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MORILA, Ailton Pereira (2016). Métodos pioneiros de ensino musical no Brasil: críticas, lutas e rivalidades. Per Musi. Ed. por Fausto Borém, Eduardo Rosse e Débora Borburema. Belo Horizonte: UFMG, n.34, p.1‐34. 1 DOI: 10.1590/permusi20163401 ARTIGO CIENTÍFICO Métodos pioneiros de ensino musical no Brasil: críticas, lutas e rivalidades Pioneering Music Teaching Methods in Brazil: Criticism, Contest and Rivalries Ailton Pereira Morila Universidade Federal do Espírito Santo, São Mateus, Espírito Santo, Brasil [email protected] Resumo: No final do século XIX e início do século XX, transformações políticas e sociais marcaram o Brasil: abolição, imigração, República, reformas urbanas. Um dos motes destas reformas era a educação. A educação elevaria o Brasil à nação civilizada. Na educação, a música se apresentava como importante e até essencial. O ensino musical tornou‐se preocupação de músicos e educadores. No estado de São Paulo, vários métodos foram criados. A cada método inúmeras críticas e discussões se seguiam. O objetivo deste artigo é trazer a tona alguns destes métodos pioneiros bem como as críticas, lutas e rivalidades em torno deles, que denunciam não somente uma questão educacional, mas uma luta por espaços sociais, notadamente na cultura escolar, erudita e popular. Palavraschave: educação musical no Brasil República (século XIX e XX); métodos de ensino musical; cultura escolar erudita e popular. Abstract: In the late nineteenth and early twentieth centuries, political and social transformations marked Brazil: abolition, immigration, Republic, urban reforms. One of the themes of these reforms was education. Education would elevate Brazil to a civilized nation. In education, music was presented as important and even essential. Music teaching became a concern for musicians and educators. In São Paulo, several methods have been created. Much criticism and discussions followed every emerging method. The purpose of this article is to bring to light some of these pioneering methods as well the criticism, contests and rivalries around them which voiced not only a matter of education, but a contest for social spaces, especially in the educational, scholarly and popular culture. Keywords: Music Education in Republican Brazil (nineteenth and twentieth centuries); musical teaching methods; scholarly and popular culture in education. Data de recebimento: 03/12/2015. Data de aprovação final: 29/03/2016.

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DOI:10.1590/permusi20163401

ARTIGOCIENTÍFICO

MétodospioneirosdeensinomusicalnoBrasil:críticas,lutaserivalidades

PioneeringMusicTeachingMethodsinBrazil:Criticism,ContestandRivalriesAiltonPereiraMorilaUniversidadeFederaldoEspíritoSanto,SãoMateus,EspíritoSanto,[email protected]:NofinaldoséculoXIXeiníciodoséculoXX,transformaçõespolíticasesociaismarcaramoBrasil:abolição,imigração,República,reformasurbanas.Umdosmotesdestasreformaseraaeducação.AeducaçãoelevariaoBrasilànaçãocivilizada.Naeducação,amúsicaseapresentavacomoimportanteeatéessencial.Oensinomusicaltornou‐sepreocupaçãodemúsicoseeducadores.NoestadodeSãoPaulo,váriosmétodosforamcriados.Acadamétodoinúmerascríticasediscussõesseseguiam.Oobjetivodesteartigoétrazeratonaalgunsdestesmétodospioneirosbemcomoascríticas,lutaserivalidadesemtornodeles,quedenunciamnãosomenteumaquestãoeducacional,masumalutaporespaçossociais,notadamentenaculturaescolar,eruditaepopular.Palavras‐chave:educaçãomusicalnoBrasilRepública(séculoXIXeXX);métodosdeensinomusical;culturaescolareruditaepopular.Abstract:Inthelatenineteenthandearlytwentiethcenturies,politicalandsocialtransformationsmarkedBrazil:abolition,immigration,Republic,urbanreforms.Oneofthethemesofthesereformswaseducation.EducationwouldelevateBraziltoacivilizednation.Ineducation,musicwaspresentedasimportantandevenessential.Musicteachingbecameaconcernformusiciansandeducators.InSãoPaulo,severalmethodshavebeencreated.Muchcriticismanddiscussionsfollowedeveryemergingmethod.Thepurposeofthisarticleistobringtolightsomeofthesepioneeringmethodsaswellthecriticism,contestsandrivalriesaroundthemwhichvoicednotonlyamatterofeducation,butacontestforsocialspaces,especiallyintheeducational,scholarlyandpopularculture.Keywords:MusicEducationinRepublicanBrazil(nineteenthandtwentiethcenturies);musicalteachingmethods;scholarlyandpopularcultureineducation.Dataderecebimento:03/12/2015.

Datadeaprovaçãofinal:29/03/2016.

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1‐Introdução

DetodososprogrammasdosdiversosestabelecimentosdeeducaçãofazparteoensinoprimariodamusicaeéesteoquemaisserioscuidadosdevemerecerdoGoverno, attenta a insufficiencia da maoria dos compendios adoptados e aopiniãocontroversadosprofessores.LeopoldoMiguez,1891.1

NoiníciodoperíodorepublicanonoBrasilpareciahaverumconsenso:aeducação

musicalera importanteparaodesenvolvimentodopaís.Amúsicasintetizaria “o

graodeculturadeumpovo,aforçamoraldeumEstado”(AMúsicaparatodos,1897,

p.200‐201). Mas o consenso não ia muitomais longe do que isto. Como educar

musicalmente,foraedentrodaescola,foiumaquestãopolêmicacomodemonstra

LeopoldoMigueznaepígrafe,entãodiretordoInstitutoNacionaldeMúsicadoRio

deJaneiro.

NoestadodeSãoPaulo,váriosmétodosforamcriados.Outrosforamimportados.A

cadamétodo utilizado ou criado inúmeras críticas se seguiam. Para além destes

métodososmúsicospopularesaprendiamassistematicamenteemummétododa

rua, aquecendo aindamais asdiscussões.O objetivodeste artigo é trazer a tona

algunsdestesmétodospioneirosbemcomoascríticas,lutaserivalidadesemtorno

deles, que denunciam não somente uma questão educacional,mas uma luta por

espaçossociais,notadamentenaculturaeruditaenaculturaescolar.

2‐Denunciandooproblema

Emartigointitulado“oensinodemúsicanasescolaspúblicas”,publicadon’AMúsica

paratodosem1898,oautor,quenãoseidentificou,masqueojornaldizser“pessoa

competente” criticaoensinodemúsicanasescolas.Apesarde serumestudode

muitosanos,osalunossaiamdespreparados.Nãoparaaíacríticadesteartigo.Os

coros escritos para as festas escolares eram, segundo ele, de péssima qualidade.

Habaneiras em versos impróprios, fugattos descompassados com a poesia,

1 Nopresenteartigo,mantém‐seagrafiaantigadoportuguêsemcitaçõescomoem“ensinoprimariodamusica”.

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composiçõesquenãosepreocupamcomaidadedosintegrantesdocoroeassimpor

diante. Como uma possibilidade de solução, o autor propõe trazeremda França,

AlemanhaeItáliacorosescritosporpessoascompetentes,incentivandoassimque

oscompositoreslocaisseesforcemparaproduzircorosdemelhornível.Aquestão

é assim posta: enquanto que nestes países existe uma preocupação com a

composiçãoespecíficaparaaescola,ouemoutraspalavras,háespecialistasneste

gênerodecomposição,noBrasilsegundooautor“Tuttiquantiescrevem!”.Enfim,o

autorsugere:

Cremos que os coros para as escolasmodelos, devem sermuitosimples,quasepopulares,porquesetratageralmentedealunosdetenra idade; os da escola normal ao contrário, devem ser maissérios,nãonoestilofugato,quandoaletranãocomporta,porémnogêneromaisvariado:‐aduas,tresemesmoquatropartes.Convémque se de uma instrução sólida a esses alunos, banindo ascomposiçõesdepessoasincompetentes;representandomesmoaogoverno nesse sentido, pedindo para que as composições quetenhamdeserexibidasnessasescolas,sejamaprovadasporumacomissão especial, a fim de evitar‐se o descalabro, como tiveocasiãopresenciarnumadasfestasúltimas.(AMúsicaparatodos,1898,p.452)

Uma boa orientação, uma seleção e uma comissão especial seriam instrumentos

paraamelhoriadaqualidade.

Outroartigo,de1899,escritocomopseudônimode“colombat”,retomaacrítica,

agoravoltadaparaoensinodecanto.Nãosomenteocantoescolar,mastambém

foradaescola.Logonoiníciodoartigo,oautordispara:“Queméquenãoensina

canto n’esta cidade? Bastamandar abrir a boca e gritar, eis o que é necessário!

Quantasvozesarruinadaspela incapacidadedoprofessor!” (AMúsicapara todos,

1899,p.538).Alertandoospaiseopúblicoemgeralparaosmalefíciosdeumensino

de péssima qualidade, o autor chama os professores de charlatães e aponta até

mesmoasdoençasquepodemadvirdesteensino:rouquidão,inflamaçõesdalaringe

efaringeentreoutras.

Seacríticaésimilaraoartigoanterior,asoluçãotambémépróxima.Primeiro,o

professordeveterumconhecimentocientíficoprévio:ter“oconhecimentoexatodo

complicadomecanismodesteórgãomysterioso”,saberofuncionamentodonariz,

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gargantaseriaagarantiaparaseevitarexcessos.Aliadoaoconhecimentocientífico

prévio, os professores deveriam preocupar‐se com “a importante questão da

interpretação”,poisoensinoéfeito“semomenorescrúpulo,sendodesprezadasas

leisdaprosódia,oconhecimentodalíngua,dasituaçãoedosentimentoquesedeve

exprimir”.Completando,oautorpropõealgumasregrasbásicasaseremseguidas:

1ºNãofazerasjovensalumnascantarmusicasforadoregistrodesuavoz.

2ºNãoobrigal‐asafazerexerciciosmuitoprolongados.

3ºProcurarconservarorigor,adoçuraeharmoniadesuavoz.

