para mais um dia de labuta. Professora, ela havia preparado sua aula

durante o final de semana, ainda que aquilo que lhe era real lhe dissesse para que

deixasse de lado tanta dedicação. Real? Para ela, reais eram os fatos.

Fatos. Os ‘supostos’ chefes do tráfico do Bairro de Jesus de Nazareth teriam avisado

aos funcionários da escola que haveria ‘enfrentamentos’ entre grupos pela retomada

de pontos de comércio de drogas no local. “Sabe como é, bala perdida, coisa e tal”...

narra a pessoa ao telefone, segundo o funcionário.

Fato. Foi suspensa a aula. Toque de recolher ditado por relações de poder que se

disseminam no dia–a-dia de variadas escolas municipais de Vitória. Mix de

autoridade e cuidado, de morte e vida povoa a realidade da ‘comunidade escolar’

erguendo seu troféu de homenagem à impotência do poder público, dos coletivos e

indivíduos da cidade diante do cotidiano urbano dilacerado por fragmentos de medo.

8 Este é um nome fictício com objetivo de preservar o anonimato.

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O dia aconteceu e nem importa o resultado da anunciada guerrilha urbana. O medo

fechou os portões. Mas, quais os efeitos disso? Que novos sentidos se produzem

nesta escola - e em tantas outras - sobre a vida?

2.1.2 (Acontecimento-tempo-espaço dois)

Cinco meses depois. Reverberações da prisão de três jovens na Escola Estadual

Almirante Barroso9, no Bairro de Goiabeiras, em Vitória. Os meninos, dois menores

de idade e um com 18 anos, que ‘brincavam’ de roleta russa com arma, atingiram a

perna de outra adolescente com um tiro de raspão. Na casa de um deles, foram

apreendidas pedras de crack, motivando sua prisão.

Nas imediações da Escola Municipal de Ensino Fundamental Juscelino Kubitschek

de Oliveira, no Bairro Maria Ortiz:

- “Viu o Romário, se f. caiu na armadilha dos rato.” (Sergio, 15 anos); - “Bicho burro, anda armado na pista com a casa embagulhada” (Mario, 16 anos); - “Cara, mas todo mundo usa ali” (Cíntia, idade não revelada, grávida, usuária de crack); - “Só usar não dá cadeia, ele que se lascou por causa da arma. Vamos aproveitar e tomar uma, que é droga leve [referindo-se à cerveja]” (Osvaldo, 17 anos); - “Não bebo” (Mario, 16 anos); - ”Você é um careta mesmo” (Osvaldo, 17 anos, 2007) .

Falava-se por todo canto do gol mil do jogador do Flamengo, o Romário. O ícone

subsumia o time e o país, sob a tensão de uma milésima tacada certeira. Nada se

diz sobre o cotidiano do pop-atleta: ele é a esperança do gol mil somente.

O ‘meu’ Romário, o garoto que aparece em minha pesquisa, também joga bola: seu

dia a dia é povoado por outras coisas que não pedras de crack. Por um acaso eu o

conheço ‘de vista’. Ele dança sobre uma bicicleta, rodopia e agita, assim, seus

jovens sonhos. Foi para a cadeia e lá tudo continua. A vida também pulsa atrás das

grades.

9 Jornal A Gazeta, 13/03/07, pag. 8, que noticia a prisão de Romário dos Santos, 18, morador do Bairro Jabour e estudante da Escola Almirante Barroso.

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2.1.3 (Acontecimento-tempo-espaço três)

Em outra ocasião, sem nenhuma pretensão metodológica, vindo da Universidade

Federal do Espírito Santo, às 21 horas, alguém me chamou: era Sérgio. Ele estava

nas proximidades da Orla do Manguezal de Maria Ortiz, bairro da periferia de Vitória.

Sentados, ele e outros dois rapazes que eu havia visto na Escola Juscelino

Kubitschek de Oliveira. Olhavam o mangue. No chão uma latinha, recipiente usado

para fumar crack. Era ainda horário de aula.

- “E aí, tudo bem? Vi você e resolvi chamar pra ver a gente aqui. Não vai falar que não conversa com noiado10, né?. Você acha que somos marginais?”.(Sérgio, 2007)

Não respondi e devolvi uma pergunta: vocês sentem-se bem?

- “Olha...na escola não tem o que fazer, quero dizer além de aula, aula... Por que, por exemplo o professor não vem aqui pra gente curtir o mangue? Sei lá, sei lá por que tô aqui [riu]. Ah, a gente mesmo podia inventar, né? Sei lá”. (Sérgio, 2007)

Levantei-me, e me despedi.

- “não acha a gente um bando de drogado sem-vergonha, não é?” – perguntou. (o outro menino, 2007)

Disse que não estava ali e em nenhum lugar para rotular ninguém e fui para casa

pensando no mangue, nos meninos e naquela latinha. Objetos de um cenário que

temiam uma lógica de identificação.

Pensei no mangue, no Lameirão, no Canal dos Escravos11, no passeio de barco, na

vegetação para distrair-me da impotência.

10 Nome dado a sensação durante e após o uso do crack.

41

Como dar vida àquela variabilidade sem o peso dos padrões e nomenclaturas?

2.1.4 (Acontecimento-tempo-espaço quatro)

Eles estavam em turma: duas garotas e um menino. Cheguei junto com um dos

garotos da vizinhança, sem o qual não teria acesso àquele grupo. O meu condutor

de 15 anos era também ‘vapor’, como é chamado o vendedor de droga. Beirando o

manguezal eles iam para escola. Eu estava com uma figura impressa de um quadro

de Paul Klee na mão, propositalmente.

Nervosa, avancei arrastando o corpo como se quisesse desistir como sempre

acontece toda vez que enfrento meus limites. A todo momento penso que vou

emudecer.

Figura 01 – figura de quadro de Paul Klee

11 O lameirão é uma Estação Ecológica com solos de restinga, criada para proteger o ecossistema e os recursos naturais da área. É berço de espécies variadas, garantindo subsistência para várias famílias de pescadores. O Canal de Escravos é um caminho, segundo se diz feito por escravos por dentro do mangue para passagem de mercadorias. É possível contemplá-lo num passeio de barco que sai do bairro Maria Ortiz.

42

A conversa começou sem entremeios:

- “Tão indo onde?” (questionou o garoto que me acompanhava). - “E aí?! Pra escola ué” (menino, 15 anos, ia para a EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2007) - “Vocês também?” (Olhou para as meninas.)

Uma delas prontamente perguntou por que e se havia outro “rock”.

- “Aí, que onda, to levando a tia pra fazer uma tal de pesquisa...”

Olharam-me com desdém. Sequer desconfiança despertei. Não sabia como fazer.

Sempre que chegava até eles parecia a primeira vez e me destituía de qualquer

propriedade sobre o assunto que queria atingir. Então perguntei, imediatamente, se

eles gostavam da escola e se eu poderia anotar as respostas – até eu tive vontade

de rir da ingenuidade da pergunta que mostrava o deslocamento que se repetia. No

ápice da falta de jeito, o impresso colorido Paul Klee caiu no chão, quase perto de

uma poça de água.

- “Que é isso? Poxa, que cor irada! Parece uma viagem. Olha aí, o cemitério, um olho. Caralho”! (menino, 15 anos, ia para a EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2007) - “Você gostou?” Perguntei. - “É viajante.. mas, o que mesmo que você quer saber?” - “Se vocês gostam da escola? Mas, deixa pra lá.” Voltei-me à figura. - “Parece uma viagem???” arrisquei.

Ele olhou para o garoto que me acompanhava que disse que ‘estava liberado’.

- “Viagem de pedra”...[riu]... “Se eu pegar uma tinta quando tiver noiado faço quase igual”, respondeu. - “Faz nada”, disse uma das garotas. - “Olha a do cara”, disse ele.

E eu anotava, quando fui interrompida pela mão dele no meu caderno:

43

- “Ei você não é X9 é??”

O garoto que estava comigo chamou-lhe a atenção e ele me pediu desculpas.

Afirmou que ia terminar o ensino fundamental, o médio e depois seria arquiteto.

Foram embora para escola e os vi, adiante, pegando a droga com o garoto que me

acompanhava. Dificilmente chegariam à sala de aula.

Sentei-me e fiquei olhando o quadro de Paul Klee no papel. X9. Mangue. Klee.

Arquiteto. Lata. Crack. Saia curta. Aula. Livros. Klee. Caderninho para cartografar.

Poderiam essas coisas compor um mapa? Que composição poderia ser parida disso

tudo? Pareciam elementos correndo por todos os lados, escapulindo.

Eu não me lembrava porque havia convocado Klee para aquela conversa, mas, ao

olhar o quadro, sem nenhum saber específico sobre arte, deixei-me afetar. As cores

inundavam a minha cabeça, ocupavam meu corpo e corriam nas veias. Eu era só

tinta e intensidade das cores Klee, luzes Klee, movimentos Klee. De repente, me vi

luz, cor, sombra, olho, cemitério. Meus membros todos eram tela, movimento... e se

esticavam até se desfazerem. Havia uma frase: “O movimento é a base de todo

devir”. Era Klee em mim, por mim, me salvando de cristalizar e de perder as

esperanças. Klee expressionista, barroco, pictórico, de Klee a Kandisnky, dele a

Michelangelo, dele a Goya. Não sabia nada sobre nada disso. Entrei nas telas e elas

se desfizeram, tornaram-se outras com a minha passagem-presença. E assim,

passei. Fui.

2.1.5 (Acontecimento-tempo-espaço cinco)

Conheci ‘meninos-vapor’, ‘meninas-avião’12. Tinham eles as suas ‘leis’ e, a cada

incidente, quando, por exemplo, era assassinado alguém que não era quem havia

sido ordenado, novas leis eram inventadas. Códigos móveis.

O tráfico de drogas constrói suas ‘leis’ fortalecendo, aparentemente, uma

necessidade de ordenação. O álcool mostra-se parceiro nesse caso, reservando aos

12 São assim chamados os transportadores de drogas nos bairros.

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usuários uma espécie de ‘local da escória’ – os vagabundos, os pés-inchados, a

‘puta’, ‘os bonzinhos, mas sem-vergonhas’.

- “O pessoal que bebe muito é mais velho, já fica lá, [apontando pro bar], desde a manhã até a noite, a gente bebe socialmente” (Moacir, 2006, com uma latinha de cerveja na mão, EMEF Juscelino Kubit schek de Oliveira). - “Ela é puta, mas parece que ficou assim por causa da cachaça, é boazinha, mas não tem vergonha de viver assim” (o mesmo).

Fui até ao bar, nas proximidades da escola, onde encontrei vários alunos, numa

quarta feira, e perguntei às duas outras pessoas que Moacir apontou, depois de um

papo, há quanto tempo bebiam:

- “Desde o ventre, minha filha, isso é bom demais!” (senhor de 59 anos, desempregado). - “Eu, desde os 23, gosto de beber!” (senhora de 45 anos, alegando ser doméstica e ter outra profissão nas horas vagas, so bre a qual não quis falar).

Fiquei pensando no bêbado, na bebedeira, na dormência. Lembrei-me que, quando

tinha mais ou menos dez anos, ouvi meu avô cantarolando uma marchinha,

enquanto caminhava até o banheiro para fazer a barba, com uma navalha bem

afiadinha:

“(...) pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, pode me faltar manteiga, e tudo mais não faz falta não,

pode me faltar amor, disto até eu acho graça, só não quero que me falte a gostosa da cachaça”.

Minha avó o repreendeu dizendo que tomara que ele cortasse a língua com aquela

navalha. Num descuido, mais tarde, no quintal da casa de vovô, em São Gonçalo

(RJ), eu repeti a música. Mais que depressa, minha mãe chamou-me a atenção para

a letra, dizendo que devia ser muita tristeza não ter comida em casa por causa de

‘cachaça’. Nunca mais cantei aquela marchinha, mesmo depois de adulta. Mas, as

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palavras ouvidas na infância tornaram-se ocas. Só muito, muito mais tarde foram

doer em mim.

2.1.6 (Acontecimento-tempo-espaço um, dois, três... e o múltiplo do espaço escolar)

As práticas cotidianas ao se produzirem e reproduzirem mostram à minha

displicência que os usuários de álcool e drogas são também fragmentos do cotidiano

e estão ali dispostos. Talvez tenham sempre estado e o olhar congelado de tantas

pesquisas os deixaram anônimos, fazendo do descuido o dispositivo de poder que

os articulam. Mas, agora o custo reverte o jogo de poder e uma nova ‘verdade’ se

institui: a dependência química é um ‘problema’ para educação e de saúde pública.

As vivências do e no ensino noturno regular da rede municipal de Vitória são um

terreno de fertilidade. Por sua multiplicidade e complexidade, é possível que os

encontros fronteiriços entre o tempo e o espaço gerem plasticidades curiosas. A

escolha pela fabricação desse local de pesquisa deve-se a isso. Os

‘habitantes/flutuantes’ são vários. Muitos deles são números da evasão escolar e do

baixo rendimento. Outros são ‘os indisciplinados’ e ‘os desagregados’. Estão nos

portões, não entram nas aulas, estão nos bares ao redor. São também os pais de

alunos, que aparecem ocasionalmente ou em dias de festa do ano letivo. Estes

‘habitantes’ são os educadores e educadoras certos e incertos de si, ‘o pessoal’ da

Secretaria Municipal de Educação, que elabora políticas de educação. Também

aqueles que se dizem ‘em recuperação’ (em tratamento por conta dos efeitos da

dependência química), aos quais fui remetida, são sujeitos da pesquisa. Estão aqui

os quase ‘calados’, como se nada lhes acontecesse. Não cabem nas medidas,

alteram-se nas aulas, agridem, dormem ou mesmo cumprem regularmente suas

obrigações. Ao incomodar, revelam sua existência e despertam temores que logo

aguçam a escuta dos conceitos céleres em nomeá-los. Encontrei esses e outros cujo

‘aparecimento’ foi produto da contingência e da sensibilidade da minha escuta.

Os estudantes do ensino noturno, segundo as falas dos educadores, são cada vez

mais jovens, questão que mobilizou a Secretaria Municipal de Educação na

46

discussão sobre a idade mínima de ingresso. Dizem que são alunos vindos do

ensino diurno, por ‘expulsão’ motivada, geralmente, por pendências disciplinares. A

escola tem autonomia para encaminhar esses, que são classificados como ‘de

comportamento difícil’, para o noturno. Também, ao completar quinze anos, são

incentivados e, coercitivamente, induzidos a se transferirem para o noturno ou

acabam integrando os índices da evasão escolar. Na maioria das vezes, esses

alunos integram o segundo segmento (correspondente a 5ª a 8ª séries) do ensino

fundamental e se inserem no espaço urbano, trazendo a diversidade e a

complexidade próprias destes ambientes, além da precoce entrada no mercado de

trabalho.

Esses alunos são, também, os desempregados e empregados sem acesso à escola.

Por questão de sobrevivência, estão à procura de emprego. Alguns são pais e mães,

jovens inseridos precocemente no mundo do trabalho. De alguma forma são os

chamados ‘excluídos’ e ‘marginalizados’. Diferente de outros jovens, que frequentam

regularmente a escola, trazem experiências variadas com o mundo, além de

particularidades sociais e diferenciações etárias.

Quando adultos, os estudantes do ensino noturno vêm em sua maioria da zona

rural, segundo funcionário da Secretaria Municipal de Educação, e tiveram

obstáculos para concluir a educação formal na infância, “[...] filhos de pais

analfabetos, que exercem atividades profissionais pouco qualificadas e buscam a

escola para alfabetizar-se e concluir o Ensino Fundamental” (funcionário da SEME,

2005).

Há uma questão contraditória bem presente no ensino noturno em Vitória: um

grande índice de evasão e uma busca insistente por vagas, tendo em vista que há

idade máxima para matrícula nos turnos matutino e vespertino. Tudo isso esbarrava

na ausência de oferta da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), cuja

implantação só começou a acontecer em 2007. Durante oitenta por cento da

realização deste estudo, espaçotempo em que, inclusive, aconteceram quase todas

as entrevistas, ainda não havia ocorrido a implantação.

Um Seminário Estadual de EJA, realizado em 2007, mostrou a pluralidade de

modalidades existentes no estado para oferta de ensino noturno:

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[...] Suplência, Semestralidade, Ciclos, Regular Noturno, Noturno Regular e, finalmente, a modalidade EJA. Em nosso olhar, essa pluralidade de terminologias não possui clareza semântica e esvaziam a EJA de seus significados que lhe conferem o estatuto de modalidade da Educação Básica: suplência confunde-se com semestralidade, que se confunde com ciclos. À noite, o Ensino Fundamental pode se apresentar sob a forma de Regular Noturno ou Noturno Regular. E há ainda a modalidade de EJA que muitos municípios implementaram ao declarar seus alunos no Censo Escolar como jovens e adultos, mas que o fizeram apenas formalmente, sem que o processo de sua implementação fosse acompanhado de uma discussão que pautasse a concepção da modalidade EJA (Proposta de implementação da modalidade EJA no município de Vitória, dezembro de 2007).

Até recentemente a rede municipal de ensino de Vitória ofertava ensino noturno em

todas as escolas: eram cursos anuais e ensino supletivo. A partir de 1998 reduz-se a

oferta e, em consequência, há um significativo aumento da procura. No final de 2006

dezenove escolas da rede municipal ofereciam o ensino noturno. Até o ano de 1998

era ofertado em forma de cursos regulares anuais, através do Sistema Municipal de

Ensino de Vitória por todas as suas unidades escolares – trinta escolas. A Lei

nº4747/98 determinava, também, que o Ensino Fundamental Regular Semestral

Noturno fosse semestral, oferecido em oito semestres letivos.

A partir de constatações de problemas relacionados ao conteúdo e rendimento

escolar, representantes de alunos, educadores reunidos em seminários – em julho e

dezembro de 2005 – e profissionais da Coordenação de Ensino Noturno discutiram e

elaboraram o Projeto “A Educação de Jovens e Adultos no Ensino Noturno Regular”,

que aguardava a aprovação final do Conselho Municipal de Educação. Na verdade,

essa aprovação ainda não aconteceu (dezembro de 2008), mas a modalidade de

EJA já é efetiva em grande parte da rede municipal. O projeto estrutura o ensino em

seis anos para o cumprimento do ensino fundamental – três anos para o primeiro e

mais três para o segundo segmentos denominados, em ambos os casos, de inicial,

intermediário e conclusivo.13

Enquanto isso, o ensino regular noturno foi implantado a partir de 2006, como

projeto experimental, com a aprovação do Conselho Municipal de Educação no final

13 De acordo com o projeto, o aluno retoma sua escolarização na mesma estrutura que iniciou. No ano de 2008, foi finalizado o ciclo nos dois segmentos, já que o projeto começou no ano de 2006. As escolas que optaram pela modalidade de EJA em 2008 foram recomendadas pela Secretaria Municipal de Educação a manter as turmas do Conclusivo na estrutura de oferta do projeto de 2005.

48

de 2007. Por causa disso, a Coordenação de EJA considerou esse projeto como

transição e preparação para implementação da modalidade na cidade de Vitória.

O projeto de Ensino Fundamental Regular Noturno implantado se baseia na

articulação de princípios que assegurem a qualidade e a organização desse ensino

para os jovens e adultos a partir de quinze anos. Para isso, segundo a

Coordenação, é necessário primar pelo atendimento, mas em atenção à realidade,

destacando particularidades como as questões do mundo do trabalho, da cultura, da

saúde coletiva e engajamento social.

Uma leitura dos princípios estruturadores – o trabalho coletivo docente; a formação

do educador; a construção do currículo em movimento; a educação inclusiva e a

avaliação emancipatória - nos permite afirmar que a construção hierárquica do

conhecimento gerou fragmentações anteriores, especialismos e disciplinas que

acabam por reafirmar a segmentação e dificuldade de uma leitura mais articulada do

real. Assim, primar por um projeto educacional inserido na realidade é também tarefa

de reconstituição de sua leitura por meio do entendimento de sua multiplicidade e

complexidade. A fundamentação teórica desse projeto está assentada nos princípios

estruturantes de EJA, o que fez com que a modalidade não encontrasse maiores

obstáculos para iniciar e continuar sua implementação, a partir de 2007.

Na verdade, o documento “Proposta de implementação da modalidade EJA no

município de Vitória” afirma que o projeto de 2005 “[...] lançou as bases para que os

docentes do Ensino Noturno de Vitória se familiarizassem na prática com a

modalidade EJA. Isso ocorreu na medida em que o projeto aponta flexibilização da

oferta, tempos e espaços coletivos de discussão docente e uma estrutura de

atendimento mais adequada aos tempos dos educandos”. Mas, há também

contradições no que diz respeito, por exemplo, a aplicação de frequência: na

estrutura regular, há menos flexibilidade para o atendimento de demandas

específicas de alunos típicos de EJA. Já no projeto de EJA a legislação prevê

variedades na oferta de formas de freqüência. Pautas como estas estão em

discussão na transição do ensino fundamental regular noturno para a

implementação de EJA, nas dezesseis escolas do sistema que assim optaram.

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O ordenamento jurídico de EJA constrói possibilidades de maior flexibilidade na

construção pedagógica. Sendo a Educação de Jovens e Adultos uma modalidade,14

possibilita a educação a jovens e adultos “[...] com características e modalidades

adequadas às suas necessidades e disponibilidades [...]” (artigo 5º da Lei 4747/98)

garantindo acesso à escola e permanência nela. Assim, a municipalidade deve se

preocupar com o acesso, mas também com a permanência do alunado, o que está

expresso na metodologia da Educação de Jovens e Adultos.

O Capitulo II da Lei de Diretrizes e Bases, que versa sobre a Educação Básica,

discute também, em uma de suas seções, a educação de jovens e adultos, como

uma modalidade da educação básica com características próprias, assegurando a

necessidade de desenvolver metodologias que garantam ao cidadão o direito à

escola.

Contudo, ‘acesso e permanência’ não se constituem em preocupação somente do

ensino noturno, já que há contratos de trabalho por escalas que impedem o cidadão

de ter frequentar a escola em horários variados. Contudo, a minha pesquisa está

limitada ao ensino noturno e não cabe aqui, por ora, problematizar as dificuldades de

implantação de EJA, também no diurno.

Desde o projeto de ensino fundamental regular noturno, há a preocupação com a

estruturação do atendimento e metodologia. Em todas as unidades escolares que

ofertavam o ensino regular noturno, o projeto previa que das 17:30 às 18:40h, em

dois dias na semana houvesse a capacitação de educadores e, nos outros três dias,

das 18 às 18:40h, seriam desenvolvidas atividades curriculares complementares,

conforme o planejamento da instituição: discutia-se a intervenção do aluno na

comunidade, reforço, oficinas de trabalhos artísticos e manuais, etc. No entanto, isso

nem sempre acontecia.

- “Estes espaços são subutilizados, esperando a chegada das alunas, conformando atividades sem sentido para os que ali estão. Tem gente que fala que na escola dele funciona, mas na minha....” (professora que estava na SEME quando da minha ida lá em novembro de 2006) .

14 É uma modalidade, segundo o Plano Municipal de Educação e a Lei 4747/98, que institui o Sistema Municipal de Ensino.

50

No cotidiano escolar, aquilo que é prescrito confronta-se com práticas arraigadas e

negociadas, estabelecendo paradoxos diários:

- “... a partir do momento que o sistema implementa junto às escolas, mesmo que tenha sido construído coletivamente (por professores e profissionais da rede) durante o ano de 2005, a partir do momento que a Secretaria implementa e leva para as escolas a proposta ele é uma situação imposta pelo Sistema e, portanto, os professores que não participaram e mesmo os que participaram e não compartilhavam com a idéia tentam desestabilizar toda esta situação de implementação do projeto.” (Indiomara Sant`Anna, Coordenadora do Ensino Noturno da Secret aria Municipal de Educação, 2006)

- “O projeto é bom, precisa ser mais discutido, mesmo que a gente tenha participado precisa de renovações, de novas coisas... A Seme parece que estaciona“ (professora, 2006).

As mudanças provocaram desacomodações que, reativamente, alojam-se nos

discursos carentes de tutela. Nos campos empobrecidos da reação, a criatividade

assume plano secundário e a pluralidade torna-se problemática. Desta feita, as

professoras negociam de outras formas no seu cotidiano. A própria retemporalização

do dia letivo exige novas aplicações, mas, nem sempre dispositivos de inovações

são colocados em funcionamento.

- “(...) eu já tinha uma estrutura de organização dos conteúdos muito mais determinada, hoje eu tenho uma outra organização do tempo e espaço escolar. Então, nós reestruturamos de quatro semestres para seis anos e aí organizar novas possibilidades de ensinar novos conteúdos, novas estratégias para um ano de trabalho é mais complicado pela cultura que nós temos de trazer isso pré-determinado, apesar de que o projeto prevê momentos coletivos na escola, então nós temos semanalmente esses momentos e nós temos em cada dia uma hora de dez minutos de trabalho coletivo de todo turno e que em muitas escolas isso não é aproveitado (...) temos três momentos que são de atendimentos individuais ou para desenvolvimento de projetos coletivos e que as escolas não dão conta da importância destes momentos para conquistar os alunos e que por não ofertar esses momentos, o aluno começa a desistir.” (Indiomara SantÁnna,2007). - “...a gente tenta novas metodologias, mas sempre encontra uma realidade muito difícil, como a falta de vontade dos alunos”... “olha, eu adoro o noturno, a partir das realidades deles eu faço as minhas aulas, vou costurando. Sei que tem muita angústia minha ali, mas tem coisas boas”... “espero o dia em que vão olhar melhor pro ensino noturno” (professor da rede municipal, 2007).

51

Os profissionais que atuam no noturno, geralmente também lecionam no diurno e

trazem consigo a experiência educativa, as práticas e as metodologias que devem

‘fazer funcionar’ um espaço socialmente diferente e mais contingente. Daí resulta um

contínuo esforço que fabrica o ‘não-desejo’, a transformação da virtual fertilidade em

problema, medo e frustração.

- “Os profissionais que atuam no diurno e que não utilizam nenhuma metodologia e recurso didático diferente para atuar com estes alunos que são jovens e adultos expulsos e/ou por muito tempo de não freqüência a escola. Eles não utilizam outras metodologias, outras estratégias, outras possibilidades de trabalho. Nós temos uma realidade de alunos que não desejam estar neste espaço e de profissionais que também não desejam estar neste espaço, estão lá por contingências, alguns poucos apresentam o empenho e a vontade de lidar diferente. Então a busca, por exemplo, pelo livro didático para ver o conteúdo que eu vou trabalhar do início ao final para não sair daquele roteiro e não correr o risco de alguém me dizer que eu tenho culpa do não aprender, da desistência deste aluno também é uma situação que a gente vive” (Indiomara Sant`Anna, Coordenadora do Ensino Noturno da Secretaria Municipal de Educação, 2007). - “É difícil trabalhar a noite, não temos apoio, o medo ronda e poucos recursos. Temos um conteúdo a aplicar e necessidade de mudar as formas” (professora da EMEF Vercenílio da Silva Pascoal, no Bairro Joana D´arc, 2007). - “Diversifico a metodologia, mas o trabalho maior deveria ser da Secretaria de Educação que deveria criar mais formas de combate às drogas: outros ambientes culturais, etc” (professora da EMEF Suzete Cuendet, no Bairro Maruípe, 2007).

A multiplicidade continua a desafiar a educação e sua capacidade instituinte. O

espaço é incontrolável. A intensidade encara a dedução. E daí? Qual o ‘destino dos

indisciplinados’? O que fazer de um projeto que toma corpo destituído de vontade?

Como lidar com as disparidades, as ‘verdades’ em risco?

- “Eu acho difícil demais trabalhar com o menino que usa drogas. Ele não quer nada, atrapalha muito, mas precisa de ajuda” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2007). - “Esse não é um problema nosso. Onde está a policia? A saúde? Tudo temos que resolver?” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2007) - “Chegou à escola é nosso problema, mas meu lema é o seguinte: dentro da escola não compra nem vende. Se não posso ajudar, também não vou permitir que atrapalhe”. (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2007)

52

Sai nesse dia da escola pensando na impotência, pelo menos aparente daqueles

professores. Era como se eles não pudessem fazer nada. O rotineiro os surpreendia,

o desconhecido assusta e resolve que ‘as drogas não são um problema da

educação’. O fato é que afirmam que ‘sozinho’ não é possível... Lembrei-me também

de algumas mães que entrevistei que alegavam que se não vissem a droga, não

podiam dizer que seus filhos eram usuários. Elas alegam que a escola deve cuidar

disso e que fazem o que podem:

- “A escola precisa ajudar a gente a ensinar o certo e errado, é o segundo lar. Eu já não aguento mais. Ele (o filho) agora mora sozinho embaixo da minha casa. Não sei o que se passa lá. Faço meu papel de mãe: lavo, passo e entrego a ele”. (mãe de usuário e vendedor de drogas no bairro Maria Ortiz e aluno EMEF Juscelino Kubitschek de Ol iveira, 2007)

A escola é o segundo lar? Que é um segundo lar? É um preposto para ‘correção’?

Como estar nesse lugar sem ser a continuidade de práticas tradicionais de

sustentação do comportamento do usuário?

Hoje (inicio de 2009)15 são dezesseis escolas que ofertam a modalidade de

Educação de Jovens e Adultos. Apenas três - a Escola Municipal de Ensino

Fundamental Juscelino Kubitschek de Oliveira (no Bairro Maria Ortiz), a Suzete

Cuendet (no Bairro Maruípe) e a Neusa Nunes Gonçalves (Bairro Nova Palestina)

que oferecem ensino regular noturno. O atual coordenador da modalidade de EJA

afirma:

- “Se há diversidade do sujeito de educação para jovens e adultos, acho perfeitamente normal haver a diversidade de oferta. Vejo com bons olhos algumas escolas oferecerem o ensino noturno regular” (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de EJA, 2009).

A implantação de EJA esbarrou em práticas tradicionais somadas à inexperiência.

15 Voltei à Secretaria Municipal de Educação antes da entrega deste trabalho para averiguar a escala de implementação do projeto.

53

- “É realmente difícil implantar a modalidade quando o sistema de ensino não tem clareza. Encontramos dificuldade de encontrar o perfil docente para trabalhar com adultos. Nossas práticas ainda são infantilizadas, sendo difícil construir consonância com a proposta. Muitos associam o ensino noturno à correção de fluxo e ao supletivo” (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de EJA, 2009).

A Educação de Jovens e Adultos busca na experiência cotidiana das camadas

populares - de onde são supostamente oriundos os ‘sujeitos de EJA’ - seus

princípios norteadores. Trata-se de referenciar o saber popular e, por ele e a partir

dele, criar uma nova práxis pedagógica que tenha por objetivo a transformação

concreta da realidade (FREIRE, 1983).

Por ser uma construção que parte da experiência concreta dos sujeitos, a EJA

flexibiliza os tempos, de acordo com a experimentação e aplicação de sua

metodologia. A noção de tempo e frequência leva em conta as modulações de

tempo reais para os sujeitos da aprendizagem:

- “Há um ordenamento jurídico específico que permite as modulações, as invenções e inserção real de quem foi excluído do projeto de ensino regular” (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de E JA, 2009).

As aulas dos alunos de EJA acontecem de segunda a quinta-feira, num período de

três horas e vinte minutos diários, com direito a atividades curriculares

complementares facultativas para orientação de estudos, no horário de 18 às

18h40h. Na sexta-feira os educadores planejam coletivamente. Esses espaços de

orientação permitem o desenvolvimento de conhecimentos inter e transdisciplinares,

além de experimentações diversas.

É importante destacar que os conteúdos estão organizados no currículo em

movimento a partir de Unidades Conceituais: ciência; cultura, trabalho e

engajamento social; democracia e poder; gênero e etnia. As disciplinas, que daí se

constroem, são distribuídas nas três etapas: inicial, intermediário e conclusivo, no

primeiro e segundo segmentos do Ensino Fundamental.

54

O currículo em movimento pressupõe que os conteúdos sejam experiências de

diálogo entre os saberes e destes com os saberes dos educandos de EJA. Os eixos

articuladores ou unidades conceituais promovem a transdisciplinaridade e propõem

a geração de práticas conjuntas e parceiras entre os professores. Para isso,

professores de áreas afins podem criar campos de problemas e organizar conteúdos

de acordo com a experiência escolar, a partir de duplas ou agrupamentos de

professores em sala de aula. Contudo, na realidade, as dificuldades surgem ao

intercambiar o conhecimento e metodologias tradicionais com as propostas em

construção.

- “Alguns professores acabam por fazer dos trabalhos em duplas um revezamento de ausências e presenças na sala de aula. Isto viola grande parte da proposta de currículo em movimento. Também algumas afirmações como - não quero dar aula no primeiro segmento porque não sei alfabetizar- mostram a inadequação a uma proposta que não enrijece os conteúdos e nem os divide de forma serializada, mas que ainda não é de compreensão de todos os educadores” (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de EJA, 2009).

Mas o investimento em formação do professor é o que mais auxilia na implantação

da modalidade. Quatro escolas da rede municipal participam, às sextas-feiras, de um

processo de formação que prevê a discussão das dificuldades encontradas no

exercício pedagógico. Nesse espaço são discutidas as dificuldades da

implementação da modalidade. No início de 2009, a discussão era sobre a

importância do trabalho em duplas para o currículo e as dificuldades nesse exercício.

O fato é que, quando a escola se lança à experiência diferenciada, é convocada

para novos desafios. Mas a minha pesquisa não fala de um desafio tão novo assim e

nem tampouco desconhecido para os educadores e mesmo para o chamado ‘sujeito

de EJA’. Também não se pode dizer que o uso de drogas é uma pauta do ensino

noturno somente e nem mesmo que a questão é mais presente do que no diurno.

Contudo, o despreparo sobre essa demanda da ‘vida real’ se mistura às dificuldades

de implementação de um ensino mais voltado à realidade. Essa ‘demanda’

incomoda:

- “Na verdade a escola começa a ser demandada para além de sua função social. Se já não dávamos conta da pauta típica da escola – e para isso há explicações das mais reacionárias como a de que os pobres estão

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chegando e acabando com a escola, como as mais críticas que vêem nossa limitação pedagógica e a transformam em melhores projetos – imagine como podemos lidar com a questão da drogas??!!!. Há um tabu enorme, alguns professores mostram o seu estigma com relação ao aluno usuário de drogas dizendo que ele não vai aprender, que é marginal, etc”. (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de EJA, 200 9).

Desaconchego e inquietação. Em outro momento, antes da implementação da

modalidade de EJA pude perceber que a impotência se transveste de um sentimento

familiar: o medo. Esse sentimento funciona como arregimentador de tradições e dos

recursos místicos e religiosos como respostas ao desconhecido. Fui até as

estruturas da Secretaria Municipal de Educação para encontrar pistas:

- “Existe sim a identificação, o preconceito, a resistência dos profissionais aos alunos que declaradamente você percebe que usam (drogas), mas existem os índices velados que não estão ali expostos. Em muitas situações em que os professores por não conhecerem de fato essas situações tratam os alunos como indisciplinados, alunos que não querem nada e, portanto, a situação não aparece nas discussões do coletivo da escola como tentativa de trabalho do próprio conhecimento. Quando a gente percebe que isto acontece sai pelo veio religioso... então você encontra nas escolas muitos companheiros de trabalho que vão buscar na religião o trato da questão do uso das drogas lícitas ou ilícitas, inclusive levando-os para suas igrejas” (Indiomara Sant`Anna, Coordenadora do Ensino Noturn o da Secretaria Municipal de Educação de Vitória, 2007). - “Acho que quando surge a droga na família só Deus mesmo. Temos que levar o menino logo no Posto de Saúde e onde tiver que levar: na igreja, principalmente. Tenho muito medo disso” (mãe de aluno da Escola Municipal de Ensino Fundamental Juscelino Kubitsche k de Oliveira, 2006).

O que acaba vindo à baila é exatamente a função social da escola, seus limites e

sua capacidade de dialogar com a experiência concreta. Se uma questão afeta a

escola não seria também uma ‘questão da escola’? O que faria o educador? O que

faz o educando? Como planeja diante disso o sistema municipal de ensino?

O Coordenador de EJA disse que o problema os fez ir até a Guarda Municipal que

teria um certo trabalho destinado à redução de dano. Segundo ele, a alegação é de

que o funcionamento do grupo à noite seria inviável.

- “Há um problema maior porque os equipamentos que poderiam ser responsáveis por políticas intersetoriais não funcionam à noite. Há também uma convenção de que a policia não deve entrar na escola porque não é

56

pedagógico. Também penso que palestras e coisas afins não funcionariam com esse público (o usuário), então o que fica é nossa impotência de lidar com as drogas”. (Breno Louzada Castro de Oliveira, Coordenador de EJA, 2009)

Voltei à EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, antes de entregar esse trabalho

para observar as mudanças que poderiam ter ocorrido. Encontrei-me com o velho

cadeado na porta, junto a um vigilante. Sinto-me aviltada diante dos cadeados nas

escolas, embora saiba do medo, da rotina temerária e temerosa que se vive em uma

instituição de ensino, especialmente no turno noturno.

Perguntei ao vigilante de plantão o porquê do cadeado:

- “Isso ainda é pouco perto do necessário. Devia ter mais segurança”. (vigilante de plantão na EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009)

Uma professora que ouviu comentou:

- “Eu acho que os cadeados dão mais segurança à gente. São necessários hoje em dia”.

Toda vez que vejo o cadeado, lembro-me do meu ‘primário’ numa escola pública do

meu bairro, na cidade de Colatina. Portas abertas, pátio de chão batido, longa mesa

de merenda, cozinha de fogão à lenha, sala de aula com carteira dupla com um

menino sentado atrás de mim que sempre puxava meus cachinhos. Lá estava a

‘cartilha’:

“o passarinho morreu O corpo Sasha enterrou no jardim ;

A alma, essa voou para o céu dos passarinhos”

Nem sei ao certo se o verso é assim16. Mas sei que o disciplinamento estava no

olhar da professora e na participação da comunidade do Bairro Pedro Vitali, na

16 Mais tarde o professor que fez correções em minha tese já aprovada alertou-me que esse é um verso de Manuel Bandeira.

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construção daquela escola. Todos estávamos sob o auspício da regulação da

tradição do bairro em que moravámos, herança de uma família italiana, dona de

todas aquelas terras e que foram, aos poucos, vendidas para pessoas simples e

trabalhadoras, como meu pai.

Essa lembrança aguçou minha mente para o funcionamento das arregimentações

sobre o corpo, sobre o desejo e sobre o que me fazia voltar todos os dias à escola.

O que faz os alunos voltarem à EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira dia após dia?

Por que alguns deles, mesmo tendo o desejo que se aprisiona em outras questões,

como as drogas, voltam até lá? Seriam eles mesmos ‘prisioneiros’? Não se trata

apenas de uma diferença de grau e de natureza, de tantas outras dependências

geradas junto ao modo capitalístico de produção?

A vida e a produção do cotidiano são sempre constituídas de modos de

semiotização, que associam a geração da riqueza à subjetivação. Há em curso a

produção de uma “[...] subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja,

essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida” (GUATTARI, ROLNIK,

1996, p. 25). Nesse curso, os desejos são apoderados e estratificados, tornando-se

calcários, ossificados, limitando, inclusive, a percepção de seu caráter

eminentemente coletivo. Mas, será possível apoderar-se por inteiro? Nada resta de

um corpo vivo que se multiplica em ‘fatalidades’?

Ah, a fatalidade! Essa incansável amiga de um poder impessoal que se impõe e

paralisa os corpos e se faz como obstrução de possibilidades! Ah, a fatalidade,

parceira do inevitável, do ‘deixa como está’, do apocalipse! A fatalidade se alia à

impotência e inunda a escola.

Sentei-me na sala do professor e fui perguntando. Como tinha a notícia de que havia

um fórum municipal sobre drogas, quem sabe algo ressoasse por lá.

- “Continua não tendo nenhuma proposta. O sistema não consegue dar conta disso. A secretária de educação esteve aqui e disse que se pegássemos o menino usando droga devíamos entrar em contato com a Seme que eles entram em contato com o Conselho Tutelar, se o menino for maior, ou polícia, se o menino for menor”( professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009).

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- “Eu faço parte do Conselho de Escola e minha opinião pessoal é que isso (o uso e o tráfico) não é da conta nem da escola, nem do professor. A prevenção sim...” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009) - “Até mesmo a prevenção é difícil. Se o professor fica tentando o menino fica antenado e, por trás, matuta o que fazer com o professor. Até dar um texto na sala de aula sabendo que tem usuário e traficante a gente fica com medo” (professor da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira , 2009). - “Eu acho que é possível fazer alguma coisa, mas não uma coisa isolada” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveir a, 2009).

Perguntei quem deveria começar:

- “Tem que ser ação conjunta: governo, saúde pública” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009).

Os educadores percebem a limitação de suas possíveis ações e parecem pedir

ajuda a um conhecimento outro que não o deles:

- “Temos que abrir a escola para o profissional que trabalha com isso. Eu não tenho medo não. Mas, já fui cerceada pelos meus colegas porque têm medo de que o problema venha aqui pra dentro da escola” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009).

Seus limites beiram a um desconhecimento que julgam ter do assunto e da vida dos

meninos:

- “Realmente acho que aqui não tem nada que possa ajudá-los. Mas, na verdade o que eles querem? Precisamos de trabalho com um profissional para entendê-los” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009) - “Não sei o que esse tipo de jovem quer. É difícil agir quando não se conhece a vida de um usuário” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009)

Alguns lembram de uma época que julgavam ter alguma ação concreta na escola:

- “Antigamente tínhamos um professor aqui que era policial e ele conhecia os traficantes. Daí eles não abusavam na escola. Esse professor tinha um

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trabalho chamado “Violência e drogas”, depois acabou. Daí ele se aposentou e os garotos perderam o medo.” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009) - “Esse ano piorou muito” (fala de professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira lembrando do toque de recolh er que aconteceu em abril de 2009)

Na hora de ir embora voltei a falar do cadeado. Uma professora classificada como

‘revolucionária’, segundo os colegas, porque procede de outro estado, com uma

‘realidade avançada anos- luz da que vivemos’, disse-me na saída:

- “A escola aberta, sem cadeados, com direito a ir e vir responsabiliza mais o menino. Esta escola aqui é herança da ditadura. Estamos perdendo a oportunidade de ouro.”

Saí e vi dois garotos. Aguardavam para entrar fora do horário normal. Um deles

reconheci como usuário, entrevistado de uma outra vez. Estavam lá. O cadeado os

impediria de vender ou comprar drogas?

2.2 ... E SUAS FAÍSCAS, LABAREDAS E CINZAS!

Certamente, os proprietários de bares e ‘botecos’ do Bairro Jesus de Nazareth e

nenhum outro impediriam o funcionamento do período letivo. Muitos alunos e, até

professores, por lá passam antes das aulas. Como o uso de álcool é considerado

lícito, sequer é visto, na maioria das vezes, como droga. A fala de Osvaldo, da

EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira é similar a muitas outras, desatentas ao uso

do álcool por sua licitude. Mas, ainda assim, a substância tornou-se, antes mesmo

das outras drogas psicotrópicas, a maior preocupação da saúde pública no Brasil.

Faíscas . Junto às outras drogas, o uso abusivo do álcool configura um estrato no

tecido social. Captura intensidades, “[...] fixa singularidades em sistemas de

ressonâncias e redundâncias” (DELEUZE, 1995a, p. 54). Funciona por códigos,

demarcações e por privatização de territórios livres. Hierarquiza, regula e cria

serviçais, impregna o prazer de si mesmo e auto centra a vontade.

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- “... eu quero, quero e pronto! É legal, dá onda, é sinistro ficar de bicho. Se eu responder a essa pesquisa você me dá ‘deizinho’?” (menino, 16 anos, na porta da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, agosto de 2008. Conversei com ele perto do mangue noutra ocasião no ano anterior. Esse menino já não está matriculado) - “... a gente tem nossas vontades. É pecado ter vontade? É pecado querer fazer as vontades da gente todo dia?” (menina, 14 anos. Sustenta seu uso fazendo sexo oral por dez reais, o preço da pedra d e crack . Abandonou a escola, 2008)

Os estratos são caminhos cimentados pela rigidez das passagens difíceis. Capturam

um modo de ser e fazer e dão a eles o status da cultura e do hábito. Distribuem

funções e criam canais de abastecimento próprios. Produzem e reproduzem os

decalques como realidade única. Petrificam as paredes por onde correm livremente

os fluxos líquidos e geram formas geológicas. O uso abusivo das drogas ritualiza as

passagens e domestica as forças sem nome em becos, bocas, tráficos e usos.

Mas, não há somente essa composição. O uso de drogas pode alcançar outras

formas de existência, intensificando o prazer e entendendo suas possibilidades para

além dos objetos e das práticas rotinizadas. Funcionaria como um desbloqueio às

formas tradicionais de obtenção do prazer, inclusive libertando o uso do binarismo

liberdade ou prisão. Estratos se destruiriam a partir do escapamento de linhas de

fuga.

Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabricar boas drogas capazes de produzir um prazer intenso. É o puritanismo que coloca o problema das drogas – um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou a favor – é uma atitude errônea (FOUCAULT, 1984, p.2)

Certamente o autor nos diz sobre a capacidade e direito de escolha, sobre querer e

poder caminhar pelas vias da vida traçando nosso próprio caminho de fogo. Os

fluxos funcionam sem a lógica dos binarismos e intensificam-se no desejo e na

produção de vida. Se é possível criar a vida-prazer-desejo, afirma-se a vontade,

descentra-se o modo de existência. Não se trata de ser contra, mas de saber até

que ponto a potência abastece a trilha. Diz uma jovem:

- “... eu uso droga para me divertir, para ficar bem, para curtir. Quando vejo que vou pirar eu paro e vou pra casa. Uso só de vez em quando” (menina,

61

17 anos, Escola Municipal de Ensino Fundamental Suz ete Cuendet, 2007).

