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DO TEXTO AO DIGITAL: MÚLTIPLAS LEITURAS

Ângela Junquer1

Elizena Cortez2

A problemática da leitura O livro é um objeto material e o seu discurso pertence ao seu autor. Pode ser

considerado uma obra intelectual e estética e a forma material é que proporciona o reconhecimento da sua identidade enquanto obra, como livro e distinto de outros textos. Com o advento da tecnologia, o livro eletrônico muda essa definição permanecendo a dimensão estética do texto, mas desaparecendo a material. Dessa maneira a forma do livro desaparece, pois lemos pelo computador, pelo tablet e por outros meios eletrônicos.

A leitura, após o aparecimento dos novos suportes eletrônicos e que é definida pelos seus suportes, passa a apresentar grandes diferenças proporcionando nova percepção da cultura escrita em sua abrangência geral. Vários filósofos e historiadores refletiram e até hoje, discutem a problemática da leitura em seus diferentes suportes.

Para Chartier (2001), o problema da leitura é central. Por muito tempo, as inúmeras abordagens que se faziam sobre o tema eram compartimentadas e havia poucos diálogos instaurados entre sociólogos e psicólogos – sociólogos e historiadores ou historiadores da literatura. Bourdieu acrescenta que ao pronunciar a palavra leitura, esta deverá ser substituída por palavras que designam toda a espécie de consumo cultural. Ao abordar uma prática cultural, interrogarmo-nos como praticantes dessa prática.

Somos todos leitores e corremos o risco de atribuir à leitura multidões de pressupostos positivos e normativos. Bourdieu (2001) com essa reflexão nos faz lembrar a oposição medieval entre auctor e lector; o auctor é aquele que produz ele próprio e cuja produção é autorizada pelas auctoritas, a de auctor, o filho de suas obras, célebre por suas obras. Já o leitor é alguém muito diferente, alguém cuja produção consiste em falar das obras dos outros. A posição do leitor é a que leva o maior conjunto de pressupostos, nas análises da leitura e de seus usos sociais.

A leitura não é em todo tempo um ato de foro íntimo, que nos leva à individualidade, porque essa situação de leitura não foi sempre dominante. As relações com os textos passaram por leituras coletivas entre os séculos VII e XVIII, quando eram manipulados e decifrados por uns para outros, muitas vezes superando a aptidão individual de leitura.

É a consequência das circunstâncias que o leitor é produzido e quando este toma consciência desta ação pode escapar dos efeitos deste fato, o que proporciona uma função epistemológica à reflexão da história da leitura.

1 Graduada em Letras pela PUC-Campinas. Integrante da equipe pedagógica do Correio Escola Multimídia. 2 Mestranda na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante da equipe pedagógica do Correio Escola Multimídia.

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Segundo Pierre Bourdieu (2001), os intelectuais muitas vezes se esquecem do poder do livro sobre a transformação social do mundo e do próprio mundo social e declara:

...leitura é produto das circunstâncias nas quais tenho sido produzido enquanto leitor, o fato de tomar consciência disso é talvez a única chance de escapar ao efeito dessas circunstâncias. O que dá uma função epistemológica a toda reflexão histórica sobre a leitura. (Boardier, 2001, p. 234)

O funcionamento das capacidades de leitura varia historicamente. Os livros de

diferentes épocas indicam a evolução da história da leitura quando indicam o momento, os leitores e demarcam os textos.

A leitura apresenta significativa diferença em relação às práticas culturais, apesar de seguirem as mesmas leis, a leitura é ensinada pelo sistema escolar que se sobrepõe ao da origem social. O sistema escolar colabora para a destruição da leitura como informação e produz outros tipos de leitura. Esses diferentes tipos orientam inúmeros pré-saberes que nem sempre se apresentam relacionados, mas que podem orientar a leitura.

Retrospectiva histórica da leitura e as relações sociocomunicativas

A história da leitura é marcante e vem se modificando nos diferentes lugares em que ela

atua. Ao imaginá-la como uma prática de extrair informação de um texto é necessário contextualizá-la aos fatos da sua história passada e ao seu presente. Ela retrata uma prática cultural imediata, que parece não ter sido modificada e permanece semelhante à que temos na atualidade. Do século XVIII camponês ao século XIX em que se conhecia uma pluralidade de usos coletivos e individuais das formas de ler, constata-se que estas não estavam separadas das práticas de escrita ligadas à leitura.

