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DOGMTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA SEGURANA JURDICA PROMETIDA
Vera Regina Pereira de Andrade
TESE APRESENTADA AO CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PARA A OBTENO DO TTULO DE DOUTOR EM DIREITO
Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha
FLORIANPOLIS 1994
TOMO 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CINCIAS JURDICAS CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO
A TESE
DOGMTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA SEGURANA JURDICA PROMETIDA VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE
elaborada por
e aprovada por todos os membros da banca examinadora, foi julgada adequada para a obteno do ttulo de DOUTOR EM DIREITO.
Florianpolis, 20 de dezembro de 1994.
BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha- Presidente Prof. Dr. Alessandro Baratta- Membro Prof. Dr. Eugenio Ral Zaffaroni- Membro Profa. Dra. Ester Kosovski - Membro Prof. Dr. Nilson Borges Filho- Membro
Orientador Prof. Dr. Leonel Severo Rocha Co-orientador Prof. Dr. Alessandro Baratta Coordenador do Curso:
Prof. Dr. Jos Alcebades de Oliveira Jnior
Aos meus pais e companheiros, Luiz Carlos e Jacy, pela sua trajetria de amor, dignidade e luta. In memoriam, aos meus avs Jos Orisaldes e Clotilde, Joaquim e Maria Bethnia, pela sabedoria; pelas lies e a saudade que me deixaram. A Alessandro Baratta, pelo brilho da obra e da militncia do cidado cosmopolita eternizado na humildade intelectual e na simplicidade do homem.
AGRADECIMENTOSAos meus familiares, pela presena. Ao professor Leonel Severo Rocha, para alm da orientao desta tese, pelo inestimvel aprendizado que me oportunizou, ao longo de uma dcada como sua aluna de mestrado e doutorado; Ao professor Alessandro Baratta, mestre cujo estmulo e contribuio incansveis, do almmar, foram de importncia decisiva para a realizao deste trabalho sem esmorecer frente s dificuldades do caminho; Ao professor Cesar Luiz Pasold, pela continuidade no Doutorado, das valiosssimas lies de mestrado e pelo apoio carreira acadmica; Aos colegas do Curso de Ps-Graduao e Graduao em Direito da UFSC, cujos nomes deixo de declinar porque foram muitos que emprestaram sua contribuio e apoio nas mais diversas situaes; Ao professor Joo Jos Caldeira Bastos, pela gentileza da leitura e sugestes que fez ao texto inicial; Aos coordenadores e funcionrios do Curso de Ps-Graduao em Direito, aos chefes e funcionrios do Departamento de Direito Pblico e Cincia Poltica e aos diretores e funcionrios do Centro de Cincias Jurdicas, pelo atencioso e competente encaminhamento de tantas solicitaes ao longo do Curso de Doutorado. Aos professores Roglio Prez Perdomo e Wanda Capeller; Andr-Jean Arnaud e Roberto Bergalli, cujas portas abertas, orientao e apoio integral recebidos durante a realizao de estgio junto ao Instituto Internacional de Sociologia Jurdica de Oati, na Espanha, foram decisivos para torn-lo, a um s tempo, produtivo e prazeroso; Aos funcionrios do Instituto Internacional Sociologia Jurdica de Oati, igualmente incansveis no atendimento de nossas reivindicaes antes, durante e aps o estgio; Aos professores Boaventura de Sousa Santos, Ana Isabel Nicolas e Antnio Garcia-Pablos de Molina, pela recepo e apoio na pesquisa realizada, respectivamente, no Instituto de Estudos Sociais em Coimbra e na Universidade Complutense de Madrid; Ao Daniel Bustelo e Mnica Eliabe Urriol e a todos os demais parceiros da trajetria de Oati; Aos meus alunos que tem me proporcionado, como meus mestres, ricas experincias e aprendizado e aos mestrandos, em especial, que contriburam na ministrao de aulas no Curso de Graduao em Direito; Ao Joo Incio Mller, pela arte final do trabalho; Lyz Quaresma, Rafael Carmolinga e Cidnei Soares, pelas tradues; s bibliotecrias da UFSC, Goretti e Marili, pela reviso bibliogrfica CAPES, pela concesso de bolsa de estudos para estgio no exterior. Aos amigos e aos que o foram, na colaborao e solidariedade.
RESUMO
Esta tese tem por objeto o modelo dogmtico de Cincia Penal - a Dogmtica Jurdico-Penal ou Penal - concebida como um dos paradigmas cientficos emergentes e dominantes na modernidade que integra, como uma das especialidades da Dogmtica Jurdica, o seu projeto e trajetria no marco cultural onde se originou - a Europa continental - e naquele para o qual foi posteriormente transnacionalizado - como a Amrica Latina. E se articula a partir de dois interrogantes fundamentais: tem sido cumprida a funo oficialmente declarada pela Dogmtica Penal na e para a modernidade, de racionalizar a violncia punitiva e garantir os direitos humanos individuais na administrao da Justia Penal (segurana jurdica) em nome da qual tem pretendido historicamente legitimar o seu ideal de Cincia prtica? pelo cumprimento desta funo que se explica sua marcada vigncia na modernidade contra a secular problematizao da qual tambm tem sido objeto desde sua gnese? O eixo de gravitao da tese radica, pois, no controle funcional do paradigma, propondo responder a tais interrogantes mediante uma reinterpretao gentica da Dogmtica Penal como Cincia (funcionalmente ambgua) do sistema penal sob o fio condutor das suas funes declaradas (promessas) e latentes e dos seus dficit e excessos de realizao. O objetivo geral perseguido, que formulamos como hiptese central da investigao, demonstrar que h, no mbito do moderno sistema penal, um profundo dficit histrico de cumprimento da funo declarada pela Dogmtica Penal ao mesmo tempo em que o cumprimento excessivo de outras funes (simblicas e instrumentais) no apenas distintas, mas opostas mesmo s oficialmente declaradas , que seu prprio paradigma, latente e ambiguamente tem potencializado desde sua gnese histrica. E so estas, desenvolvidas com xito por dentro do fracasso de suas funes declaradas, que explicam sua relao funcional com a realidade social e sua marcada vigncia histrica. As promessas da Dogmtica Penal no apenas se inscrevem na longa agenda das promessas no cumpridas da modernidade mas nela se inscrevem como uma perverso matriarcal: uma eficcia inversa prometida. No desdobramento desta hiptese fundamental procuramos inventariar argumentos explicativos dos limites dogmticos na
garantia dos direitos humanos contra a violncia punitiva e demonstrar, por outro lado, a profunda separao cognoscitiva entre Dogmtica Penal e realidade social estabelecendo a relao entre seu dficit de segurana jurdica e seu dficit epistemolgico-cognoscitivo, assinalando a prpria funcionalidade deste ltimo e, enfim, a especificidade da crise que, por estas contradies, se pode imputar ao paradigma. A tese est estruturada em cinco captulos e concluso, segue um mtodo de abordagem indutivo e um mtodo de procedimento interno comparativo e baseia-se em pesquisa bibliogrfica interdisciplinar. Genericamente, enquanto a primeira parte (captulos I, II e III) trata da Dogmtica Penal desde as bases fundacionais da Dogmtica Jurdica em sentido lato e do moderno saber penal, a segunda parte (captulos IV e V) trata do moderno sistema penal, tambm desde sua fundao, da relao funcional entre Dogmtica e sistema Penal e do seu controle, fundamentando a hiptese central e demarcando os seus desdobramentos. Suas concluses apontam assim para uma relao complexa e contraditria entre Dogmtica Penal e violncia que a insere no trnsito da promessa de controle da violncia punitiva captura por esta mesma violncia institucionalizada no sistema penal e por uma eficcia instrumental inversa prometida, acompanhada de uma eficcia simblica das promessas: a "iluso" de segurana jurdica. Da porque, embora se trate de uma anlise essencialmente interpretativa da Dogmtica Penal e no prescritiva do seu futuro, o escopo que a orienta sumariar um quadro de contradies que, se desde o pilar da regulao apontam para o sucesso; desde o pilar dos direitos humanos apontam para o fracasso e a crise da Dogmtica Penal e para a necessidade de uma suspenso e auto-crtica do dogmatismo na Cincia Penal.