A experiência com a vida e com o corpo gera fugas e capturas. Temores são

capturas. Há temores sociais gerados por aquilo que é apresentado como

conseqüência direta do uso de substâncias químicas.

Embora as outras drogas, que não o álcool, sejam socialmente mais ‘temidas’ –

paralisariam vários dias letivos em que a comunidade escolar se sentisse ameaçada

- os dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicoativas (CEBRID)

desenham um quadro instigante. A pesquisa realizada com estudantes dos antigos

primeiro e segundo graus em dez capitais brasileiras aponta que 74,1% já fizeram

uso de álcool (GALDUROZ, 1997), sendo esta a droga mais usada por eles, seguida

por tabaco e solventes.

Esses dados foram alterados para percentuais maiores de 1987-199717, (CARLINI-

COTRIM, B. BARBOSA MTS, 1993/ DONATO F, MONARCA S, CHIESA R, FERRETTI D., MODOLO

MA., 1995) o que continua em anos posteriores, já que em 2000 há um aumento do

uso pesado de álcool18 por estudantes de primeiro e segundo graus em relação aos

dados de 1997 em oito das dez capitais estudadas (GALDURÓZ e NOTO, 2000).

O texto do Ministério da Saúde (2004) aponta19:

De acordo com a própria Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001), cerca de 10% das populações dos centros urbanos de todo mundo consomem abusivamente substâncias psicoativas independentemente de idade, sexo, nível de instrução e poder aquisitivo [...] considerando qualquer faixa etária, o uso indevido de álcool e tabaco tem maior prevalência global

17“ O uso frequente aumentou em seis capitais e o uso pesado cresceu em oito, das dez capitais estudadas. A cerveja é a bebida mais consumida (36,5%), seguida pelo vinho, com 15,3% da preferência. Aproximadamente 30% dos pesquisados já usaram bebidas alcoólicas até se embriagar, 11% já brigaram e 19,5% faltaram à escola em virtude do uso de álcool. (Galduróz, Noto e Carlini, 1997). Outras pesquisas quantificam o uso de drogas : álcool e outras - no ambiente escolar. Em todas elas o uso do álcool é superior ao uso das outras drogas. 18 Segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde, adotada pelo CEBRID, é considerado não-usuário quem nunca utilizou drogas; usuário leve o que utilizou drogas no último mês, mas o consumo foi menor que uma vez por semana; usuário moderado quem utilizou drogas semanalmente, mas não todos os dias, durante o último mês, e usuário pesado aquele que utilizou drogas diariamente durante o último mês. 19 O Ministério da Saúde no Brasil considera o alcoolismo o ‘maior’ problema atual de saúde pública. Ver Brasil. Ministério da Saúde.

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[grifo meu] trazendo também as mais graves consequências para a saúde pública mundial [...]”.

Atualmente, os moradores de uma cidade, sejam eles jovens ou não, parecem ter

uma certa noção de que o uso de substâncias químicas que alteram o ânimo e

humor é um problema público. Mas, ainda é nebulosa a consciência de que a

questão deve ser tratada pelas políticas de saúde. A duplicidade de atuação entre os

instrumentos de saúde e segurança gerou, junto à pequena oferta de atendimento, a

sensação de que trabalham em suspeita parceria.

- “Cara, uma vez quase morri por causa de cachaça, achei que meu peito ia arrebentar, suava frio e vomitava... foi sinistro, veio... Não, fui no médico nada. No Posto, eles num gostam de bêbado. Talvez até mandam pra polícia. Se bem que os rato num pode mais prender a gente. Só dão um pau” (menino, 16 anos, na porta da EMEF Juscelino Kubits chek de Oliveira, agosto de 2008. Conversei com ele perto d o mangue noutra ocasião no ano anterior. Esse menino já não está ma triculado). - “Eu já fui no Posto de Saúde por causa de droga. Tava noiada e com o coração acelerado, cheia de medo e fui lá. A moça cuidou de mim e disse que eu ia poder parar devagar, que eles me dariam remédio pra dormir e que eu teria que voltar a estudar, eu tinha só que ir lá na Ilha de Santa Maria. Acho que eles não iam chamar a polícia não“ (refere-se ao Centro de Prevenção e Tratamento de Toxicômanos) (menina, 14 anos. Sustenta seu uso fazendo sexo oral por dez reais, o preço da pedra de crack . Abandonou a escola, agosto de 2008).

O medo é acompanhante do uso intensivo de drogas. Alguns reconhecem que

podem procurar ajuda nos equipamentos coletivos de saúde, outros receiam que o

atendimento não aconteça ou seja parcimonioso. Em todo caso, de um modo ou

outro, o uso oscila entre ser um caso de saúde ou de ‘polícia’.

A cidade integrou a última pesquisa feita pelo CEBRID sobre o uso de drogas e o

ambiente escolar. Os dados apurados em 2005, em Vitória, por meio de uma

amostra de 1.121 estudantes, sendo que 66,1% deles estavam no ensino

fundamental, confirma o uso acentuado de álcool e tabaco seguido por solventes,

maconha, ansiolíticos, anfetamínicos e cocaína. 26,1% dos estudantes das redes

municipal e estadual de ensino já usaram alguma destas drogas. O uso maior ocorre

entre os estudantes de 16 a 18 anos, mas é notório o uso de solventes entre

estudantes de 10 a 12 anos: 12,2% faz uso.

63

Certa vez, meses depois do dia em que me chamou à beira do mangue, encontrei

Sergio outra vez. Já era o ano de 2008.

- “ E aí?”- disse ele - “Tudo bem e você?” Respondi. - “Cadê o caderninho, que hoje vou falar... porque você não aparece mais para todo mundo te conhecer?” - “Ah cara, nem todo mundo gosta, tem gente que acha que to me metendo, aí fico meio cismada.” Falei. - “Tem nada a ver não. O xxx (sem identificação) disse que você não é sujeira não.” - “E aí, muita gente tá usando por lá?” - “ixi, tá tudo dominado. Não fica na pista que vai acontecer confusão.” - “Por causa de quê?” - “Droga na beira da escola. Lá dentro entra não, mas nas ruas perto. Tem gente nova querendo tomar conta, sei não”, finalizou.

A fala de Sergio sinaliza o que vemos nos jornais todo dia quanto à venda e uso de

drogas nas imediações das escolas. Parece que, a partir de um momento, o silêncio

tomou conta e tornou-se cada vez mais difícil falar com os meninos e meninas. Era

por volta dos meados de 2008.

Dentro dos muros, da escola minhas intervenções eram quase inócuas. Não havia

nenhuma forma de abordá-los como eu pretendia. Um professor me sugeriu - “diga

para eles sobre o perigo das drogas!” – optei por não usar essa forma certa de que

impossibilitaria outros diálogos. Qualquer tentativa de moralizar o assunto ou mesmo

de debatê-lo pelos caminhos formais não os alcançaria. Esse tem se tornado um dos

grandes desafios: não há desejo dos alunos já envolvidos com as drogas em

debater publicamente o assunto e as estratégias usadas pelos professores não vão

muito além destas propostas.

Durante toda a pesquisa meu sentimento era de que nitidamente eu, os meninos, os

educadores, a Secretaria de Educação falávamos de escolas variadas, como se não

partíssemos dos mesmos modos de existência. E certamente não partíamos. As

figuras bloqueavam as leituras. Figuras impedem a passagem. Nunca se conhece

algo ou alguém quando não se atravessa.

64

Tentei mais uma vez ir até eles, os alunos, com uma matéria de jornal em mãos. Já

havia usado essa forma outras vezes. Era uma reportagem sobre a venda de drogas

nas escolas, escrita no ano anterior (2007).

Não havia portas. A matéria jornalística não gerou nenhum tipo de entrada. Fiquei eu

lá ridicularizada com a banalidade em mãos.

Figura 2 – Notícias de Jornal A Tribuna

65

Notícia corriqueira. Todos os dias os meninos brincam de bandido e mocinho com a

sorte. Mas, no cotidiano não há tantas definições. Nunca se sabe como os modos se

intercambiam.

Nunca mais consegui falar sobre venda de drogas na escola, especialmente por que

depois desta ocasião aconteceu um toque de recolher no bairro Maria Ortiz. Todos

foram convocados a ir para casa pela polícia e por pessoas amedrontadas no meio

da rua. Eram 18h de um dia do mês de agosto de 2008. A partir daí tive medo de

fazer outras abordagens. O sentimento geral impregnou-se também em mim.

Pensava sobre a escola, em como era limitada a minha inserção lá, de como o meu

estudo me lançava cada vez mais para fora dos portões.

O uso de drogas, segundo a pesquisa do CEBRID, também é responsável por

acentuar a defasagem escolar. Essa questão aparece em maior percentual entre

usuários – para esse dado excetua-se álcool e tabaco – do que entre aqueles que

não fazem uso, assim como o número de faltas é maior entre os usuários, não

diferindo percentuais destacáveis para nenhuma classe social (estratificadas na

pesquisa em A, B, C, D e E).

- “Quando esse tipo de jovem está na escola seu rendimento quase sempre é inferior. Ele é desatento, embora muito inteligente, mas não se concentra nos estudos, as matérias não interessam a ele, daí a nota baixa” (professora que pediu-me para não identificar sua e scola, 2008, somente a região: grande Goiabeiras). - “Mas eu vou entrar na aula pra quê? O que tem lá eu consigo daqui, meu diploma” (menina, 17 anos, Escola Municipal de Ensino Fundam ental Suzete Cuendet, 2008)

No Espírito Santo, o consumo de drogas pelos jovens cresce 15% ao ano. Segundo

o documento da Política Estadual Antidrogas20 de 1998 a 2000 foram registrados

10.499 ocorrências policiais sobre tóxicos, sendo que 66,83% deles aconteceram em

Vitória, Vila Velha e Serra. O mesmo documento informa que em outubro de 2001,

do total de 2.524 pessoas, 683 foram presas no sistema prisional devido à infração

da Lei 6.368/76 (lei sobre drogas vigente na época). Isto significa que os ilícitos

penais - desde a tentativa de homicídios, homicídios, roubos, entre outros - estão em

20 Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, dia 08/11/2002. páginas 03 a 08.

66

80% relacionados às drogas, de alguma forma. Os envolvidos estão na faixa etária

de 18 a 25 anos.

Uma das meninas-usuárias e estudante que já havia sido atendida pelo Centro de

Prevenção e Tratamento ao Toxicômano mencionou o Conselho Estadual Anti-

Drogas. Disse-me que era parte dos ‘negócios de polícia’. Perguntei a ela se sabia

como funcionava:

- “Não quero nem ouvir falar deste negócio de polícia. Acho que não serve para nada. Só mesmo as psicólogas do Centro são legais. No resto nem é bom confiar.”

No ano de 2006, apenas 30% da droga consumida no Estado do Espírito Santo foi

apreendida, segundo a chefia do combate ao narcotráfico: circularam 4,15 mil quilos

de maconha e 643,6 quilos de cocaína. A Chefia, nomeada durante essa época,

defende a prisão do usuário num sistema onde a pessoa exerça atividade laboral e

critica duramente a Lei nº. 11.343/2006, que discriminaliza o usuário. A Polícia Militar

e a Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes da Civil alega que a distribuição é muito

pulverizada, dificultando as investigações e apreensões21.

Perguntei a dois meninos que vendem e já não estão mais matriculados na escola

(EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira) se conheciam a nova lei sobre drogas

(referindo-me a Lei nº. 11.343/2006). Eles mostraram que, para eles, o paroxismo

que envolve a lei só os reafirma como criminosos:

- “olha, sei que saiu uma lei que a gente não pode ficar preso. Mas, num faz muita diferença porque a gente vende e usa. Às vezes estamos com muita coisa, mas vapor não é mula e mula não é chefe. Todo mundo usa e todo mundo vende. O caso é que eu nem sei mais direito quantos anos cada um fica preso”.

A ‘confusão’ dos jovens sobre a lei parece ser uma característica das contradições

dela mesma. A Lei nº. 11.343/2006 tramitou por seis anos no Congresso Nacional

antes de ser promulgada. Foi alvo das mais variadas disputas entre partidos,

21 Jornal A Gazeta, 05/02/2007, pág.4.

67

migrando de avanços inéditos de contraposição ao proibicionismo22 da lei anterior

até a incorporação de atrasos às essas práticas. Cria também novos ‘crimes’ como o

‘oferecimento de drogas para ser consumida em grupo’. A maioria dos juristas diz

que a impressão que se tem é de que foi escrita por dois ou mais legisladores

diferentes. Isso porque ela abriga uma avançada concepção de políticas de redução

de danos23 que tem a inclusão e o respeito ao indivíduo como princípio, mas

mantém e aprofunda a repressão, inclusive aumentando a pena ao crime de tráfico

de drogas. Muitos juristas dizem ainda que há espaço para várias jurisprudências, já

que da lei, embora não se possa dizer que é totalmente descriminilizadora, pode-se

afirmar que se presta a essa leitura.

O usuário de drogas não pode mais, em virtude da Lei 11.343, ser preso em

flagrante. Além disso, em diferença às anteriores, a lei de 2006 criou o Sistema

Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD - que articula, organiza e

coordena a política brasileira sobre drogas nos âmbitos preventivo e repressivo.

Essa lei sucede uma série de outras que estão inscritas na política de ‘guerra às

drogas’, típicas das disciplinas sobre os corpos e dos controles sobre as populações

construídas pelo Estado Moderno. Desde 1971, como não poderia deixar de ser já

que se tratava do auge do regime ditatorial brasileiro, a lei era a altamente

repressiva e mostrava toda a sua composição com a chamada ideologia da

segurança nacional – Lei nº 5726/1971. Essa legislação incitava e apontava que

todo brasileiro deveria ser um guardião e um colaborador no combate às drogas:

determinava que o uso e o comércio de drogas eram contrários à segurança,

assegurando penas e prisão para usuário e traficante, igualmente.

Em 1976, a Lei nº 6368, cuja parte penal esteve em vigor até 2006, diferenciava o

traficante do usuário, aplicando a este último penas mais brandas (seis meses a três

22 Trata-se de uma espécie de regulação dos fenômenos e comportamentos por meio de estatutos proibitivos, com intervenção do sistema penal, reduzindo o âmbito da autonomia individual.

23 A política de redução de danos pode ser definida como “uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis consequências adversas ao consumo de psicoativos - lícitos ou ilícitos - sem, necessariamente, interromper esse uso, e buscando inclusão social e cidadania para usuários de drogas” O QUE É REDUÇÃO DE DANOS, artigo de divulgação científica na página do portal NETPSI em http://www.netpsi.com.br/artigos/050204_reducao_danos.htm (acessado em 30 de janeiro de 2007).

68

anos de prisão) e elevando a pena do primeiro (para até quinze anos de detenção).

Além disso, essa lei criminalizava a ‘apologia’ às drogas, de forma não definida,

contudo aplicando pena ao crime da mesma forma que ao traficante. Não é de se

estranhar que a aplicabilidade desta lei vinha sendo feita de formas diversas,

gerando milhares de procedimentos que dizem respeito às forças de composição

dos enunciados. Voltarei a falar disso.

O fato é que qualquer lei constrói um sistema de penas no qual converge a coerção

e os acordos sociais possíveis. Trata-se sempre de dispositivos regulatórios que

movimentam um saber-verdade de acordo com o ‘sistema de verdades’ de cada

época.

Quando se fala da política e legislação sobre drogas, pode-se afirmar que a

construção de um inimigo interno levou à substituição de um modelo sanitário, em

que o ‘viciado’ era alvo dos saberes higienistas, por um modelo bélico, de modo que

se tem uma política criminal com derramamento de sangue (BATISTA, 1998, appud

In CARVALHO, 2006). Abre-se a possibilidade de um estado de exceção

permanente já que o inimigo eleito esta a postos, desafiando as funcionabilidades do

estado. Dessa forma, os atos de exceção permanente são sempre justificados por

uma suposta (ou até declarada, às vezes) vontade de punitividade da população e

pela aclamação por segurança.

Por isso, o jovem diz que não sabe ‘direito quantos anos cada um fica preso’. Não

sabe também porque alguém é preso, nem porque se está livre. Incertezas do

cotidiano do uso. A nova lei não foi capaz de desvincular a questão das drogas da

justificação da violência.

Labareda . A relação imediata da violência e crime com o uso ou porte de drogas é

problemática. Mostra mais do que números. Exibe um discurso de relação direta de

um processo complexo com a ponderação da justeza da penalidade. Mostra a

fragilidade da coerção e a incapacidade da escuta e do diálogo. Alardeia: a

segurança não pode dialogar com processos eminentemente humanos sem codificá-

los! E mais, não pode sequer estratificá-los, esquadrinhá-los, repetindo as formas

mais elementares de vigilância e controle. Os encarceramentos dos anos 1998 a

2006 não podem dizer nada sobre usuários, dependentes, traficantes, simplesmente

69

porque os amotinou em números estatísticos e sistemas de tratamento semelhantes.

Drogadição, crime e violência estão usando o mesmo uniforme, e, por isto mesmo,

escancaram a homogeneização de uma pauta diversa que incomoda e subsiste

quase intacta à política de segurança.

Mas a ausência da caracterização do suposto delito e sua relação com o consumo

de drogas e com o tráfico não é novo no Brasil. As prescrições se sobrepõem às

realidades diversas já faz tempo. A construção do crime e do criminoso tem o

requinte da preparação de um jantar para alguém importante: é investido de

detalhes, repetições, dentre outras coisas. O ritual também confunde-se com a

criação da criminologia.

A ‘atitude suspeita’ foi base da criminalização de muitos jovens no Brasil, segundo

uma pesquisa realizada por Vera Batista sobre o período de 1968 a 1988, nos

arquivos do Juizado de Menores no Rio de Janeiro. A autora chega à conclusão de

que os discursos e políticas criminais contra drogas, herdadas de uma visão da

política norte-americana e da ideologia da Segurança Nacional no Brasil, produzem

um gigantesco processo de criminalização dos pobres na América Latina. Segundo

ela, os laudos criminais acionam dispositivos de construção de enunciados dos quais

não escapam, especialmente, os jovens negros, de periferia, índios e insurgentes.

Ela diz, referindo-se à sua pesquisa:

[...] pude perceber as permanências das metáforas biológicas, do social-darwinismo, do determinismo, do olhar moral e periculosista que sobreviveram imunes ao longo do século: são as famílias desestruturadas, as atitudes suspeitas, o meio ambiente pernicioso à sua formação moral e outras pérolas que pontificavam e que alimentaram o gigantesco processo de criminalização da juventude pobre que ali se iniciava, com a consagração da nossa política criminal com derramamento de sangue (BATISTA 2006, p. 255, grifos da autora).

Nos primeiros anos da transição democrática bastava preencher requisitos como ‘ser

biscate’, pele escura, filho de família não nuclear, para ser indiciado. Tanto assim

que os estudos de Batista mostram que a descrição do criminoso era detalhada nas

sentenças, mas nem sempre os crimes estavam explicados e muito menos o objeto

da condenação.

70

A pesquisadora afirma que o perigo deslocou-se do inimigo interno existente até a

década de 70, o militante subversivo, para o criminoso comum envolvido com

drogas. A construção deste ‘perfil’ baseou-se na ‘natural’ existência de um inimigo

público que só necessita ser atualizado de épocas em épocas.

Os discursos de uma época estão inscritos nas possibilidades de uma prática

discursiva; são independentes dos indivíduos que somente os fazem atuais. Eles

mantêm relações com um mundo de coisas, com campos sociais, com modos e

formas políticas que os atualiza de forma que prescindem de um ‘eu’ (OLIVEIRA,

2006) são jogos reais de saber-poder. Os laudos/sentenças desse período na cidade

mostram que para ser incriminado bastava a recorrência de um tipo que se repetia,

sabe-se, por evidência numérica. Bastava corresponder à prática discursiva, ao

enunciado.24

Para Batista (2003), opera-se a substituição do criminoso terrorista para o criminoso

traficante. O mal nacional tem um novo nome: drogas, seu vendedor e usuário que

são, portanto, ‘os criminosos da vez’. O tipo está selado por recorrência: negro,

jovem, funkeiro, morador de favela, próximo ao tráfico, de boné, tênis e cordões.

Esse é também o jovem do meu estudo em 2009, na cidade de Vitória. A figura que

mostrava o mal nacional, espalhou-se pelo Brasil.

Uma vez que a droga é inimiga do país, o viciado é descrito pelas sentenças como

aquele que tem “[...] a vontade fraca e o débil caráter“ (MALAGUTI, 2003, p. 91). O

diário da criminalização estrutura medidas de segurança criadas para impor ao

sistema jurídico penal punições independentes da prática do crime. Essas se

baseiam em uma ‘periculosidade suspeita e difusa’ e são selecionadas conforme o

grau de suspeita.

A atitude suspeita não está ligada a um ato suspeito, mas a uma série de

características selecionadas que despertam ‘automaticamente’ a suspeição. Para a

autora da pesquisa, essas características estão ligadas a um grupo social. Chalhoub

24 Foucault, em seu texto “Arqueologia do saber” (1997), mostrará o discurso como um conjunto de enunciados. Esses são modalidades próprias a um campo de signos que convergem em um mesmo sistema de formação.

71

(appud MALAGUTI, 2003, p.104) chama essa estratégia de “[...] suspeição

generalizada para controle das populações negras”.

Um dos garotos que encontrei fala:

- “Basta ser preto pra levar ripada. A polícia nem quer saber de nada, pergunta pelo pai, diz que a gente não tem vergonha da mãe trabalhar tanto e a gente usar droga e desce o pau. Aperta os bagos, diz que conhece a gente, toma os cordão e a grana, o boné... Aí a gente reveza quem fica na pista. Cada dia é dia de um levar o pau. Mas o mala num vem pra pista não, só a gente. Se bem que aqui eles não tão perdoando nem os mala” (jovem , 17 anos, 2007, já havia abandonado o ensino noturno , mas vive prometendo que volta).

Este menino tem o tipo que é criminalizado todo dia, leva ‘batida’, ‘baculejo’ e nunca

foi encontrado com a droga, embora seja usuário. Já ficou preso por dois dias sem

posse de qualquer substância/droga.

- “levei o maior baculejo de novo. Já saí da pista faz um ano, mas num deixei de ser preto e pobre, então..”.(ex-usuário que foi revistado pela polícia).

Meninos e meninas como esses são diariamente apreendidos, embora depois da

vigência da Lei n° 11.343/2006 25, as prisões sejam mais raras. Isso não impede que

muitos deles passem algumas noites irregularmente nas delegacias. Alguns pais até

concordam com isso, indo liberá-los após alguns dias somente. Os dados são,

então, continuamente alterados e pouco se sabe, na prática, sobre segurança e

saúde. Quem desses são os dependentes de drogas? Quem são os traficantes?

Para construir e consolidar socialmente a figura periculosa e ligá-la ao uso de

drogas, é preciso cultivar com zelo a desinformação sobre o assunto. Também é

necessário criar uma droga-perigo, uma droga-perigo-demais, uma droga-pesada e

outra droga-leve. Não estão em jogo as impotências diante da vida e nem as formas

de submissão das esferas vitais às limitações da vontade autocentrada. Assim,

combina-se tipo periculoso e droga-terror. Está criado o anti-herói nacional. Pena

25 Voltaremos a falar da legislação sobre drogas quando essa surge como mediação às conversas.

72

que esteja encarnado em uma população grande demais, variada demais,

complicada demais!

É exatamente a complexidade da ‘palavra de ordem’ que está denunciada por

Batista. Junto do terror que arrasta consigo o ‘traficante’ está um fluxo de signos

intenso em movimento. Ela diz de uma política internacional que favorece e promove

a venda de drogas a partir de meados da década de 70 no Brasil, usando a força de

trabalho dos jovens de periferia pauperizados pela política econômica vigente. É a

partir de 1978 que surgem os primeiros depoimentos “[...] que falam de sua atividade

como trabalho, estratégia de sobrevivência, parte de uma organização local de

trabalho. São olheiros, seguranças, aviões e gerentes. Surgem aí também os

primeiros relatos da boca-de-fumo armada, como núcleo local de força” (BATISTA,

2006, p. 258, grifos da autora).

O mesmo movimento de combate às drogas empreendido pelo governo dos Estados

Unidos a partir dos anos 80 e que utiliza termos como ‘narcoguerrilha’ e

‘narcoterrorismo’ é que está no centro de uma produção econômica que leva os

países periféricos a serem produtores e comercializadores das drogas (BATISTA,

2008). Assim, ao mesmo tempo em que as políticas de segurança nacional dos

países alinhados aos Estados Unidos acionam seus tanques de guerra contra as

drogas, formam-se mercados consumidores e mercados de ‘trabalhadores’ que

compram e vendem, gerando um campo de conflitos nos espaços urbanos.

Sobrevivência e violência transformam-se em pares inseparáveis.

Há sempre um agenciamento complexo, vital, cheio de ações e paixões, “[...] pura

transformação que a enunciação junta ao enunciado, sentença” (DELEUZE 1995b,

p. 55). Se a palavra de ordem é morte e metalinguagem, é também direção dupla. O

movimento da língua é imanente a ela como sua cristalização.

Toda vez que os fluxos se convertem num agenciamento - que não cessa de querer

convergir – corre-se o risco de que o regime de signos seja capturado por uma

ordem, uma estratificação da língua e dos signos. Mas também não há como conter

por completo um agenciamento maquínico. As palavras de ordem estão sempre

sujeitas a mostrar seus planos de consistência, sua constituição e suas

combinações. De uma só vez as transformações incorpóreas colocam a língua em

73

relação com o fora que lhe é imanente e escapam desejos, ditaduras, sortes e

sacrilégios (DELEUZE, 1995b).

A palavra de ordem é ‘traficante’. Os corações aceleram-se, as janelas se fecham e

os punhos estão cerrados. O discurso contemporâneo sobre as drogas estaria aí

encerrado, arregimentando uma série de outras palavras que justificam o controle

social? Traficante tornou-se a categoria-morte, dispositivo concreto do terror

moderno. O efeito é um amontoado de assassinatos de jovens negros e pobres que

produzem um certo alívio social. Batista diz:

O traficante é uma espécie de alma desgarrada: não tem mãe, pai muito menos, é favelado, é poder paralelo, crime organizado, deve ser emparedado e confinado em solitária para conter o seu poder demoníaco, que só pode ser combatido como cruzada. Suas mortes não emocionam, são troféus humanos, corpos que vão alimentar o noticiário positivo dos governos estaduais. Essa categoria fantasmática é também totalizante: o traficante apresenta uma classificação única, são todos iguais, comportam-se da mesma maneira em qualquer lugar da cidade. Não têm história, não têm memória. São a encarnação do erro e apontam as baterias da sociedade para as favelas, revisitadas agora como o locus do mal, viveiro de monstros (BATISTA 2006,p. 259).

Ao traficante-demônio junta-se a raça-crime-suspeita e a pior droga, hoje, o crack. É

certo que não há de se negar a rapidez com que se desenvolve a dependência à

substância crack, mas também é temerário fugir da criação do mito da droga. Há

quem justifique e funcione como força ao estrato:

- “o que mais pode se esperar de quem vive disso. Melhor morrer ele que um filho da gente” (mãe referindo-se ao assassinato/execução de um suposto traficante no bairro Maria Ortiz).

Mas, há quem fuja, quem escape, flua de um modo inesperado:

- “essa morte tem nome de traficante, mas, e as outras, e o resto, e todas as crianças que estão nesta fábrica de fazer morte? Vocês não estão vendo que só mais um nome para morte dos nossos direitos?” (mãe que estava na porta da Escola Suzete Cuendet quando se comenta va a morte do garoto de Maria Ortiz).

Fugiu. Escapou. Desterritorializou.

74

Figura 03 – Notícias de jornal A Tribuna

O crack, diferente dos humanos, já achou seu abrigo nas zonas urbanas, ‘as

cracolândias’. Diz-se de espaços onde a droga é vendida de forma ostensiva. Diz-se

que lá os ‘cidadãos de bem’ têm medo dos jovens-meninos-traficantes e clamam por

intervenção policial. O espaço é habitado por uma maioria pobre, negra, com um

grande contingente de desempregados... dito de uma vez : os suspeitos!

A notícia contamina os lares. Já ocupa as cadeiras da sala de estar. No aparelho de

som supermoderno a música destoa das combinações bibelô e santinhos. Quase

estatelada na poltrona marrom D. Luzia (nome fictício) mostrava-me os vazios

cheios de objetos que se produziam aos meus olhos: objetos cd-esperança,

ventilador-sonho, celular-emprego. Eles pulavam de todos os lados e ocupavam

seus antigos locais na casa de onde foram retirados e trocados por ‘pedra’. O som

triturava meus tímpanos. Só entendia ‘fios, rios, drugs’. Era “Mundo Livre SA”, eu

sabia. Estaria liquidada se a música me aguilhoasse. Isolei-me. Depois procurei a

letra da música na internet:

“Quase sempre vale a pena A gente ter uma sombra

75

- Cante mais uma vez Bob (quase sempre vale a pena) Estão fazendo teu caixão!!!

Rios, veias, vias Fios, margens, canais Braços, berços, fontes Plugs, leitos, marginais

Rios (smart drugs) Pontes, overdrives

Ela é moça ainda, sorridente e acredita piamente na ‘maldade do crack’. É líder

comunitária, a vizinhança a conhece bem. Seu filho usa drogas e vende para usar.

Luzia tenta por ele. Ora por ele. Acredita nele. É puro sorriso e fé.

- “não vê essa droga, o crack...os meninos todos estão usando. Diz que mata em quatro meses e a reportagem (referindo a essa acima) já achou a cracolândia. Não sei o que será, mas acredito muito em Deus, que o rapaz vai tomar jeito, vai arranjar emprego e voltar pra escola” (mãe de aluno, 2007).

É certo que há o problema. Mas, nenhuma abordagem mais séria verificou a venda

da droga em bairros de classe média ou alta, nem mesmo pode quantificar a venda

de drogas na periferia. Pode-se afirmar que o volume das apreensões é maior

nestes locais, assim como se pode dizer que a ausência ou falha de políticas

estatais de proteção e compensação nas periferias é muito maior que nos bairros de

classe média ou alta. Também não há nada que possa indicar um maior número de

dependentes químicos entre pobres, já que não há qualquer tipo de censo sendo

realizado nas clínicas de tratamento particulares da cidade ou nos consultórios

médicos, psicológicos ou psiquiátricos. São apenas suposições que geram a

‘cracolândia’ como espaço privilegiado de venda e uso de drogas. São

sedimentações de impressões que sequer são testadas, mas já tornaram-se

correntes na opinião pública.

È sabido que os números da violência são maiores nas periferias da cidade, o que

pode ser efeito, como já dissemos, muito mais a ausência de política de segurança e

proteção do que o número de usuários de drogas. Ou se pode dizer que a violência

é resultado direto do uso de drogas? Não seria apressada essa associação?

Retiradas as drogas, a violência estaria resolvida? É real que o uso de drogas

agravou (e agravou mesmo) o quadro da violência. Estudos mostram esses agravos

76

provocados pelo uso de drogas - o álcool e outras - nos índices. (Ministério da

Saúde, 2004). Mas, não foi o uso de drogas que criou a violência, portanto, as

diferenciações no tratamento devem ser feitas.

O Brasil é um dos poucos países do mundo, cujas instituições recomendam que a

violência seja objeto das políticas de saúde. O Ministério da Saúde orienta inclusive

a formação de Núcleos sobre Violência nos postos de atendimento. Contudo, o

próprio Ministério adverte para o descuido de fazer uma associação direta entre as

drogas – álcool e outras com a criminalidade, sem estudos específicos, dificultando a

análise de outros elementos que envolvem o problema. A advertência não se traduz

na prática das instituições estatais.

- “esse menino é um doente. Mas, é um doente de moral. Falta a ele vergonha!” (policial em momento de detenção de um usuário no B airro Maria Ortiz, 2008)

Perguntei ao policial se ele encaminharia o garoto às instituições de saúde. Ele

sequer respondeu e o algemou. Torna-se difícil distinguir o dependente/usuário do

traficante quando os meios de comunicação e o aparato estatal, na prática, os tratam

como uma unidade, o que dificulta a diferença entre a possível intervenção policial e

a da política de saúde.

A discussão em torno de uma substância está sempre ligada a uma investida contra

o desejo, fundamental no controle das populações. A demonização do crack e a

produção da ‘cracolância’ indicam o nascimento de um objeto de terror e de novos

suspeitos. Mesmo diante da recomendação de acuidade no tratamento da

dependência química e sua associação direta com a violência por parte dos

elaboradores de políticas estatais, a opinião pública não recua na naturalização:

droga-violência-crime, usuário-culpa-punição.

O campo de experimentação dos desejos remete linhas para todos os lados diante

da naturalização: quer fluir em movimentos locais que se perfazem de

irregularidades, os movimentos moleculares. Há meninos e meninas esparramados

sobre o mapa, constituindo-o. São meninos-demônios, usam a droga-demônio, no

território-cracolândia.

77

Esses mesmos meninos-estratos fogem sempre às estratificações, o que não quer

dizer que sempre vão escapar sempre. Pode-se pensar em saturações, mas é

improvável que essa contenha o delírio. Vestindo o delírio de latinha e cachimbo, de

gilete e espelho ou fumaças diversas não quer dizer que possa sempre reduzir a

esquizofrenia à neurose. Há uma incompreensão sobre o delírio e um investimento

pesado sobre ele de modo que agenciamento estratificado vira língua-linguagem. O

campo de experimentação é capturado por signos duros, mas como outros

agenciamentos funcionam maquinicamente, o delírio explode a palavra de ordem

que esparrama-se rizomaticamente. Pode acontecer ou não, mas há uma dinâmica

sempre possível.

Dispositivos desfolham enunciados sobre os corpos: tanto a medicina quanto o

direito articulam a sedimentação dos fluxos em estratos-saber. Em uma só voz

proclamam o inevitável, a fatalidade, a desgraça anunciada. O medo será parceiro

da fixidez gramatical.

Para Olmo (MALAGUTI, 2003), o problema não é a substância, mas o discurso de

medo que é construído para fazer funcionar o temor a certa droga. Para ela, esse

discurso está sempre ligado à movimentação da economia. Ela relata que a mídia

construiu a opinião pública, associando a entrada e uso da maconha nos Estados

Unidos à presença volumosa de imigrantes mexicanos no país, assim como o

consumo e criminalização do ópio à imigração chinesa na Califórnia e o consumo de

cocaína aos negros que trabalhavam nas lavouras de algodão no sul dos Estados

Unidos. Foi assim que, para ela, o sistema jurídico penal criminalizou, estimulou e

demonizou determinadas drogas, associando-as a populações a que se quer

criminalizar.

Rauter (2003) discute como o poder opera em positividade produtiva inventando

procedimentos de controle, resultados vivos do conhecimento. É aí que se

circunscreve a criação da periculosidade e da criminologia como saber sobre o

corpo. Os saberes validam os procedimentos: a exclusão de um sistema mais

diretamente repressivo combina-se à elaboração de métodos que condicionam a

sujeição.

78

No século XIX, a criminalidade esteve ligada à contestação política de estado, (como

apontou Batista em suas pesquisas) num país cuja cultura política sempre articulou

dispositivos autoritários e uma legislação liberal. Mas é também nesse século que o

espaço social é arregimentado e os agenciamentos coletivos são articulados em

uma máquina abstrata que esquadrinha o social e o articula a partir de

procedimentos médicos e higienistas. O espaço urbano é reorganizado e a

desordem compara-se à doença (RAUTER, 2003).

Os desordeiros são subprodutos das políticas de escolarização, saúde e segurança

que fazem instaurar uma disciplina diferenciada da repressão direta, uma espécie de

biopoder, um poder sobre o corpo, uma forma articulada e combinada/controlada de

viver e estar.

A nova disciplina de articulação do espaço social é também redefinidora da política

de encarceramento. Enquanto opera-se a medicalização26 da cidade uma nova

forma de encarceramento gera um saber sobre o corpo do preso e a definição de

crime, a criminologia. Esse saber “[...] constitui o criminoso como um anormal [...] e

vai descobrir nele características que confirmam sua diversidade quando comparado

às pessoas honestas” (RAUTER 2003, p. 32). Essa anormalidade que lhes garante

ser “[...] um ser atávico, [...] exemplo acabado de um evolucionismo às avessas,

repetindo em épocas modernas o homem primitivo, em seus caracteres somáticos,

instintos bárbaros e ausência de sensibilidade física e moral” (RAUTER 2003, p. 33).

Há uma crítica a essa conceituação, mas confirma-se a anormalidade como um

excesso de instinto e daí a criminologia torna-se um controle sobre o comportamento

e, a seu modo, uma forma de constituir o suspeito. Esse é o viciado, o preguiçoso, o

covarde, o exagerado, o homossexual e promíscuo, dentre outros. Novamente crime

e droga formam uma boa parceria para o saber de plantão.

O que tento dizer é que a violência e o crime foram associados à droga mesmo

antes dessa se constituir um ingrediente do crime e da violência. É como se um

signo se remetesse ao outro num ato de ordem e não como um agenciamento para

26 Por medicalização entende-se toda a extensão dos serviços sanitaristas e de higienização a que foi submetido o espaço urbano na metade do século XIX: sua arquitetura, a implantação de normas sanitárias e de controle das epidemias, a limpeza urbana e a nova ‘arrumação dos cárceres’, hospitais e escolas.

79

a liberdade. O estrato originado dessa articulação mostra que a criminologia e o

direito penal criaram o crime tal como dele se dispõe. A lei, por sua vez transforma

certas condutas em ilicitude, as criminaliza antes mesmo de examinar sua relação

com o mundo. O saber arregimenta, esquadrinha, nomeia e inventa os

procedimentos de controle que criam, ao mesmo tempo, crime, criminoso, suspeito e

punição.

Cinzas . Por isso mesmo Batista entende que é necessário “[...] desconstruir a

questão das drogas” (BATISTA 2006, p. 259). Dito de outra maneira, a palavra de

ordem precisa ser reconhecida em seu movimento de imanência. Não se trata de

revelação, mas de perceber o movimento real dos signos: a velocidade em que um

remete-se a outros. Para a socióloga isso seria

[...] desnaturalizar a violência contra a juventude pobre: trata-se de um passo importante para a interrupção do filicídio e da constituição da periferia em campo de concentração, territórios de suspensão de direitos, seja na Palestina, no Iraque, em Beslan ou nos morros da nossa cidade (referindo-se ao Rio de Janeiro) (BATISTA, 2006, p. 260).

2.3 RENASCER DAS CINZAS: A CONFABULAÇÃO DA VERDADE SOBRE O

FOGO!

Quem traz o fogo em mãos? Quem se esconde atrás da pira que sombreia o feixe

de luz que lhe incide exatamente na cara? Esse é o jogo: esconder o fogo, aquecer

o rosto, o rosto ofusca o fogo.

As histórias são iluminadas por feixes ardilosos de luz da mesma forma que sua

memória obscurece os feixes de luz que até ela chega. Esse é o jogo: o objeto a ser

cartografado apresenta-se cada vez mais como um fluido contínuo das relações, e

sua face é apenas resultado de um deixar-se acender e apagar continuamente.

A naturalização da violência contra a juventude pobre, junto à culpabilidade pelo uso

e venda de drogas aciona um jogo que, propositalmente, ilumina o que lhe convém,

gerando operações fáceis de causa e efeito. A causa apresenta-se como

inquestionável e o efeito precisa ser eliminado ou corrigido.

80

Todas as discussões feitas por iniciativa da governamentalidade trazem sempre

como recorrência a necessidade de inclusão e de correção. Sugerem, portanto, a

existência de uma anomalia que exige sempre uma ação corretiva ou punitiva. Por

que caminhos nascem esses anormais, que não são diferenças da natureza, mas

‘desvios sociais’? E mais, eles são frutos ou objetos de correções e punições?

O uso de drogas desperta a necessidade de ações de estado circunscritas a uma

forma de governar que, como já disse, movimenta técnicas e procedimentos que

mobilizam o corpo. São saberes, conhecimentos, diretrizes e ações que constituem

o que se convenciona chamar de políticas públicas. Essas funcionam como

dispositivos disciplinares construídas ao se investirem de uma lógica ‘de verdade’,

que padece de mediações mais singulares. Legitimam um espaço carente de

aberturas. Ora, as políticas de gestão estatal terão mais sentido quando as

negociações que perfazem sua elaboração forem sensíveis ao ‘vivido’, mesmo que a

prescrição traga, per si, elementos coercitivos muito nítidos.

Ainda que haja recomendação para que as questões sobre droga sejam tratadas no

âmbito da saúde, quando o ser que se droga é visto como um perigo social, isto lhe

faz depositário de políticas de correção.

As políticas nacionais de prevenção, tratamento e reinserção social dos usuários

geradas em fóruns, gabinetes, conferências, discussões locais e outros são

prescritas para articular-se, intersetorialmente, embora essa seja a dificuldade de

sua execução. De qualquer forma, as práticas discursivas institucionais engendram-

se produzindo uma específica economia da verdade, colocando-a em

funcionamento. Trata-se da criação de critérios generalizáveis de falso e verdadeiro

que obtêm certificação nas práticas de relações de poder cotidianas (FOUCAULT,

1996, p. 13). São esses critérios que validam as drogas como objeto passível de

males e o drogado como ser perigoso.

O apontamento dessas relações de poder presentes nas biotecnologias sobre o

corpo drogado levará a jogos de verdade que se alteram junto à arquitetura móvel

das mesmas relações, evidenciando o sentido sempre cambaleante da verdade e a

necessidade político-moral de sua ‘invenção’ para a produção de saberes sobre o

tema. Assim, não se trata de tomar a estrutura dos documentos e políticas como um

81

dado, mas entender em que cenário são geradas essas ‘respostas’ e,

principalmente, em que medidas seus efeitos articulam-se no cotidiano.

Para entender como as prescrições que subjazem as políticas de gestão estatal,

ditas públicas, ou as não-prescrições que implicam nas ausências produtivas se

estabelecem como verdades, é preciso entender o funcionamento da produção de

verdade sobre a qual se instalam as políticas. A desnaturalização está na própria

compreensão da ‘artificial’ busca humana da verdade.

Ao contrário do que possa parecer, o homem não deseja instintivamente a verdade.

Está na gênese do pensamento racional a associação arbitrária entre verdade e

ciência que daria validade e veracidade a qualquer política advinda do saber

racional. Essa é apenas uma história demarcada pela emergência do socratismo que

embalou o conhecimento ocidental.

Nietzsche traz a verdade e seu caráter absoluto ao naufrágio, mostrando-a como um

produto das forças reativas:

O que é a metafísica racional criadora do espírito científico? E justamente a crença inabalável de que o pensamento seguindo o fio da causalidade pode atingir os abismos mais longínquos do ser e que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mais ainda de corrigí-lo. (NIETZSCHE, apud MACHADO, 2002, p.31).

Paira uma desconfiança sobre o desejo de correção que parece ser derivativo da

vida. De causa em causa, atinge-se uma justificativa perfeita para os

acontecimentos? O objeto é coerente quando cada etapa de sua constituição pode

ser verificável? Tudo isso traz um cheiro de arbitrariedade eminentemente humana.

O conhecimento é visto como uma derivação humana, o que lhe atribui um sentido

circular: é homem porque conhece; conhece porque é homem. Para esta lógica, que

é interna ao próprio conhecimento, é que Nietzsche ergue sua afiada espada.

Para Foucault, não é possível tomar como dado um sujeito que deseja conhecer,

como produto instintivo do que é humano. Ele se imbui de uma análise da formação

do sujeito sem lhe atribuir uma ‘faculdade’ de conhecimento. Este seria um produto

hostil de batalha. Toma, para isto, a idéia de invenção (Erfindung) em oposição à de

82

origem (Ursprung), visto que esta última remeter-se-ia à natureza ou essência

humana. “A invenção – erfindung – para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por

outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável”

(FOUCAULT 2005, p.15).

Os filósofos - Nietzsche e Foucault - defendem que para eles os instintos são de

natureza completamente diferente do conhecimento. Antes pelo contrário, os

instintos batalham e jogam, assim algo de outra natureza é gerado nesta relação de

forças: o conhecimento. Cai por terra a explicação de que o conhecimento seja uma

refinação dos instintos: é uma centelha entre duas espadas, que, segundo Foucault,

não é do ferro das duas espadas. O conhecimento, em rebeldia aos conceitos de

bondade e virtude, é hostil, é um compromisso no interior de “[...] más relações [...]”

(NIETSCHE, 2001b, p.82)27, sempre inadequado, sempre efeito de superfície.

Resultado de batalha torna-se um acordo, um repouso em cama de espinhos que

em nada se assemelha à dinâmica dos instintos, é antes, uma relação contratual dos

impulsos entre si. A conciliação final só mostra-se virtuosa na medida em que a

enfadonha batalha é esquecida (FOUCAULT 2005, NIETZSCHE 2001b).

Para Nietzsche (2001b), o conhecimento racional não pode ser ‘examinado’ a partir

da lógica desse mesmo conhecimento, sob o pretexto de rodar em torno de si

mesmo, numa atitude cartesiana por excelência. Propõe, assim, o exame da

verdade e da razão a partir de um ‘sentido’ ou saber artístico. Machado (2002, p. 29)

diz que, em Nietzsche, “[...] a valorização da arte - e não do conhecimento - como

atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a busca de uma

alternativa contra a metafísica clássica criadora da racionalidade”. Essa ascendência

da arte deve-se à sua força em proporcionar a ‘experiência dionisíaca’.

É na tragédia grega que o filósofo alemão vai encontrar um sentido que afirme a vida

em detrimento de sua diminuição e subtração. Diz que o grego, aberto à experiência

dolorosa, caótica e desmedida, encarnado em Sileno28 – personagem que cantarola,

ri e bebe – pode quedar-se no pessimismo e na morte. Em acorde com o bárbaro

Dioniso, a exuberância do estrangeirismo, o exagero, a diluição, a embriaguez e a

27 o autor fala do conhecimento como originário de três erros, criticando Spinoza para quem o conhecimento diviniza o homem. 28 Sábio, amigo de Dioniso, andarilho dos bosques da Prígia.

