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Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 97 * Este artigo, retirado da tese de doutorado Mesas de Mi- nas: as famílias vão ao self- service, corresponde à parte do capítulo I que trata da história do hábito de comer fora no Brasil. Mônica Chaves Abdala. Professora do Depto. de Ciências Sociais da FAFCS UFU. Doutora em Sociologia pela FFLCH USP. Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos self-services self-services self-services self-services self-services * Mônica Chaves Abdala Resumo: Neste artigo, apresentamos um recorte da tese sobre mudanças de hábitos alimentares e formas de sociabilidade de famílias mineiras que passaram a tomar suas refeições cotidianas em restaurantes self-services, procurando traçar um breve histórico do hábito de comer fora, no Brasil, com destaque para Minas Gerais. Por meio da seleção de três cidades de diferentes portes, buscamos observar o crescimento do número de refeições feitas fora de casa, deixando de ser esta uma característica apenas de grandes centros e agregando famílias aos habituais trabalhadores e estudantes, fenômeno observado a partir da expansão dos restaurantes por quilo e congêneres, no final da década de 1980. Palavras-Chave: História da alimentação; hábitos alimentares; restauração fora do lar; família; formas de sociabilidade. Abstract: In this article we present a brief history of the habit of eating out in Brasil, specially in the Minas region. We have selected three cities of different sizes to study the increase of the habit of taking meals out of home. Since the end of the 1980’s it is no more characteristic of larges cities only. With the greater number of restaurants selling food “by kilo”, families are now used to take their meals in self-service restaurants, a prior habit of only workers and students. Keywords: History of food; eating habits; food away from home; family; ways of sociability.

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Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 97

* Este artigo, retirado da tesede doutorado Mesas de Mi-nas: as famílias vão ao self-service, corresponde à partedo capítulo I que trata dahistória do hábito de comerfora no Brasil.

Mônica Chaves Abdala. Professora do Depto. de Ciências Sociais daFAFCS – UFU. Doutora em Sociologia pela FFLCH – USP.

Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos Do tabuleiro aos self-servicesself-servicesself-servicesself-servicesself-services*

Mônica Chaves Abdala

Resumo: Neste artigo, apresentamos um recorte da tese sobremudanças de hábitos alimentares e formas de sociabilidadede famílias mineiras que passaram a tomar suas refeiçõescotidianas em restaurantes self-services, procurando traçar umbreve histórico do hábito de comer fora, no Brasil, comdestaque para Minas Gerais. Por meio da seleção de três cidadesde diferentes portes, buscamos observar o crescimento donúmero de refeições feitas fora de casa, deixando de ser estauma característica apenas de grandes centros e agregandofamílias aos habituais trabalhadores e estudantes, fenômenoobservado a partir da expansão dos restaurantes por quilo econgêneres, no final da década de 1980.

Palavras-Chave: História da alimentação; hábitosalimentares; restauração fora do lar; família; formas desociabilidade.

Abstract: In this article we present a brief history of thehabit of eating out in Brasil, specially in the Minas region. Wehave selected three cities of different sizes to study the increaseof the habit of taking meals out of home. Since the end ofthe 1980’s it is no more characteristic of larges cities only.With the greater number of restaurants selling food “bykilo”, families are now used to take their meals in self-servicerestaurants, a prior habit of only workers and students.

Keywords: History of food; eating habits; food away fromhome; family; ways of sociability.

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1 ABDALA, Mônica C. 1997.Receita de mineiridade: a cozi-nha e a construção da ima-gem do mineiro. Uberlân-dia, Edufu, p.171.

Nosso interesse pelo estudo da comida iniciou-sequando realizamos a pesquisa sobre a importância dacozinha na construção da imagem do mineiro, inspi-rada, de maneira especial, pelos rituais da chamadahospitalidade mineira, cuja tradição, herdada dos hábitosreinóis, consiste em associar o bem receber ao servir mesasfartas. A observação da pródiga exposição e a ofertade alimentos em ocasiões festivas e nos momentosmais corriqueiros do cotidiano estimulou nossa refle-xão sobre a cozinha como espaço privilegiado de con-vívio e relações sociais.

Esse primeiro estudo, que nos conduziu à viagem,percorrendo os séculos passados, buscando recompora urdidura do que se convencionou chamar de tradicionale típico mineiro, possibilitou-nos a percepção de hábitosque se referem a práticas costumeiras, tidas como ideais,reproduzidas de geração para geração como modelocorreto e duradouro, em que se notava o predomíniodas refeições cotidianas realizadas em família, no inte-rior dos lares, costume que atravessou séculos. Alémdestas, até meados dos Novecentos, o banquete, amerenda, o cafezinho com quitandas mantiveram-secomo pretextos de convívio e estabelecimento de rela-ções sociais, acolhendo na casa quem vinha de fora,no calor da melhor hospitalidade herdada da tradiçãoportuguesa. O papel da cozinha e da mulher, atrizprivilegiada nesse domínio, não sofreu alteraçõessubstanciais. Esta última permaneceu responsável pelosrituais que fundamentaram a eleição da hospitalidadee da afabilidade no trato, como traços do perfil domineiro que se delineava. Também na rua, os locaisonde se vendiam alimentos propiciaram o encontro,o convívio, tanto na sociedade do século XVIII, cujanormatização dificultava as possibilidades de regozijocoletivo e quando a necessidade de ordem se combi-nava à imposição de uma dedicação total ao trabalho— que, no mais, era reforçada pela ganância do ouro—, quanto na sociedade ruralizada do século XIX, ondeos contatos se tornaram raros e difíceis.1

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O tardio processo de industrialização em Minas,acompanhado pelo posterior crescimento do setorde serviços nos grandes centros urbanos, certamenteprovocou mudanças nos modos de vida, afetando asrefeições em família. A partir de meados do séculoXX, esse crescimento tem sido característico dasmaiores cidades brasileiras, em que as grandes dis-tâncias, combinadas a precários sistemas de transporte,impuseram a necessidade da restauração fora de casa,pelo menos para boa parte da população, que dependiados transportes públicos para deslocar-se. Na capitalmineira, conforme registraram alguns de nossos entre-vistados, entre as pessoas com funções mais bemremuneradas, ou entre aquelas com maior tempo deintervalo para o almoço, sobretudo nos casos em quese dispunha de veículo próprio, o hábito de tomarrefeições em casa permaneceu até a década de 1980,aproximadamente, quando o caos no trânsito tornou-se realidade e passou a dificultar ou impedir os deslo-camentos.