RESUMENEsta tesis tiene por objeto el modelo dogmtico de Ciencia Penal la Dogmtica Jurdico penal o penal concebida como uno de los paradigmas cientficos emegentes y dominantes en la modernidad que integra, como una de las especialidades de la Dogmtica Jurdica, su proyecto y trayectoria en el marco cultural en que se origin Europa Continental y en aqul para el que fue posteriormente trasnacionalizado como Amrica Latina. Y se articula a partir de dos interrogantes fundamentales: ha sido cumplida la funcin oficialmente declarada por la Dogmtica Penal en la y para la modernidad, de racionalizar la violencia punitiva y garantizar los derechos humanos individuales en la administracin de la Justicia Penal (seguridad jurdica) en nombre de la cual ha pretendido legitimar historicamente su ideal de Ciencia prctica? Es por el cumplimiento de esta funcin que se explica su marcada vigencia en la modernidad contra la secular problematizacin de la que tambin ha sido objeto desde su gnesis? El punto de gravitacin de la tesis radica, pues, en el control funcional del paradigma, proponiendo contestar a tales preguntas por medio de una reinterpretacin gentica de la Dogmtica Penal como Ciencia (funcionalmente ambigua) del sistema penal bajo el hilo conductor de sus funciones declaradas (promesa) y latentes y de sus dficit y excesos de realizacin. El objetivo general perseguido, que formulamos como hiptesis central de la investigacin, es demostrar que hay en el mbito del moderno sistema penal, un profundo dficit histrico de cumplimiento de la funcin declarada por la Dogmtica Penal al mismo tiempo en que el cumplimiento excesivo de otras funciones (simblicas e instrumentales) no slo distintas, sino opuestas a las oficialmente declaradas, que su mismo paradigma, latente y ambiguamente ha potencializado desde su gnesis histrica. Y son stas, desarrolladas con xito dentro del fracaso de sus funciones declaradas, que explican su relacin funcional con la realidad social y su marcada vigencia histrica. Las promesas de la Dogmtica Penal no slo se inscriben en la larga agenda de las promesas no cumplidas de la modernidad sino que en ella se inscriben como una perversin matriarcal: una eficacia inversa a la prometida. En el desarrollo de esta hiptesis fundamental buscamos hacer inventario de los argumentos explicativos de los lmites dogmticos en la garanta de los derechos humanos contra la violencia punitiva y demostrar, por otro lado, la profunda
separacin cognoscitiva entre Dogmtica Penal y realidad social estableciendo la relacin entre sus dficit de seguridad jurdica y su dficit epistemolgico cognoscitivo, sealando la funcionalidad misma de este ltimo y, enfin, la especialidad de la crisis que por estas contradicciones se puede imputar al paradigma. La tesis consta de cinco captulos y conclusin, sigue un mtdo de abordaje indutivo y un mtodo de procedimiento interno comparativo y se basa en investigacin bibliogrfica multidisciplinar. Genericamente, mientras la primera parte (captulos I, II y III) trata de la Dogmtica Penal desde las bases fundacionales de la Dogmtica Jurdica en sentido lato y del moderno saber penal, la segunda parte (captulos IV y V) trata del moderno sistema penal, tambin desde su fundacin, de la relacin funcional entre Dogmtica y sistema Penal y de su control, fundamentando la hiptesis central y delimitando sus despliegues. Sus conclusiones indican una relacin cmpleja y contradictoria entre Dogmtica Penal y violencia que la incluye en el trnsito de la promesa de control de la promesa de control de la violencia punitiva a la captura por esta misma violencia institucionalizada en el sistema penal y por una eficacia instrumental inversa a la prometida, acompaada de una eficacia simblica de las promsas: la "ilusin" de seguridad jurdica. Por eso, aunque se trate de una anlisis esencialmente interpretativa de la Dogmtica Penal y no prescritiva de su futuro, la intencin que la orienta se sumariar un cuadro de contradicciones que, si desde la base de la regulacin indican el xito; desde la base de los derechos humanos indican el fracaso y la crisis le la Dogmtica Penal y la necesidad de una suspensin y autocrtica del dogmatismo en la Ciencia Penal.
ABSTRACTThis thesis has its object in the dogmatic model of the Penal Science the Penal-Juridical Dogmatic actually conceived as one of the emergent and dominant scientific paradigms that takes part (as one of the Juridical Dogmatic specialties), in its project and way in the cultural boundary where it came from the Continental Europe and in that it was lately transnationalizated as the Latin America. It is articulated from two fundamental questions: has the function officially declared by the Penal Dogmatic been fulfilled in and for the modernity, of rationalizing the punishable violence and to support the individual human rights in the management of the Penal Justice (Juridical Security) in the name of which it has historically intended to legitimate its ideal of pratic Science? Is it by the compliment of this function that we can explain its strong durability in the modernity, against the secular problematic of which it has also been the object since its creation? The gravitation point of the thesis is located exactly in the functional control of the paradigm, and it proposes to answer those questions facing a genetic reinterpretation of the Penal Dogmatic as a Science (functionally doubtful) of the penal system conducted by its declared (promises) and latent functions and by its deficit and excessive realizations. The general objective followed, that we formulated as the central hipothesis of the investigation, is to demonstrate that there is, in the actual penal system, a very deep historical deficit of the compliment of the other functions (simbolic and instrumentals) not only distinct, but opposite of those officially declared, that its own paradigm, latent and doubhtfully has potencialized since its historic creation. And these are the functions, developed with efficiency inside the failure ot its declared ones, that explain its functional relation with the social reality and its strong historic durability. The promises of the Penal Dogmatic aren't only in the long list of the not fulfilled modern promises, but they are in it as a change of direction: an inverse efficacy of the one that was promised. When we unfold this fundamental hipothesis, we try to inventory explained arguments of the dogmatic limits in the guaranty of the human rights against the punishable violence, and we try to demonstrate, on the other hand, the deep knowledge separation between Penal Dogmatic and social reality, setting the relationship between its juridical deficit of security and its epistemological-knowledge deficit, marking out this last
own funcionality and them, the especificity of the crises that for these contradictions, can be imputed to the paradigm. The thesis is structured in five chapter and a conclusion. if follows a method of indutive attacking and a method of internal comparaive proceeding, and it is based on bibliographic research of many different fields. Generically, while the first part (chapters I, II and III) is about the Penal Dogmatic, since the early basis of the Juridical Dogmatic "latu sensu" and of the modern penal learning, the second part (chapters IV and V) is about the modern penal system since its foundation too, the functional relationship between Dogmatic and Penal system and its control, basing the central hipothesis and demarcating its many ways of being. The conclusions point, therefore, to a complex and contraditory relationship between Penal Dogmatic and violence that put it in the way of the promise of the control of the punitive violence to the capture by ths own institucionalizated violence in the penal system and by an instrumental efficacy opposite of that one that was promised, with a simbolic efficacy of the promises: the "illusion" of the juridical security. That's why, although it is an essencially interpretative analysis of the Penal Dogmatic and not prescriptive of the future, the aim that guides the thesis, is to summarize a list of contradictions that, if since the sustenance of the human rights point to a failure and the Penal Dogmatic crisis and for the necessity of a suspension and auto-critic of the dogmatism in the Penal Science.
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................
1
CAPTULO I: CONFIGURAO E IDENTIDADE DA DOGMTICA JURDICA .................................................................................... 23 1. Introduo ............................................................................................................ 23 2.Heranas que marcam o paradigma dogmtico de Cincia Jurdica........................... 34 2.1 A herana jurisprudencial...................................................................................... 34 2.2. A herana exegtica............................................................................................. 36 2.3. A herana sistemtica........................................................................................... 37 3. O positivismo como matriz epistemolgica do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica................................................................................................................. 39 3.1. A concepo positivista de Cincia....................................................................... 40 3.2. A recepo da concepo positivista de Cincia pela Escola histrica : configurao e identidade metodolgica do paradigma dogmtico............................................... 43 - Objeto e tarefa metdica da Dogmtica Jurdica............................................ 43 - A Dogmtica Jurdica como Cincia prtica................................................... - A redefinio das heranas na tipificao historicista do paradigma dogmtico 53 4. O positivismo jurdico e sua recepo pelo paradigma dogmtico de Cincia Jurdica.................................................................................................................... 4.1. Caracterizao do positivismo jurdico.................................................................... - O juspositivismo como approach ao Direito...................................................... - O juspositivismo como teoria............................................................................ - O juspositivismo como ideologia....................................................................... 4.2. A recepo do positivismo jurdico pelo paradigma dogmtico: da identidade metodolgica identidade ideolgica................................................................................... 63. - A recepo do approach juspositivista........................................................... - A recepo das teorias juspositivistas............................................................. - A recepo da ideologia juspositivista............................................................ - O significado do dogmatismo na Cincia Jurdica............................................. 5. O sentido da Dogmtica Jurdica como "Cincia prtica" ............................................ 5.1. Da identidade ideolgica identidade funcional....................................................... 5.2.Uma promessa funcional no interior da promessa epistemolgica: ressignificando a auto-imagem da Dogmtica Jurdica .......................................................................
51
55 56 57 59 61
63 66 69 71 73 73 79
6. O Estado moderno como matriz poltica do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica..................................................................................................................... 7. Problematizao da Dogmtica Jurdica...................................................................... 7.1.O estatuto terico da Dogmtica Jurdica e o problema de sua identidade epistemolgica:perfil de uma Metadogmtica de controle epistemolgico da Dogmtica Jurdica.................................................................................................................... 7.2. A Dogmtica Jurdica como paradigma cientfico ..................................................... 7.3. Do controle epistemolgico ao controle epistemolgico-funcional da Dogmtica Jurdica ................................................................................................................... 8. Da funo racionalizadora declarada de lege ferende funo pedaggica e racionalizadora de lege lata ................................................................................................ CAPTULO II: O MODERNO SABER PENAL: CONSOLIDAO DA DOGMTICA JURDICO-PENAL E SUA RELAO PRIMRIA COM A CRIMINOLOGIA 1. Introduo ................................................................................................................. 2. A Escola Clssica: do saber filosfico ao saber jurdico-filosfico em defesa do indivduo................................................................................................................. 2.1. A unidade ideolgica da Escola Clssica.................................................................... 2.2. A unidade metodolgica da Escola Clssica.............................................................. 2.3 O movimento reformista e a obra de Beccaria: bases filosficas e ideolgicas fundacionais do moderno Direito Penal e a promessa de segurana jurdica........................ 2.4 O jusracionalismo e as bases jusfilosficas do Direito Penal liberal ........................... 2.4.1 Postulados fundamentais : o senso comum do classicismo ....................................... - Crime (ente jurdico).......................................................................................... - Responsabilidade penal (fundada na responsabilidade moral derivada do livrearbtrio)........................................................................................................... - Pena (retribuio e tutela jurdica).................................................................... 2.5. O fato-crime no centro do classicismo : a reiterao da promessa de segurana jurdica no universo do Direito Penal liberal do fato-crime ...................................... 3. A Escola Positiva: o saber cientfico-criminolgico em defesa da sociedade................ 3.1. Postulados fundamentais: o senso comum do positivismo ........................................ - O mtodo (experimental)................................................................................. - Crime (fato natural e social)............................................................................. - Criminoso.......................................................................................................