83

experiência orgiástica os caracterizam. Expressão desregrada do instinto que não

tem arestas, Dioniso voluptuosamente destrói com crueldade todo e qualquer

princípio organizativo. Enlouquece, avidamente deixa que o frenesi e a

extravagância afirmem a vontade infinita de viver. Contudo, essa trajetória pode

levar ao aniquilamento da vida. E acontece o encontro fatídico com Apolo. Este,

oniricamente organizador, movido pela plasticidade sensual, sonante e harmônica

oferece formas para a vida - uma aparência - existir sem aniquilar-se: doa o princípio

da individualização ao mundo, esculpe a dissolubilidade dionisíaca, dotando-lhe de

beleza. Eis o nascimento do belo como plástica da arte: cheio de sentido não

importa se é boa ou má a matéria, desde que seja bela! A beleza é expansiva: “[...]

uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir” (MACHADO,

2002, p.19). Dota a vida de véus oníricos que velam o pessimismo.

Se Apolo é individuação, a experiência dionisíaca é o rompimento com este

movimento organizativo do homem, da consciência e do Estado, gerando uma

atordoada aliança com a natureza, desintegrando os limites ordinários da vida,

afirmando a vontade que quer eternamente, que deseja, que aspira (MACHADO

2002). Para Nietzsche (1996), são as formas apolíneas da aparência que

possibilitam a experiência trágica. Se Dioniso expande o ser até o precipício de si e

o confunde com a natureza, Apolo o salva pela virtude da aparência. A contradição

está, a princípio, na oposição em aparência e essência que será desfeita pela arte.

Titânica e bárbara parecia também ao grego apolíneo a emoção provocada pelo estado dionisíaco : e isso sem que ele pudesse contudo dissimular a afinidade profunda que o ligava a esses titãs vencidos e a esses heróis. Ele devia ressentir algo mais: toda a sua existência, com tal beleza e medida, estava sobre o abismo escondido do sofrimento e do conhecimento, e o espírito dionisíaco vinha agora mostrar-lhe o fundo do abismo. Mas vede: Apolo não podia viver sem Dioniso! O Titânico ou bárbaro era finalmente uma necessidade imperiosa como o olímpico (NIETZSCHE, 1996, p. 35).

Esses instintos impulsivos e paralelos, em convivência agonística, se desafiam, vão

criando formas de mascaramento do conflito, por meio da arte, de uma só vez: a

tragédia. Somente a tragédia é capaz de gerar um Dioniso artístico, cujo elemento

orgiástico está plasticamente encarnado no herói trágico, que sofre, anunciando a

dor como elemento integrante da vida: a alegria está presente e não mascara a dor,

84

não nega a força que eternamente quer – a vontade! (MACHADO, 2002). Assim, a

tragédia mostra o prazer de viver, de querer, de ser trágico!

A arte possibilita a afirmação da vida, mas a racionalidade a interioriza,

entristecendo-a, não se constituindo, como pode se pensar uma naturalidade. É

possível demonstrar a artificialidade dos procedimentos, ou em outras palavras, a

invenção das regras do jogo: a submissão da arte à racionalidade acontece

paralelamente à submissão da vida a uma crença na verdade (portanto, à sua

invenção), sendo que esta última nasce de uma ilusão metafísica ligada à ciência.

Não é a toa que Nietzsche (1996) foi aos tempos pré-socráticos buscar o que para

ele é afirmação da vida. Tempos em que a fisiologia do pensamento e a vida

afirmavam-se mutuamente. A unidade prescindia do conceito. As Teogonias, os

coros ditirâmbicos mostram uma emergência de vida que não carece de

inteligibilidade, sua expressão trágica já tornava possível a comunicação. Para

Deleuze, nesta ‘época fisiológica’, produção do filósofo legislador, a vida era

afirmada pela crítica aos valores estabelecidos – a filosofia era sempre uma

dissolução. Mas, há uma degeneração: a filosofia volta-se contra si, prende-se à sua

máscara e empunha-se do julgamento da vida, da conservação dos valores.

(DELEUZE, 2001).

Isto acontece em um movimento de submissão da filosofia e da arte à razão. O

conceito desclassificará o trágico como expressão que não se explica, carente de

correções, subordinando-o ao socratismo ascendente:

Tudo deve ser inteligível para ser belo, sentença que tem par na de Sócrates: Só é virtuoso quem é ciente. Munido deste cânon, Eurípedes aferiu todos os elementos da tragédia: a língua, os caracteres, a construção dramatúrgica, a música do coro; depois corrigiu tudo (NIETZSCHE, 1996, p. 80).

O socratismo submete a beleza à racionalidade e a consciência, solapando a

autonomia plástica da aparência. De outro modo, são os princípios socráticos que

vencem o saber trágico de indissolubilidade da aparência e essência, através de

uma crença na inteligibilidade/ racionalidade necessária do mundo ligada

fundamentalmente à ciência.

85

É real que, para Nietzsche, toda intervenção no mundo é humana, as qualidades

das coisas não correspondem a nenhuma exatidão de formas. Esse caráter

interpretativo fixa sempre um sentido fragmentário e parcial cujo valor é

determinado por uma hierarquia dos sentidos (DELEUZE, 2001). O que é finito é

sempre uma ilusão, não se pode falar de determinação da terra, e, portanto, de

sistematizar uma pré-existência. O que existe por si só é indeterminável, não

estando, assim, à revelia da previsão (NIETZSCHE, 2001). Como seria a

racionalidade e a verdade uma derivação humana?

Se a racionalidade não é um valor derivativo do homem e, em seqüência, originaria

a verdade, de onde viria esta? Expressamente das convenções racionais, produtos

das relações sociais e políticas, afeitas à moral. O filósofo alemão fala de uma

necessidade em crer na verdade, de uma necessidade social: “[...] a verdade surge

[...] por uma metástase em seguida passa a ser aplicada a tudo, mesmo onde não é

necessária. [...] o instinto de conhecimento tem uma fonte moral” (NIETZSCHE,

2001, p. 32). Ele brinca com o conhecimento, atribuindo-lhe um ‘instinto’, mas

afirma-lhe ‘moral’, desta feita, puramente social e arbitrário.

Sendo a verdade uma convenção, nada tem de instintiva, visto que seu caráter

social aplica-se à intensidade com que a desejamos, não importando sua

correspondência nem mesmo com juízos de veracidade, mas a sua funcionabilidade

em uma dada sociedade ou grupo social ou até mesmo indivíduo. A verdade serve

à moral, o que se estabelece como verdadeiro, independe do que possa ser falso ou

verdadeiro, por que isso mesmo também é uma convenção, mas do que é bem e

mal para o grupo em questão.

Sob pena de voltar à questão inicial sobre a verdade é melhor reafirmar: “[...] a

filosofia instauradora da racionalidade, criadora da oposição verdade-aparência, é

uma filosofia moral” (MACHADO, 2002, p. 52). Por isto, para Nietzsche, só se pode

examinar a racionalidade a partir da arte que não opõe a aparência à essência,

antes mostra que estas são indissolúveis, já que a vida só é possível na aparência,

na plasticidade, para que não se aniquile.

Essa força moral que prioriza a racionalidade é a mesma que constrói a verdade. O

sentido anárquico dos afetos passa a ser controlado por uma verdade racional,

86

atribuindo-lhe, de tempos em tempos uma direção, que é moral, justificadora de

uma forma de viver ‘mais adequada’ à valoração dada à vida numa determinada

época.

Não é exagero afirmar que as políticas de gestão estatal sobre drogas instauram-se

no marco do que seria ‘uma verdade’ sobre o uso sistemático destas substâncias. A

existência de ações públicas mais efetivas e discursivas seriam produções de jogos

de poder e verdade que a moralidade vigente produz como justas e corretas. De

certo, há pontos de tensão que deslocam estas verdades, expressamente por que

os jogos de poder são móveis.

De qualquer forma, a política sobre drogas comporta uma gestão da moralidade e

suas referências às práticas dos usuários, incitando-lhes correções, já que a

‘anormalidade’ do uso justifica-se na norma, na lei, na moral e na religião, dentre

outros. O usuário carece de correções, quando não de privações que lhe impinjam a

necessidade de mudança de atitude. Antes disso, ele será alertado, prevenido do

que se avizinha.

De fato, há uma produção intensa de políticas nacionais de caráter preventivo

abarcadora de uma verdade contida nas pesquisas quantitativas e até qualitativas,

mas seu caráter fragmentário e a ausência de capilaridade tornam inócuos os

projetos de regionalização e aproximação do usuário de drogas - álcool e outras -

de sua comunidade e familiares. Além disso, não há uma ativação de rede

institucional das políticas já existentes, destituindo o sentido da produção.

- “não, não conheço as políticas nacionais, aliás, nem as locais. Existe alguma coisa além de propagandas contra droga?” (professora da EMEF Edna Mattos Gáudio). - “Vejo muitas igrejas fazerem campanhas, mas não a escola, só palestras, às vezes, pelo CPTT” (funcionária da Secretaria da EMEF Juscelino Kubistscke). - “vejo muita coisa espalhada, mas sem comunicação com quem usa, prevenção à toa” (professora da EMEF Juscelino Kubistsckek). - “eu gosto quando tem palestra, a gente aprende.”. - “eu não gosto de palestra, só serve para quem já não usa drogas mesmo” (dois alunos da EMEF Juscelino Kubistsckek).

87

Essas falas indicam a ausência de ações locais mais interessantes para o diálogo

entre as pessoas no cotidiano do espaço escolar. A estratégia pode limitar ‘à

conversa’, as implicações que poderiam ser causadas.

Há uma limitação que se funda no ensejo de definir uma verdade, de dar uma

resposta à uma demanda social. Mas, se a política não produz efeitos afirmativos

certamente é por que não se encarna, volatiliza sem antes deixar inscrições. A

pergunta é: de que tramas partem que não produzem linhas de articulação?

Esperar uma unidade e um modelo para produção de políticas é uma idealidade

presente no sentido puramente moral da verdade. A realidade instaura

multiplicidades cuja intencionalidade é inexistente, não se interconectam

previsivelmente e não se remetem a um fim determinado, aguardam sim relações –

devires – casuais, ‘acontecidos’, por provocações ou não, mas em funcionamento

maquínico e abundante. Os modelos são produções redutíveis: capturas subjetivas e

inseridas, maquinicamente, na produção capitalística de subjetividades capitalísticas.

Em outras palavras, “[...] uma multiplicidade não tem sujeito, nem objeto, mas

somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que

mude de natureza (as leis das combinações crescem, então , com a multiplicidade)”

(GUATTARI e DELEUZE,1995a, p. 16). Uma multiplicidade está em constante

metamorfose, inclusive de sua própria natureza, não é, assim, possível deduzir a

realidade a um modelo ou a um padrão de usuário de drogas.

As prescrições estão no cotidiano e não opostas a ele. Fabricam-se nele, mas

apenas como um de seus elementos, fluidificado na grandeza vasta da

multiplicidade. Perdida no dia a dia, a prescrição é desarmada pela contínua

produção de heiccidades – “[...] modos de individuação que não procedem pela

forma e nem pelo sujeito e sim nos acontecimentos, nas intensidades” (MACHADO,

2002c, p. 23). O cotidiano é mais volumoso que as certezas, que os modos molares

(GUATTARI E ROLNIK, 1996), que as prescrições e, assim, políticas só funcionam

nesse movimento quando expressam a calcificação da própria vida.

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As políticas de gestão estatal existentes estruturam-se a partir de informações e

debates e ligam-se institucionalmente à Secretaria Nacional Anti-Drogas29,

subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

Os documentos repetem a necessidade de uma intervenção intersetorial por se

tratar de um tema ‘multifatorial e multifacetado’.

A Secretaria Nacional Anti-Drogas (SENAD) é responsável, institucionalmente, pela

elaboração da política nacional sobre drogas. A priori, quando da sua constituição

houve um grande debate sobre a sua ligação interna. Apontava-se que uma política

sobre drogas deveria ligar-se ao Ministério da Saúde, mas por ser responsável

também pela diminuição da oferta de drogas, justificava-se como de

responsabilidade da segurança nacional. Este não é um debate acabado. Sua

ambiguidade é notória: falamos de usuários e de traficantes, que enriquecem (ou

não) com a construção de relações de poder de nova ordem. Tanto a política de

prevenção e tratamento, quanto a de repressão e coerção estão sob a gestão da

mesma secretaria (que a delega paralelamente a outras, quando a infração

acontece), muitas vezes complicando e confundindo o tratamento da questão e seu

diálogo com os diferentes grupos da sociedade.

A SENAD recomenda que as ações se regionalizem, especialmente, por meio da

formação de Conselhos Estaduais e Municipais sobre drogas30. Publicam

regularmente material usado para palestras, oficinas e distribuição em postos de

saúde, escolas, eventos, no trânsito, etc. A maior parte destes materiais reporta-se

também ao álcool como substância psicoativa de grande risco.

Já disse em outro momento que a nova legislação sobre drogas acionou um debate

nacional sobre a relação do poder público com a questão. Há uma grande discussão

em torno desta Lei, a de nº 11.343, aprovada em 2006 e chamada de Lei Antidrogas.

Ela revogou duas outras, a 6.368/76 e a 10.409/02. Até então as referidas leis

29 “[...] Secretaria Nacional Antidrogas - SENAD foi criada pela Medida Provisória no 1669 e pelo Decreto no 2.632, ambos de 19 de junho de 1998, alterado pelo Decreto no 2.792, de 1o de outubro de 1998, revogados pelo Decreto no 3.696, de 21 de dezembro de 2000. É o órgão executivo das atividades de prevenção do uso indevido de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência, bem como daquelas relacionadas com o tratamento, recuperação, redução de danos e reinserção social de dependentes” (www.senad.gov.br). 30 Estes Conselhos tem diferentes composições em cada local, níveis de autonomia variados e também nomenclaturas. Recomenda-se que sejam Conselhos sobre Drogas, mas muitos deles guardam os antigos nomes: Conselho de Entorpecentes, Anti-Drogas, etc.

89

puniam com detenção o portador de drogas (aquele que guarda, traz consigo, para

uso próprio, a substância entorpecente ou que determina dependência física ou

psíquica, sem autorização).

A discussão pauta-se na questão da discriminalização. Parte das análises jurídicas e

sociais dizem da diminuição da carga punitiva, mas não da exclusão da sanção

penal, o que não caracterizaria a discriminalização. A lei, para estes, apenas não

restringe a liberdade, mas imputa outras penalidades, como o tratamento obrigatório.

Para outros, na medida em que a lei constitui o porte de drogas como um fato ilícito,

mas não penal, é, então, de caráter sui generis. Para esses, como no Brasil os

crimes são infrações punidas com prisão, e a pena para o portador de droga é a

advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas

educativos, etc, não é mais crime.

Este debate ainda vai longe, mas de qualquer forma a lei brasileira em muito se

assemelha à política ‘War on Drugs’ (Guerra às Drogas) pautada pela lei norte-

americana no que se refere ao usuário: adota o sistema de ‘Justiça Terapêutica’, em

que ele é submetido à pena de tratamento, submisso, inclusive, a exames

toxicológicos durante o período, se requisitado e, prisão, caso não atente ao

tratamento e, além disto, não expressa medidas mais avançadas sobre a política de

redução de danos. Os críticos à lei esperavam que esta avançasse, inserindo a

infração no campo da administração e/ou sanitário e não como fato criminal, já que o

consumo é próprio do direito privado e não criminal (ZALUAR, 2002). Também

defendiam uma estratégia específica de prevenção, justificando que o alvo é o

cuidado com a ‘pessoa humana’ e não as substâncias psicoativas.

Quanto ao tráfico, a jurisprudência sobre a definição de volume de substância que o

caracteriza cabe ao juiz, mas a nova lei aumenta o tempo de prisão para o traficante,

já que a política instaura-se sobre a retenção da oferta. Na prática, a efetividade da

lei gera implicações relativas sobre o modo de ser e estar do usuário. Como o

aparato jurídico legal é insuficiente para conter a oferta, quando se trata da demanda

os casos são ainda mais graves.

A prisão do usuário, para ele, pode ser tão rotineira que, naturaliza-se na sua fala:

90

- “Eu sabia que não podia ir preso, mas toda semana precisa de um cristo para levar um tranco. Nem ligo...”

Perguntei a um menino que conheci nas imediações de uma escola sobre seu

paradeiro, já que não o via há algum tempo. Quando o vi estava com peso maior,

mais robusto, mas não menos agitado que da última vez, há dois meses anteriores.

- “Eu tava na cadeia..assalto a mão-armada” (Francisco, 15 anos).

Cena barulhenta para mim. Sabia que era usuário de crack e álcool. Provavelmente

adquiriu alguns quilos na cadeia, onde não tinha acesso à substância (ou o tinha de

maneira restrita), cujo efeito imediato é o emagrecimento radical, dependendo da

quantidade de uso. Grotesco engordar na prisão, eu pensei. Eu o vi de novo, depois

disso, há pouco tempo. Estava lá com sua latinha, magro que só, com um riso pueril

no rosto. Minha imaginação novelesca já me disse: a pureza de quem só conhece

um paraíso...

Rodrigo é rico, morador de Vitória, e também foi preso. Estuda em escola pública por

que os pais já não veem motivo para pagar ensino particular, é o que ele diz.

Também engordou, mas segundo ele, está se recuperando. Estava na sala de

Narcóticos Anônimos (NA), Grupo Guerreiros da Luz, em Jacaraípe, em reunião,

onde estive em visita. Faz o segundo ano do ensino fundamental, mas não quis

dizer a escola em que estudava.

- “Já tinha roubado pai, mãe e amigos. Mas, daí resolvi entrar num rock de assalto. Me dei mal, mas vi também onde podia chegar. Quero isso não! To no caminho da luz”

Sandra também frequenta NA. Diz-se dependente de álcool e crack. Disse para mim

que ‘eliminou um elemento’ - matou alguém - e quer parar de usar drogas:

- “Aqui é o único lugar que me compreendem”.

91

Essa variedade de histórias mostra-me, de início, que a criminalização ou

discriminalização do uso não resolve a questão dos ‘usos’ e efeitos que a

dependência impõe à pessoa. Uma vez cerceado na sua capacidade de escolha, a

‘verdade’ da lei é etérea para o usuário. Ele depende, ele usa, não importa a forma

ou a punição a que estará sujeito. Os mecanismos de normalização, articuladores de

disciplina e regulação da vida, são subjetivados, a meu ver, de forma reativa,

ressentida, mas têm efeito questionável no que diz respeito à segurança do contrato

social.

A forma como os ‘delitos’ são produzidos e julgados numa sociedade diz respeito a

uma certa dinâmica dos jogos de saber e poder: é o desenho de uma história política

da verdade, de como os homens se relacionam com a verdade. Dessa forma, é uma

produção de arbitragem dos danos e responsabilidades que define tipos de

subjetividades, que são produtos de uma política da verdade (FOUCAULT, 2005).

Para fazer funcionar uma certa economia da verdade será necessário que esta se

instaure assegurando seu caráter veraz, numa movimentação de saber e poder.

Neste estudo a criminalização ou descriminalização das drogas só interessa na

medida em que a norma, a lei, em última instância, se produz a partir de fabricações

de idéias de ‘normal’ e ‘anormal’ e estas perfazem uma trilha de passagem para

legitimar-se, que ancora-se em fazer funcionar de certa maneira os corpos. O que

estou dizendo é que sobre o corpo instaura-se, produtivamente, relações de poder

que criarão a ‘anomalia’, quase como um pathos do crime.

Para Fonseca (2002), há na leitura dos trabalhos de Foucault uma genealogia do

‘anormal’, a operação da norma que o cria, e, entendo, uma genealogia da sua

criminalização. Ele cita a conhecida história das loucuras do Rei George III que, ao

perder a razão, é destronado e separado das instituições que lhe legitimavam o

trono e submetido a um poder de tratamento psiquiátrico que desejava ter efeitos

sobre o corpo do rei: dominar o louco (ainda que haja na loucura algo não

dominável) e de uma só vez, submetê-lo, “[...] cuja submissão representaria a cura”

(FONSECA, 2002, p. 244). É observando o poder psiquiátrico que Foucault poderá

estudar como este migra para outros espaços “[...] onde é necessário fazer a

realidade funcionar como poder” (FONSECA, 2002, p. 246).

92

É de novo Fonseca (2002) que mostra que a extensão e transposição do poder

psiquiátrico se deu pela psiquiatrização da infância. Se o adulto poderia ser ‘louco’,

faltavam parâmetros para caracterizar assim a criança. Desta feita, aquelas que não

perfaziam uma média de desenvolvimento, atingiam os chamados graus de

imbecilidade e idiotice, e nem por isso eram doentes ou loucas, só poderiam ser

‘desviantes de uma norma’, por sua vez, anormais – continham anomalias. É a

psiquiatria que, metaforicamente, cria o anormal e incide sobre ele as justificações

da articulação de saberes, constituintes dos jogos de verdade.

A partir daí, os laudos psiquiátricos eram requisitados no julgamento dos crimes.

Adjetivados, ressentidos, os laudos mostravam a incapacidade de justificar, a cada

complexidade gerada, o que o humano socialmente produzia. Os discursos

psiquiátricos, por vezes, rizíveis, podiam, contraditoriamente, matar. Para o autor,

são eles que estarão no centro da instituição jurídica. Estes discursos, laudos

médicos-legais:

[...] não são homogêneos nem ao direito, nem à medicina, não derivam nem do direito, nem da medicina [...] Ora, tais discursos estariam ligados a uma forma de poder (aquela mesma forma de poder a que é submetido o Rei George destronado) que transforma o poder judiciário e o saber psiquiátrico em instâncias de controle do anormal e não somente em instâncias de controle do crime e instância de tratamento da doença, respectivamente (FONSECA, 2002, p. 249).

A questão é quem eram os anormais, uma vez que as instituições se constituíam do

poder para os controlar? Ou seja, como este poder constituía-se de forma mais

extensiva na sociedade, produzindo a ‘anormalidade’ a cada época, conforme a

articulação saber-poder?

De volta à questão sobre a anomalia e a exigência da punição/ou correção se

coloca. Sigo na trilha da ‘invenção’ do anormal. Foucault nos fala de uma construção

histórica da anormalidade a partir da necessidade de dominar a anomalia, que parte

de um poder psiquiátrico, mas se estende às instituições. Ele vai dizer que o anormal

é o descendente de três outros: o monstro humano, meio homem, meio animal; o

onanista e o incorrigível. Somente quando uma rede de articulações é capaz de criar

regularidades para ‘algo’ que contém - monstruosidade, incorrigibilidade e mistérios

93

próprios ao masturbador é que está criado e, derivativamente dominado, o anormal.

Este é cotidiano, diário, mas não apresenta regularidades, sendo uma ameaça à

ordem, ao pacto social.

O ‘monstro diário’ traz consigo aquilo que não pode ser detido, mas pode ser

submetido, corrigido, eliminado e desapropriado de seu conteúdo autônomo. O

anormal está ligado a uma noção de anomalia justificada por uma moralidade

específica: um ‘monstro moral’ que não se explica nem pela loucura, nem pela

ausência de razão, mas por uma forma de imputação do crime calcada nos ‘pecados

do instinto’.

Foucault explica-nos, por meio do caso de Henriette Cornier, que degola uma

criança de 19 meses, filha da vizinha, justificando: “[...] foi uma ideia!” (FOUCAULT,

2001). Em seu julgamento, segundo o autor, nenhuma razoabilidade viu que a

motivasse, nem tampouco um delírio ou doença mental. Mas, de pronto, uma nesga

de justificações, apura um sentido para imputar o crime: Cornier é o que é!

A trajetória da pessoa em foco era marcada pelo abandono de sua família – seus

filhos - pela depravação e degeneração, e, por fim, por matar uma criança, sendo a

semelhança do sujeito com seu ato, a razão da imputabilidade do ato ao sujeito. A

justificativa para imputabilidade: alguém ser o que é. A anormalidade está em que a

pessoa é o que é, um monstro moral, ameaça a racionalidade social:

Com Henriette Cornier, vemos o mecanismo pelo qual se processa a inversão de um ato, cujo escândalo jurídico, médico e moral estava em que não havia razão, num ato que coloca para a medicina e o direito questões específicas, na medida em que pertenceria a uma dinâmica do instinto. Do ato sem razão, passamos ao ato instintivo (Foucault, 2001, p.164).

O julgamento se faz a partir da constatação de que algumas pessoas não superam o

que são (supondo que houvesse que superar), devido a uma dinâmica típica dos

próprios instintos. Foucault está atento para o fato de os instintos se tornarem, ao

mesmo tempo, o fato, a explicação e o articulador das doenças e irregularidades

sociais.

94

O instinto torna-se o detonador de uma nova problemática social que deixará pistas

sempre presentes de criminalização dos comportamentos e motivações punitivas e

corretivas. O que está em voga é o precedente, a prova da moralização dos laudos e

julgamentos e o cinismo real dos jogos de poder-saber.

É patológico ter instintos? Dar livre curso aos seus instintos, deixar agir o mecanismo dos instintos, é uma doença ou não é uma doença? Ou ainda, existirá certa economia ou mecânica dos instintos que seria patológica, que seria uma doença, que seria anormal? Existem instintos que são, em si, portadores de algo como uma doença, ou como uma enfermidade, ou como uma monstruosidade? Existem instintos que seriam instintos anormais? É possível agir sobre os instintos? É possível corrigir os instintos? Existe uma tecnologia para curar os instintos? (Foucault 2001, p. 166).

O que fica, para o autor, é a busca do ‘uso’ dos argumentos discursivos, do

entendimento de sua movimentação e a forma como acontece. O que importa é que

efeitos Henriette Cournier tem na atualidade sobre uma política dos instintos.

Não está em discussão o motivo do crime, nem mesmo se foi ‘instintivo’, mas a

possibilidade de criminalizar o instinto e buscar-lhe quando não se controla a

razoabilidade. Cria-se uma política dos instintos a partir de justificações morais e de

uma definição moral dos instintos, acusando-os, negativando-os.

Se é possível penalizar a vontade por ser vontade, se um comportamento anterior

imputa a alguém um crime ou justificação, então, o uso de drogas será sempre uma

prática carente de correção e/ou punição, apenas por ser uso, apenas por ser droga.

Voltaria, desta forma, a um suposto ato fundador sem qualquer mediação da

diferença.

95

CAPÍTULO 3

DO RESSENTIMENTO À POTÊNCIA: DA DOENÇA À GRANDE SAÚDE

[...] depois que cansei de procurar Aprendi a encontrar.

Depois que um vento me opôs resistência Velejo com todos os ventos.

(Nietzsche)

Estava lendo um pequeno texto de Deleuze, na Magazine Littéraire, quando me

deparei com minha insistência em descobrir o que me potencializa a continuar o meu

trabalho. Ele dizia de fazer o movimento, furar o muro, para não dar mais cabeçada.

Falava de fazer movimentos nos buracos, nas lacunas de onde emergem as

histórias dramáticas, subterrâneas. A minha matéria são essas histórias

naturalizadas, ora como espetáculos, ora como inevitabilidades.

“Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar” (DELEUZE, 1995a,

p.13). Agrimensar a matéria sem quantum e sem continnum que chega e cava o

muro em movimentos giratórios. Dizer do movimento, criando outro movimento, sem

roubar-lhe a textura, o fluido vital, a seiva, a eletricidade. Pensei no meu trabalho

como um texto de tolerância à gramática apressada, ao grito eminente, ao sentido

óbvio.

O que faria para resistir sem padecer? Como experimentar as doenças do vivido

sem querer morrer e, pelo contrário, chegar ao ponto de transformar tudo isso numa

perseverança em mim mesma? Como aprender a navegar com todos os ventos?

Como estavam circunscritas na experimentação a doença e a saúde?

3.1 AS EXPERIÊNCIAS-CALCÁRIO E AS EXPERIMENTAÇÕES-GEO:

CALCIFICAÇÕES, MODULAÇÕES E PASSAGENS

As calcificações são muitas. Em meio à potência móvel e modular da terra, seus

vermes, flores e putrefações, calos ósseos se fossilizam, se tornam calcário. E ali,

96

observa-se a obviedade de um solo calcificado que parece calar a água, as

torrentes, os pés, os bichos e tudo mais quanto urrar por perto. No entanto, o

calcário, rocha sedimentada é filho da terra, mãe da terra, cravado na terra, parte da

terra. É de cor diferente, peso, formação, conforme sua passagem sobre a terra, de

acordo com os gases e tempo que o compõe. Experiência e experimentação: a

primeira um momento da segunda, a segunda um plano móvel da primeira. Duas

conformações da ordem do mundo e da geologia.

O que foi conformado como mundo das drogas parece ser calcificado por ligações

perigosas, ‘satânicas’, ‘demoníacas’. É visto como um espaço de ascensão rápida e

‘vida fácil’ que, ‘infelizmente, atinge jovens pobres’ mais que outros em melhores

condições sócio-econômicas.

No meu caminho, percebi que a inexatidão da linguagem e as falas mostravam a

inadequação de pessoas que são desafiadas a dizer algo sobre, a fazer algo sobre,

a ‘salvar o mundo da completa dominação pelas drogas’. Mas, nem por isso estavam

livres dos carimbos da linguagem e do sentido. Não é porque pensam em afirmar

que encontram passagem por suas negações insistentes.

Para muitos, eles continuam a ser ‘desajustados, de famílias desestruturadas,

problemáticos, inteligentes demais para a média, gostam de vida fácil, não respeitam

os pais, perigosos, aqueles para os quais não há jeito’.

Há sempre um início a partir do qual é possível prever o fim:

- “Nós estamos vendo o que o uso de drogas é capaz de fazer. Vemos muitos meninos desistirem de vir a escola, agredir seus pais, etc. Tudo começa com o álcool e depois a porta está aberta para as outras drogas” (professora da EMEF Arthur da Costa e Silva, no Bair ro República, Vitória, 2007) - “O álcool que os pais permitem leva as crianças a locais onde há outras drogas...” (professor da mesma escola)

Quando perguntados sobre o abuso do álcool:

- “Nosso problema é com drogas, com álcool não temos grandes problemas” (professor da mesma escola).

97

É chamado de ‘cultural’ aquilo que foi naturalizado, como um comportamento

pressuposto, que não se pode evitar. Mas, assim que outros elementos visitam a

trama do pensamento, novas relações se fazem, quase que despercebidamente.

- “olha, não dá pra dizer pra menino-homem pra não beber. O pai, os tios, todo mundo bebe, daí é natural. Quando bebe em família é bom, alegra...de vez em quando dá uma briga, mas...” (mãe de aluno)

Perguntei a ela o quanto de bebida era natural.

- “o tanto que não faz mal, que não dá briga, que cada um fica no juízo, que não quebra nada, que não mexe com a mulher dos outros”, respondeu. - “Xiii, é muita regra pra ser natural né?”.riu.

As práticas, muitas vezes, são naturalizadas e habitam o corpo como uma segunda

pele, como se não houvesse porque destituí-las de veracidade. Comportamentos

são tomados por histórias precedentes que os justificam.

- “Está provado que quando o jovem tem família estruturada, boa, é mais difícil ele se enveredar no caminho das drogas” (professor da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009). - “Acho que a maioria deles é filho de família desestruturada. Eles também não têm onde se socializar, falta local” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2008). - “Eu trabalho honestamente, meus outros filhos também, não sei porque esse garoto inventou de fazer isso, usar drogas e vender. Só pode ser obra do mal mesmo...Eu falei com ele para não andar com aqueles meninos lá de baixo”(mãe de aluno usuário de drogas , 2008).

Haveria uma causa para cada fato, para cada prática? A relação causa-efeito explica

os desafetos e afetos da vida? A experiência se repete como um decalque? As

dadas condições da experiência determinam a experiência e seu curso? Seriam

hereditários os danos do mundo?

Por muitos instantes fui levada a um lugar onde tudo se justifica e a razão busca

aconchegar-se no receptivo colo das muitas pesquisas que associam causas como a

desestruturação familiar e as dificuldades de sociabilidade, por um lado e, a

98

ausência de equipamentos públicos de lazer, as dificuldades de emprego e a baixa

renda, por outro, ao uso intensivo de drogas. Essas razões estavam também

presentes nas falas dos pesquisados.

Silenciei-me por muitos dias aguardando um efeito. Esperava algo que funcionasse

como um túnel que fosse passagem a um sentimento novo. Talvez eu ansiasse por

uma outra justificativa. Foi pensando que rumos tomar que uma espécie de paixão

me distendeu. O orifício foi o ouvido (há de sempre ter uma entrada para a

construção da imagem):

- “é por acaso que meu filho começou usar isto. Ele tinha problemas como todo mundo tem . Por que ele usou e outros não? A vida tem estas coisas, a questão agora é como viver sem usar. Não tem como dizer o motivo. O motivo é a vida ” (grifos meus) (mãe de usuário de álcool, em tratamento no ALANON, irmandade para familiares de alcoólicos)

“O motivo é a vida”! A vida afetou-me pelas suas possibilidades. “Uma afecção é um

estado do corpo, num determinado momento, sob o efeito do mundo” (TEIXEIRA,

2004, p. 47). As afecções rompem edifícios e geram passagens conforme sua

intensidade, ‘afectam’ a relação do corpo com o corpo e do corpo com o tempo e de

um modo qualquer retorcem o espaço.

A mãe e a vida na boca da mãe me afetaram numa variação estranha... “[...]

passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência que vão

de um estado a outro [...] afectos” (DELEUZE, 1997, p.157). O meu corpo afetado

desejou e se apaixonou pela perseverança em mim. Meu padecimento foi afetado

pela presença da vida na boca da mãe. Foi como se um fluxo elétrico, chamado de

insistência, resistência ou perseverança me atingisse do fígado à pele e outras

imagens se tornassem possíveis. Lembrei-me de que “[...] Espinosa, no século XVII,

chamava de conatus a esse esforço feito por cada coisa para perseverar em seu ser

(proposição 6, livro 3: “Da origem e natureza dos afetos”, Ética)” (TEIXEIRA 2004, p.

36). A minha força decidiu resistir, como uma variação da força do conatus.

Afetado meu corpo, já em outro estado, esfacelou as hereditariedades e se pôs em

outro espaço imagético. “A imagem é uma paixão” (TEIXEIRA, 2004, p. 49). “O

motivo é a vida!”. O que haveria na vida que nos arrasta para a superfície

99

subterrânea da própria vida? O que valeria o ‘grande risco’ de abandonar o campo

de percepção em que está o outro como garantia de um mundo possível?

O povoamento do mundo, os indivíduos, as imagens construídas, tornam reais e

possíveis as experiências de percepção. O caso é que esse povoamento é infinito e

as combinações são capazes de alcançar vários níveis de liberação, não mais

recognição. Quando o abandono nos atinge, a estrutura do ‘possível’ pode ser

garantida pela força dos objetos imanentes:

Em suma: outrem é quem aprisionava os elementos no limite dos corpos e, mais ao longe, nos limites da terra. Pois a própria terra nada mais é do que o grande corpo que retém os elementos. A terra não é terra a não ser povoada de outrem. Outrem é quem fabrica os corpos com os elementos, os objetos com os corpos, assim como fabrica o próprio semblante com os mundos que exprime. O duplo liberado, quando outrem se desmorona, não é pois, uma réplica das coisas. O duplo, ao contrário, é a imagem endireitada em que os elementos se liberam e retomam, todos os elementos tornados celestes e formando mil figuras caprichosas elementares (DELEUZE, 1998, p. 321-22).

“O motivo é a vida!”. Pela fala da mãe me pus a pensar na vida como uma

experiência sem fim. Por que haveria, dessa forma, hereditariedade nesta

experiência? Por que haveria uma teleologia, uma relação de causa-efeito? As

questões estão postas, mas elas apenas percorrem a superfície, o entremeio de

tantas outras. Se uma única experiência acaba se tornando o foco é, imediatamente,

esconderijo de expressões carentes de plasticidade.

Há, sem dúvida, condições específicas para cada experiência que, num relance,

parecem determinar-lhe o foco e o curso. Por muitas vezes, a pobreza, as questões

familiares, as formas de lazer, pareciam determinar e explicar o uso intensivo de

drogas. Contudo, as condições da experiência não são tão específicas assim e nem

tampouco podem confundir-se com ela.

Toda vivência dota o vivido de singularidades que fazem com que a experiência

ultrapasse a si mesma. Isso porque a experiência traz novidades e forças que não

estavam presentes anteriormente, tornando-a capaz de estender-se para adiante de

si, para o meio de si, para algo que difere de si.

100

A vida e suas experiências não estão circunscritas apenas nas suas condições.

Caso assim fosse, teríamos sempre repetição e poderíamos prever o percurso.

Certamente, se assim fosse seria garantido que a eliminação das condições

apontadas para o uso de drogas levaria a erradicação do uso intensivo. Contudo, em

sociedades muito diferentes, o uso acontece e as condições variam como as

experiências. Na verdade, o racionalismo de alguma forma abandonou a

singularidade da experiência, condicionando, inclusive, grande parte da ciência

moderna a um calvário e mea culpa sem fim.

É de um princípio de diferenciação interna à experiência que trata Deleuze,

ultrapassando o tradicionalismo do empirismo. “O empirismo parte dessa experiência

de uma coleção, de uma sucessão movimentada de percepções distintas. Ele parte

delas na medida em que são distintas, na medida em que são independentes”

(DELEUZE, 2001b, p. 95)

Na sua leitura de Hume, Deleuze mostra variações internas do pensamento humano

para quem, segundo ele, a experiência não é uma soma de dados. Por meio dele,

Deleuze atenta para a naturalização da associação de causa e efeito, presente na

representação da experiência (a representação não é a experiência!), que generaliza

as relações e torna a razão como um “[...] instinto, hábito, natureza” (DELEUZE,

2001b, p.22). Essa razão, tornada um instinto e uma natureza, vê a generalidade

como efeito das leis que estabelecem princípios de organização de equivalências e

diferenças. Naturalizadas, sem perceber-lhes os movimentos, as experiências

parecerão sempre uma cadência de fatos geradores.

É o mundo infinito das relações que é tomado de Hume, por Deleuze, levando-o a

ressaltar as diferenças das relações que se sucedem nas percepções. Ora, se as

relações só podem ser apreendidas nas percepções e, até delas se diferem, não são

sempre repetições. Se a percepção pode se discernir, distinguir-se de outras, ela

não pode ser igual a que a precedeu ou que a sucede (DELEUZE, 2001b). Se é

discernível, é de outra substância que, apenas aprisionável na caricatura da

representação, pode guardar semelhanças e regularidades. Não havendo

substância única, não se pode deduzir nada da sucessão, a experiência é

apreensível somente em si. A caricatura então é uma prisão da percepção, ficção

101

pura do pensamento. A diferença é um principio de constância: “O espírito é a idéia

das percepções como sendo diferentes umas das outras” (GALLINA, 2007, p.127).

Para Hume, as percepções geram um espírito que é resultado de relações consigo

mesmas e entre si, a partir de suas diferenças. É a imaginação que, para ele, fará o

trabalho de construir princípios de associação. Contudo, esses princípios não são

também generalidades. A partir daí, Deleuze produz uma filosofia que, embora parta

das características relacionais do empirismo de Hume, traz a experimentação como

categoria de diferenciação contínua, livre de princípios: a experiência é sempre

singular, indeterminada, por isso discernível. A modulação e a variação constante da

experimentação não podem oferecer regularidades, senão sob a apreensão de uma

relação tempo-espaço no interior da sucessão, que é a experiência como

representação contingente da diferenciação perene. Gallina diz:

Mas no sentido que atribuímos à experimentação, por contraste à experiência, podemos dizer que ela é um acontecimento a partir do qual se infere a existência de outra coisa que ainda não está dada, daquilo que se apresenta como dado aos sentidos (GALLINA, 2007, p.129).

É importante dizer que não falo de uma inexistência do dado. Mas, se o tomarmos,

como Hume, como uma ‘impressão’ ou um feixe de impressões, digo também que o

dado diz respeito aos sensores (para os quais não há identidade com impressões

anteriores). As impressões não são uma ‘substância previamente organizada’ ou

uma natureza. Para Deleuze, a organização dos dados está ligada a um sistema de

juízos e de valores que associa, conforme distintos princípios de legitimidade,

conferidos por um sujeito ao dado. (DELEUZE, 2001b).

A organização dos dados não precede a eles, visto que esses são atributos dos

órgãos sensoriais e não atributos da forma e dos órgãos de uma natureza posta. É o

espírito que organiza, segundo princípios de sua organização.

O dado é organizado por sucessões, conforme juízos variados que formam unidades

que duram e, de certa forma, se estabilizam. Essa organização é, à primeira vista,

um funcionamento regular, estável, capaz de ser previsto. Para um certo ‘senso

geral’, a experiência mostra-se como condutora de um fio lógico inerente a ela

102

mesma: o que é resultado do juízo e da associação aparece como uma natureza,

uma fatalidade, uma inevitabilidade.

O que acontece é um funcionamento organizativo que se faz como uma ‘impressão’

a partir de outra, constituindo o hábito. Para Deleuze o “[...] hábito é a raiz

constitutiva do sujeito e, em sua raiz, o sujeito é a síntese do tempo, a síntese do

presente e do passado em vista do porvir” (DELEUZE, 2001b, p. 103). Nessa

operação de ordenação, forma-se um sujeito sintético, provisório, ‘síntese do

espírito’, já que é o espírito que organiza.

Esse sujeito provisório, fruto do hábito, é capaz de ordenar, criar normas e também

de “[...] distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que

tampouco estão dadas na natureza” (DELEUZE, 2001b, p. 94). Ou seja, totalidades

inventivas que atravessam o hábito, mas ao mesmo tempo dele se valem.

Contudo, é preciso sempre lembrar que a repetição imanente ao hábito captura o

tempo em sucessão, e, por ter como matéria esse modo de organização do tempo é

do próprio hábito que ‘escapa’ a diferença. O hábito cria porque funda uma

articulação dupla entre convenções e diferença, de outro modo, entre repetição e

diferença.

O hábito é criador. A planta contempla a água, a terra, o azoto, o carbono, os cloros e os sulfatos, e os contrai para adquirir o seu próprio conceito, e se sacia com ele (enjoyement). O conceito é um hábito adquirido contemplando os elementos dos quais se procede [...], nós somos todos contemplações, portanto hábitos. Eu é um hábito. Há conceito em toda parte onde há hábito e os hábitos se fundam e se desfazem sobre o plano da imanência da experiência radical: são convenções (DELEUZE, 1992a, p.137).

Mesmo a repetição não está sujeita às generalidades, a um conjunto de leis, a uma

estrutura. É mais uma captura que uma provisão. Nem mesmo tomando o hábito

como unidade, posso falar de perenidade e de hereditariedade. Também não se

trata de uma cadeia lógica ou razão; essa é uma “[...] sequência apoiada num elo

que remonta às primeiras impressões” (GALLINA, 2007, p. 134).

103

Ainda que a repetição seja fundante na experiência, a diferença que escapa pode

ser um ‘atravessar’, um ‘ultrapassar’ que flui sem nome, sem marca e gera outras

propriedades que são acordos com outros sujeitos, sínteses singulares de processos

outros. Não é possível deter, nem tampouco determinar essa processualidade,

senão como ‘devir’. O sujeito é sempre contingência, por isto não ‘é’. (GALLINA,

2007). Dota-se de e, e, e... Não há sujeito-conceito, subjetividade-teórica e cuide-se

para perceber que não se trata de uma relação tradicional aparência e essência. O

que desaparece é a essência como definição ou pré-definição; interior e exterior

como ‘duble-face’ do ser, de uma vez, não há um sujeito produto da dialética.

A imanência é o processo de constituição do real em feixes de luminosidade

complexa e imprevista. O devir, esse processo inquieto é apenas uma operação

conceitual de um movimento intenso e inapreensível senão pela linguagem aturdida

de um socorro da comunicação de signos. Mas nem assim fala-se de estrutura, de

modelo, de padrão. É da ordem da linguagem organizar, como operação do espírito.

O movimento é de outra ordem.

A distinção desta operação daquelas tradicionais é que a imanência deixa vir o

mundo com suas propriedades, mas está certo de não poder nomeá-las todas e não

se queixa por isto. Não há falta, nostalgia ou angústia. É próprio do acontecimento

não identificar-se com o mundo, mas com uma relação de estranhos que povoam

um universo ainda não investigado. É uma potência de individuação a partir de

forças inauditas. Está sempre apto a gerar novas coisas.

Recebendo a diferença em meu corpo fui capaz de desfazer-me da ânsia em

conceituar e me ofereci à vida novamente, àquela vida na boca da mãe, que

desconhece motivos, causas, mas é capaz de do fluxo vital extrair ‘fugas’, ‘lições’,

jeitos para o corpo.

Ainda assim, me intrigava aquilo que desandava o desejo e o levava a ter gostos

suicidas e a precipitar-se no abismo, desprovendo-se de criação de vida. Haveria

algo normal e algo seria patológico?

No vácuo desse desejo de definições há nenhum nexo. Há suspiros de não-

coerência, de visão do infinito. Talvez este infinito chame-se acaso. É assim que

104

Zourabichvili comenta a cansativa e necessária tentativa de atribuir uma explicação

à vida:

[...] o jogo da existência , o jogo que é a existência só tem como regra um acaso sem limites. Mais uma vez, isso quer dizer ainda que: a vida se encadeia apenas na desaliança, todo encadeamento provável já é uma maneira de proteger a vida dela mesma – e não podemos evitar fazê-lo, querer um mínimo de vínculo, mesmo que fosse apenas o vínculo de uma frase à outra em uma página de Nietzsche, ou ainda a própria articulação da frase (pois é bem preciso que se construam frases). Portanto, esse jogo não tem regra, mas não o jogamos sem inventar regras, que são os próprios pensamentos, desde que o pensamento seja compreendido como jogo. Se jogar é criar, o jogo nunca é dado em Nietzsche; ele não diz respeito a uma adesão desenfreada ao acaso que é a vida. (ZOURABICHVILI apud PINHEIRO, BARRENECHEA, FEITOSA, 2006, p. 16)

Uma vida não se estanca na monocausalidade. Se não há uma causa possível, há

como agir sobre e produzir potência?

