Dois manuais de história para professores histórias de sua produção

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513 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 513-529, set./dez. 2004 Resumo A Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme), instituída por Anísio Teixeira quando este assumiu o Instituto Na- cional de Estudos Pedagógicos (Inep), em 1952, buscou produzir livros didáticos e manuais para professores, entre outros materiais didáticos. Os manuais de História do Brasil e História Geral, para professores, foram encomendados a, respectivamente, Americo Jacobina Lacombe e Carlos Delgado de Carvalho, em 1953. Este artigo acompanha a produção desses manuais, apresentando, na medida do possível, os sujeitos nela envolvidos. Os conflitos e debates são expressos em um momento particular da história edu- cacional e se articulam ao processo de mudanças também da pro- dução historiográfica, podendo-se identificar as relações entre as diferentes esferas de produção didática. A escolha de professores universitários para a composição de obras didáticas situa as clivagens entre produções acadêmicas e as de caráter pedagógico. Nessa perspectiva situam-se as diferenças de projetos universitá- rios perante o problema de formação de professores. Espera-se com isso elucidar aspectos de uma política pública educacional, de âmbito federal, até agora pouco investigada. Além disso, ao acom- panhar as discussões suscitadas durante a elaboração desses ma- nuais, procura examinar as concepções sobre história e ensino de história que então se confrontaram, assim como as aproximações e separações entre a produção acadêmica e a escolar. Palavras-chave Livro didático — Caldeme — Ensino de História — Produção didática. Correspondência: Kazumi Munakata Rua Airosa Galvão, 198 05002-070 – São Paulo – SP e-mail: [email protected] Dois manuais de história para professores: histórias de sua produção Kazumi Munakata Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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Resumo

A Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme),instituída por Anísio Teixeira quando este assumiu o Instituto Na-cional de Estudos Pedagógicos (Inep), em 1952, buscou produzirlivros didáticos e manuais para professores, entre outros materiaisdidáticos. Os manuais de História do Brasil e História Geral, paraprofessores, foram encomendados a, respectivamente, AmericoJacobina Lacombe e Carlos Delgado de Carvalho, em 1953. Esteartigo acompanha a produção desses manuais, apresentando, namedida do possível, os sujeitos nela envolvidos. Os conflitos edebates são expressos em um momento particular da história edu-cacional e se articulam ao processo de mudanças também da pro-dução historiográfica, podendo-se identificar as relações entre asdiferentes esferas de produção didática. A escolha de professoresuniversitários para a composição de obras didáticas situa asclivagens entre produções acadêmicas e as de caráter pedagógico.Nessa perspectiva situam-se as diferenças de projetos universitá-rios perante o problema de formação de professores. Espera-secom isso elucidar aspectos de uma política pública educacional, deâmbito federal, até agora pouco investigada. Além disso, ao acom-panhar as discussões suscitadas durante a elaboração desses ma-nuais, procura examinar as concepções sobre história e ensino dehistória que então se confrontaram, assim como as aproximaçõese separações entre a produção acadêmica e a escolar.

Palavras-chave

Livro didático — Caldeme — Ensino de História — Produção didática.

Correspondência:Kazumi MunakataRua Airosa Galvão, 19805002-070 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

Dois manuais de história para professores: históriasde sua produção

Kazumi MunakataPontifícia Universidade Católica de São Paulo

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Contact:Kazumi MunakataRua Airosa Galvão, 19805002-070 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

Two history manuals for teachers: histories of theirproduction

Kazumi MunakataPontifícia Universidade Católica de São Paulo

Abstract

When he took up the direction of the National Institute forPedagogical Studies (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos –INEP) in 1952, Anísio Teixeira started the Schoolbook and TeachingManual Campaign (Campanha do Livro Didático e Manuais de En-sino – CALDEME) with the objective of producing schoolbooks andteaching manuals, among other didactic material. The BrazilianHistory and World History manuals for teachers were ordered in1953 to Americo Jacobina Lacombe and Carlos Delgado de Carva-lho, respectively. This article follows the production of thosemanuals presenting, as much as possible, the characters involved init. The conflicts and debates are expressed at a particular moment ofour educational history, and relate to the process of change of thehistoriographical production, allowing the identification of therelations between the different spheres of the didactic production.The decision to select university teachers for the composition ofthose works establishes the watershed between academicproductions and those of a pedagogical character. The variationsbetween different university projects to deal with the problem ofteacher education are here seen under this perspective. It is hopedthat the present analysis will elucidate aspects of a publiceducational policy at the federal level little investigated until now.Apart from that, by following the discussions that took place duringthe composition of those manuals, the text seeks to examine theconceptions of History, and of its teaching, that challenged eachother at that time, as well as the approximations and separationsbetween academic and school productions.

Keywords

Schoolbooks — Caldeme — Teaching of history — Didacticproduction.

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Em 23/3/1953, Gustavo Lessa escreveua Americo Jacobina Lacombe, confirmando umconvite que lhe havia feito anteriormente:

Esta é uma confirmação oficial do pedidoque vos fiz verbalmente para colaboraçãocom o INEP [Instituto Nacional de EstudosPedagógicos] no preparo do projeto demanuais destinados a professores secundá-rios. Estou para isto autorizado pelo res-pectivo Diretor, Dr. Anísio Teixeira.Essa colaboração se traduzirá inicialmentepela apresentação de um anteprojeto domanual para história do Brasil, com a especi-ficação da matéria a ser tratada em cadacapítulo e sub-capítulo e com a indicaçãodo número de páginas prováveis, destinadoa cada subdivisão.(...) A título de uma retribuição simples-mente simbólica, o autor do anteprojetoreceberá uma remuneração variável entre500 e 1.000 cruzeiros.Só mais tarde, após aprovado o anteprojetorespectivo, será combinada a remuneraçãopela feitura do manual.(Carta de Gustavo Lessa Americo JacobinaLacombe, de 23/3/1953)1

Na mesma época, convites semelhantesforam feitos a outros especialistas, de diversasinstituições, para que participassem da Campa-nha do Livro Didático e Manuais de Ensino(Caldeme), produzindo manuais para professo-res de acordo com a competência de cada um:Paulo Sawaya (Zoologia); Karl Arens (Botânica);Oswaldo Frota Pessoa (Biologia Geral); Mário deSouza Lima (Português); Raymond Van derHaegen (Francês); Werner Gustag Krauledat(Química); e Carlos Delgado de Carvalho (His-tória Geral). (Ofício de Mário P. de Brito a Aní-sio Teixeira, 6/1/1954)

Em artigos anteriores (Munakata, 2000e 2002), já se apresentou a concepção queAnísio Teixeira tinha sobre livro didático e quenorteava o Campanha do Livro Didático e Manu-ais de Ensino (Caldeme), e abordaram-se os

caminhos e os descaminhos da produção domanual de Português, sob a responsabilidade deMário de Souza Lima. O presente artigo preten-de acompanhar, de 1953 ao final dessa déca-da, aspectos da trajetória dos manuais referen-tes às histórias do Brasil e Geral, de que se en-carregaram, respectivamente, Americo JacobinaLacombe e Carlos Delgado de Carvalho. Emborao processo analisado refiram-se a livros de His-tória, o foco não será a historiografia do perío-do nem tampouco as modalidades de fazer-his-tória que se constituíam então no Brasil, mas apolítica de produção, por instâncias governa-mentais, de livros didáticos e as discussões di-dático-pedagógicas que a acompanharam.