81 82
83 96 100 101
105 109 111 112 114 118 120 120 124 125 127 130 133 133 134 138
-Responsabilidade penal (baseado na responsabilidade social, derivada do determinismo e temebilidade do delinqente)........................................................ - Pena (defesa social)......................................................................................... 3.2.O autor-criminoso no centro do positivismo: o Direito Penal intervencionista do autor 4. Implicaes legislativas das Escolas: da reforma e consolidao do Direito Penal do fato reforma para o Direito Penal do autor............................................................. 5. Implicaes tericas das Escolas: da luta entre as Escolas diviso do trabalho cientfico e disputa pela hegemonia entre Dogmtica Penal e Criminologia....................... 5.1. Gnese e hegemonia da Criminologia como Cincia (paradigma etiologico)............. - O modelo de Sociologia Criminal de E.FERRI e a imerso sociolgica da Cincia Penal.................................................................................................. 5.2. Matrizes fundacionais do paradigma dogmtico de Cincia Penal ........................... - A Escola Tcnico-Juridica e o modelo de Cincia Penal de A.ROCCO:a reao tecnicista............................................................................................ - A crise da Cincia Penal:diagnstico das causas e correo dos erros............. - Objeto e tarefa metdica da Cincia Penal...................................................... -As etapas do mtodo tcnico-jurdico:exegese, dogmtica e crtica .................. -A funo prtica da Cincia Penal ................................................................... -A autonomia e as fontes da Cincia Penal: a resposta ao problema das relaes entre Dogmtica e Criminologia ...................................................................... 5.2.1.Matrizes do tecnicismo jurdico:K.BINDING e V.LISZT:................................... - O modelo de Cincia Penal de K.BINDING................................................... - A escola sociolgica alem e o modelo de Cincia integral (global, universal, total ou conjunta) do Direito Penal de V.LISZT............................................... 5.3. Da luta escolar disputa cientfica Criminodogmtica .............................................. 6. Consolidao do paradigma dogmtico na Cincia Penal e sua relao com o paradigma etiolgico de Criminologia: autonomia metodolgica e unidade funcional na luta contra o crime................................................................................................. 7. Do saber filosfico, poltico e totalizador especializao e neutralidade das Cincias criminais: da fundamentao jusfilosfica fundamentao cientfica da promessa de segurana jurdica...................................................................................
139 141 143 144 147 147 151 155 156 157 161 163 165 166 169 171 174 178
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CAPTULO III: ESPECFICA IDENTIDADE DA DOGMTICA JURDICO-PENAL: FUNES DECLARADAS E METAPROGRAMAO PARA O SEU CUMPRIMENTO 1. Introduo ............................................................................................................... 2.A recepo do neokantismo de Baden pela Dogmtica Penal: em busca de uma (re)fundamentao cientfica................................................................................ 3.A auto-imagem da Dogmtica Penal........................................................................... 4.A auto-imagem funcional : as funes declaradas (promessas) da Dogmtica Penal....... 5.Dogmtica penal e Estado de Direito: o discurso racionalizador/garantidor centrado no plo "de Direito" do Estado moderno.................................................................... 214 6.A promessa de segurana jurdica na trilha do Direito Penal liberal do fato-crime: a conexo mtodo-sistema-segurana jurdica............................................................... 6.1.Processo formativo do sistema dogmtico do crime................................................ 6.2.Sistema do crime e princpio da legalidade............................................................... 7.Da hermenutico-analtica propedutica.................................................................. 8.Da ideologia liberal ideologia da defesa social.......................................................... 9.Segurana jurdica para quem?................................................................................... 10.Da racionalidade do legislador racionalidade do juiz comunicadas pela racionalidade do sistema dogmtico : o encontro da segurana jurdica com a justia no Direito Penal dogmaticamente idealizado............................................................................... 11.Problematizao da Dogmtica Penal no passado e no presente................................ 11.1.A crtica interna Dogmtica Penal e a reafirmao da promessas: uma peregrinao intrassistmica pelas categorias do crime....................................................... - O positivismo naturalista................................................................................... - O neokantismo valorativo................................................................................. - O finalismo....................................................................................................... - A reafirmao das promessas na peregrinao intrasistmica. ........................... - Requisitos objetivos e subjetivos da imputao de responsabilidade penal na construo sistemtica do crime para a maximizao da segurana jurdica ............... 11.2 A crtica externa da Dogmtica penal........................................................................ - A crtica poltica : a ambigidade poltico-funcional do paradigma ..................... - A crtica metodolgica : a ambigidade metodolgica do paradigma ............... 12. Tendncias contemporneas no sistema do crime : abertura para a realidade social ou refuncionalizao da Dogmtica Penal ? ..............................................................
189 191 201 207
215 219 224 228 229 233
235. 238 239 240 242 245 249 254 257 257 258 262
DOGMTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA SEGURANA JURDICA PROMETIDA
Vera Regina Pereira de Andrade
TESE APRESENTADA AO CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PARA A OBTENO DO TTULO DE DOUTOR EM DIREITO
Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha
FLORIANPOLIS 1994
TOMO 2
CAPTULO IV: O IMPULSO DESESTRUTURADOR DO MODERNO SISTEMA PENAL E A MUDANA DE PARADIGMA EM CRIMINOLOGIA: O CONTROLE EPISTEMOLGICOFUNCIONAL DA DOGMTICA JURDICO-PENAL .............. 1. Introduo ................................................................................................................ 2. Caracterizao do moderno sistema penal: modelos penais fundamentais e estrutura organizacional ............................................................................................................ - Modelos penais fundamentais .......................................................................... - Estrutura organizacional ................................................................................... 3.O discurso oficial de autolegitimao do poder penal: da legitimao (negativa) pela legalidade legitimao (positiva) pela utilidade ......................................................... -A legitimao pela legalidade vinculada ao Direito Penal do fato e segurana jurdica : programao normativa do sistema penal ........................................... -A legitimao pela utilidade vinculada ao Direito Penal do autor e defesa social: fins da pena ..................................................................................................... -Legitimidade e (auto)Legitimao ...................................................................... 4. Da construo (legitimadora) desconstruo (deslegitimadora) do moderno sistema penal: delimitando o marco terico do controle dogmtico ......................................... 5. Da histria oficial s histrias revisionistas da gnese do moderno sistema penal ........ -A histria oficial: o enfoque idealista ou ideolgico ............................................ -As histrias revisionistas: a crtica historiogrfica materialista ............................. - Indicaes epistemolgicas comuns das histrias revisionistas materialistas ....... 6. O labelling approach e o paradigma da reao social: uma revoluo de paradigma em Criminologia ....................................................................................................... 6.1 Do paradigma etiolgico ao paradigma da reao social: a negao da ideologia da defesa social .......................................................................................................... 6.2. Matrizes tericas, pressupostos metodolgicos, quadro explicativo e teses fundamentais do labelling approach: a troca de paradigmas ........................................... - Interacionismo simblico e construtivismo social modelando o paradigma epistemolgico do labelling approach ................................................................... - O crime e a criminalidade como construo social: o papel constitutivo da reao social na construo seletiva da criminalidade ........................................... - O quadro e os nveis explicativos do labelling approach : da dimenso da definio dimenso do poder (de definir, selecionar e estigmatizar) e de um modelo consensual a um modelo pluralista .....................................................................
272 272 278 281 283 285 287 289 292 294 303 303 304 305 315 316 322 323 325
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- O sistema penal (processo de criminalizao) numa perspectiva dinmica e no continuum do controle social: relatividade do controle penal em relao ao controle social e do Direito Penal em relao ao sistema penal ........................................ - Mudana de paradigma ................................................................................... 7. De um modelo pluralista a um modelo conflitivo: o desenvolvimento da dimenso do poltico no paradigma do reao social ....................................................................... 8. Do labelling approach Criminologia crtica ............................................................ 8.1. Marco terico-metodolgico, quadro explicativo e teses fundamentais da Criminologia crtica ................................................................................................................... - Recepo crtica do paradigma da reao social: irrreversibilidade e limites analticos do labelling approach (de um modelo pluralista a um modelo materialista) - Da descrio da fenomenologia da desigualdade (seletividade) sua interpretao estrutural: a relao funcional entre sistema penal e sistema social capitalista ................................................................................................................. 9. A desconstruo epistemolgica do paradigma etiolgico: dependncia metodolgica e aporia criminolgica .................................................................................................. 10. A reinterpretao da Escola Clssica e da Criminologia positivista como saberes do controle scio-penal ................................................................................................ 11. Do controle epistemolgico do paradigma etiolgico de Criminologia ao controle epistemolgico-funcional do paradigma dogmtico de Cincia Penal ......................... -Uma nova relao entre Criminologia e Direito Penal como uma relao Cinciaobjeto ............................................................................................................... - Uma nova relao (secundria) entre Criminologia e Dogmtica Penal ................. 12. Marco terico e bases do controle dogmtico: insero da Dogmtica Penal no mbito do sistema penal .................................................................................................... CAPTULO V: CONFIGURAO, OPERACIONALIDADE E FUNES DO MODERNO SISTEMA PENAL: DAS FUNES DECLARADAS S FUNES REAIS DA DOGMTICA COMO CINCIA DO SISTEMA PENAL 1.Introduo .................................................................................................................. 2. Configurao do moderno sistema penal e seu campo correlato de saber no marco do sistema capitalista: poder e saber penal ..................................................................... - Ressignificando o saber e a reforma penal iluminista: dos objetivos declarados aos objetivos latentes e reais ...................................................................................
332 335 336 338 338 338
344 345 350 353 354 355 360
367 369 370
-Ressignificando a linha de objetivao do crime (Direito Penal do fato) da Escola Clssica Dogmtica Penal .............................................................................. -Ambigidade gentica do moderno saber e poder penal: dominao e garantismo -Ressignificando a linha de objetivao do criminoso (Direito Penal do autor) : a complementariedade criminolgica .................................................................. - O princpio da seleo: do fracasso (das funes declaradas) ao sucesso (das funes latentes e reais) da priso .................................................................... 3. O saber oficial como saber do sistema de controle scio-penal: ressignificando a "luta" entre as Escolas Clssica e Positiva e a disputa Criminodogmtica (contradio terica interna e convergncia funcional) .............................................................................. -A convergncia tecnolgica e legitimadora da Dogmtica Penal e da Criminologia como Cincias do controle ............................................................................... -Ressignificando a consolidao da Dogmtica Penal ......................................... 4. Operacionalidade do sistema penal: da seletividade quantitativa seletividade quantitativa-qualitativa como lgica de funcionamento do sistema penal. ................................. 4.1.Fundamentos bsicos .............................................................................................. -O papel criador do juiz e dos demais agentes do controle social ....................... -A criminalidade de colarinho branco ................................................................ -A cifra negra da criminalidade: desqualificao das estatsticas criminais para a quantificao da criminalidade real e reapropriao para a quantificao da criminalizao e anlise da lgica do controle penal ......................................... 4.2. A seletividade quantitativa: a imunidade e no a criminalizao a regra no funcionamento do sistema penal ......................................................................................... -A criminalidade oculta e a redefinio do conceito corrente de criminalidade : a criminalidade como conduta majoritria e ubcua e no de uma minoria criminal 4.3.A seletividade quantitativa-qualitativa ....................................................................... -As cifras negras internas ao processo de criminalizao e a redefinio do conceito corrente sobre a distribuio (estatstica) e a explicao (etiolgica) da criminalidade ................................................................................................... -A criminalidade como conduta majoritria e ubicua mas desigualmente distribuda: imunidade e criminalizao so orientadas pela seleo de pessoas e no pela incriminao igualitria de condutas ................................................................. -A seletividade como grandeza sistematicamente produzida: variveis no legalmente reconhecidas e mecanismos de seleo ................................................. -Da tendncia (etiolgica) de delinqir tendncia (maiores chances) de ser criminalizado ..........................................................................................................