Desculpabilizando a vida por si mesma, por ser vida, eu a livro de seus entornos e à

referência de Nietzsche, fico diante das possibilidades infinitas. Essa vastidão dá

medo. É como olhar o mar e deixar-se inebriar pelo sem-limite, sem arestas. Pode

ser cansativo expandir-se até nenhum ponto. Pode ser aterrador. O fluido é

constante, é eterno. Não há início e fim, sempre o meio, sempre o ‘e’. No ‘e’ está o

processo que não quer ser, não se enraíza em busca de um abrigo confortável.

Destitui-se o fundamento, o início e o fim, a vida e o conhecimento dela é sempre

intermezzo (DELEUZE, GUATTARI, 1995)31.

Desprovida de causalidade e modelo a vida fica à deriva de si. É mapa aberto às

conexões, é rasgado, reversível, mutável. Há sempre segmentos e estratos, mas

desmontáveis por aquilo que foge, que desterritorializa; assim se há o jogo, ele

também tem sintaxe e gramática móveis, cujo sentido se faz pelas ligações que, em

dado momento, a linguagem é capaz de construir. Se algo se repete como destino

genético, hereditário, ‘decálquico’, é imediatamente projetado, ‘esparramado’ sobre o

mapa, numa tentativa de mostrar a produção de significação que o decalque

sugeriu, mas que, não resiste às religações e relações incontáveis que mais estão

no campo do acaso e da vastidão do que de qualquer subjetivação previsível.

31 Guattari e Deleuze opõem ao conhecimento arbóreo, uma relação rizomática com a vida e conhecimento, que invalida as questões: para onde vai, onde quer chegar, já que o meio é onde as coisas adquirem velocidade, sem início ou fim.

105

Toda vida é um caminho aberto. Ainda que se estanque, que haja organização de

microfacismos, de saturações, de captura e centralização de sentidos, “[...] um

acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder local [...]” (DELEUZE,

GUATTARI, 1995a, p. 25) e os jogos de imagens, a ficção de hegemonia do

significante é desterrada pela potência do rizoma, pelo nascimento de novo broto

segmentário que se espalha incontidamente como tubérculos alastrados e

inalcançáveis. Eis a força do rizoma: não se cansa de produzir-se a si como múltiplo

e livre de significados e de estruturas.

Aí está a criação do possível: é possível criá-lo! (ZOURABICHVILI, apud ALLIEZ,

2000, p. 341) fala de um transbordar do presente, como a vida pedindo passagem,

que, mesmo sem uma direção, um código torna insuportável as concretudes

vigentes arrasando-as, fissurando-as, abrindo em nós mutações.

O possível não está circunscrito a um futuro distante, mas à sensibilização para

aquilo que oferece o presente. Segundo Zourabichvili (apud ALLIEZ, 2000), o

‘possível’ em Deleuze remete-se a uma definição presente no acontecimento. Um

‘campo de possíveis’ mostra o que há de intolerável como uma percepção,

evidenciando as condições em que a percepção é composta. Dessa feita, o

‘intolerável’ pede atualização por meio de atos de criação com lastro material

objetivando o que o autor chama de mutação afetiva - novos encontros,

recombinando as potências das novas relações a partir de outras formas de desejo.

“O jogo que é a existência!”. É isto que assusta!

Mais importante que definir a vida, que atribuir-lhe ponto, talvez sejam as

‘reticências’ ou mesmo a vírgula inicial do texto de Lispector (1998, p. 12):32 a vida

começa cada vez na esquina, é vírgula de si... “[...] a origem da primavera ou a

morte necessária em pleno dia”. É o sentido que se dá ao acaso que está em jogo.

Nesse espaço, entre a vertigem e a ânsia de temporalizar e definir, está a criação e

seus desatinos. A pista se produz por percepções estilhaçadas que não carecem de

unidade, mas estriam-se mundo afora em rastros ilimitáveis.

Se é necessário criar o jogo para dar plasticidade à vida, é preciso também cuidar-se

para não atribuir um sentido inerente, um destino e, se atribuído, pode fazer parte do

32 Refiro-me ao romance de Clarice Lispector, cujo texto se inicia com uma vírgula. Ver Referências.

106

jogo, ser uma necessidade ancorada na contingência, nunca uma inevitabilidade.

Nada está dado e padecerá assim que foi dito, por que a superfície é larga e vasta,

não há como reduzir seus cruzamentos e gestações. Nascem, a cada momento,

tipos esquisitos, até que, de tanto atravessar o olhar tornam-se familiares. Entendi

isso ouvindo:

- “o jogo é criar saídas. Viver é criar saídas” (estudante de EJA, não disse a idade, não permitiu a identificação da escola, po rtador de várias doenças que ele diz ter adquirido com uso de drogas : cirrose, anemia, uma doença de pele, dentre outras, 2007).

Perguntei sobre que tipos de saídas e para onde:

- “saídas para fora e dentro do coração. Sou cafona, às vezes, mas esse é meu limite. Sei do meu destino, mas sei que isso faz parte de um programa que aderi para sobreviver. Não tô preocupado se as pessoas acham limitado. Faz parte do que posso hoje.”

Questionei a ele de que programa tratava-se, se ele era membro de algum grupo de

mútua ajuda e se integrava projetos de saúde. Ele disse que isso não importava

porque o que ele respondia era ele e não um programa.

O jogo da vida me leva a querer expandir, ainda que meus modos possam me levar

a um atrofiamento. Mas, faz parte de continuar, de perseverar em mim mesma, em si

mesma: ativar intensamente o conatus. As saídas ‘para fora e dentro de si’, como

disse o estudante, são portais que surgem por entre as camadas geológicas das

subjetividades.

Era assim que Maiolino, artista plástica, ao produzir sua arte podia aventurar-se nas

disparidades entre o visível e invisível, sem impor-lhes hierarquias, deixando vir

apenas a sensação que está no vácuo entre um e outro, como comenta Rolnik,

aguardando as “florações da realidade”33. Aceitando a fenda escura como espaço de

criação, Maiolino cinde camadas da argila em que trabalha, mas também rebela as

camadas supostamente rijas da subjetividade. Não há pretensão de se chegar a

33Anna Maria Maiolino é artista e é objeto do texto “Florações da Realidade” de Suely Rolnik .

107

lugar algum, a nenhuma definição. A última intervenção na obra de arte é sempre a

sala de espera de outra visita. Eis o movimento da subjetividade: uma sala de

espera em dia de visitação.

Aflorando, florindo, a realidade apresenta a sua história. Prestei atenção cuidadosa

naquilo que pode ser visto como justificação e acomodação, mas também no que

pode ser usualmente considerado mais ‘sofisticado’ e coerente. Criação de sentido

ao invés de encarceramento racional.

- “eu entendo que tudo que acontece tem um sentido, que está em algum lugar, esperando para a gente entender. Quando a gente entende é como se aparecesse um outro problema.. A vida é só cheia de problema, por isto que a gente tá aqui. E a gente volta, depois da morte para continuar resolvendo” (mãe de aluno, 2007).

Mas, há muitos meandros em cada processo. Rescaldos de culpa – sentido centrado

em si e na possibilidade de coordenação e controle dos acontecimentos. A mãe diz:

- “eu queria entender, deve ser culpa minha também tudo isto. Talvez se eu tivesse levado ele mais na igreja, na comunhão. Minha família também é um pouco bagunçada...” (mãe de aluno usuário de crack, em festa da escola)

Por isso a escavação da superfície do cotidiano, numa atitude metodológica de

imanência, de inserir-se nas dobraduras do real em que os sentidos afloram como

sabedoria possível. Na busca de percepções microscópicas, de uma realidade que

traz a diferença quando se repete é que a vida se mostra em sua multiplicidade.

É no dia-a-dia que as necessidades se produzem. Ludicamente, os desejos se

instalam:

- “Eu preciso beber pra rockear, sou tímido” (Sandro, 14 anos, EMEF Suzete Cuendet, no Bairro Maruípe ) - “Eu, bebo por que é líquido “ (Vera, 16 anos).

108

Quando essas necessidades e desejos calcificam-se numa forma de ser e estar no

mundo ficam como que inertes à revolta, solidificam-se como óbvias, mesmo com

visibilidade de discursos da diferença. O uso das drogas parece ser apenas um

sintoma. Mas, ainda assim são desejos que podem ou não fechar-se em si mesmos

diante das capacidades de expressão. O uso de substâncias que alteram o humor é

uma expressão, uma plasticidade possível à vertigem diária.

O uso intensivo ou não de substâncias pode inscrever-se ali, no instante trêmulo

entre o visível e invisível, como operação de ajuste. Ali mesmo, onde Maiolino criou

arte, Nietzsche criou filosofia, Agostinho criou religião, a mãe cria filhos e Wagner

criava notas musicais, os seres humanos, de qualquer lugar do planeta, criam suas

experiências que aguardam ou não as florações da realidade.

É um comportamento, a composição de uma anomalia, a classificação pela norma

que está em curso. Inquisitoriamente se afirma um mundo de maldições sobre os

‘drogados’, doando-lhes um modo específico de portar-se e sentir, através do alarde

e medo que eles podem impor à sociedade. Mas, na verdade, é a subjetividade,

culpada de si, que treme diante deles, justificando-os quando não pedem, acusando-

os, quando não lhes consegue estimular. A professora de EJA, 2008, diz:

- “são drogados e traficantes, não querem estudar e aprender. Eles têm mais que fazer longe daqui o que querem continuar fazendo.”

O uso de drogas parece ser um sintoma de uma captura, ao mesmo tempo em que é

a denúncia de equipamentos coletivos que não engendram vitalidade. De uma vez,

uma falência e um tiro ao alvo, impotência anunciativa da potência... inseparáveis

sentidos.

3.2 NA EXPERIMENTAÇÃO, A VIBRATILIDADE, A CAPTURA, O MAL-ESTAR: A

VIDA E A DOENÇA ATRAVÉS DO VIVIDO

Aguilhoar: como produzir modos que provoquem perfurações na subjetividade,

naquilo que se calcifica, expandindo os processos? Mas, o uso intermitente de

109

drogas psicoativas é, quase sempre, uma metáfora. Traz consigo uma história,

valorada e valorizada por aquele que a usa. Transporta elementos da dobra do real,

quem sabe, recrudescidos num sintoma que diz, mas anseia por outras linguagens.

Uma agitação e aflição constantes provocam o que Rolnik (2006) chama de mal-

estar. Para ela os atravessamentos de variados níveis e fluxos vão fazendo

composições, desfazendo outras, incansavelmente produzindo diferenças, que, por

sua vez, abalam qualquer edificação, desnudando seu aparente caráter

naturalizado. É como se as articulações aguardassem a erupção do acontecimento:

combinações singulares e indefiníveis que negam estruturas indeléveis. Teimosias

do sentimento, desconhecidas e medrosas acionam o tremor, à procura de qualquer

estabilidade. Entretanto, há um esforço em busca de estabilidade que opõe, a todo

momento, uma instintiva forma de afirmação da vida à racionalidade. Estável para

uma opinião que tenta generalizar-se como lei é o que pode ser racionalizado,

otimizado e sistematizado.

Usuários, familiares, escola buscam desesperadamente um porto seguro. Programa

de pontos, magias, orações, grupos de mútua ajuda, de auto-ajuda, remédios, novos

amigos, qualquer coisa a partir da qual se possa planejar uma vida menos caótica:

- “o pessoal especializado deve conhecer alguma forma que dê jeito, um tipo de planejamento que você segue e no fim tem sucesso, como uma espécie de plano de metas”.(professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009)

Esse esforço por estabilidade, levado ao máximo, providenciou equações na história

da humanidade, que levou a resultados esperados travestidos de erros e fatalidades.

É como se todo planejamento devesse levar a um bem-estar e de repente, em suas

falhas, construísse ‘desumanidade’. Bauman contesta: diz que o holocausto, por

exemplo, colocou “[...] a seu serviço a postura, a filosofia e os preceitos da ciência

aplicada” (BAUMAN, 1998b, p. 95). Para ele, o modelo civilizatório não suporta a

instabilidade e, por isso mesmo, os investimentos sociais no desejo, tentando

apaziguar as intensidades moleculares vigoram por todos os poros de um modo de

existir. A assepsia e o planejamento levam ao máximo a invenção antropocêntrica e

corporifica o homem em unidade racional, em detrimento da diferença. O holocausto,

suspeita Bauman, pode “[...] ter sido mais do que uma aberração, mais do que um

110

desvio do caminho de outra forma reto do progresso, mais do que um tumor

canceroso no corpo de outra forma sadio da sociedade civilizada” (BAUMAN, 1998b,

p. 26).

Os procedimentos aplicados no holocausto adquirem normalidade quando mostram

que estão no curso daquilo que as ‘civilizações’ mundiais, aqui as ocidentais,

pensam de si mesmas levado ao extremo do planejamento racional: reforço de uma

forma de identidade nacional e implementação da burocracia estatal. Os seus

produtores não são desviantes, mas executores dos padrões: desde as torturas,

cuidadosamente preparadas, à edificação do estado nacional. Foi isso que firmou o

olhar em direção à assepsia social. Se há uma paranóia nesse olhar é produto de

uma sociedade que quer estabilidade.

A ânsia pela ordem e estabilidade é carente do rompimento com a mácula, com a

possibilidade de erro, de vibração: é sempre um caminho à pureza. Agitam-se as

tecnologias da assepsia que buscam a eliminação do erro, do sofrimento e do

estranho. Eliminação de si: negação do sofrimento por meio da imputação ao outro,

que é o estranho. Esse ideal de pureza espalha-se pela vida desejoso de salvar o

mundo de seu pecado inquieto: o homem. Veja, pois que, a intervenção do homem

na natureza tira o suposto caráter natural do mundo. Tudo deve ser colocado no

lugar: o homem sem sofrimento, o outro que quer o meu espaço e por aí se organiza

um plano de assepsia:

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem, isto é, de uma situação que cada coisa se acha em seu justo lugar e nenhum outro (BAUMAN, 1998a, p. 14).

Há um terror que ameaça a pureza e a ordem: um sentimento caótico que traz

consigo as impurezas de um mundo desorganizado por excelência, cujo sentido

anárquico lhe é peculiar e lhe dota de uma certa imprevisibilidade. O caos apenas

existe e, desse modo, ataca todo esforço de ordenação, sendo que assim a ordem

irá se constituir atribuindo-lhe negatividade e justificando-se como seu efeito

111

colateral34. Para o autor, trata-se de que a ordem é resíduo, elabora-se do desejo de

evitar o caos, é, portanto, sua possibilidade reflexa (BAUMAN,1999). Isso gera uma

hierarquia racional entre caos e ordem que só existe por força da invenção.

Seria ingenuidade pensar que essa articulação hierárquica não organizasse também

no plano da composição dos desejos, formas de agenciamento dos fluxos em

máscaras mais ou menos rígidas. Ou seja, o investimento no desejo para que modos

mais ou menos estáveis configurem territórios que “[...] atravessa terras e grupos os

mais variados: são transversais, transculturais” (ROLNIK, 2006, p. 58). Enquanto

isso, um outro movimento de intensidades, por onde passam torrentes incontidas,

teimam por ‘dessubjetivar’: arrastam as formações calcárias à fuga, à

desindividualização, à desterritorialização, dissolvendo os órgãos, os sentidos

prévios e, o mais importante, o organismo enquanto depositário de uma organização

previsível e funcional.

Contudo, a esses dois movimentos – o de formação de territórios e o de

desterritorialização – junta-se outro, numa terceira linha, o de atualização das formas

que relacionam-se com o tempo, seus fluxos e com a nova plasticidade das

máscaras. São mix de um tempo atual e outro virtual, resíduo e prenúncio que

cuidam-se para não se reterritorializar, ainda que, de algum modo, isso seja quase

inevitável. Ao assumir a face do mundo, a máscara da experimentação dos fluxos de

desejo cria um ‘grude’ e, num lapso, ‘cola’, sufocando o que quer se atualizar.

Veja que o perigo aí está: o de se entender os três movimentos, as três linhas, como

separados, distintos e hieraquizados numa espécie de evolução. Isso, na verdade,

acontece. Há uma tentativa de epistemologização do sujeito – em que estão

fundadas as teorias cognitivas e do desenvolvimento - que faz com que a vida e sua

experimentação sejam percebidos como estágios evolutivos dos quais se espera

uma auto regulação, tendente ao equilíbrio e superação progressiva. Quando, por

essa lógica, não acontece uma ‘evolução’, recorre-se a falhas nas estruturas

formadas a cada tempo-espaço e nelas encontram-se explicações e justificativas

para o erro: algo precisará ser restaurado por processos formais de reequilíbrio

(KASTRUP, 2000).

34 Nota-se que a ordem seria, à referência de Nietzsche, como veremos adiante, um produto de vontade de poder no seu sentido restrito de dominação, resultado das forças reativas.

112

Para Bergson (KASTRUP, 2000, p. 375) a vida traz forças explosivas, instáveis, que

levariam a transformações, por meio de divergências e diferenciações, ao invés de

convergências e fechamento evolutivo. O que há, para ele, é um mix de matérias

atuais e tempo transcendente, que aguardam por atualização. Uma abertura na

cognição persiste como virtualidade, pronta a se manifestar assim que haja

composições tempo-espaciais capazes de torná-las atuais. Assim, não haveria uma

evolução subjetiva.

O élan vital bergsoniano indica tendências repetitivas e inventivas na experiência

atual. Deleuze e Guattari aí reconhecem “[...] coexistências de durações distintas e

heterogêneas, o princípio de uma realidade própria do devir” (KASTRUP, 2000, p.

376). O devir assume o primeiro plano: ao invés de formas estabilizadas, “[...] o

movimento que as retira desta condição” (KASTRUP, 2000, p. 376). Trata-se, então

de entender a experimentação como plano do próprio devir que prescinde da

cronologia histórico-temporal, portanto da racionalidade evolutiva progressiva. Caos

e ordem não fazem mais sentido como relação binária, mas antes como

combinações diversas de desterritorialização e territorialização.

Veja que isso não quer dizer que não haja investimentos de desejo numa ou noutra

direção na tentativa de configuração de campos, de uma economia, de uma

sociologia ou mesmo de uma geografia dos corpos. De outro modo:

[...] não existe sociedade que não seja feita de investimentos nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, atualização de um certo tipo de sociedade (ROLNIK, 2006, p. 58).

O que se quer dizer é que os investimentos não cessam da mesma forma que não

cessam as vibrações, as tormentas, as torrentes, os afectos de um corpo sobre o

outro na procura de planos de consistência. Certamente, os investimentos sociais no

desejo tentam selar os espaços e colonizá-los geográfica e gramaticalmente. Um

esforço de geologia e de sintaxe é empreendido por toda parte.

Os ‘drogados’ estão sempre no lugar da infâmia. São homens e mulheres infames

(FOUCAULT, 2006). E o são porque sua história é resultado de uma vida ‘sem

ordem’, de uma ‘desobediência’ aos valores. Não se adequam a um lugar ‘moral’,

113

mas estão localizados no mercado capitalístico: são consumidores. Contudo, são

consumidores que incomodam, mancham a assepsia desejada dos bairros e das

ruas com suas mãos amareladas, sua tosse constante, seu nariz sangrando, seus

olhos vermelhos. Só sugerem piedade quando são crianças, grávidas, jovens

demais para morrer. O mundo, visto por eles, tem a imagem contorcida, embriagada

demais para ser creditada. Fazê-los falar e fazer-me ouvi-los desperta na audição

um som agudo demais para o silêncio saudável. Suas palavras têm pouca valia no

mundo organizado e asséptico. Bom será mantê-los longe, calados. Afinal, o que

falariam eles que poderia dar vigor à história? Em que contribuiriam eles para maior

compreensão do mundo? Que lugar ocupariam?

O discurso de organização postula um ‘lugar’ certo que deve ser vigiado

zelosamente, porque tudo que ameaça a ordem deve se aquietar articulado a um

plano de reterritorialização. A mobilidade mostra a fragilidade de uma pretensão à

ordem e todo organismo móbil é visto como ameaça ao ambiente. Mas, de repente o

próprio efeito da racionalidade lhe trai apontando inúmeros efeitos de deslocamento

possibilitados pelas tecnologias à disposição. É Bauman também que fala da

anulação tecnológica das distâncias temporais-espaciais que diminuem as restrições

territoriais e “[...] torna extraterritoriais certos significados geradores de comunidade”

(BAUMAN, 1999b, p. 25). Novamente, inexiste um plano fixo, temporal e territorial.

Estou (estamos?) sempre à deriva. Nau de rumo casuístico. Entre o cansaço do

corroído e o receio do acontecimento, caricaturas podem dar brandura ao sentido

larvar que tem a existência nesse momento de mal estar. A infinitude de sensações

e diferenças carecem de expressão diante da finitude dos modos de subjetivação.

Perigosas são essas caricaturas provisórias quando se tornam remédios para aquilo

que não é doença e por isso, não tem cura, é extenso e expansivo.

As questões do vivente escapolem aos limites anteriormente traçados do vivido, é

como se a experimentação trouxesse desafios demais à atualidade das

experiências:

- “Tenho um fogo danado! Não consigo parar, não me concentro, não me conformo. Fico louco quando vejo o mundo, as fomes, as desgraças e eu fico aqui parado. Parece uma doença! Daí uso e um pouco disso some da minha cabeça” (garota de 18 anos, 2007, estudante da EMEF Jusceli no Kubitschek de Oliveira)

114

Questionei sobre o ‘resto que fica’:

“Gira de novo e começa tudo de novo, mas pelo menos um pouco não penso nada, quando não penso o problema não é meu”.

Não pensar em nada... É possível não pensar em nada? É possível não se agarrar a

nada e não ser capturado? A vida é uma caça?

A demolição das identidades, do lugar, do pensamento estruturado por uma lógica e

do fixo nauseia a subjetividade que buscará abrigo e proteção para perdurar sua

existência enquanto unidade. Eis o perigo da captura à espreita! É dela que trata

Rolnik. A autora alude a uma “[...] toxicomania generalizada” (ROLNIK, 1997). Para

“[...] anestesiar a vibratilidade do corpo ao mundo, portanto, seus afetos [...]”

(ROLNIK, 1997, p. 21) surge um mercado de drogas que produzem a ilusão afetiva.

A autora refere-se às drogas – fabricadas pela indústria farmacológica, produtos do

narcotráfico, fórmulas médicas que indicam que a instabilidade deve-se a um

problema neurológico e vitaminas de todos os tipos - a droga oferecida pela TV,

travestida de glamour; a droga dada pela literatura de autoajuda, pela literatura

esotérica, o boom evangélico e terapias variadas e, as drogas diet-light para

purificação orgânica e produção de um corpo ‘minimalista’. Todas essas seriam

produtoras de contentamento, assossegamento e prometeriam uma adequação às

formas e afetos vigentes e que, estão a ruir. Todas em combate à ‘peste’ que

envenena as identidades e, num efeito, reforça identidades locais como mecanismo

de proteção do mal-estar constante.

Para Rolnik (1997), a questão está equivocada porque não se trata da escolha entre

identidades locais e uma absoluta pulverização, mas da atenção à riqueza dos

processos de singularização que se avistam. Ou seja, não é uma solução que se

busca para a incomodação atual, mas o cuidado que se deve ter com a grandeza da

agitação.

115

A subjetividade35 está sempre em circulação sendo ela mesma movimentos e

intensidades em experimentação. É, portanto, social por constituição, e traz consigo

inscrições do ‘social’ que podem ser calcificações. A expressão particular dessa

subjetividade social pode manter consigo e com o mundo uma relação de opressão,

uma espécie de ‘deixar-se capturar’ pelo modo capitalístico ou exercer uma

reapropriação, que gera linhas de caminhos existenciais inovadores, que é o

processo de singularização (GUATTARI, ROLNIK,1996). Esse é constituído de

afirmações de uma outra arregimentação dos desejos: uma nova maneira de ser que

se fabrica, intensamente, a todo momento. Este processo gera fricções ordinárias

que não se prescrevem, abertas a novas experiências: são os devires.

São ações micropolíticas36, de dimensões diferentes e variadas que constituem os

processos de singularização, em oposição aos sistemas macro de produção de

subjetividade que a fazem de modo serializado, normalizado e centrado em um

modelo, um “[...] consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei

transcendental” (GUATTARI, ROLNIK, 1996, p. 40). Ou seja, o capitalismo mundial

integrado faz também funcionar uma modelização que submete os fluxos a uma

lógica formal e tipológica, motivo de desejo, mas também de sofrimento. Assim: se

não adiro estou excluído de uma esfera pop, de consumo, glamourizada; se desejo

estar, isso também impede a singularização, mortifica e me faz sofrer.

O desejo de ascensão social e seus impedimentos reais aceleram as ações

consumistas e as formas de ascendência ao consumo. O apelo dos produtos e das

formas de vida produzem sofrimento e desencadeiam ações e julgamentos:

- “Os alunos falam abertamente sobre drogas para intimidar, eu acho. Aliás, acho que para eles é normal, é uma forma de ascensão. Falam na sala de aula ‘chegou a droga’, ‘professora ele precisa atender o celular porque ele mexe com venda’. Tem aluno que não vem à aula, só vem para cobrar a droga”.(professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveir a, 2009)

- “Para mim a vida é melhor hoje. Posso ter as coisas, ganho um dinheiro melhor. Não estou prejudicando ninguém, compra quem quer. Agora não sou só mais um” (garoto que vende drogas e também a usa na porta da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2008)

35 Não uma subjetividade-calcária ou subjetividade teórica, mas uma intensidade de fluxos desejosos e desejantes. 36 A micropolítica permite a criação de agenciamentos, novos, produtivos, desmotivando as calcificações.

116

A adesão a um processo de subjetivação serializado gera um sistema de

identificação modelizante que, em nível individual, tem o ego como seu correlato e o

eu como expressão comum. Mais que isso, a subjetividade ser extensivamente

social em nada corresponde a soma de individualidades que é, de imediato, uma

ficção e o cárcere das justificações liberais. De outra forma: a individuação só existe

como produção de captura, como um corte de caráter essencialista de um processo

de diferenças constantes, puramente social.

A serialização dos fluxos de desejo produz o estranhamento a processos humanos

como a dor, a ira, o envelhecimento, a morte, e, nessa esteira, o uso de drogas

funciona como remédio às vivências que requerem diálogos. Por meio de uma forma

articulada de controle social e das percepções, a subjetividade capitalística

engendra o desejo pelo modelo. E este impõe o sofrimento, a aspiração a um não-

ser, um ser-além, muito mais que a rebeldia das ruínas diárias. Se o padrão pode

anestesiar, haverá de uma hora passar seu efeito e a dor se fará novamente feroz

como um bicho na tocaia, vigilante e com medo, mas pronto ao ataque.

Se há uma recusa à subjetividade capitalística, ainda assim o corpo vibrátil não

escapou à dormência. Um outro modo se lança: a criação de subjetividades

originais, que codificam o ser e propõem uma identificação. Guattari e Rolnik (1996)

contrapõem a singularidade, que é um conceito e movimento existencial à identidade

que, para eles, procede por referenciação. “A identidade é aquilo que faz passar a

singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de

referência identificável [..]” posso eu afirmar a existência de características similares

na existência, mas há “[...] uma relação totalmente singular com esse cruzamento”

(GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 69).

- “Parei de usar drogas, agora quero ser alguém. Quero ser como o pastor XX que largou as drogas. Ele tem tudo para ser um ídolo” (ex-aluno, afastado da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2008).

117

Qualquer tentativa de enquadramento às esferas identificáveis, como já dissemos

anteriormente, implica na reificação37 conceitual. Considero que esse processo está

sempre sob tensão: mesmo quando é quase insuportável não aderir a uma figura

identitária, é preciso entender que a captura e centralização de sentidos corroi o

processo de singularização, impedindo seu fluxo.

Não havendo uma essência a me reportar, já que toda composição é atual, sempre

nova, não há também um projeto ou um algo a defender sob a bandeira do

pertencimento: nesse ponto haveria uma relação com um lado molar. Primeiro, é

necessário dizer que Rolnik e Guattari (1996) falam de um processo de

singularização que origina movimentações infrapessoais, pessoais e interpessoais,

que rompem com as figuras ordinárias, causando o que se chama de revolução

molecular, ruptura molecular com as calcificações. Esse conceito me permite ousar e

perceber atravessamentos, alianças e desalianças entre as existências instaurando

devires38 que perfazem a dimensão molecular.

O lado molar admite calcificações, versões históricas, mas que se inscreve sempre

em lógicas binarizantes, é sempre referencial. Para Guattari (1981) toda ‘luta’ pode

até ordinarizar-se, momentaneamente, de forma molar, escolhendo ícones,

bandeiras de espaços localizáveis e fixos, mas, se aí criarem referenciais, abrirão

mão do processo de singularização, que é sempre molecular.

A molaridade gera o apego e uma necessidade de descanso toma conta do corpo.

Se surgir nas nuvens um salvador, o mundo agradece e a subjetividade instala-se

inflada de si no colo de um conceito. Mas, e o processo?

Lembrei-me de Bob Marley que é símbolo de uma geração de expressões variadas,

lutou pelo direito à escolha, à manifestação, inclusive à gestão do próprio corpo,

através de políticas de desejo. Mas, quando Bob Marley, por ser o que é, passa a

justificar para o usuário de substâncias que alteram o humor o uso como algo bom

por si mesmo, de forma molar, o grupo de usuários identifica-se internamente,

prescinde das diferenças processuais, e o ato perde-se do movimento. O ícone 37 Chamo de reificação o processo de objetificação de si: que geraria um corpo cristalizado que tem vida por si só, perdendo ligação com o processo que o gerou, portanto, gerando sentidos outros que apenas contêm as contradições, mas não as evidenciam. 38 Novamente: Devir são modos de existência incompletos, desviantes de um plano temporalizado, existência em fricção.

118

subsiste e torna-se absoluto e o movimento que poderia gerar a escolha é

sombreado pela força do heroi.

A vida é um passar entre molaridades e movimentos moleculares. Dependerá do

quantum de intensidades que circula e passa pelos corpos, capaz ou não de ativar o

conatus. A precipitação do corpo no abismo, a descida ao orifício sem fim, a

introversão, a morte, cabala, desterro, má sorte e suicídio não estão descartados.

Pelo contrário, todo cuidado é pouco.

Ao viver a intensidade da experimentação como um exercício de vitalidade, os

órgãos não subsistem e, sem eles, não subsiste o organismo. Mas, não se trata de

um processo de desconstrução somente. Muito antes, é necessário iniciar a

construção afirmativa de um corpo sem órgãos, sob pena de que os fluxos de desejo

sejam arrastados para a superfície subterrânea da própria vida. Esse é o grande

risco: manter-se vivo fazendo passar as intensidades que destroem edificações,

muros, paredes, jardins suspensos e babilônicos, cavernas e torres e constroem

dutos, canais, bifurcações e circuitos. Condutores e conduções ao invés de paióis,

armazéns e depósitos. Modos de operação ao invés de organizações estratégicas e

funcionais.

Os dutos e canais exigem diques e represas. É preciso estar atento! A prudência

pode tornar necessárias as pontes e as travessias. Se um ímpeto de

desterritorizalização arrasa com tudo à sua frente, pode faltar coragem, pode faltar

estrato e o precipício ser a única saída. Segure-se, então! Afirmar despovoando o

deserto, desobstruir a tela cheia pode ter um tanto de solidão insuportável!

O corpo drogado é uma tentativa de construção do corpo sem órgãos, mas apega-se

demais ao frio, ao gelo. Overdose ao invés da dose e mortifica-se. É capturado pela

morte, pela tirania mercadológica da decadência, pelo glamour dos orifícios nasais e

orais. Cachimbo-funcional, prato-gilete-funcional, fumaça-funcional, veia-furo-

funcional, buracos por todos os lados, corpos aderentes e artificiais, corpo drogado-

organismo de morte. Esvaziou-se de significâncias morais e óbvias e as substituiu

por uma moral maldita, mas não menos óbvia. Nem por isso deixa de ser uma

tentativa, uma incomodação, um reconhecimento do insuportável estrato que

precipitou-se em outro estrato. A questão chega:

119

- “a vida é definida demais, cheia de coisas fúteis e chatas. Cadê o movimento? Cadê o que existe além desta morte que é a roupinha das patricinhas? Me drogo e saio desta rotina” (aluna afastada, embora matriculada, da EMEF Juscelino Kubitschek de Olivei ra, 2008).

Mas, onde está a passagem?

O fantasma-droga povoa o corpo e temeroso o corpo lança-se do andar de

cobertura, do alto do morro, na calçada e no meio fio. A operação não alcançou o

esvaziamento do eu. Eu continua sendo fantasma de si. O ego tem a solidez de uma

existência. A ficção transbordou à psicanálise, à igreja e ocupou casas, morros,

escolas, coberturas e periferias.

“tá dominado, tá tudo dominado.... Ado-ado-ado, cada um no seu quadrado”

Isso não quer dizer que não seja possível. Nada indica que o corpo drogado, como o

corpo masoquista não possa indicar outros orifícios. Nada diz que não possa

temperar o frio. Ninguém pode prever que não seja capaz de fazer deslocamentos e

dar passagem a fluxos de desejo cujas forças ainda sejam desconhecidas. Cuidado!

Toda moralização é apressada. Talvez seja uma questão de experimentação, de

dosagem, de modulação. É difícil a experiência de esvaziar a tela!

As subjetivações e as significâncias dão lugar às intensidades, em medidas

modulares. Por isso é preciso reconhecer o que passa, o que agrupa, o cheiro, o

gosto, mesmo sem nominá-lo. O corpo sem órgãos caça os fantasmas e as

interpretações e escolhe novas alianças intensivas (DELEUZE, GUATTARI, 1996).

Ele o faz porque é o “[...] campo de imanência do desejo, o plano de consistência

própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem

referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria

preenchê-lo)” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 15).

Ali, onde o desejo se produz e se distribui aos povos, às legiões, ali onde ele se faz

plano de consistência está o corpo sem órgãos. Dali também bifurca-se um plano

120

organizativo e de desenvolvimento, expressão das formas visíveis, junto a um plano

de consistência composto de linhas, partículas, átomos, fibras óticas, corpos

estelares. Mesmo as formas visíveis do plano de organização estão abertas a novas

composições e bailam à procura de um outro plano de consistência.

Como lidar com as capturas e com os sequestros? Por muitas vezes essa questão

veio a mim. Ao me deparar com os corpos drogados, ansiosos sim por um corpo

sem órgãos eu não podia fazer quase nada. O corpo sem órgãos não é um lugar a

se habitar. Por entre ele, passa-se do grande risco, à doença e à grande saúde,

dependendo da capacidade de construir pontes, diques e circuitos. Senti-me

prostrada, às vezes. O padre em mim imprimiu-me a falta.

Ao desejo não falta, desejo é sempre desejante. Depende da máquina que o

arregimenta ele substantiva-se em dinheiro, alegria ou morte. Mas, há algo inusitado

no desejo que é de sua constituição. Ainda que não seja possível definir-lhe ou

apropriar-se de suas modulações por inteiro, também não seja razoável dizer-lhe de

uma essência, o desejo resiste aos padres porque seu élan é de uma imanente

alegria, que embora possa ser arrazoada com a modulação da morte, resiste aos

sequestros de maneira indefinível. Aqui coincide desejo e conatus: prontidão a

perseverar em ser, em ser potência e fruição:

Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p.16).

Talvez seja essa força imanente ao desejo que torne possível a vida sem falta, a

queda no ideal ascético, a ânsia do descarrego das energias no prazer. Talvez seja

essa força que retire o desterro das retinas dos meninos e meninas drogados nas

escolas.

Adoecidos de brancura no olhar e cercados pelos orifícios genitais e orais, as

máquinas elétricas jovens pululam entre a morte e a vida num instante. Assisti a

muitas mortes durante esse trabalho. Um faroeste urbano instalou-se nos bairros da

121

cidade, especialmente nas ruas de Maria Ortiz, por onde mais andei. Todos os dias,

o espetáculo engolia a morte e mais um registro vendia jornais e jornais.

Voltei-me a um quadro de rotina-morte, mas precisava ultrapassá-lo e encontrar nas

vozes infames o tal desejo que é imanente à vitalidade do próprio desejo. Como

potencializar a alegria do desejo e querer a vida? Eles queriam a vida! Como gerar

um corpo sem órgãos correndo o grande risco e ‘viver por meio das doenças do

vivido?’

3.3 TRANSFORMAR EM CHAMA O QUE SOMOS E O QUE NOS ATINGE

O que faria para resistir sem padecer? Como experimentar as doenças do vivido

sem querer morrer e, pelo contrário, chegar ao ponto de transformar tudo isso numa

perseverança em mim mesma? Como aprender a navegar com todos os ventos?

Como estavam circunscritas na experimentação a doença e a saúde?

O uso pesado de drogas traz marcas para o corpo, na mesma medida em que traz

questões para a sociedade. Essas marcas são, às vezes, diários epidérmicos de

feridas do vivente e carecem de escuta, de acolhimento. Até aqui falei de ‘doença’ e

‘saúde’, que a priori parecem habitar o usual mundo da lógica binária. Mas, vejamos.

Minha tentativa cartográfica levou-me da escola aos grupos de mútua ajuda. Nesses

grupos, em que as pessoas se dizem ‘em recuperação’, quase sempre após o uso

intensivo e, muitas vezes, causador de profundas dores, o termo ‘doença’ é usado

de forma recorrente.

Refiro-me às salas de Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA)39.

Essas Irmandades, assim como se intitulam, surgiram em 1935 e 1953,

respectivamente. No Espírito Santo, há 45 de AA (cinco estão em Vitória) e 24 de

39 As Irmandades utilizam-se de um método totalmente não profissional, se autosustentam (é a que se refere a sua sétima tradição) e desenvolvem uma programação de princípios, julgados por eles de espirituais, os Doze Passos; tradições que mantém a unidade internacional, as Doze Tradições; e conceitos que são a base para prestação de serviços voluntários internos à irmandade ou externos quando designados por eles mesmos; os Doze Conceitos. O intuito é promover a recuperação de seus membros. Esses ‘passos’ incluem a admissão de que existe um problema, a busca de ajuda, a auto-avaliação, a partilha em nível confidencial, a disposição para reparar danos causados e para trabalhar com outros adictos a drogas que queiram se recuperar.

122

NA (oito no município de Vitória). Minha pesquisa não pretende historiografá-las,

nem tampouco julgar seus métodos; mas elas surgem no contexto na medida em

que são referidas na escola por estudantes que se dizem em recuperação. Ou seja,

nos interessa delas falar somente quando sua existência produz efeitos na vida

daqueles que usam drogas. Por isto mesmo fui a algumas salas, em reuniões

abertas – quando são recebidos também os não-adictos – e conversei, em ocasiões

marcadas previamente, com pessoas que participavam das reuniões. Além disso,

NA e AA estão presentes em algumas falas nas escolas:

- “hoje sei que sou doente, que tenho uma doença que me levava ao uso sem parar. Mas, também sei que depende de mim, com a força do grupo, criar uma nova vida, com novos amigos, por que cara, se continuar com aquelas pessoas a doença só aumenta.” (estudante, da EMEF Presideu Amorim, no Bairro Bonfim e também membro de Narcóti cos Anônimos, 2007).

A doença, para a irmandade, não é definida por alterações neurais ou químicas,

embora ninguém as descarte. Contudo, as definições prescritivas da medicina ou

fisiologia não estão em julgamento. Não discutem sobre isso, mesmo quando

provocados, alegando simplesmente que uma das tradições da Irmandade, que lhes

garante a unidade para a recuperação em grupo, é não entrar em controvérsias que

não dizem respeito às suas atividades.

- “Respeitamos os médicos e qualquer profissão, mas não discutimos habilidades técnicas, não nos diz respeito. Somos iguais aqui - adictos em recuperação – o que nos faz viver é nossa unidade e a empatia que temos uns pelos outros, raiz de nosso amor incondicional. Nos recuperamos porque juntos adquirimos força espiritual - e não religiosas – para isto. O importante não é o que as profissões acham, importante é que funciona para nós: a maioria de nós está limpo” (membro de NA, ‘limpo’ há 3 anos, ex-usuário de múltiplas drogas).

As palavras ‘limpo’ e ‘em recuperação’ me perturbaram profundamente. Pensei

apressadamente – está limpo quem estava sujo, recupera-se quem pode restituir-se

de algo. Mas, tão logo vi que não poderia utilizar-me da oposição binária para

apreender o sentido, me pus a operar a partir de outra gramática.

123

Certamente poderia haver um recrudescimento molar na construção de uma

identidade – adicto, mas as palavras poderiam funcionar também como conceitos

móveis, como ritos de passagem de um estado a outro, de um volume de potência a

outro. Bastava que eu fizesse o esforço de operar rizomaticamente e os estratos se

mostrariam como campos de intensidades capazes de distinguir linhas de fuga,

acúmulos novos, pequenas radículas de estratificação, mas correntes inteiras de

novidades de forças utilizadas por aquelas pessoas que expandiram e fortaleceram

o conatus.

Eles consideram adictos ou alcoólicos (no caso de AA) aqueles para quem a

substância tornou-se a coisa mais importante da vida. Portanto, é doente aquele que

se diz doente. E, este alguém o diz quando o uso o incomoda, perturba e impede a

realização de outras atividades ordinárias. Eles, desse modo, decidem que são

impotentes, e, ao mesmo tempo, não discutem a natureza das drogas, dizendo ter

uma relação problemática com elas, a qual prescinde de competição ou medições.

Também dizem que perderam a chance de escolher quando o uso tornou-se uma

necessidade e uma substituição às inquietudes da vida e aí decidem que abrirão

outros caminhos.

- “Eu perdi pras drogas, cara. Não quero conversa com elas. Não posso, não devo, não quero. Posso andar em outro caminho, com outras pessoas. Usei tanto que perdi a chance de escolher se usava ou não. Eu precisava, saca? Doente, morto. Lá em NA encontrei outras paradas, outros lances de pensamento. To limpo e só hoje quero ficar, amanhã, sei lá” (Karina, 18 anos, estudante da EMEF Presideu Amorim). Faz parte da compreensão e experiência coletiva de nossa irmandade que a adicção é, de fato, uma doença. Não temos razão para contestarmos essa percepção agora. Ela nos tem servido bem. A nossa experiência com a adicção é que, quando aceitamos que ela é uma doença sobre a qual somos impotentes, tal aceitação fornece uma base para a recuperação através dos Doze passos... [...] isto tem funcionado para nós [...] embora como uma irmandade não estejamos em posição de argumentar o que é ou não uma doença em sentido médico (Boletim nº 17 de Quadro de custódios de Serviço Mundia de NA).

Para aqueles que querem continuar a usar drogas, a percepção do uso me parece

outra. Entendem que param quando quiserem e que usam por motivos variados,

ligados ao desejo e/ou à uma moral. Importam-se de forma diversa, não os

124

incomoda a ponto de gerar rupturas, mesmo que já tenham passado por situações

consideradas difíceis pela presença de drogas..

- “Olha, eu uso por que gosto, às vezes exagero. Semana passada tive que ir a delegacia porque quebrei um cara que passou a mão na minha gata. Daí tinha bebido demais e já sabe, né? Bebo quase todo dia, mas tenho controle. Quando quero fico um mês sem beber” (José, 17 anos). - “A gente só não para se não tiver vergonha. Às vezes sinto que falta moral. Quem usa é por que quer, gosta e faz merda se quiser. Falta opinião para parar, entende? Outro dia o cara fez chiquita40 e botou a culpa na droga. Qual é cara?!” (estudante usuário de álcool e crack ).

Se a doença é um estado de admissão para usuários e ex-usuários, ela só existe

conforme a percepção de um estado de vida alterado negativamente para aquele

que a descreve. Não está em discussão uma prescrição fisiológica, de caráter

descritivo, típica de toda a argumentação médica do século XIX, mas uma forma,

talvez não nova, mas diferente, de enxergar o funcionamento do corpo, da vontade,

da vida. Assemelha-se ao trabalho de Canguilhem, datado de 1943 e traduzido para

o português em 1996, em que o autor, filósofo e médico desafia o status do saber

médico mostrando a normatividade própria da vida que ultrapassa, para ele, o “[...]

saber médico”.

O autor considera o ponto de vista do doente como essencial para a definição da

doença: para ele a medicina não informa ao doente que ele é doente, o ser percebe

e, de alguma forma, autoriza a sobreregulação. Canguilhem aceita parte da

definição de René Leriche, para quem “[...] a doença é aquilo que perturba os

homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo

que os faz sofrer” (CANGUILHEM, 1982, p. 67). É, dessa forma, a doença que traz à

consciência os limites do corpo, porque a saúde é a inconsciência do corpo. Essa

percepção coloca em risco o conceito de norma, que, para ele, transita entre aquilo

que “[...] é como deve ser [...]” e “[...] aquilo que está na média [...]”.

A questão é: como deve ser? Este é um problema não prescritivo, mas de valoração,

diz Canguilhem “[...] patológico é sentimento de sofrimento, impotência, de vida

contrariada” (CANGUILHEM, 1982, p.106). A vida traz sua normatividade consigo e

40 Fazer ‘chiquita’ é dar cheques e sustá-los com a intenção de que não sejam cobrados.

125

disso, da capacidade de flexibilizar as condições, de tolerar as infidelidades do meio

é que depende a saúde. A variabilidade está presente nas transfigurações

contingentes do meio e das condições e a capacidade de lidar com isso configura a

doença ou a saúde.