O leitor dará um sentido mais ou menos singular dos textos que se apropria a partir de suas referências de leituras individuais ou sociais, históricas ou existenciais. O que define qual deve ser a interpretação correta de uma obra é o protocolo de leitura e orientações prévias. O leitor de José Saramago não é o mesmo de Clarice Lispector, cada qual traz no bojo de sua história de leitura as referências culturais que lhes são peculiares.

Partindo da História Cultural, Chartier (2001) afirma que é necessário compreender o passado para entender o presente, um diálogo da história da leitura que busca interpretar as novas práticas de leitura hoje, quando espaços tecnológicos invadem a vida do leitor de uma maneira intensa. A definição da interpretação correta e uso adequado do texto pelo protocolo de leitura busca o leitor ideal ao mesmo tempo em que traça a sua trajetória como leitor.

O livro começa a desempenhar um papel fundamental na sociedade de acordo com sua retrospectiva histórica, a partir da necessidade de instrução da população no século XVI e da implantação de escolas públicas. Nesse cenário, a leitura que antes era restrita à esfera clerical passa a ganhar espaço dentro do ensino.

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A partir da “Biblioteca Azul”3, que foi um movimento significativo de leitura do século XVII, é possível rever a sua história, uma vez que esse movimento atingiu uma grande parcela de leitores das camadas mais populares da sociedade da época.

Para se atingir as camadas mais populares de leitores foi necessário fazer uma adaptação das obras originais, por isso uma matriz cultural foi implantada. Escolhiam-se entre os textos já editados aqueles que se julgava mais adequados ao grande público. Os impressores (Troyes) deveriam estar em consonância com as competências culturais de seus leitores e as obras deveriam estar ligadas ao cotidiano com narrativas que empregavam temas comuns, acessíveis à cultura popular.

A prática da leitura sofreu muitas transformações desde os livros azuis no século XVII, passando pela leitura oral dos pintores e iluminadores até a leitura dos livros folheados no qual o leitor manuseava suas páginas. Já no final do século XVIII a impressão dos livros deixou de ser uma atividade artesanal para se transformar em uma produção empresarial uma vez que a clientela de leitores crescia. O fortalecimento da escola e a obrigatoriedade do ensino foram responsáveis pelo desenvolvimento da habilidade da leitura.

Somente na segunda metade do século XIX é que começaram a se formar leitores no Brasil, época em que o Rio de Janeiro era sede da monarquia e a cidade já contava com livrarias, bibliotecas e tipografias. Assim com a implantação da imprensa e o crescimento das escolas, a leitura se fortaleceu no país e cresceu a necessidade de informação da sociedade.

Após essa breve retrospectiva da leitura pode-se olhar hoje ao longo da história e refletir sobre as afirmações da socióloga Bárbara Freitag (2004) e do historiador cultural Roger Chartier, que questiona sobre a possibilidade do fim do livro em favor dos novos suportes e novas tecnologias. A autora afirma que:

“O livro persistirá enquanto houver leitores. Por isso o anúncio do fim do livro pressuporia o fim da cultura, o fim da cultura letrada, o fim da humanidade”.

Esse tema é motivador, pois em pleno século XXI ainda se questiona o fim do livro

impresso ou códex, e a sua substituição pelo livro eletrônico. Mas segundo os autores mencionados acima, o mais provável será a interação entre esses dois suportes, porque na era da comunicação o cenário social se vale desses recursos para exercer o seu domínio entre o escritor e o leitor.

Chartier afirma que a coexistência não será necessariamente pacífica entre as formas impressa e eletrônica nesse novo cenário tecnológico da leitura, mas as questões relativas à leitura na Internet apresentam também desafios diante das novas práticas. Estas possibilitam um trajeto de leitura pelas janelas do hipertexto e um comportamento de leitura do texto

3 A “Biblioteca Azul”, série editada em Troyes, ao longo do século XVII, que reunia textos bem diferentes entre si, não exclusivamente populares, mas todos uniformizados em edições que pretendiam baratear ao máximo seu custo e alcançar o maior número possível de leitores. Pécora, Alcyr, Práticas de Leitura, 2001, p. 11, Estação Liberdade.