Todos os trabalhos acima mencionadosfazem parte das investigações referentes aosprojetos “A produção de livros didáticos e ma-teriais de ensino pela Campanha do Livro Didá-tico e Manuais de Ensino (Caldeme) e pelaCampanha Nacional de Material de Ensino(CNME), do Instituto Nacional de Estudos Pe-dagógicos (Inep)” e “A política de livro didáti-co no regime militar: da Campanha do LivroDidático e Manuais de Ensino (Caldeme)/Cam-panha Nacional de Material de Ensino (CNME)à Comissão do Livro Técnico e Didático (Colted)e à Fundação Nacional de Material Escolar(Fename)”, financiados pelo Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq), e o seu autor integra o projetotemático financiado pela Fundação de Amparoà Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),coordenado por Circe Bittencourt e intitulado“Educação e Memória: Organização de Acervosde Livros Didáticos”, junto ao qual desenvolvepesquisa sobre políticas públicas e legislaçãoreferente ao livro didático no Brasil. Trata-se deum esforço para compreender esse momentoímpar na política pública referente aos livrosdidáticos no Brasil, quando o governo buscouproduzir, ele próprio, os livros didáticos(Munakata, 1999). A bibliografia (Oliveira et al.,1984; Freitag et al. 1989; Xavier, 1999), de

1. Nas transcrições, a ortografia foi atualizada e a pontuação, corrigida.

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modo geral, apenas menciona essas iniciativasgovernamentais, sem contudo analisar-lhes osignificado nem tampouco examinar-lhes osresultados. O trabalho de Saavedra (1988), so-bre o Inep, talvez seja o que mais se dediquea examinar as ações da Caldeme, mas o levan-tamento das obras produzidas por esse órgãorestringe-se à sua quantificação.

Tais investigações, de que o presenteartigo representa um resultado parcial, visampreencher essa lacuna nos estudos sobre o li-vro didático e as políticas públicas educacio-nais no Brasil e, para tal, valem-se de uma do-cumentação inédita, constituída de papéis ad-ministrativos do Inep e seus órgãos. Essa do-cumentação havia sido levada do Rio de Janeiroquando da trasferência do Inep para a Brasília,onde permaneceu encaixotada num depósito. Aprofessora Lucia Maria Franca Rocha, então daUniversidade de Brasília, localizou-a e copiou-aem parte, até que foi impedida de prosseguir ostrabalhos. Os professores Maria Rita de AlmeidaToledo e Bruno Bontempi Jr., do Programa deEstudos Pós-Graduados em Educação: História,Política, Sociedade, da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, participaram da organi-zação provisória desse material, constituído deofícios, memorandos, correspondências ativa epassiva, despachos, originais dos livros e ano-tações sem identificação de autoria ou de data,etc. Apesar de essa documentação ser extrema-mente fragmentária e descontínua, por meiodela é possível elucidar aspectos de uma histó-ria que até agora se ocultava nos bastidores dasdecisões políticas.

Nesses bastidores, os personagens nãosão muito conhecidos e talvez merecessemrápida apresentação, nas notas de rodapé. Emtodo caso, Anísio Teixeira (1900-1971), queestá no centro de toda essa história, emboraapareça pouco, não é exatamente uma figuradesconhecida e sua apresentação talvez sejadesnecessária.2 Basta que se diga que ele, umdos principais expoentes da chamada EscolaNova no Brasil, ao assumir a direção do Insti-tuto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep),

em 1952, anunciou a necessidade de o gover-no produzir “guias e manuais de ensino para osprofessores e diretores de escolas” e também“livro didático, compreendendo o livro de tex-to e o livro de fontes” (Discurso de Posse doProfessor Anísio Teixeira no Instituto Nacionalde Estudos Pedagógicos, em 4/7/1952).3 ACampanha do Livro Didático e Manuais deEnsino (Caldeme), assim instituída, seria maistarde transferida para o âmbito da Divisão deEstudos e Pesquisas Educacionais (Depe), doCentro Brasileiro de Pesquisas Educacionais(CBPE), cuja criação, em 1956, impôs-se namedida em que o Inep havia se transformado“num órgão mais legislador que de estudos epequisas” (Xavier,1999, p. 84). Apesar dessasfases por que passou, a Caldeme sempre foidirigida por intelectuais muito próximos a Aní-sio Teixeira, a começar por Gustavo Lessa.4

O objetivo da Caldeme, no caso dosmanuais para os professores, é assim explici-tado em “Acordo celebrado entre a Campanhado Livro Didático e Manuais de Ensino(Caldeme) e o prof. Americo Jacobina Lacombe,para a elaboração de um manual de história doBrasil destinado aos professores do ensino se-cundário”, assinado em 16/12/1953, em sua“Cláusula II”:

A elaboração do manual será orientada peloobjetivo de promover, entre os professoressecundários do país, um movimento de re-novação no tocante à matéria a ser ensinadae aos métodos de ensiná-la, a fim de tornara matéria e o método mais adequados aos

2. Sobre Anísio Teixeira, consultar, entre várias obras, o verbete a seurespeito, de autoria de Clarice Nunes, em Dicionário de educadores noBrasil (Fávero e Britto, 2002, p. 71 ss.).3. Este texto pode ser obtido na íntegra na Biblioteca Virtual Anísio Teixeira(http://www.prossiga.br/anisioteixeira). Uma análise desse discurso en-contra-se em Munakata (2000).4. Gustavo Lessa (1888-1962) foi médico e sanitarista. Membro da As-sociação Brasileira de Educação (ABE), de cuja diretoria participou váriasvezes a partir de 1928 (Carvalho, 1998), assumiu cargos na administra-ção pública, quase sempre ao lado de Anísio Teixeira. Mais tarde, assumiucargo na Fundação Getúlio Vargas, mas, em 1952, com a criação da Cam-panha do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme), atuou como seudiretor executivo e chefe de programa, sendo substituído por Mário Paulode Brito em 31/12/1953, quando retornou à Fundação Getúlio Vargas.

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interesses do adolescente e ao ambiente emque vive.5

Americo Jacobina Lacombe (1909-1993),autor encarregado de promover esse “movimen-to de renovação” em relação ao ensino de Histó-ria do Brasil, estudou Direito no Rio de Janeiro.Em 1931, foi nomeado secretário do ConselhoNacional de Educação, cargo que ocupou até1939, quando tornou-se diretor da Casa Rui Bar-bosa. Ligado ao grupo católico liderado por Al-ceu Amoroso Lima, participou com este da fun-dação da Pontifícia Universidade Católica do Riode Janeiro, onde, a partir de 1941, passou a le-cionar História do Brasil. A partir de 1957, passoua dirigir a coleção “Brasiliana”, da CompanhiaEditora Nacional, até então sob o comando deFernando de Azevedo; em 1959-1960, exerceu ocargo de secretário de Educação e Cultura doentão Distrito Federal; em 1962-1963, dirigiu aCasa do Brasil de Civilização Brasileira na Écoledes Hautes Études de l’Amérique Latine, daSorbonne (França); foi grande benemérito e pre-sidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro, em substituição a Pedro Calmon; e tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em1974.6

Em relação à História Geral, o autorconvidado foi Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), veterano professor do Colégio Pedro II ediretor da Associação Brasileira de Educaçãodesde a primeira diretoria, sendo signatário docélebre Manifesto dos pioneiros da EducaçãoNova, de 1932. Estudou Direito e Ciências Po-líticas na França e Sociologia na London Schoolof Economics, na Inglaterra; exerceu o cargo device-diretor do externato do Colégio Pedro II;foi o primeiro diretor do Instituto de PesquisasEducacionais (IPE), fundado em 1933 por Aní-sio Teixeira, quando este dirigia a InstruçãoPública do Distrito Federal; e professor de Eco-nomia e Direito da Universidade do Distrito Fe-deral, de Sociologia Educacional da Escola deProfessores e de Sociologia da Escola Secundá-ria do Instituto de Educação. Escreveu livrosdidáticos de Sociologia, Geografia, História e

Educação.7 Pertencia ao círculo de Teixeira eseus colaboradores, enquanto Lacombe faziaparte de seus opositores católicos.