4ºEvitarnãosóoexagerodossonsagudosdepeitoecabeça,comoocoloridodasAriasDramáticas.(AMúsicaparatodos,1899,p.538)

Noprimeiroartigo,damesmamaneira,oautorrecorreuaalgumasregrasbásicas

paraoensinodemúsica.Seoensinodemúsica,ocantocoraleoensinodemúsica

vocalsãopermeadosporum“faltademétodo,efaltadeumaorientaçãosegura”a

soluçãoseria:

É chamar o digno professor da escola normal, moço preparado,combinarcomeleeauxíliodemaisprofessoresdestacapital,qualo meio que se deva seguir, porque assim ficará estabelecido oensino regular, adotando‐se um só compêndio para todas asescolas...(AMúsicaparatodos,1898,p.452)

Aadoçãodeummétodoúnicoportodasasescolas,métodoestereferendadopelos

professoresdemúsicada cidade,ebaseadonas regrascientíficasdeentãoeraa

soluçãopropostaporestesdoisartigos.

Entretanto, na época em que estes dois textos foram escritos (1898 e 1899), já

existiammétodosdeensinomusical.E críticas.A cadamétodoque surgia coma

pretensãodeseroúnico,acríticasefaziapresenteeapolêmicaseacentuava.

3‐PrimeirosmétodosemSãoPaulo

Aprimeirasugestãoconhecidadesecriarummétodoúnicoparaaeducaçãomusical

emSãoPaulo,partedeEliasAlvaresLobo,porocasiãodafrustradainiciativadese

criar uma associaçãomusical no estado em1875.Umadas pautas do congresso

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realizadonacapitalera:“Apresentarmosnossosmethodosdeensino,discutirmose

adoptarmosomelhor.”(citadoporSERGL,1991,p.237)

Propostanãorealizada,aoqueparece.Noanoseguinte,TristãoMarianodaCosta,

umdosorganizadoresdocongresso,aindaexultavaosmúsicosaunificaremosseus

métodos,pois:

...oensinoeracommummentefeitoporumaartinhaqueseresumianomanuscriptodeumafolhadepapel!Eesteensinoaindaéfeitona província, por demais complicado e imperfeito, levando odiscipulomuitotempoparaaprendermaloquepoderiaconseguircommaisperfeiçãoeemtempolimitado.(AProvinciadeSãoPaulo,24/09/1876)

TristãoMarianodaCostautilizava,entretanto,ummétodomusicalcomseusalunos

desde 1870. Tratava‐se do ABC musical de Raphael Coelho Machado, músico

português radicado no Rio de Janeiro. Apesar da existência e utilização deste

método,eleafirmaquepoucosoconheciam,etalvezporissoseutilizassemde“um

manuscriptodeumafolhadepapel”:“AtébempoucotempooABCmusicaldogrande

Raphael CoelhoMachado, amelhor arte actualmente para o ensino primário da

musicaeradesconhecidoentrenós...”(AProvinciadeSãoPaulo,24/09/1876).Mas

seem1876,estemétodoerapoucoconhecido,estecenáriodevetersemodificado,

poisestaobracontoucompelomenos40edições.

VoltandoaocongressoeaosapelosdeEliasAlvaresLoboeTristãoMarianodaCosta,

frustrou‐se a expectativade se criarummétodoúnico referendadopor todosos

professores.EliasAlvaresLoboparece,noentanto,terchamadoatarefaparasi,pois

em1875terminouseuMethododeMusica,emBethlemdeJundiahy.(SERGL,1991,

p.242)

OutrapossibilidadeéqueométododeEliasAlvaresLobojáhaviasidoescritoea

idéiaerareferendá‐lonocongresso,oqueacabounãoacontecendo.Estahipótese,

reforçadapelo fatodequeEliasAlvaresLoboe seu cunhadoTristãoMarianoda

Costatenhamorganizadoocongressoecolocadonapautadediscussõesaquestão

dométodo,éverossímil,apesardeserdedifícilconfirmação.

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OMethododemusica2teveasuaprimeiraediçãoem1877,easegundaediçãoem

1881. Em 1896, uma terceira edição estava à disposição, provavelmente em

decorrênciadetersidoaprovadopeloConselhoSuperiordeInstruçãoPúblicado

EstadodeSãoPaulonoanoanterior,parausodasescolaspúblicasdeSãoPaulo.

(SERGL,1991,p.245‐246)

Elias Alvares Lobo teria ainda outra obra publicada e aprovada pelo Conselho

SuperiordeInstruçãoPública,aArtedaMusicaemdiálogo–específicaparacrianças

–obraquesegundoSERGL(1991,p.247)seperdeu.Estaobrateveaaprovaçãode

Raphael Coelho Machado em carta publicada n’A Provincia de São Paulo

(11/11/1876).

ApesardaaprovaçãodeRaphaelCoelhoMachado,aliásprofessordeEliasAlvares

Lobo, e da afirmação de SERGL (1991, p.242) dizendo que ométodo “se tornou

grandementeaceitopelosmúsicospaulistas”,ométodosofreucríticasseveras.

AscríticasvieramapósaaprovaçãopeloConselhoSuperiordeInstruçãoPúblicado

EstadodeSãoPaulo,quandooMethododemusicacontavacomsuaterceiraedição.

Oprimeiroamanifestar‐sesobreaArtedamusicaemdiálogoéA.Karr.,emartigo

n’APaulicéia:

Aformadeexposiçãousadapelovelhoprofessoréodiálogo,enãonospareceserestaaformamaisadequadaaoensino.

Pode‐se dizer que o diálogo está varrido de todos os livrosdidacticos. É melhor deixar a cargo e a juízo de professor asperguntas que tiver que fazer, fornecendo apenas o livro asubstanciaparaasrespostas.(APaulicéia,1896n.34,p.7)

ComrelaçãoaoMethododemusica,oautorapesardeconfessar‐senãoentendedor

demúsica,disparacríticasàorientaçãopedagógica,poisaoinvésdefornecer“idéias

perfeitas e exactas”, o livro se perde em comparações complicadas.A linguagem

também elucida a posição do autor com relação a obra de Elias Alvares Lobo:

agradeceorecebimentodo“livrinho”,eserefereaoautorcom“velhoprofessor”que

utilizaumvelhométodo.

2 Uma análise do método pode ser vista em MORILA (2004).

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Nãoparaporaíacríticanoperiódico.Nonúmero35,apareceoutramanifestação,

queiniciachamandoaobrade“compendiositodemusica,queéaomesmotempo

umapequenaencyclopédiadorisoedagalhofa”.Exagerandonaironia,continuao

autor,agradecendoporCarlosGomesachar‐semortoenãoterodesprazerdelero

que o amigo Elias Alvares Lobo escrevera. Elias Alvares Lobo é alvo de crítica

justamente naquilo que estava convencido tratar‐se de uma inovação, a

simplificaçãodasdefinições.Assim,adefinição“ocompassoéamedidaexactado

tempoӎridicularizadanosseguintestermos:

Atéaquitodosjulgávamosqueamedidadotemposeobtinhapelosmovimentos da terra; teremos de reformar o calendário eintroduzir o compasso, como novíssimo regulador. E estadescobertadoKeplermusicalnadaé,emcomparaçãocommuitasoutrasdoseulivrinho.(APaulicéia,1896n.35,p.7‐8)

Senoartigoanteriorametodologiaeo seuautoreramcriticadoscomovelhose

atrasados,agoraosãoasdefiniçõesporseremsimplóriasepornãocorresponderem

à verdades científicas, como esperaria o autor do artigo. Em carta enviada ao

periódicoAMúsicaparatodos,umassinante(A.P.S.)explicaqueéumamanteda

músicaequeprocuraensinarosseusfilhosemsuaprópriacasaeporsuaconta,

visto não dispor de recursos suficientes para mandar seus filhos a uma escola

especializada.Dentrodestecontexto,dizinteressar‐seporqualquerobradidática

emportuguês,oqueolevouacompradaArtedamúsicaemdiálogodeEliasAlvares

Lobo.Oleitorsemostraadmirado,tantocomoautordaobraquantopela“boafé”

doConselhoSuperiordeInstruçãoPúblicadoestadodeSãoPauloemaprová‐la.De

liçãoemlição,vaiexpondoascontradições,ascomparaçõespoucoexplicativas,a

pontodedescreveraobracomoa“artinhadeEliasAlvaresLobo”(AMúsicapara

todos, 1897, p.179‐181), aproximando‐a, com essa designação, dos compêndios

adotadosnoscolégiosjesuítasdoperíodocolonial.

Antes dos métodos de Elias Alvares Lobo serem aprovados pelo Conselho de

Instrução Pública – e surgirem críticas na esteira da aprovação – os métodos

utilizados nas escolas eram adaptações de consagrados métodos utilizados no

exterior.GabrielPrestes(1895,p.138),emseuRelatóriodaEscolaNormalescreve

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que na EscolaNormal “Caetano de Campos” era utilizado ométodoGallin‐Paris‐

Chevé.

OmétodoGallin‐Paris‐ChevésurgiunaFrançaem1817,porobradePierreGallin.

Foiposteriormentemodificadoporumseudiscípulo(AiméParis),suairmã(Nanine

Chevé),eomaridodesta(EmilChevé)tendocomofontedeinspiraçãoRousseau.

Gallinchamavaseumétododemeloplasto.Depoisdasmodificaçõespassouaser

conhecido como método modal Rousseau‐Galin‐Paris‐Chevé ou simplesmente

Gallin‐Paris‐Chevé3.

Segundo GILIOLI (2003), o método foi trazido ao Brasil por João Gomes Jr.

Entretantonãohá indíciosque corroboremesta afirmação.Ao contrário,Gabriel

Prestes,entãodiretordaEscolaNormalafirmaemseurelatório:

Paraoensinodemúsica,adoptou‐seoanopassado[1894,paraosegundoanodaEscolaModelo]osystemadenominadoGalin‐Paris‐Chevé, do qual nos offereceu o dr.JoãoKöpke algunsmanuais, ecolleçõesdeexercícios.(1895,p.138).

AlémdasprópriaspalavrasdePrestes,devemoslevaremcontaque,em1894,João

Gomes Jr. ainda não estava na Escola Normal, mas lecionava na Escola Modelo

“PrudentedeMoraes”,aopassoqueKöpkeeraumconhecidoeducador,vezeiroem

novidades pedagógicas, importando materiais do exterior nas suas escolas. De

qualquermodo,KöpkeePresteseramconhecidosepartilhavamdomesmocírculo

derelaçõesdelongadata(HILSDORF,1986),reforçandoaversãodequeseriaKöpke

ointrodutordestemétodo.

