Dolo e Culpa Prof. Ralph

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O Dolo Eventual e a Culpa Consciente nos Delitos de Trânsito O tema proposto é importante. Muito se tem escrito a seu respeito. Doutrina e Jurisprudência têm se posicionado de forma clara em torno dele. Não há, no caso, distinções conceituais que dificultem sua compreensão. Como se verá, as dessemelhanças entre as duas situações a serem tratadas apresentam nitidez, não dando margem a dúvidas. I -Uma Breve Análise do Dolo e da Culpa Para o bom entendimento do debate que envolve o tema em referência, fizemos profunda pesquisa doutrinária e jurisprudencial, de sorte a tentar melhor aclarar a questão. Para a compreensão da diferença existente entre o dolo eventual e a culpa consciente, é necessário, antes de tudo, o conhecimento das duas grandes espécies de crime do Código Penal Brasileiro: o crime doloso e o crime culposo. No Código Penal, o crime doloso está definido no artigo 18, inciso I. Art. 18, inciso I: “Diz-se o crime: I – doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;” Cometido o crime de homicídio (matar alguém) com dolo, a pena varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, podendo ser de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, na hipótese de homicídio qualificado. 1

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Nelson Hungria - Comentrios ao Cdigo Penal Vol

O Dolo Eventual e a Culpa Consciente nos Delitos de Trnsito

O tema proposto importante. Muito se tem escrito a seu respeito. Doutrina e Jurisprudncia tm se posicionado de forma clara em torno dele. No h, no caso, distines conceituais que dificultem sua compreenso. Como se ver, as dessemelhanas entre as duas situaes a serem tratadas apresentam nitidez, no dando margem a dvidas. I -Uma Breve Anlise do Dolo e da Culpa

Para o bom entendimento do debate que envolve o tema em referncia, fizemos profunda pesquisa doutrinria e jurisprudencial, de sorte a tentar melhor aclarar a questo. Para a compreenso da diferena existente entre o dolo eventual e a culpa consciente, necessrio, antes de tudo, o conhecimento das duas grandes espcies de crime do Cdigo Penal Brasileiro: o crime doloso e o crime culposo.

No Cdigo Penal, o crime doloso est definido no artigo 18, inciso I.

Art. 18, inciso I: Diz-se o crime: I doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Cometido o crime de homicdio (matar algum) com dolo, a pena varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, podendo ser de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, na hiptese de homicdio qualificado.

O crime culposo est definido tambm no artigo 18, apenas que em seu inciso II.

Art. 18, inciso II: Diz-se o crime: II culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou impercia.

Na hiptese de homicdio culposo praticado na direo de veculo, diz o artigo 302, da Lei 9.503/97 (Cdigo Nacional de Trnsito):

Art. 302. Praticar homicdio culposo na direo de veculo automotor: Penas deteno, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor.

No Dicionrio Houaiss, o mais completo da lngua portuguesa, Dolo e culpa esto definidos das seguintes formas:

Dolo em direito penal, a deliberao de violar a lei, por ao ou omisso, com pleno conhecimento da criminalidade do que se est fazendo;

Culpa no direito penal, o ato voluntrio, proveniente de impercia, imprudncia ou negligncia, de efeito lesivo ao direito de outrem.

Como se percebe, age com dolo aquele que quer o resultado criminoso ou assume o risco de produzi-lo, com o conhecimento da criminalidade do seu ato. Age com deliberao de violar a lei.

Por sua vez, procede com culpa quem realiza um ato por impercia, imprudncia ou negligncia, ofendendo direito de outrem.

E o que vm a ser impercia, imprudncia ou negligncia? Como visto, so formas de realizao do crime culposo. Ou seja: o agente pode praticar um crime culposo, seja por imprudncia, por negligncia ou por impercia.

Para tornar mais claro o entendimento, vamos especificar o conceito dessas modalidades de culpa (imprudncia, negligncia ou impercia).

Segundo Cezar Roberto Bitencourt (Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, pg. 205):Imprudncia a prtica de uma conduta arriscada ou perigosa.

Negligncia a displicncia no agir, a falta de precauo, a indiferena do agente, que, podendo adotar as cautelas necessrias, no o faz.

Impercia a falta de capacidade, despreparo ou insuficincia de conhecimento tcnico para o exerccio de arte, profisso ou ofcio.