Tanto Delgado de Carvalho como La-combe comprometeram-se a encaminhar seusrespectivos planos de obra, a ser submetidos aoparecer de especialistas, antes mesmo de assi-nar o contrato definitivo. Não se sabe quandoesses planos foram elaborados, pois não sãodatados, mas é possível deduzir que foram ela-borados rapidamente, pois já em 9 de julho de1953 Gustavo Lessa expedia carta a vários in-telectuais solicitando-lhes um “parecer, com apossível urgência”.8 Na documentação disponí-vel, há cartas com essa solicitação endereçadasa Roberto Piragibe da Fonseca, Jayme Coelho,Helio Vianna, Eremildo Vianna, James BragaVieira da Fonseca, todos do Rio de Janeiro,além de José Wanderley Pinho (da Bahia).Dante de Laytano (Rio Grande do Sul) foi con-vidado a emitir opinião somente sobre o planode Lacombe, enquanto em relação ao plano deCarlos Delgado enviaram-se, em 5 de agosto de1953, cartas a intelectuais da Universidade deSão Paulo: Eurípedes Simões de Paula, Eduar-do d’Oliveira França e Alice P. Canabrava.

Nessas cartas, todas contendo um tex-to padronizado, explicita-se que os manuais, aser produzidos,

teriam por objetivo apresentar uma con-cepção da matéria a ser ensinada e do mé-todo de ensiná-la que permitisse satisfazermelhor as necessidades reais do adolescen-

5. Este texto é idêntico ao dos acordos firmados para a produção de outrosmanuais, alterando-se apenas o nome do autor e a “matéria” do livro a serpublicado.6. Dados obtidos no site da Academia Brasileira de Letras (http://www.academia.org.br/imortais/frame10.htm, em 29/9/2004).7. Sobre Delgado de Carvalho, ver Campos (2002, p. 63 ss.). Informa-ções adicionais foram fornecidas por Karina Pereira Pinto, que desenvolvejunto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política,Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tese de dou-torado sobre o Instituto de Educação do Rio de Janeiro.8. Num documento intitulado “Discussão dos planos dos manuais deHistória Geral e do Brasil, apresentados respectivamente pelos professo-res Carlos Delgado de Carvalho e Americo Jacobina Lacombe” (s.d.), Lessacomenta sobre a data dessa carta: “deve ter havido engano na data, e serde 9 de agosto”.

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te, e estimulasse mais a sua capacidade dereflexão do que a sua memória.Como se trata de trabalhos sem nenhum po-der coercitivo e que serão oferecidos comosimples sugestões, os autores não ficamadstritos nem aos programas, nem à seriaçãooficial. (Carta de Gustavo Lessa a JamesBraga Vieira da Fonseca, em 9/7/1953)

A maioria dos pareceristas não se ma-nifestou. Uns poucos fizeram-no oralmente, emreuniões convocadas para esse fim. Na primei-ra delas, realizada em 24 de julho de 1953,“compareceram os drs. Delgado, Lacombe eHelio Vianna”, além de, presumivelmente,Gustavo Lessa, que assina o relatório “Discus-são dos planos dos manuais de história geral edo Brasil, apresentados respectivamente pelosProfessores Carlos Delgado de Carvalho eAmerico Jacobina Lacombe” (s.d.). Segundoesse documento, Helio Vianna apenas comen-tou o plano de Lacombe, limitando-se a fazerapreciações superficiais:

1 - Deve ser acentuado que a bibliografia sejacrítica.2 - Na referência a “grandes autoridades”,deve ser feita a restrição “no assunto”.3 - As invasões holandesas e francesas deve-riam ser chamadas incursões. Dr. Lacombe deacordo.4 - Nota que o assunto do governo geral, tra-tado na segunda unidade, fica restrito ao sé-culo XVI. Lacombe adverte que a unidade 7volta ao assunto.5 - Nesta mesma unidade propõe substituirregionais a [sic] locais. Aceito.6 - Na unidade 8 propõe “movimento contraa metrópole” e não “movimentos nativistas”.Aceito.7 - Na mesma unidade objeta à expressão “in-confidência mineira”, por denotar pejorativa-mente traição. Lacombe aduz argumento datradição semântica para conservar a expressão.8 - Acha haver demasiadas unidades para ogoverno de Pedro I.

9 - Na unidade 20, acha que “a crise políticade 1937” deve ser substituída pelo “Golpe deEstado de 1937”. (Discussão dos planos dosmanuais de história geral e do Brasil, apre-sentados respectivamente pelos ProfessoresCarlos Delgado de Carvalho e AmericoJacobina Lacombe, s.d., grifos do autor)

Em 30 de julho de 1953, foi a vez deJayme Coelho reunir-se com os dois autores.Em relação a ambos, criticou o número depáginas previsto, considerando-o excessivo.Argumentou que se deveriam prever capítulosintrodutórios “sobre metodologia e sobre obras,arquivos, bibliotecas, coleções e bibliografias aconsultar”. Também apresentou uma curiosacrítica, que não foi acatada: “É veementemen-te antagonista à divisão do assunto por unida-des, achando que perturba a visão cronológi-ca dos acontecimentos”. (Discussão dos planosdos manuais de história geral e do Brasil, apre-sentados respectivamente pelos ProfessoresCarlos Delgado de Carvalho e Americo JacobinaLacombe, s.d.)9

Os comentários específicos sobre os pla-nos de um e de outro autor foram também bas-tante superficiais. Por exemplo, apontou-se queno tópico “expansão territorial”, de Lacombe,“não está nitidamente incluída a ‘expansão parao sul’. A conquista deve ser ‘do nordeste’ e nãodo ‘norte’”. Em relação a Delgado de Carvalho,criticou-se a falta de menção às “outras civiliza-ções além das florescidas em torno dos quatrovales” e à “época bizantina” ou “referência àsAméricas muito limitada”. (Discussão dos planosdos manuais de história geral e do Brasil, apre-sentados respectivamente pelos Professores

9. Hery (1999), em seu livro sobre o ensino de História no Liceu francês,também constata essa dificuldade de adequar a suposta continuidade his-tórica às unidades demarcadas pela aula. Concebido como cours (curso),o ensino de História deveria obedecer à “regra absoluta do percurso inte-gral” (Journal officiel de la république française). Mas como apresentaresse “percurso integral” se a cada unidade de aula ele deve ser interrom-pido? Segundo Hery, a solução foi a introdução, no início de cada aula, dainterrogation (interrogação), perguntas dirigidas a um aluno individual, aum grupo de alunos ou a classe inteira. Então o paradoxo: para assegurara continuidade do “percurso integral”, o curso torna-se descontínuo.

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Carlos Delgado de Carvalho e Americo JacobinaLacombe, s.d.)

Um outro parecerista (Eremildo Vianna)agendou uma reunião, mas não compareceu.Outros também não responderam, à exceção deEurípedes Simões de Paula — cujo parecer so-bre o plano de Delgado de Carvalho será co-mentado posteriormente. Gustavo Lessa, numacarta a Lacombe, de 23 de novembro de 1953,desabafaria, dizendo que estava “cansado deesperar resposta dos professores convidados” eque, por isso, “apelei para o nosso comumamigo José Honório Rodrigues (...). Não pôdefazê-lo por escrito, mas tomei as notas inclu-sas sobre a convesa que tivemos” (Carta deGustavo Lessa a Americo Jacobina Lacombe, de23/11/1953).