OutrométodoemvoganaEscolaModeloerao“Tonic‐solfa”,comoafirmouPRESTES

(1895,p.138):“Oensinodemúsicanaescolaéiniciado,comojádeixeidito,pordous

processos: o tonic‐solfa e o systema Galin”. Semelhante aométodo Gallin‐Paris‐

Chevé, o Tonic‐solfa teve seu desenvolvimento na Inglaterra. Enquanto que o

métodofrancêstransformavaasnotasemnúmeros,“...ométodoinglêsgrafaasnotas

com letras (Dópord,Répor r,Miporm,etc.), as quais tambémrepresentamapenas a

3 Para explicação deste método ver GILIOLI (2003).

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posiçãorelativadossons,istoé,ointervaloentreeles”.(GILIOLI,2003,p.61).Achegada

destemétodo aoBrasil tambémnão está clara. SegundoGILIOLI (2003) foimiss

Brownequeoadotounasescolaspaulistas.GomesCARDIM(1926)confirmaisto.

Entretanto, como Gilioli mesmo afirma, o “Colégio Piracicabano pode ter sido o

pioneirona inovaçãodapedagogiamusicaldaépoca”adotandoométodoTonic‐

solfa. Gilioli sustenta a afirmação com base na procedência estadunidense do

colégio,equenosEstadosUnidosotonic‐solfagozavadepopularidade(2003,p.86).

Provavelmente,comomissBrowneera ligadaàEscolaAmericanadeSãoPaulo,e

estaeoColégioPiracicabanoeramescolasamericanasdeconfissãoprotestantecom

profundasligaçõescomasliderançasrepublicanasdoperíodo(HILSDORF,1986),

ambasconcorreramparafazercircularessametodologiadeensinomusicalemSão

Paulo,noperíodo.

De qualquer maneira, é interessante notar que concorriam dois métodos

semelhantes (mas com notações diferentes) nos dois primeiros anos da Escola

Modelo.Umdelesdeorigemfrancesaeoutroinglês(largamenteutilizadonosEUA).

Duas nações consideradasmodelos para a reforma pública paulista. Como eram

conciliados estes dois métodos não podemos saber, mas podemos inferir a

existênciadeconfusõesporpartedosalunos.AnotaDóerarepresentadapordora

por1.Apartirdo4ºano–nosexplicaPRESTES(1895)–a“notaçãocomum”,ouseja

Dó,eraadotada.Antesdisso,muitoprovavelmenteométododoportuguêsEduardo

MACEDO(1886)intituladoPrincipiosElementaresdemúsicaparausodasescolas

deensinoprimáriodeumeoutrosexocolligidossegundooprogrammaofficialfoi

utilizado,oupelomenosanalisado,poisnoarquivoPauloBourroulencontra‐sea

segundaediçãodomesmo,comcarimbodaEscolaNormal.

Portanto,quandoa imprensaespecializadaclamavaporumaqualidademaiorno

ensinomusical em 1898 e 1899, ométodo de Elias Alvares Lobo (aprovado em

1895), o método de Raphael Coelho Machado, o método de Eduardo MACEDO

(1886),métodoGalin‐Paris‐ChevéeométodoTonic‐solfaconcorriamparaoensino

musicaltantonasescolaspúblicasquantoparaoensinoparticular.

Noperíododedoisanos(1894‐1895)trêsmétodoslutavampelaprimaziadesero

único,procurandosubstituirosantigosmétodosatéentãoemvoga.OMétodode

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Elias Alvares Lobo foi omais criticado, ou o quemais críticas se publicaram na

imprensa especializada. Talvez por ser mais visível – foi publicado no Brasil,

enquantooTonic‐solfaeGalin‐Paris‐Chevénão–outalvezporquerecaíssesobre

ele uma enorme expectativa pois tratava‐se do primeirométodo aprovado pelo

governo republicano, e mais ainda, escrito por um republicano histórico. As

inovações no método: novas nomenclaturas, comparações e linguagem simples

foramasmaiscriticadas.Otonic‐solfaeoGalin‐Paris‐Chevénãoreceberamcríticas

tãoefusivasnaimprensa–mesmoporqueficaramrestritos,aoquetudoindica,ao

ambiente escolar. De qualquer maneira, sofreram críticas posteriores, de

professoresoriundosdaprópriaescola.

Deixemosaescolaporuminstanteevejamosoqueocorriaforadela.

4‐Ummétodoinovador...epolêmico

NãoforamsomenteosmétodosdeEliasAlvaresLoboquecausarampolêmicano

período.Outroprofessor,distantedoensinopúblicooficial,enfrentoucríticasaoseu

métodomusical. Luigi Chiaffarelli foi uma figura demuita notoriedade na época

aliandoum“marketingavantlalettre”,comopercebeuGONÇALVES(1995,p.186),

aumametodologiaaclimatadadaEuropa,chamouaatençãodosprofissionaisedos

amadores,arrebatandoopúblicocomosconcertosquerealizava.

Aprimeirapolêmicaquevazouparaaspáginasda imprensa foientreeleeFelix

Otero, entãodiretordoperiódicoAMúsicapara todos. Antesde adentrarmosna

polêmica,conheçamosumpoucodasidéiasdeChiaffarelliarespeitodaeducação

musical através de suas obras. A preocupação técnicadeChiaffarelli resultouna

publicaçãodoMethodobreveefacildeleituradasnotasmusicaesespecialmentepara

uso dos pianistas, enquanto a preocupação com um conhecimentomusical geral

resultounasMigalhasdeeducaçãomusical.Comrelaçãoàtécnica,Chiaffarelliera

minucioso.Criticavao“methododeensinaramartello”(s/i,p.22)eilustravaoque

issoqueriadizercomhistóriaspitorescas:

Umamenina,muitoroseaemuitopacataperguntaàprofessoradesua irman, quenomomento está tocandocomphrenesi, paraosvisinhosdaesquinaapreciarem,abençamdospunhaes,noterceiroacto dos Huguenotes: ‘Senhora professora, para que serve tocarpiano?’‐Eaprofessoraconfusaezangade:‘Menina,custapoucoser

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MORILA,AiltonPereira(2016).MétodospioneirosdeensinomusicalnoBrasil:críticas,lutaserivalidades.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.1‐34.

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ignorante!’Abôasenhoraexplicavamaisdoqueellapensava.Masé justamente este barulho insupporttavel que afasta a gentedosconcertos; é elleque sedeve combater: émesmoáquellas vozesterríveis, discordantes, que saemdos pianos espavoridas que sedeveimporsilencio.

Duvidar‐se‐iadatãoapregoadaforçaeducativadamusica!

Sua preocupação com a técnica foi analisada exaustivamente por JUNQUEIRA

(1982),quealémdassuasobrasutilizoutambémcomofontesascadernetasdeseus

alunos. A postura, a posição dos braços e das mãos, a percussão das teclas, a

articulação dos dedos, as escalas, os arpejos, os acordes, o ouvido, nada parecia

passardesapercebidoaomestre.

Poroutrolado,Chiaffarelliacreditavaquesóatécnicaseriainsuficienteparaformar

um músico. Em sua obra Migalhas, em dois volumes, ele demonstra uma

preocupação que poderíamos chamar de histórica. Acreditava que suas alunas –

assimcomoqualquermúsico–deveriamterumprofundoconhecimentonãosódas

obrasdoscompositores,mastambémdesuasvidasedahistóriadamúsicaemgeral.

Aliadoaestapreocupaçãohistóricaeanecessidadedesuasalunasapresentarem‐

seempúblicoChiaffarelliorganiza,apartirde1896,umasériedeconcertoscomo

título de históricos. Os concertos históricos eram abertos ao público em geral e

Chiaffarelli publicavanos jornais os programasdestes concertos, alémde enviar

convites.Maisdoqueexporsuasalunasaopúblico,Chiaffarelliprocuravacriarum

público.Nestesentido,OEstadodeSãoPaulopareceterentendidoesteobjetivodos

ConcertosHistóricos:

AchamoslouvávelatentativadoprofessorChiaffarellivulgarizarosconhecimentossobreamúsicaeosmusicos,habilitandoopublicoa apreciar as tendencias actuaes da grande arte, a conhecer aevolução dos processos, do estylo, das maneiras e de tudo quedirecta ou indirectamente se prende a musica, deve merecerapplausos incondicionaes de professores, de amadores e dossimples curiosos. Para esta vulgarização intelligente muito temcontribuído o professor Chiaffarelli com os seus concertoshistoricosdemusica,sebemqueoauditoriodestesconcertossejarestricto.(OEstadodeSãoPaulo,6/6/1898,p.1)

Apesar de a frequência não ser sempre significativa, com o auditório formado

principalmentepelosfamiliareseamigosdasalunas,Chiaffarellinãodesanimava.

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Discursandoantesenosintervalosdecadaconcerto,expunhasuasidéias,instavao

apoio do governo, exigia maior empenho dos músicos no intuito de criar uma

tradiçãomusicalnacidadeenfim,ministravaumaaulamagnanãosóassuasalunas

masatodoopúblicopresente(JUNQUEIRA,1982).Foram60concertoshistóricos

até 1901, quando passa a realizar “saraus musicaes” que duraram até 1913.

(JUNQUEIRA,1982,p.216‐228).

NãoésemrazãoqueLuigiChiaffarelliaindahojeénomelembradonahistóriado

ensinodemúsicaemSãoPaulo.Aquantidadedealunosque teve, aliadaàs suas

iniciativasmusicais,garantiuaeleumlugarprivilegiadonahistóriaenamemória

musicaldacidade.

Massehouvereconhecimento,tantohojequantonaépoca,nãofaltaramtambém

críticas.FelixOtero,diretordoperiódicoAMúsicaparatodospublicaumasériede

críticasàChiaffarelli.Esteporsuavezfazaréplicaoqueimplicaemtréplica.Aos

doisvemse juntarGustavoWertheimer,quetambémcriticaChiaffarelli.Durante

todooanode1897apolêmica sedesenrolanaspáginasdoperiódico4. Semnos

preocuparmos com a validade ou não dos argumentos apresentados pelos

contendores,umacoisaécerta:oensinomusicalemSãoPaulo,dentroouforadas

escolas,estavalongedeumconsenso.

5‐Ométododarua

Emoutroextremodoensinomusicalencontramososmúsicospopulares.Podemos

falaremmétodos?Comosedavaaaprendizagemmusical?Amúsicaeraaprendida

assistematicamentenodia‐a‐diadasclassespopulares.Esteaprendizadomusical,

comumentechamadode“aprenderdeouvido”foibemdescritoemartigodaépoca.