Outro grande jurista, Paulo Jos da Costa Jr (Direito Penal: Curso Completo, 8 ed. Pgs. 82 e seguintes) tambm define as trs formas de crime culposo, apenas que com outras palavras:

Primeiro, ele define o que culpa: A culpa a prtica voluntria de uma conduta, sem a devida ateno ou cuidado, da qual deflui um resultado previsto na lei como crime, no desejado nem previsto, mas previsvel.

Depois, define cada uma das suas modalidades:

A imprudncia uma culpa positiva in agendo: o agente faz o que no deve (imprime velocidade ao veculo, incompatvel com as condies de trfego).

A negligncia uma forma de culpa negativa, in ommitendo (o agente no troca as pastilhas gastas do freio).

Impercia a culpa tcnica, em que o agente mostra-se inabilitado para o exerccio de determinada profisso, embora possa estar credenciado por diploma, que mera presuno de competncia.

Assim, aquele que realiza uma ultrapassagem arriscada, sem o devido cuidado, e sem pretender dar causa a um acidente, mas que, por erro de clculo, o ocasiona, age com culpa (no com dolo). O agente foi imprudente ao empreender a manobra.

II - Dolo Eventual e Culpa Consciente: Conceito e Entendimento Doutrinrio.

Dentro das espcies de dolo e de culpa, h duas que tm maior interesse para ns. O dolo eventual e a culpa consciente.

No dolo eventual o agente criminoso sabe que o resultado lesivo pode ocorrer e mesmo assim ele age, aceitando-o. Assume o risco de produzi-lo. Ele (o agente), mesmo visualizando a possibilidade da ocorrncia do ato ilcito, no interrompe a sua ao, admitindo, anuindo, aceitando, concordando com o resultado.

J na culpa consciente, o agente, visualizando a possibilidade do resultado, acredita sinceramente que ele no v ocorrer. No quer a sua realizao, e se esfora no sentido de tentar evit-lo.

Como j analisado anteriormente, no dolo o agente quer o resultado, aceita o resultado. O criminoso atira contra algum querendo matar essa pessoa. Age dolosamente. J no crime culposo, o agente no quer o resultado, mas pela forma imprudente, negligente ou imperita de agir, acaba causando o resultado, entretanto, frise-se, sem pretend-lo. O policial, vendo uma vtima refm de um marginal, que est a amea-la de morte, dispara contra ele, mas, por erro de pontaria (erro de clculo), acerta a vtima, matando-a. O policial no queria o resultado, no queria matar a vtima. Logo, ele responder por crime culposo, por homicdio culposo, se ficar comprovado que foi imprudente ao atirar naquelas condies imprprias.

Outro exemplo: um pai acorda durante a madrugada com barulhos estranhos. Percebe que algum fora a porta de seu quarto. Pega o seu revlver. Ao ver a porta se abrindo, assusta-se com o vulto de algum. Ele atira. Em seguida, percebe haver matado seu prprio filho. Pretendia o pai esse trgico resultado? Claro que no. O que fica evidenciado que ele foi imprudente ao ter atirado. Houve um erro de avaliao das circunstncias. Logo dever responder por homicdio culposo, pois no queria o resultado.

Para tornar mais claro o entendimento, vale transcrever a conceituao dada por alguns dos mais conhecidos juristas brasileiros:

a) - Julio Fabbrini Mirabete, in Manual de Direito Penal, vol. I, pg. 139 e seguintes:

Dolo: Dolo a vontade dirigida realizao do tipo penal. Assim, pode-se definir o dolo como a conscincia e a vontade na realizao da conduta tpica, ou a vontade da ao orientada para a realizao do tipo.

Culpa: Tem-se conceituado na doutrina o crime culposo como a conduta voluntria (ao ou omisso) que produz resultado antijurdico no querido, mas previsvel, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida ateno, ser evitado.

Dolo eventual: no dolo eventual a vontade do agente no est dirigida para a obteno do resultado; o que ele quer algo diverso, mas prevendo que o evento possa ocorrer, assume assim mesmo o risco de caus-lo.

Culpa Consciente: A culpa consciente ocorre quando o agente prev o resultado, mas espera, sinceramente, que no ocorrer.