Alguns comentários de José HonórioRodrigues voltam-se contra o excessivo tamanhoprevisto da obra ou contra a desproporção en-tre as partes. Há também uma discussão sobre ainconveniência de “separar os fatores econômi-cos dos fatos históricos a que eles precedem” ousobre o caráter “acessório” que o “fator econô-mico” acaba apresentando “em relação ao polí-tico”. Além disso, Rodrigues aponta para a neces-sidade de se tratar, no preâmbulo de cada uni-dade, dos “precedentes históricos do tema”. Porfim, afirma não ser “necessária a indicação detrabalhos literários, nem que seja possível a in-clusão de documentos históricos fundamentais”.(Notas tomadas de uma conversa com o Dr. JoséHonório Rodrigues, em 18 de novembro de1953, sobre o plano do manual de história doBrasil formulado pelo Dr. Americo JacobinaLacombe)

As anotações de Gustavo Lessa sobre aconversa com Rodrigues, extremamente telegrá-ficas, não permitem muitas ilações. Em todocaso, Rodrigues, ao que parece, tecia seus co-mentários a partir de um padrão de fazer-histó-rico que recusa a supremacia do político e buscaestabelecer relações de causalidade entre os “fa-tores (econômicos)” e os “fatos históricos”.Rodrigues também repudiou o tópico do planode Lacombe que propunha a “indicação de lei-

turas de obras literárias, inclusive poesia e ro-mance que despertem interesse para o tema,seguida de pequena crítica” (Plano para o ma-nual de História do Brasil preparado pelo prof.Americo Jacobina Lacombe, s.d.). Se tais postu-ras de Rodrigues correspondiam a uma assimila-ção de padrões prevalentes na Universidade deColúmbia, nos Estados Unidos, onde estudou em1943-1944 graças a uma bolsa concedida pelaFundação Rockefeller, é uma questão ainda a seravaliada.10 Em todo caso, esses temas constitui-riam o eixo da réplica de Lacombe.

Para este, o comentário sobre as “leitu-ras literárias” não passavam de

(...) velha quizília do José Honório pelo as-pecto formal e literário da História. A históriaé uma Musa, por mais que se faça ciência.Não acredito que ninguém conheça umaépoca histórica sem ter lido alguma cousade típico da literatura do tempo, ou deobras literárias que descrevam a época. (...)Estas leituras não são um sorriso da socie-dade, na frase infeliz no [sic] nosso Afrânio,mas análises de uma época – não científi-cas, mas necessárias à boa percepção dosfenômenos sociais.(...) Uma figura é historicamente consideradade um modo; mas a lenda, que acompanhasempre a fama, a deforma e na imaginaçãopopular ela está fixada não como está naHistória, mas nas páginas de uma obra lite-rária. É preciso que isto seja citado, e que osalunos saibam compreender que todo acon-tecimento histórico transcende a narrativahistórica, repercute fora da ciência histórica— no folk-lore, na literatura etc. (Carta deAmerico Jacobina Lacombe a Gustavo Lessa,de 1/12/1953, grifos do autor)

10. Os dados biográficos de José Honório Rodrigues (1913-1987) fo-ram obtidos no site da Academia Brasileira de Letras (http://www.academia.org.br/imortais/frame10.htm, em 29/9/2004), da qualtornou-se membro em 1969. Antes de Lacombe, Rodrigues havia sidosondado para escrever o manual de História do Brasil, mas declinou aoconvite alegando “outros compromissos” (Carta de José Honório Rodriguesa Gustavo Lessa, de 25/11/1952).

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A seu favor, Lacombe mencionou, no“Plano” e, sobretudo, na sua réplica, autoresque recomendassem a introdução da literaturaem estudos históricos. Destaque especial eraconferido às obras em inglês “compêndios ame-ricanos”, ressaltava em resposta a Rodrigues:

Tomo ao acaso, um dos excelentes que es-tão ao meu alcance: O de Lynn Barnard e A.O. Roorbach, Epochs of World Progress,New-York, 1928. No fim de cada capítuloindicam-se leituras de Historic Novels (Lá es-tão os Últimos dias de Pompéia, O Yankeena corte do rei Arthur, Ivanhoé, etc.)Outro, o de W. F. Gordey, History of theUnited States, N.Y., este de 1922. No fim decada capítulo lá vem FICTION , e seguem-seos romances que fazem os alunos interessa-rem-se pelos personagens. Enfim o excelen-te Living in our America de James Quillen eE. Krug de 1951, além dos trabalhos literári-os, ainda junta filmes e discos. (Carta deAmerico Jacobina Lacombe a Gustavo Lessa,de 1/12/1953, grifos do autor)

Não é difícil perceber nessa polêmica oconflito em torno do estatuto científico dahistória e sua relação com o discurso ficcional(ou “literário”), ou, se se preferir, a disputaentre padrões “cientificista” e “humanista”.11

Mas, para além dessa questão epistemológica emetodológica é possível também apreender, nasconsiderações de Lacombe, uma preocupaçãopropriamente didática. Nas “Justificativas” doseu “Plano”, ele explicava:

A indicação de leituras literárias destina-sea despertar o interesse dos alunos para aépoca em estudo. Muitos alunos, que nãosuportam o estudo cronológico da história,devoram romances históricos com gosto(...)Parece inútil insistir em que não se preten-de fazer ciência histórica através dos ro-mances, mas criar uma atmosfera de inte-resse e curiosidade para o período a serestudado. (...)

Além disso, tais indicações despertarão ogosto pela leitura, um dos grandes proble-mas da mocidade atual. (Plano para o ma-nual de História do Brasil preparado peloprof. Americo Jacobina Lacombe, s.d.)

Às demais objeções de Rodrigues, La-combe também respondeu com comentáriosque relevavam aspectos didáticos:

A desproporção entre a História do Impérioe a História Colonial é o resultado do maiorinteresse que devem despertar os aconteci-mentos à medida que se vão aproximandoos tempos presentes. Todo mundo sabeque o horror despertado pela História doBrasil vem da insistência em acontecimentosque não despertam nos alunos a menoremoção. Capitanias Hereditárias são pala-vras fatídicas que fazem perder a alegria amuita criança. Quando queremos exempli-ficar o tédio provocado pelo mau ensino denossa história, a primeira coisa que nosocorre é a lista dos comandantes holande-ses. Quando se vai podendo apelar parauma iconografia mais abundante (...) e parafatos mais citados na conversação habitual,é muito mais fácil – e mais conveniente –aprofundar-se o estudo. (Carta de AmericoJacobina Lacombe a Gustavo Lessa, de 1/12/1953, grifos do autor)

Por fim, Lacombe descartou facilmen-te as questões sobre “precedentes históricos dotema” e o caráter “acessório do fator econômi-co”, o que é revelador da distância que sepa-

11. Lepenies (1996) mostra a disputa travada na segunda metade do séculoXIX em torno da legitimidade do discurso que pode enunciar o “real”, esta-belecendo a partilha entre o “científico” e o “literário”: na indefinição dessapartilha, um Buffon, hoje considerado um pioneiro das Ciências Naturais,podia proclamar “Stilo primus, doctrina ultimus [Primeiro, o estilo; por últi-mo, a doutrina]” em 1753; um século depois, um Balzac, que pretendiadesenvolver “Études sociales”, veria a sua obra relegada ao que doravanteseria denominado “literatura”. Ginzburg (1991) também ressalta a intimida-de ancestral entre a historiografia e o que hoje se denomina “literatura deficção”, para enfatizar a atual diferença entre ambas: enquanto a primeirabusca sua legitimidade na “realidade”, a ser investigada, a outra encontra nacoerência discursiva a sua razão de ser (cf. Munakata, 2003).