Trata‐sedoartigo“Musicosamadores”,noqualAlfredoCamaratedeixaregistrado

esteaprendizado,apesardoobjetivoserbemoutro,oderidicularizaredesabonar

estetipodemúsico.ApesardeCamarateexemplificarocasodoaprendizadoparao

piano,nãodeixademencionaroutrosmúsicos.Orabequista,oflautista,cornetistas

e cantores.Muito provavelmente Camarate se preocupa com a “pianolatria” que

4 Um resumo deste debate pode ser visto em MORILA (2004).

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segundoanáliseposteriordeMáriodeAndrade,assolavaacapitalpaulistanoséculo

XIX.(1975,p.17).CAMARATE(AMúsicaparatodos,1899,p.554)dispara:“Pôeum

diaodedon’umtecladodepianoefez‐semusicoamador;oqueémuitodifferente

deamadordemusica.”

Aherançamaterialédecisivaaquiparaoaprendiz.Osimplesfatodaexistênciado

instrumentonoseucotidianopermite‐lhe–senãooimpele–familiarizar‐secom

ele.Aprendeentãoamanusearalgumasnotas(“castigaroitonotas”)eutilizando‐se

damemóriamusicalreproduzumlundu(“olundu,olunduclássico,quesechama

lundu,comosepoderiachamaroutracousa”).Aprimeiracançãoreproduzidano

instrumentoé,comodeixaclaroCamarate,umacançãosimplesebastantecorrente.

Este músico iniciante ouviu e a viu tocar inúmeras vezes, permitindo uma

memorização.

Cabe aqui umparêntese sobre a construçãomelódica das canções populares. As

canções populares são transmitidas oralmente e não como partituras. NETTL

(1986)indicaestecomoumdosmotivosdasimplicidadedasmesmas.Assimsendo,

asimplicidadedalinhamelódicasimplificaotrabalhodomúsicoemdecorá‐la.De

maneiraanáloga,asimplicidadedascançõesauxiliaomúsicoinicianteareproduzi‐

lademodorazoável.

Antesdestasanálisesdascançõespopularesquesedesenvolveramcomoauxílioda

antropologia e constituíram um campo específico do saber musicológico – a

etnomusicologia – a simplicidade destas era mormente vista como pobreza de

composição. Se a linhamelódica era simples de ser entendida e memorizada, o

arranjo poderia, entretanto, ser modificado livremente pelo executante. Neste

sentido, o executante atua também como compositor, pois acrescenta à linha

melódicaelementosdeacordocomsuacapacidadeevontade.

Voltando ao músico exemplar de Camarate, este continua a experimentar e

experimentarasteclasdopiano,semquemaisnadalhesaiadoinstrumento.Está

reduzidoadoisacordes.Eisquesurgeafiguranãodeumprofessor,masdeoutro

músicoamadormaisadiantado.Estelheensinaoutroacorde,abrindo“umcampo

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vastíssimo as suas idéasmusicais” como ironicamente escreve. Assim prossegue

nesteaprendizadoentreobservaçõeseconselhos,aulasinformaiseprática.Oamigo

lhe ensinaum “tommenor” e abre‐lhe o leque. A prática constantemelhora sua

técnica.Nãotocamaissomentecomo“furabollos”,masoauxiliam“opaidetodose

oseuvizinho”eao largodetrêsmeses juntam‐se“ominimoeomatapiolhos”.A

prática o leva mais longe. Cria soluções consagradas como o mordente.

Evidentementepornãoestarfamiliarizadocomanomenclaturamusicalorebatiza

de“saca‐rolhas”.Imitandooutromúsico,reinventao“soluço”.(AMúsicaparatodos,

1899,p.554).

A prática é, portanto, motora deste músico. Àquela primeiramelodia juntam se

outras.Àlinhamelódicasimplesmentereproduzidasomam‐seaarranjosmaisou

menoselaborados.Dependendodaspossibilidades,omúsicoamadorsearriscaem

composições e notações, e mesmo Camarate dá o braço a torcer: “limita‐se a

escrevervalsas,polkasequadrilhas,comumaorthografiamusicalmuitofantástica,

mas onde fulgem verdadeiros lampejos de talento.” (AMúsica para todos, 1899,

p.554).Camarateconsegueaindaexplicitarumahierarquiadosmúsicosamadores.

Este músico descrito anteriormente é o “pianista de sol e do” ou “pianista

arrebentado”.Hierarquicamentesuperiorestariao“pianistaamolador”,quedifere

doprimeiro,poisemalgummomentoentraemcontatocomumaeducaçãoformal,

quersejaemesporádicasaulascomummúsicoprofissional,quersejacomalgum

métodooucompêndiodemúsica.

Camarate coloca na categoria demúsicos amadores uma legião demúsicos que

fogem ao popular. Neste caso estaria A.P.S. que em carta enviada à redação d'A

Músicaparatodos(1897),sedizamantedamúsica,maspornãodisporderecursos

ensina elemesmo a seus filhos. Nesta categoria estariam também as “senhoras”

donasdecasa,queemartigoposterior–emudandootom–Camaratenãodeixade

elogiar.Pesandonascríticasouelogiandoalgumascategoriasdemúsicosamadores,

Camarate cria uma linha divisória.Musicista são os que aprenderam em escolas

especializadase/oucomprofessoresreconhecidosporsuaexperiênciaesaber.O

restante – da “senhora” da casa ao violeiro de rua – são tão somente músicos

amadores,ouamoladores.Camaratesilenciaarespeitodoaprendizadomusicalnas

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escolas,muito provavelmente para evitar uma embaraçosa comparação entre os

“cantos aprendidos por audição” pelos alunos e os “aprendidos de ouvido” pelo

músico popular. Mas um questionamento permanece: nesta hierarquia musical,

ondenotopoestariamosmúsicosprofissionaisenabaseos“músicosdesoledo”

ondeseenquadrariamosalunosdaescolapública?Destamaneira(esomentecomo

efeitocolateral),Camaratenosexplicapormenorizadamenteométododarua,i.e.,o

aprendizadomusicalassistemático,queacontecianodia‐a‐diadacidade.

6‐Devoltaàescola

As tentativas de se criar ummétodo único, que servisse tanto ao ensino escolar

quantoaoparticularsefrustraram.AiniciativadeEliasAlvaresLobonãosurtirao

efeitodesejado,comovimosnascríticas.Mesmonaescola,ométododeEliasAlvares

LoborivalizavacomoTonic‐solfaeoGalin‐Paris‐Chevé,lançandoosalunosemtrês

convenções diferentes. Luigi Chiaffarelli, um dos mais cultuados professores de

então,apesardepublicaroseuprópriométodo, foicriticadopelosseusparesde

maneiraefusiva.Aquestãodométodoúnicopareciaterarrefecido.FindoojornalA

musicaparatodos,diminuídasasdiscussõesmusicaisn'AProvinciadeSãoPaulo,é

aescola,entretanto,eemespecialaRevistadeEnsinoqueabreespaçoparaaquestão

doensinomusical.Naspáginasdarevistaqueégestadooúltimométododeensino

musicalpublicadoemSãoPaulonofinaldoImpérioeiníciodoperíodoRepublicano.

Evitandoasinovações‐eascríticas‐dométododeEliasAlvaresLOBO(1875),e

tambémasnomenclaturasdiferenciadasdoTonic‐solfa eGalin‐Paris‐Chevé, João

GomesJr.fazpublicarnaRevistadeEnsino(anoIn.4,10/1902,p.674‐680e02/1903

n.6,p.1094‐1100)algumasliçõesquesetransformaramnoCursoTheoricoePratico

deMusicaElementar5desuaautoriaedeMiguelCARNEIROJR.(1903).

SeEliasAlvaresLobobuscou adaptar os conceitosmusicais a um linguajarmais

simples,porvezesrenomeandoereconceituando,porvezescomparando‐oscom

5 Como observou CATANI (1989, p.131), Os colaboradores da Revista de Ensino “eram, em boa parte autores dos livros didáticos adotados nas escolas públicas”.

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outrosconhecimentos,GomesJr.‐muitoprovavelmenteconhecedordascríticasque

ométodo anterior fora alvo ‐ simplesmente simplificou e pragmatizou o ensino

musical na escola, sem se aventurar em renomeações e reconceituações.

Reproduzindooambientedasaladeaulaoautorapontaparaapráticadoensino.

Cria alunos e perguntas fictícias e transcreve os possíveis diálogos. Uma aula‐

modelo:“‐Paulo,váaoquadro‐negroeescrevaestasentença:Amúsicaéumaarte.

Bem.Quantaspalavrastemestasentença?”(RevistadeEnsino,anoIn.4,10/1902,

p.674‐680)6.QualoacolhimentoqueaobradeJoãoGomesJr.eMiguelCarneiroJr.

teve?

AcríticapartiudeGuanabarino,doInstitutoNacionaldeMúsicadoRiodeJaneiro.

Nesteinstituto,apreocupaçãocomométodotambémsefaziapresente.Emrelatório

escrito para o Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, Leopoldo

Miguez, então diretor do referido instituto, pede a “regularização do ensino

theorico‐elementardamusicaemtodoopaiz”.Valeapenatranscreverumlongo

trecho:

Não estamos no período do academismo e devemos ter inteiraliberdadedoensino;etantoassimojulgo,quenosprogrammasdaensino deste estabelecimento que dirijo não são apontadosmethodos e autores, uma vez que julgo dever este Institutoacompanharomovimentoevolutivodaarteenãopódeestarporissosujeitoafórmas,moldesemethodosantigos.

Parece‐me, todavia, que, sendo o InstitutoNacional deMusica oestabelecimento modelo de ensino musical, deviam todas asescolasdopaiz,oupelomenos,comojádisso,asdaCapitalFederal,obedeceraoseuprogrammaemethododeensinoelementar,umavez que esse programma é alterado sempre que se apresentammelhoresmethodosousystemasmaisaperfeiçoadosdoensino.

De todos os programmas dos diversos estabelecimentos deeducaçãofazpartedoensinoprimariodamusicaeéesteoquemaisserioscuidadosdevemerecerdoGoverno,attentaainsufficienciadamaioriadoscompendiosadoptadoseaopiniãocontroversadosprofessores.

Dahiresultaquenãopodemseraproveitadosdeunsparaoutrosestabelecimentos os estudos feitos, por isso que o ensinorudimentar mal dirigido prejudica ao alumno que se dedica aoestudosuperiordamateria.