A partir de meados dos anos 1980 e, de maneiramais acentuada, na década seguinte, mudançassignificativas nos hábitos alimentares cotidianos fize-ram-se sentir mediante verdadeira alteração da paisa-gem urbana, com expressivo aumento do número delugares destinados à alimentação fora de casa, comorestaurantes, bares, lanchonetes, rotisseries e, posterior-mente, restaurantes por quilo. Dados oficiais dessecrescimento figuravam na grande imprensa, dando aexpressão numérica dessas mudanças, com ampliaçãoda ordem de até 100% no número de estabelecimentosde algumas cidades, a exemplo de Belo Horizonte.

A observação mais atenta desse fenômeno emcidades mineiras trouxe uma novidade que instigounossa análise: a presença de famílias inteiras2, de casaisde idosos, de pessoas de várias idades que moramsozinhas, que passaram a freqüentar diariamente osrestaurantes por quilo, fazendo desse hábito uma opçãoe transformando o restaurante na extensão da cozinha

2 Observamos diferentes si-tuações familiares as quaisprocuramos abranger narealização das entrevistas:famílias mononucleares(um único elemento), fa-mílias monoparentais (so-mente um dos pais pre-sente), aquelas formadasapenas por casais e casaiscom filhos — mesmoquando um ou mais mem-bros estavam ausentes nohorário do almoço. Des-tacamos o grande númerode idosos, tanto sozinhosquanto casais.

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doméstica. Propusemo-nos, assim, a compreenderalterações nos padrões alimentares e formas de socia-bilidade das famílias que optaram por almoçar foradurante a semana, realizando uma pesquisa em trêscidades mineiras de diferentes portes3, na perspectivade analisar a hipótese de que a presença desse novopúblico provocava alterações no hábito de comer forae deixava de ser privilégio dos grandes centros urba-nos, motivada pela falta de tempo e dificuldades dedeslocamento.

A concentração desta pesquisa em Minas deveu-seà possibilidade de dar continuidade ao primeirotrabalho, analisando as modificações havidas em rela-ção ao período anteriormente abordado, que abrangeudesde a constituição da capitania das Minas Gerais atémeados da década de 1980, momento em que oestudo foi concluído, e que coincide com a aberturados primeiros restaurantes por quilo.

Nesse quadro, interessou-nos analisar os self-services,comidas rápidas à moda brasileira, que tiveram grandeimpulso a partir dessa época, numa fórmula que asso-cia o padrão do serviço rápido ao tipo de comidahabitualmente consumido nas casas. No presente artigo,recortamos uma pequena parte da análise efetivada,em que traçamos um breve histórico do hábito decomer fora de casa no Brasil, com destaque para oestado de Minas Gerais.

O hábito de comer fora e os primeirosO hábito de comer fora e os primeirosO hábito de comer fora e os primeirosO hábito de comer fora e os primeirosO hábito de comer fora e os primeirosrestaurantes no Brasilrestaurantes no Brasilrestaurantes no Brasilrestaurantes no Brasilrestaurantes no Brasil

No Brasil, o comércio de rua envolvendo alimentosconstituía prática secular. Eram conhecidas as negrasquituteiras com seus tabuleiros desde a Bahia até oRio de Janeiro, desempenhando papel importante nasminas de ouro do século XVIII mineiro, tanto comopontos de abastecimento, quanto de sociabilidade deescravos e homens livres trabalhadores. Também asvendas nas pequenas cidades, nas estradas e na zona

3 As cidades escolhidas fo-ram: duas do interior —uma com população entre20 mil e 100 mil habitantes,a outra com população aci-ma de 100 mil — e a capital;respectivamente MonteCarmelo, Uberlândia e BeloHorizonte.

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rural, têm desempenhado essas duas funções, desde opovoamento do Brasil até nossos dias.

O pequeno comércio de alimentos era garantidoàs mulheres pobres e honestas, como às negras forras,tanto em Portugal quanto nos núcleos urbanos de suascolônias. A possibilidade de sobrevivência dessasmulheres era garantida pela venda de doces, bolos,frutos, queijo, leite, hortaliças e miudezas. O predo-mínio do sexo feminino nessas profissões durou atémeados do século XVIII, quando o declínio da mine-ração liberou os homens para outras atividades, aomesmo tempo que os grandes comerciantes sujeitos apesadas taxações passaram a se opor decisivamente àconcorrência das negras de tabuleiro4. Nas Minas sete-centistas, as reuniões dos consumidores, nas vendas eem volta dos tabuleiros, como também as reuniõesfestivas possibilitaram o estabelecimento de relaçõesde intimidade, pessoalidade e solidariedade. No en-tanto, essas relações causavam incômodo às auto-ridades e provocavam inquietação nas elites, pelo ajun-tamento que se efetivava entre as camadas populares.Esses encontros confrontavam a moral vigente, alémde proporcionarem uma potencial ocasião de contes-tação do status quo, fato que os tornava sujeitos a váriasregulamentações. Figueiredo e Magaldi5 fornecem-nosum quadro da situação:

Espaço preferido para o consumo de mercadorias básicas, as vendas,misto de bar e armazém, atraíam diversos segmentos da populaçãopobre que compunham a sociedade mineira [...]. Além de comprar,estes grupos regados pela ‘aguardente da terra’, inevitavelmenteservida, envolviam-se com brigas, ferimentos e mortes em seu interior.Escravos aí organizavam fugas, além de comercializarem ouro ediamante furtados de seus proprietários. Para as vendas dirigiam-se também negros refugiados em quilombos, em busca de pólvora echumbo para a resistência. Neste ambiente, no entanto, nem tudolembrava violência: bailes, batuques e folguedos atraíam ao localcamadas populares pobres em busca de um lazer coletivo.Confrontando-se com a moral vigente, estas ocorrências eram carac-

4 FIGUEIREDO, Luciano R. deAlmeida, MAGALDI, Ana Ma-ria B. de Mello. 1985. “Qui-tandas e Quitutes: um es-tudo sobre rebeldia e trans-gressões femininas numaSociedade Colonial”. Cader-nos de Pesquisa, São Paulo,Fund. Carlos Chagas, n.54,p.60.