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rava as concepções dos contendores. Para ele,nem sempre os “antecedentes da História Bra-sileira estão no Brasil, nem sequer na América”,o que impossibilitaria abordá-los na unidadeanterior, como pretendia Rodrigues:

Assim, as lutas na fronteira do Sul tiveramantecedentes em acontecimentos diplomáti-cos europeus; a vinda da Corte Portuguesatem antecedentes nas guerras napoleônicas;o movimento constitucionalista brasileiro, narevolução liberal da Europa; a queda dePedro I na sua posição perante o trono por-tuguês; a invasão holandesa, na incorpora-ção espanhola e na subseqüente política deFilipe II; e assim por diante. (Carta deAmerico Jacobina Lacombe a Gustavo Lessa,de 1/12/1953)

Para Lacombe, o problema não se si-tuava na esfera teórica das causalidades, mas naorganização da exposição didática de um de-terminado conteúdo.

Do mesmo modo, são de ordem didá-tica as considerações de Lacombe sobre o pre-domínio do político:

a verdade é que o aspecto político da Histó-ria do Império é o que está realmente estuda-do. (...) Dar precedência aos estudos econô-micos no período é entrar no terreno das hi-póteses e das polêmicas. Não é ciência feita.(Carta de Americo Jacobina Lacombe aGustavo Lessa, de 1/12/1953, grifo do autor)

Subentende-se: o que não está feito,que ainda se presta a hipóteses e polêmicas,não pode ser matéria de ensino.

Apesar de tudo, Lacombe não deixoude proceder à revisão do seu plano, a partir daqual ele e a Caldeme firmaram um acordo emdezembro de 1953, como se viu acima. Estavaprevisto o prazo de um ano para a entrega dosoriginais, mediante o que o autor receberia aremuneração de CR$ 150.000,00, ficando osdireitos autorais sob a propriedade do Inep.

(Acordo celebrado entre a Campanha do LivroDidático e Manuais de Ensino [Caldeme] e oProf. Americo Jacobina Lacombe, para a elabo-ração de um manual de história do Brasil des-tinado aos professores do ensino secundário).Seguiram-se sucessivas prorrogações do prazooriginal acrescidas de suplementação na remu-neração (com pagamentos antecipados), o que,de resto, era habitual nas atividades daCaldeme (cf. Munakata, 2002). Um “um últimoe definitivo prazo, ao fim do qual será consi-derado perempto o acordo celebrado” foi mar-cado para 31 de março de 1957, por MárioPaulo de Brito, que sucedera a Gustavo Lessa.(Circular de Mário P. de Brito a AmericoJacobina Lacombe, de 7/11/1956).12

Finalmente, uma carta de Mário P. deBrito a Americo Lacombe, datada de “abril de1957”, acusou a “localização (sic), afinal, daprimeira parte dos originais do manual de His-tória do Brasil”. Também comunicava que essesoriginais haviam sido encaminhados “ao prof.Guy de Holanda, para, como especialista emHistória do CBPE, apresentar as sugestões (...)cabíveis”. Datado de 11 de abril de 1957, oparecer de Guy de Holanda13 é, no entanto,decepcionantemente lacônico: após comentarque o texto – composto de “Preliminares”, “Odescobrimento” e “Início da colonização” – era“bem documentado e com orientação metodo-lógica muito coerente”, recomenda que se atua-lize a bibliografia e que “sejam impressos nummesmo volume pelo menos os capítulos corres-pondentes ao período colonial”. Por fim, aven-tando a possibilidade de o livro ser desdobra-

12. Mário Paulo de Brito (1884-1974) formou-se engenheiro, tornando-se professor de Química na Escola Politécnica da Universidade do Rio deJaneiro. Em 1924, participou da fundação da Associação Brasileira deEducação (ABE), integrando a sua primeira diretoria e outras sucessivas(Carvalho, 1998). Ocupou vários cargos públicos e entre 1953 e 1957, foidiretor da Caldeme (dados compilados do site da Academia Brasileira deCiências, da qual foi presidente em 1945/47: http://www.abc.org.br/historia/mario_brito.html, em 25/9/2004).13. Professor de Faculdade Nacional de Filosofia, Guy de Holanda poresta época estava lançando, pelo CBPE, Um quarto de século de programase compêndios de História para o ensino secundário brasileiro. 1931-1956.No prefácio a esta obra, de 16/7/1957, declarou que ela foi redigida entreagosto e dezembro de 1956, sendo então submetida aos comentários devárias personalidades.

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do em dois volumes, afirma ser “oportuno in-cluir em cada um os principais documentoshistóricos” (Guia de História do Brasil porAmerico Jacobina Lacombe, parecer assinadopor Guy de Holanda).

Mais interessantes foram os comentá-riosde Gustavo Lessa apresentados, numa carta de 3de janeiro de 1958, a pedido de Lacombe. Res-saltando a sua condição de “leigo em assunto noqual o autor dos capítulos é reconhecidasumidade” e que não mais pertence à Caldeme “àqual me prende ainda um interesse, diria eu sen-timental, pela idéia que a originou”, Lessa apon-ta para a disparidade entre o que havia sido acor-dado no início e o resultado final:

Nas conversas que precederam a carta ofi-cial, houve ampla justificação da necessida-de de conter no manual o texto para osalunos. Simples indicações gerais sobre amatéria a ser ensinada em cada capítulonão habilitariam o comum dos professores,que não têm tempo para a pesquisa de no-vos caminhos, a libertar-se da rotina aca-brunhadora de datas e de nomes das auto-ridades oficiais.(...) Parece-me, porém, que, na elaboraçãodos capítulos II e III (o de n° I não entra emconsideração no momento, porque trataapenas de preliminares), a orientação se-guida foi bem diversa.Vejamos o capítulo II. O texto que vem en-tre o preâmbulo e os apêndices ocupa ape-nas três páginas, e a sua simples leituramostra que é destinado apenas aos profes-sores, e não aos alunos. Visa, além disto,apenas recomendar certas respostas a cer-tos problemas litigiosos, que representamuma parte do período em questão. Consti-tui intencionalmente uma sugestão parainvestigações mais minuciosas por parte dosprofessores. Parece-me, entretanto, que, nafalta do texto para os alunos, o dos profes-sores deveria ser muito mais extenso, pois amaioria, convém sempre lembrar, não faráas investigações sugeridas. Tenho receio de

que, diante dessa escassez, apelem para osvastos quadros genealógicos, cronológicose sincrônicos contidos no apêndice e ospropinem aos alunos.No capítulo II cumpre notar também a fal-ta básica do texto para os alunos. E nãovem uma orientação sobre a escolha dessetexto, pois a discussão versa sobre determi-nados problemas do período coberto. (Car-ta de Gustavo Lessa a Americo JacobinaLacombe, de 3/1/1958, grifos do autor)

A reprimenda permite constatar a radicaldivergência de concepção sobre o que deveriaser um manual para professor. Para GustavoLessa, que tinha como pressuposto um perfil deprofessorado secundário mal preparado, essemanual deveria ser uma espécie de livro didáti-co (para aluno) comentado. Por isso mesmo, noseu entender, o capítulo I (Preliminares), “dedi-cado sobretudo à descrição dos grandes arqui-vos existentes no Brasil e no estrangeiro”, care-cia de real utilidade se se levasse em conta esseprofessorado presumivelmente “real”:

Em vista dos arquivos descritos ficareminacessíveis à grande maioria dos professo-res e estudantes no país, pareceria interes-sante aludir às fontes de documentaçãoexistentes nas cidades do interior. (Carta deGustavo Lessa a Americo Jacobina Lacom-be, de 3/1/1958)

Lessa também comentou a proposta, deLacombe, de “tirar proveito” de testemunhoscontraditórios,

(...) para mostrar que a tarefa do historiadorconsiste, precisamente, em valer-se de fontesdiversas e, às vezes, divergentes, para criticá-las e elaborar com elas um texto, ou uma con-clusão, constrasteada com os elementos for-necidos pela ciência historiográfica. (Prelimi-nares, original do Capítulo I do manual paraprofessor de História do Brasil, de AmericoJacobina Lacombe)

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Apesar de concordar com tal proposta,Lessa ponderou:

O exemplo citado no capítulo I sobre as di-versas interpretações dadas ao grito deIpiranga ficaria mais elucidativo se o autordesse, em algumas linhas, um resumo dessasinterpretações. Quem sabe a escassez deobras especializadas no interior verá porquemuitos professores não poderão extrair odevido proveito da sugestão feita. (Carta deGustavo Lessa a Americo Jacobina Lacombe,de 3/1/1958)

O pedagógico confrontava-se com oerudito. Para Lessa, o que importava não eratrazer à baila as derradeiras conquistas da pes-quisa histórica, mas a utilidade que um ma-nual teria para o professor “real”, de uma esco-la secundária em rápida expansão e que se es-tendia pelos rincões do Brasil.