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virtual diferente daquele resultante da interação com textos impressos. Além disso, abre um precedente para concebermos a revolução do texto eletrônico não como um inimigo mortal do texto impresso, mas como uma possibilidade para a indestrutibilidade do texto e para a preservação dos suportes textuais, que antecederam o texto eletrônico como os livros e documentos históricos.

Novo leitor e novas competências de leitura

O novo leitor traça seu próprio roteiro de leitura interferindo, modificando e reinventado

a mensagem. Argumenta que cada ação realizada diante das práticas de leitura apresentam determinados efeitos sociais.

As ações resultam em movimentos cognitivos e discursivos, traduzidas em modalidades diferentes, o que sugere que a palavra leitura seja pluralizada, apresentando outro significado que a define como prática cultural.

Magda Soares (2002), doutora e livre-docente em Educação pela UFMG, afirma que hoje temos uma transposição do livro para a tela, sugerindo uma leitura linear do texto. O conteúdo na tela é apresentado de forma não sequencial, linear, permitindo ao leitor uma diversidade de caminhos para a realização da leitura de um único texto.

Esse texto chamado de hipertexto, um modo de enunciação digital, que apresenta uma relação interarticulada entre textos na internet e constitui-se como uma das muitas possibilidades de leitura hoje.

Dessa forma, o leitor cria suas próprias trajetórias de leitura, rompendo com esquema tradicional imposto pelo autor. Segundo Lévy (1999, p. 56), “um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. A página do texto impresso torna-se uma unidade estrutural enquanto o hipertexto, ao contrário, apresenta uma dimensão que o leitor lhe quer dar.

O conteúdo do texto é modificado por uma opção do leitor e permite conectar a outros trabalhos anteriores. As diferentes formas de acesso e de consulta mudam essencialmente o conceito tradicional do livro. A tela torna-se espaço de escrita, o que expressa mudanças significativas na interação entre escritor e texto, entre escritor e leitor e entre leitor e texto. O ser humano, como ser social passa a expressar suas emoções e sentimentos de forma mais ampla que reflete no conhecimento adquirido.

Possibilitar práticas de leitura e letramento constitui-se como competências do leitor que trabalha as atividades formadoras do pensamento, da aquisição da linguagem e da obtenção do conhecimento e da cultura. Como Silva (2003, p. 14) afirma, “uma dimensão fundamental do projeto de cidadania, que é a formação - e não o simples “adestramento” – de sujeitos sociais com condições objetivas para satisfazer as suas necessidades informacionais e participar dignamente dos destinos da sociedade”, leva-nos a refletir sobre o papel do letramento digital.

O letramento digital pode ser considerado fruto das mudanças sociais, cognitivas e discursivas que vieram com a aplicação dos novos suportes textuais. Essas mudanças na

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forma de ler, infelizmente, não atingiram a realidade das escolas brasileiras que estão à margem da utilização das tecnologias apresentadas à sociedade contemporânea.

O mundo constituído por sujeitos que estão excluídos do letramento digital podem ser considerados leitores do “Antigo Regime, do século XVII e XVIII”, que não tinham acesso aos textos da elite. Baseado nessa ideia, podemos comparar os leitores que são direcionados hoje para a utilização de serviços online e que não possuem educação digital para exercer a habilidade necessária para trabalhar com os novos aparatos tecnológicos. São encaminhados, muitas vezes por órgãos públicos, para realizar atividades virtuais que lhes são solicitadas, mas nem sempre possuem um suporte tecnológico para tal ação. Em outros casos o suporte foi adquirido, mas estão longe de saber utilizá-lo corretamente e a sua situação econômica não permite acesso à Web.