5 Idem, Ibidem, p.52-53.

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terizadas como manifestações de ociosidade pelas camadasdominantes, aspecto agravado ainda mais pela constante presençade prostitutas, muitas das quais fazendo das vendas seu local detrabalho.

As notícias dos primeiros restaurantes brasileirosvêm de relatos de viajantes estrangeiros em visita àCorte, como Debret6, no século XIX. Suas pinturasregistram também a presença das mulheres negras,vendedoras ambulantes de doces, assim como das quefaziam angu em grandes tachos, vendendo-o nas ruas.

Em relação aos restaurantes, lembrando o ano de1817 Debret refere-se a um monopólio italiano, que seestabeleceu a partir do sucesso de um restaurateur dessanacionalidade, que executava refeições magníficas, assimcomo banquetes e serviços particulares, satisfazendoaos hábitos dos europeus que afluíam à capital. Nosseus dizeres:

Encorajados com o êxito do proprietário do restaurante, outrositalianos abriram sucessivamente um certo número de casas decomestíveis, bem abastecidas de massas delicadas, azeites superfinos,frios bem conservados e frutas secas de primeira qualidade [...](Debret,1989:62).

Maria Beatriz Nizza da Silva7, em seu estudo sobreas primeiras décadas do século XIX carioca, dá notíciadas casas de pasto e botequins, com base em anúncios queretirou da Gazeta da época. O serviço das casas depasto podia ser feito em mesas coletivas, cobrando-se por pessoa, ou em quarto separado, para quempreferisse, seguindo o costume europeu. O cardápioera constituído por massas, juntamente com carnescozidas ou guisadas. Jantares para fora também eramoferecidos por essas casas, ligadas ao comércio debebidas, café, bilhar ou a hospedarias, cada um ocu-pando espaço próprio. Uma análise comparativa mos-tra que serviam o jantar, principal refeição do dia, entreuma e duas horas da tarde. Algumas serviam almoços,

6 DEBRET, Jean Baptiste. 1989.Viagem pitoresca e histórica aoBrasil. Belo Horizonte, Ita-tiaia. (Coleção Reconquistado Brasil, 3, Série especial,v.11).

7 SILVA, Maria Beatriz N. da.1978. Cultura e Sociedade noRio de Janeiro (1808-1821). SãoPaulo, Companhia EditoraNacional. p.3-109. (Brasi-liana, v.363).

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constituídos por caldos de galinha, café, frios.8Os botequins serviam petiscos variados e ofere-

ciam jogos, como o bilhar e o gamão. As casas decafé, algumas com bilhares, também constam de regis-tros de estrangeiros. Eram descritas como lugares depreços moderados, cujas porções eram de qualidadeinferior, consistindo de café com açúcar não refinado,leite aguado, pão com manteiga inglesa, um tanto rançosa,e limonadas.9

Os confeiteiros, na maioria italianos, também anun-ciavam na Gazeta, oferecendo jantares, ceias, refrescos,vinhos, massas variadas, conservas, doces, empadas e“pastelarias e confeitarias”. Na História da Alimen-tação no Brasil, Cascudo refere-se aos jantares de eliteda Corte, que eram encomendados às confeitarias fa-mosas da época.

Antes do período novecentista, em relação aocomer fora de casa poucos são os dados sobre a fre-qüência aos restaurantes e outros lugares públicos. Es-tão mais bem documentadas as festas e reuniões sociais,realizadas em salões ou residências, muitas delas ban-quetes, para os quais se contratavam os referidos servi-ços de cozinheiros ou de confeitarias.

No século XIX, as senhoras da Corte recebiam parao chá das cinco, com requintes e rituais aprendidos naInglaterra, conforme descreve Lima10. A casa era ocentro da sociabilidade mais acessível à mulher, res-ponsável pelo espaço privado, em oposição ao ho-mem, incumbido do espaço público, com as atividadeseconômicas, políticas, intelectuais, de comércio oumanufatura. No entender de Lima, no ritual do chá amulher conseguia transcender a condição de coadjuvante àqual estava relegada, obtendo pequenas mas decisivasvitórias no espaço familiar, que ela passava a conquistarcomo seu domínio.

Essa forma de sociabilidade nos banquetes, meren-das e saraus, que ocorriam de maneira privilegiada noespaço doméstico, foi uma característica presente nasociedade brasileira, desde sua formação. Vale lembrar

8 Idem, Ibidem, p.16.

9 LIMA, Tânia A. 1997. “Chá esimpatia: uma estratégia degênero no Rio de Janeirooitocentista”. São Paulo.Revista do Museu Paulista.Nova Série. v.5. p.93-127.

10 Idem, Ibidem.

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que, na Minas do século XVIII, a mulher atuava comoimportante elemento para o desenvolvimento de rela-ções sociais centradas no espaço da casa, responsávelque era pelos verdadeiros rituais que acolhiam os defora — convidados, hóspedes, visitantes — nos moldesda tradição portuguesa. Isso ocorria numa sociedadeextremamente fechada, que protegia suas famílias,principalmente suas mulheres, do grande número dedesclassificados sociais que povoavam os centros mine-radores, restringindo as possibilidades de encontrosàs festas religiosas e àquelas realizadas no lar.11

O século XIX mineiro, momento de concentraçãoda vida nas fazendas, também teve na casa o centrode sua sociabilidade. As vendas continuavam a desem-penhar papel crucial como abastecedoras na zona rurale nas cidades, conservando-se como pontos de encon-tros das camadas de baixa renda. Muitas cidades per-deram o vigor dos tempos da mineração e sua popu-lação, durante a semana, ficava reduzida aos padres,alguns poucos comerciantes e prostitutas.

A nova economia agro-pastoril, no entanto, propi-ciou destaque para algumas cidades com posição privi-legiada de entroncamento comercial. Este foi o casode Juiz de Fora, importante centro comercial mineiropróximo à capital brasileira de então, cujos hábitossociais e culturais inspiravam-se na Corte. Desde ofinal dos Oitocentos até meados do século XX, eramcomuns as reuniões em Confeitarias e Cafés requin-tados, alguns deles associados a hotéis, que receberamnobres em viagem da capital para Ouro Preto e, poste-riormente, presidentes da República, como ArthurBernardes. O serviço de cozinha desses hotéis eraelogiado por ilustres hóspedes, como Arthur Azevedo.Os freqüentadores desses estabelecimentos não eramsó homens, mas também famílias e damas acompa-nhadas de seus maridos. O Café Salvaterra tinha umrádio de válvulas que atraía famílias para ouvir asnotícias e programas de destaque do momento, comoo cantor Francisco Alves e a novela Direito de Nascer.