Não há, portanto, uma prescrição ou descrição fisiológica, ainda que a medicina

deseje gestar o corpo já que a doença é uma anomalia: um estado em que se

estabelece maior ou menor distância relativa a um grau de perfeição. Dir-lhe-à

Canguilhem (1982) que a medicina arvora-se a um julgamento de valor na medida

que descreve um fim: descreve e normatiza quando, por meio de condições

experimentais, considera um estado como saúde (SANTOS, 1997).

Se a vida é normativa e a doença é a percepção de algo de difícil relação com a

norma que é da vida, o doente, então, perde a capacidade normativa, em graus

diferentes. Pode, assim, ter uma experiência negativa com as variabilidades que são

da vida e ficar doente a ponto de não perceber a perda da capacidade de

normatividade, por períodos variados ou pode inovar e estabelecer novas normas

que permitam a continuidade da vida. Por isso, “[...] a doença não é uma variação da

dimensão da saúde, ela é uma nova dimensão da vida” (CANGUILHEM, 1982, p.

149). Ou seja, a doença não é um escalonamento da ‘régua’ da saúde, não se

retorna às condições anteriores, mas criam-se outras normas individuais, mais

adequadas à nova situação a que a doença remeteu o indivíduo, conforme seja a

relação do ser com a variabilidade.

Esta capacidade de normatizar, através de uma condição de doença se faz em

novos enquadramentos que a experiência da doença pode proporcionar: ela é nova

dimensão! Age como processo de restauração, mas em novo patamar, que pode

levar à prisão em um estado mórfico e psíquico que não volta – um passado corporal

– ou à curiosidade criativa de uma nova forma de expansão da normatividade a

partir dos elementos não teleológicos da vida – o acaso, o meio o ‘e’ como única

realidade – sem começo, nem fim. Nesse caso, a doença é potência, mas requer

superação de todo ressentimento que faz adoecer.

Em Nietzsche (2000), encontro referências para escutar melhor o jogo entre saúde e

doença. Sim, um jogo de máscaras! Plasticidades da própria vida que ousa lidar com

126

as variabilidades sem negá-las. Inclusive saúde-doença para Nietzsche estavam

circunscritas a seu perspectivismo. De um lado a outro, de um ponto a outro, ele se

desloca para ser flexível com o jogo da vida e, do ponto de vista da saúde, vê a

doença e, do ponto de vista da doença, vê a saúde: sem rigidez e lugar fixo,

Nietzsche movimenta-se na multiplicidade da “[...] grande saúde” (DELEUZE, 2001).

Como proceder deslocamentos que levem da doença à saúde, estando contaminado

por uma ou por outra? Como dar passagem a esse baile de máscaras que, suspeito,

seja apenas um cárcere provisório para a energia vital? Sim, porque em nenhum

momento esses temas estão presentes como desafio filosófico para Nietzsche

(2000/2005). Não há nele nenhum louvor ao sofrimento, à doença, à decadência,

como podem dizer seus leitores desavisados. Ainda que ele admita que o filósofo

tem um ‘excesso de sofrimento’, isso se dá por não negá-lo. Este é, então, um

cuidado: “[...] a doença não é um móbil para o sujeito pensante, mas também não é

um objeto para o pensamento: constitui de preferência uma intersubjetividade

secreta no seio de um mesmo indivíduo” (DELEUZE, 2001, p. 12). Isso dito, não está

assegurado como falar de um processo intersubjetivo sem estar sufocado por ele.

Assim, o autor só pode proceder esse deslocamento se for capaz dessa ligeireza,

tanto mais a nível vital do que como um procedimento filosófico. Só do espaço sem

limites da grande saúde nasce a vitalidade necessária para perceber os processos

vitais como uma passagem necessária, sem eloquência e definições. Ainda que os

caracterizem, eles se moverão desenfreadamente e a despeito das concepções.

Se em Canguilhem (1982), a saúde-doença abandona a simples prescrição

fisiologista, em Nietzsche a força se redobra. Ele parte do doente para buscar

conceitos mais sadios e inversamente, de uma vida abundante olha o “[...] trabalho

secreto do instinto de decadence” (NIETZSCHE, 2005, p. 17). Afirma que fez

escolhas, novas normatividades para Canguilhem (1982), do interior de uma vida

adoecida.

[...] como summa summarum, eu era saudável; como ângulo, como especialidade, eu era decadente. A energia para o absoluto isolamento e a libertação das condições habituais, a coerção feita em mim mesmo de não me deixar curar, tratar, medicar, tudo isso trai a incondicional certeza instintiva sobre o que, então era mais que tudo necessário. Tomei conta de mim mesmo, curei a mim mesmo: a condição para isto todo fisiologista admitirá: é ser no fundo sadio. [...] os anos de minha vida de mais baixa vitalidade foi aqueles em que deixei de ser pessimista; o instinto de auto-

127

restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo...E como se reconhece, ao fundo, a vida que vingou? [...] Adivinha remédios contra os danos, utiliza acasos nocivos em seu próprio proveito, o que não o mata torna-o mais forte (NIETZSCHE, 2005, p. 18).

Nietzsche não recusa os processos vitais, mesmo os que podiam ser degenerativos.

Prossegue, adivinhando remédios, criando estratégias, deslocando-se, buscando a

dança leve desenfreada da vida, como se, plainando, fosse livrando-se do peso da

história ressentida, do medo do processo vital. Isso tudo só poderia ser vivido ou

percebido do interior da grande saúde.

A aceitação da vida, com seu destino errático, é a certeza de que tudo passa por

seu crivo. Pode favorecê-la ou obstruí-la, mas aceitá-la é não evitar a necessidade

aparentemente fatalística dos processos. Aceita-se o que há de mais exuberante,

mas também mais doloroso (MARTON, 2001). Isto é, recebe-se a sua mutabilidade,

sua variabilidade; a outro modo, as contingências de suas condições para expandi-

la, numa forma nova de enfrentamento. “Mas, ela, a vida, nada tem a ver com

concepções metafísico-religiosas ou determinações morais. Nem transcendente,

nem virtuosa, nem casta, nem etérea, ela é apenas mutável” (MARTON, 2001, p.

56).

A grande saúde é aceitação da vida. Reconhecimento do processo nem sempre

afável, deslocamento de voo rasante em direção à própria vida: aquecer-se nela,

aguardar seu climatério, vibrar e deixar vir o que já é, pois está na vida, nunca além

ou aquém dela (NIETZSCHE, 1998). A grande saúde é o não-ideal, o aterrador, a

terra, a possibilidade de estar em rebelião plena de criação em meio às

variabilidades. Por isso, só por meio dela pode-se compreender a saúde e a doença

como processos plásticos, como efeito de aparência, como extrapolação da

fisiologia. Coisa para espíritos livres!

Mas, em nenhum momento, Nietzsche (1998) nega o adoecimento, a incapacidade

de lidar com as variabilidades e nem mesmo as transformações subjetivas que esse

processo produz. Tanto assim que não invalida que será preciso ‘retornar a luz do

dia’, após a retirada. Sim, a doença como interrogação de si mesmo fará da filosofia

algo sem qualquer compaixão, “[...] volúpia de uma triunfante gratidão [...]”

128

(NIETZSCHE, 2001b, p. 11) e não uma paz sem tamanho, uma benevolência cristã,

um remédio. Para o filósofo o aceite à vida está longe de ser apaziguamento,

embora o corpo que já esteve doente entenda de dor, que para ele não aperfeiçoa,

apenas aprofunda. Tendo percorrido muitas saúdes, também percorre várias

filosofias em si mesmo, assim transpõe sempre: “[...] temos que parir nossos

pensamentos em meio a nossa dor...[...] viver – isto significa, para nós, transformar

continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo que nos atinge”

(NIETZSCHE, 2001b, p. 13). A existência é bem superior, para Nietzsche, que a

filosofia. Por isto, viver é bom para vida, antes que o seja para a filosofia. Sua

filosofia é sempre pragmática!

Se não há como e nem porque evitar a dor, não há porque ter pressa com ela, não a

adorando, a cultivando, mas gargalhando-se dela, aceitando-a, e nesse processo,

livrar-se dos preconceitos, das amarras, dos grilhões da certeza, da vida contínua.

Eis: livrar-se do apego à vida, recebendo exatamente sua fugacidade, sua

possibilidade de apagar-se como oferta de fazer fogo, produzir luz! Então, não se

trata de purificação, de ascetismo, mas de urgência! A vida é urgente,

desaceleradamente urgente! Desconfio de suas boas intenções expandindo as

limitações até um indefinível processo de meio. Mas, uma nuance pode tornar-se

uma confusão: expandir os limites não é desejar o ‘dever-ser’, o ‘fora’.

Nem a filosofia pode mover-se da doença como redenção de si, o que levaria

imediatamente para onde leva a filosofia ocidental quase por inteira: “[...] à má

compreensão do corpo” (NIETZSCHE, 2001b, p. 12). Um pensamento que está

sempre num ‘fora’, na transcendência, num projeto futuro, que emancipa, que é um

pressuposto de sombra, que se vê como luz altiva a inebriar os pobres corpos é

sempre produto de uma grande doença. Enquanto a percepção do limite que é dor,

lança o doente para a grande saúde, a presunção e a veleidade são conteúdos da

grande doença de que padece a filosofia ocidental e o homem ocidental.

A dor como processo vital é fogueira inevitável, demasiado humana, forjando o ser

que quer tornar-se o que é. O desejo de evitá-la é a busca de um não-homem, que

se quer adiante de si mesmo, que engaja-se “[...] num programa impossível de

humanização do homem, que, ao contrário, promove um crescente desenraizamento

ou uma crescente desertificação da terra” (FOGEL, 2003, p. 60).

129

As pessoas, ex-usuários de drogas, em recuperação, falam da dor com

preciosidade, como caminho único para reconhecimento do que eles chamam de

impotência, de jogo perdido para nova partida.

- “A dor me fez chegar ao fundo do poço. Fiz de tudo que podia fazer comigo. Hoje presto mais atenção. Há sinais na vida e no corpo que anestesiado eu não via. Perdi muita coisa, perdi pras drogas. Mas a grande droga foi a que me tornei usando drogas. Sem limite, sem caráter, sem nada. A dor me deu condições de saber que posso, junto com o grupo, fazer muitas outras coisas. Percebo o que antes não percebia, vejo coisas onde não via, sou bem melhor. Tenho dor ainda, mas é uma nova dor, sabe, uma coisa que sei que passa e que vai me ensinar mais. Não tenho mais limite, sou livre” (jovem em recuperação, Grupo Jucutuquara de Narcóti cos Anônimos). - “Não sei em que momento eu parei. Foi depois de um acidente, mas não foi por isso. Acontece do nada. Coisa do Poder Superior. E sei que só posso garantir o dia de hoje. Nada mais” (jovem em recuperação, Grupo Jucutuquara de Narcóticos Anônimos). - “É hoje que importa.. a droga de ontem já foi, amanhã é uma ficção. Só hoje tenho que ficar limpo” (jovem em recuperação, Grupo Caratoíra de Narcóticos Anônimos).

Embora a dor esteja presente em quase todas as narrativas, quase ninguém sabe

definir ao certo nem por que usa, nem por que parou de usar drogas. Cair nas

calçadas, overdose, acidente, roubar a mãe, prostituir-se, cansar-se, tantas

justificações quanto pode-se perceber no acaso. As semelhanças entre os fatos que

acontecem com todos que entram em processo de recuperação parecem ser tão

grandes quanto a diferença entre os sentidos para cada um, o que faz,

imediatamente das experiências, acontecimentos bem diferentes. Mesmo assim,

nem todas as percepções sobre o uso levam ao reconhecimento da diferenciação.

Percepções enclausuram-se nos padrões, nas dúvidas, nos medos e tantos querem

se livrar deles:

- “Quem acaba com a vida da família é o usuário doente, é o viciado doente. Se ele beber, por exemplo, não para, isso está no gen” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009). - “O usuário mesmo vai e volta. É internado e desaparece, é preso e desaparece” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveir a, 2009). - “Muitos fazem matrícula porque precisam e ficam um período. Saem e retornam por ordem da justiça. Eles são agitados, hiperativos, atrapalham muito e damos graças a Deus quando não voltam mais” (professora da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009).

130

- “Eu não vejo como doença. A pessoa gosta. Eu sou tão ingênuo que na idade que estou se eu olhar a maconha não reconheço. Será que todo usuário tem mania de roubar?” (professor da EMEF Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2009)

Ele sempre vai roubar? Vai ser sempre doente? Como lidar com eles?

Um flash de acaso parece acontecer no processo vital que intensifica o sentido do

gesto cotidiano, da fala cotidiana, do acontecimento e que, do nada, o ordinário

assume novo sentido. Reporto-me à barata que muda a vida de GH, de Lispector,

que quando digerida altera todo metabolismo com a vida; o zurrar do burro de

Miskin, personagem de Dostoievski em “O Idiota” (FOGEL, 2003), que modifica sua

profunda e cotidiana melancolia; acidentes ordinários que servem como metáfora

para o desencadeamento da vida. A vida é o único pressuposto dela mesma. É no

ordinário que se encontra a singeleza do processo da grande saúde. O sentido

atado ao além sempre será doença?

Para Nietzsche (2001) sim e para tantos que, como ele, só veem na vida a

possibilidade de recriar as próprias condições de viver. É um fabricar diferenciado,

que não pode pressupor uma padronização e uma ação unilateral, mas é sempre um

processo singular de alargamento dos limites que pressupõem a saúde:

Assim, há inúmeras saúdes no corpo; e quanto mais deixarmos que o indivíduo particular e incomparável erga sua cabeça, quanto mais esquecermos o dogma da “igualdade dos homens”, tanto mais nossos médicos terão que abandonar o conceito de uma saúde normal, juntamente com uma dieta normal e curso normal da doença (NIETZSCHE, 2001b, p. 144).

A saúde remove, então, a negação dos processos vitais e humanos e radicaliza uma

busca àquilo que é humano, demasiado humano. Torna o homem senhor de seus

prós e seus contras (NIETZSCHE, 2000). Para isso, anuncia uma vida que quer, que

não se ressente, aliada do momento presente. É na vontade de poder que a saúde

se constitui. Deriva daí uma vida ativa e um pensamento ativo, cuja unidade é

encontrada na afirmação vital da existência. Mesmo os processos de individuação

são afirmativos. Não se quer uma vida de valores superiores, de sentimentos

131

altruístas, que se justifica numa dada razão atada à construção dessa justificação.

Esse é um movimento de forças ativas que se relacionam gerando a vontade. Não

se trata de apoderar-se, de vontade de dominar, de uma vontade que foi submetida

extensivamente à lógica vigente. Esta se circunscreve nos valores estabelecidos,

hierarquizados por uma lógica competitiva, ressentida. A vontade de poder para

Nietzsche não “[...] é o que a vontade quer, mas aquilo que quer na vontade”

(DELEUZE, 2001, p. 22). Ela afirma a diferença ativamente, não se referencia numa

história que carece de esquecimento, mas na força contínua e constante da vida que

quer viver.

A vontade de potência é um resultado de espíritos livres. Esses são os dançarinos

que se despedem das crenças, do desejo de certeza e têm um gosto abissal pela

vida. Deixaram o peso e o espírito de gravidade, deixaram a ira pelo riso,

aprenderam a caminhar e correm. São leves, voam, deixam que um deus dance

dentro deles (NIETZSCHE, 2003b). São fortalecidos pelas guerras, vitórias e

derrotas. Já passaram pela redenção da maldição de uma vida ideal, nascem do

grande nojo, da vontade do nada, da ultrapassagem dela (NIETZSCHE, 1998).

Trata-se de deixar para trás as convicções do passado que submetem as decisões

do presente, embotando a criação.

Os espíritos livres atravessaram em si uma jornada, um caminho de transvaloração.

Para isso arrasaram os solos onde os valores foram produzidos, inverteram os

valores e criaram outros novos. Nesse caminho, superaram o homem arraigado

numa ficção de uma natureza própria, o homem-essência, o homem que deseja o

bem. “Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si para poder dar à luz a

uma estrela dançante”. (NIETZSCHE, 2003, p. 41)

O personagem trágico de Nietzsche, emblema de toda sua obra, parte do caos como

efeito de caminhada. Este homem precisa de retiro e oscila entre a real abundância

da vida e uma aparição fixa em lugar de muitas aparições. Ainda se prende ao

passado, até transvalorar e se embriagar de vida.

Zaratustra é um criador, ele quebra a tábua de valores velhos e abre mão do

rebanho, dos crentes, dos cadáveres, que leva onde quer e procura companheiros

vivos, não mais para segui-lo, mas queiram seguir-se a si mesmos, que

132

compreendam da liberdade, que deixem as suas lembranças e produzam coisas

novas, vida nova. Quer tornar-se quem é, legislar sobre si mesmo.

Ele parte para seu ocaso. É deixando a vida fluir, com todos os seus enigmas que

ele aprende. Mas, ele mesmo tem que passar pela transmutação. Ele mesmo

precisa se metamorfosear para não adoecer e ser livre. Há de se superar o desejo

de dominar, de querer o mundo ajoelhado aos seus pés – furtar-se dos valores deste

mundo. Esperar o acaso. “Agora o rio leva o barco; deve levá-lo” (NIETZSCHE,

2003b, p. 144). Fala ele de uma necessidade de aprender a se guiar, de obedecer a

si mesmo. Superar a si mesmo é superar a lógica da própria vida até então e criar.

O criador é sempre um destruidor. Há de livrar-se da vontade de dominar e abrir-se

à vontade de criar. Para Nietzsche, a vontade de dominar vem do ressentimento que

está naquele que ama os fardos que carrega, sem os quais a vida lhe parece sem

sentido: “Todos esses pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação;

e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele próprio para

o deserto” (NIETZSCHE, 2003b, p. 52).

Marchando vai o homem-camelo de Zaratustra, personagem de si, assumindo peso

do mundo com forma de redenção: carrega o peso dos valores maiores que a vida e,

ao abrir mão deles, carrega o peso dos homens maiores que o homem: metáforas

para a religião judaico-cristã e a metafísica socrático-platônica.

Para superar o ocaso da alma há de se abrir mão dos fardos, do desejo de dominar,

da lógica de competir, por fim, do ressentimento. Nietzsche fala que o desejo de ser

igual ao senhor leva o ‘escravo’, o ‘plebeu’ à construção de uma moral do rebanho.

Este homem ressente-se por que não esquece, por que deposita no outro o seu

infortúnio e contra ele lança as farpas de uma vingança imaginária que nega, quer

negar, aponta, quer apontar: projeta no outro seu próprio veneno, reativamente. Não

pode esquecer, tem ódio de tudo que é ativo: reativa. Culpa o outro pelo seu

fracasso, inverte a força do outro como se fosse um erro e a toma para si,

negativamente (NIETZSCHE, 1998). Eis o homem que não pode esquecer!

Para o filósofo, esse homem é o animal que faz promessas, cuja memória pode

recusar o esquecimento e, assim, está sempre aguilhoado ao passado, como

133

recordação de uma força que havia de ter, como reação à vida presente. Não

conhece a potência do agora, por que a memória é seu fardo. Esse homem precisa

esquecer. Nietzsche mostra como o conhecimento racional pode ser fruto da

faculdade ‘doente’ de lembrar-se sempre e como é vital esquecer:

Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo que entre o primitivo “quero”, “farei”, e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa essa cadeia do querer...(NIETZSCHE, 1998, p. 48).

Lembrar-se sempre pode ser um perigo, um carregar incessante de fardos, um

trazer à memória àquilo que precisa ser abandonado e deixar de ser querido. Uma

vontade de passado é reatividade! Ela diz não ao instante e ao presente, não

conhece a potência do hoje.

A vida torna-se um constante processo de regar as tristes paixões para que não lhes

falte alimento. Vive-se em putrefação, fermento que sufoca com ar plúmbeo qualquer

força embrionária de superfície. Envenenar-se com a memória, confirmando a

violência que coube ao homem interiorizado... lembrar sempre, descuidar-se nunca,

não andar descalço pelas trilhas com a suposição dos pedregulhos. A prudência e

consciência são efeitos da memória.

Barrenechea (2006) mostra que, para Nietzsche, a memória, a reflexão e o

conhecimento são atividades paradoxais da natureza. Haveria, por assim dizer, uma

atividade ressentida no processo civilizatório, exatamente por que o conhecimento

não é um instinto do homem. Ele recusa qualquer teleologia na natureza e opera

genealogicamente com os elementos do acaso: colore as explicações azuis - como

chama as explicações utilitaristas dos ingleses - de cinza - cor do documento. Não

há um sequer ponto de acordo prédeterminado na natureza.

134

O instinto fora adoecido pelo projeto, pela previsão, pelo cálculo. O homem

civilizado, tal como a filosofia e a ciência o fizeram é, por definição, um homem

ressentido! Este animal ‘memorioso’ é produção de um saber ressentido de si, por

que ele mesmo é produção de ressentimento. Esta capacidade exigida de seccionar

vida e pensamento faz nascer o sofrido animal interiorizado, cuja consciência é

sempre contingente, violação de suas condições de vida anteriores, comparando-se

ao sofrimento dos animais aquáticos quando estes tiveram que se transformar em

terrestres (BARRENECHEA, 2006).

O instante é cindido pela cronologia violenta do tempo. A consciência faz do homem

um ser capaz de habitar o passado e futuro, mas não o autoriza a levar consigo a

alegria potente do instante. Uma sombra se coloca sobre os afetos, a

transcendência é a única travessia para esse animal ressentido, que, a um só

momento, deixa para trás a imanência, superfície da sua vitalidade. Nietzsche diz:

Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas!’ (NIETZSCHE, 1998, p. 52).

Curiosamente, essa separação do ser das forças presentes, atuais, adoece,

martiriza, como história passada e como história atual. Muito sangue há no fundo da

história da consciência, e seus efeitos e odor permanecem como doença do

momento. Curiosamente, nos grupos de recuperação, fala-se abundantemente dess

apego ao passado como doença e como motivação à anestesia que a droga

proporciona. Na literatura de NA fala-se de um ‘triângulo da auto-obsessão’:

ressentimento, raiva e medo.

-“Botar no outro a culpa, depositar no outro a razão da gente existir me adoeceu até hoje. Toda minha força ficava ali. Depois de tanto viver no outro eu sentia raiva dele e no fim medo, por que, é claro, fiquei sozinho. Foi isto, a droga, que me fez companhia, eu não podia contar comigo” (jovem 1, em recuperação). - “Tento o tempo todo não olhar pro passado a não ser pra ser um lugar que não quero mais pisar. Eu sei de onde vim. De futuro não quero entender nada. Vivi muito tempo vagando, quero viver o presente” (jovem 2, em recuperação). - “Chega de sonho de além, o hoje, que não vou usar é que importa”. (jovem 3, em recuperação).

135

Esses três jovens falam de hoje. “Só por hoje” é um dos lemas das salas de

recuperação. Fala-se que é necessário viver o hoje porque só sobre isso se tem

governabilidade. Evita-se a droga de hoje. Busca-se a alegria de hoje. Tudo o mais é

doença para eles.

- “Sei que tô doente. Amo minha mulher, mas não consigo deixar de sair com a gata. Sei que isso é apego às coisas fúteis, a um sentimento de ego, de passado, e sei que se continuar vou recair” (jovem 4, em recuperação) - “Raiva, cara, muita raiva. Se tivesse uma arma tinha matado meu pai ontem. Ele pensa que por que sou mulher eu não o mato?” (jovem 5, em recuperação)

Se a raiva e o ressentimento são ‘doenças’, para eles, é importante não negá-los

como se negou a doença até então. Vontade de viver e matar obstrui ou potencializa

a vida. Raiva e ódio, alegria e serenidade dão passagem ao processo vital que não é

‘purificado’ pela ‘programação’, que, para eles, apenas os instrui a um caminho

individual de serenidade, vivenciado de maneira múltipla e não julgada.

Para muitos, o ressentimento quase levou à morte. Ouvi muitas experiências assim

em reunião de pós-tratamento, no Programa de Recuperação a Toxicômanos e

Alcoolistas (PRESTA), clínica de internação pública, sustentada pelo Hospital da

Polícia Militar do Espírito Santo, inicialmente para policiais e familiares que fossem

dependentes químicos e, que hoje, recebe civis, após um processo de entrevistas e

tratamento ambulatorial. Mas, a recuperação parece os livrar da culpa:

- “Em uma ‘nóia’, comi uma sacola de brita. Fiquei em coma, tirei um pedaço do intestino. Morei na rua. Hoje, só por hoje, tô de volta para meus filhos, minha família. Não brigo mais com as alucinações, não roubo, mas é só hoje. Aquilo tudo fiz na doença. Sou livre agora, mas é só hoje” (jovem, 28 anos, em recuperação, em pós tratamento). - “A justiça tirou meus filhos, fiz o tratamento e hoje eu os tenho de volta, agora eles confiam em mim, por que eu confio em mim” (Mulher, 34 anos, em pós-tratamento).

Os processos de uso são diversos e múltiplas são as histórias que os produzem. A

realidade fabrica valores diferenciados, mas que trazem o mundo em si. Trazem o

ocaso e o caminho. Trazem a convalescência e a saúde. Contaminam-se de vida,

serializada, singular, mas vida profanada pelo desejo de ser humano, à seu modo.

136

- “Eu como “viado” sim. Se preciso de pedra e eles têm, eu como.” Perguntei se ele gostava. - “Garota, eu gosto de sexo, com mulher, homem, cachorro, é tudo a mesma coisa... ainda mais se vem uma pedra junto. Eu quero é viver, a vida vai passar, tenho que fazer um monte de coisas ainda” (estudante da região da Grande Maria Ortiz, 16 anos).

No cotidiano a vida se embriaga dela mesma. Mas, quando se afasta do instante e,

quando isto acontece, se culpa. O ‘agora’ pode ser um terror e o afastamento dele

gera uma separação drástica dos efeitos de potência. O ato dilacerado de seu

sentido presente é má consciência. Depois de acusar o outro, a maldição cai sobre

si: o erro foi meu, introjecta-se como falta, como reação em cadeia, em comunidade.

Há muita força na reatividade em cadeia, há uma capacidade de inverter valores, de

tornar aquilo que é bom em mal. Pode-se obter força inclusive em cultivo dos

processos agonizantes. Martirizando-se a si e ao outro, encontra-se o consolo letal

para continuar a vivermorrendo: “[...] O pensamento do suicídio é um forte consolo:

com ele atravessamos mais de uma noite ruim”(NIETZSCHE, 1992, p. 81).

Vive-se de subtrair a força do outro: o escravo triunfa por meio da força do outro.

Alimenta, de forma vampiresca, a sua vida doente. Veja, que se pode alimentar a

vida de seu próprio veneno. Ora, a vida engendra venenos para si! A auto-piedade,

a justificação da falta no outro, o assolamento que gera a vida pouca é degeneração,

é devir reativo – a composição do poder é fraca (DELEUZE, 2003). Para deixar de

carregar fardos o homem precisa afirmar ao invés de reagir.

O filósofo em questão fala de abandonar a justificação da vida num paraíso-figurado

da religião judaico-cristã. Para livrar-se do peso das culpas e fardos, da vingança

que traz em si, o homem sublima, negando a vida, depositando-a num lugar mágico

de plena realização. O peso do mundo num “[...] trasmundo[...]” (NIETZSCHE, 2003,

p. 56). Por isso, deus precisa morrer, como morada da existência, como esperança e

âncora. Negação da vida, vontade de nada, ausência de sentido terreno - niilismo! O

mundo perde seu valor...

Mas veja que o ressentimento vívido da consciência cria avatares intramundanos e a

fé no homem, produto da moral socrático-platônica, e suas individuações instalam-se

137

no lugar de deus, evitando o contato com a vida profana dando continuidade ao

niilismo como expressão da vontade. Ainda estão em vigor os valores decadentes: o

homem “[...] deseja dominar um tipo de vida que ele considera valioso, mas, por

outro lado, vivencia a crença de que ele não é capaz de experienciá-la” (CIVALE,

2000, p. 50).

Se o esquecimento, força ativa, “[...] plástica, regeneradora e curativa, permite

àquele que esquece a digestão de suas experiências [...]” (WILKE, 2000, p. 156)

também há uma possibilidade de viver em diálogo com o passado: ‘presentificando-

o’!. Ora, o motor da digestão e redimensionamento do passado o faz ativo, a

lembrança presente não é conservação, mas atividade: institui uma relação positiva

com o tempo porque este é ininterrupto, não existe mais ‘encerramento’, o passado

é uma porta aberta, em fluxo até o futuro.

O tempo mostra que tudo vai e volta, que, sem limitações, os fluxos se abastecem

de sua multiplicidade, deixando ao ser uma continuidade deste com o tempo, sem

distinções prévias. É convalescendo, deixando-se curar, que o profeta de Dioniso,

vê-se diante do eterno retorno, da vida que, em fluxo aceita a experiência de meio,

que traz alegria, eliminando a negação, posto que abandonou o passado como

ressentimento e o futuro como esperança. Num primeiro momento, adoecido, ele é

sugado pelo ciclo vital, depois que não, recupera a saúde.

É negando que o camelo transmuta-se em leão. Bravo rugindo, ele ainda enfrenta,

diz não, batalha. Nega para afirmar. Deixa vir o que é humano sem medo de pecar.

Ele quer deixar a carga e criar. “Criar novos valores – isso também o leão não pode

fazer; mas criar para si a liberdade de novas criações - isso a pujança do leão pode

fazer” (NIETZSCHE, 2000, p. 52).

É o leão que prepara o terreno da transmutação: não quer mais a vontade de nada,

não quer mais dizer não, quer o ‘que quer na vontade’. Novos valores que afirmam.

A transvaloração é a criação em si mesma. Arraigado e fincado na vitalidade o

homem, deixando o leito convalescente diz sim à vida, ludicamente alegra-se e

recebe a criança.

138

O homem, “[...] corda estendida entre o animal e o super-homem, uma corda sobre o

abismo [...]” (NIETZSCHE, 2003, p. 38) anunciado por Zaratustra como um raio, uma

ponte, traz processualmente em si a aceitação da vitalidade: o além-homem está na

terra! Ele é aceitação da terra, da singeleza, da vida transvalorada, ciente de si,

profanada e pecaminosa, mas alegre, exuberante também. Não é uma promessa,

mas um sentimento de processo, uma existência transbordante, que esquece a

história ressentida para uma nova abertura ao tempo cotidiano como experiência. O

além-homem é celebração das forças vitais, uma recusa à sabedoria socrática e um

mergulho de superfície na tragédia apolíneo-dionisiaca, navegação na aparência.

Para Nietzsche (2003, p. 38), “[...] superficiais por profundidade [...]”.

Avista-se a grande saúde. A alegria é grande saúde! Viver em potência: vontade de

potência, afirmativamente aberta é saúde. É intensividade e aprofundamento na

superfície sem a busca do recôndito; a alma, se ela existe, é efeito da superfície nos

homens, alegria pura41. Este além-homem é intensificação, mutabilidade, inocência

de vida:

Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo,

uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial,

um sagrado dizer ‘sim’ (NIETZSCHE, 2003,p. 53).

41 Nesta pureza não há nenhum ascetismo, apenas aceitação à vitalidade.

139

CAPÍTULO 4

POLÍTICAS DE EXPANSÃO DA VIDA NO COTIDIANO: DANDO L UZ A UMA

ESTRELA DANÇARINA ...

A vida não se remedia. Nem a grande saúde é um lugar, um ponto evolutivo. O

além-homem não é um estágio superior, senão uma construção expansiva. Mas,

como distender e atravessar de um ponto a outro?

Voltei às escolas depois de meu exame de qualificação de tese, por sugestão da

banca: “ouça o que eles têm a dizer de si”. Aquilo martelava a minha dureza. Será

que eu aguentaria? Enfrentei primeiro a dificuldade de reencontrá-los. Eles quase

nunca estavam lá, como já disse. Depois, enfrentei meu temor em esfacelar-me.

Essas histórias eram tão minhas, porque diziam tanto sobre minha vida, sobre minha

força e fraqueza, mas também eram tão diferentes! Por isso mesmo, eu sabia que as

caricaturas eram apenas enrijecimentos gramaticais. Sabia que nada se repetia que

não diferisse na mesma intensidade. Ela diz:

“Eu só sentia tudo encolher, a minha irmã perdeu o bebê, meu pai nem soube, ninguém no bairro se entende e eu então resolvi cuidar da minha vida. Mas, nesse momento conheci o crack e não saí mais” (menina X, 17 anos, ex-estudante da EMEF Presideu Amorim, 2007).

Muito, muito magro, ele fala:

“To bem, mas a vida é meio sem sentido, não acho emprego, não paro pra pensar” (menino Y, 17 anos, estudante da EMEF Presideu Amori m, 2007).

Perguntei sobre a vida e a escola:

“ A escola é um saco, mas é bom encontrar os outros. Tenho pressa de que a vida acabe logo, tudo é muito chato” (menina X, 17 anos, estudante da EMEF Presideu Amorim, fim de 2007). “Quero é viver mais que os outros, por isso acelero, é uma curtição” (outro menino, 18 anos, estudante, usuário de droga, EMEF Juscelino Kubistchek, inicio de 2008).

“Tenho pressa que a vida acabe logo” e “quero é viver mais que os outros” podem, à

primeira vista, mostrar-se como afirmações opostas. Parei-me diante das falas,

140

numa tardinha fria, com os papéis cheios de anotações, prontinha a dizer que uma

frase significava vida e outra revelava a morte. Fiz um esforço de dessubjetivação e

de dessignificação. Como é difícil convocar o pensamento a lançar-se e abandonar o

buraco em torno de si! Como é intenso o trabalho de não se esforçar, para que a

languidez mostre o caminho e a virilidade deixe de lado seus pares incontestes: a

moral e o julgamento! Tentei desobstruir...

Veio à minha tela, em quadros descontínuos, o personagem Bill Lee, no mais puro

estilo on the road. Geração beatinik, Kerouac, ayahuasca...Eu havia lido um

pedacinho de Burroughs(1953), há uns quinze dias, mais ou menos. E lia, e

imaginava os quadros literários de Junky42 que formavam imagens em minha tela

cheia... Bill Lee na América do Sul, Bill Lee na estrada, Bill Lee no seu quarto e

Burroughs no Marrocos experimentando-se a si.

William Burroughs, eu conheci durante esse trabalho por conta de uma aferição de

Deleuze e outra de Foucault. Li poucos trechos em inglês e outros, em português,

sobre sua importância no entendimento das transformações políticas e literárias das

décadas de 20 a 50, especialmente. Pensei por dias a fio no que era “vício como

um estilo de vida” e como era interessante provocar ondulações no corpo entre uma

droga sintética e outra, uma injetável e outra escarrando nos pés de corpos

instituídos que viviam das hipocrisias consumidas nos mercados capitalísticos

mundiais. Eu, obviamente, só podia ficar atônita diante deste radicalismo

experimental que dava as costas ao medo. Que tipo de intensidades havia vivido

quem comeu Burroughs, quem cheirou Burroughs , quem deixou Burroughs passar

por seu dia pálido de compras no shopping?

Ficamos eu, Burroughs e os dois meninos estirados na cama aguardando a tela

desobstruir-se para continuar. Numa fusão de diferenças, senti como virávamos, nós

quatro, sobre a cama, modulações de histórias que se atravessam. Pude sentir o

sangue passar em minha veia com a devida distinção. Também vi que meu sangue

passava pelas veias deles. Envenenamo-nos de nós e, sem nenhuma pretensa

unidade, eu era de novo orifícios auditivos e sangue-veneno puro, pronto a bombear

o coração do mundo que estava em mim.

42 Obra de Burroghs, de 1953 que relata, em quadros em movimento, a vida de um personagem, Bill Lee, cujo uso de drogas era um estilo de vida.

141

O menino retomou:

“Eu queria era parar com isso, às vezes me canso. Eu gosto, mas tá ficando complicado” (outro menino, 18 anos, estudante, usuário de droga , EMEF Juscelino Kubistchek, inicio de 2008).

Lancei-me: “como assim, “complicado?”

“Ah...é foda enfrentar a polícia, a fissura, mas não dá pra enfrentar a vida de cara limpa não, isso não dá” (outro menino, 18 anos, estudante, usuário de droga, EMEF Juscelino Kubistchek, início de 2008 ).

E o que você pensa em fazer, perguntei:

“Eu queria... vou ser cantor de rap, ter uma banda, acho maneiro, véio” (outro menino, 18 anos, estudante, usuário de droga , EMEF Juscelino Kubistchek, início de 2008) .

E a escola, você gosta? Ousei:

“Putz, nem me fala em escola. Bem que lá podia ter coisas além das obrigações” (outro menino, 18 anos, estudante, usuário de droga , EMEF Juscelino Kubistchek, início de 2008) .

De certo, a questão não é o uso de drogas em si, até que passe a sê-lo. Até que um

composto droga-corpo-morte substitua, num acidente, o corpo sem órgãos que

poderia responder às questões colocadas à vida por uma organização modelar dos

órgãos.

Trata-se de saber como viver sem atrofiar os músculos: como ser um atleta de si e

desconfiar dos kits que prometem a juventude e a força ao espírito. O que é saber

do caos e de seus elementos quânticos darem à luz a uma estrela bailarina,

candente, cadente? Como transformar a anarquia dos elementos em dançantes

movimentos modulados de prudência, sem arrastá-los à prisão das teleologias? E,

142

mais, como estabilizar-se num plano organizativo sem ser capturado? Onde se

encontrariam todos os corpos sem órgãos: em qual nível de intensidade?

Se um plano de consistência é produzido por intensidades e, se é necessário tornar-

se prudente, para que uma “desestratificação acelerada e exagerada” não ocorra,

em que consistiria um platô que distribuísse as intensidades que passam pelo corpo

sem órgãos? Ou seja, em que consiste a conexão entre os muitos fluxos que

atravessam sem cessar um plano de consistência?

A comunicação não se dá, por certo, através de um princípio de seletividade que

nomeia semelhanças e diferenças, mas por distinção daqueles fluxos ou desejos

que “(...) remete à proliferação de estratos, ou bem à desestratificação demasiada

violenta, e o que remete à construção do plano de consistência (vigiar inclusive em

nós mesmos o fascista, e também o suicida e o demente)” (DELEUZE, 1996, p. 29).

Essa distinção é que modulará as conexões entre os fluxos descodificados e

desterritorializados e as conjugações entre estes. Conjuga-se quando um (ou parte)

destes fluxos se sobrecodificam e se impõem sobre os outros, de uma só vez,

reterritorializam-se.

Na tentativa de acolher no corpo os fluxos de questões que chegam e desalojam as

formalidades e tradições, o corpo drogado em vistas a destituir-se de organismo

pode, sem dúvida, se reterritorializar em configurações atuais, mas nem por isso

menos fascistas. Significados e bandeiras se impregnarão no corpo, justificando

estratos precedentes e procedentes. Nesses casos, a experimentação perde o seu

sentido e a transcendência volta a ocupar seu lugar reservado na filosofia do corpo.

Pode ser assim, mas o caso é que como os fluxos não param de se conectar em

intensividades, dá-se uma revolução microscópica, não por ter um caráter pequeno e

diminutivo, mas por apresentar dispositivos infinitesimais, pode acontecer em nível

das moléculas do mundo e dos corpos.

“Não paro pra pensar”, “às vezes me canso” são inscrições da inquietude já

sobrecodificadas, mas que nem por isso deixarão de colocar em funcionamento

elementos que acionem a máquina abstrata de mutação. Esta funciona como um

piloto dos fluxos de quanta, “assegura a criação-conexão dos fluxos, emite novos

143

quanta” (DELEUZE, 1996, p. 104). Ou seja, se por um lado, há linha de segmentos

que se sobrecodificam e se enrijecem, delas escapam singularidades, forças,

criações e destruições e quanta – um exponencial criador, mutante, circular do fluxo.

Isso me remete a uma virtualidade: a mudança perene. É assim porque os fluxos de

quanta não podem ser capturados indistintamente, se o forem, fogem e escapam.

Drogados não são sempre drogados. Ademais, “drogados” é mais uma experiência

da língua do que alguma coisa que tenha um funcionamento real e satisfatório.

Numa ida ao Centro de Prevenção e Tratamento ao Toxicômano (CPTT), em 2007,

depois de uma reunião do Fórum de Atenção ao Uso de Álcool e Drogas do

Município de Vitória, pude constatar, em conversa com duas pessoas da equipe

técnica da instituição, informações e sentidos sobre a forma e abordagem ao

usuário, sobre a existência de um fórum e sobre as diferenciações de uso e as

políticas:

“O usuário de drogas não vai ficar sempre nesse lugar que ele se coloca e nós reforçamos. Ele não pode ser tratado como uma coisa, porque não é uma coisa. Ele traz o tudo, a humanidade inteira em si: manipula, sofre, mente, vive, vai querer ganhar e perder. Quando ele assume um lugar muito especial que acentua seu envolvimento com as drogas como a única coisa, perde a possibilidade de autonomia: de nomear-se a si, de se dar um nome. Certa vez um usuário em tratamento vindo de outra cidade chegou aqui tendo usado. Uma de nossas “regras” é não portar drogas aqui no espaço. Aí ele disse que ele teria que ficar aqui porque senão ele ia usar novamente. Eu disse: oras você usa se quiser, se achar conveniente” (psicóloga do CPTT, 2007).

O tratamento pode, por vezes, estancar os fluxos de quanta e gerar uma

acomodação sobrecodificada. Atribui-se às drogas as dificuldades de lidar com o

cotidiano e nada mais entra como força de composição:

“O sofrimento é produzido quando apontamos ao usuário o tempo todo que ele vai morrer, vai ficar louco e é um coitado. De fato ele pode morrer e muitos morrem, mas a questão é: o que ele ganha com o uso, como ele abastece o prazer, e se ele pode gerar uma vida fértil e prospera deste modo. Ás vezes ele pode ser feliz assim, há sempre o risco de ser capturado, mas ele pode sim. Trata-se da vida e não da droga. Então é pensar como eu posso me afirmar usando ou não. Se o uso me afirma, me dá chances, me traz efeitos diferentes da dor e morte o tempo todo, então eu posso. Quem decide isso é o usuário. Esta obrigatoriedade que diz que o outro precisa sair desta vida é muito pesada. É como se eu tivesse que resgatar o outro, como se eu precisasse resgatar o cara deste mundo que é o pior mundo. Na verdade, não necessariamente é uma vida negativa. Pessoas podem se afirmar usando drogas” (psicóloga do CPTT, 2007).

144

A vida pode ser percebida como falta ou carência, mas isso pode ser apenas uma

ficção que obstrui novas passagens. O uso ou desuso pode petrificar a vida e, ainda

mais, isso pode acontecer na sacralização ou transcendentalização do desuso. É

real que a abstinência total pode ser o que viabiliza a vida fértil para alguns que não

podem ou conseguem lidar com o uso moderado, mas também é certo que o desuso

não desobstrui a tela cheia e nem mesmo elimina o que é percebido como vazio.

“O sujeito perde um monte de coisas, emagrece 40 kg, mas tem prazer no uso. Se não for discutido o desejo e ele não for capaz de fazer escolhas a questão continua. De repente ele diz: minha história ficou vazia...mas, a vida está cheia, pode ser de coisas insatisfatórias, de correrias, de destruições, sei lá. Esse vazio, essa falta é uma construção de um sentido que toda vida devia ter? Isso não é um modelo?" (psicóloga do CPTT, 2007). “A pessoa também pode dizer pra si que quer fazer novo registro, mudar de hábito e não usar mais, que não consegue voltar ao uso sem sofrer muito, é outra escolha possível (terapeuta\do CPTT, 2007).

Quando a questão do uso de drogas se transforma em tema social, em debate social

é fruto de agenciamentos e assume o caráter de enunciado. Integra, assim, a política

sobre as populações, sobre o corpo e dissemina-se seu caráter restrito por entre o

tecido social, porém sua disseminação não é restrita.

Segundo Foucault (1997), na primeira metade do século XVII, é produzida uma crise

dos princípios em que se ancora o poder pastoral, característico da liderança sobre

um povo que se desloca. Para ele, princípios como sabedoria, justiça, prudência e

práticas como o aconselhamento são substituídos por uma “arte de governar cuja

racionalidade tem seus princípios e seu domínio de aplicação específico no estado”

(FOUCAULT, 1997, p. 83).

É essa tecnologia racional que produz uma população que deriva de uma equação

entre forças de estado e recursos disponíveis. Os problemas da população serão

geridos pelas forças estatais. Gerir a população cria uma plasticidade racional que é

dinamizada por relações e forças estatais: técnicas de controle dos hábitos

alimentares e da saúde são produzidas e acionadas no discurso da higiene pública e

saúde social. È o conjunto dessas técnicas, procedimentos e saberes que Foucault

145

(1997) diz ser a biopolítica: a gestão política do corpo dos indivíduos, coletivizados

em tecnologias sociais e o corpo, responsável pelos procedimentos em si mesmo,

acentuando seu caráter individualizado.

A gestão das políticas de saúde ao longo do tempo não é objeto de meu trabalho e

nem uma abordagem histórica sobre elas. Contudo, o que diz respeito àquilo que é

sentido e visto pelos usuários de drogas nas escolas é necessário abordar. Assim

falam os meninos e professores quando pergunto sobre política de saúde,

tratamento e prevenção:

“Sei nada sobre isso. Também a gente chega no hospital e querem mandar na gente e ouço tudo que já ouvi mil vezes. Já ouvi dizer que eles mandam aquela ficha para a polícia”(menina X, 17 anos, estudante da EMEF Presideu Amorim, fim de 2007). “Você é doida? Você acha que a polícia tem tempo pra olhar nossa saúde?” (menino, 18 anos, estudante, usuário de droga da mes ma escola). “Deixa de ser burro veio! Quem ta falando de saúde? Eu to falando é de polícia!” (menina X, 17 anos, estudante da EMEF Presideu Amori m, fim de 2007). “Olha, eu nunca vi nada além de palestra sobre droga. Sei que no posto de saúde eles mandam a gente pra polícia, só isso.” (menina X, 17 anos, estudante da EMEF Presideu Amorim, fim de 2007).