Pedindo‐vosdenovoparaaexecuçãodasmedidasqueacabodeapresentar‐vos como necessarias todo o vossoempenho....(Relatóriododirectordo InstitutoNacionaldeMusica,1891,p.9)

6 Uma análise deste método pode ser vista em MORILA (2004) e JARDIM (2003).

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Estetrechodorelatório,escritodozeanosantesdaobradeGomesJr.,érevelador

dascontradiçõesdoensinomusical:atentaparaacontrovérsiaentreosprofessores,

ainsuficiênciadosmétodosecompêndios,anãopadronizaçãodosmétodos,enfim,

atenta para o ensinomusical “mal dirigido” e seus efeitos negativos nos alunos,

principalmente no que tange o ensino primário. A solução, segundoMiguez, era

adotarummétodocriadonoInstituto,poresteserainstânciamaiordamúsicano

Brasil. Interessante é que no próprio Instituto – a aceitar sua própria palavra –

nenhum método é adotado, ficando os professores da casa livre para atuarem.

Entretantooracionalismoeapadronizaçãosãoessenciaisparaasoutrasinstâncias

doensinocomoelemesmodiz.Aprimaziadaconcepçãodeummétodoúnicoera,

portanto,reinvindicadapeloInstitutoNacionaldemúsicahámaisdeumadécada.

Mas voltemos à crítica propriamente dita. Segundo João Gomes Jr., Guanabarino

teriaditoqueo“livronãopresta”,elencandoasfalhas:faltadecompassos,declaves,

dedivisões.JoãoGomesJr.sedefendedizendoqueacorretanotaçãomusicaliria

surgindoconformeodesenvolvimentodosalunos,acrescentadospassoapasso,do

mais simples aomais elaborado. Responde à crítica anunciando os autores que

embasaram seu método: Th.Lajarte e Alex Bisson, Savard, Danhauser, Miguel

Cardoso,LeopoldoMiguez,P.Bona.EsperavaJoãoGomesJr.umacríticasoboponto

devistadidático,vistoqueapartemusicaleratãosimplesmenteumaadaptaçãodos

métodosdosteóricosmencionados.Adaptaçãoestaqueconsistiaemirfornecendo

paulatinamenteasconvençõesmusicais,deacordocomaevoluçãodoaluno.Note‐

se que entre eles encontra‐se o próprio Leopoldo Miguez, diretor do Instituto

NacionaldeMúsica.JoãoGomesJr.teriadadosomenteuma“feiçãopedagógicaao

método”.Rebateaindaacríticadizendoqueométododeveriaserdadoàalunosdo

4ºano,poisquenosprimeirosanosoensinoéfeitopelaprática,pelaoitiva.Neste

sentido, João Gomes Jr. faz uma diferenciação do ensino praticado nas escolas

paulistas, enquanto sutilmente mostra que seu interlocutor desconhece as

modernaspráticasdeensino:“Oensinoemmusica,emSãoPaulo,nãoéfeitopelasimples

epassivadecoraçãoderegrascompendiadas.”(RevistadeEnsino,anoIIn.1,4/1903,p.57‐

59).Nãoé,segundoele,ummétodoinovadoremtermosmusicais,poisqueutilizava

osautoresemétodosmusicaisemvoganaépoca.Tambémnãopodeserencarado

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comoumrecortepedagógico.Suainovaçãoconsistiaemreelaboraroensinomusical

combasenaspremissaspedagógicasvigentes,umcursoprático,quepoucoapouco

iainserindooalunonanotaçãomusicalerudita.

Finaliza apontando os que elogiaram seu trabalho: Gomes Cardim, Henrique

Ruegger,AntonioLeal,ErnestoCastagnolieCarlosGuimarães.

7‐Enfimummétododefuturo

Asdiscussõesacercadosmétodosnãoterminaramcomesteepisódio.CarlosAlberto

Gomes Cardim proferiu uma conferência intitulada Amusica e o canto coral na

escola:oensinodamusicapelomethodoanalytico,publicadaem1912pelaEscola

NormaldeSãoPaulo.Emtomdesíntese,procuraavaliaroquefoifeitoatéentãono

ensinomusicalpúblicopaulistaedelinearasbasesparaummétododefinitivo,um

métodoquecolocariafimàsdiscussõessobreoassunto.

Inicia falando que “a inclusão do ensino damusica nos programmas escolares é

cousamuitorecenteentrenós”, inclusãoestadevidoaogovernorepublicanoque

descortinou“novosevastoshorizontes”.AinfluênciadovelhomundoedosEstados

Unidosétambémcitada.Aliás,exemploscomoaFrançasãoelencados.(CARDIM,

1912,p.3).

Retoma–mesmoquesinteticamente–todasaspropriedadesatribuídasàmúsica,

alvo de debates e controvérsias entre os musicistas e educadores musicais do

período.Apresenta‐ascomoconsenso,enãocomofrutodelutasetransformações.

Amúsicaéumalinguagem.Umalinguagemdossentimentos.Aharmoniadossons

despertaaharmoniamoral,aordem,oacordoe“porconseguinte,aperfeição”.O

ritmodespertaaatividadeordenadaeorganizada.Paraaeducaçãodopovoéela

insubstituível,poisamenizaoscostumes,civilizaasclassesinferiores,alivia‐lhesas

fadigas, os trabalhos, e proporciona‐lhes “um prazer innocente em logar de

divertimentos grosseiros e ruinosos” (1912, p.5). Conclui: “Educar, amenizar,

civilizar,aliviarfadigas,proporcionarprazer,corrigirvícios,eisaacçãohumanitária

eproveitosadamúsica”.(1912,p.5).Maisainda,proporcionaàcriançaainserção

nouniversodaculturaerudita,pois“cultivaogosto,oamorpelobelo,”aestética

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erudita enfim. A música e em especial o ensino de canto têm portanto “uma

importânciaextraordinaria”pelosseusaspectosestéticos,moraisefísicos.

GomesCardimtrata,então,demostraroquãodefasadoestáesteensinofrenteàs

outras disciplinas escolares. As canções mormente cantadas e executadas nas

escolas,dizele,sãoruins,quersejapelasuaestéticaquersejapelasuadificuldade,

nãocondizenteàspossibilidadesdosalunos.Exemplificaistoexpondoumepisódio

ocorridoquandoOscarThompson(entãoDiretorGeraldaInstruçãoPública)pediu

aRuydePaulaSouza(entãoDiretordaEscolaNormal)quenomeasseumacomissão

paraescolhadoscantosescolaresexecutadosnaescola.Oresultado:muitascanções

encontradasepoucasselecionadas.Alémdisso,ascançõesestariamsendogritadas

enãocantadaseométodoempregadoparaoensinoseriaomesmodostemposdo

Império.(CARDIM,1912,p.8).Feitaestaexplanação,GomesCARDIM(1912,p.12)se

propõeaexplicarseunovométodo,falandocomoumpedagogoenãocomomúsico.

Afirmaquecomqualquermétodoequalquerprocessoseaprende:“Masopapeldo

educador é procurar dentre osmethodos e processos conhecidos qual o que apresenta

maiores vantagens, tendo em vista, principalmente, o desenvolvimento das faculdades

mentaes.”Propõeométodoanalítico,quedescrevecomasseguintespalavras:

Encarandoaquestãosobopontodevistapedagogico,temosadizerqueomethodoanalytico,omethodoemquesepartedogeralparaoparticular,dasconsequenciasparaosprincipios,doseffeitosparaascausase,exactamente,oqueapplicamosnonossoensino.(1912,p.12).

Apartirdesteponto,explicasucintamenteométodo,fazendosempreumaanalogia

comoensinodalinguagemeembasando‐senospreceitosmaismodernosdaciência

daépoca.RechaçaosmétodosGalin‐Paris‐ChevéeoTonic‐solfaportrazeremmais

complicaçõesdoquesoluções,levandoaoaluno“duasconvençõesparaumaunica

cousa”7. Prefere o que chamade convençãonatural, i.e., o usodeDó,Ré,Mi etc.

(1912,p.16).Terminadizendonãosaberodestinodetalmétodo,masqueofezà

serviçodoensino.

7 O método Gallin-Paris-Chevé designa Dó por 1, Ré por 2 enquanto que o Tonic-solfa designa Dó por d, Ré por r, e assim por diante.

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Sabemos,entretantoofuturodestemétodo.Aconferênciarealizadafoifrutodesuas

iniciativasemeducaçãomusicalnoEspíritoSanto–ondefoiconvidadopararealizar

areformadeensino.DepoisdapalestraecomoauxíliodeJoãoGomesJr.,Cardim

publicou o referido método com o título de O Ensino damusica pelomethodo

analyticoem1914.

Arigor,oquefoiapresentadonaconferênciaestáexpostodeformamaisdetalhada

nométodo.Tambémapráticaestámelhordelineada,divididaporliçõeseconstando

melodiasquedeveriamserexecutadas,evitandoassimautilizaçãopeloprofessor

demelodiasconsideradasimpróprias.8

OmétodoanalíticodeGomesCardimeJoãoGomesJr.obtevemaissucessoqueos

anterioresajulgarpelavidalongaqueteve(em1929contavacomsuasextaedição).

Poucas edições se compararmos com o método de Rafael Coelho Machado que

atingiu 40 edições. Se pensarmos, entretanto, no ensino musical escolar e nos

efêmerosmétodosdeEliasAlvaresLobo,doGallin‐Paris‐ChevéedoTonic‐solfa,este

método teve uma vida longa. As inúmeras discussões, as várias proposições, os

vários métodos que se sucederam rapidamente ao longo das décadas finais do

séculoXIXpareciamterchegadoaumtermocomestemétodo.Aomenosparaa

culturaescolar.Emumesforçodesíntese,vejamosagoraquaisassemelhançaseas

diferençasentreosdiversosmétodosapresentados.

8‐Dissonânciaseconsonânciasnabuscadeummétodo

perfeitoeúnico

Em4dedezembrode1878AntonioZeferinoCandidoescrevenaseção“Instrucção

publica”doperiódicoAProvinciadeSãoPaulosobreométodo JoãodeDeus. “O

pensamento humano transmitte‐se pela linguagem” diz ele, seja pela escrita ou

falada.Continua:

Ambas estas linguagens se aprendem; o homem nasce comaptidõesqueaeducaçãodesenvolveeconverteeminstrumentos

8 Uma análise do método pode ser encontrada em MORILA (2004).

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MORILA,AiltonPereira(2016).MétodospioneirosdeensinomusicalnoBrasil:críticas,lutaserivalidades.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.1‐34.