11 ABDALA, M. Op. Cit.

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A Confeitaria Fluminense, conhecida como “Colombomineira”, era o ponto de encontro da alta sociedade,até a década de 1940. Oferecia banquetes orquestradose era rigorosa com os trajes, exigindo elegância.12

Na nova capital mineira, construída nos últimosanos dos Oitocentos13, os cafés e hotéis também ti-nham sua presença marcada como símbolo de refinamentoe civilização social, tendo o modelo francês como refe-rência14. O historiador Abílio Barreto reproduz osrelatos do periódico A Capital, referindo-se à inaugu-ração do primeiro café, o Café Mineiro, e do primeirohotel da cidade, Grande Hotel, ainda em 1897, inclu-indo o do jornalista Azevedo Jr., que ressalta a arte dochef de cozinha do hotel no manejo da caçarola, aopreparar um filet aux petits pois, como de certo, tu acostumadoao tutu e ao torresmo, não imaginas! (Barreto,1995:636).Quanto ao Café, o historiador afirma:

[...] Na sala do café por ocasião da inauguração e até alta noite,o povo, em torno das mesinhas redondas de mármore, rumorejavaalegremente, entre risadas e cantorias, de mistura com os pedidosem voz alta que iam fazendo os ‘garçons’, para dentro, ao pessoalda copa: — Um café na primeira à esquerda! Uma cerveja naterceira ao centro! Um conhaque na última à direita!

Silveira, em seu estudo sobre os cafés no cotidianoda capital, ressalta que casas de café não faltaram àquelajovem capital dos anos dez e vinte, embora os idealizadoresda nova cidade não as mencionassem em seus planospara o lazer público.15

Barreto cita os restaurantes desde os primórdiosda construção da cidade, quando se formavam osquarteirões em torno da estrada de ferro, acolhendoum movimento crescente de transeuntes, principal-mente aos domingos. Nos seus dizeres: Não faltavamacolá os restaurantes, todos instalados em prédios novos e quasetodos pertencentes a súditos italianos.16

Um outro ponto assinalado para a restauração forade casa, em Belo Horizonte, é o primeiro mercado

12 ARBEX, Daniela; ROCHA,Izaura. 1998. Rua Halfeld. Juizde Fora, Tribuna de Minas.Suplemento comemorativodo 148º aniversário de Juizde Fora.

13 Belo Horizonte foi planeja-da nessa época para substi-tuir Ouro Preto, antiga ca-pital de Minas Gerais.

14 SILVEIRA, Anny Jackeline T.1996. “O sonho de uma ‘petitParis’: os cafés no cotidianoda capital”. In: DUTRA, Elianade F. (Org.). BH HorizontesHistóricos. Belo Horizonte,C/Arte.

15 Idem, Ibidem

16 BARRETO, Abílio. 1995. BeloHorizonte memória histórica edescritiva (História Média).Belo Horizonte, FundaçãoJoão Pinheiro.

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17 FREIRE, Ana Lucy O. 1998.“Comércio e abasteci-mento em Belo Horizonte(1897-1990)”. Caderno de Filo-sofia e Ciências Humanas. BeloHorizonte v.6, n.11, p.50-67.

central, construído em 1900, que contava com umrestaurante e um café, além dos vários boxes para avenda de verduras, legumes, frutas e carnes. O aumentodo movimento econômico impôs a necessidade deconstrução de um novo mercado, que começou afuncionar em 1929, em área central, onde ainda hojese localiza, e para o qual foram projetadas salas maio-res para cafés e bares, conforme relata Freire17. Nosanos 1940 e 1950, devido à saturação das instalaçõesdo Mercado Municipal, foram criados mercados dis-tritais. A autora comenta a importância de todos essesmercados como lugares de abastecimento e de socia-bilidade, que, até os nossos dias, permanecem comocentros de referência para a sociedade local. De acordocom ela,

[...] há tempos tornaram-se pontos de encontro, da festa, paraonde convergem grupos sociais, reforçando o papel que essesestabelecimentos comerciais cumprem na manutenção/resistênciade parte das tradições, hábitos e costumes da sociedade (Freire,1998:65).

Esse modelo, adotado nas capitais brasileira emineira, nas primeiras décadas do século XX, era odas principais cidades européias, como Paris e Londres,em que os Cafés e restaurantes de hotéis eram locaisprivilegiados de encontros, sobretudo das elites,enquanto nos mercados se aglutinava uma parcela maisampla da população.

Por sua vez, a fórmula de refeições rápidas, queno Brasil conhecemos na segunda metade do séculopassado, teve sua origem no período oitocentistaamericano18. No entanto, embora tenhamos assistidoa uma “americanização” de hábitos que, na verdade,não se restringe à alimentação, neste aspecto vemosdesenvolver-se uma solução que investe numa proposta“à moda da casa”, diferente daquelas descritas sobreo comer fora em outros países.

Perguntamo-nos, pois: quando e como se desen-

18 A esse respeito ver Rial(1992). Em nossa tese tam-bém tratamos o assunto(2003:50-56). Aqui não foipossível retomá-lo devidoàs limitações quanto à di-mensão do artigo.

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volveram os restaurantes por quilo e as inúmeras moda-lidades de self-services à moda brasileira, que vieramrevolucionar o cotidiano das cidades, tanto das metró-poles como das menores, do interior?

Comer rápido à moda brasileiraComer rápido à moda brasileiraComer rápido à moda brasileiraComer rápido à moda brasileiraComer rápido à moda brasileira

Nos 30 anos que vão de 1950 ao final de 1970,considera-se que o Brasil construiu uma economiamoderna, produzindo quase tudo e incorporando pa-drões de produção e consumo dos países desen-volvidos. Os avanços produtivos foram acompa-nhados por mudanças no sistema de comercialização,consolidando o supermercado e o shopping center, lojasde departamentos, de eletrodomésticos, revendedorasde automóveis, que foram tomando conta da paisa-gem urbana. Vendas, quitandas (pequenos estabeleci-mentos que vendiam frutas, verduras e alguns outrosgêneros), carroças e pequenos caminhões foram sendoderrotados pelo grande comércio, enquanto as feirasresistiram.19

Nesse contexto, o hábito de comer fora em almo-ços e jantares para políticos, executivos, empresariado,burocratas, enfim, para os novos-ricos, novos-poderosos, no-vos-cultos, acontecia em restaurantes elegantes de comidafrancesa, italiana, árabe, portuguesa, espanhola. Ao ladodestes, uma comida mais barata, como a de pizzarias,rodízios de churrasco, cadeias de comida árabe e can-tinas italianas. Para as refeições rápidas havia as lan-chonetes badaladas e os primeiros fast-food, como oBob’s do Rio de Janeiro (Mello & Novais, 2000). Eramraros os restaurantes de comida brasileira.