Trata-se da percepção de um não-funcionamento de políticas de saúde para saúde

e de um funcionamento que aciona coerções das quais os garotos querem escapar.

É assim, num campo em permanente tradução e negociação que opera-se a política:

onde se dão os movimentos, as segmentações e as capturas.

Modos simultâneos de uma mesma máquina estão em operação: o da máquina

abstrata de mutação e o da máquina abstrata de sobrecodificação (DELEUZE,

1996). Essa segunda máquina não pode ser confundida com o aparelho de estado

em si, mas é ele que efetua a máquina de sobrecodificação, dizendo-lhe os limites e

condições. Ou seja, ainda que seja no campo da política que se produzam as

reterritorializações e, onde os territórios rijos agenciem outras sobrecodificações, é lá

também que as linhas de fuga escapam da captura, da vedação, da molaridade.

Uma verdadeira máquina de guerra instala-se. O aparelho de estado, como

resultado de sobrecodificação, é que aciona outros modos da máquina de

146

sobrecodificação podendo, inclusive, fechar-se nela, endurecendo paredes, diques e

dutos.

No campo vasto da política podem conviver, diferenciando-se, vários centros de

poder que dizem respeito aos estratos/segmentos duros, mas também às moléculas

e seus movimentos. Nada disso exclui a existência do estado como um espaço de

ressonância dos centros de poder e sabe-se que a esse estado escapam

molecularidades concernentes aos movimentos. A centralização não impede a

segmentarização. Ou seja, o fato de a sociedade se segmentarizar em estratos não

impede que o estado seja cada vez mais centralizado e funcione como um

hierarquizador dos centros de poder.

Dito isso, afirma-se a possibilidade de que, no campo da política, operem-se lógicas

variadas; continuidades e descontinuidades, molaridades e movimentos

moleculares. Ou seja:

“E a decisão política mergulha necessariamente num mundo de microdeterminações, atrações e desejos, que ela deve pressentir ou avaliar de um outro modo. Há uma avaliação dos fluxos e de seu quanta, sob as concepções lineares e as decisões segmentares” (DELEUZE, 1996, p. 102).

Assim, políticas de saúde podem ser tanto resultado de centralizações estatais e,

portanto, políticas estatais e/ou gestão do estado sobre os corpos; quanto podem,

através de combinações múltiplas, ser políticas de expansão que lancem fluxos de

quanta por todos os lados, sem que estes se sobrecodifiquem-se.

É preciso ressaltar que os fluxos de quanta são circularidades e mutações, mas não

estão à espera de sobrecodificações a qualquer momento. Escapam e por sua

fluidez sempre escaparão das traduções porque não param de se produzir de

elementos de inexoráveis sentidos. Mas, também é verdade que até as políticas de

expansão trazem elementos de traduções, ainda que parciais, mesmo que

conservem sua inexorabilidade. Contudo, os elementos, por sua parcialidade, nada

querem dizer sobre um significado ou uma bandeira, não se estabelecem, e por sua

capacidade de combinação variada lhes é garantida a possibilidade de expansão da

vida.

147

Expandir é alargar o campo sem delimitar a área. Políticas de expansão são sempre

evasivas e se esbarram com a dificuldade do instituído em aceitar as entradas

acidentais e caminhar por terrenos arenosos e incertos: desprover-se de estratégias

para captar forças que não se estabeleceram gramaticalmente. Mas também não se

trata de transcendência porque não se evoca uma interpretação no lugar da

experiência.

As histórias do cotidiano só podem ser identificadas entre si por princípios de

racionalidade cujo objetivo é governar. Qualquer política de gestão estatal, chamada

de política pública é, ao mesmo tempo, uma caricatura da política e do espaço

público. Não são ouvidos atentos ao cotidiano porque o cotidiano não se contém no

segmento e, se o fossem, não seriam passíveis de segmentar-se.

Mas, não teria essa forma de pensar um contato íntimo com um idealismo e

essencialismo que tenho dito não se sustentar na realidade? Não está essa posição

eivada de moralidade? Ou não sustentaria ela uma justificativa para a inércia? Se

políticas estatais são procedimentos e/ou racionalizações de controle e pertencem

aos segmentos, como distingui-las daquilo que venho chamando de políticas de

expansão da vida? Essa questão me remete a outra: como as políticas estatais são

percebidas no cotidiano pelos seus maiores interessados, os usuários de drogas?

Como essas práticas discursivas são subjetivadas?

Pensemos com cuidado naquilo que vou chamar de “acolher o vivo”. Se o “vivo”

comporta potências indescritíveis, inacabadas, intraduzíveis, também comporta

tecnologias, biopoderes e “biocontroles”. Estes últimos não são externos ao vivo,

caso contrário voltaríamos à dicotomia da exterioridade e interioridade. Portanto, não

há campos distintos em que se processam lógicas binárias e, se assim o fosse,

necessariamente haveriam de disputar entre si e/ou confrontar-se. Trata-se, então

de pensar como se dá o processo a partir do vivido, do cotidiano, do experimentado

para distinguir aquilo que passa pelo corpo.

Tenho discutido sobre a tomada dos processos moleculares como uma captura dos

modos de sentir, ver e estar no mundo, por outras palavras, tenho pensado como as

técnicas de assujeitamento geram um sujeito sintético serializado. Ou seja, só se

fala em sujeito quando da tomada ou quando o investimento sobre o desejo cria o

148

indivíduo como ficção de si. A arte de governar ou governamentalidade é um

conjunto das racionalidades que produzem um povo e uma população. Nesse

sentido, todas as técnicas de composição dessa gestão, a priori, destinam-se à

sociedade, vista como um corpo social ao qual é possível aplicar modulações de

governamentalidade.

Essas modulações são sobrecodificadas em máquina abstrata cuja medida, na

sociedade moderna, é o aparelho de estado. Por isso mesmo, por comportar uma

lógica e/ou uma teleologia é que as políticas de gestão do corpo são estatais: são

captura das demandas sociais sob um conjunto de técnicas e normas,

transformando-as em virtudes do próprio estado que é capaz de geri-las, distribuí-las

conforme o funcionamento da sociedade capitalística.

Ao operar a partir de demandas sociais e recolocá-las, distribuí-las, percebendo os

seus diferenciais, a biopolítica amplia o poder da força individual, ou seja,

segmentariza ao mesmo tempo em que centraliza. Veja que se trata apenas de um

modo de funcionamento e operação das demandas: as variedades e variabilidades

sociais estão abundantemente sendo transformadas em técnicas sociais que

apresentam respostas na mesma medida em que integram as forças a uma

racionalidade específica.

Mas, de fato o aparelho de estado é somente uma das modulações dessa

distribuição do poder, (obviamente não desprezível), porém uma modulação que

coincide com a efetuação da sobrecodificação. Tendo sido integradas à uma

racionalidade específica a demanda social e as forças que a ela se relacionam

serão produtivas para essa racionalidade e para todos os procedimentos e técnicas

que os compõem. Porém, essa produção não é resistência ao assujeitamento ou

aos investimentos numa subjetivação serializada e capitalística.

Se a diferença habita em abundância e inesgotabilidade o campo da política é por

isso mesmo que, em variadas épocas, foi possível agenciá-la a favor de uma

racionalidade específica e/ou capturar suas forças descontínuas pilotando-as por

meio de um objetivo. Pode ser também que, em dado momento, esse foi o jogo

aceitável diante da contingência. Em todo caso, a contingência não quer dizer

inviabilidade e conformidade. Isso porque há diferença na contingência e os

149

elementos combinam-se a partir daí, resguardando sempre a imprevisibilidade.

Também é preciso dizer que imprevisibilidade não é uma força transcendente, os

corpos escolhem com quais forças compor, mas não há qualquer espécie de

teleologia na história: sempre algo novo escapará.

No exercício do poder inerente à política há sempre fluxos intensos atinentes ao

próprio caráter relacional do poder. Se este sempre se desloca de um lado a outro

não está preso aos modelos dos investimentos no desejo, aos territórios calcários,

às atualizações figurativas. Esta força selvagem e fugidia é sempre resistência e

tangencia os modos de fabricar os corpos, de sentir e viver.

As políticas de gestão do corpo são sempre limitativas, reduzidas e subsumem a

resistência, daí seu perigo. Como transitar entre a captura e o “movimento de

inércia”?

É na experiência e nas falas dos infames que se pode encontrar a vitalidade

necessária para a escola e para a questão do uso intensivo de drogas que entrou

portões adentro. No cotidiano escolar que a vida estende suas respostas e suas

novas perguntas. Os corpos fabricam suas negociações, suas possibilidades e suas

hibridizações (BHABHA, 1998).

Eles dizem:

“Não, não conheço nada da Seme, parece que agora tem um grupo sobre drogas lá, né? O estado faz palestras, tem gente da saúde, mas não sei bem”(professora, não quis dizer a escola, 2008). “Sei não, nem quero saber, aposto que é sermão” (jovem, 18 anos, estudante, usuário de droga, EMEF Juscelino Kubistc hek, inicio de 2008).

Estive presente na segunda reunião de constituição do Fórum de Atenção ao Uso de

Álcool e Drogas do Município de Vitória, cujo propósito era reunir pessoas e

instituições para discussão sobre políticas voltadas à problemática das drogas. A

urgência, a necessidade, a falta de equipamentos coletivos e o socorro imediato

deram o tom da reunião. Contudo, era possível distinguir claramente as posições

entre aquelas que se preocupavam com a construção de outros modos de vida e

150

àquelas que, tomadas pela urgência e gravidade dos casos nos seus ambientes de

trabalho nos municípios argumentavam as providências imediatas. A forma de lidar

com o uso de drogas está nas falas:

“Uma pessoa é uma pessoa, não é um usuário de drogas, não é um doente de hepatite, é um todo, um ser, que não tem uma doença objetiva” (técnico da Unidade de Saúde da Família de São Pedro V, 2007 ). “Depois do nascimento do Programa de Saúde da Família, com a reforma sanitária e dos Centros de Atenção Psicossocial com a reforma psiquiátrica o profissional teve que mudar de lugar. Pensar a questão das drogas exige intersetorialidade. Foram criados os dispositivos, mas não têm profissionais suficiente” (Profissional do CPTT). “Acho bom pensar a política, mas precisamos de atender ao que está caído na porta da prefeitura e não tem como se tratar. Não há internações para alcoólatras e daí no interior precisamos dar respostas a isso” (servidora da saúde da Prefeitura de Brejetuba). “Tenho medo de fazermos mais um fórum sem capacidade deliberativa, para que? Para falar ao vento? (servidora da Secretaria Municipal de Geração de Emprego e Renda) “O fórum abre perspectivas para pensar as questões locais. Nós, por exemplo, podemos trabalhar a prevenção sobre drogas junto ao nosso programa DST-Aids”( assistente social da Unidade de Saúde de São Pedro V).

Mesmo com todas as controvérsias, a reunião resultou em construção de diretrizes

para o fórum, quais sejam:

- Droga é questão de saúde pública. Decisão de tratar o tema comprometendo-se

com a atenção integral e com a amplitude das drogas no contemporâneo,

escapando da dicotomia lícitas e ilícitas;

-Saúde deve trabalhar fortalecendo dimensão intrasetorial e intersetorial;

- Construção/fortalecimento de uma política integral de álcool e outras drogas em

acordo com a Política Nacional de Saúde Mental, em especial a Política Nacional de

Álcool e outras Drogas, valorizando a estratégia de redução de danos;

151

-Princípios orientadores para construção da política: princípios do SUS

(universalidade, equidade e integralidade, descentralização, regionalização e

territorialização);

-Articulação e advocay junto ao Legislativo e Judiciário;

-Inclusão-articulação com políticas-programas de outros setores (SUAS, Segurança,

educação, cultura, esporte, justiça, trabalho e geração de renda, direitos humanos);

-Integração com a universidade.

Na voz do estudante:

“ixi, nem sei o que é esse negócio de redução de danos, o nome é engraçado”(Cássio, 18, estudante).

Eu disse a ele que existia um fórum que discutia a questão do uso de drogas. Ele

perguntou “para quê. Respondi que as pessoas são livres e deviam ter o direito de

usar drogas, mas também de parar de usar quando quisessem. Minha fala fez nada

de diferente. Parecia que nem o tocava.

Na mesma ocasião do fórum foram aprovadas as seguintes propostas: a instituição

de um Fórum Metropolitano Mensal; discussão da legislação e descriminalização do

uso de drogas na perspectiva da Cidadania e Direitos Humanos; capacitação dos

Agentes de Segurança em Direitos Humanos e Cidadania para atenção aos usuários

de álcool e outras drogas; divulgação da rede de Serviços a Atenção ao uso de

Drogas; criação uma comunidade virtual para formação de um grupo de discussão

da temática; construção de espaços/fórum para busca do empoderamento dos

usuários/sujeitos.

Mas, onde estavam os usuários no momento de constituição do fórum? Quem fala

por eles? Se acolher o “vivo” é acompanhar seu movimento, como acolhê-lo sem

precipitar-se sobre ele e sufocá-lo? O que são “demandas do vivo” e como estas

podem expandir a vida?

152

Os desejos e necessidades do vivo podem gorar. Mas, quando tomados por uma

força revolucionária, pela afirmação de si, geram aberturas para todos os lados. Veja

que não se trata de uma lógica coordenada por um projeto, mas de pensar em como

o desejo se move e como ele é agenciado na sociedade.

Os fluxos de desejo que são agenciados por uma máquina abstrata afirmam o

caráter eminentemente social da subjetividade e do próprio desejo. Não há como

reduzir esses fluxos a investimentos em valores representativos, nem tampouco

totalizá-los no indivíduo. “Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a

multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente

fabricada e modelada no registro do social” (GUATTARI, ROLNIK, 1996,p. 31). Se a

subjetividade só é passível de totalizações quando se lança em relações de

repressão e alienação, somente nesse registro é que corre o risco de esgotar-se em

representações. O movimento de expansão é sempre o de singularização, de alargar

o desejo para além das representações.

Acolher as demandas do vivo e nutri-las de demandas ainda maiores expande o

desejo e alarga o campo da política: é necessária alguma flexibilidade para receber

o estranho no corpo. É o estrangeiro em mim e de mim que expande a vida. Quando

o campo da política acolhe o estrangeirismo é capaz de expandir a vida. Contudo, o

acolhimento pode se dar por portais variados e gerir combinações múltiplas.

Os usuários de drogas estão como pressupostos nas reuniões do fórum. Foram

recebidos através de representações. As tecnologias que os arregimentam, as

políticas de saúde que pretende integrá-los, o respeito que merecem, as tragédias e

risadas que despertam estão nas reuniões. Mas, e eles?

São “vidas ínfimas que se tornaram cinzas”(...) e se meu (nosso) discurso era

incapaz de levá-las como caberia o melhor não seria deixá-las na mesma forma que

me fizeram senti-las?”(FOUCAULT, 2006, p. 206-207). São os homens infames

presentes nos escritos de 1977, de Michel Foucault. Não há porque se aventurar em

traduzi-los, nem interpretá-los. Basta a arriscada tentativa “de lançar planos de

153

visibilidade sobre os jogos de poder, sobre suas biotecnologias, como também sobre

forças que escapam a esses dispositivos de controle”.43.

Ao que parece, ao pensar políticas para o usuário de álcool e drogas, a grande

novidade é olhar as práticas discursivas que os engendram, o que, na verdade, se

trata de entender as biotecnologias que os próprios integrantes do fórum em

formação estão a construir sobre o corpo drogado. Mas e o que escapa, quem trará?

A produtiva ausência dos usuários diz sobre uma impossibilidade, mas também

sobre uma escuta não realizada. Foucault (2006) fala de ir até a infâmia. Ir até onde

as vidas se encontram com a violência do poder e suas tecnologias e, por sua vez,

injetam sua própria violência, suponho eu, sua infâmia. Lançar luzes sobre eles!

Estou certa de que as luzes são composições e que precisam ser rápidas para que

não se tornem assepsia. É preciso entrar por qualquer via e trazê-los sem cores para

que não se arvore em ser um espetáculo.

Os drogados são indignos, perigosos, expulsos e inúteis e suas falas desconexas

são armadilhas que sempre erguem os que violentamente são abatidos pela extrema

dor ou euforia. Por que escutá-los?

Porque suas vozes descaradas e secretas destilam uma energia de existência que

não irriga os códigos das políticas estatais que funcionam como interrupções desta

energia. Os investimentos sobre eles pretendem erradicá-los, planejar seu

confinamento ou conformá-los com algum calmante qualquer a uma vida de

concórdia ao modelo.

Essas vozes não estavam presentes nas reuniões, mas eles eram o prato do dia.

Seriam comidos, mas não seriam antropofagizados. Refeição cara: comer sem

degustar.

43 Texto da professora Leila Domingues Machado a mim entregue no exame de qualificação II, junho de 2007.

154

4.1- POLÍTICAS DE GESTÃO ESTATAL: PRIMEIRO FRAGMENTO, POLÍTICAS DE PREVENÇÃO NA EDUCAÇÃO E OS JOGOS DE PODER E VERDADE

Por entre as tramas da produção e articulação de políticas está o Ministério da

Educação que participa do Conselho Nacional Anti-Drogas, junto a Secretaria

Nacional Anti –Drogas, e a Secretaria de Educação e Cultura, que compõe o

Conselho Estadual Anti-Drogas e, assim tornam-se responsáveis pela discussão do

Sistema e pela execução de políticas específicas direcionadas à prevenção em

dependência química.

O Decreto que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas postula

como papel do MEC:

“(...) II - do Ministério da Educação: A)propor e implementar, em articulação com o Ministério da Saúde, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e a SENAD, políticas de formação continuada para os profissionais de educação nos três níveis de ensino que abordem a prevenção ao uso indevido de drogas; b) apoiar os dirigentes das instituições de ensino público e privado na elaboração de projetos pedagógicos alinhados às Diretrizes Curriculares Nacionais e aos princípios de prevenção do uso indevido de drogas, de atenção e reinserção social de usuários e dependentes, bem como seus familiares(...)” (Decreto N° 5.912, de 27 de setemb ro de 2006, que regulamenta o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD.)

O Ministério da Educação deveria ser instituinte de processos geradores de

orientação a produção curricular, elaboração de projetos pedagógicos, bem como de

formação de professores e construção de outras intervenções em relação contínua

com outros Ministérios, o da Saúde, por exemplo. Quando da elaboração da política

sobre drogas44, entendeu-se que a educação deveria desenvolver ações

sistemáticas quanto ao tema.

Em 2002, um projeto piloto sobre a Formação de Educadores das Escolas Públicas

para a Prevenção do Uso Indevido de Drogas, promovido pelo Ministério da

Educação (MEC), a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e a Universidade de

44 Na maioria dos textos nacionais, a política é entitulada “política sobre drogas”, embora em algumas prescrições apareça o termo anti drogas.

155

Brasília (UnB) capacitou professores da rede pública para tratar da questão do uso

indevido de drogas por adolescentes. O programa se baseia em pesquisa da

UNESCO sobre a forte presença das drogas no ambiente escolar (ABRAMOWAY,

2001) e propõe um trabalho em redes que fortalece a proteção às escolas. Essa

proteção não seria construída por meio de medidas coercitivas, mas “apostando na

linguagem do vínculo como resposta a lei do silêncio que tenta sobrepujar os

processos sociais e paralisar as comunidades através do medo e da violência”

(SUDBRACK, 2008, p.1).

A proposta entende que se não há uma sociedade sem drogas, não é possível haver

uma escola sem drogas, contudo há formas de que a escola não exclua o aluno

usuário de drogas. Assim, a escola deve investir em um “modelo sistêmico de

educação para a saúde e das redes sociais” que baseia-se nas ações de redução da

demanda ao invés da redução da oferta, que não está sob a gestão da escola. Os

princípios são os de informação, soluções compartilhadas com a comunidade,

abordagem integrada (a droga e sua relação com o usuário e meio ambiente) e

redução da procura por droga. A rede, para a proposta, seria formada a partir do uso

dos espaços não formais de relacionamento, onde se desenvolvem atos de

liberdade e solidariedade: as redes inventariam aí suas próprias formas de

relacionamento, segundo Sudbrack, “num contexto não institucional” (2008, p.5).

A novidade da proposta está em reconhecer os limites da abordagem repressiva e

da experiência profissional. Coloca em xeque os modelos tradicionais de atuação ao

mesmo tempo em que convoca a aproximação entre as pessoas, a cultura, a crença

e tudo mais que estiver na sociedade para entender o uso abusivo como algo que é

questão de todos. A partilha em espaços informais seria uma das alternativas de

ação. O educador faria parte deste coletivo e funcionaria como um colaborador na

comunidade.

Contudo, embora a proposta reconheça que o envolvimento de muitos jovens com

as drogas se dá por alternativa econômica e de trabalho, mantém-se à parte desta

discussão.

Se ao traficante-menino-pobre restar as leis da repressão somente me parece que o

que acontece é uma estratégia menos contundente de enfrentar a questão. O uso,

156

em uma proporção muito grande, daí deriva: no tráfico o jovem inicia o uso,

intensifica-o e torna-se refém de si, do traficante e da polícia. Por isso, mostra-se

cada vez mais simplista a solução “polícia para o traficante”, “saúde para o usuário”.

Na cidade de Vitória, a questão das drogas assumiu proporções que assusta a

sociedade, mas especialmente na educação as ações são parciais e pouco

institucionalizadas.

Existe, desde 1999, conforme o Decreto 4.471, o Sistema Estadual Anti-drogas que

integra as atividades de prevenção, fiscalização e repressão ao tráfico e atividades

de recuperação de dependentes. O Conselho Estadual de Educação, juntamente

com as polícias, estabelecimentos penais, IESBEM, representantes de entidades

privadas ligadas à questão das drogas, e o Conselho Estadual Anti-Drogas são

responsáveis pela política antidrogas no Estado. Este sistema deveria gerar

informações, estimular pesquisas e intercâmbios entre as instituições ligadas a ele

para promoção de políticas antidrogas a serem gestadas pelo Conselho Estadual

Antidrogas (COESAD), onde o Secretário de Educação do Estado tem assento.

Além deste, têm lugar no COESAD: o Secretário de Estado da Justiça, o Secretário

de Estado da Segurança Pública, o Secretário Estadual da Saúde, o Procurador

Geral da Justiça, um membro do Ministério Público Federal do Espírito Santo, o

Superintendente Regional do Departamento de Polícia Federal –Espírito Santo, o

Chefe de Representação do Órgão de Inteligência da Presidência da República.

Nenhuma entidade da sociedade civil participa do Conselho, mas podem,

asseguradas as reuniões excepcionalmente sigilosas, participar sem direito a voto.

O COESAD deveria reunir-se, regularmente, todas as primeiras terças-feiras do

mês, mas isso não acontece, sendo que a Secretaria de Educação também não

frequenta todas as reuniões que são realizadas45.

A Secretaria Estadual de Educação torna-se, como membro do COESAD, executora

das políticas aqui chamadas de “antidrogas”. Em nível municipal há uma pequena

movimentação em torno do assunto, pois as questões que chegam à escola tem

alterado o dia-a-dia de forma significativa. Antes de integrar o Fórum de Atenção ao

45 Uma das funcionárias da Secretaria de Estado de Justiça apontou-me que eu poderia requisitar a lista de frequência das reuniões do Conselho. Abri mão, até então, desta prerrogativa, com intenção de obter informações de forma mais cordiais, através de conversas com membros do Conselho. (janeiro 2007)

157

Uso de Álcool e Drogas do Município de Vitória, um grupo de trabalho foi formado

para estabelecer estratégias de ação na rede municipal de ensino. Este grupo

pautou-se, no início do ano de 2007, em uma pesquisa feita por encomenda interna,

sobre comportamentos, lazer, juventude, drogas e violência na Região da Grande

São Pedro. O objetivo era que ações efetivas fossem propostas por este grupo.

A Coordenadora do Projeto Protagonismo Estudantil, Marilene Bento de Araújo, da

Equipe de Coordenação de Jovens e Adultos entendia que a abertura de canais de

diálogo poderia levar à exibição da problemática das drogas como uma questão da

vida. Sua proposta era construir espaços. Para isso, o Projeto promoveu encontro

de representantes de turmas do ensino fundamental, com estudos sobre o

movimento estudantil desde 1700:

“Percebi medo de falar, eles não têm noção daquilo que podem, do que é direito, mesmo assim falaram do gerenciamento da escola, do livro didático, das aulas, das drogas. Vi um certo desconforto diante da cultura que temos de não ouvir. Ainda que a Secretaria tenha se disposto a ouvir não havia um espaço oficial para discutir questões. Depois disso notei que sentiram-se motivados e valorizaram o grupo. Também fomos às escolas conversar com alunos e formar novos grupos.” (Marilene Bento de Araújo)

Outras atividades também foram promovidas pelo Protagonismo Estudantil que foi

incluído como projeto no Programa Federal Juventude Cidadã, adquirindo caráter de

política pública, por mim chamada de política de gestão estatal, o que o torna apto a

integrar várias ações do Poder Público:

“Isto é importante por que outras ações foram feitas antes, mas se perderam no registro, por que não tinham a autonomia de política pública. Realizamos a Tribuna da Comunidade: uma no Parque Moscoso em 2005; no Álvares Cabral, em 2005 e, no Parque Moscoso, em 2006. Estimulamos a produção artística e a oralidade e o uso do espaço como cidadãos” (Marilene Bento de Araújo).

A partir do trabalho do Projeto, a Coordenadora deparou-se com a questão das

drogas de forma muito intensa e escolheu uma escola para desenvolvimento de

ações que, de alguma forma, interferisse no cotidiano dos alunos e alunas. A EMEF

Vercenilio da Silva Pascoal, em Joana D´arc, foi a escolhida:

158

“São cerca de 35 alunos, de 16 a 24 anos, que já chegam na escola drogados, alcoolizados e daí a pedagoga nos procurou para elaborarmos uma estratégia, já que eles não entravam na sala de aula. A questão era: O que fazer?. Eles têm Joana´Darc como um abrigo. Os professores não queriam que eles fossem jogados para fora, mas também dispõe de pouco para mudar suas atitudes. Montamos um plano de ação para 2007 e durante isso pudemos observar que os profissionais não vivenciam o que são esses meninos. O discurso que pude subtender daqueles que não frequentavam é que eles não acompanhavam e necessitavam de visibilidade: a droga os dava isso. Um menino trabalhava no shopping e eu percebi como era importante para ele ter conseguido visibilidade, através da conversa (esse, aparentemente não usava drogas). Ao mesmo tempo houve uma briga na escola e ele foi um dos protagonistas. Daí ele se afastou e não se matriculou, mas todos os dias está lá, na porta da escola. Sentam-se meninos de um lado, meninas de outro. Estamos batalhando porque a SEME não queria receber nada pronto.” (Marilene Bento de Araújo ).

A motivação para escolha da EMEF Vercenilio da Silva Pascoal foi exatamente o

uso de drogas e a ausência na sala de aula. A idéia central do projeto era quebrar os

mitos e receber todas as temáticas que chegassem que pudessem interferir na

vivência problemática com as drogas:

“Em agosto de 2006, fizemos uma parceria com várias secretarias e propusemos várias ações direcionadas à juventude. Mapeamos pessoas que trabalham com a juventude e começamos uma ação conjunta, um projeto e plano de ação na escola. Em setembro de 2006 fizemos duas semanas de sensibilização para a escola toda – a idéia era que todos estavam vivenciando aquela questão e não só os que ficavam do lado de fora. Integramos também o grupo de professores e oficineiros. A primeira atividade foi Capoeira, a segunda foi realizada pelo Grupo Odumodê de percussão, a terceira foi Grafite e Hip-hop. Pude observar a ausência de auto-estima, por que o dançarino e músico que veio no hip hop era uma espécie de astro, daí os meninos ficaram receosos de participar e se mostrar. A quarta atividade foi a Oficina da Palavra. Mostrou que os alunos trazem uma bagagem e daí fica colocado o conflito. Aponta também para a necessidade de reconstrução da área pedagógica. A distância mantém o professor seguro em suas velhas práticas pedagógicas, já que sempre que me aproximo tenho que mudar. As oficinas também mostraram aos alunos a necessidade de repensar sua atitude na sala de aula. Num momento um deles pediu para sair, mas antes não havia nenhuma atitude de respeito aos acordos e aceitação de autoridade. A quinta atividade foi Cine-Cabeça da UFES – esta atividade aconteceu durante todo tempo. Depois da sensibilização tiveram outros encontros. Notei a dificuldade de falar da história de vida e trazer à tona processos perturbadores. O passaporte de confiança com o grupo foi eu ter deixado a câmera e o celular nas mãos deles. Percebi como sentiram-se surpresos e responsáveis por aquilo. Percebi como existia uma barreira, através da qual os profissionais eram expectadores. Por que? Acho que principalmente por causa da situação tensa na sala de aula, da batida de frente. Há um cotidiano de enfrentamento. O professor sabe que o aluno é vítima, mas há uma grande dificuldade de uma leitura psicológica”. (Marilene Bento de Araújo).

159

As atividades resultaram em um grupo de doze pessoas para fazer um

documentário. De qualquer forma, a percepção de que o uso de drogas diz respeito

à vida, e à vida de todos no espaço escolar indica que o Projeto Protagonismo

Estudantil pode lançar-se (ou não) do espaço da vitimização para o da relação

efetiva entre as experiências cotidianas.

Mas, a experiência piloto não é entendida pelos professores como suficiente para o

tratamento com o assunto. As discussões do Fórum de Atenção ao Uso de Álcool e

Drogas do Município de Vitória não chegam de forma “viva” ao espaço escolar e,

portanto, não tocam os professores, alunos e demais pessoas do cotidiano como um

movimento de resistência e de alternativas às políticas de gestão do corpo e da vida.

4.1.1 – O cotidiano entre a informação e gestão do corpo e a lógica de paixão da experiência: políticas de formação e educação

O cotidiano não é um espaço habitado por um sistema formal de categorias,

cuja operação torna-se apta a explicá-lo (FERRAÇO, 2007). As categorias estão

dinamizadas intrinsecamente neste espaço e só dele se extraem como passagens

de sentido. Falar sobre o cotidiano é saber que ele “(...) o próprio movimento de

tessitura e partilha dessas redes. As redes não estão no cotidiano. Elas são o

cotidiano” (FERRAÇO, 2007, p. 78).

O autor fala de rede de saberesfazeres (ALVES, 2001) que são constituídas pelas

vivências dos seres que povoam o cotidiano, de onde a distinção entre sujeito objeto

é impossível, resta, então o espaço do cotidiano onde tudo acontece ao mesmo

tempo(FERRAÇO, 2007).

Este “acontecer ao mesmo tempo” tem trazido dificuldades às pesquisas que

pensam a educação como ciência aplicada. Os acontecimentos não são

apreensíveis e passíveis de compartimentalização, o que tem levado a metodologia

de formação e de composição dos currículos a muitas dificuldades.

Ao chegar na escola os espaços de planejamento, de aula, de revisão, de conteúdo

não se distinguem com muita facilidade. Cada vez mais encontro professores

160

atônitos diante do cotidiano buscando formas para substituir suas certezas por

outras (LINHARES e GARCIA, 2001), visto que o mundo das certezas estremece ao

cotidiano. Mas, ao mesmo tempo um microfascismo qualquer se ergue para

abrandar os ânimos:

“ Sei lá, acho que temos que cantar o hino nacional, hastear bandeira, fazer alguma coisa para levantar a moral diante desta perda de valores. Não sabemos o que fazer” (diretor, 2008, não permitiu sua identificação, di z ter medo do tráfico).

A fala do diretor é um recuo, mas é também uma acusação de impotência geral, de

contingência diante da abundância do cotidiano. Se as propostas e ações vindas do

fórum ou dos projetos não mobilizam os fluxos nas escolas certamente é porque não

se constituem experiências ou guardam o seu caráter contingente de experiência

local.46

Mas, a experiência não é informação. “A experiência é o que nos passa, o que nos

acontece e o que nos toca” (LARROSA, 2002, p. 21). Este autor considera que o

que acontece e o que passa não é experiência, antes pelo contrário, as coisas

passam, mas as experiências são raras.

Quando o que se passa e acontece não te passa e não te acontece fala-se de um

cotidiano super habitado por informações, mas desprovido de experiências:

“ A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, e uma anti-experiência(...) a informação não faz outra coisa senão cancelar nossas possibilidades de experiência” (BONDIA LAROSSA, 2002, p. 21) .

O autor diz da impossibilidade da experiência diante do saber ordinário sobre as

coisas. O que acontece é que os sensos e contra-sensos e um caráter absoluto dos

signos se superpõe às formações gramaticais livres e eivadas de sentido.

Quando as políticas sobre drogas se contentam com a prevenção a partir da

informação podem dotar o ser de interdições experimentais, o que pode até ser

46 Digo isto porque o fato de que os projetos não sejam conhecidos nas escolas por onde passei não significa que esses não mobilizaram o cotidiano das escolas onde foram desenvolvidos.

161

considerado satisfatório por alguns, mas a informação é incapaz de capturar o

desejo e transformá-lo em outra coisa senão aquilo que ele deseja. A informação

não orienta o desejo, no máximo pode interditá-lo.

O autor diz ainda da opinião e sua aliança com a informação que sacralizam-se e

ocupam o lugar do acontecer. Fala de uma imposição de se ter opinião sobre tudo e

da rapidez com que isso deve se suceder. Para ele, isso deixa à experiência uma

contundente falta de tempo. A velocidade é parceira de um consumo rápido de

informações e opiniões que se caricaturam na vida dos seres modernos.

Diante da experiência, a informação e a opinião são rizíveis. As políticas que

quiserem superar a experiência do uso certamente perderão rumo. Ele diz:

“ Eu não sei quem disse que usar droga não é bom. Ninguém acredita nisso...besteira!” (jovem, 19 anos, saiu da EMEF Vercenilio da Silva Pascoal, 2007).

Tanto a informação/opinião como estratégias educacionais, como a constante

atualização e o abarrotamento dos conteúdos de um currículo geram um sujeito

voltado ao mercado, que tem o tempo como mercadoria e que está pouco voltado à

experiência de si. Ou seja, esse conteúdo informativo que, por muitas vezes,

abarrota os currículos está impregnado de uma extensividade de atos comunicativos

voltados à lógica capitalística: voltados ao governo do capital sobre os corpos. Como

pode a comunicação/informação construída por uma estrutura gramatical desse tipo

gerar uma experiência de sentido?

A priori não pode, diz Deleuze (1992b). Ele contesta dizendo que as falas estão

abarrotadas pela colonização do dinheiro:

“É preciso um desvio na fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunica. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle” (DELEUZE,1992b, p. 217).

LARROSA (2002) reforça dizendo que a experiência requer outra lógica – tempo,

demora, suspensão do juízo e da opinião, dentre outros. O sujeito da experiência é

162

“um território de passagem, algo como uma superfície sensível(...) se define por sua

disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2002, p. 24).

O que experimenta é sempre pálido, esquálido, contingente, insuficiente. Não se

põe, se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas o que se ex-põe ao risco e

vulnerabilidade (LARROSA, 2002). Não está sob a virilidade e certeza da razão. “A

experiência é uma passagem da existência (...)” (LARROSA, 2002, p. 25). Assim,

não existe, para o autor, uma lógica da ação e das condições quando se trata da

experiência, mas uma lógica da paixão; o sujeito da experiência é sempre passional.

Dito isso, como incidir no cotidiano se a experiência não se transfere, não se

provoca, não se informa? Como poderíamos falar de uma outra experiência com o

desejo que não o mortifique? Como pensar políticas que incitem a paixão? Dizemos

isso porque somente estas poderiam fazer frente àquelas que premeditam a gestão

das demandas em favor da produtividade do sistema. Volto, assim, ao cotidiano que

por sua abundância é de onde posso pensar a experiência.

Na escola, a abundância de experiências traz sempre novas perguntas que

requisitam uma operação de abertura, de expansão e não de finalização. Parece-me

que o que se pergunta é como a educação formal poderia positivar as experiências

cotidianas, inclusive, aquelas de dor ou alegria vividas pelos usuários de drogas.

As perguntas lançadas ao cotidiano também são, de certo modo, anestesias para as

inquietações. As biografias feita de retalhos de narrações respondem apontamentos,

mas, ao mesmo tempo geram infinitamente outros e outros. A pesquisa funciona,

quase sempre, como um jogo de máscaras para a afirmação do eu.

Larrosa (2006) me diz que a procura e afirmação do ‘eu’ é sempre uma reivindicação

de sua soberania e, ao mesmo tempo, uma luta interminável contra o seu

desmoronamento. O lugar do desconhecido é soturno, um vazio nauseante de

promessas, genitor do paradoxo da linguagem. Esta nasce do confronto com um

“mundo branco”, onde vale o mistério inaudito do som de todas as cores.

Pausa para um entrevero: um encontro delirante de um “defunto-autor” com a

maldição de Pandora/Natureza. Carreiro remonta os segundos de delírio de Brás

Cubas, o refinado defunto de Machado de Assis (1997), centrado na supremacia do

163

logos, quando este abandona as “razões da razão”- diante do último vestígio

racional que é a presença da moça Virgília em sua vida-morte, momento que lhe

antecede o delírio - e deixa-se montar um hipopótamo. O animal excêntrico o conduz

ao frio, a uma imensa planície de neve, que é, para Brás Cubas, um outro estado de

consciência: um local branco, ausente e fértil, mistura de todas as cores sem

inteligibilidade (CARREIRO, 2007). Ali, o agora anti-herói, encontra o olhar áspero

de Natureza/Pandora, mãe e inimiga, como ela mesma o diz. A figura o acolhe e o

rejeita e, ao pegá-la pelos cabelos, Brás Cubas tem um surto de razão que o impede

de sentir a música inaudita da vida. Paradoxalmente, o impele a tentar conhecê-la, o

que não consegue. Nega-a, portanto, e em sua fragilidade, ele é incapaz de uma

solução gnoseológica, mas também de um sentido vital. O mundo fundiu-se para ele

numa inconstância “branca”, em que tudo e nada é o grau zero da história: nada se

pode dizer porque ainda não há palavras.

Carreiro, neste ardor nietzschiano, situa Brás Cubas, no “rincão do universo

cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares”, ali onde “havia

uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento”

(NIETZSCHE, 1983, apud CARREIRO, 2007, p. 5). É lá que o conhecimento desvela

seu caráter contra-instintivo, contingente, afeiçoado à luta, por fim, paradoxal.

O que parece ser o momento derradeiro e abissal é um acontecimento cotidiano – o

encontro com o vazio. Larrosa (2006) fala da obra “Confissões”, de Rousseau, onde

para ele, o autor mostra-se inquieto pelo acidente cotidiano, ordinário e cria uma

forma de ajustar sua inquietude, inventando a autoconsciência que se referencia no

tempo vigente. Nem por isso o acidente ordinário ficou esquecido para sempre.

Larrosa (2006) narra o incidente de Jean Jacques, o menino Rousseau, no bosque

de Vincennes, onde ele teria sido castigado por ter, supostamente, “quebrado os

pentes” de uma senhorita chamada Lambercier, mesmo depois de ter,

reiteradamente, afirmado não ter sido ele. Este acontecido mostrara à criança as

infidelidades do tempo com o ocorrido e a arte de “enganar”.

A descontinuidade entre Jean Jacques e Rousseau é exatamente esse

acontecimento. Sua busca por autoconsciência, por afirmar um ‘eu’ extra-

contingente, verdadeiro e, de uma só vez, invenção moral para abrandar a

164

inquietude, vem do abandono da criança. Ele se livra da incomodação da criança e

se torna maior de idade:

“o motivo pelo qual as pessoas de maior idade são de maioridade é porque esqueceram que foram crianças, porque sepultaram em algum lugar remoto, de sua consciência, a violência que as fez maior de idade. E porque se esqueceram, inclusive, do próprio esquecimento, desse gesto que lhes fez enterrar o que são” (LARROSA, 2006, p.32).

O esquecimento da verdade contingente, que ora se mascara, ora toma consciência

de si, mostrando uma mentira da aparência, ora faz essa e outras operações,

apenas fortalece a fragilidade de Jean Jacques no bosque de Vincennes. Criança

carente da intrepidez célebre de Rousseau que para si tomou a máscara de filósofo,

proclamando, ironicamente, a eternidade da pergunta. A crença no “eu idêntico a si

mesmo” leva a aventura de Rousseau até a imprevisibilidade, “à consciência de que

o eu não é senão uma contínua criação, um perpétuo devenir: uma permanente

metamorfose” (LARROSA, 2006, p. 39).

É a esta intensidade da pergunta que quero valorizar. Se a resposta, como diz

Larrosa (2002, 2006), pode matar a intensidade da pergunta, ele mesmo afirma que

a experiência educativa deve expandir a pergunta. È como possibilitar vários tiros de

estilingue sem alvos, apenas pela delícia de jogar pedrinhas ao ar – isto que,

despretensiosamente, motiva os olhos rutilantes do espírito-criança à criança de

espírito.

Estava eu no pátio de uma escola, quando uma funcionária me disse que talvez uma

“carrilha” de perguntas ajudasse as “crianças”. Uma carrilha de perguntas são

perguntas que não se cansam de perguntar e cujas respostas são sempre

perguntas. Ela, que também pediu que eu não “anotasse no papel a escola que ela

trabalhava, diz:

“É importante ter alguém que nos ajude a perguntar a eles por que isso acontece; por que usam droga? Quem sabe uma pergunta gere outra e eles percam a vontade de usar drogas, sei lá”(funcionária da secretaria de uma EMEF).

Larrosa (2002,2006) propõe uma pedagogia que dessacralize o conteúdo deste

mesmo saber e, mais, que o profane. Diante dos passos rígidos sugere danças,

165

piruetas e mascaradas. A proposta traz uma série de estratégias sem combinações

que vivifique a criança de espírito, desprovida da perpetuação das regras do jogo,

das determinações da cultura, meio “selvagem”, “aberta”, livre dos imperativos da

vida e da linguagem, como retrata o autor a partir de Handke.

A educação com sua audácia formativa desvela a necessidade de aventurar-se

numa experiência atual, que mantém com o passado uma relação inovadora.

Arrisco-me, no lastro de Larrosa (2002,2006), a ousadias de olhares sobre a

educação/formação.

Andei por lugares barulhentos. Não são os ruídos convencionais das campainhas,

do intervalo das aulas e do burburinho da sala de aula que impedem um certo

mistério silencioso. Por isto, como Larrosa (2002, 2006), falo de um silêncio inerente

que sugere, para ele, a escrita de Handke47. Assim, em primeiro lugar, a experiência

formativa pode aventurar-se a criar um silêncio. O autor fala de um silêncio que não

é fruto da intimidação de um poder que se coloca hierarquicamente superior na sala

de aula ou em qualquer espaço formativo (formal). Não vem de procedimentos que

fazem calar por suas formas arcaicas de violência concreta ou por sua arrogância de

pretensão à verdade.

Na escola, todos pensam que devem falar, devem fazer falar, devem confessar.

Dizem que falar de drogas é uma forma de esclarecer e evitar o ingresso dos jovens

no “mundo das drogas”. Ela diz:

“Quem sabe se eles soubessem o mal que faz, se os pais ajudassem, se tivesse palestras. A escola tem que nos ajudar a corrigir, a dar o castigo”. (mãe de aluno da EMEF Juscelino Kubistchek de Olive ira, 2007).

O mecanismo pastoral da confissão ainda tem lugar na escola. O cotidiano escolar

está povoado por silêncios de intimidação e ruídos incessantes de informação,

opinião e conteúdos. A angústia do professor é, muitas vezes, uma migração entre a

necessidade de dizer sobre os conteúdos e esclarecer sobre os perigos e a certeza

47 Fala de Peter Handke, onde o autor busca uma idéia de formação, fazendo um percurso entre suas obras Historia del lapiz, La repeticion, Lento regresso, Pero yo vivo solamente em los interstícios e Carta a um breve adios.

166

de que, mais cedo ou mais tarde, será necessário rever radicalmente as

metodologias.

“Sinceramente, não sei o que funciona. Há necessidade de rever as metodologias, mas parece que nada funciona, nada ajuda. É muito tenso o ambiente na escola noturna. Não sei mesmo o que pode adiantar. Às vezes, penso que devíamos voltar com uma pedagogia mais severa. Mas, quem disse que adianta? O garoto levanta a mão pra você quebra sua cara” (professor da EMEF Juscelino Kubistchek de Oliveira , 2007)

A ânsia de definir o caráter das crianças fez de boa parte da educação até o século

XIX pelo menos, no Brasil, um arsenal de meios coercitivos, inclusive de uso da

violência. O Conto de Escola (ASSIS, 1997), de 1884, de Machado de Assis, mostra

um ambiente de medo, castigo, delação e mentira cravado na escola. O menino Pilar

vai à escola por medo do pai. Na escola é impelido, a troco de uma moeda de prata,

a explicar algo a Raimundo. Curvelo, outro colega, os delata, e o professor, por sua

vez, pai de Raimundo, os castiga com muitas batidas de palmatória na mão. O

desejo do pai de que o filho vá a escola, o ambiente sem sentido para Pilar, a

ambição pela moeda, autoridade do professor em punir, criam o cenário de silêncio e

violência. Esse cenário era comum, instruído e autorizado pelo Estado.

Outra forma de calar que não sugere a escrita de Handke é a que impregna o

discurso pedagógico; a pretensão à verdade. O ser cala-se diante de uma

construção resignada, incorporada pelo “aprendiz” que recebe, re-memoriza e

corrige seu percurso com a chama da verdade em suas mãos. Esse silêncio está

nas instituições, assegurando-lhes a forma vigente.