377 381 384 391
393 396 396 398 400 400 401
402 402 404 407
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- Funes reais da Criminologia positivista como cincia do controle scio-penal: contributo tecnolgico e legitimador ................................................................. -A seleco judicial ............................................................................................ 5. Da descrio da fenomenologia da seletividade sua interpretao estrutural: da desigualdade penal desigualdade social .................................................................... -Da negao da ideologia da defesa social negao do mito do Direito Penal igualitrio ........................................................................................................ -Funo real do sistema penal na reproduo material e ideolgica da desigualdade social ........................................................................................................... 6. Operacionalidade do sistema penal na Amrica Latina: da seletividade encoberta radicalizao da arbitrariedade aberta ....................................................................... 7. Contrastao entre operacionalidade e programao (normativa e teleolgica) do sistema penal : uma funcionalidade de eficcia instrumental invertida ....................... 440 -Violao da programao normativa: da proteo violao dos direitos humanos -Descumprimento da programao teleolgica: das funes declaradas s funes reais da pena ................................................................................................... 442 -A violncia institucional como expresso da violncia estrutural ............................ 8.Das funes instrumentais s funes simblicas do Direito Penal ............................... 9.Crise de legitimidade e demanda por legitimao: o funcionamento ideolgico do sistema penal ......................................................................................................................... 10.Constrastao entre operacionalidade e Metaprogramao dogmtica do sistema penal 10.1.A relao funcional entre Dogmtica Penal e realidade social: das funes declaradas s funes latentes e reais da Dogmtica Penal como cincia do sistema penal ......... -Dficit ou subproduo de garantismo e limites estruturais na racionalizao da violncia punitiva e garantia dos direitos humanos: da onipotncia iluso de poder ............................................................................................................. -Excessos ou sobreproduo de seletividade e legitimao: a eficcia instrumental invertida e a eficcia simblica da funes declaradas ...................................... -Da convergncia funcional declarada convergncia funcional real e crise de legitimidade da Dogmtica Penal e da Criminologia e do modelo integrado de Cincia Penal .................................................................................................... 10.2.Da relao funcional separao cognoscitiva entre Dogmtica Penal e realidade social .................................................................................................................... -Reconduo do dficit funcional de garantismo ao dficit epistemolgico-cognoscitivo ................................................................................................................
415 417 423 431 433 433
440
444 444 446 450 452
452 457
461 463 463
-A funcionalidade do dficit epistemolgico-cognoscitivo: o cdigo ideolgico legitimador do discurso dogmtico .................................................................... CONCLUSO ...................................................................................................... BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 469
467
482
INTRODUO
1. Objeto Esta tese tem por objeto o modelo dogmtico de Cincia Penal - a Dogmtica Jurdico-Penal ou Penal - concebida como um dos paradigmas cientficos emergentes e dominantes na modernidade que integra, como uma das especialidades da Dogmtica Jurdica, o seu projeto e trajetria no marco cultural onde se originou - a Europa continental - e naquele para o qual foi posteriormente transnacionalizado - como a Amrica Latina. E seu eixo de gravitao radica na anlise das funes da Dogmtica Jurdico-Penal no mbito do sistema penal do Estado moderno. Um breve entroito se impe, neste sentido, para explicitar a formulao geral do problema que condiciona e orienta o seu horizonte de projeo, ao mesmo tempo em que pretende justific-la, para a seguir pontualizar os termos de sua tecitura: definio, natureza e abrangncia espao-temporal da anlise, objetivo e hiptese geral desenvolvida, e alguns esclarecimentos adicionais. So trs os vetores bsicos que concorrem nesta formulao do problema, definio e justificativa da tese: a) a problematizao global do projeto da modernidade e da Cincia, que embora escapem a uma tematizao no interior deste trabalho, necessitam ser referidos pelo tributo acima assinalado; b) a problematizao global do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica c) a problematizao do moderno sistema penal sendo estas duas ltimas, todavia, amplamente desenvolvidas no seu interior. estrutura e desenvolvimento da tese, mtodo e instrumental terico utilizados, e, enfim, as dificuldades experimentadas
2. Formulao do problema e justificativa SOUSA SANTOS, que tem vindo a desenvolver uma das mais expressivas anlises interpretativas da modernidade, sua trajetria e crise, caracteriza-a como um projeto scio-cultural complexo, ambicioso e ambicioso pela magnitude das promessas revolucionrio, mas tambm internamente ambguo. Trata-se de um projeto sendo marcado por uma profunda vocao racionalizadora da vida individual e coletiva e neste sentido caracterizado, em sua matriz, pela tentativa de um desenvolvimento equilibrado entre "regulao" e "emancipao humana", os dois grandes pilares em que se assenta. 1 Mas, por isso mesmo, aparece to apto variabilidade quanto propenso a desenvolvimentos contraditrios. Pois, enquanto as exigncias de regulao apontam para o potencial do projeto construdas para sua realizao para os processos de concentrao e excluso; as promessas emancipatrias e as lgicas ou racionalidades apontam para suas potencialidades em cumprir, contraditoriamente, certas promessas de justia, autonomia, solidariedade, identidade, liberdade e igualdade. (SOUSA SANTOS, 1989a, p.225; 1990, p.3 e 1991) Assim, "se por um lado, a amplitude de suas exigncias abre um extenso horizonte para a inovao social e cultural; por outro lado a complexidade de seus elementos constitutivos faz com que o excesso de satisfao de algumas promessas assim como o dficit de realizao de outras seja dificilmente evitvel.1.
O pilar da regulao constitui-se do princpio do Estado (formulado destacadamente por HOBBES); do princpio do mercado (desenvolvido particularmente por LOCKE e ADAM SMITH); e do princpio da comunidade (que inspira a teoria social e poltica de ROUSSEAU).O pilar da emancipao est constitudo pela articulao entre trs lgicas ou dimenses de racionalizao e secularizao da vida coletiva, tal como identificadas por WEBER: a racionalidade moral-prtica do Direito moderno; a racionalidade cognitivo-instrumental da cincia e da tcnica modernas e a racionalidade esttico-expressiva das artes e da literatua modernas.(SOUSA SANTOS,1989a, p.225 e 1991, p.23)
Tal excesso e tal dficit esto inscritos na matriz deste paradigma." (SANTOS, 1989a, p.240-1) Neste final de sculo possvel concluir, pois, que"Tanto o excesso como o dficit de realizao das promessas histricas explica nossa difcil situao atual que aparece, na superfcie, como um perodo de crise, mas que, em um nvel mais profundo, constitui um perodo de transio. Desde o momento em que todas as transies so parcialmente visveis e parcialmente cegas, resulta impossvel designar com propriedade nossa situao atual. Provavelmente isto explica porque a inadequada denominao 'ps-moderna' se tornou to popular. Mas pela mesma razo este nome autntico na sua inadequao." (SOUSA SANTOS,1989a, p.223)
Assim sendo, estamos perante uma situao nova que, falta de melhor nome se pode designar por transio ps-moderna. Seja como for, se um novo paradigma scio-cultural est a emergir nas sociedades do capitalismo avanado, sob os sintomas de crise que a modernidade parece inexoravelmente emitir, o contexto de oposio e justaposio entre o moderno e o "ps-moderno" testemunha antes de mais nada a necessidade de se revisitar as prprias promessas da modernidade e avaliar os seus dficit e excessos de realizao, com os quais esta crise tem preliminarmente a ver. E dado que a modernidade creditou Cincia e ao Direito um lugar central na instrumentalizao do progresso e do seu projeto emancipatrio, no qual os "direitos humanos aparecem como uma das principais promessas" o reencontro com o desempenho instrumental da Cincia aparece, no balano deste final de sculo, como uma exigncia de importncia fundamental. (SOUSA SANTOS, 1989b, p.3 e 1991, p.23). Nesta perspectiva"O ponto de partida do diagnstico da Cincia moderna como problema reside na dupla verificao de que os excessos da
modernidade que a Cincia prometeu corrigir, no s no foram corrigidos, como no cessam de se reproduzir em escala cada vez maior, e que os dfices que a Cincia prometeu superar, no s no foram superados, como se multiplicaram e agravaram. Acresce que a Cincia no se limitou a ser ineficaz e parece, pelo contrrio, ter contribudo, como se de uma perverso matriarcal se tratasse, para o agravamento das condies que procurou aliviar."(SOUSA SANTOS,1991, p.25)
Como se insere o modelo dogmtico de Cincia Penal no projeto da modernidade? Na medida em que o Estado aparece como um componente fundamental do pilar da regulao ao mesmo tempo em que o reconhecimento do homem como sujeito de direito e os direitos humanos aparecem como uma exigncia fundamental do pilar da emancipao, o projeto da modernidade se v confrontado, desde o incio, com a necessidade de equilibrar o poder monumental do Estado centralizado com a subjetividade atomizada dos indivduos livres e iguais perante a lei e de cuja tentativa a teoria poltica liberal aparece como a mxima expresso. Da que o poder penal do Estado moderno aparea recoberto de limites garantidores do indivduo consubstanciados nos princpios constitucionais do Estado de Direito e do Direito Penal (e Processual Penal) liberal e que um princpio fundamental seja a exigncia da generalizao e igualdade no funcionamento da Justia penal em que se este poder se institucionaliza. No mbito da Justia Penal a garantia dos direitos humanos assume, ento, um significado s avessas: no se trata de realiz-los ou solucionar os conflitos a eles relativos, mas de impedir a sua violao ali onde intervenha a violncia punitiva institucionalizada: a dualidade regulao/emancipao se traduz na exigncia de um controle penal com segurana jurdica individual. A Dogmtica Jurdico-Penal representa, precisamente, o paradigma cientfico que emerge na modernidade prometendo assegurar aquele equilbrio
limitando esta violncia e promovendo a segurana jurdica. O mximo contributo que pode prestar ao pilar da emancipao , portanto, o tributo do garantismo. Consolidando-se historicamente na Europa continental desde a segunda metade do sculo XIX como um desdobramento disciplinar da Dogmtica concebida, pelos penalistas que protagonizaram e Jurdica, ela assim
compartilham do seu paradigma (auto-imagem) como "a" Cincia do Direito Penal que, tendo por objeto o Direito Penal positivo vigente em um dado tempo e espao e por tarefa metdica (imanente) a construo de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretao do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lgico-formais) de coerncia interna, tem uma funo essencialmente prtica: racionalizar a aplicao judicial do Direito Penal. Desta forma, na sua tarefa de elaborao tcnico-jurdica do Direito Penal vigente a Dogmtica, partindo da interpretao das normas penais produzidas pelo legislador e explicando-as em sua conexo interna, desenvolve um sistema de teorias e conceitos que, resultando congruente com as normas, teria a funo de garantir a maior uniformizao e previsibilidade possvel das decises judiciais e, conseqentemente, uma aplicao igualitria (decises iguais para casos iguais) e justa do Direito penal que, subtrada arbitrariedade, garanta essencialmente a segurana jurdica e, por extenso, a justia das decises. Enquanto metaprogramao do Direito Penal positivo, a Dogmtica Penal constri assim toda uma consubstanciada em arquitetnica terica e conceitual que, requisitos objetivos e subjetivos para a imputao de
responsabilidade penal pelos juzes e tribunais, objetiva vincular o horizonte decisrio legalidade penal e ao Direito Penal do fato-crime; ou seja, vincular as decises judiciais lei e conduta do autor de um fato-crime, objetiva e subjetivamente considerada em relao a este e exorcizar, por esta via, a submisso do imputado arbitrariedade judicial.