O primeiro Bob’s foi implantado em 1952, comoempresa nacional instalada por um americano20, nobairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Logo atraiua elite carioca, que se tornou seu público freqüente.Com 74 lojas, liderou o mercado até 1990, quandofoi suplantado pelo McDonald’s. Quanto a esse último,a primeira loja foi inaugurada somente em 1977,

19 MELLO, João Manoel C. de;NOVAIS, Fernando. 2000. “Ca-pitalismo tardio e sociabili-dade moderna”. In: ___.História da vida privada no Bra-sil: contrastes da intimidadecontemporânea. São Paulo:Companhia das Letras,p.562, v.4.

20 Em 1974, o controle acio-nário dos seis estabeleci-mentos passou para a multi-nacional Libby. Com 12 lo-jas, foi vendido para a Nes-tlé e, finalmente, em 1987,ao grupo Susa (Rial, 1992).

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também em Copacabana, seguida de outra em SãoPaulo, três anos mais tarde21 (Rial, 1992:93-95). Pormuito tempo, os jovens e as famílias de elite perma-neceram como os principais freqüentadores dessesdois estabelecimentos.

Para os que trabalhavam longe de casa e necessi-tavam realizar pelo menos uma das refeições pertodo local de trabalho, bares e lanchonetes serviam oprato feito (PF) ou alguns sanduíches como misto-quente, queijo quente, bauru, pernil, churrasco — comou sem queijo — americano, cachorro quente e, maistarde, os hambúrgueres e batatas fritas. As pastelariasproliferavam.22

Nas cidades pequenas e médias, no entanto, haviapoucos restaurantes, estando o fornecimento de re-feições comumente associado a hotéis e pensões,visando a um público de viajantes, constituído predo-minantemente de representantes comerciais, conformeregistra a memória de muitos dos depoimentos quecolhemos sobre o período. Fora essas opções, ospoucos restaurantes existentes, em geral, só serviamjantares; os almoços predominavam nos finais desemana. Churrascarias e pizzarias eram mais comuns.Havia também aqueles com serviço a la carte, queofereciam pratos como filé à cubana, filé com fritas,supremo de frango ou de filé, filé à parmegiana, dentreoutros.

Dois fatores que contribuíram para o aumento donúmero de refeições fora de casa foram a criação doPrograma de Refeição do Trabalhador – PAT, em 1976,e o serviço de refeição-convênio, com o uso do Ticket-Restaurante, que veio para o Brasil no mesmo ano.

O sistema de Ticket Refeição nasceu na década de1960, na França. Jacques Borel comprou os direitosdo projeto inglês, idealizado por um médico, na décadade 50. Desenvolveu o conceito de refeição-convêniopara o trabalhador, atendendo à demanda de pequenasempresas que não possuíam restaurantes próprios. NoBrasil, o sistema foi o pioneiro nessa área.

21 RIAL, Carmen S. M. 1992. LeGoût de L’Image: ça se passecomme ça chez les fast-food. Thèse (Doctorat enAntropologie Sociale et So-ciologie Comparée) – Uni-versité Paris V “René Des-cartes”, Paris.

22 Embora os autores não ci-tem, havia também o CAOL:cachaça, arroz, ovo e lin-güiça.

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O PAT oferecia seis modalidades de serviços dealimentação, entre os quais a refeição-convênio23, comênfase nos trabalhadores que recebem o equivalente aaté cinco salários mínimos. Analisando os dados doPAT e do estudo de Mazzon24 sobre programas dealimentação do trabalhador brasileiro, percebemos quea quantidade de trabalhadores beneficiados compolíticas de alimentação cresceu de um número inferiora um milhão, em 1977, quando foi implantado, paramais de oito milhões em 2001. Nesse mesmo ano, noestado de Minas, o número de trabalhadores bene-ficiados pelo PAT foi superior a setecentos mil, dosquais 23,86% na modalidade de refeição-convênio,representando aproximadamente ¼ dos benefícios,um índice só superado pela alimentação-convênio25.

Ainda que seja considerado o fato de que umaparte desses vales, relativos aos convênios para refei-ções, tenha sido utilizada, indiretamente, em super-mercados e outros estabelecimentos afins, certamenteparcela significativa do total contribuiu para incre-mentar o mercado de refeições fora de casa.

O número de restaurantes brasileiros conveniadoscontinuou crescendo nos anos 1980 e 1990, acom-panhando um processo de reestruturação produtiva,baseado na concentração de atividades na produção,com redução de custos em setores como transportes,alimentação, manutenção e limpeza, que passaram aser terceirizados. No mundo todo, depois de 1972, arápida contração do emprego industrial acentuou atendência de um notável aumento proporcional do empregono setor de serviços.26

Na região Sudeste brasileira, que concentra o maiorpólo industrial do país, esse processo de racionalizaçãoe reestruturação da indústria transparece nos índicesde trabalhadores beneficiados pelo convênio de valespara refeições, que, em 1996, conforme Mazzon (1998,p.23), representavam 35,2%, comparados a 22,9%,quando somadas as três opções de alimentação ser-vidas na própria empresa. Se somarmos a alimentação-

23 As outras modalidades sãoautogestão (serviço pró-prio), refeições transpor-tadas, administração decozinha, alimentação-con-vênio e cesta de alimentos.

24 Op. Cit. 1998.

25 Dados extraídos de Mazzon(1998:14-23) e Gráficos doPAT 2001 (Disponíveis emwww.mte.gov.br/temas/pat/relatorios_graficos/default.asp.).

26 HARVEY, David. 1998. Atransformação político-e-conômica do capitalismodo final do século XX. In:___. Condição Pós-Moderna.7.ed. São Paulo, Loyola.p.148.