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de trabalho. (A Provincia de São Paulo, 4/12/1878, p.1) [grifosmeus]

Naseqüênciadoartigo,expõeamaneiracomoseaprendeumaeoutra(alinguagem

faladaeaescrita)esuasdiferenciações.Expõeoaparelhofonador,explicacomoo

mesmofuncionaevêumaanalogiacomamúsica.Oaparelhofonadorécomoum

instrumentomusical,comoumórgão.Ospulmõessãoofole,ascordasvocaissuas

palhetaseabocaoseuteclado.Nãoparaporaíaanalogia:

Eeffectivamente,quantomais formosprogredindonestaanalyseinteressante, mais analogias encontramos que justificam asimilhançadasduasartes–aleituraeamusica.

João de Deus disse‐me uma vez que o seu methodo era todomusical;cadadiaachomaisapropriadooqualificativo.(AProvinciadeSãoPaulo,4/12/1878,p.1)

Deixando por ummomento esta comparação, vemos enunciado neste artigo um

princípioquenorteariaoensinodoperíodo.Aslinguagensseaprendem,maisdo

queseensinam.Assim,CaetanodeCamposprofetizaemdiscursode1890:

Nembastaensinar:éprecisosaberensinar.(...)

Sim, comoseaprende!É esteo titulodebemerenciadomestre‐escolahodierno.Aculturaintensivadoespírito,oaproveitamentode todos os detalhes, cada cousa em cada hora, o alimentointellectualomaiscompleto,dadonaproporçãodareceptividadepsychologica,‐eisomeritoindiscutiveldoensinomoderno.(citadoporRODRIGUES,1930,p.233)

Notrechododiscurso,CaetanodeCamposnomeiaquemsãoosgrandespedagogos

quedevemosteremmente:PestalozzieFroebel.Rodriguesenfatizaaeducaçãode

Pestalozzi:

A actividade é uma lei da puericia, diz Pestalozzi, acostumae ascriançasaproduzir,educaeamão.Cultivaeasfaculdadesemsuaordemnatural.Formaeprimeirooespiritoparainstruil‐odepois–éoutrodosseusaphorismos.

Cultivaeprimeiroossentimentosenuncaensineisaummeninooque elle póde descobrir por si mesmo. Desenvolve a idéa, daedepoisaexpressão.

É com taes leis sempre presentes ao espirito do mestre, sem odescuido de um só instante, que a creança, graças á sua naturalactividade,torna‐seproductivaemvezdevadia,amigadaverdadeeinduzidaaprocural‐aporhabito,porquetudooquesabedeveao

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MORILA,AiltonPereira(2016).MétodospioneirosdeensinomusicalnoBrasil:críticas,lutaserivalidades.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.1‐34.

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seu proprio esforço, muito apta para a conquista das noções,porqueaperfeiçoaram‐lheossentidosecomellesaacquisiçãodasidéas finalmente, a criança assim conduzida torna‐se habil efecunda,porquesóselhedeuoqueellapodiarecceber;porqueoqueselhedeutinhaamedidanasuapropriapsychologia,etudooque adquiriu estava baseado na formação do seu caracter, najustiça das coisas e portanto na moral pratica, que é sempreassimilável. A escola em que se aprende a ensinar assim énecessariamenteumaescolapraticae longa. (RODRIGUES,1930,p.198)

O ensino até então praticado, a importância dada à memorização, a repetição,

deveriaserabandonadoporserultrapassado.(RODRIGUES,1930,p.246).Entrava

emcenaométodointuitivo,assimchamadoporpreocupar‐secomaintuição,coma

observação. Observar as coisas, os objetos, a natureza, os fenômenos. Educar os

sentidoseraaprioridade.(FARIAFilho,2000,p.143)Conhecidotambémpor“lição

decoisas”ométodoapelavaparaaobservação,paraaexperiênciaconcreta,paraa

curiosidade infantil. SOUZA (1996, p.144‐145) descreve melhor o processo

intuitivo:

Tal método surgido na Alemanha no final do século XVIII pelainiciativa de Basedow, Campe e sobretudo de Pestalozzi, foitributário,por suavez,das idéiasde filósofosepedagogoscomoBacon,Locke,Hume,Rousseau,Rabelais,Comenius,Froebel,entreoutros.Consistianavalorizaçãodaintuiçãocomofundamentodetodooconhecimento,istoé,acompreensãodequeaaquisiçãodosconhecimentosdecorriadossentidosedaobservação.Pestalozzirecomendavaanecessidadedepsicologizaroensinoadaptando‐oao funcionamento do espírito infantil. Isto significava partir deoutros princípios diferentes da lógica predominante no 'métodotradicional' de ensino, o qual pautava‐se na aprendizagem combasenamemóriaenarepetiçãoconsistindoemumaabordagemdedutivadosaber: irdosimplesaocomplexooudogeralparaoparticular.

O método intuitivo, ao contrário, pressupunha uma abordagemindutivapelaqualoensinodeveriapartirdoparticularparaogeral,doconhecidoparaodesconhecido,doconcretoparaoabstrato.Apráticadoensinoconcretoseriarealizadapelasliçõesdecoisas‐forma pela qual foi vulgarizado. Recebeu, ainda, outrasdenominações como ensino por aspectos e ensino intuitivo.Segundo Pestalozzi os princípios estabelecidos para as lições decoisascompreendiam:cultivarasfaculdadesnaordemnaturaldeseudesenvolvimento;começarporconseguintepelossentidos;nãodizer nada à criança que ela pudesse descobrir por si mesma.Reduzircadamatériaaseuselementosmaissimples.Explicarumadificuldade de cada vez; seguir passo a passo a informação deacordocomoqueacriançapudessereceber;atribuiracadaliçãoum objetivo determinado, imediato ou próximo; desenvolver aidéia e não a palavra; aperfeiçoar a linguagem; proceder doconhecidoparaodesconhecido;do simplesparaocomposto;dasínteseparaaanálise,seguindonãoaordemdosujeitomasadanatureza.

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Mais do que isso, o ensino deveria ser concêntrico e seriado, partindo do

pressupostoqueoespíritoinfantil“vaisemcessardesenvolvendo‐seeaumentando

intensidadeàmedidaqueseacrescentamasforçaspsíquicas,intelectuaisemorais.”

Divididoemséries,oensinoeracumulativo,i.e.,aopassardeumasérieaoutrao

aluno já teria um mínimo de aprendizado que garantiria a base para a maior

complexidade da série posterior. (SOUZA, 1996, p.168‐169). Tais princípios

deveriamnortearapráticapedagógicadosprofessores,bemcomonortearcomoum

todooprocessoeducativo.Exigia‐se,portantoracionalidade,reprodutibilidade.A

inexistênciadestesrequisitosporpartedeumprofessorapenasinvalidariaaprática

de todos os demais. A seriação ficaria comprometida. É neste sentido que a

racionalidadedosprogramasganhaforçacomovimos.Étambémnestesentidoque

o método suplanta as particularidades do ensino de cada professor, como bem

salientouSOUZA(1996,p.143‐144):

AconfiançanométodofaziapartedamentalidadedoséculoXIX,impregnadadosprincípiosderacionalizaçãodaproduçãoedavidasocial. O método era um guia, o caminho seguro para alcançarobjetivos e metas estabelecidas. Entende‐se, assim, como talelaboraçãoatingeocampoeducacionalprecisamentenomomentoemqueeraforçosaaracionalizaçãodossistemaseducativoscomadifusãodaescolarizaçãoemmassa.

Aindividuaçãodosmétodosdeensinoeravistomesmocomoimpeditivodaprática

educativacomosinalizaoparecerdaComissãodesignadaparaavaliaroprograma

paraosgruposescolaresde27/02/1905:

Istoteráporefeitotirarovagodecertastesesumtantosintéticasdoprogramageralesuprimiroarbítriodoprofessor,arbítrio,quedandolugarainterpretaçõesdiversaseporvezesatéantagonicas,servedecontínuoestorvoàunificaçãodosmétodosdeensinoemnossasescolas.(citadoporSOUZA,1996,p.173)

Suprimiroarbítriodosprofessoreseraessencialparaobomandamentodoensino

escolar. Supressão do arbítrio, da individuação pelo método, racional, igual,

padronizador,eisatarefadeentão.

A produção dos métodos pressupõe entretanto um recorte dos conteúdos, uma

seleção,comonoslembraSOUZA(1996,163‐4):

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A análise dos programas da escola primária paulista nas duasprimeiras décadas republicanas revela o que era consideradosocialmentelegítimoaserensinadoeaprendidopelascrianças.Épreciso ver nesse rol de matérias urna seleção no interior dacultura.Umaseleçãoque transcendeos limites configuradosdasáreasdeconhecimentocientífico.Defato,comoassinalaForquin,aeducação escolar supõe sempre uma seleção, isto é, a escolatransmiteelementosdaculturaconsideradossocialmenteválidose legítimos compreendendo conhecimentos, competências,hábitos,formasdeexpressão,mitosesímbolos:'oqueseensinaé,então, com efeito, menos a cultura do que esta parte ou estaimagem idealizada de cultura que constitui o objeto de umaaprovação social e constitui de qualquer modo sua versãoautorizadasuafacelegítima'.

Devoltaaonossoobjeto,algumasquestõessecolocam:oquefoiselecionado,oque

foiomitido,oquefoiadotadoeoquefoiadaptadonosmétodosdeensinomusical

para a escola? Retomemos ométodo proposto por João Gomes Jr. e Carneiro Jr.

Segundoele,ascríticasquesefizeramaoseumétodoeraminfundadas,poisnãose

tratavadeummétodoteóricoparaosprimeirosanos,esim,umasistematização

teóricaapósanosdeestudoprático.Nestesentidoométodoporelepropostoestá

emconsonância tantocoma legislaçãoque indicava “Oscantosporaudição”nos

primeirosanos,bemcomocomosprincípiosdométodointuitivoqueenfatizavam

oaprendizadopelossentidos.Seumétodo,alegislaçãoeosprincípiosdométodo

intuitivoestavamemconsonância.

OmétododeGomesCardime JoãoGomes Jr. é,neste sentido,o supra‐sumodos

métodosescolaresdeeducaçãomusical,substituindoosmétodosdeEliasAlvares

Lobo,quecomovimosfoicriticadoemsuafacemusical(notaçõesenomenclaturas

diferentes do padrão) e pedagógica (a utilização do diálogo ao invés dométodo

intuitivo,ascomparaçõessimplistas),eoTonic‐solfaeGalin‐Paris‐Chevé,quetrazia

convençõesdiferentesdapadronizaçãoerudita.