So duas, assim, as grandes promessas da Dogmtica Penal na e para a modernidade, estreitamente relacionadas. que na sua promessa epistemolgica de constituir-se "na" moderna Cincia do Direito Penal est contida uma promessa funcional que condiciona, essencialmente, a identidade de seu paradigma. Trata-se de uma promessa bifronte que, orientada por uma matriz liberal, credita Cincia Penal uma funo instrumental racionalizadora/garantidora. E precisamente em nome da segurana jurdica, que aparece no discurso dogmtico como a idia-sntese de suas promessas que tem pretendido justificar, historicamente, a importncia de sua j secular existncia e o seu ideal de Cincia. E ao mesmo tempo em que o discurso da segurana jurdica aparece fortemente enraizado e consolidado na mentalidade dogmtica em geral Dogmtica Penal considera-se, a contrrio sensu, que a ausncia de uma
implicaria o imprio da insegurana jurdica. Revisitar suas promessas significa ento indagar: mas, em que medida tem sido cumpridas as funes declaradas da Dogmtica penal na trajetria da modernidade? tem a Dogmtica penal conseguido garantir, com sua metaprogramao, os direitos humanos individuais contra a violncia punitiva? tem sido possvel controlar o delito com igualdade e segurana jurdica? encontra congruncia na prxis do sistema penal o discurso garantidor secular em nome do qual a Dogmtica Penal fala e pretende legitimar o seu prprio ideal de Cincia? E pelo cumprimento da funo racionalizadora/garantidora declarada que se explica a vigncia histrica da Dogmtica Penal ou ela potencializa e cumpre funes distintas das prometidas? Tais so as questes centrais que a tese objetiva responder, cuja opo a insere no mbito de um controle funcional da Dogmtica Penal.
Situado o universo desta problematizao global do projeto da modernidade na qual inserimos a Dogmtica Penal situemos o universo da problematizao do paradigma dogmtico, genericamente considerado, balano constitui o segundo eixo na definio e justificativa desta tese. que paralelamente sua marcada vigncia - na comunidade cientfica, no Poder Judicirio e nas Escolas de Direito, seus principais locus institucionais de sustentao - a Dogmtica Jurdica, globalmente considerada, convive desde sua gnese com uma marcada problematizao, em cujo universo possvel individualizar, sem prejuzo de outros, trs grandes argumentos dominantes e recorrentes: a) o de sua falta de cientificidade, que interpela sua promessa e identidade epistemolgica ; b) o de sua separao da realidade social decorrente de seu excessivo formalismo, que interpela sua identidade metodolgica ; e c) o de seu conservadorismo ou de sua instrumentalizao poltica conservadora do status quo social, que confronta sua identidade funcional. O primeiro argumento, que gravita em torno da indagao se "a Dogmtica ou no uma Cincia e de que Cincia se trata" e tem ocupado um lugar central no mbito de uma Metadogmtica, tem sido sustentado sobretudo mediante a contrastao do modelo dogmtico com o modelo positivista de Cincia, a partir da qual se procura desqualificar a cientificidade da Dogmtica Jurdica por no satisfazer s exigncias epistemolgicas deste modelo. Trata-se, portanto, de um controle epistemolgico da Dogmtica Jurdica fundado no paradigma nas Cincias naturais. O segundo argumento, centrado no formalismo do mtodo dogmtico e na supervalorizao que ele encerra dos aspectos lgico-formais do Direito, em detrimento de sua materialidade social, tem enfatizado a separao entre Dogmtica Jurdica e realidade social. O terceiro, enfim, tem acentuado a cujo
instrumentalidade do paradigma na legitimao das relaes de dominao capitalista em que o Direito se insere. Mas, se a recorrncia histrica desta crtica, uma evidncia muito forte de que a Dogmtica um paradigma geneticamente problemtico; a sobrevivncia dogmtica secular contra e apesar dela confere procedncia a uma tese bsica do funcionalismo: toda instituio de marcada vigncia - no caso, um paradigma cientfico - tal porque e enquanto cumpre alguma funo social; porque e enquanto mantm uma conexo funcional com a realidade social. Revisitando esta crtica e projetando-a para o campo da Dogmtica Penal, extramos do seu universo as seguintes indicaes: a) H uma sobreproduo do controle epistemolgico e uma suproduo do controle funcional da(s) Dogmtica(s) Jurdica(s). A um excesso de questionamento da sua promessa epistemolgica (Trata-se a Dogmtica Jurdica, efetivamente, de uma Cincia?) corresponde um profundo dficit histrico de questionamento de sua promessa funcional (Tem a Dogmtica cumprido sua declarada funo racionalizadora da prxis do Direito?) que , a nosso ver, a promessa fundamental. Pois, na medida em que a Dogmtica uma Cincia intrinsecamente empenhada numa funo prtica imediata e esta instrumentalidade condiciona o seu prprio modelo de Cincia (identidade epistemolgica) ao mesmo tempo em que pretende justific-lo, o controle funcional, no apenas pelo seu dficit histrico, mas porque mais rico em conseqncias para o paradigma que deve assumir a centralidade. Assim, ao invs de se tentar desqualificar a cientificidade da Dogmtica Jurdica, precisamente, dentre outros argumentos, porque se trata de uma Cincia prtica, antes que uma Cincia de conhecimento em sentido estrito, o fundamental realizar o seu controle epistemolgico por dentro desta
instrumentalidade declarada, o nico que pode conduzir deslegitimao de seu modelo; b) A Dogmtica Jurdica encontra-se cognoscitiva ou teoricamente separada da realidade social, mas funcionalmente no. E a sua relao funcional com a realidade que explica sua marcada vigncia histrica. Conseqentemente esta somente pode ser apreendida a partir das funes realmente cumpridas na realidade social2; c) A crtica poltica tem revelado uma funo latente, no declarada, de legitimao, cumprida pela Dogmtica Jurdica. Por outro lado, se a necessidade de resgatar o controle funcional das promessas dogmaticas (funes declaradas) cresce em importncia face sua subproduo ela se apresenta particularmente relevante no campo da Dogmtica Penal por ser, dentre os desdobramentos disciplinares da Dogmtica Jurdica, o que circunscreve o campo de maior vulnerabilidade: o da garantia dos direitos humanos no sistema da Justia Penal, ou seja, contra a violncia fsica Enfim, como a relao funcional da Dogmtica Penal com o sistema penal - uma vez que elaborou promessas para serem efetivadas em seu mbito - a anlise deste, em especial de seu real funcionamento, assume o posto de referencial bsico no controle funcional da Dogmtica Penal. Impe-se, neste sentido, a necessidade de uma anlise relacional apta a comparar a programao normativa e a metaprogramao dogmtica do Direito Penal para o cumprimento das promessas com a operacionalidade do sistema2 .Nesta
institucionalizada.
reinterpretao negadora da separao entre teoria e prtica e afirmadora da funcionalizao prtica da teoria, que cumpre um papel fundamental na definio da tese, nos inspiramos particularmente numa obra de PREZ PERDOMO (1978).