Série posterior de correspondências en-tre Lacombe e diretores do CBPE mostra que oautor continuava em atraso na entrega do res-tante da obra, chegando a propor a contrataçãode um “cooperador para, sob sua orientação eresponsabilidade, partilhar de elaboração doManual de História do Brasil” (“Informação”, deJayme Abreu, coordenador da Divisão de Estu-dos e Pesquisas Educacionais do CBPE, a Almirde Castro, diretor-executivo do CBPE, de 5/5/1959). As fontes disponíveis não permitemacompanhar a continuação dessa história.

Em todo caso, consultas às bibliotecasrevelam que não há registro de obras que pos-sam se assemelhar à descrita até aqui, a nãoser uma Introdução ao estudo da História doBrasil , de Americo Jacobina Lacombe,publicada em 1974 pela Companhia EditoraNacional em co-edição com a Editora Univer-sidade de São Paulo, na coleção “Brasiliana”(vol. 349), então dirigida pelo próprio autor. Asua comparação com os originais de “Prelimi-nares” acima referidos revela tratarem-se damesma obra, com trechos idênticos, mas comsubstanciais acréscimos. O quadro seguinte

permite visualizar ambas as obras e suas seme-lhanças e diferenças:

A “Introdução” da obra de 1974 con-firma a origem da publicação:

As dificuldades da elaboração deste trabalhoexplicam certas falhas de que se ressente.Resulta ele, inicialmente, de um esboço fei-to em 1956, para um manual destinado aprofessores, insistentemente solicitado porAnísio Teixeira, então diretor do InstitutoNacional de Estudos Pedagógicos, que pla-nejara, com larga visão, uma grande coleçãode instrumentos de trabalho para estudiososque não dispõem dos recursos bibliográficosdos grandes centros. (Lacombe, 1974)

O autor não esclarece o que afinalaconteceu com o tal “manual destinado a pro-fessores”. Em todo caso, assimilou o preceito deque a obra deveria atender os professores dointerior, “que não dispõem de recursos biblio-gráficos dos grandes centros (...)”.

O livro de Delgado de Carvalho passoupor caminhos semelhantes. A obra, de cerca deseiscentas páginas, previa abranger, emdezesseis unidades, desde “Os quatro vales daAntiguidade” até “A evolução das ciências, le-tras e artes no mundo contemporâneo”. Segun-do o “Plano didático”, cada unidade seriaconstituída de “narrativa” e “notas” (formadas

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de “complementos e as explicações fornecidasaos professores”). A “narrativa” seria “precedi-da de uma ‘Preparação da Aula’”, abrangendo:

a) Os objetivos visados no conhecimento dosfatos históricos a focalizar.b) O quadro geográfico dos acontecimentose sua interpretação econômica e social.c) A perspectiva histórica: relações de causa-lidade.d) Motivação – processos e métodos de des-pertar interesse. Palavras-chave a discutir.

(...) Em cada Unidade, a narrativa e suas notasserão seguidas de uma documentação ou“contato com a realidade histórica”:a) Mapas, datas e cronologia – ilustrações.b) Resumos biográficos de Personalidades daÉpoca.c) Leituras complementares, escolhidas emautores fidedignos.d) Textos históricos a explicar.e) Bibliografia sumária para professor.

Por fim, haveria “Processos de Verifica-ção da Aprendizagem”: exercícios, testes, tópi-cos de dissertações (Plano para o Manual deHistória Geral, preparado pelo Prof. Carlos Del-gado de Carvalho, s.d.).

Segundo o acordo firmado em 30 denovembro de 1953, o autor teria prazo de dozemeses para concluir a redação dos originais, masnesse caso também houve sucessivas prorroga-ções. Em carta de 22 de dezembro de 1955,Delgado de Carvalho comunicava que o volumecorrespondente à História Antiga, já entregue,havia levado sete meses de redação, o que o fa-zia prever que o referente à Idade Média levassequatro meses; à Idade Moderna, cinco; e à Con-temporânea, mais cinco. Atendendo ao pedido, oquarto adendo ao acordo, firmado logo em se-guida, prorrogou até 31 de dezembro de 1957 a“conclusão da parte referente à História Contem-porânea”, ficando “o mesmo prazo prorrogadoaté 31 de dezembro de 1958, para o efeito deconclusão das demais partes da obra, ainda não

entregues” (Quarto adendo ao acordo celebradoem novembro de 1953, entre a Campanha doLivro Didático e Manuais de Ensino [Caldeme] eo prof. Carlos Delgado de Carvalho, para a elabo-ração de um manual de história geral, destinadoaos professores do ensino secundário, de 31/12/1955). O prazo para a entrega da parte referenteà História Contemporânea antecedia ao das de-mais provavelmente porque o mesmo “Adendo”autorizava Delgado de Carvalho a “dispender comauxiliares, para a preparação da parte referente àHistória Contemporânea, até a quantia de CR$120.000,00”. O adendo também previa que fos-sem contratados auxiliares “para preparação dasdemais partes da obra”, no valor de até Cr$72.000,00. O próprio autor receberia Cr$100.000,00 por cada parte entregue.

Correspondência entre a editora Civili-zação Brasileira e a Caldeme mostra que ovolume História Geral – Antiguidade, de Delga-do Carvalho, foi efetivamente publicado, prova-velmente em 1956, após quase um ano de pro-cedimentos de edição e editoração.14 Quantoao segundo volume, referente à História Me-dieval, os seus originais foram encaminhadospara providências de impressão em 3 de feve-reiro de 1958 (Ofício de Jayme Abreu, coorde-nador da Depe do CBPE, a Péricles M. de Pinho,diretor-executivo do CBPE). Desta vez a publi-cação da obra coube à Seção de Publicaçõesdo próprio CBPE. O exemplar disponível naBiblioteca Nacional assinala como data de pu-blicação o ano de 1959. Quanto aos demaisvolumes (Moderna e Contemporânea), não háregistros em nenhuma biblioteca consultada.

14. Uma carta da Editora Civilização Brasileira a Mário P. de Brito relataque em 11/8/1955, “atendendo a uma solictação verbal de V. Sa. e do Dr.Anísio S. Teixeira, M.D. Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-cos, apresentamos por escrito o orçamento para a produção gráfica de5.000 exemplares do livro do Dr. Delgado de Carvalho, ‘História Geral – I– Antiguidade’, que esse Instituto pretende lançar em sua coleção de ‘Guiase Manuais de Ensino’ (Carta de Ênio Silveira, diretor da Editora CivilizaçãoBrasileira, a Mário P. de Brito, de 22/3/1956, grifos do autor). Em 20/11/1956, em carta ao Inep, Ênio Silveira comunica que “infelizmente já seacha desmanchada a composição do livro do Dr. Delgado de Carvalhointitulado HISTÓRIA GERAL, 1° tomo, ANTIGUIDADE” – o que é um claroindício de que a obra já havia sido impressa. Despacho na própria cartainforma que “era intenção do dr. Anísio ampliar a tiragem para dez milexemplares”.