Já na conferência, GomesCardimalerta para a necessidadedepadronizaçãodos

métodos:“nãoépossíveladmitirqueabasedoensino,omethodo,possavariarcom

cadaumadasdisciplinas.” (1912,p.13)Seamúsicaéuma linguagem,nadamais

improfícuo que adotarmétodos diferenciados para o ensinomusical. Urgia uma

padronização.Padronizaçãoesta–quesedeiníciodeixouosprofessoresdemúsica

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aturdidos9‐venceupeloembasamentocientífico‐pedagógico,quaseincontestena

época.Vencemtambémoscantosapreendidosporaudiçãonosdoisprimeirosanos

doensinopreliminar.Sóapartirdaioalunoteriacapacidadeparaintuirateoria.

E se comparamos este método com o “método da rua”, i.e., a aprendizagem

assistemáticadosmúsicosamadores?Assemelhançassãonotáveis.Assimcomoa

criança deveria aprender com a observação e o uso dos sentidos, em especial a

audição, o músico amador aprendia, segundo Camarate, vendo e ouvindo um

determinado músico tocar, e reproduzindo a seu próprio modo o que tinha

aprendido.Damesmamaneiraacriançadeveriairgalgandonapráticaossubsídios

para o aprendizado musical. As diferenças são, entretanto maiores que as

semelhanças.Enquantoomúsicoamadorésujeitodoprocesso,sendoauxiliadopor

outremconformesuaconveniência,acriançadestecedoéamparadapeloprofessor.

Éestequemescolheorepertóriomusical,deacordocomseusconhecimentosede

acordocomaevoluçãodacriança.Inicia‐seporcançõessimplesquepoucoapouco

setornamcomplexas.Oqueporventuraacriançagostariadecantarseriadeixado

deladofrenteaoconhecimentoeexperiênciadoprofessor.Adiferençanãopárapor

aí.Apósesteaprendizadodossentidos,asistematização–leia‐se,anotaçãoerudita

damúsica–sefazpresente.Enquantoomúsicoamadorcontinuaseuaprendizado

de “ouvido”, a criança em determinado momento vai, sempre com o auxílio do

professor,sistematizar,teorizar,racionalizareaprenderacorretanotaçãoeteoria

musical. Como observou JARDIM (2003, p.80), “A teoria deveria ser deduzida,a

posteriori,pelapráticamusical.”

Destasdiferençasadvêmduas importantesquestões: a escolhado repertórioea

notaçãomusical.Aescolhaporpartedoprofessordorepertóriomusicaleaindada

publicaçãodesterepertórionasrevistaseducacionaisdoperíodo,deixadeforaas

cançõestípicasdocancioneiropopular.Assim,seomúsicoamadorcomeçacomo

lundu, a criança começa com “A entrada do jardim”. Como a seleção parte do

professoreestedetémosabertécnico,anão‐escolhadascançõespopularestemo

9 Exemplos disto são os professores Antonio A.Sierra no Espírito Santo e Antonio Candido Guimarães em São Paulo. O plano, segundo CARDIM “foi recebido com muito interesse mas com a mais cabal descrença” por Antonio A.Sierra. Já Antonio Candido Guimarães “relutando a princípio, em applicar o nosso processo, por achal-o, absurdo, tornou-se, depois, em vista dos resultados obtidos, o seu maior propagandista.” (1926, p.30).

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efeito de desvalorizá‐las, frente às canções escolares, estas sim modelos de

aprendizado.

Masvimosqueacríticaàscançõesescolareseragrande.Aqualidadeestéticaeo

grau de dificuldade eram questionados. Segundo Cardim, poucas puderam ser

selecionadasporumacomissãoespecialmentedesignadapara isto.Frenteaesta

questão, aliada à da necessidade de iniciar o ensino com melodias simples e

conhecidas,umadúvidapermanece:anãoutilizaçãodemelodiaspopulares.Teria

sido a questão estética o principal empecilho? Nenhumamúsica do cancioneiro

popular–queeravastíssimo–agradavaosprofessores?Vimosquenão.Mesmono

maisferrenhoartigosobreosmúsicospopulares,Camarateadmiteaexistênciade

“boas”composições.Alémdisso,nãopodemosesqueceroesforçodeSílvioRomero

em recolher cantos e canções populares. Romero era muito proeminente e seu

trabalho por demais visível para ser ignorado, mas foi. O fator estético não foi,

portanto,omotivodanãoinclusão.

Gomes CARDIM (1912, p.9) foi a única voz dissonante ao propor a utilização de

músicaspopularesnoensino.Emsuaconferência,perguntaaosseuspares:“Porque

não podemos ter a nossa escola, oriunda das nossas belas canções populares?”

Devemosprocurararespostanãonovalorestéticodascançõespopulares,masno

âmbitosocialepolítico.MesmoCARDIM(1912,p.21)secontradiznaconferênciaao

falardainspiraçãoearte:“É,exactamente,contraainspiraçãosemartequenósnos

devemosinsurgir.Osentimentorepelleaarteseminspiração;énecessarioquea

educaçãomusical repilla a inspiração sem arte”. Como aceitar a canção popular,

mesmoque“inspirada”seestanãocorrespondeaoscânonesdaarte?

Alémdisso,seriatarefadifícillevaracançãopopularparaaescolasemquecomisso

setrouxessetodaumaculturapopularqueaelaestavaintimamente imbricadae

que se queria tanto moldar e transformar. Talvez por isso é que no método

organizadocomJoãoGomesJr.aquestãodacançãopopulartenhasidopostadelado

porCardim.Mesmoassim,elelançouasbasesdautilizaçãodacançãopopularnas

escolas, que seria efetivada nas décadas seguintes.Dentre as canções populares,

segundoCardim,deveriamserselecionadasasmais“innocentes”(1912,p.11),ou

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seja,asquemenosligaçõestivessemcomoconcreto.Feitaestaseleção,haveriaa

necessidade de “moldal‐a”, i.e., transformá‐la no padrão estético aceitável. Ainda

assim, e conforme esquema proposto por ele, as canções populares nacionais

estariam presentes no início do ensino, sendo pouco a pouco substituídas por

músicas mais eruditas, criando assim uma hierarquia onde a canção popular

comporiaabasedapirâmide.NotopoestariamMozart,Beethoven,Wagner,Chopin

etc.Selecionare“corrigir”,porassimdizer,aletraemelodiapopularretirando‐ade

seu contexto, com o intuito de facilitar o início do ensino musical. Modificada,

descontextualizada,“congelada”,estacançãopassaafazerpartedofolcloreenão

mais da cultura popular. Podemosmesmo cunhar um termopara este processo:

folclorização.

Verifica‐seumacisão:deumladoacançãopopulareculturapopular.Deoutroo

folcloreeascançõesfolclóricas.Alinhadivisóriapodesertênue,maséidentificável.

Alémdas“correções”,ouso,afunçãodacançãoéoprincipalindicativo.Aoinvésde

ensinar valores e normas – como na cultura popular – a canção folclórica é

curiosidade, “peça de museu” utilizada para o início do ensino musical. Este

processosedeu,comojáfoidito,emanossubseqüentes,massuasbasesjáestavam

sendopostas.

Não devemos, entretanto confundir esta folclorização com a ressignificação ou

contrafaçãocomumnoperíodoestudado.Acontrafaçãoouressignificaçãoéuma

transformaçãocompletadomotivopopular (letraemelodia)parausonaescola.

Assume, freqüentemente, a forma de uma paródia. Tal é amodificação que, por

vezes,nãoconseguimosnemdescobrirqualfoiacançãooucançõespopularesque

ainspiraram10.

GILIOLI (2003) aponta como comum na República a utilização de canções

folclóricas.Devemosinsistir,noentanto,quenãoháindicaçõesdousodecanções

popularesna escola entre1890e1910, e que a folclorização tal qual definida é,

portanto,posteriora1912,sendoacontrafaçãocomumnasduasprimeirasdécadas

republicanas.

10 Para a ressignificação de canções populares ver MORILA (1999; 2004).

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As colocações de Cardim revelam outros pontos interessantes. Gomes Cardim

propõeàeducaçãomusicalescolar,portanto,“repelirainspiraçãosemarte”,daia

preocupaçãocomorepertório.Comoelemesmoapontou,amúsicaeruditasegue

outraorientação:“repelleaarteseminspiração”(1912,p.21).Estaorientação,como

é sabido, vai buscar nasmúsicas populares sua fonte de inspiração nas décadas

seguintes,aexemplodoacontecidoemoutrospaíseseaexemplodoquefizeram

AlexandreLevyeAlbertoNepomucemo(ANDRADE,1975,p.30)equeChiaffarelli

apontavacomofuturomusical.Aculturaeruditavaiutilizaraculturapopularcomo

fontedeinspiração.Aculturaescolarentretantovairesignificá‐la(até1910)para

depoisfolclorizá‐la(após1912).

Asegundaquestãoqueadvémdasdiferençasentreosmétodoséanotaçãomusical.

A entrada da criança na notação erudita a afasta também da música popular,

transmitidaoralmente.Apreocupaçãocomacorretanotaçãomusicalatingeníveis

maioresqueautilizadapormúsicoseruditos.Estámarcadaadiferenciaçãoentre

músicapopularemúsicaerudita, emaisaindaentreoralidadeeescrita. JARDIM

(2003, p.36) explica: “Ler a partituramusical era participar da vida social e tal

conhecimentoestavasendo,nessemomento,difundidodentrodaescola”.

Seinicialmenteoaprendizadomusicalescolarerasimilaraoaprendizadomusical

popular(deouvido),apartirdo3ºanodaescolapreliminarum“divisordeáguas”

eracriado.Anotaçãomusicalocidentalseparavadefinitivamenteaculturaescolar

daculturapopular.Estaquestãoerapremente.EmseumétodoCARDIM(1926,p.15)

ressaltaapreocupaçãodequealgunsalunosaoinvésdeestaremlendoapartitura,

astinhamguardadonamemória(aprendizadotípicodaculturapopular),eassima

reproduziam tão logo ouvissem as primeiras notas. Daí a importância de se

colocaremcançõesdesconhecidasaolongodoensino.Adivisãosocialestavafeita,

deumladoaspessoasquedominavamocódigoescritoecomeleanotaçãomusical,

deoutroosincultos,osignóbeisquenãoadominavam.LAHIRE(1993)abordabem

esta questão. A crescente valoração da escrita e da escolarização impõe novas

formasdedominação,oumelhor,recompõemasrelaçõesdedominaçãoepoder.Ao

mesmotempolegitimamopoderdaquelesqueadominam,gerama“produçãoda

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ignorância, da selvageria interior”. O povo, destituído deste saber – passa a ser

encaradocomo“algoaeducar.”