penal enquanto conjunto de aes e decises e, em especial, com as decises judiciais. Pois esta anlise contrastiva que possibilita emitir juzos de (in)congruncia entre operacionalidade ("ser") e programao ("dever-ser") do sistema penal; ou seja, verificar se o sistema opera ou no no marco daquela programao e, em especial, se as decises judiciais so, de fato, pautadas pela metaprogramao dogmtica e, por extenso, igualitrias, seguras e justas. E precisamente um saber especfico e problematizador do sistema penal, consubstanciado pela crtica historiogrfica, sociolgica e criminolgica e cujo desenvolvimento culmina numa "revoluo de paradigma" em Criminologia, que vimos consolidar-se no campo penal desde a dcada de 60. Passando, pois, do universo da problematizao genrica do paradigma dogmtico para o universo da problematizao especfica do sistema penal chegamos aqui ao terceiro vetor bsico assinalado. Pois so os resultados desta crtica sobre a gnese, estrutura, operacionalidade e funes do sistema da penal, entendido como subsistema de controle social (controle scio-penal), os resultados aptos a deslocar a centralidade do controle epistemolgico fundado na contrastao do modelo dogmtico com as Cincias naturais para um controle epistemolgico-funcional fundado nos resultados das Cincias sociais, pois esta a arena de sua materializao. E a projeo destes resultados para a problematizao especfica da Dogmtica Penal, que j um caminho aberto por criminlogos e penalistas crticos, tem potencializado novos argumentos e uma nova consistncia para individualizar seus especficos problemas e limitaes, agudizando o acmulo da crtica histrica Dogmtica Jurdica - que tambm sobre ela paira, enquanto um de seus desdobramentos disciplinares - e gerando hoje no apenas um quadro desconcertante para a sua vigncia, mas um quadro em que aquele acmulo
parece ter chegado ao seu esgotamento; um quadro que sugere um paradigma em crise. E tal o saber que, mais do que orientar a definio desta tese, assumimos como marco terico para a anlise do sistema penal e o controle da Dogmtica Penal, na esteira deste caminho j entreaberto. Em suas grandes linhas, tal crtica evidencia, precisamente, que o sistema penal um dos locus em que o desenvolvimento contraditrio da modernidade vem a se materializar com intensidade, buscando uma explicao global para tal desenvolvimento que remete distino entre funes declaradas e funes latentes e reais potencializadas desde a fundao do sistema. Da a convergncia de suas premissas problematizadoras do sistema penal com aquelas do projeto da modernidade acima assinaladas e de cuja convergncia e resultados retemos, por sua vez, duas indicaes fundamentais: a) Ao mesmo tempo em que a Dogmtica Penal se insere oficialmente no projeto da modernidade como uma Cincia instrumental para a realizao de uma das suas principais promessas e expressa a sua vocao racionalizadora ela se insere, igualmente, na sua ambigidade interna e potencialidade de seu desenvolvimento contraditrio que se materializa particularmente no sistema penal; b) A Dogmtica Penal integra o projeto e a trajetria da modernidade no apenas como uma Cincia do Direito Penal, isto , como uma instncia cientfica externa "sobre" ele, mas como uma instncia interna do sistema penal e, enquanto tal, co-constitutiva de sua identidade e integra o seu real funcionamento e desenvolvimento contraditrio, inserindo-se naquele diagnstico da Cincia moderna como problema.
3. Definio, natureza e abrangncia espao-temporal da anlise
Com base no exposto, procuramos responder aos interrogantes originariamente formulados mediante uma anlise interpretativa da Dogmtica Penal como Cincia (funcionalmente ambgua) do sistema penal sob o fio condutor das suas funes declaradas (promessas) e latentes e dos seus dficit e excessos de realizao. O que reivindica partir, coerentemente com a formulao enunciada, das bases fundacionais do paradigma dogmtico e do prprio sistema da Justia Penal. Pois somente este reencontro que possibilita captar as contradies que, estando na base da relao funcional Dogmtica-sistema penal condiciona a sua trajetria histrica. Neste sentido, o fio condutor da anlise apontar a contradio que marca geneticamente a Dogmtica penal entre promessas humanitrias garantidoras e a captura por exigncias reguladoras do sistema penal, a partir da qual se desnudam suas funes latentes. A perspectiva assumida , pois, a de que a resposta quelas questes originrias e a compreenso da situao presente da Dogmtica Penal e dos desafios que esta hoje interpelada a responder demandam mais do que nunca revisitar o paradigma desde suas bases fundacionais. Pois, se verdade que a modernidade no pode fornecer a soluo para os problemas de nosso tempo histrico, "no menos verdade que somente ela permite pens-la." (SANTOS, 1991, p.27) Reinterpretar a Dogmtica Penal nestes termos implica assim uma tentativa de ler o paradigma com uma insero distinta da tradicional. Implica redescobrir nele potencialidades humanistas e virtualidades. Mas implica tambm falar de poder, violncia e dominao enquanto elementos que embora sistematicamente neutralizados e recusados pela sua vocao racionalizadora lhe imprimem significao plena.
Se a opo por uma tal anlise interpretativa j deixa antever a natureza globalizante de nossa investigao baseada, se antecipe, em pesquisa bibliogrfica interdisciplinar, esta opo conduz a esclarecimentos acerca de sua abrangncia espao-temporal. So duas, neste sentido, as questes a ponderar. Em primeiro lugar necessrio considerar que a matriz originria do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica e Jurdico - Penal em particular e da encontra-se na Alemanha sendo posteriormente recebida em outros Estados da Europa continental (Itlia, Espanha, Portugal, Grcia, Holanda etc.) Amrica Latina (Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela etc.) gozando portanto de uma marcada vigncia nesta regio do centro e da periferia do capitalismo mundial. Isto est a indicar que existe um potencial universalista do paradigma dogmtico, que lhe permite funcionar contextualizadamente e fora do lugar do origem; ou seja, para alm da histria interna da Amrica Latina em relao ao Eurocentro e da histria interna de cada Estado integrante de ambas as regies. Pois, tanto a Amrica Latina quanto a Europa, apesar de sua evidente unidade continental, no podem ser vistas como blocos monolticos. Em especial, h tambm uma periferia no interior da prpria Europa, que pode ser vista como uma semi-periferia do poder planetrio (Portugal, Grcia, Espanha). Em segundo lugar, constatao anloga se impe relativamente ao modelo de sistema jurdico e de sistema penal (como parte integrante daquele) da modernidade, cujo potencial universalista o atesta sua conjunto das sociedades capitalistas. Desta forma, embora a apreenso da diversidade regional e contextual no funcionamento dos sistemas penais e da Dogmtica Penal seja um problema que no pode ser abordado seno historicamente a apreenso da universalidade marcada vigncia no
estrutural de seu funcionamento como "modelos" hegemnicos que so, um problema que s pode ser abordado terica e globalmente. E esta universalidade est dada: a) pela existncia de uma lgica de operacionalizao dos sistemas penais que, embora submetida a variaes regionais e contextuais aparece como qualitativamente comum nas sociedades capitalistas; b) pela existncia de funes comuns que, embora submetidas a diferentes apropriaes regionais e contextuais, aparece como o fundamento dos sistemas penais nas sociedades capitalistas; c) pela insero geral da Dogmtica Penal na lgica de operacionalidade do moderno sistema penal. A prpria natureza da investigao, ao partir das bases fundacionais da Dogmtica e do sistema penal, e eleger como marco terico para o seu controle funcional um saber descontrutor que, embora tambm recebido na Amrica Latina, enraizado no capitalismo central, impe este marco como seu referencial de gravitao. Desta forma embora ela pretenda abranger, pelos motivos expostos, tambm a vigncia da Dogmtica Penal na Amrica Latina fundamental assinalar que segue uma orientao centro-periferia. fundamental tambm aduzir que a anlise tem por referencial a vigncia regular da Dogmtica no marco ao qual seu prprio discurso se vincula: a normalidade da vigncia do Estado de Direito. Pois os regimes de exceo, sejam os fascismos, nazismos ou ditaduras europias e latino-americanas colocaram a vigncia da Dogmtica Penal parcialmente sob suspenso. 4. Objetivo e hiptese geral O objetivo geral perseguido, que formulamos aqui como hiptese central da investigao, demonstrar que h, no mbito do sistema penal, um ao que tudo indica, total ou
profundo dficit histrico de cumprimento das funes declaradas da Dogmtica Penal ao mesmo tempo em que o cumprimento excessivo de outras funes (simblicas e instrumentais) no apenas distintas, mas opostas s oficialmente declaradas, que seu prprio paradigma, latente e ambiguamente tem potencializado desde sua gnese histrica. E so estas, desenvolvidas com xito por dentro do fracasso de suas funes declaradas, que explicam sua relao funcional com a realidade social e sua marcada vigncia histrica. As promessas da Dogmtica Penal no apenas se inscrevem na longa agenda das promessas no cumpridas da modernidade mas na prpria "perverso matriarcal" da Cincia moderna. No desdobramento desta hiptese fundamental procuramos inventariar argumentos explicativos dos limites dogmticos na garantia dos direitos humanos contra a violncia punitiva e demonstrar, por outro lado, a profunda separao cognoscitiva entre Dogmtica Penal e realidade social estabelecendo a relao entre seus dficit de segurana jurdica e seu dficit epistemolgicocognoscitivo, assinalando a prpria funcionalidade deste ltimo e, enfim, a especificidade da crise que, por estas contradies, se pode imputar ao paradigma. As concluses da tese apontam assim para uma relao complexa e contraditria entre Dogmtica Penal e sistema penal que a insere no trnsito da promessa de controle da violncia punitiva captura por esta mesma violncia institucionalizada no sistema penal e por uma eficcia instrumental inversa prometida, acompanhada de uma eficcia simblica das promessas: a "iluso" de segurana jurdica. Da porque, embora se trate de uma anlise essencialmente interpretativa da Dogmtica Penal e no prescritiva do seu futuro, o escopo que a orienta sumariar um quadro de contradies que, se desde o pilar da regulao apontam para o sucesso; desde o pilar dos Direitos Humanos apontam para o fracasso e a crise da Dogmtica Penal e para a necessidade de uma suspenso e