Diferena entre culpa consciente e dolo eventual: A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ela no se confunde. Naquela (na culpa consciente), o agente, embora prevendo o resultado, no o aceita como possvel. Nesse (no dolo eventual), o agente prev o resultado, no se importando que venha ele a ocorrer.

b) - Fernando Capez, membro do Ministrio Pblico, in Curso de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, pg. 187:

A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prev o resultado, mas no se importa que ele ocorra (se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar algum, mas no importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar algum, mas estou certo de que isso, embora possvel no ocorrer). O trao distintivo entre ambos, portanto, que no dolo eventual o agente diz: no importa, enquanto na culpa consciente supe: possvel, mas no vai acontecer de forma alguma .

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c) - Cezar Roberto Bitencourt, in Manual de direito Penal, Parte Geral, vol. 1, pg. 205:

Haver dolo eventual quando o agente no quiser diretamente a realizao do tipo, mas a aceitar como possvel ou at provvel, assumindo o risco da produo do resultado (art. 18, in fine, do CP). No dolo eventual o agente prev o resultado como provvel, ou, ao menos, como possvel, mas, apesar de prev-lo, age aceitando o risco de produzi-lo. Como afirmava Hungria, assumir o risco alguma coisa mais que ter conscincia de correr o risco: consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer.

Dolo: indispensvel uma determinada relao de vontade entre o resultado e o agente e exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. Como lucidamente sustenta Alberto Silva Franco: Tolerar o resultado, consentir em sua provocao, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo no passam de formas diversas de expressar um nico momento, o de aprovar o resultado alcanado, enfim, o de quer-lo.

Culpa: Culpa a inobservncia do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado no querido, objetivamente previsvel.

H culpa consciente, tambm chamada culpa com previso, quando o agente, deixando de observar a diligncia a que estava obrigado, prev um resultado, previsvel, mas confia convictamente que ele no ocorra. Quando o agente, embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este no se verifique, estar-se- diante de culpa consciente e no de dolo eventual.

O fundamental que o dolo eventual apresente estes dois componentes: representao da possibilidade do resultado e anuncia sua ocorrncia; assumindo o risco de produzi-lo.

Por fim, a distino entre dolo eventual e culpa consciente resume-se aceitao ou rejeio da possibilidade de produo do resultado. Persistindo a dvida entre um e outra, dever-se- concluir pela soluo menos grave: pela culpa consciente.

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d) - Miguel Reale Jnior , in Instituies de Direito Penal, Parte Geral, vol. I, pg. 219 e seguintes:

Dolo Eventual: O dolo eventual quando o agente inclui o resultado possvel, de forma indiferente, como resultado da ao que decide realizar, assentindo em sua realizao, que confia possa se dar.

Diante de um resultado nocivo possvel o agente arrisca e prefere agir, admitindo e no lhe repugnando assim a ocorrncia do resultado.

Culpa Consciente: Sucede, todavia, que na culpa consciente tem o agente conhecimento de que o resultado pode ocorrer, no que no d seu assentimento, prprio do dolo eventual.

Diferena: No dolo eventual une-se o assentimento assuno do risco, a partir da posio do agente de que confia que pode ocorrer o resultado e assim mesmo age. Na culpa consciente assoma ao esprito do agente a possibilidade de causao do resultado, mas confia ele que este resultado no suceder. Na culpa consciente o agente considera que tudo andar bem, tudo vai dar certo.

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e) - Nelson Hungria, in Comentrios ao Cdigo Penal, vol. I, Tomo II, Ed.Forense, 4 edio, pgs 114 e seguintes:

Dolo Eventual: Na conceituao do dolus eventualis, VON LISZT e FRANK aderem iniludivelmente teoria da vontade quando, em tal caso, declaram insuficiente a simples representao do resultado e exigem para este o consentimento do agente. Ora, consentir no resultado no seno um modo de quer-lo (Pronuncia o ministro CAMPOS na sua Exposio de motivos: inegvel que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto quer-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuncia ao seu advento).

Diferena entre Dolo Eventual e Culpa Consciente: H, entre elas, certo, um trao comum: a previso do resultado antijurdico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta anuncia ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invs de renunciar ao, na culpa consciente, ao contrrio, o agente repele, embora inconsideradamente, a hiptese de supervenincia do resultado, e empreende a ao na esperana ou persuaso de que este no ocorrer.

Exemplo dado por Hungria:

a) Um motorista, dirigindo o seu carro com grande velocidade, j em atraso para atender ao compromisso de um encontro amoroso, divisa sua frente um transeunte, que, aproximao do veculo, fica atarantado e, vacilante, sendo atropelado e morto. Evidentemente, o motorista previu a possibilidade desse evento; mas, deixando de reduzir ou anular a marcha, teria aceito o risco de matar o transeunte, ou confiou em que este se desviasse a tempo de no ser alcanado? Na dvida, a soluo no pode ser outra seno a do reconhecimento de um homicdio simplesmente culposo (culpa consciente).