LembremosqueaprincipalcríticaaosmétodosdeEliasAlvaresLoboéanotação

musical.Nointuitodesimplificar,Loborenomeiaosjargõesmusicais,aproximando

perigosamente do saber popular. Vimos que o músico amador nomeia

diferentemente posições, andamentos não correspondendo na maior parte das

vezesànotaçãoerudita.AgrandeexperiênciadeEliasAlvaresLobocomamúsica

populardeveterpermitidoummeio‐termoentreasduas,oquelhevaleucríticas

exaltadas.Anotaçãodeveriasererudita,poisdocontrárioopopularpoderiaser

valorizado.ÉnestesentidoqueométododeGallin‐Paris‐ChevéeoTonic‐solfasão

refutados.Criarnotaçõesnãoconvencionais,compadrõesdiferentesseriaaceitare

colocarempédeigualdadeaexistênciaeautilizaçãodeoutrasnotações,inclusive

as notações populares. Exceção, entretanto ao manosolfa, método derivado do

Tonic‐solfa. Mesmo nométodo de Cardim ele é utilizado e posteriormente (pós

1930)umlivrosobreomanosolfaépublicado11.ApesardeCARDIM(1926,p.24)

nãoconsiderá‐locomométodo,aceitaasuautilização.Asrazõesdissopodemestar

relacionadasaoseucriador:JoãoGomesJr.Figuraproeminentenoensinomusical

escolar e companheiro de Gomes Cardim no O ensino damusica pelomethodo

analytico,convinhamanteromanosolfa,mesmoqueperifericamente,como“meio

deverificação”.

Istoérevelador.Asdiscussõesacercadosmétodosedaculturaescolardeixavam

por vezes o terreno do pedagógico para entrar nos imbricados meandros das

relaçõessociaisedepoder.Sintomaticamente,estedesprezopelacançãopopular

nãolevaemcontaaspreocupaçõesnascentescomosestudosfolclóricos.SeSílvio

Romeroestáprocurandorecolheresistematizaroscontosecançõespopularesno

intuitodeconhecerosaberpopular,emaisaindadeverificarasconfluênciasentre

o saber popular e o saber letrado, a escola, ao menos neste momento, está se

afastandodestepopular.Destamaneiraaescolafazquestãodeignorarosestudos

folclóricos, deixando mesmo de lado este nascente campo de conhecimento.

11 Trata-se de Aulas de mano-solfa, obra approvada pela directoria Geral de Ensino para uso dos alunos das escolas normaes, complementares, Instituto Musical de São Paulo e sociedades orfeônicas. São Paulo: Casa Wagner, 193? de João Gomes Jr.

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Enquantoalgunsautoresealgumasnovasidéiascientíficassãoditasere‐ditas,os

estudos folclóricos são silenciados. Mesmo quando não se tinha ainda músicas

escolares suficientes para o ensino de música eram preferidas as traduções do

alemãoedoinglêsdecançõesescolaresdoqueautilizaçãodecançõespopulares,

comosepodeverificarnaRevistadoJardimdaInfância12.

Eoquedizerdoensinodamúsicaerudita?TemosoexemplodeChiaffarelli,mas

estenãoéoúnico.Outrasobrasdecunhomusicalforam,comovimos,publicadasno

período. Aliada a questão da correção técnica e de como ensinar a música, a

preocupaçãohistóricaénotável.Permeadapelasideiasevolucionistasdaépoca,os

autoressedebruçaramsobreosrumosdahistóriamusical,tantobrasileiraquanto

mundial.Chiaffarellicolocaestaspreocupaçõescomoessenciaisnoensinomusical.

Nãoadiantatocarcorretamentedeterminadocompositor,énecessáriaumacultura

geral,queenglobeavidadocompositor,osmeiostécnicosdeexecução,oambiente

e a aceitação das peçasmusicais, enfim a história damúsica e não só amúsica.

Preocupaçãodemonstradanosconcertoshistóricosetambémnascadernetasdos

seusalunos,comobemobservouJUNQUEIRA(1982).

Note‐se que as críticas veementes que Chiaffarelli recebeu com relação aos seus

concertoshistóricosdiziamrespeitoàcorretautilizaçãodoconceitohistóricoeda

palavraconcerto.Nenhumdosseuscríticosmostrouanecessidadedesesuprimir

do ensinomusical a história damúsica e dos compositores. Pelo contrário, suas

críticasreafirmavamaimportânciadahistória.FelixOterochegamesmoadizerque

ao invés de ensinar história, os concertos de Chiaffarelli poderiam ter o sentido

inverso, i.e., confundir os leigos. Daí a importância da correção histórica dos

concertos. Os autores discordavam em detalhes, minúcias e até mesmo em

conceitos.Mastodosconcordavam:ahistóriadamúsicaéessencialparaoensino

musical.

Oquefezaescolacomestanoçãotãocaraaosprofessoresdemúsicadaépoca?Não

viuounãoquisver.Emnenhumadiscussãosobreoensinomusicalnasescolasa

questãodeseensinarahistóriadamúsicaécolocada.Faltadetempo,faltadeespaço

12 Ver MORILA (2002).

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MORILA,AiltonPereira(2016).MétodospioneirosdeensinomusicalnoBrasil:críticas,lutaserivalidades.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.1‐34.

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emumprogramaextremamenteabrangentepodemserindicativadestaausência.

Entretanto, jamais foirelativizado,oumelhor,historicizadooconceitodemúsica

enquanto uma linguagem historicamente construída. Desta maneira o

conhecimentomusicaltorna‐sea‐histórico,quasequenatural,palavraaliásmuito

utilizada. A notação e a produção musical nesta perspectiva assumem ares de

universaleatemporalenãofrutodeumahistoricidade.Oconhecimentosereifica.

Nãoéalgoconstruído,masalgoexistente,algunsadominameoutrosnão.

Posteriormente,ahistóriaécolocadanoensino,nãocomointuitodehistoricizaro

conhecimento musical, mas com o fito de “construir uma memória histórica”

(GILIOLI, 2003, p.164). Mesmo assim esta história é subliminar, transmitida em

imagens,comonapublicaçãoHinárioBrasileirode1922,naqualéapresentadoum

quadrocomasimagensdealgunsmúsicosintitulado“oscompositoresdosnossos

hinos”. Se Chiaffarelli e seus interlocutores não viram a história damúsica ser

incorporadaaoscurrículosescolares,Chiaffarelliviu–paraagoniadeseuscríticos

– uma metodologia de ensino e de propaganda ser executado com primor pela

escola.Criticadopelassuas“maratonaspianísticas”Chiaffarellinuncafezsegredo

que um dos objetivos destes concertos era elevar o gostomusical da sociedade,

divulgandoamúsicaeruditaemseusmuitosconcertos.Tambémnaescolaamúsica

e as festas serviram para divulgação. Não da música necessariamente, mas da

própria escola. A festa era o momento propício para se fazer ver. As canções,

cantadasemcoropelascriançaseraoexemplomaiordedisciplina,racionalidadee

aprendizado.Maisadiantefoi incorporadanasfestasuma“breveexplicaçãooral”

(GILIOLI,2003,p.190)queprecediaasapresentações,bemaoestilodosconcertos

deChiaffarelli. É claro, críticas foramescritas nomesmo sentidoque as recebeu

Chiaffarelli.Cançõesdifíceisparacriançascompoucasnoçõesmusicais,oupior,com

ensinomusical duvidoso.Mas estas críticas vinhamnormalmente de entendidos

musicais,quequasesempresemantinhamanônimosecircunscritosaseucírculo.É

desesuporqueopúblicoemgeral,desacostumadocomasexigênciassonorasvisse

com melhores olhos – e ouvidos – estes espetáculos musicais nas escolas. O

anonimatoemquesefundaramascríticasnãodeixadúvidassobreovalordestas

festasparaapropagandaescolareoquãoocríticopoderiaserrecebidoserevelasse

seunome.

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9‐ConsideraçõesFinais

A construção dos saberes escolares da cultura escolar e em especial do ensino

musical apresenta semelhanças com a construção do ensino musical erudito e

popular, aomesmo tempoemqueapresentadiferençaseomissões.Osobjetivos

eramoutros. Aomúsicopopular interessavacantare tocarparaumpúblicoque

junto com ele comporia e recomporia as canções. Sua técnica era seu carisma

pessoal. As letras diziam de si e da comunidade que o ouvia. O músico erudito

deveriamostraromanejodatécnica,dorepertórioedoconhecimentomusicalmais

amplo,emsumaaerudição,paraserreconhecidocomotal.Paraaescolaamúsica

tinhapapéismaisamplos,aomesmotempomenosmusicaisporassimdizer.Ensinar

valores, desvalorizar o popular, auxiliar a educação dos sentidos, propagar,

propagandear a escola, criar uma cultura mínima em um país supostamente

ignorante. As adaptações, omissões e semelhanças dependeram dos objetivos

propostos.Aculturaescolar–noquetangeàeducaçãomusical–nãosurge,portanto

donada.Partedaculturapopulareeruditaeparticipadealgumasdiscussõesdestas

enquantosilenciaoutras.Adapta,transforma,aclimatamétodoseobrasdacultura

populareda culturaeruditaaomesmo tempoemque suprimepartes.A cultura

escolar vai se constituindo um campo específico sem que com isso torne‐se

autônoma ou independente. Forma‐se mesmo um novo panteão de músicos.

Somam‐seaosmúsicospopulareseaosmúsicoseruditososprofessoresdemúsica

escolares,oumelhor,dizendo,osmúsicos‐pedagogos.Outrosentidotambémpode

serobservado.Aculturaescolarinfluenciatambémaculturapopulareeruditaeas

transforma.Umacomplexarelaçãodialéticapodeserobservadaentreasculturas.

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Notasobreoautor

AiltonPereiraMorilaéDoutoremestreemeducaçãopelaFaculdadedeEducaçãodaUniversidadede SãoPaulo (FEUSP). Graduado emhistória pela FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo(FFLCH‐USP).AtualmenteéprofessoradjuntodoDepartamentodeEducaçãoeCiênciasHumanasdoCentroUniversitárioNortedoEspíritoSantodaUniversidadeFederaldoEspíritoSanto(UFES)ministrandoaulasparaaslicenciaturas.PesquisadordoPrometheus–NúcleodeEstudosCríticos.ProfessorpermanentedoProgramadeMestradoemEnsinonaEducaçãoBásicadoCEUNES‐UFESondelecionaasdisciplinasdeHistóriadaCulturaeHistóriaSocialdaArteentreoutras.