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convênio e as cestas de alimentos ao número de refei-ções-convênio, teremos um total de 77,1% de modali-dades oferecidas para consumo fora da empresa.

As primeiras iniciativas de restaurantes por quilodatam de meados dos anos 1980. No entanto, o siste-ma de auto-serviço é antigo e não se restringe ao setorde alimentação. No caso americano, ele teve início emsupermercados, servindo de modelo aos drive-in, queoriginaram as primeiras grandes cadeias de fast-food. Aprincípio, quando aplicado a restaurantes, o termo self-service designava um sistema que consistia no pagamentode um preço fixo por pessoa, em que cada um podiase servir à vontade. Esse sistema era comum em váriospaíses, em hotéis e alguns restaurantes consideradosde melhor qualidade, que o utilizavam cobrando pre-ços relativamente altos. Atualmente, os proprietáriosbrasileiros referem-se a esse serviço como buffet, vi-sando demarcar diferenciação em relação àqueles quetrabalham com o sistema de pesagem, uma vez que apalavra self-service está muito associada à popularizaçãoda comida por quilo.

De acordo com os precursores mineiros no gênero,os primeiros restaurantes por quilo de Belo Horizonteeram dirigidos às donas de casa e buscavam combinartrês princípios já conhecidos, configurando uma novaproposta: o auto-serviço, a comida vendida por quiloem rotisseries e supermercados, e a “velha marmita”.As novidades estariam, especialmente, na presença dachamada comida caseira no sistema de peso, napossibilidade de escolha do que comer, no pagamentorelativo apenas àquilo que interessasse ao consumidor,evitando-se as sobras. No início, as famílias vinhambuscar marmitas e marmitex, levando-os para casa.O sucesso entre as donas de casa das camadas médiasfoi tanto que, aos poucos, o hábito de levar para casafoi dando lugar ao de comer no próprio local. Evitava-se, assim, qualquer serviço em casa, reunindo as famíliasna nova modalidade de restaurante, que, aos poucos,se tornava uma extensão das cozinhas domiciliares.

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Esse novo costume propiciou uma relação de intimi-dade entre habitués e proprietários, que envolve a soli-citação de pratos da preferência dos membros dasfamílias, uma sopinha para o adoentado, recados echaves para os que comem em horários diferentes eaté “broncas”, particularmente dos mais velhos, quan-do não aprovam alguma comida ou notam a ausênciade algum prato.

A adoção do peso em restaurantes e sua grandeaceitação parecem configurar uma cultura culinária local,exprimindo um conjunto de preferências que manifestapeculiaridades culturais nacionais, seja pela escolha doarroz, feijão, carne e salada tradicionais, em vez dosanduíche, seja porque o consumo realizado no localultrapassa as vendas “para levar”, fato já observadona pesquisa de Rial27, que temos confirmado em nossoestudo. Além disso, como afirma Couto, come-se depreferência à mesa, e não em pé, como os ameri-canos.28

Perguntamo-nos, pois, se os self-services seriam anossa baguete, a manifestação de uma resistênciacultural, à semelhança do que ocorreu com esse pãoartesanal para os franceses29. Lembramos um episódioque ocorreu em maio de 1986, às vésperas da eleiçãopara presidente do Sindicato dos Proprietários deRestaurantes, em São Paulo. Como parte culminantede sua campanha, a oposição promoveu manifestaçãocontra a crescente massificação do hambúrguer, queestaria provocando mudanças em nossos hábitos ali-mentares e culturais, além de representar uma ameaçaeconômica, afetando a sobrevivência dos restaurantes.Propunha aos seus correligionários percorrer as ruasdo centro de São Paulo, parando em frente a umMacDonald’s, onde seriam distribuídas comidas ebebidas consideradas tipicamente nacionais, como chur-rasquinhos, suco de laranja e guaraná. A manifestação,anunciada por um jornal da época como o início deuma guerra do arroz, feijão e churrasco contra o hambúrguer,não teve continuidade, pois o grupo no poder, com-

27 Op. Cit. 1992.28 Uma outra comprovação

dessa tendência está no sis-tema de delis (abreviatura dedelicatessen) à moda norteamericana, que tem cresci-do na cidade de São Paulo.De acordo com Couto(1999), mesmo com embalagenspráticas e pratos pré-preparados,cerca de 70% dos que optam pelasdelis preferem fazer a refeição nolocal.

29 Referimo-nos ao estudo deBertaux (1987) sobre a re-sistência das padarias arte-sanais francesas à ameaça dainvestida das padarias in-dustriais e biscoitos indus-trializados, que, para expan-direm-se, divulgavam umdiscurso dietético conde-nando o miolo do pão tra-dicional como algo que“faz engordar”. A soluçãodos padeiros foi modificaro formato do pão, invali-dando a propaganda e ven-cendo a batalha: mais casca,menos miolo. Assim, a ba-guete surgiu marcando ummomento de força das padariasartesanais.

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posto por membros das grandes cadeias de fast-food,foi reconduzido. No entanto, avaliamos que foi extre-mamente simbólica, já que coincide com o início deuma nova fase para os restaurantes nacionais e para asobrevivência da comida “à moda brasileira”, caracte-rizada pela expansão crescente dos restaurantes porquilo e congêneres.

No Brasil, o hábito de almoçar fora cresceu naúltima década do século XX, apresentando confor-mação inédita, como veremos.

Alimentação fora do lar nos anos 1990:Alimentação fora do lar nos anos 1990:Alimentação fora do lar nos anos 1990:Alimentação fora do lar nos anos 1990:Alimentação fora do lar nos anos 1990:as famílias mineiras vão ao as famílias mineiras vão ao as famílias mineiras vão ao as famílias mineiras vão ao as famílias mineiras vão ao self-serviceself-serviceself-serviceself-serviceself-service

Os números da Associação Brasileira de IndústriasAlimentícias, ABIA, divulgados por Veiga30, dão umanoção do crescimento e importância que a alimentaçãofora de casa assumiu no Brasil, na década de 1990.

Os números da comilançaOs números da comilançaOs números da comilançaOs números da comilançaOs números da comilança• Existem hoje 756 000 restaurantes, bares e similares

no país31 (em 1991, eram 400.000)• 25% do consumo de alimentação já é feito fora de casa

(nos Estados Unidos, 46%)• Uma em quatro refeições é feita na rua (nos EUA,

metade; na Europa, cinco em sete)• Em 1997, esse mercado movimentou 13 bilhões de

reais, o dobro de quatro anos antes• Nos últimos doze meses, a venda de refeições semi

prontas cresceu 15% e a de fast food, mais de 10%• Os novos shopping centers estão ampliando de 16%

para 25% o espaço destinado à alimentação.