Contudo, não é também de um silêncio extasiado pela confusão e incapacidade de

palavras que anuncia “essa proposta de calar”. Não se trata, assim, de uma posição

inerte, emudecida diante do saber, como se dele se fosse desprovido. É um saber

que não contém e nem está contido, mas que se fabrica no silêncio.

Essa sugestão de silenciar-se de si e do mundo vem de Nietzsche, segundo Larrosa

(2006): não intervir constantemente sua pessoa e sua cultura. Vejamos do que se

trata este desprovimento de tudo e todos. Por um lado, é abandonar o ego, esta

instituição social chamada de eu e, separar-se das rotinas de linguagem, das

167

respostas repetitivas, das estruturas e formalidades “cuja função principal é produzir

e reproduzir essa outra instituição social agressiva e arrogante chamada mundo

verdadeiro” (LARROSA, 2006, p. 48).

Falei um pouco desse silêncio que aguarda novas composições, convoquei

Nietzsche e levei o livro debaixo do braço para a escola. A professora me disse que

uma aluna de mestrado estivera lá com um livro parecido. Ela disse:

“Esse autor tá na moda,né? Já teve gente aqui com ele.O que ele fala sobre a educação? Você está aí falando de silêncio para ouvir os meninos. Você acha que temos tempo para silêncio e reflexão? Outro dia tentei fazer um tipo de meditação. Foi um desastre, ninguém quer ficar só” (professora da EMEF Suzete Coendet, 2007)

A vida na escola convoca mais que nossas divagações. Não funciona se não for

filosofia pragmática, se não tiver um romance com o cotidiano, se não fizer vibrar, se

não passar pelo corpo. A formação deve afetar, deve remexer, deve desenclausurar.

O silêncio sugerido é desprovido. É um espaço fértil de sementes imanentes, sem

avidez por fecundação, mas que podem, eventualmente, ser fecundadas. Não há

antecipação de resultado nessa operação de sentido por que os pontos de

sensibilidade que transbordam dos “heróis” de Handke aguardam a inocência da

criança. A viagem formativa é, desse modo, uma experiência estética. Pensemos um

pouco nisso.

O mundo é, supostamente, desprovido de teleologias. A princípio, apresenta-se em

sua instabilidade e desarticulação - “atravessado por matérias instáveis não-

formadas, fluxos em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades

nômades, partículas loucas ou transitórias” (DELEUZE, 2005, p. 53). Há muito mais

acaso do que acordos gnoseológicos. Assim, um jogo marcado por um roteiro que

se imbui de verdade inerente é sempre um embuste impeditivo do silêncio, do som

da música inaudita do mundo. Por isso, a experiência estético-formativa que produza

potência faz-se no silêncio do mundo, no faro das sensibilidades, no pulsar do

desejo errante e errático como experiência de desejo. Encontrar a plasticidade para

a experiência é o oposto de enrijecer estruturas e erguer representações.

168

A cristalização de rotinas, procedimentos e verdades que perfazem o discurso

pedagógico podem exercer um efeito anestésico sobre a experiência estética. Os

pontos de sensibilidade que deslocam educadores-educandos, desfazendo o

binômio e formando outros planos de consistência – outros encontros, carecem de

deixar fluir a vibratilidade dos corpos. O silêncio é esse não-espaço, esse deixar vir

onde os corpos deixam-se afetar. Ele diz:

“Olha, ninguém quer saber se vivo bem ou mal, só querem é dizer que é errado usar drogas. Se já sabem de tudo porque precisam da gente pra dizer como lidar com o tráfico e com a droga? (aluno da EMEF Juscelino Kubistchek de Oliveira, 2007).

Na medida em que os movimentos, encontros e desencontros, palavras, ruídos,

sintomas, dores, alegrias, conhecimentos e tudo mais circulam, formam relações

afetivas longitudinais - “corpos em suas relações cinéticas de movimento e repouso,

de velocidade e lentidão, suas paradas e precipitações” (ROLNIK, 2006, p. 39), que

são expressas em planos de consistência (DELEUZE, 1995). Mas há outra

dimensão que é latitudinal em que é percebida a dinâmica das ondas e vibrações

dos afetos, o estado intensivo da potência de afetar e ser afetado (ROLNIK, 2006). A

intensidade contínua da latitude dos corpos são regiões - os platôs. Se, a

experiência formativa é estética, ela anseia um lugar no silêncio, uma espécie de

plástica – jogo de intensividade e intensidade – do encontro com o audível e legível.

É, assim, sempre um “forjar” de máscaras que se institui conforme o fluir do desejo.

Mas, não há obscuridades no desejo? Não há algo escondido na operação do

desejo que cria sua máscara?

No silêncio, a palavra-experiência-máscara - procura lugar, sempre provisório, que,

quando interceptada pela arrogância da verdade constituída, pode fixar um desejo,

uma máscara de tipo simulacro,e dar-lhe forma estética que, ao mesmo tempo,

acalme e incomode. Pode também livrar-se da captura e gerar sua própria máscara-

plástica.

É a incapacidade de ouvir o silêncio e/ou a arrogância da maestria em violá-lo que

transforma o desejo em barulho. Acontece que é difícil e enérgica demais a

constituição de platôs. Não é brincadeira deixar que os desejos vitalizem a vida,

169

mais do que a queiram conhecê-la. É aterrador um desejo que não quer saber, mas

quer sentir vorazmente e..zapt...cria um movimento de fuga. Ele não quer reagir a

estímulos (aprender sob marcações) e negativar-se: quer agir, produzir, ativar-se,

desejar-se, em outras palavras, formar-se e desformar-se. Mais fácil culpá-lo pelo

que ele é, encontrar sua constituição numa falta perene, justificá-lo pela sua

inconsciência. Esse desejo é perigoso porque recusa uma previsão de formas e

conceitos. Esse desejo quer e, por isto, o silêncio confunde-se com a confusão, com

o caos que torna pejorativa qualquer organização. Contudo, quando um território

impostor se faz no silêncio, e isto incomoda, opera por um tempo, mas não lhe serve

mais, ou seja, forma um plano de consistência que se desmancha, anula a

intensidade: é o desejo em funcionamento que o destrói e fabrica outros planos,

rasgando a máscara sufocante. Há, enfim, um jogo que não reserva lugar

representativo e nem estrutural ao enlace-desenlace do movimento. O que é

inconsciente e ilimitado se derrama e se fabrica produtivamente o tempo todo, nesse

jogo que não é nem só energia, nem estrutura e nem representação (ROLNIK,

2006).

O conhecimento histórico, quando opera por meio do ressentimento, que parece

conter uma verdade inabalável, creditada pelo tempo, supõe uma essência da

verdade, uma “verdade verdadeira”, que não se defronta com a política da verdade.

Esta é um ego histórico, se posso assim dizer, “um buraco negro, efeito do corpo

vibrátil amortecido de uma subjetividade que ficou reduzida ao ego” (ROLNIK, 2006,

p. 44). Isso acontece em nível infra individual e social. Trata-se de um

aprisionamento do desejo pelas estruturas da invenção científica: da internalização

de um Édipo social, que se institui numa relação saber-poder como verdade do

inconsciente.

A vida é barro puro, as formas se fazem e dão vitalidade ao barro na mesma medida

que o liberta da disformidade o aprisiona na forma. “ A produção do desejo,

produção da realidade, é, ao mesmo tempo (e indissociavelmente) material,

semiótica e social” (ROLNIK, 2006, p. 46). Ou seja, a vida é sua própria

representação. É pela vida que a experiência estético-formativa anseia. Ela é um

itinerário aberto, esculpida em barro mole, flexível e silente.

170

Os usuários de drogas vão tomando a forma que se dão a si. Mas é preciso saber

das tecnologias que trazem consigo diluídas em vida: a arrogância dos diagnósticos

de saúde, a sanção da escola e da moral, a culpa da igreja e da família. E também

suas artimanhas: as mentiras, os movimentos auto piedosos, a vitimização.

As práticas na escola estão eivadas pelas certezas e também pelas coerções e

punições do processo educativo quando aquilo que é anormal entra em cena. O

silêncio é preenchido com aquietações conceituais e justificações platônicos cristãs.

“São doentes pela ingestão incontrolável de substâncias x ou y, que alteram o

comportamento z e agem sobre o organismo, etc, etc”... “são vítimas de um sistema

purulento de concentração de riquezas que delega aos jovens nenhuma esperança

de futuro e de emancipação, etc, etc” .

Em que pese toda realidade do plano visível, há de se questionar profundamente

sua determinidade sobre o plano invisível, mesmo porque não há divisão possível,

no campo real, entre os dois, tornando problemática sua operação metodológica.

Ainda que se possa falar de diferenciadas políticas para diferenciados usuários de

drogas, de prescrições médicas para jovens mais ricos e prescrições legais para

jovens mais pobres, essas só me interessam na medida em que irrigam o

ressentimento ou a construção da potência, ou seja, como fatores reais de produção

de reação e ação.

Em segundo lugar, a experiência formativa/educativa prescinde da “força do

esforço”. Larrosa (2006) usa as poesias de Rilke para falar sobre uma possibilidade

de poetizar a experiência formativa através do alcance de uma outra objetividade

que não evoca para si a beatitude do poeta, que deixa ao leitor-aprendiz o diálogo, a

criação entre o dito e não-dito. Para Rilke, a efusão de sentimentos na poesia pode

sufocar o leitor e não “deixar aparecer o existente em seu ser em sua plenitude e

distanciamento” (LARROSA, 2006, p.113).

Esforçar-se é carregar sobre si o peso de um mundo administrado, esquadrinhado,

cheio de classificações, abarrotado de sujeições. O leitor-aprendiz de uma

experiência formativa/educativa de esforço opera na modulação da vontade de

dominar, sem receptividade a uma outra lógica desconhecida dessa vontade

enfraquecida pelo desejo de vencer sempre. Exausto para experimentar, sujeito à

171

conceituação prévia, esse esforço traz a afirmação do mundo administrado e a

impossibilidade momentânea de novas criações. Este é o aprendiz-camelo de

Nietzsche, culpado de si mesmo, espírito atlético, que carrega sobre si o mundo.

Esse tipo de experiência leva imediatamente à crença na correção como modo de

operação da educação. Invalida como erro a vida incomum e se põe a inseri-la na

lógica do esforço que a fará meritória de saber aquilo pelo que lutou.

As chamadas salas de recuperação de ex-usuários de álcool e outras drogas ecoam

insistentemente o abandono do ressentimento e esforço e a prática da aceitação das

condições para transformá-las. A luta justifica, para eles, opositores e

ressentimentos. A recuperação fala de criação de outros caminhos, sem enfrentar ou

negar os anteriores, mas da possibilidade da existência de outros universos que não

aqueles anteriores, que sejam objetos de construção de desejos. Há o esforço

inicial, mas apenas como inabilidade momentânea de lidar com a crise, que pode ser

encarada numa outra modulação, com positividade, como parte do processo.

A escola traz também as compensações meritórias, a avaliação prescritiva baseada

em padronizações, e, muitas vezes quando foge destas práticas, constrói outras de

novos procedimentos com a mesma lógica, repetindo o sentido.

Em terceiro lugar, a experiência de educação/formação sugere instabilidade e é bom

que o sugira. Ora, o texto pedagógico, objeto da educação/formação está, quase

sempre, um tanto mais fora do controle do que se pensa. Se é fácil reconhecer o

caráter pedagogizante (típico da operação socrático-platônica) das instituições,

portanto, seu sentido de convicção na justeza do conhecimento e no seu caráter

corretivo, também pode-se ver o que lhe escapa ao controle.

Quando Nietzsche diz que o texto platônico tem características híbridas e

excêntricas, já que mistura todos os estilos e formas - narrativa, lírica, drama,

filosofia e literatura - diz também que ele “infringe a lei da forma lingüística unitária e

que constitui um tipo de arte em que cada um dos elementos permanece como que

descentrado pelas suas relações com os demais” (LARROSA, 2006, p. 120). Assim,

ele está aberto às suas diferenças, que se interferem e desestabilizam o texto. A

172

cena de representação própria da pedagogia traz consigo toda sua sujeição aos

seus modos de funcionamento, mas seu discurso é surpreendido pela vida.

A avidez por moralidade e verdade do texto pedagógico o submete à ironia de

qualquer avidez, desmascarando o seu caráter de verdadeiro e instrutivo,

evidenciando-lhe a carência. Impregnado da fraqueza da vontade de dominação, o

logos pedagógico platônico é atropelado pelo acaso da vitalidade que o

desestabiliza, o faz tremer, e lhe possibilita, sob outra forma, não a um concerto,

mas ao desarranjo da experiência de potência.

De outro modo, Nietzsche está dizendo, no texto de Larrosa (2006), que nem Platão

escapa de si mesmo. Penso que, ao tencionar a produção platônica em pontos

múltiplos, veste-lhe a máscara do demônio (a mesma de Sócrates), que, por sua

vez, é ladrão de almas, atividade muito misteriosa para encerrar-se em si mesma. A

obra do demônio é seduzir, par excellence, e inebriar, atavicamente, os corações. O

logos pedagógico não seria, assim, algo tão facilmente criticável; como obra do

demônio, traz consigo toda perversidade de ter estado no céu e, por expulsão,

conhecer os caminhos da queda como ninguém, podendo sobreviver a ela, através

das almas que conquista. O percurso da queda não é retilíneo e lhe custou a

invenção magnífica do bem e do mal para dar-lhe justeza. Por isso, para livrar-se do

demônio e, por consequência, de deus, é preciso criar a instabilidade para além do

bem e do mal e, reiteradamente, de pontos variados, mostrar o caráter inventivo

deste bendito binômio. O bufão alemão rasga com ferocidade o discurso

pedagogizante mostrando a dinâmica entre vida e pedagogia da qual, como

entendo, nem mesmo Platão escapou.

Como poderia o discurso pedagógico salvar-se da vida, mesmo que a tenha

seccionado e administrado? Mesmo onde tudo está “certinho”, a vida não se

estanca. Pode até ser perigosa a revolta ferida da vida ressentida, pode até tentar

justificar-se e ancorar-se em cristalizações ou simulações de abertura, mas isso não

quer dizer que esteja tudo resolvido. As novas relações na escola surgem neste

campo instável que ora confirma/desconfirma o discurso pedagogizante. Assim, o

caráter novelístico - moralizante e corretivo - da pedagogia está sob suspeita O estilo

da novela e do texto didático que melhor expressa, para Nietzsche, o espírito teórico

173

o faz mostrando as inadequações e a abertura possível quando se trata de mistura

de estilos e formas que uma hora ou outra instabilizarão o próprio texto.

Ora, se a novela, como expressão da pedagogia, apropria-se seletivamente da

literatura, para fazê-la funcionar pedagogicamente, o autor (LARROSA, 2006)

sugere que se dê importância ao contradito: ao fato de a literatura não se submeter

ao logos pedagógico. Tudo isto não para afirmar um paralelismo entre literatura e

pedagogia, mas para entender os elementos que lhe garantem a não-subordinação.

Desse modo, se a literatura não se fecha, não se atém a significados, não busca

solidificação de uma moral, é preciso ampliar as tensões da pedagogia para garantir-

lhe justamente o que muitos vêem como seu mal: a instabilidade que deixa à vida a

possibilidade de criação.

O afastamento da escola e dos “monstrinhos” que usam drogas se dá por não haver,

de pronto, um modo pedagogizante de lidar com a instabilidade e, muito menos, com

não poder positivá-la como experiência ordinária. Eles denunciam a necessidade de

construção de territórios existenciais ainda sem codificação, em movimento veloz,

ora serializado, ora amplamente aberto às expansões de sentido, mas nunca

previsíveis.

Estando “afastada” da vida, como a escola pode criar políticas de expansão? E

como a escola pode afastar-se da vida? Ora, caricaturando-se a si mesma!

Autonomizando-se àquilo que inunda o cotidiano. Quando o educador diz que o uso

de drogas não é um problema da escola em si, acredita, primeiro, em uma escola

em si mesma pelo menos medianamente estanque em relação às questões do

mundo. Essa afirmação marca, ao mesmo tempo, uma fronteira e uma limitação do

processo educativo. Mas, é também denúncia de um “fazer política” pensado em

compartimentos estanques que rouba a continuidade (e não contiguidade) inerente à

política .

O fato é que não há como evitar a vida transbordando. Ainda que a escola não seja

a mais adequada instituição para produção e execução de políticas sobre drogas,

ela não pode evitar sua inserção em questões que a levam para fora dos limites dos

portões. E também não há como escusar-se de pensar a vida como um todo. Ou

seja, a educação não deve abandonar sua composição com a própria vida sob a

174

pena de ser petrificada em séries escolares cujo duto não irriga e nem é irrigado de

potência.

A experiência formativa/educativa pode guardar uma relação positiva com o

passado, esse é o quarto apontamento. Hei de ter cuidado ao voltar a discutir a

relação do ser humano com sua memória. É preciso dizer que essa suposta

positividade que pode ser alcançada é contingente, já que também é limitada em

sua positividade a história da memória/esquecimento em si.

Para Nietzsche, a história da memória leva o homem a voltar-se contra si. Compara

o sofrimento dos animais aquáticos quando tiveram que tornar-se terrestres, e, por

conseguinte, carregar sobre si o peso que deslizava nas águas. Para ele, a perda

dos impulsos reguladores os inflige a combinar causas e efeitos, os reduz à sua

“consciência”. Isso os levaria a fazer com que os instintos se voltem para dentro,

gerando o homem interiorizado, inventor de sua própria alma. Tudo volta-se contra si

mesmo. Esse é o animal que “corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse

animal que querem amansar(grifo do tradutor), que se fere nas barras da própria

jaula (...) tornou-se o inventor da má consciência” (NIETZSCHE,1998, p. 73). A

priori, toda consciência é má consciência. Ou seja, a primeira separação do ser do

seu passado é eivada de violência, tornando recorrente a experiência negativa da

memória.

A memória foi construída à base do fogo da dor. Aquilo que causa a dor, que é

cultivado como lembrança, o passado revolto como carne em putrefação que é

convocado para os rituais de “produção do homem sério, responsável”. Nietzsche

destaca a história da mnemotécnica e sua parceria com a dor para fabricação da

memória (NIETZSCHE, 1998). Esse animal inventado por si mesmo nasce da luta

consigo mesmo, por isto o esquecimento é uma alegria, uma faculdade necessária,

sem a qual a vida seria ressentida em sua totalidade.

A experiência educativa/formativa deve ter cautela em sua relação com o passado,

ou com a própria memória de si. Não por consequências psicológicas de caráter

psicanalítico, mas pela terrível ameaça de cultivar com toda sobriedade a má

consciência sobre o mundo, que o afasta da perspectiva da alegria, supondo que

175

este seja um estado bom para o ser. Assim, a relação com o passado é de caráter

contingente e deve-se ter cuidado com um excesso de história.

Não me cabe aqui discutir uma teoria da história, apontar que a história só me

“serve” e funciona na pragmática a que me proponho quando está a serviço da vida.

De novo, vejo em Nietzsche uma pista.

“Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que é felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que torne os outros felizes (...) Ou, para explicar-me ainda mais facilmente sobre o meu tema: há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e, por fim, sucumbe, seja ele um homem, um povo, ou uma cultura” (NIETZSCHE, 2003,p. 9)

De pés fincados no presente, o filósofo fala de uma história que despotencializa

porque faz um homem, um povo ou uma cultura perder a força plástica que é

necessária para enxergar-se, para contar sobre si, sem apontar para si mesmo a

lança da culpa, do martírio e da vingança. Essa história impede o fluxo do presente,

a passagem da energia do momento, que vem da capacidade de sentir-se a-

histórico no instante. É isso que delega a intensidade, o fluxo contínuo, o ponto zero

entre morte e vida. O momento presente é o real, o possível, conecta-se, mas não

se correlaciona comparativamente.

A história a serviço da vida produz saúde, faz usar o que passou para produzir

potência, gera passado como inscrição atual de produção de movimentos atuais: é,

portanto, sempre um poder a-histórico que a movimenta.

Larrosa (2006) fala de modos como a relação com o passado é tão pestilenta que o

faz tornando-o uma experiência inofensiva, roubando-lhe a carga. Para ele, quando

o passado é visto sem nenhuma relação com o presente torna-se objeto de uma

história erudita e uma história anedótica. Negando o passado, tudo que o presente

traz lhe recai sobre os ombros como história natural, derivativa de si, sem os

arroubos do ontem. Não que lhe anseie explicar o presente por meio do passado,

mas negá-lo torna-se uma espécie de explicação grosseira.

176

Também abolir a distância histórica é um modo inofensivo de fazer história. Aqui o

presente é justificado pelo passado, ele é explicado por aquilo que se foi. Para o

estudioso, esta é uma maneira cruel e sutil de centrar a história em nós mesmos, em

nossa egoísta capacidade de justificação; visto num ambiente familiar, não há

necessidade de construção de mediações. A história, desse modo, é sempre

continuidade, centrada retilineamente em si, portanto, sempre história dos

vencedores (LARROSA, 2006).

O autor fala de uma relação com o passado em que este se converte em presente.

Ou seja, seu sentido derrama-se na superfície do hoje como seu motor auxiliar, é,

portanto, vital, real, maquínico. Ainda assim, passado é diferente de presente,

produz efeitos de desfamiliarização, de desterritorialização, é preciso deslocar-se e

perceber-lhe a “contínua” descontinuidade, em outras palavras, é necessário

entender seu caráter perspectivo. Diz Larrosa (2006, p. 136):

“A crítica ao presente só pode ser feita a partir do presente, numa história que se sabe apaixonadamente perspectivista, mas tomando o passado em sua diferença e destacando nele, os elementos esquecidos e reprimidos”.

Em último e quinto lugar a experiência formativa/educativa deixa-se rir de si mesma.

Implica em inferir na regularidade, moralidade e austeridade da experiência

formativa, abrindo-lhe os campos para a criação e sorriso. Sugere tornar aquilo que

há de sisudo e patético em uma experiência inovadora.

Viajando em Cortazar e seus cronópios – ficções que são sujeitos sem rotina e

organização – Larrosa (2006) sugere colocar sobre si um chapéu de guizos, o que

faria tremer a toga de professor que ele diz interiorizada. Imediatamente o lúdico

irrompe a magistral função e deixa aos risos o jeito professoral.

Ao dente siso da educação pode-se oferecer algo mais do que reverência quando se

quer fazer da experiência uma aventura descentrada de si mesma, sem o ensejo ou,

pelo menos, sem a concretização da autoconsciência. Propõe-lhe, descaradamente,

o riso. Não este que seja uma defesa fútil contra o sério (o defensivo); nem o que

seja paralelo ao sério - um riso grave, ressentido, desafiador (o lutador); nem

177

tampouco o riso fácil das ociosidades (o descansado); mas o riso que declare o

pensamento como algo sem virtude prévia, sem fixação, sem vitória prevista.

O riso que Cortazar e Larrosa apontam é aquele que declara, ao som dos guizos, o

tom patético do que se firma como verdadeiro. É uma inserção da metáfora na

metáfora que é a vida. Um riso que abuse da moralidade da pedagogia e erga o jeito

aventureiro de saber, que aponte a relação de saber-poder que contém toda ânsia

de codificar, que derrube as esfinges e abra o segredo do conhecimento à sua

própria fragilidade.

Lanço um olhar matreiro, meio malandro, sobre a experiência educativa/formativa,

por meio dos olhares dos usuários de drogas e dos olhares de outros sobre esses e

sobre si mesmos. Malandro, por que se esquiva do serviço de interpretá-los e de um

jeito bamba passeia no cotidiano deixando vir o que já existe. Malandro, porque

resiste às moralizações como força de estilo, se aventura na ousadia de uma escuta

sem grandes pretensões e, ao mesmo tempo, com uma máscara audaciosa de

sentir, poeticamente, que há um campo complexo de suposições e verdades na vida

cotidiana.

É Nietzsche quem intercepta meu olhar, abrindo-lhe, de novo, a todas as perguntas

do mundo:

“Portanto, que é a verdade? Uma multidão em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos; numa palavra, um conjunto de relações humanas que, elevadas, transpostas e adornadas poética e retoricamente, depois de longo uso, o povo considera firmes, canônicas e vinculadoras: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas já utilizadas que perderam sua força sensível, moedas que perderam sua imagem e que agora entram em consideração como metal, não como tais moedas” (NIETZSCHE 2001:69).

178

4.2 -SEGUNDO FRAGMENTO DE PODER E VERDADE: POLÍTICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DO ALCOOLISTA E USUÁRIO DE OUTRAS DROGAS

O mesmo documento48 delineia a Política Nacional para Usuários de Drogas e

Álcool estabelecendo diretrizes e parâmetros, além de outro que diz da implantação

de políticas de gestão estatal, de caráter público, através do Programa Nacional de

Atenção Comunitária Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, assumindo,

portanto, tais temas como questões de saúde pública, a serem tratadas pelo

Sistema Único de Saúde (SUS).

A garantia da universalidade de acesso e direito à assistência e a implantação de

novos modelos, descentralizando redes assistenciais foi possível pela reafirmação

das diretrizes do SUS, por meio da Reforma Psiquiátrica, de abril de 2001. Tais

diretrizes reconhecem o atendimento àqueles que sofrem de transtornos

decorrentes do uso do álcool e outras drogas na rede pública, que devem ser

concretizadas por políticas elaboradas pelas Conferências Nacionais de Saúde

Mental49.

A implementação e ampliação das políticas propostas depende da resolução de

algumas questões do próprio sistema e da disposição para a vivência de novos

valores que priorizem a intersetorialidade como ponto fundamental. Ainda assim, os

usuários de drogas – álcool e outras são assistidos pelo Programa Nacional de

Atenção Comunitária Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, por meio dos

Centros de Atenção Psicossocial para Àlcool e Drogas (CAPS ad), dos Programa

de Agentes Comunitários de Saúde e dos Programas de Redução de Danos,

aplicados na Rede Municipal pelo Centro de Prevenção e Tratamento do

Toxicômano e Alcoolista (CPTT), e da rede Básica de Saúde. Na Grande Vitória

somente em Laranjeiras, Vila Velha e Vitória há CAPS ad. para a aplicação da

política de redução de danos instituída pelo Governo Federal.

No âmbito da pesquisa, o município de Vitória, a rede de atenção ao uso de drogas

é articulada pelo CPTT, através dos eixos prevenção, tratamento, pesquisa,

48 Decreto N° 5.912, de 27 de setembro de 2006, regul amenta o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD. 49 Historicamente, as questões relacionadas ao uso de drogas: álcool e outras são abordadas pelas áreas psiquiátricas ou médica.

179

redução de danos e reinserção social. Objetiva-se a capacitação dos profissionais

de saúde, educação e ação social na prevenção, por meio de trabalhos contínuos

nas escolas e unidades de saúde; a ênfase na qualidade de vida, por meio da

capacitação e abordagem inicial no território ao usuário de álcool e outras drogas e,

o atendimento inicial na unidade básica de saúde. Paralelamente, o CPTT

recomenda a frequência aos Grupos de Mútua Ajuda e faz tratamento ambulatorial

especializado e tratamento de maior complexidade na sede do CPTT. Envia casos

de atendimento de urgência para o Pronto Socorro Psiquiátrico ou para os hospitais,

quando necessário.

O CPTT funciona com demanda espontânea, encaminhamentos da Justiça, de

outras unidades de saúde e de outros profissionais, inclusive do Pronto Socorro

Municipal. Cerca de 55% dos atendimentos feitos são de pessoas do município de

Vitória. Fazem o atendimento em grupos para facilitar a demanda: 13 a 17 anos, 18

a 25 anos e acima de 25 anos. O atendimento individual que era realizado

anteriormente foi impossibilitado pela demanda, que gerava uma enorme lista de

espera, violando o caráter de política pública para todos.

Contudo, depois do atendimento coletivo há encaminhamentos individuais. Os

grupos dividem-se em acompanhamento de alcoolistas femininas e masculinos e

grupo para usuários de múltiplas drogas. Em março de 2006, a instituição iniciou

atendimento para menores de 13 anos, de 16 às 21 h . A média de idade fica em

torno de 11 anos.

Perguntei sobre a separação entre alcoolistas e usuários de múltiplas drogas:

“Os alcoolistas não têm os outros pacientes, usuários de outras drogas com bons olhos. Eles dizem: a gente não está aqui para tratar álcool? Por que a gente tem que ficar junto a marginais? Álcool pode as outras drogas não...Quando ele também faz uso de outras drogas fica mais fácil lidar com o outro....Mesmo sendo discriminado onde passa o alcoolista quando chega no espaço de tratamento ele começa a discriminar o outro...verbaliza o que ouviu sobre ele...frases prontas, etc. Também tenho o usuário de múltiplas drogas que, por estar num espaço de tratamento não pode chegar portando a substância e nem sob efeito...Assim, quando alcoolista chega ele argui porque o outro pode e ele não. Recebemos o indivíduo alcoolizado somente durante as primeiras abordagens para que ele não volte às ruas e faça uso da substância, se for recorrente ele não poderá fazer uso do espaço de 7 às 16 horas. Se estamos em um espaço de tratamento há acordos a se fazer- não pode estar portando, nem estar sob efeito.” (Marister N. Silva, enfermeira do CPTT).

180

O alcoolista mantém sua “diferença” em relação ao usuário de outras drogas,

mesmo sendo suas condições de “chegada” ao CPTT bem similares:

“Os alcoolistas chegam para nós subempregados, desqualificados ou desempregados, na faixa de idade amplamente produtiva, 18 a 25 anos. O absenteísmo no trabalho e na escola é muito maior entre os alcoolistas do que entre usuários de múltiplas drogas, especialmente nas segundas e sextas feiras” ( Marister N. Silva, enfermeira do CPTT).

Os usuários de outras drogas, segundo as pessoas da equipe, aceitam o tratamento

de redução de danos logo de início, ou não voltam num segundo momento. O

atendimento a crianças, especialmente, tem sido desafiante para equipe. Estive no

CPTT durante o horário em que os menores podem fazer uso das dependências:

eles têm alimentação, trabalhos com arte, atendimento psicológico, leitura, etc.

Chegam, na maioria das vezes, sob efeito da substância. Enquanto entrevistava a

enfermeira, um deles entrou porta adentro:

“O fulano não quer dar o meu lanche! (Jesus, 9 anos) O que você está fazendo aqui? Qual é nosso acordo? Não sabemos que não pode entrar sem perguntar antes? Dizia a enfermeira. Meu lanche...(Jesus)..Nosso acordo...”

Ele saiu. Eu o encontrei lá fora com outros, nas imediações da instituição na Ilha de

Santa Maria. Mesmo sabendo não ser recomendável sentei junto a eles, disse que

fazia uma pesquisa, expliquei o que era doutorado, ao que um deles falou: “Pra que

tanto estudo? Você tem que trabalhar, já tá velha pra estudar, deixa pras crianças!” .

Perguntou-me um deles se eu queria uma baforada- usava solvente – entregando-

me o pano dentro da lata. O diálogo:

“Não, quero, não, obrigada. A tia só gosta de maconha, né? Ou de pó? Eu ri e disse: Por que? Vocês usam pó? Ele (um garoto que dizia ter 10 anos) respondeu: Não, só pedra, quando dá. Eu: E quando não dá? Ele: A gente faz avião, troca por cachaça, mas eu gosto de cachaça e ri. Dá onda e tira fome. Eu: Você tem casa? Ele: Tenho, mas não vou lá todo dia. Só quando o namorado da minha mãe ta lá, ele é legal. Eu: E sua mãe? Ele: É meio chata, mas é legal? Eu : Você estuda? Ele : Eu não! Eu: Gosta de quê? Ele:

181

De carro de rolimã, bicicleta e chup-chup e namorar. Eu: Tem namorada? Ele: Tenho, mas ela só deixa colocar o dedinho. Eu: Ela mora onde? Ele: Fica na rua também, tem 12 anos. Eu: Quem te dá tinner? Ele: Tá querendo saber demais! Já fiz muito nesta tal de pesquisa. Eu : Ta legal, desculpa. Ele: Tudo bem, vou lá no CPTT comer, antes que fique zoado. (Ele dá uma baforada profunda e tenta entrar na instituição, sem a lata).”

O trabalho com essas crianças estrutura-se na redução de danos: instruções

higiênicas, argumentações sobre o uso de drogas, prevenção de doenças

sexualmente transmissíveis e uso de atividades lúdicas para incentivo a práticas

infantis. Procura-se, a priori, modular o uso para construção da escolha de

abstinência ou não.

A política de redução de danos desenvolvida no Brasil ancora-se nos seguintes

princípios:

- Retardo do consumo, redução de danos e superação do consumo;

- Desassociação do uso ao comportamento anti-social e criminosos;

- Combate aos modelos exclusão e isolamento social;

- Redução de demanda e oferta figurando a redução de danos;

- Efetividade na redução de danos voltada a DST;

- Descentralização e capilaridade de atuação.

Por meio destes princípios, inicia-se a reeducação de usuários para evitar o abuso

das drogas e do álcool, levantando as possibilidades de convívio de forma menos

danosa à saúde e à vida, deixando a eles a tomada de seus próprios limites e de

seu corpo. Propõe uma modulação no uso, até a abstinência, quando possível,

muitas vezes sugerindo a alteração modular e a passagem de uma substância a

outra. A política também estrutura-se na prevenção de expansão do adoecimento,

através do desenvolvimento de outras, por isso, propõe métodos mais seguros para

aqueles que pretendem usar drogas: como, por exemplo, o uso de seringas

descartáveis.

Para a política de redução de danos, o cidadão tem direito a consumir drogas, não

lhe reservando posturas repressivas, mas sugerindo-lhe a diminuição de efeitos

prejudiciais, priorizando a saúde dele e a da comunidade: não há como ignorar o

182

que já existe, que é o consumo de drogas. São propostas várias alternativas ao

usuário e a comunidade, que escolhe conforme seu julgamento. As abordagens aos

usuários são amigáveis e levam em conta as possibilidades de saúde.

Não se exclui a abstinência, mas também ela não é imposta. Primeiro, pretende-se

retardar o primeiro contato, com as políticas de prevenção. Depois infere sobre a

tentativa de evitar a dependência. Contudo, havendo a dependência são oferecidos

meios para o abandono ou o uso de forma menos prejudicial possível (SILVEIRA E

SILVEIRA, 2001).

Num primeiro momento a redução de danos era aplicada ao uso de drogas

injetáveis, devido ao crescimento do número de pessoas contaminadas por AIDS e

doenças como hepatite B e C. O primeiro programa de troca de seringas foi

implementado na Holanda, em 1984. A tentativa de implantação no Brasil, em 1989,

foi impedida por ação do Ministério Público de São Paulo, com base na antiga Lei nº

6,368/76, sob o pretexto de estímulo ao uso de drogas. (FONSECA, RIBEIRO,

BERTONI, BASTOS, 2006). Em 1995, foi implantado o primeiro programa brasileiro

de trocas de seringas em Salvador, Bahia.

A partir daí os profissionais que trabalhavam com a política de redução de danos se

articularam em torno de propostas comuns e criaram a Associação de redução de

Danos de São Paulo - APRENDA, e outra associação de âmbito nacional, a

Associação de Redução de Danos-ABORDA.

A aplicação de políticas de redução de danos no Brasil está estritamente ligada a

modulações de intervenção que instaurem processos de diagnósticos breves,

especialmente por meio do Programa de Saúde da Família, (FORMIGONI, 1992).

Ainda que se façam críticas às intervenções breves, elas ampliam o olhar das

equipes de saúde sobre o local e aumentam as possibilidades de intervenção

precoce em problemas relacionados ao uso de substâncias (PRUS) ou mesmo em

casos agravados, mesmo não sendo este seu objetivo primeiro. É certo que essas

intervenções surgem no fosso entre aumento da demanda e os recursos existentes,

mas, de certa forma, as terapias breves podem ser significativas para a sociedade.

Contudo, a detecção é apenas uma estratégia auxiliar que, a meu ver, têm pouca

possibilidade de incidir sobre o desejo do usuário, podendo esgotar-se em si mesma.

183

Por meio das intervenções breves os "pacientes" são motivados a buscar

determinadas ações que detenham o uso abusivo de substâncias. A incorporação de

estratégias de detecção e sensibilização sobre o uso excessivo das substâncias nos

atendimentos às famílias pode alterar positivamente a rotina de usuários, mas essa

estratégia será sempre carente de outras efetivações e afetações.

A modulação de uso quando se trata de substâncias diferentes do álcool é mais

eficiente, dependendo sempre do nível de dependência. Usa-se a substituição de

substâncias por outra de princípio ativo menos prejudicial organicamente. As outras

políticas exercidas usam metodologias e estratégias diversas para o uso abusivo de

substâncias psicoativas. Estas disseminam-se se linearidade alguma, dentre as

opções colocadas aos usuários.

As instituições reconhecem a dificuldade de modulação, especialmente quando se

trata do usuário de álcool, já que a troca de substância não é possível. No caso do

usuário de álcool em nível pesado:

“A redução de danos é trabalhada assim: colocamos o sujeito em repouso para evitar que ele faça uso da droga. No período que está aqui ele participa das terapias e dos grupos e desenvolve atividades várias. Ao desenvolver atividades o sujeito pode perceber o tanto de coisas que pode fazer sem fazer uso do álcool. Trabalhamos principalmente a questão do auto cuidado, de desenvolver pro sujeito a auto estima, os hábitos saudáveis, o olhar sobre si. Chegam aqui emagrecidos, prostrados e doentes. Com o tempo alguns conseguem se reestruturar.Tentamos deslocar o olhar sobre si. Nossa idéia é com a abordagem terapêutica conseguir um espaço de diálogo e convencimento. Aqui usamos terapias de construção do novo, pegamos papel, tinta, etc e a proposta é construir algo novo. Dependendo da situação, temos também o tratamento ambulatorial. Por exemplo à beira de delirius tremuns não há como não entrar com a medicação, senão o sujeito morre. Seguimos, então, com as outras terapias, com o processo de recuperação. A equipe multiprofissional- terapeutas, enfermeiro, assistente social - dá prosseguimento ao processo" (Marister N. Silva- enfermeira e funcionária do Centro de Preven ção ao Toxicômano).

A equipe alega já ter obtido resultados de sucesso, no caso, diminuição do uso de

bebidas.

Há aqueles, mesmo estando em âmbito de proteção de políticas públicas, que se

dizem contrários à política de redução de danos. Alegam que a política facilita a

negação do problema e contribui para a densificação da doença. Dr Oscar Rodolfo

Rihencont Cox, é médico, pesquisador das "doenças" potencializadas pelo uso de

184

álcool e, além disto, embora não seja alcoolista, é membro da estrutura mundial da

irmandade de Alcoólicos Anônimos:

" Sou contra a redução de danos. faço parte do conselho municipal Anti-Drogas do Rio de Janeiro e o Conselho é contra a política. A política de redução de danos aplicada na Europa para uso de drogas como heroína, ao dar a seringa eu faço abordagem maior para diminuir o uso da droga. Se você entrar no site Ronaldo Laranjeiras (psiquiatra que estuda dependência química, grifo meu), ele tem um trabalho sobre isso muito bem feito que mostra quanto mais tardiamente eu entrar em contato com as drogas menos terei o aparecimento da doença e quanto mais eu ofertar a droga maior é o aparecimento deste tipo de doença. Há publicações na Europa e Estados Unidos que estimulam o uso de drogas tentando amenizar o uso para exatamente não cair o consumo. então, a política de redução de danos favorece muito mais o consumo do que a recuperação mesmo. Cada caso é um caso, se eu tiver no meu atendimento um rapaz, uma moça não conseguindo parar de usar e eu proponho a abstinência, eu posso aceitar, durante um prazo, que essa pessoa venha modificar o uso para depois parar, mas eu não posso ser um facilitador. O usuário da política de redução de danos está numa realidade diferenciada. Não, eu não vejo como. A política de redução de danos só funciona para drogas ilícitas. A heroína, por exemplo, traz uma gravidade, se você usa uma vez, na segunda vez já é dependente. O Crack é um processo incompleto da cocaína, então tem ação mais agressiva que a cocaína que já é mais elaborada em laboratório. O programa de Redução de Danos para o álcool é a mesma coisa de cigarro. Haverá em todo processo terapêutico do tabagismo uma marcação de data. Eu preparo o tabagista para em determinada data parar, eu não posso diminuir o número de cigarros. Compensar a desintoxicação destes organismos com adesivos, chicletes, etc, talvez seja necessário, mas preciso de uma data. A abstinência ainda é o grande resultado"

A discussão sobre a política de redução de danos ocupa hoje grande parte do tempo

dos profissionais da saúde pública. É simples: quem quer parar de usar deve ter

direito ao tratamento e quem deseja modular o uso deve também ter direito à saúde

e proteção. Na ausência da política de saúde, os dois direitos deixam de existir.

No tratamento de pessoas para quem a droga tornou-se um problema encontramos

as modulações:

“Eu disse ao paciente; você acha que tem problema com drogas? Talvez tenha, mas o que noto é que usa, as vezes, quando está triste ou alegre. Seu problema é com a forma de lidar com as emoções e não com a droga em si. Seu uso não é intensivo” (psicóloga do CPTT, 2007). “Ele ainda não compreendeu que não tem controle sobre a droga. Usa e perde todas as coisas, fica meses na rua, mesmo com totais condições de estar em outros lugar. O uso de drogas virou a coisa principal. Ele não vive sem ela” (terapeuta do CPTT, 2007).

185

São essas modulações que reforçam a necessidade e o direito à uma política de

redução de danos, ainda de desenvolvimento precário no Brasil. Nasce na esteira

do projeto higienista, mas como a questão das drogas atingiu proporções

patológicas qualquer sociedade não se priva de discuti-la:

“ A lógica desta política é poder respeitar, respeitar o mundo de quem usa drogas, mas dizer para esse cara que neste mundo que ele está tem outros sujeitos que não usam droga . Essa é a grande coisa da redução de danos, o respeito aos sujeitos. Mesmo que seja uma coisa higienista, é preciso fazer um contorno porque tem a questão da contaminação por HIV e o cidadão tem direito de não se contaminar...por exemplo o uso compartilhado da cocaína trouxe a contaminação por hepatite C. Como vou dizer não à redução de danos” (psicóloga do CPTT, 2007).

A redução de danos exige que os profissionais abram mão da moralização do uso

de drogas e o veja como um direito.

“ é realmente difícil pensar sem intervir moralmente. Atualmente a política de redução de danos nos permite pensar em direitos, mas não foi sempre assim. A redução de danos provocou um rebuliço no CPTT, removeu todo mundo do lugar. Mas, trata-se de um direito de afirmar um desejo, é preciso ser respeitado” (psicóloga do CPTT, 2007).

Mas, embora o reconhecimento do direito ao uso seja uma abertura e o cidadão

precisa ter acesso às condições sanitárias de uso, é necessário que as tecnologias

da modulação sejam vistas como dispositivos extensivos sobre os corpos. Não se

deve perder de vista que toda biotecnologia funciona produtivamente criando ritmos.

Também é importante que se fale do direito ao tratamento de saúde por

consequência do uso intensivo. No Brasil, o número de clínicas públicas para

tratamento é muito inferior às estatísticas de usuários com problemas. No intuito de

oferecer alternativas é que muitas “casas de recuperação” pertencentes a ordens

religiosas, outras de caráter privado, fundações, entre outras, oferecem “no

mercado” possibilidades de internação. Muitas são as que só aceitam pessoas do

sexo masculino. Outras não aceitam menores. Nesta senda, alguns programas

186

articulam-se ao poder público, por meio de órgãos estatais e instituições de ensino,

seja para atendimento e internações, qualificação de profissionais, realização de

pesquisas, etc.

Dentre os principais programas nacionais dirigidos a tratamento que nascem por

meio de projetos entre a academia e o poder público está o da Faculdade de

Medicina de Ribeirão Preto.que desenvolve no Núcleo de Pesquisa em Psiquiatria

Clínica e Psicopatologia da Universidade de São Paulo, o Programa de Ações

Integradas para Prevenção e Atenção ao Uso de Álcool e Drogas na Comunidade

(PAI-PAD). Este existe desde 1999, mas em 2006 qualificou agentes de saúde para

diagnósticos precoces de consumo de álcool sob condições de risco. O Programa é

financiado pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e pela Organização

Mundial de Saúde, que atribuiu ao PAI-PAD a tarefa de implantar e disseminar no

Brasil as estratégias de diagnóstico e intervenções breves (EDIB´s) para problemas

relacionadas ao álcool. A disseminação das EDIB´s se faz por meio dos Programas

de Saúde da Família (PSF) e Unidades Básicas de Saúde (UBS).

As intervenções breves são estratégias de abordagem baseadas em um programa

específico e destinam-se a localizar os problemas antes que esses assumam um

tensionamento maior. Essa estratégia é utilizada em todo o mundo.

O PAI-PAD sustenta outros programas como o Gesta-Alcool que investiga as

condições de risco durante a gestação do embrião e as suas alterações

psicopatológicas, ocupando-se também do desenvolvimento infantil. Esse programa

relaciona a vida do feto e suas variabilidades ao consumo da mãe: são levantados

dados sociodemográficos e de saúde, perfazendo um histórico do uso e as possíveis

morbidades psiquiátricas a ele relacionadas. O PAI-PAD também realiza o Bio-

Alcool, desde 2003, em parceria com o Departamento de Genética da Faculdade de

Medicina, que estuda os riscos genéticos quando do uso abusivo de substâncias,

especialmente o álcool. Esses estudos investigam os fatores de risco e mecanismos

biológicos que se relacionam ao desenvolvimento de farmacodependentes.

O Méd-Alcool verifica, desde 2004, os hábitos do consumo, de saúde e lazer de

estudantes universitários e médicos residentes. Busca mostrar a relação entre a

187

presença de sintomas psiquiátricos e uso de álcool e drogas, objetivando a

prevenção.