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Para terminar essa história, merece des-taque a polêmica suscitada pela obra de Delga-do de Carvalho, quando ainda apresentava-secomo mero “Plano” a ser avaliado. Para tal, comose disse acima, em 1953 foram convidados, alémdos intelectuais que também o foram para ava-liar o plano de Lacombe, três historiadores daUniversidade de São Paulo: Eurípedes Simões dePaula, Eduardo d’Oliveira França e Alice P.Canabrava. Por que motivo? O espanto procedese se levar em conta que eles representavam anova geração de historiadores do Brasil, que seorgulhava de ter sido formada diretamente porBraudel e que trilhava por caminhos distintos datradição carioca, alicerçada no Instituto Históri-co Geográfico Brasileiro (IHGB) e no ColégioPedro II. A respeito dessa diferença entre osestablishments historiográficos do Rio de Janeiroe de São Paulo, comenta Maria Yedda LeiteLinhares, que nas décadas de 1950-1960 ocu-pou a cadeira de História Moderna e Contempo-rânea da Faculdade Nacional de Filosofia, do Riode Janeiro:

Nós também queríamos ser historiadores,dominar os instrumentos da pesquisa histó-rica, mas como fazer isso na cadeira de His-tória Moderna e Contemporânea? Era huma-namente impossível. Isso trazia uma certaamargura, porque tínhamos contato com opessoal de São Paulo, conhecíamos as tesespaulistas. Por que São Paulo avançava napesquisa e o Rio não? Acho que aí está agrande diferença entre Rio e São Paulo. Emprimeiro lugar, a USP não teve os vícios deformação da Faculdade Nacional de Filosofia(...). A Faculdade Nacional de Filosofia sur-giu como mais uma num conjunto de facul-dades, perdeu aquela característica que tinhasido pensada no tempo do Anísio Teixeira,de ser um elemento de transformação dauniversidade brasileira, um local por ondepassariam aqueles que quisessem ingressardepois numa faculdade profissionalizante,algo como um college americano.Já a USP foi gerada num momento de pro-

testo de São Paulo, que fora derrotado narevolução. Começou a funcionar já com apossibilidade de tempo integral, melhoressalários para os professores. Eles receberamprofessores estrangeiros importantes, comoFernand Braudel e muitos outros. Aliás,Braudel foi muito responsável por imprimirum cunho antifeminista à USP. Mas o fatoé que desde cedo se formaram grupos depesquisa. E nunca foi proibido a professo-res de História Moderna e Contemporâneatrabalhar com História do Brasil! FernandoNovais, Eduardo Oliveira França, que eramprofessores de Moderna e Contemporânea,fizeram suas teses em História do Brasil,pesquisaram aqui, em Portugal, naEspanha. Isso nunca foi proibido em SãoPaulo, mas no Rio, o establishment da Fa-culdade Nacional de Filosofia vetou qual-quer autonomia, qualquer pesquisa verda-deiramente criadora dentro do curso de his-tória. (...)(...) Vivíamos sonhando aqui em pesquisarcomo eles. Agora, uma coisa que desenvol-vemos muito mais do que eles foi o curso deformação de professores. Essa foi realmente anossa grande contribuição. (Linhares, 1992)

Essas diferenças constituem o eixo emtorno do qual se organizam os comentários deEurípedes Simões de Paula, o único dos“paulistas” a avaliar o plano de Delgado de Car-valho, e a réplica deste. Na verdade, Simões dePaula (1910-1977), então catedrático da cadei-ra de História Antiga e Medieval, assinou o pa-recer juntamente com o seu assistente de cáte-dra, Pedro Moacyr de Campos. O texto, de dezpáginas, recusa desde o início abordar o cam-po pedagógico:

Na verdade, não teremos necessidade delevar em conta, aqui, uma série de aspectosdidáticos que deveriam ser consideradosnum manual a ser utilizado pelos estudan-tes. Poderemos libertar-nos da maior partede preocupações deste tipo, no que diz

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respeito à exposição da matéria, o que nospermite tratar do assunto em nível maiselevado, contando com o preparo especi-alizado que o professor já deverá apresen-tar. (Carta de Eurípedes Simões de Paula ePedro Moacyr de Campos a Gustavo Lessa,de 8/10/1953, p. 1)

Antes, porém, de “tratar do assunto emnível mais elevado”, o parecer se permite acon-selhar que se deva levar em conta que os alu-nos visados pelo manual a ser produzido são“sul-americanos, vivendo num país e num con-tinente que, no conjunto da civilização doOcidente, apresentam-se como sendo de origemcolonial” (p. 2). Seria também necessário cons-tatar que “são alunos das mais diversas ascen-dências, do ponto de vista da nacionalidade”(p. 2). Além disso, “a diferença que existe en-tre o estudante brasileiro e o europeu impede-nos, ab initio, de recorrer aos manuais europeuscomo modelos para a organização de um ma-nual brasileiro” (p. 2). Em outras palavras, arelação do aluno brasileiro com a disciplinaHistória não pode ser a mesma que se verificacom os estudantes europeus. Daí, a proposta:

Procurar trazer, então, o campo da Históriapara o mais perto possível dos estudantes,e apresentá-lo sempre de maneira que es-tes o sintam como integrado na esfera doconcreto, e não como uma abstração, talesforço parece-nos indispensável para queo ensino de História possa corresponder aalguma real finalidade na formação do es-tudante. Quer-nos parecer que, do seu cur-so secundário de História, este poderá espe-rar, primeiramente, elementos que lhe per-mitam localizar-se devidamente no tempo eno espaço histórico, fornecendo-lhe as ba-ses sobre as quais lhe será possível sentir-se perfeitamente integrado, tanto no cam-po mais restrito da sociedade em que exer-ce suas atividades, como nos âmbitos mui-to mais amplos de civilização ocidental ede Humanidade. Em segundo lugar, caberá

à História proporcionar aos educandos tam-bém um fundo de cultura geral (...). Noçõesde história da Arte, da Filosofia, da Litera-tura, das Ciências, poderão ser ministradas,sempre dentro do campo histórico, é claro,e não isoladamente, uma vez que, aqui, omais interessante será exatamente a apre-sentação destes diversos setores de maneiraharmônica, conjugados entre si e tambémcom o campo social, político e econômicoem que se verificam as atividades com elesrelacionados. Tratar-se-ia, assim, do queacreditamos poder chamar de “paisagemhistórica” (...). Evitar-se-ia, assim, o queconsideramos uma falha grave: a apresen-tação da matéria com predominância abso-luta do seu aspecto político, entremeada dedesconsoladoras notícias sobre as ativida-des culturais ou as características sociais eeconômicas de países ou épocas. (p. 3-4.)

As considerações sobre as peculiarida-des do aluno brasileiro fornecem, assim, ense-jo para que os pareceristas apresentem o pro-grama dos Annales, sintetizado na expressão“paisagem histórica”.