Os índices do estado de Minas seguem a tendêncianacional, como pudemos observar em nossa pesquisarealizada em três cidades mineiras de diferentes portes.Em Belo Horizonte e Uberlândia, no período entreos dois censos, de 1991 a 2000, a quantidade de restau-rantes aumentou mais do que a população. Nessa últi-ma cidade, houve um crescimento da população de

30 VEIGA, Aida. 1998. “Bye, bye,fogão”. Veja. São Paulo, p.77.

31 Esses dados são relativos aoano de 1997, quando osrestaurantes representavam68% dos pontos de vendade serviços de alimentaçãono país (ABIA, 2000, p.33).

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36,5%, enquanto o número de restaurantes cresceu69,5%, liderado pela comida por quilo. Na capital, ocrescimento populacional do período foi de 64,3%,correspondendo a um considerável aumento de176,12% no número de restaurantes. Em MonteCarmelo, o número total de estabelecimentos manteve-se em torno de 8 a 10, no período entre os dois censos,enquanto a população teve um aumento de 26,5%.Em relação aos serviços por quilo, o total também semanteve, mas é evidente a mudança no público diáriodos dois restaurantes da região central, que, a partirdos últimos anos da década de 1990, passaram a aco-lher famílias em número crescente.32

Crescimento populacional das cidades pesquisadasCrescimento populacional das cidades pesquisadasCrescimento populacional das cidades pesquisadasCrescimento populacional das cidades pesquisadasCrescimento populacional das cidades pesquisadasCidades pesquisadas Censo 1991 Censo 2000 Crescimento (%)Belo Horizonte 2.013.257 3.308.070 64,3Uberlândia 366.729 500.488 36,5Monte Carmelo 34.703 43.894 26,5Fonte: BESSA (2001), IBGE (1991, 2000).

Número de estabelecimentos (restaurantes,Número de estabelecimentos (restaurantes,Número de estabelecimentos (restaurantes,Número de estabelecimentos (restaurantes,Número de estabelecimentos (restaurantes,churrascarias, pizzarias e cantinas)churrascarias, pizzarias e cantinas)churrascarias, pizzarias e cantinas)churrascarias, pizzarias e cantinas)churrascarias, pizzarias e cantinas)Cidades pesquisadas 1991 2000 Crescimento (%)Belo Horizonte 1340 3700 176,12Uberlândia 190 322 69,5Monte Carmelo 10* 8 —Fonte: Pesquisa direta nas prefeituras das três cidades, 2001/ JuntaComercia de Belo Horizonte.* O número fornecido foi relativo à década de 1990, não ao ano de 1991.

Vale lembrar o fato de que, nos anos 1990, osplanos econômicos, baseados no congelamento depreços e numa política de contenção da inflação,possibilitaram o crescimento do setor de serviçospessoais, em geral, e a ampliação de seu acesso a umamaior parcela da população. No início dessa década,reportagens com proprietários de self-services apontavamo congelamento de preços como fator de crescimento

32 Dados de Uberlândia eMonte Carmelo extraídosde Bessa (2001) e de infor-mações das prefeituras dasduas cidades. Para BeloHorizonte, consultamos oscensos do IBGE e a JuntaComercial da capital.

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do consumo, ainda que a política econômica entãodesenvolvida pudesse significar a inviabilização de suaatividade, em razão do fato de que o aumento depreços dos insumos não poderia ser repassado aosconsumidores. Esse crescimento de consumo tambémpode ser notado no primeiro Plano Real, com a redu-ção da inflação.

No final da década, quando houve redução da taxade crescimento da economia e do consumo, os relatosde alguns donos de estabelecimentos que entrevistamosexpunham uma queixa generalizada relativa à dimi-nuição da clientela, atribuída a um aumento do custode vida e ao insucesso do segundo Plano Real. Afir-mavam haver um esforço de manutenção do mesmopreço por quilo, desde o início do primeiro Plano,alguns deles efetuando malabarismos para manter aqualidade, outros reduzindo claramente a quantidadede pratos, sobretudo a variedades de carnes, visandomanter ou reconquistar a clientela e sua própria sobre-vivência.

Seja qual for o impacto da possível redução donúmero de consumidores, configurando um declíniodos áureos dias de seus restaurantes, a quase totalidadedos proprietários mineiros que entrevistamos continuaapostando que o self-service veio para ficar. Os índicesque nos apresentaram para a proporcionalidade dasfamílias habituais no consumo diário justificam, nonosso entender, esse prognóstico otimista. As famíliasconstituem o público mais oscilante, às vezes retor-nando ao costume de cozinhar em casa, mas, aindaassim, representam uma média que varia de 10 a 40%,em alguns casos, ultrapassando os 50%, do total diáriode consumidores. Essa percentagem varia de acordocom a localização do estabelecimento, sendo maiorquando ocorre num bairro residencial. Nas áreas ondeexiste maior concentração de comércio e serviçospredominam os trabalhadores desses setores, ao passoque, próximo aos campi de Universidade, estudantese funcionários constituem a maioria dos habitués.

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Outros fatores reforçam essa previsão otimista. Oaumento do número de restaurantes que retomam oantigo sistema de buffet comprova a necessidade deadequação a um mercado bastante competitivo, aten-dendo a uma clientela diferenciada, de maior poderaquisitivo. Por outro lado, o surgimento de serviçospopulares para atender camadas de baixa renda, noestilo R$ 2,50 ou R$ 2,99, aproximadamente, demons-tra o esforço do setor para se manter, à medida quesão realizadas adaptações na fórmula self-service: paga-se preço fixo e come-se à vontade, mas há limitespara o consumo de carnes. Alguns restaurantes utilizamos dois sistemas, preço fixo e pesagem, atraindo umaclientela mais ampla e diferenciada.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

Associar práticas tradicionais e modernas pareceresultar em fórmula de sucesso, visível através da mu-dança na paisagem urbana provocada pelo aumentodo número desses estabelecimentos. A principaljustificativa desse crescimento, na visão de proprietáriose freqüentadores que entrevistamos durante a pesquisa,reside na dificuldade em conseguir mão-de-obra paraserviços domésticos, sobretudo relativos à cozinha, eno custo atual dos salários. Outros aspectos apontadosforam a falta de tempo de pessoas que trabalham, orelativo baixo custo do quilo, a grande variedade deopções e a praticidade. Destacamos, ainda, as decla-rações de algumas mulheres, cuja opção por comerfora constitui uma clara rejeição às tarefas culinárias eà atribuição histórica destas como femininas.