III - Trechos de artigos publicados abordando o Dolo Eventual e a Culpa Consciente em acidentes de Trnsito:

1- Artigo: Dolo Eventual em Crimes de Trnsito, de Jos Barcelos de Souza, Boletim IBCCrim, Ano 06, n 73.

O que costuma ocorrer, efetivamente, em delitos de trnsito, no um imaginado dolo eventual, mas uma culpa consciente, grau mais elevado da culpa, muito prxima do dolo, que, entretanto, no chega a configurar-se.

Entretanto, cumpre salientar que, a despeito da proximidade da culpa consciente com o dolo eventual, h enorme disparidade de penas. Seria muito difcil fazer jurados, em pouco tempo, durante um julgamento, entender a diferena, pois a matria difcil at mesmo para os que so do ramo. E, em verdade, a prova tambm difcil, uma vez que dependeria muito da palavra do acusado contra si prprio, relatando o fato. Essa dificuldade foi salientada pelo desembargador Jos Loyola, de saudosa memria, em recurso da Comarca de Ouro Preto (MG), de que foi relator: O fato decisivo para a necessria diferenciao entre o dolo eventual e a culpa consciente certamente a vontade do agente. Somente nos casos em que restar claramente evidenciado esse querer, poder-se- falar em dolo eventual, que, nos delitos de trnsito, embora possvel, de difcil comprovao. Desse modo, muito certamente o Jri ir, na dvida, partir para uma soluo menos severa, como, alis, ponderavam os antigos doutores. Nem mesmo o chamado racha se poder dizer, s por isso, que teria havido dolo eventual, o que poderia fazer presumir um anormal comportamento suicida.

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2- Artigo: Dolo Eventual, Culpa Consciente e Acidente de Trnsito, de Andr Lus Callegari, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, n 13, pg. 191:

A conjugao das conscincia e da vontade representa o cerne do dolo e esses dois momentos definidores no so estranhos ao dolo eventual que, como observa Daz Palos, es dolo antes que eventual (Dolo Penal, Barcelona, pg. 97).

Assim, no basta para que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provvel que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atua consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que torne a srio o perigo de produzir possvel conseqncia acessria. No exatamente no nvel atingido pelas possibilidades de concretizao do resultado que se poder decretar o dolo eventual e, sim, numa determinada relao de vontade entre esse resultado e o agente.

Tolerar o resultado, consentir em sua provocao, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo no passam de formas diversas de expressar um nico momento, o de aprovar o resultado alcanado, enfim, o que quer-lo.

Paulo Jos da Costa Jr. Coloca que o dolo eventual exigiria, de parte do agente, a aprovao ou consentimento ou, quando ao menos, um comportamento de absoluta indiferena.

Assim, mister que se faa tal distino entre a conduta do agente, perquirindo-se a respeito de sua intencionalidade (vontade) no momento da causao do resultado danoso, visto que no ser a embriaguez, o nmero de vtimas ou excesso de velocidade, entre outros motivos, que delinearo a imputao ao acusado, mas to-somente, o seu consentimento para a produo ou no do resultado tpico.

A pena aplicada do delito culposo, devendo ser dosada de acordo com a culpabilidade do acusado.

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3- Artigo: Crime de Trnsito: Interpretao e Crtica, de Joo Jos Caldeira Bastos, in Revista Brasileira de Cincias Criminais, n 25, pg. 174:

Para Fabbrini Mirabete, por exemplo, quando da anlise do tipo subjetivo do crime do artigo 132: Querer o perigo ou aceitar o risco de sua ocorrncia equivale a consentir no risco do resultado (morte ou leso corporal) (Manual de Direito Penal, p. 9, ed. So Paulo: Atlas, 1995. v. 2, p. 127).

Quem dirige embriagado ou participa de racha (mesmo quando perde o comando do volante e, subindo na calada mata um ou mais pedestres) no age, em princpio, com dolo eventual de dano.