E, muito especialmente, a possibilidade que a Internet nos abre para subverter os aparatos do poder, pois ali não existe controle da comunicação, nem de governos, nem de empresas, nem de instituições educacionais. No mundo virtual, a comunicação falada e escrita, ou lida é horizontal, livre e democrática: talvez resida nisso a possibilidade maior de instauração de um certo tipo de cultura entre os homens que pelas práticas de leitura – aqui tomada como uma atividade estruturante do pensamento – poderão de agora em diante, viver mais intensamente a criatividade e liberdade.(SILVA, 2003, p. 16)

A possibilidade da utilização dos suportes digitais para aqueles que usufruem da

tecnologia, proporciona a socialização de pessoas que estão distantes geograficamente, mas por outro lado individualizam e isolam o leitor em seu espaço de leitura. Num mesmo local podemos encontrar leitores isolados, que não trocam uma única palavra entre si e cenas onde crianças utilizam-se de suportes tecnológicos, muitas vezes de seus pais, que lhes são oferecidos nos momentos em que eles precisam ficar concentrados na atividade que estão realizando e não querem ser incomodados pelos seus filhos.

O movimento social e a cultura passam por nova relação entre os indivíduos e os seus saberes. A cibercultura provoca mutações gerando na educação e na formação dos leitores formas de interação com os computadores e às redes. Sendo assim o desenvolvimento do ciberespaço pode modificar a estrutura do espaço urbano e provocar uma reorganização do território. As tecnologias passam a implicar em diferentes manifestações culturais.

O papel das tecnologias digitais para os movimentos sociais

O movimento decorrente que surge das manifestações culturais oferece outras formas de

comunicação que modifica os ambientes de dados dos indivíduos e consequentemente de seus grupos. Por esse mecanismo ativo de interação – a comunicação - a consciência da situação social é alterada pelos novos contextos e memórias locais, que emergem nesses ambientes modificados.

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Em outras décadas, os movimentos de vanguarda denunciavam e protestavam a situação social, econômica e política vigente na época. Estes foram porta-vozes dos sonhos e desejos da juventude passada. Hoje aqueles que denunciam a cibercultura passam pelo mesmo processo e em nenhuma das situações acabou-se com os problemas denunciados, no entanto, muitos dos problemas foram minimizados ou solucionados. Levy (1999) define cibercultura como:

O conjunto de técnicas “matérias e intelectuais”, de práticas, de odos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. (1999, p. 17)

Hoje as vozes atuais não se apagarão como se verificou em sociedades orais e escritas,

onde as ideias defendidas não eram muitas vezes perpetuadas. No ciberespaço essas vozes apresentam amplitude maior e irão continuar ressoando, o que provocará novos questionamentos e novas respostas. Esse mecanismo fundamenta-se na obtenção de novas informações inseridas em um ecossistema de dados. Segundo Lévy (1999), ciberespaço refere-se ao “novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores”. (1999, p. 17)

As novas ideias que provem desse ecossistema de coleta de informações proporcionam a revitalização da ideia de “inteligência coletiva”. Esse termo que não é novo, diz respeito a um princípio em que as inteligências dos indivíduos são reunidas e compartilhadas pelo grupo maior, ou seja, pela sociedade. As novas gerações passam a utilizar as mídias sociais, potencializando o seu poder de ação pelo uso intenso da internet.

Ao compartilhar a memória, a imaginação e a percepção, o resultado da aprendizagem se torna coletivo e há a transferência de conhecimento. Surgem assim os “ecossistemas de ideias”, onde as informações são cruzadas e passam por seleção por cada membro do grupo.

Essa inteligência coletiva ainda está em início do processo e há necessidade de definir um campo de interesse, de se conectar, de coletar e filtrar os dados e criar uma plataforma de “curadoria” para preservar as informações e reavaliá-las.

Vários escritores influenciaram a ideia de “inteligência coletiva”, mas foi o cientista Pierre Lévy (1994) que abordou a questão da inteligência coletiva afirmando que todos em suas individualidades, possuem conhecimentos e inteligência. Para o filósofo, a inteligência se refere “às faculdades humanas constituídas no decorrer da vida de cada indivíduo, incluindo suas experiências, capacidade de perceber, lembrar, aprender, imaginar”. Reafirma que ignorar a inteligência humana é um ato de ignorância.