auto-crtica do dogmatismo na Cincia Penal. Seu escopo passa, neste momento conclusivo final, de interpretativo a transformador. Nesta perspectiva as preocupaes que a orientam no so inovadoras. Ela insere-se num caminho j secularmente inaugurado relativamente Dogmtica Jurdica em geral e hoje especialmente percorrido por criminlogos e penalistas crticos relativamente Dogmtica Penal, pretendendo engrossar as fileiras dos esforos nesta direo. 5. Estrutura e desenvolvimento da tese A constelao de subtemas e problemas tratados ao longo desta anlise - que o sumrio por sua vez ilustra - no podem ser cobertos nos limites desta introduo. Uma viso panormica do seu desenvolvimento todavia se impe neste lugar. A tese est estruturada em cinco captulo sucedidos de concluso. No primeiro captulo reconstitumos a configurao do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica em perspectiva histrica, situando as heranas e matrizes que o condicionam e a identidade (metodolgica, ideolgica e funcional) estrutural que, ao longo desta configurao, foi assumindo. O que significa produzir uma estilizao da estrutura e funo do paradigma desde suas bases fundacionais at a sua maturidade. no final deste captulo que situamos os eixos recorrentes da crtica histrica Dogmtica Jurdica nos centrando no problema da sua identidade epistemolgica e do dficit de controle funcional da(s) Dogmtica(s) Jurdica(s). No segundo, reconstitumos a consolidao do paradigma dogmtico na Cincia Penal paralelamente consolidao do paradigma etiolgico de Criminologia e a relao primria entre ambos (e a Poltica Criminal) no marco
do modelo integrado de Cincia Penal que oficialmente se consolida na modernidade, partindo de uma reconstituio do moderno saber penal em sentido lato que remonta reforma penal iluminista e Escola Clssica. Abordamos assim a trajetria que vai da Filosofia (saber clssico) Cincia do Direito Penal (saber dogmtico) e da Criminalidade (saber criminolgico) e a construo de um Direito Penal do fato-crime e de um Direito Penal do autor que esta trajetria deixa como legado, acentuando como a consolidao da Dogmtica Jurdico-Penal se d, por um lado, na esteira de um paradigma genrico de Dogmtica jurdica j constitudo mas, por outro lado, como tributria de heranas e problemticas especficas do campo penal em que se insere. Da que a Dogmtica JurdicoPenal seja marcada por uma dependncia paradigmtica ao mesmo tempo em que por uma relativa autonomia decorrente desta especificidade. No terceiro captulo reconstitumos, pois, sua especfica identidade suas (epistemolgica, metodolgica, funcional e ideolgica), demarcando
funes declaradas (auto-imagem funcional) e horizonte de projeo; ou seja, a metaprogramao dogmtica do Direito Penal construda para o cumprimento destas funes, assinalando que ela contm, a um s tempo, um cdigo tecnolgico e um cdigo ideolgico-legitimador. Situamos, a seguir, o universo da crtica interna Dogmtica Penal, centrada no sistema do crime, e da crtica externa ao nvel poltico e metodolgico aqui j referidas, finalizando com as tendncias contemporneas no sistema do crime. No quarto, deslocamos a abordagem da Dogmtica para o sistema penal. Caracterizamos inicialmente o moderno sistema penal e suas estratgias de legitimao. Situamos, a seguir, a trajetria do "impulso desestruturador", isto , a emergncia de um saber crtico e deslegitimador do moderno sistema penal e a "revoluo de paradigma" que ela arrasta consigo , mediante a qual a Criminologia se transforma de uma Cincia das causas da criminalidade (paradigma etiolgico)
em uma Cincia da criminalizao (paradigma da reao social), ocupando-se hoje, especialmente, do controle scio-penal e da anlise da estrutura, operacionalidade e reais funes do sistema de penal, que veio a ocupar um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigao criminolgica. Aps situar a desconstruo epistemolgica, ento operada, do paradigma etiolgico de Criminologia, situamos o horizonte de uma nova relao (secundria) entre Dogmtica e (nova) Criminologia na qual esta assumida, juntamente com a historiografia do sistema penal, como marco terico para a anlise do sistema penal e o controle epistemolgico - funcional da Dogmtica Penal, cujas bases de realizao pontualizamos ao final do captulo. No quinto e ltimo captulo analisamos a configurao, operacionalidade e funes do moderno sistema penal, no marco do sistema social capitalista e realizamos o controle epistemolgico-funcional da Dogmtica Penal com base naquele saber, pontualizando a contrastao entre o funcionamento do sistema penal e metaprogramao dogmtica para o cumprimento das suas promessas , fundamentando a hiptese central da tese e seus desdobramentos. As concluses sintetizam os resultados fundamentais desta contrastao. 6. Mtodo, instrumental terico e esclarecimentos adicionais O mtodo de abordagem adotado o indutivo no sentido que lhe confere ALVES (1983, p.114 e 116)) segundo o qual a induo " uma forma de argumentar, de passar de certas proposies a outras;(...) uma forma de pensar que pretende efetuar, de forma segura, a passagem do visvel ao invisvel." Assim, sempre que se passa do particular para o geral, amplia-se o conhecido, para ir ao
encontro de um argumento ampliativo. "O raciocnio indutivo caracteriza-se, pois, por passar do conhecido ao desconhecido, do visvel ao invisvel." Se a nica estratgia metodolgica utilizada , como j referido, a pesquisa bibliogrfica interdisciplinar, cumpre agora pontualizar como so utilizadas em face do mtodo. Genericamente, pois, enquanto a primeira parte da tese se ocupa da Dogmtica Jurdica e Jurdico-Penal (captulos I,II e III) a segunda (captulos IV e V) se ocupa do sistema penal e do controle funcional baseado na anlise contrastiva. No movimento deste mtodo ela desloca-se, pois, da descrio do saber, desde seu discurso declarado, "visvel", utilizando como fonte o prprio saber descrito e contribuies provenientes da Epistemologia, da Filosofia, Teoria e Sociologia Jurdicas e da Teoria Poltica; descrio do poder e do sistema penal, em cujo marco possvel control-lo e expor seus potenciais funcionais latentes, "invisveis", com base, ento, no saber j indicado: a historiografia do sistema penal, a Criminologia da reao social e a Criminologia e o Penalismo crticos. Da se evidencia que o mtodo de procedimento seguido , por sua vez, o comparativo. O campo, por outro lado, das dificuldades experimentadas e dos prprios limites da anlise proposta acaba por se desenhar no mesmo movimento de sua enunciao. Pois na sua natureza mesma, terica interdisciplinar e globalizante que eles radicam. Se romper com o monlogo que a unidisciplinariedade e a especializao impe cada vez mais necessrio e conseqente, a busca do dilogo interdisciplinar , pela multiplicidade de leituras e domnios que requer, uma tarefa muito rdua e necessariamente aproximativa e inacabada. tais fontes e
Por outro lado, se o que nos propomos a fazer uma anlise interpretativa globalizante e exploratria das funes da Dogmtica Penal que explicam sua marcada vigncia no h como escapar ao considervel grau de abstrao que esta opo implica. Enfim, o nus da horizontalidade , tambm, o dficit da verticalidade analtica - j que muitas das questes apontadas certamente no puderam receber o tratamento merecido. Seja como for, como se trata de fazer uma interpretao em perspectiva histrica, procurando apontar as relaes a ter em vista e no uma "histria de" o panorama pode, como ensina ECO (1983, p.10), "afigurar-se um tanto desfocado, incompleto ou de segunda mo". Em cada captulo priorizamos determinados autores representativos das disciplinas pesquisadas, em razo da expressividade, importncia e convergncia da sua contribuio para a anlise proposta e neste sentido estamos conscientes de ter inflacionado alguns em detrimento de outros do universo pesquisado. necessrio esclarecer, contudo, que as contribuies recolhidas no implicam, na tese, a subscrio integral de suas respectivas teorias, o que geraria incompatibilidades internas insanveis. Por outro lado, as inmeras definies conceituais para as quais o texto desta tese remeteu no devem ser vistas como definies "essencialistas", mas como definies operacionais ao seu desenvolvimento. Priorizamos as citaes diretas, no obstante reconhecer seu peso talvez demasiado no texto, pela sua importncia na argumentao e o seu valor informativo Todas as citaes diretas e indiretas em idioma estrangeiro, foram traduzidas para o idioma nacional do idioma em que se encontravam na fonte consultada, o qual pode ser verificado pela referncia que acompanha as citaes.
Na
relao bibliogrfica final constam, alm das obras diretamente
citadas no texto, aquelas que, embora no citadas, integraram o universo pesquisado, concorrendo de algum modo para a sua realizao.
CAPTULO I
CONFIGURAO E IDENTIDADE DA DOGMTICA JURDICA
1. Introduo Como ponto de partida de nossa anlise sobre o paradigma3 dogmtico de Cincia Penal (Dogmtica Jurdico-Penal ou Dogmtica Penal), impe-se como tarefa preliminar reconstituir a configurao e identidade do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica4 (Dogmtica Jurdica) em sentido lato, pelo menos por dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, porque o paradigma dogmtico no uma
peculariedade da Cincia Penal. Trata-se de um paradigma referido a um modelo geral de Cincia Jurdica e do qual a Cincia Penal, enquanto Cincia Jurdica parcial, ser tributria em sua especificidade. Em segundo lugar, porque, historicamente, o paradigma dogmtico "desenvolveu-se sombra do Direito Privado" (FERRAZ JNIOR, 1980, p.81) e na esteira de uma tradio privatista recebido posteriormente pela Cincia Penal.
3.Do
grego "pardeigma" para o latim "paradigma", o signo traduzido, num dos mais importante dicionrios brasileiros da lngua portuguesa (1986, p.1265) por "modelo, padro, estalo". Empregamos contudo o signo no sentido, j clssico, que lhe imprimiu KUHN (1979, p.219), segundo o qual "um paradigma aquilo que os membros de uma comunidade cientfica partilham. E, inversamente, uma comunidade cientfica consiste em homens que compartilham um paradigma." Uma melhor explicitao deste conceito encontra-se no final deste captulo sob o item "7.2". O signo "matriz" ser usado, por sua vez, para designar um "modelo", apenas, ou um "modelo que condiciona algo".