Na réplica, em oito páginas manuscri-tas, Delgado de Carvalho dirige-se a Simões dePaula como “meu jovem colega”, e acrescenta:“digo ‘jovem’ porque sou professor de Históriadesde 1903!”. Sua resposta é direta:

Confesso que os aspectos didáticos, que oprofessor paulista preferiu afastar das dis-cussões, me preocuparam mais do que a“narrativa” sobre a qual recaem a maiorparte de suas observações.Acredito que deve ser levado em considera-ção o tipo de aluno sul-americano que visao ensino da História, lembrando, entretanto,que cabe neste setor maior responsabilida-de ao Compêndio de História do Brasil (...).Estou perfeitamente de acordo em “procu-rar trazer o campo da História para maisperto possível dos estudantes” de “localizarno tempo e no espaço” os ensinamentos

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ministrados, e a “proporcionar também umfundo de cultura geral” aos educandos.Longe de mim, por fim, a idéia de uma“apresentação da matéria com predominân-cia absoluta de seu aspecto político”. (Cartade Carlos Delgado de Carvalho a GustavoLessa, de 27/10/1953)

Quando a discussão chega “ao nívelmais elevado”, o desentendimento entre ambosparece ser total. Simões de Paula declara pe-remptoriamente:

Inicialmente achamos que não cabe, de ma-neira alguma, ao ensino de História, a missãode dar explicações aos fatos históricos, mo-tivo pelo qual, pelo menos dentro dos limi-tes de um curso secundário, julgamos com amaior desconfiança o emprego da expressão“relações de causalidade”. O legítimo objeti-vo deste ensino é, de nosso ponto de vista,o mundo histórico, agindo permanentemen-te sobre nós como uma força viva do ho-mem em sociedade. (Carta de EurípedesSimões de Paula e Pedro Moacyr de Camposa Gustavo Lessa, de 8/10/1953, p. 4-5)

Certamente, se está condenando explica-ções mecânicas de causa e efeito e, de fato,Simões de Paula comenta páginas adiante: “Quan-to às idéias com que não concordamos, acham-se elas contidas principalmente no item c) da ter-ceira parte do ‘Plano Didático’: ‘A perspectivahistórica: relações de causalidade’” (p. 9). Delga-do de Carvalho não perde a oportunidade:

Admito que nem sempre estamos em condi-ções de dar todas as explicações, mas algu-mas relações de causalidade me parecemúteis. Por exemplo, o estudo do Antigo Regi-me, que precedeu a Revolução Francesa, ex-plica muitas feições desta revolução... A Gran-de Guerra teve precedentes que a determina-ram. Aliás, o próprio parecer alude, com ra-zão, a “relações constantes entre os diversossetores das atividades humanas” e mais adi-

ante define claramente, a meu ver, “o mundohistórico agindo permanentemente sobre nóscomo uma força viva que condiciona as li-nhas mestras da orientação da vida do ho-mem em sociedade”. Como “condicionar” seminfluir e como influir sem estabelecer razõesde causalidade? (Carta de Carlos Delgado deCarvalho a Gustavo Lessa, de 27/10/1953)

Simões de Paula também recomenda a“deseuropeização” da História, com o que Del-gado de Carvalho concorda, mas entendendopor isso o que ele já faz, isto é, propor várias uni-dades do manual que não se referem à Europa.Além disso, Simões de Paula recomenda que ouso do “material documentário que acompanha-ria cada capítulo – gravuras, mapas, etc. – de-veria ser escolhido em harmonia com o sistemade exposição da matéria, não se restingindo ja-mais ao campo político” (p. 7). Os comentários,então, tornam-se pontuais, e a polêmica que sus-citam é bem reveladora. Num deles, Simões dePaula reclama da formulação de um dos tópicosdo “Plano” de Delgado, que indicava: “O quadrogeográfico e sua interpretação econômica e so-cial”. Simões de Paula indaga:

A rigor, trata-se da interpretação social doquadro geográfico, e não conseguimos com-preender como, por exemplo, se pode inter-pretar socialmente a península Itálica ou asplanícies russas. (Carta de Eurípedes Simõesde Paula e Pedro Moacyr de Campos aGustavo Lessa, de 8/10/1953, p. 8)

Delgado de Carvalho, que também foraautor de livros de Geografia, não tem dificuldadesem admitir um certo determinismo geográfico:

No princípio deste século, meu professor naEscola de Ciências Políticas de Paris, o sau-doso Albert Sorel, costumava repetir em aula:“Ao estudar a história da Inglaterra, nuncaesqueça que é uma ilha!”. Já, em 1804, emcarta ao rei da Prússia: “A política dos Esta-dos, dizia Napoleão, está na geografia”. Dois

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grandes geógrafos franceses [Jean] Brunhes[1869–1932] e [Camille] Vallaux [1870-1945] escreveram: “A História nos contauma vida da humanidade sempre mais coor-denada, subordinada e coletiva, recebendo ageografia a missão de nos ilustrar esta de-monstração”. Pois não foi a Polônia subme-tida a trágicas condições históricas pelo fatode se achar “nas planícies russas”, varridaspelas invasões e sujeitas a condições econô-micas, sociais e políticas que, devido a suasmontanhas, a Suíça não conheceu? Em queconsistiria a Questão do Oriente se os estrei-tos do Bósforo e Dardanelos não lhe condi-cionassem os episódios? Como teria nascidoa idéia política das fronteiras naturais se nãotivessem elas auxiliado a formação dos Gran-des Estados Modernos? Como negar os im-perativos do meio físico? (Carta de CarlosDelgado de Carvalho a Gustavo Lessa, de27/10/1953)

Há outros itens polêmicos, alguns de-les muito mesquinhos, mas um merece desta-que. Em relação às “palavras-chave”, menciona-das no “Plano”, Simões de Paula indaga:

Tratar-se-ia de um mero vocabulário dadopreviamente para a melhor compreensão doponto? — Neste caso não seriam palavras-chaves. Tratar-se-ia do emprego da filo-logia como ramo auxiliar da História? —Concordamos em que seria muito bonito emuito útil, mas não fácil de se pôr em prá-tica; lembremos, a título de exemplo, as di-gressões complicadas a que daria lugar ovocabulário do Feudalismo ou da CavalariaMedieval nos diversos países europeus.(Carta de Eurípedes Simões de Paula ePedro Moacyr de Campos a Gustavo Lessa,de 8/10/1953, p. 8)

A resposta de Delgado de Carvalhochega a ser óvbia:

Mais uma vez, verifico um desacordo talvezprovocado pela errônea interpretação daexpressão “palavras-chaves”. Trata-se aí,não de “digressão complicada”, nem de“emprego da filologia como ramo auxiliarda História”, mas apenas de um métodoútil, muito usado, aliás, como ponto de iní-cio de uma preleção em aula.Por exemplo, ao tratar, em 2ª série colegial,do Período de Entre-Guerras, o mestre princi-pia a discussão perguntando: “Quem foi oTigre?”, pretexto para falar de Clémenceau edo Tratado de Versalhes. Segundo o interesseque pode despertar uma explicação, ele esco-lherá uma outra palavra-chave, como “de-pressão”, “tcheka”, “putch”, ou “Concordata”.É um tipo simples de motivação, de fácil em-prego. (Carta de Carlos Delgado de Carvalho aGustavo Lessa, de 27/10/1953)

Noções de causalidade, relação com aGeografia, predomínio ou não da política, críti-ca ao eurocentrismo: a polêmica mobilizou ostemas que demarcavam certas modalidades defazer-história, que, então, podiam ser expressõesdos padrões “paulista” e “carioca”. Mas, à som-bra desse conflito, crescia uma outra polariza-ção, que ultrapassaria as fronteiras estaduaispara estabelecer uma forte clivagem entre osprofissionais de história. De um lado, aqueles queprivilegiam a pesquisa e a discussão acadêmicase procuram “libertar-se” das preocupações com“aspectos didáticos”, preferindo “tratar do assun-to em nível mais elevado”, chegando ao requintede preciosismo conceitual em relação a termoscomo “palavra-chave”. De outro, os que mantêmcerta incompreensão a respeito de novas propo-sições teóricas e metodológicas, pois preferempreocupar-se mais com os “aspectos didáticos”.As discussões em torno dos livros de Lacombe ede Delgado de Carvalho revelam que essa pola-rização, que hoje se generalizou, já estava ali,latente e de difícil solução.

Page 17: Dois manuais de história para professores  histórias de sua produção

529Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 513-529, set./dez. 2004

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Recebido em 07.09.04

Aprovado em 18.11.04

Kazumi Munakata é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, e participa do Projeto Temático “Educação e memória: organização de acervosde livros didáticos”, coordenado por Circe Bittencourt e financiado pela Fapesp.