Essa nova forma de linguagem e uma nova tecnologia de comunicação, pesquisadas nos laboratórios de tecnologia digital já são consideradas responsáveis pelos avanços futuros na produção do conhecimento. Nesse ambiente de interação entre tecnologia, informação, linguagem e comunicação é que a inteligência coletiva passa a funcionar.

Com efeito, os meios de comunicação contemporâneos instauraram uma ecologia de mensagens muito diferente daquela que prevaleceu até a

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metade do século XX. Certo, não nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações e a rapidez das circulações são tais que os atores da comunicação não têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto. Daí, a pressão de universalidade e a queda de objetividade. Como o tinha pressentido McLuhan, reencontramos, mas sobre uma outra órbita, a um nível de energia superior, certas condições de comunicação que reinaram nas sociedades orais. A história cruzada de suportes materiais e da relação ao saber poderia ser esquematicamente representada pelas interferências e os cavalgamentos de quatro ideais-tipos. Primeiro tipo: nas sociedades anteriores à escritura, o saber prático, mítico e ritual foi encarnado pela comunidade viva. Quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Segundo tipo: com o advento da escritura, o saber é carregado pelo livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente, suposto que contém tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados, os clássicos, Confúcio, Aristóteles. Terceiro tipo – desde a prensa até essa manhã: aquela da enciclopédia. Aqui, o saber não é mais carregado pelo livro, mas pela biblioteca. Ele é estruturado por uma rede de remissões, perseguida talvez, desde sempre, pelo hipertexto. A desterritorialização da biblioteca a que assistimos hoje não é talvez senão o prelúdio à aparição de um quarto tipo de relação com o conhecimento. (LÉVY, 1999, p. 35).

As novas mídias proporcionam armazenamento de dados que permitem que elas sejam

compartilhadas. A inteligência coletiva é frequentemente relacionada aos meios de comunicação, pois se vale do compartilhamento de dados para promover a interação dos indivíduos dos grupos sociais.

Com o crescimento das tecnologias digitais de informação e comunicação a ressignificação da leitura imposta pelos novos suportes tecnológicos ressalta a ampliação do compromisso do escritor e dos leitores virtuais que pertencem a grupos, que compartilham informações, portanto se valem da inteligência coletiva.

Constata-se que inúmeras vezes, o leitor apropria-se dos textos veiculados digitalmente possibilitando a construção de “verdades”, que são atribuídas a escritores que nem sempre refletiram sobre o tema mencionado. Por outro lado, cabe aos escritores a tarefa de fazer com que os seus registros não se descontextualizem e nem se percam no momento que forem transmitidos por outras pessoas. A internet produz as mensagens e é preciso que o internauta ao interagir com os textos e hipertextos possa interagir, modificar, preservando a ideia original do texto.

A partir das reflexões das ideias apresentadas por Pierre Lévy e observando pela ótica da inteligência coletiva, os movimentos sociais são exemplos marcantes. Na atualidade, a internet vem colaborando para que as manifestações, que antes eram marcadas pela significância das ruas, passem a se estruturar no ciberespaço, pelas trocas de informações virtuais e se materializem novamente nas ruas e avenidas, principalmente das grandes cidades.

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Essas manifestações que se utilizam de ferramentas de comunicação dão aos seres humanos a possibilidade de usufruírem das qualidades da internet, como velocidade, facilidade das informações e conhecimentos para ativar o poder de comunicação com mais facilidade.

Os movimentos gerados virtualmente caracterizam pela insatisfação de uma parcela da sociedade global, apresentando maior ou menor organização. Em muitas manifestações a continuidade dos movimentos depende também das contradições existentes entre os membros que constituem o núcleo organizacional. Apresentam heterogeneidade e podem ser apontados como ações coletivas, sendo os manifestantes considerados como atores sociais de diferentes classes sociais, ou não.

A informação pela internet é produzida e compartilhada democraticamente na sociedade em rede. Muito pensadores consideram a internet um fator de isolamento do indivíduo, como já dissemos no decorrer do texto. Mas este meio de comunicação também foi utilizado para unir as pessoas em vários momentos de mobilização social. Os aparelhos móveis como notebooks, tablets e celulares e as redes sociais, como Facebook e Twiter são instrumentos que possibilitam e promovem a ação de ativismos. Dessa forma, podemos afirmar que as redes sociais funcionam como ponto de partida para as manifestações da sociedade em rede.