4. Utilizaremos, indistintamente, todas estas denominaes.
Desta forma, a Dogmtica Penal no apenas se consolidou como um desdobramento disciplinar da Dogmtica Jurdica, mas na esteira de um paradigma j consolidado no Direito privado e em alguns ramos do Direito pblico (HERNNDEZ GIL, 1981, p.36; ROCCO, 1982, p.17-30 passim) e, apesar de possuir uma certa especificidade e uma relativa autonomia, deriva suas condies de produo e possibilidade deste paradigma geral, guardando com ele uma relao de dependncia significativa. O objetivo deste captulo no , assim, reconstruir a histria da Dogmtica Jurdica - o que seria impossvel nos limites desta tese - mas reconstruir a configurao do seu paradigma em perspectiva histrica, situando as heranas e assumindo. Trata-se, portanto, de produzir uma estilizao do paradigma perquirindo os elementos que, desde sua gnese ou bases fundacionais at a sua maturao, vo concorrendo para compor a identidade estrutural que o tipica desde ento at contemporaneidade. Para faz-lo necessrio fixar ento previamente o conceito de Dogmtica Jurdica, cuja configurao procuraremos reconstruir. E fix-lo tomando por referente - acreditamos ser o critrio autorizado - a prpria imagem compartilhada pelos juristas dogmticos sobre o trabalho que realizam (autoimagem), pois precisamente este acordo que evidencia a existncia do paradigma dogmtico na Cincia Jurdica. 5 Assim, na auto-imagem da Dogmtica Jurdica ela se identifica com a idia de Cincia do Direito que, tendo por objeto o Direito Positivo vigente em um5.
matrizes que o condicionam e a identidade (metodolgica,
ideolgica, funcional e epistemolgica) que, ao longo desta configurao, foi
O conceito que segue deve ser entendido, pois, como uma aproximao, uma estilizao, o mais fidedigna possvel, da Dogmtica Jurdica na sua auto-imagem.
dado tempo e espao e por tarefa metdica (imanente) a "construo" de um "sistema" de conceitos elaborados a partir da "interpretao" do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lgico-formais) de coerncia interna, tem por finalidade ser til vida, isto , aplicao do Direito. Trata-se de uma Cincia de "dever-ser" (normativa), sistemtica, descritiva, avalorativa (axiologicamente neutra) e prtica . A Dogmtica Jurdica se concebe como uma Cincia e fala em nome dela:"Os juristas esto geralmente convictos de que a atividade desenvolvida por eles - estudar o direito para facilitar sua aplicao - uma atividade de carter cientfico. Eles, nos seus escritos referem-se freqentemente Cincia jurdica ou dogmtica jurdica e doutrina ou jurisprudncia. Na Alemanha Federal e nos pases fortemente influenciados pelo pensamento jurdico germnico utiliza-se com assiduidade a expresso 'dogmtica jurdica' em sentido positivo. Essa expresso sinnimo de 'Cincia'." (POZO, 1988, p.11)
E a viso que de si mesmo oferece o paradigma de neutralidade valorativa, quer em relao a sistemas econmico-polticos, quer a grupos dentro de um sistema social. Ele se apresenta a si mesmo como compatvel com qualquer sistema pois, em seu sentido epistemolgico, no solidrio de nenhum contedo de Direito. Fixado este conceito, acrescentamos ento que mais do que perquirir como ele se configurou , perqueriremos a identidade da Dogmtica Jurdica para alm de sua auto-imagem seja revelando aspectos que o paradigma no reconhece (como a ideologia e a natureza prescritiva de seus enunciados) por conceber-se de outro modo (como Cincia avalorativa e descritiva) seja problematizando seu estatuto cientfico, embora para reafirm-lo, por vias distintas das dogmaticamente reconhecidas.
Procuraremos ento demonstrar que a Dogmtica Jurdica se singulariza pela adoo de determinado approach ao estudo do Direito, que lhe circunscreve o objeto e pela adoo de determinado mtodo, atendendo a uma ideologia de base e direcionando-se para determinado fim ou funo declarada. da articulao entre approach-objeto-mtodo-ideologia-funo 6 que deriva sua especfica identidade. A conjugao da anlise da dimenso metodolgica com a dimenso ideolgica e funcional da Dogmtica Jurdica fundamental assim, para a
6.
Como salientam pertinentemente HASSEMER e CODE (1989, p.99), em linguagem jurdica tradicional se entende por "funo" as conseqncias queridas ou desejadas de uma coisa, equiparando-se a "meta" ou "misso" e, acrescentamos, fim ou finalidade. Assim no discurso dogmtico vimos o emprego dos signos "funo" "meta", "misso", ou "fim" usados indistintamente neste sentido quando referidos Dogmtica Jurdica e Jurdico-penal. Este significado difere contudo, como advertem ainda os mesmo autores, daquele atribudo "funo" em linguagem sociolgica, na qual designa, tradicionalmente, "a soma das conseqncias objetivas de uma coisa". FERRAJOLI (1986, p.26), ao abordar os equvocos referentes aos debates sobre doutrinas, teorias e ideologias da pena acentua, por sua vez, a necessidade de distinguir entre funo e fim. Pontualiza o emprego do signo "funo", no sentido sociolgico acima aludido, para designar usos tericos descritivos (relativos descrio de um "ser") e a palavra "fim" (que corresponderia "funo" na linguagem jurdica) para indicar usos tericos normativos ou prescritivos (que expressam um "dever-ser"). Pois, adverte, do vcio metodolgico consistente em confundir funo e fim ou, correlatamente, ser e dever-ser, decorre a conseqente confuso entre explicaes (ou descries) e justificaes. Interessa-nos, a partir destas referncias semnticas e metodolgicas, fixar o sentido em que empregamos o signo funo nesta tese. Levando em conta a necessidade de distinguir entre conseqncias desejadas e conseqncias reais ou, segundo FERRAJOLI, entre os planos do "dever-ser" ( a se realizar) e do "ser" (efetivamente realizado) subscrevemos a importncia de distinguir entre fim e funo no sentido por ele aludido. Mas entendemos que esta distino lingisticamente melhor traduzida apelando-se a uma adjetivao do prprio signo funo. Assim, priorizamos nesta tese a expresso funo "declarada", "oficial", "manifesta" ou "promessa", mais do que a expresso "fim" e seus derivados para designar as conseqncias queridas ou desejadas e oficialmente perseguidas pela Dogmtica, expressivas de um "dever-ser". (discurso dogmtico declarado). Usamos a expresso funo "latente" ou "no declarada" para designar as conseqncias que, embora no desejadas ou oficialmente buscadas pela Dogmtica so por ela potencializadas. E usamos, enfim, a expresso funo "real" para designar as conseqncias reais da Dogmtica, ao nvel do "ser" . De qualquer modo, quando a expresso funo aparecer sem adjetivao deve-se ser entendida conforme o contexto, como designativa de um destes significados respeitado, todavia, o emprego que cada autor faz do signo.
compreenso da sua especfica identidade epistemolgica.
identidade e para questionar sua prpria
Preliminarmente, assumimos uma posio sobre a configurao e identidade do paradigma dogmtico de Cincia Jurdica que demarcar a trajetria e os limites de nossa exposio, neste primeiro captulo. FERRAZ JNIOR identifica, a partir da anlise do conhecimento jurdico europeu continental, trs grandes tradies ou heranas jurdicas que constituram a base sobre a qual se originou a Dogmtica Jurdica, neste quadro cultural, no sculo XIX: a herana jurisprudencial (romana), a herana exegtica (medieval) e a herana sistemtica (moderna), cuja perspectiva assim sintetiza:"A verdade que nos pases de tradio romnica o conhecimento do Direito tomou, inicialmente, a forma de uma tcnica elaborada que os romanos chamaram de 'jurisprudentia', caracterizada como um modo peculiar de pensar problemas sob a forma de conflitos a serem resolvidos por deciso de autoridade, mas procurando, sempre, frmulas generalizadoras que constituram as chamadas doutrinas. Na Idade Mdia, sobretudo na poca dos glosadores, quela tcnica jurisprudencial acrescentou-se ainda, como um ponto de partida para qualquer discusso, a vinculao a certos textos romanos, especialmente o 'Cdigo Justinianeu', o que foi dando s disciplinas jurdicas uma forma de pensar eminentemente exegtica, base da Dogmtica Jurdica. Com o advento do Racionalismo, nos sculos XVII e XVIII, a crena nos textos romanos acabou substituda pela crena nos princpios da razo, os quais deveriam ser investigados para serem aplicados de modo sistemtico. No entanto, foi no sculo XIX que as grandes linhas mestras da Dogmtica Jurdica se definiram. A herana jurisprudencial, a herana exegtica e a herana sistemtica converteram-se na base sobre a qual se erigiu a Dogmtica Jurdica, tal qual a conhecemos hoje, qual o sculo XIX acrescentou a perspectiva histrica e social." (FERRAZ JNIOR, 1980, p.3)
A importncia desta perspectiva , a nosso ver, a de assinalar o tributo que a configurao do paradigma dogmtico deve, por um lado, histria do pensamento jurdico (europeu continental), evidenciando que, ao se perquirir a gnese da Dogmtica Jurdica, no se pode ignorar a tradio jurdica e o grau de racionalizao do conhecimento do Direito por ela acumulado.
Contudo, foi apenas no sculo XIX que as grandes linhas mestras do paradigma dogmtico se definiram; ou seja, que se configuraram definitivamente os elementos caractersticos deste paradigma tal como se transferem Cincia Jurdica posterior. Por um lado, pois, entendemos importante conceber o paradigma dogmtico como herdeiro de elementos que, embora redefinidos no seu interior, em funo de sua especfica identidade, foram originariamente gestados em tradies jurdicas do passado. Mas se aquela trplice herana jurdica a que nos referimos contribuir, por um lado, para conformar a identidade do paradigma dogmtico; por outro lado, seria equivocado conceb-lo meramente como o produto de uma recepo linear e cumulativa destas tradies, uma vez fruto de uma confluncia de fatores. Neste sentido"(...) a dogmtica jurdica no pode ser vista apenas como o produto ou resultado de uma evoluo universal de conceitos e mtodos atrav