Outro programa público de São Paulo é o de Orientação e Atendimento ao

Dependente (PROAD), também em São Paulo, cuja metodologia consiste em usar a

arte como elemento de comunicação entre os usuários e os pesquisadores. No

interior do programa está a Unidade de Tratamento e Pesquisa em Álcool e Drogas

(UNIAD) que recebe os usuários por meio do “Porta de Entrada”, dirigido por um

grupo psicoeducacional, cuja responsabilidade é a orientação sobre dependência

química, através da estratégia da produção de uma oficina de dança étnica. O

objetivo é conseguir a adesão, desenvolvendo a expressão, ao grupo de abstinência

recente. Usa-se o ritmo para mobilizar novas memórias.

As tentativas de abordagem, prevenção e tratamento de dependência química são

variadas, inclusive por parte da iniciativa privada. Não é incomum a existência de

programas vinculados aos departamentos de saúde das empresas que justificam-se,

em sua maioria, na preocupação com o ser humano e a produtividade da empresa.

Seus formatos diferem, mas são ordinários os procedimentos que exigem a adesão

ao programa como condição de manutenção do emprego, o que mostra que a

admissão do problema por parte do trabalhador é um pressuposto.

Outras iniciativas em âmbito regional revelam a preocupação com o uso indevido do

álcool. Na Pontifície Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), instituição de

ensino privado, por exemplo, onde funciona o Projeto PUC-Saudável que tem como

objetivo a promoção de melhoria da qualidade de vida na instituição, nas esferas de

formação pessoal, no desenvolvimento de valores éticos de cidadania, na integração

da comunidade universitária utilizando conhecimentos para produção da saúde na

comunidade, a Clinica Psicológica “Ana Maria Poppovic”, da faculdade de Psicologia

foi instituída para auxiliar o projeto. Isso aconteceu por meio de uma modalidade do

Aprimoramento Clínico Institucional (Aprimoramento em Atendimento Profilático e

Psicoterápico para familiares e usuários de álcool e maconha). A execução do

projeto mostra que inferições sobre o desejo antecedem a aplicação das técnicas e

conhecimentos. Foram necessárias várias intervenções até a formação de público

para o projeto: vinte reuniões com o grupo PUC Saudável durante o ano 2000;

criação de uma “Oficina de Álcool” com encontros semanais durante um semestre,

188

com ampla divulgação resultando em cinco inscritos; manutenção da proposta,

durante 2001, com sessões de grupo de familiares e amigos de usuários ( a média

membros de três, com apenas um permanecendo do início - maio/2001 - ao final -

fevereiro 2002); atendimento terapêutico individual; visitas às clinicas de

dependência química (Vila Serena, Recanto Maria Teresa, Vitória, Hospital

Psiquiátrico de Taipas); cartas a instituições de tratamento e entidades sociais;

divulgação nos setores de trabalho na comunidade e nos congressos e palestras em

que a equipe participou.

Especificamente, as “Oficinas de Álcool” desenvolvidas pelo Aprimoramento Clínico

Institucional “O Psicólogo e a Prevenção ao abuso de álcool e outras drogas”

direcionavam-se à prevenção para redução de riscos, quando do uso abusivo de

álcool por ingressantes na universidade. As oficinas incidem sobre o que se

convencionou chamar de “janelas de risco” – o período em quem, devido a fatores

culturais e subjetivos, o jovem consome quantidade elevadas de bebida alcoólicas,

já que as pesquisas apontam para o uso abusivo em determinada faixa etária.

O desenvolvimento de estratégias que sejam capazes de alterar o estado de

pressões que motivam os jovens a beber certamente deve capacitá-los a modificar

seu comportamento frente à bebida, o que aponta para seleção de mecanismos

pelos próprios usuários. Dessa forma, a oficina que atingiu 28 alunos do primeiro

ano da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, em 2001, não tinha como objetivo

primário a abstinência ou a diminuição do uso de bebidas alcoólicas, mas a redução

dos comportamentos de risco - aqueles que originam motivações - e dos danos

produzidos pelo álcool. A metodologia se consistiu em mostrar a possibilidade de

administração do uso racional de bebidas alcoólicas, por meio do desenvolvimento

de psicodrama para tematização, sensibilização e experimentação, por simulação de

situações de risco.

A importância desses programas citados é o desenvolvimento de metodologias que,

por obrigação do próprio financiamento, devem multiplicar-se no país, tornando-se

formas de execução da Política Nacional para Usuários de Drogas e Álcool. De certa

forma eles sistematizam formas de redução de danos.

189

Em Vitória, a demanda de se trabalhar com a ampliação de informação sobre

assuntos como violência, drogas, álcool, DST’s, AIDS e gravidez, foi levantada pelos

delegados no congresso Municipal da Juventude, após a plenária de Orçamento

Participativo da Juventude, no ano de 2005. A Prefeitura Municipal optou por criar

ações, sob a ótica da redução de danos contribuindo para redução de índices de

violência nessa faixa etária compreendida como Juventude.

Uma dessas ações é o projeto intitulado “No Rock”, realizada pela Gerência de

Relações com a Juventude, SECOP/GRJ, a Gerência de Prevenção a Violência -

SEMSU e setores da Secretária de Saúde de Vitória SEMUS, que diz respeito a

valorização do lazer com qualidade visando a redução do número de mortes de

jovens durante as noites e madrugadas da cidade, por meio da implantação da

política de redução de danos e disseminação do que eles chamam de “ cultura da

paz”. São distribuídos materiais informativos e realizadas apresentações teatrais

rápidas, abordando temas diversos para além do álcool e outras drogas em locais

onde foram identificados maiores índices de acidentes.

Parece-me que a efetividade das ações precisa travar, em primeiro lugar, uma luta

incessante com questões sedimentadas na cultura médica e de assistência no

Brasil. A primeira delas é o modelo iatrogênico de atendimento – centrado na figura

do médico – que exclui atividades extra-hospitalares e dispositivos que acionem

iniciativas de prevenção articuladas na comunidade em torno do uso abusivo de

álcool e outras drogas. Tais ações poderiam desenvolver sentidos outros para

aquelas pessoas que procuram o Sistema de Saúde precocemente50, antes do

desenvolvimento de comorbidades51 ou quaisquer outras doenças secundárias.

Em segundo lugar e, talvez mais importante, a efetividade dependerá da capacidade

dos programas em estabelecer canais de diálogos com os usuários. Ainda que

tragam consigo a higienização e a coerção das políticas estatais poderão encontrar

passagem em um duto qualquer que os faça ter sentido para aqueles que desejam e

precisam ter acesso ao tratamento. Mas, o desejo é de outra ordem, não é possível

dizer de pronto sua relação com programas que nascem da medicalização.

50 O período médio entre o primeiro problema decorrente do uso de álcool e a primeira intervenção voltada para o problema é de cinco anos. 51 Comorbidades são associações de patologias psiquiátricas, no caso, desenvolvidas a partir do uso de álcool.

190

4.3 – DISTENDER A LINHA, EXPANDIR O ESPAÇO PÚBLICO, CRIAR A

RESISTÊNCIA: COMO É POSSÍVEL DANÇAR E FLAMEJAR?

“Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as alegrias do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há estado democrático que não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente para alcançar os devires, inclusive em nós mesmos” (DELEUZE, 1992b: 213).

Tenho dito insistentemente que a diferença habita e constitui o campo da política de

forma inesgotável porque as diferenças não param de se produzir. No entanto, a

história da política mostra que não é menor a colonização desse campo, inclusive

por sua fertilidade. Deleuze (1996) afirma que as macrodecisões políticas e as

escolhas e interesses binários estão sempre na linha dura dos segmentos, mas que

as decisões políticas fazem valer os microespaços e a micropolítica.

Talvez seja necessário pensar um pouco sobre o que se convenciona chamar de

espaço da política e seu caráter público para seguir adiante com os movimentos de

expansão.

Falo de um lugar habitado por partículas e microroganismos, átomos e partículas

variadas, corpos celestes e grãos que almejam ser o espaço-mundo de todos. Mas,

certamente o caráter público de qualquer espaço não se qualifica por sua natureza,

mas pelas vias de acesso e por suas condições de perfuração e habitabilidade.

Esse espaço é povoado de modulações e por dispositivos que classificam-no e

nomeiam-no. Diferem dos cartões de registro e solitárias do sistema prisional. As

sanções perpassam o corpo mais do que o hierarquiza. As modulações são

continuidades em lançamentos diferenciados qualificando os corpos e imprimindo-

lhes uma velocidade possível, contudo infinitamente produtiva. Curto prazo, continuo

e ilimitado, ao invés de longa duração, descontínua e infinita.

A cidadania seria um processo exterior e organizativo de acesso? Cria a cidadania,

condições e acesso a um “lugar público”? Desfaçamos esse embróglio

aparentemente dual.

191

O espaço público se constrói a cada movimento que o cria. Não é um lugar, mas um

atravessamento habitado por flutuações. Para Dagnino (2002), o espaço público é

criado pela tensão e conflito, já que são estes que sugerem a desnaturalização do

autoritarismo edificado pelas relações políticas no Brasil.

Esse espaço não é um dado. A cada movimentação há uma constante

reconfiguração de limites, por meio de um processo não linear e fragmentado e uma

contraditória relação entre o que se chamou de sociedade civil e de Estado. Por não

ser um lugar, o espaço público não é uma substância à qual os dutos e veias têm

acesso. Antes, é ele é o conjunto de dutos e veias, ou seja, é feito de circulações.

Mas, há dificuldades de circular sem moldes e nomes. A modulação-aparelho de

estado resiste aos objetos que teimam em se auto nominar e arvora-se contra a

circulação fechando os vasos: o autoritarismo social mostra-se. É necessário estar

atenta ao desenho, às regras construídas para o jogo. Ora, o clientlelismo e

personalismo da política institucional brasileira demonstram, a cada tumulto

produzido, seu ancoradouro em práticas históricas e excludentes.

Se políticas chamadas “públicas” se constroem como forma de ampliação da

circularidade, evidenciarão, de imediato, características variadas dos interesses e

projetos políticos daí nascentes: este é o espaço público por constituição. É, então, a

arena sem limites nítidos dos debates, das subjetividades e de processos de

objetivação( DAGNINO, 2002).

Para a autora em questão, é nesse espaço contraditório que se exerce a cidadania

que, longe de ser um exercício natural, é uma estratégia política que, ao longo dos

anos, assumiu a democracia como expressão de seu exercício. Ou seja, a cidadania

organiza uma estratégia de construção democrática.

“Incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para construção democrática” (DAGNINO, 1994, p. 104).

A cidadania discutida por Dagnino nos anos 90 volta olhares para os movimentos

sociais brasileiros, especialmente os urbanos dos anos 80, e não se detém às

192

exigências liberais das relações intrínsecas ao Estado, que essencializaram o

conceito. Uma luta de forças se trava: a que propõe fixidez e um caráter originalista

de cidadania e a que desvela exatamente a tensão de um terreno fértil que se

remodela a cada chuva, a cada sol, não podendo ter um relevo descrito e último.

Na medida em que a pauta recebe não só reivindicação de direitos, mas de “direito a

ter direitos”, ou seja, de construção da própria pauta, ela estende-se, alargando

uma multiplicidade de sons e ritmos não submissos à temporalização. A cidadania é

um corte transverso, desligada de um significado original, trama sem ponta, caminho

sem começo e nem endereço. Para Dagnino, ela é uma proposta de sociabilidade

por que transcende a relação entre indivíduo e Estado, e inclui a relação com a

sociedade civil.

É o terreno da política que está em transformação. A forma como o poder se exerce,

se desloca e se desdobra mostrará novos acordos que para serem feitos ferirão as

pedras angulares do autoritarismo. Para Dagnino, a “nova cidadania”.

“(...) transcende uma referência central do conceito liberal que é a reivindicação de acesso, inclusão, memberschip, “pertencimento” (belonging) ao sistema político na medida em que o que está de fato em jogo é o direito de participar efetivamente na definição desse sistema, o direito de definir aquilo no qual queremos ser incluídos, a invenção de uma nova sociedade” (DAGNINO, 1994, p.108).

De certo, a autora está se referenciando nas possibilidades de amarras entre fios de

uma trama, o que resultaria num projeto de transformação cujo conteúdo não é uma

decorrência inevitável, mas possibilidades dedutíveis do exercício político. Ainda que

ela mostre que a nova cidadania não está relacionada à incorporação política de

setores excluídos como condição, é nítido que os sujeitos definem (e são definidos

nesse caminho), o que consideram ser seus direitos com propósito de inclusão

social. E aí pode estar uma quase imperceptível prisão das linhas de fuga no

binômio exclusão/inclusão que impedem os corpos de fazer outras combinações.

Dagnino também ressalta a perversidade que está em curso na forma como as

relações políticas se dão: uma contínua aclamação de participação na constituição

de políticas e de direitos, por parte daqueles que querem “se incluir”, concomitante à

193

responsabilização atribuída às pessoas pelo Estado daquilo que, nas décadas

anteriores, era de sua gestão. Esta é a perversidade: o Estado mínimo, neo-liberal,

construído por relações de novo dimensionamento do que tradicionalmente foi

considerado seu papel, não mais se põe a cuidar das pessoas e dos serviços

públicos da forma como as lutas anteriores lhe destinavam.

Se falo anteriormente de construções inacabadas que recebem em si os

acontecimentos, fazendo-os e refazendo-os, se pressuponho cartografias múltiplas,

desenhos descuidados que acolhem o perfil errático dos processos vitais não posso

tomar “um lugar” definido para as variações, a não ser que o veja como um

“decalque”. O mundo - e, portanto, o que se pode chamar de terreno da política -

entendido como um mapa está aberto às sensações do corpo, à sua vibração, às

mudanças e imprevisibilidades; visto como “decalque”, carrega a hereditariedade

dos processos, traz o retrato, o diagnóstico irremediável, é sempre uma sentença.

“Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as alegrias do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há estado democrático que não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente para alcançar os devires, inclusive em nós mesmos” (DELEUZE, 1992b:, p. 213).

Assim, no mapa está abolido o binômio inclusão/exclusão. Se o mapa é aberto, não

tem fim, nem eira, nem beira, não há um lugar a definir, um espaço fixo a reivindicar.

Os desejos estão em aberto e os fluxos em negociação.

Ora, se a proposta é garantir direitos a todos no modo de produção capitalista, nada

se pretende além de confirmar-lhe a lógica, aquecer-lhe os motores. Essa economia

de riquezas suporta até o seu máximo de efeito a marginalidade, a pobreza, o

preconceito, mas, só na medida em que cada coisa não lhe impeça o funcionamento

viril. Enquanto funciona, destina a cada diferença e a cada “anormalidade” um lugar

efetivo, separado segregado. Inclusive o que não funciona está previsto na

economia, que movimenta desejos aquiescendo-lhes, decodificando-lhes,

delegando-lhes espaços, interdições e formas.

Mas, quando a diferença é reconhecida na trama, não basta a recusa da

padronização, nem tampouco da binarização. Se já de início pode-se evidenciar que

194

essa trama se alterna entre a definição do espaço público e a captura deste por

relações subordinadas ao Estado, o assunto se complexifica quando se sabe que é

primordial compreender a dificuldade de caminhar por entre a “diferença” sem

submetê-la à racionalidade usualmente homogênea das políticas de promoção da

igualdade. É disso que fala Deleuze quando argumenta que a ânsia por direitos nos

faz abençoar as alegrias do capitalismo sem ao menos suspeitar que uma rede de

pobreza e miséria é condição para a produtividade capitalista.

A máquina de sobrecodificação nos oferece os títulos e prêmios, e a senha da

modularidade reúne de uma só vez, lugar, acesso e controle de entradas e saídas

dos fluxos.

Codificando provisoriamente nossos tempos, Larrosa e Skliar (2001) falam de

Babel52, especialmente para anunciar o pensamento antibabélico. Diante do

reconhecimento da diferença e multiplicidade, de um não-entendimento, de uma

crise intensiva e incessante e da tentativa de unanimidade e tradução, o que fica é a

compreensão de que nossa condição é sempre babélica. A um telos da história e a

um grande projeto de emancipação responde-se com pequenos relatos de

convivência: códigos cheios de pecados, de ambiguidades, de manipulação, de

verdade e liberdade. Parece-me que há, assim, uma possibilidade de pulverizar o

binômio bem-mal, diluindo-o na vida pecaminosa, errante, babélica, porém larvar e

abundante. Nessa disseminação, o antibabelismo é apenas mais uma língua,

pretensamente unificadora, mas presa, também, da sua própria sintaxe.

A crise como constituinte da vida, faz suspirar o pensamento anti-babélico,

que ousa em desativar a diferença. Larrosa e Skliar (2001, p. 10) criticam:

“(...) Por isto teríamos de compor e recompor uma outra vez a pluralidade humana, teríamos de aceitar e celebrar as diferenças, porém, isso sim, representando-as, desativando-as, ordenando-as, fazendo-as produtivas, convertando-as em problemas bem definidos ou em mercadorias bem rentáveis; teríamos de produzir e canalizar os fluxos e intercâmbios, porém, isto sim, de forma ordenada, vigiada e produtiva(...)”

52 Referindo-se à história bíblica sobre a Torre de Babel, construída numa planície na Terra de Sinear, cujo objetivo era construir algo que lhes fizesse chegar aos céus. Como resposta Deus lhes teria impingido o infortúnio de não entenderem a linguagem uns dos outros. Babel viria do hebraico- balal- que quer dizer confundir. (Bíblia Sagrada . Gênesis, cap 10)

195

Para os autores trata-se de um governo do deslocamento, que tornar-se-á rentável e

regularizável. Dessa forma, o anti-babelismo é um regresso, uma disposição ao local

fixo em meio a uma multidão de errantes. E aí mesmo está o primeiro perigo: a

renomeação que não nega a fixidez criaria um outro momento de intolerância.

Não é raro a profusão de políticas que se orientam pelos discursos multiculturalistas,

pelo reconhecimento da diversidade. Fala-se de recebê-la como atitude político-

metodológica e, para isso, abrir mão da hierarquia entre os povos e do

etnocentrismo, organizando uma pauta de inclusão e integração social, constituindo

um novo princípio ético. Para não dispersar o projeto de integração e aceitação das

diversidades e reconhecê-las também como internas a cada grupo, propõe-se uma

modulação do discurso em razão das questões internas (GONÇALVES E SILVA,

2002, p. 28). Estou me referindo, então, a possibilidade de múltiplas identidades

(processos variados de identificação), sempre em movimento.

Porém, sob o abrigo de múltiplas identidades o outro ainda se traveste do “mal”, mas

dessa vez aceitável, incluído por meio de novas relações de poder. Não há dúvida

sobre a novidade do procedimento, mas infinitas suspeitas sobre uma normalidade

que conserva os binômios e oposições, ou seja, a mesma lógica da separação e da

aceitação da diversidade como um resultado anômalo, mas incluso. Há, para Skliar e

Duschatzky (LARROSA e SKILIAR, 2001), um jogo imagético em que o outro

depende do um, hieraquicamente, e apenas existe como inversão deste. Assim, o

discurso multicultural que renomeia sob o auspício de uma identidade, abrigaria

estereótipos, certamente não-inocentes, carregados de formas opressivas “que

permite um controle social eficaz e produz uma devastação psíquica sistemática na

alteridade” (LARROSA; SKLIAR , 2001, p. 124).

A repetição constante do lugar e da forma não é por acaso. A alteridade - a difusão

contida da diferença, da singularidade – estaria condenada a estabelecer-se com as

demais formas codificáveis, sob o pretexto da inclusão. De qualquer forma, o “outro”

é proclamado, sub repticiamente, como prova do desajuste estrutural da sociedade,

sob os signos da perturbação e mais, daquilo que quer se corrigir e se acalmar.

Dessa feita, o discurso multiculturalista naturaliza representações e traduções: não

impede o conflito, mas lhe doa quietude. O híbrido estaciona-se nas identidades,

196

provisórias que sejam, mas que, acomodadas a um lugar de disputa, obnubila a

inadequação da tradução, a real invenção da metáfora, a assimetria própria do

híbrido, sob o poder da linguagem.

A emergência dos interstícios, que não são apriorísticos, mas construções vitais e de

pesquisa – em que acontecem as experiências intersubjetivas, é que importa. O

“entre-lugar” (BHABHA, 1998) é um discurso do processo, da negociação que está

em andamento assim que saltita a diferença e toda sua disformidade e dissonância.

O híbrido, para Bhabha, é um estado em aberto e não uma definição, em que

deslizam inscrições duplas, hifenizadas, em agonia constante. Nada tem uma só

inscrição: o “hífen” não lhe garante uma terceira, mas uma abertura para tantas

outras que são fronteiriças. Essa indecidibilidade e impossibilidade de classificação

própria do híbrido indispõe qualquer tentativa de padronização social, qualquer

classificação ou renomeação. Anuncia-se a vida sempre no limiar de uma outra

ruptura. O importante é compreender a metáfora como recurso provisório de

existência.

Duvidando da permanência e até da capacidade epistemológica das

categorias da modernidade para aproximar-se do momento presente, Augé (1994, p.

27) identifica um clamor por um olhar novo, que não tem medo de perder o foco e

que resiste à aceleração exatamente por que não se estaciona. O autor afirma que

as categorias perderam seu vigor diante da aceleração do tempo (superabundância

factual), a aceleração do espaço (superabundância espacial) e a superabundância

das referências individuais. Esses processos entrelaçados configuram a

“supermodernidade" de Auge, onde e quando a identidade está sempre na corda

bamba.

O lugar passa a ser um sentido e uma invenção – um princípio de inteligibilidade, um

sossego e uma projeção, carente de demarcação. Há, de alguma forma, a produção

incessante de um não-lugar, coabitando com lugares identitários e históricos, objetos

da antropologia. Dessa forma, o não-lugar surge anunciando a flexibilidade do

território árido e ventos de liberdade ao pensamento: a qualquer momento pode

arruinar as edificações antigas. A homogeneidade encerra-se na idealidade de um

lugar que não se move.

197

O “outro” do discurso cultural também encerra o homogêneo, ainda que sendo em si

mesmo, gerando uma circularidade de compreensão que contém supostamente a

crise: a coerência interna salva as “culturas” de suas perversões e contradições,

mesmo que lhe sejam resguardadas “modulações” que, na maioria das práticas

políticas são “segredos” de articulação interna, como uma “briga de irmãos”, que não

precisa vir a público. Garantida a unidade do discurso, a pauta pode ser defendida

socialmente e os espaços concretos de produção e de autonomia estariam

protegidos. Na escola, há lugar para “as culturas” e seus objetos representativos nos

currículos, nas festas, nas produções de sala de aula.

As “culturas” estão asseguradas, por meio da proposta do multiculturalismo, também

pela valorização das manifestações de um grupo e seus objetos: suas músicas,

comidas, roupas, modos de ser sacralizados na repetição tradicional de jeitos. Nessa

tentativa de proteção dos artifícios está bloqueada a discussão da cultura como

invenção cotidiana, segmentando-a em várias modalidades para reconhecê-la e

identificá-la, buscando o não-esquecimento voltado ao fortalecimento das raízes.

Para Guattari e Rolnik (1996, p. 15), a cultura torna-se uma produção reacionária:

“ É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas, às quais os homens são submetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial e capitalizadas para o modo de semiotização dominante – ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas.”

O que os autores estão alertando é não só para a traição contida na intelegibilidade

como fator de tradução das culturas, mas para uma impossível autonomia concedida

a cultura sob o argumento de torná-la protegida. É quase como dizer que nada pode

ser protegido do que se é, sob o risco de não sê-lo mais.

A inclusão das práticas culturais, ou melhor, dos modos de ser numa esfera

autônoma os disporia num mercado de produção cultural, na lógica capitalística, e a

um só momento, tornam-se uma produção capitalística.

Esta autonomia, presente no discurso multicultural, negligencia que as trocas

simbólicas e subjetivas são constituintes do modo de produzir riquezas numa

sociedade. Assim, como garantia da eficiência da desigualdade é necessário que

198

funcione um controle dos modos de subjetivação, compartimentalizando-os e

classificando-os. Esta sujeição subjetiva é que estancaria a relação entre universos

semióticos e produções subjetivas, o que tornou necessária a eleição de símbolos,

códigos, currículos, procedimentos para inclusão da diferença.

O segundo perigo, que estranhamente segue-se e está contido naquele outro (o da

renomeação criando um outro momento de intolerância de outro perfil) é o da

tolerância e seus significados. Uma ressalva feita por Skliar e Duschatzky – a

destinação de políticas para o reconhecimento do grupo e da cultura não resolve a

questão da liberdade individual, o que pode por um lado revalidar os “guetos”, sem

os contextualizar e, por outro, familiarizar a indiferença como modus vivendis.

Se é real que a tolerância pode ser um modo de ser social necessário aos contratos

vigentes, também é certo que a eleição de normas para os grupos de todo jeito

obscurece sentidos individuais dados à vida. Um mulçumano homossexual só seria

reconhecido em seus direitos culturais-religiosos, sem ser entendido em sua

complexidade subjetiva, onde outros componentes além da sexualidade, religião

também estão se processando? Qual seria sua “classificação”? Em que patamares

de leis e educação ele gostaria de viver? E se esse mulçumano fosse plenamente a

favor do enforcamento de mulheres adúlteras, ainda assim continuaria tendo direitos

à sua expressão sexual ou religiosa? O relativismo puro não se mostra suficiente,

quando desprovido de contextualizações históricas, móveis e permanentes, para

orquestração dos sons graves da tolerância. Uma defesa incondicional das tribos

pode dilacerar os atravessamentos e opressões que estas mesmas colocam a si e

aos outros.

E, por último, tolerância vista como concessão fundamentaliza as hierarquias morais

e funcionais da sociedade: a resignação prescinde do diálogo e do caráter

conflituoso de qualquer relação. O que está em risco é, como dizem os autores, a

eliminação da memória da dor, em troca da inclusão.

As políticas chamadas de públicas eivadas de tolerância evitam a polêmica sobre os

cheiros ácidos do cotidiano: normalizam a rotina e, portanto, a cura de suas feridas.

Curada, a resistência é boa, não denuncia, não evidencia e fixa tudo aquilo que

199

insistia em mostrar a ambiguidade da vida, exatamente desvelando as regras do

jogo que nunca são um dado, mas uma negociação em pleno vigor.

Ora, a suposta rede de ações públicas deve ter em conta que estará fabricando em

campo minado pela moralização: lá estão dispostos em trilha de guerra os

comportamentos sedimentados na edificação de um padrão de

anormalidade/normalidade. Expira a necessidade de “amoralização” das

construções. Se não há como definir subjetivamente o “dependente químico”, porque

ele só existiria como padrão moral, muito menos haverá como constituir políticas de

mão única e sem capilaridades.

Veiga- Neto (2001, p. 105) fala de uma política de inclusão dos anormais, que não

são um desvio natural de uma essência normal, mas, no sentido focaultiano,

definem-se na relação do grupo consigo mesmo. Para esses autores as diferentes

identidades flutuantes passam a ser reconhecidas sob essa generalização.

Os anormais estão em relação de diferença, em deslocamento a sentidos e práticas

discursivas, produtos de exclusão e violência. Não se definem por uma marca no

corpo, mas gestam-se no interior da biopolítica que coloca em movimento um

biopoder que articula privações e normatizações cujos resultados são classificações

variadas – expressões de patologias, deficiências, etc. Trata-se de classificar

processos, que extrapolam a disciplinarização dos corpos individuais, mas de

relações que formatam conceitos de funcionamento social: “(...) que se faz em

direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie” (FOUCAULT, 1999, p. 289).

Para Foucault, não mais uma anátomo-política do corpo humano, mas uma

biopolítica da espécie humana, que separa e segrega, produtivamente, por meio da

intensa produção de normas de exclusão e inclusão, fazendo funcionar uma

sociedade e suas relações. A norma emerge como estratégia de dominação e

classificação, segundo Veiga-Neto (2001), daquilo que é normal ou não.

Ordenar o caos seria, para os autores, em sua leitura de Foucault e Bauman, a

meta da modernidade. Não há aí a negação do caos, mas sua gestão, por meio de

práticas de ordenamento, em que se enquadraria a inclusão da anormalidade

erigida sobre um conjunto de operações que definem, pela norma, a própria

anormalidade.

200

Tais procedimentos assumem uma lógica que lhe dão aparência de natural, ao

passo que intimidam o desvelamento de relações de poder que o constituem. É no

próprio Foucault que vou buscar:

“(...)de que a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício de poder se acha fundado e legitimado. (...) a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir e rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo.” (FOUCAULT, 2002, p. 62)

A norma coloca ao seu serviço os saberes que são produzidos socialmente que, ao

mesmo tempo, legislam sobre o corpo social capturando qualquer estranheza de

movimento, classificando-os a contento dos poderes que a instaura.

Foucault (2002) mostra que a exclusão não está em pauta: trata-se de definir

espaços e locais, de separar e controlar as presenças, dando-lhes, inclusive,

ascendência. Compara à política aplicada às pestes no século XVIII, que instaura a

vigilância, num notável sistema de quarentena diferente dos procedimentos de

exclusão dos leprosos existente anteriormente. Os “empesteados” são articulados

numa análise do território, de seus modos e formas de existir: não há expulsão, mas

delegação de espaços que maximizem a saúde dos indivíduos, conforme a regra, “à

norma de saúde que é definida” (FOUCAULT, 2002, p. 58).

Assim, ao modo da quarentena, a peste é passível de uma atitude positiva, de

inclusão, de produção infinita de relações de poder, que não elimina, mas por meio

da operação contínua do saber inclui: são tecnologias positivas do poder. Nem por

isso deixa de ser peste, mas tolera-se positivamente a peste. Da mesma forma, a

anormalidade é aceitável no interior do binômio norma/anormalidade. É anormal

aquilo que não é norma, é norma aquilo que ajusta-se aos modos de funcionamento

virtuoso de poder.

201

A conduta humana será virtuosa se seguir as regras da boa conduta social que

associará, de uma só vez, o anormal, a anomalia e o crime, portanto, a doença e o

crime.

“É dupla a realidade da norma – de um lado: norma como regra de conduta, como oposição à irregularidade e à desordem; de outro lado: norma como regularidade funcional, como oposição ao patológico e à doença – que faz dela um operador tão útil para o biopoder.” (LAROSSA ; SKLIAR, 2001, p. 115)

Diante dos anormais, para Veiga-Neto (2002) há quatro posições. A mais imediata é

de fácil identificação – políticas de exclusão que se baseiam na negação da

diferença, como o discurso sobre o racismo, sobre a purificação das práticas

sociais, etc. Uma outra que recorre à proteção linguística como modo de expiação,

ofuscando a violência que está na prática da exclusão. A terceira forma de postura,

de sentido reducionista, sustenta-se no binômio normal-anormal, que naturaliza a

norma e, como consequência trata a anormalidade como passível de inclusão,

numa relação tipicamente técnica. A última e quarta posição problematiza as

anteriores e coloca em discussão o movimento das práticas e relações de poder

que constituem a inclusão.

Da mesma forma que os discursos multiculturais podem gerar políticas públicas de

inclusão do outro, sempre abstrato e distante, sem reverter a sua lógica de criação:

o outro como a inversão do um, ou seja, não “estão na escola, mas no currículo”

(LARROSA; SKLIAR, 2001, p.133) ou mesmo valorizar-lhe a diversidade e a

cultura, sem qualquer relação com a desigualdade e produção de riquezas, o

esquecimento da ambiguidade das políticas de inclusão pode originar a semelhança

do anormal com o normal ou, em outras palavras, seu assujeitamento interno e

externo. Desse modo, políticas de inclusão podem, por tentativa de aproximação,

fundir as diferenças em um modo de operação que as desconsiderem em sua

complexidade.

Quando o multiculturalismo configura a diferença a partir de uma identidade da

diversidade, impede suas livres operações, sua distinção num movimento de

expansão e a circunscreve num quadro de comparação, expressão empírica da

lógica de competitividade do capital. É como se as práticas discursivas estivessem

202

limitadas a um ser sempre aberto, mas que traz consigo uma pré-definição: um

receptor e não um produto infinito de operações múltiplas.

Por isso, tenho falado em distensão. Sabe-se que as políticas de gestão estatal

apenas delimitam o espaço dado. Tratam a experiência no espaço público como

uma forma de legitimação da fronteira. Mas, da mesma forma que esta gestão

codifica a área, movimentos de ordem molecular estão armados em direção à

molaridade. Contudo, não diz respeito a um movimento de oposição, mas de

convivência paradoxal e contínua. As linhas e segmentos não cessam de se tocar

caoticamente. É a modulação dos desejos nos corpos que diz sobre eles e os

qualifica, aponta virtudes e limites.

De repente, de um lugar qualquer, uma dimensão qualquer, um deus louco,

pitoresco e bailarino, sem corpo e forma, abre suas asas e anuncia os seus limites:

não quer ser adorado! Sua dança o quer expansivo e denso, recusa assim, as

individuações a ele oferecidas. A dança é a tomada da energia do mundo para si

num processo candente de resistência. Viver é resistir às mórbidas caricaturas, é

escolher o rosto, é distender-se para além de si e flamejar impregnado de tudo que

nos atinge.

203

CAPÍTULO 5

...FINALMENTE: POSITIVAR A VIDA, DAR PASSAGEM À POT ÊNCIA, FORTALECER O CONATUS

tá tudo tão diferente eles são tão parecidos mas não como nós eles falam outra língua pela nossa voz eles são tão bonitos mas não são como a gente eles vêm de muito antes que nossos avós eles fazem companhia mas estamos sós tá tudo tão diferente eles são de carne e osso mas não têm suor eles têm os olhos grandes para ver melhor eles têm a boca grande

(Arnaldo Antunes)

“Eu passava noites e noites com um porrete na mão esperando meu pai sair do quarto. Queria matá-lo de qualquer jeito quando estava sob efeito da droga. Mesmo quando não estava “usado” tinha um ódio mortal dele. Graças a Deus ele nunca saiu daquele quarto. Hoje, limpo, aprendi a olhar para ele sob um outro ponto. Aquele era o pai de meu ressentimento, tinha outro jeito, outro retrato. Ele é difícil, mas hoje tem outra forma, a forma da minha aceitação. Vejo qualidades nele, ele me chama para perguntar as coisas, para pedir opiniões. São sempre coisas impossíveis, mas são as coisas dele, do jeito dele. Abri mão daquela imagem rígida, de um ponto só e o vejo de outro. O ressentimento é um veneno, me impedia de ver coisas além daquelas que eram prisões pra mim...” (jovem, 32 anos, em recuperação, membro de NA, 8 a nos, 5 meses e 16 dias “limpo”) 53.

“É difícil lidar com ressentimento, principalmente quando a gente (a gente sou eu) justifica ele. Ninguém lá em casa mudou por que fiquei limpo. Eles brigam, xingam...Eu é que tenho que ser diferente. Mas, cara, ainda não sou não. Entro nas porradas e depois sei que fiz merda. Mas também sou humano e não tô fazendo curso pra santo. A única diferença de antes é que sei que a culpa não é deles por eu ser nervoso” (jovem, 25anos, em recuperação, membro de NA, 6 anos “limpo ”).

“Parei com esse negócio de droga. Não dá futuro. Me sinto melhor, mas muita coisa não muda. E agora não sei bem o que fazer, saca? Tipo, fiquei sozinho. Preciso esquecer o passado.” (jovem, 18 anos, estudante do ensino fundamental, está um ano sem us ar drogas).

53 A palavra “limpo” é usada para registrar, no início das reuniões, na apresentação de cada um, há quantos dias não se usa drogas.

204

“Eu uso todo dia. Uso porque é legal, me faz sentir livre, de bem com a vida. Às vezes, piro mas, quem não pira. O problema não é a droga, é a vida mesmo. Tenho problemas com meu irmão, ele é complicado, mas eu posso mudar também, eu é que não quero. Todo mundo pode mudar as coisas” (usuário, jovem, 18 anos, estudante do ensino fundamental).

“Não uso por causa de problema. Todo mundo tem problema e nem todo mundo usa. Tenho esse negócio de ressentimento não. Meu pai é um bosta, mas ele não é culpado por minha vida ser assim ou assado. Muitas vezes nem eu sou culpado. Tô certa de uma coisa, eu preciso largar essa porra, senão vou morrer” (Usuária, jovem, 17 anos, estudante de ensino fundamental).

As três primeiras “falas” são de jovens, que se consideram em recuperação do uso

intensivo de drogas, numa reunião de Narcóticos Anônimos sobre “ressentimento”.

As pessoas falam sobre o tema de forma concreta, sobre as produções do

ressentimento em suas vidas, o que consideram uma das maiores questões para a

recuperação do ex-usuário. Para eles, o ressentimento “envenena a alma” -

expressão muito usada - e, de alguma forma, é preciso falar dele.

Mas, não há verdades na forma como lidam com isto, há experiência. Por isso

mesmo têm como lema “continuar voltando que funciona”. Dizem não acreditar em

cura, mas em unidade em recuperação, em crescimento, em partilha. Não estava ali

para julgar a forma como as pessoas lidam com o problema, mas há um consenso

entre eles: ressentimento é doença (ou sua expressão)! Trata-se de uma “doença do

espírito” que pode levar ao uso de drogas.

Mas, em contraposição, o reconhecimento da doença pode levar a pessoa à busca

de formas de se recuperar, sem se culpar por aquilo que fez consigo e com os

outros. Trata-se, segundo eles, de não atribuir aos outros e, ao passado, as

impotências diante da vida, o que os impedia de “encarar as situações de frente”.

Cheguei ao fim deste trabalho com várias palavras na cabeça. Meus olhos eram só

telas e telas, cheias e cheias. Na verdade, gostaria de ter ouvido mais, ou pior, o que

queria era ouvir um acalanto em forma de solução. Por que eles não me disseram o

que esperavam da escola? Por que não apontam uma forma de vida mais

constante?

205

Fui, por um tempo, capturada pelo estrato da virilidade que exigia de mim um “fim de

tese” cheio de conclusões, racionalidades e apelos. Li e reli o texto. Só encontrei

perguntas e perguntas. Resolvi voltar à grande saúde para retirar de lá um oxigênio

para fornecer ao epílogo.

Deparei-me, novamente, com Nietzsche. Ele falava de virilidade e de saúde de uma

forma que poderia fazer gerações posteriores duvidarem da força de sua obra.

Danelon alerta que, para ele, a doença era algo singular:

“(...) ela implica em sofrimentos, privações e dependência, mas tudo isso desemboca num pólo positivo, a saber, a transformação do espírito, surgindo, com isso, um novo e diferente conceito de vida e cultura” (DANELON, 2002, p. 74).

Ele sabia que seus “adversários” buscariam doença e fadiga em sua filosofia, e, por

isso mesmo, afirma que ela traz força, numa carta a Peter Gast, em 1879, quando

do término da obra “Humano, Demasiado Humano” (DANELON, 2002)54.

O filósofo altivo e controverso traz, na sua própria vida, marcas da vivência com a

doença como deslocamento e expansão dos limites da própria vida. Não a negou e,

pela doença, mostrou a mais pedante vitalidade. Ironicamente, foi num inverno

incessantemente chuvoso, na baía de Rapallo, perto de Gênova, num albergue à

beira-mar, onde a maré alta causava terríveis estrondos noturnos, em meio à

debilidade física – cegueira, dores de cabeça e estômago – que o “homem

dinamite”, como se intitula em Ecce Homo, pariu o ponto mais forte de toda sua

obra, a saga de Zaratustra, um elogio à saúde. Em contrapartida, seu trabalho

mostra que:

“o doente é aquele moralmente debilitado, ou seja, é o indivíduo decadente, ressentido (grifo meu), impregnado pela ilusão da ciência e da religião. Se Nietzsche foi um doente, isto é correto somente se nos referimos ao seu estado de saúde física” (DANELON, 2002, p. 77)

54 Foi Peter Gast quem “transcreveu” para Nietzsche quase toda a totalidade de Humano, demasiado humano, quando ele, de tão adoecido, não podia escrever e assim o ditava para o amigo.

206

Um espírito liberto do ressentimento era o mais alto sinal de vitalidade, sem a

justificação da dor - e seus enxertos reativos - e sem sua sublimação, por meio do

ascetismo (NIETZSCHE, 2005). Isto possibilita ao homem construir um espírito livre

que diz sim às variabilidades e escolhe uma forma humana, demasiado humana de

vivê-las.

Porém, abandonar o ressentimento e toda sua estocagem – verdade, ciência,

religião, cristianismo - custou para Nietzsche a mais profunda solidão. Não consta

que ele tivesse “seguidores”, “discípulos”, e ele mesmo dizia não os querer. Mas,

sua crítica a Sócrates, Platão, dentre outros, lhe valeu o isolamento acadêmico,

nenhuma notoriedade filosófica em seu tempo, o abandono da cátedra, uma

ausência de afinidade espiritual com os outros e, por fim, solidão em toda sua vida.

Seu espírito fervilhante e inquieto era, assim, profundamente solitário, dentre o

império da razão moderna e da soberania do conhecimento, por mais que seu

Zaratustra clamasse por “companheiros” e não cadáveres.

Não me interessa ter Nietzsche como exemplo, mas acentuar que o filósofo, em

momento algum, traz consigo um patético pessimismo como a análise vulgar possa

postular. O que emerge para mim é uma espécie de “pragmática da potência”, ou

como tornar-se o que já somos. Ou seja, falo da expansão da vida, através da

aceitação do tempo como uma fabricação contínua e descontínua.

Explico: o tempo é constante e cheio de alterações e não guarda identidade com o

tempo anterior, cuja memória só é uma operação de efeito. Não se trata de negar o

passado, mas de aceitá-lo como um efeito do modo de subjetivação do presente,

sem resistir a ele. Desse modo, o alemão-polonês torna-se uma experiência com o

ressentimento, do modo como o vivenciou, livrou-se dele. É quase um anti exemplo

aos modos modernos, já que viveu só. Não se enquadra no que se chamaria de

sucesso, de bom convívio com a família ou com amigos, mas sua experiência de

aceitação sugere potência: sua filosofia submeteu-se ao crivo da vida.

Os dois últimos “usuários” com cujos depoimentos inicio este item talvez não sejam

exemplos de “sucesso”, mas estão de frente às suas vidas, de peito aberto, sem

justificações. Usam por que usam, como se nem tudo precisasse de grande

207

elaboração. Usam por si, ninguém é culpado. Não se dizem doentes. São capazes

de normatizar suas vidas.

De novo às voltas com as falas dos meninos e meninas pensei na vida e na escola.

Por que eles insistiam em voltar até lá? Se a escola era desinteressante por que

estavam sempre dentro, por perto, dizendo sobre ela? O que, no corpo desses

meninos os fazia voltar?

Há algo que não se diz e não se pode calar entre eles e a escola. Há algo que cheira

singeleza, além do diploma que eles nem têm muita esperança em ter. Além

também de um “mercado de drogas” para o qual não precisam da escola. Há algo do

reino do indizível, invisível, incontável. Quisera eu poder traduzir!

Os sentidos e sentimentos dos meninos pedem uma tradução positiva. Ninguém

quer ter a vida negada ou julgada. As experiências são passagens do vivido, do

passageiro, são estrangeirismos que anseiam por afirmações. Visitei um garoto

bonito e grande com as mãos cerradas embaixo de uma coberta depois de tê-las

mostrado a mim. Ele havia ensaiado um corte nos pulsos que não deu certo,

segundo ele mesmo. Fora aluno da escola55, era assíduo, compenetrado, cortejado.

Ninguém o tomaria por usuário intensivo de drogas se não tivesse cortado os pulsos.

Usava só, não gosta de noitadas e fanfarrices; nem mesmo está na faixa mais pobre

dos estratos sociais. Contraria com seu corpo forte, as expectativas gerais e as

racionalidades de plantão:

“Será que tudo que faço é porcaria? Mas, se eu não consigo fazer de outro jeito o que vou fazer então? Não aprendi de outro jeito, só sei assim, então não presta?

O que fazer quando a vida esburra dos orifícios inteligíveis? A vida não espera que

criemos códigos para acontecer. E quando acontece não é só de um jeito. E os

jeitos, nem mesmo depois da máquina de moer, são unificados, idênticos.

A escola positiva a vida? A experiência dos meninos e meninas chega até a sala de

aula sem a expectativa da correção ou punição? O medo que impede as

55 Não me autorizou dizer a escola que frequentava.

208

modulações no trato com a diferença tem se desgrudado do ressentimento que

adoece nosso pensamento, nossa forma de pensar, nosso jeito de ser?

As políticas de expansão da vida, colhidas do silêncio e barulho dos meninos são

modulações da própria vida. Não se contrapõem, não se impõem, não se propõem,

não se opõem. Querem só fazer viver, querem dar passagem à potência e fortalecer

o conatus. Ao fazer passar a força querem enroscar-se no estrato, sufocar o estrato,

extrair sangue dele e fazê-lo viver desestratificadamente. Querem desarmar o

governo, inventar outra forma, desmobilizar o estado e declarar sua inutilidade.

Querem vivificar os modos rijos e dar-lhes alguma coerência. Querem conviver

paradoxalmente com os carrancudos e carrascos, pisando-lhes fortemente o pé para

que olhem para o alto, para o lado e para baixo. A expansão quer um corpo sem

órgãos, quer alargar a pergunta, quer politizar a política, quer negociar os jeitos,

quer erradicar a fatalidade. As políticas de expansão querem, querem, querem,

querem sempre querer. E com isso arrebatam a vida de cada canto onde teimam em

escondê-la, julgá-la, confiná-la.

Junto à máquina de moer carne, o sangue fresco. Junto à maquina abstrata, a

máquina abstrata de mutação. Junto à droga, a vida. Junto à droga, a morte. Junto

ao ressentimento, a grande saúde. Junto às políticas estatais, as políticas de

expansão. Junto comigo todos eles. Junto comigo a solidão. Assim terminei esse

trabalho, com gosto de tudo modulado em mim, em batalha em mim, em silêncio em

mim, aguardando outra inquietação e outro fôlego para seguir adiante.

209

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