Nas décadas de 1960 e 1980, intelectuais e cientistas incentivaram a prática dos movimentos sociais. Muitos ambientalistas, políticos e funcionários públicos chamaram a atenção da sociedade, em vários pontos do mundo para os problemas sociais, ecológicos econômicos advindos de questões que sempre estiveram presentes na vida dos cidadãos.

Em seu artigo “Egito e Síria: o papel das tecnologias digitais na Primavera Árabe” Heitor Gartner cita que:

Notadamente, a ocorrência do movimento tem relação com a crise econômica global de 2008, gerando agravamento da pobreza e a elevação de preços. Nos atos de revolta, têm se destacado técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas, envolvendo recursos como Facebook, Twiter e Youtube. Preocupado com as manifestações, o governo egípcio suspendeu a Internet e a telefonia móvel. Sob a perspectiva política, apontam-se regimes corruptos e autoritários como aspectos motivadores do movimento, informação revelada pelo vazamento de informações constantes em telegramas diplomáticos dos Estados Unidos e divulgados pelo Wikileaks.

A internet passou a ser então a base tecnológica organizacional da era da comunicação,

como a eletricidade foi para a era Industrial. As redes sociais podem ser consideradas como ferramentas de comunicação e organização e com a internet cumprem um importante papel na mobilização e nos movimentos democráticos no mundo.

Considerações finais

Essa nova linguagem do mundo digital só vai existir quando o leitor atuar e interferir

nela, provocando novas leituras. Pontes afirma que esse novo leitor será caracterizado por

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seus profundos mergulhos no mar dos hipertextos e hipermídias presentes nas páginas virtuais da web. Esses textos que não têm propriamente uma autoria, mas multiautorias na medida em que eles se constroem pela articulação de textos diversos. Desde a leitura camponesa do século XVI até a leitura dos textos virtuais de hoje, constata-se que a necessidade de ler jamais deixará de existir. O escritor argentino Manguel afirma que não podemos deixar de ler, já que ler é quase como respirar, é nossa função essencial. Independente do suporte, a leitura continuará sendo um caminho necessário e essencial para a compreensão e atuação do indivíduo no mundo em que vive.

Apesar dos novos suportes de leitura, dos hipertextos e das hipermídias, a leitura continuará sendo uma prática social que dependerá sempre do leitor, uma vez que sem leitor o texto será sempre um suporte que não foi apropriado, conquistado por seus possíveis leitores, sendo delegado assim a uma inexistência verdadeira.

Outra realidade hoje no contexto de leitura é a nova relação com o espaço em que as pessoas agem, como os novos espaços de manifestações sociais nascidos na Web. Espaços influenciados pelo comportamento das pessoas e suas reinvindicações.

A internet passa a ser um espaço de troca, de relações entre consciências, mentes e subjetividades entre pessoas distantes geograficamente. Assim nascem novas maneiras de pensar e de se relacionar. O impacto que as novas tecnologias causam na relação entre as pessoas faz surgir uma inteligência coletiva resultante das virtualidades presentes nas inteligências individuais. As técnicas de comunicação vêm se transformando desde a época pré-histórica com a escrita rupestre nas cavernas. Elas transformaram o espaço e o tempo do homem e hoje todas as informações estão interconectadas e disponíveis na rede mundial de informação. Essa nova comunicação entre as pessoas veio transformar a experiência humana e dar um novo sentido para a vida em sociedade.

Os textos que antes eram lidos com a ajuda de outros, pela falta de leitores aptos por compreender o que se queria transmitir pelas palavras impressas, passa a se conectar com um mundo que não apresenta divisão espacial e que começa a guardar as suas informações nas nuvens.

Referências CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2001. CHARTIER, Roger. Aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo: Ed. UNESP, 1998. FREITAG, Bárbara. Revista Espaço Acadêmico, n. 34, mensal, ISSN: 15196186, março de 2004. LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

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