No caso que estudamos, comer fora tornou-seopção preferencial de mulheres que pretendiam ficarlivres do papel tradicional associado à cozinha que, naverdade, envolve todo um encadeamento de ope-rações, como a escolha e compra dos alimentos, aprogramação dos menus, sua preparação e, finalmente,a limpeza da cozinha e da louça depois da refeição33.

33 Alguns aspectos, como osrelativos ao uso de fornosmicroondas e comidas con-geladas e à reordenação dotrabalho doméstico, já tra-tados em outros artigos(1999, 2001), nào serão reto-mados aqui. No entanto, éinevitável a referência a al-gumas de nossas conclu-sões neles apresentadas.

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34 DUTRA, Maria Rogéria C.1991. A boa mesa mineira: umestudo de cozinha e iden-tidade. Dissertação (Mestra-do em Antropologia Social)– Museu Nacional, Univer-sidade Federal do Rio deJaneiro, Rio de Janeiro.

35 GIARD, Luce. 1997. “Cozi-nhar”. In: CERTEAU, GIARD;MAYOL. A invenção do cotidiano2, Petrópolis, Vozes.

36 Idem, Ibidem, p. 151.

Assim, decidiram convencer suas famílias a aceitar anova proposta, cabendo-lhes, geralmente, a escolhados lugares e, consequentemente, das opções de comi-da. Isso significou um novo tipo de responsabilidadeque poderia libertá-las de parte de sua carga e de umdos principais motivos de conflito familiar à mesa,segundo Dutra34, e do maior motivo de queixa damulher francesa, de acordo com Giard35: atender osgostos individuais heterogêneos dos membros dafamília. Além do mais, se concordamos com Mennellet alii há, nesse ponto, uma questão que não deve sersubestimada, pois satisfazer as preferências do maridoe das crianças lhes confere um poder que sublinha oslimites da autonomia doméstica das mulheres.36

A presença de famílias inteiras, o significativo nú-mero de pessoas idosas, ou mesmo de homens emulheres de variadas idades que vivem sozinhos, quefaziam suas refeições do dia-a-dia em casa até o inicioda década de 90 e transferiram-nas para esses estabe-lecimentos, deve-se ao fato de que o self-service aparececomo uma proposta diferenciada de comer fora decasa, em relação a outras, pelo conjunto de elementosque combina: rapidez, preço, praticidade, variedade erefeição verdadeira37. Assim, representa um lugar e umtempo de comer, sobretudo para as camadas médiasurbanas, redefinindo espaço e tempo à medida quesão deslocados da casa para o restaurante, que se tornauma extensão da cozinha doméstica, como afirmamosanteriormente.

De um lado, temos uma identificação desses luga-res com a casa, que se expressa na escolha de locaisque servem uma comidinha caseira, à qual as pessoasafirmam estar habituadas, na preferência por casas quelembrem ambientes familiares, na “demarcação” demesas especiais e na relação de proximidade e con-fiança estabelecida com donos e trabalhadores doslocais frequentados. Por outro lado, não podemosperder de vista a outra face da moeda: a perda de pri-vacidade. A imagem dessa perda, na medida em que

37 Nas representações dosconsumidores uma refei-ção verdadeira consiste dearroz, feijão, carne e acom-panhamentos e se opõe aoslanches e snacks, conformediscutimos na tese. A esserespeito, baseamo-nos emRial (1992).

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se come em público, está relacionada com as formasde civilidade características desses locais: compor-tamento não agressivo e normalizado, uma roupa paracada ocasião, lugar da representação, onde o silêncio eos gestos discretos há muito assumiram o papel deobstáculos à expressão plena da intimidade, conformeobservou Sennett.38

A análise de Maciel sobre o churrasquear gaúchotraz elementos à compreensão dessa outra face, noque concerne à redefinição da sociabilidade familiarnos restaurantes, onde, no entender da autora, não épossível reviver sua forma. Trata-se de estabeleci-mentos comerciais nos quais, por mais que sejabuscada a recriação do ambiente cultural ao qual pratose costumes estão associados, não há possibilidade dereviver os espaços e condições adequados à realizaçãode toda uma ritualização característica da refeição feitana casa.39

No universo que analisamos, proprietários e fre-qüentadores são unânimes em afirmar que self-servicessão lugares onde a permanência é rápida. Em nossasobservações percebemos que a média de tempo,desde a chegada até a saída, varia em torno de 30 mi-nutos. São poucas as pessoas que ficam por mais tem-po, mesmo porque a própria lógica do lugar exigecirculação ágil e mesas permanentemente disponíveis.Assim, forma e conteúdo das refeições são redefinidosnum mundo em que homens e mulheres vivenciamnovos arranjos familiares, e em que a reestruturaçãodas relações entre os sexos é uma realidade. Dessaforma, a reprodução do processo vital deixa de serassociada unicamente ao espaço doméstico. Passa-semenor tempo em casa, ocupando-o com a TV, comformas variadas de lazer, com cuidados relativos àprópria educação ou à dos filhos e filhas — que envol-vem um crescente número de atividades. A prioridadedada às carreiras profissional e educacional, assimcomo a dedicação ao cuidado de si, exige a liberaçãode algum tempo que, para aqueles que optam por

38 Discussão retomada deAbdala (1999:91-92).

39 MACIEL, Maria Eunice. 1996.“Churrasco à gaúcha”. Hori-zontes Antropológicos. PortoAlegre, n.4, p.34-48.

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comer fora, é o tempo da cozinha. Uma vez que oato de se alimentar envolve convívio, prazer, sabor,momento ritual e simbólico, essas características devem“migrar” para o espaço do restaurante, adequando-se ao tempo de sua realização no novo local. Os self-services tornam-se espaços onde parte da cena familiarcotidiana vai ser vivenciada. Em contrapartida, a casaassume centralidade nos finais de semana ecomemorações especiais, momento de descansar darotina dos restaurantes e reviver a ritualização darefeição e de sua preparação.