Pondera, com acerto, Edmundo Jos de Bastos Jr.: Quando a atitude psquica do agente no se revelar inequvoca, ou se h inafastvel dvida se houve, ou no, aceitao do risco do resultado, a soluo deve ser baseada no princpio in dubio pro reo, vale dizer, pelo reconhecimento da culpa consciente. E continua: Nos delitos de trnsito, h um decisivo elemento de referncia para o deslinde da dvida entre dolo eventual e culpa consciente: o risco para o prprio agente. Com efeito, difcil aceitar que um condutor de veculo, na plenitude de sua sanidade mental, seja indiferente perda de sua prpria vida e, eventualmente, de pessoas que lhe so caras - em desastre que prev como possvel conseqncia de manobra arriscada que leva a efeito, como, por exemplo, uma ultrapassagem forada ou sem visibilidade (Cdigo Penal em Exemplos Prticos, Florianpolis, Terceiro Milnio e OAB/SC Editora, 1998, p. 58).

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4- Artigo: O Dolo Eventual nos Homicdios de Trnsito: Uma Tentativa Frustrada, de Alexandre Wunderlich, RT 754/461, Doutrina Penal.

No dolo eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspcua: no basta a caracteriz-lo tenha o agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nele haja consentido. Vindo ao nosso ponto: motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo eventual, cumpria que, alm de ter assumido o risco de causar a morte da vtima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta a lio da experincia vulgar.

O dolo eventual no um dolo de borracha. A elasticidade do conceito tamanha que chegamos ao ponto de tentar caracterizar o dolo eventual em acidentes de trnsito, onde, num raciocnio lgico, seria impossvel admitir-se a presena do elemento volitivo.

Hungria j evidenciava essa perigosa elasticidade do conceito e chega a comentar um caso de tentativa de caracterizao de dolo eventual em acidente de trnsito com choque frontal entre veculos: principalmente na justia de primeira instncia, h uma tendncia para dar elasticidade ao conceito de dolo eventual. Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: trs rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automveis pela estrada que liga as cidades gachas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores no pode evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrrio, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado, em estado gravssimo, para um hospital, onde s vrias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os trs rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicdio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente excesso de rigor: se estes houvessem previamente anudo a tal evento, teriam necessariamente, consentido de antemo na eventual eliminao de suas prprias vidas, o que inadmissvel. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiaram em sua boa fortuna (sorte), afastando de todo a hiptese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o prprio suicdio.

Ora, se em casos de coliso frontal entre veculos, em que agentes e vtima so encaminhados ao hospital com ferimentos graves (por exemplo), na anlise deste sinuoso e complexo processo psicolgico, houvesse o agente particularmente, em foro ntimo, previsto o acidente, teria ele consentido no resultado?

Agora, in coliso frontal ou semifrontal de automveis, falar-se em dolo eventual, onde seria necessrio que o agente previsse e consentisse com o resultado, quando sabidamente seria provvel que o prprio agente viesse a falecer conjuntamente coma a vtima, data venia (!), seria darmos demasiada elasticidade ao conceito de dolo eventual. Alm disso, no esteio da teoria do consentimento, adotada pelo Cdigo Penal Brasileiro, seria juridicamente impossvel.

Assim, parece-nos por demais perigosa a elasticidade do conceito de dolo eventual os acidentes de trnsito. Acreditamos, sinceramente, que, ao colocar a sua prpria vida em jogo, o agente que colide seu veculo contra o de outrem no poderia, num raciocnio bvio, consentir ou anuir com o resultado. Impossvel a presena do elemento volitivo no enquadramento ftico referido. Impossvel tolerar a produo do resultado. Impossvel haver consentimento, anuncia, pelo simples fato de que, se o agente concordasse com o resultado morte da vtima, estaria, ao mesmo tempo, consentindo com a sua (possvel e tambm provvel) morte.

Destaque-se, por fim, que no s na verdade ftica deve o julgador, em caso de dvida, escolher a tese que mais favorea ao ru, mas sim tambm na verdade jurdica. Diante de toda esta complexa discusso e da dificuldade probatria, a soluo no pode ser outra seno a do reconhecimento de um homicdio culposo. O contrrio seria ferretear para todo o sempre o constitucional princpio da presuno de inocncia: in dubio pro ru.

IV - Decises de nossos Tribunais a respeito do tema:

Decises:

1-Sensvel a diferena entre o dolo eventual e a culpa consciente, embora entre eles existam um trao comum, que a previso do resultado antijurdico. Mas, enquanto naquele o agente presta anuncia ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invs de renunciar ao, na culpa consciente, ao contrrio, o agente repele, embora inconsideradamente, a hiptese de supervenincia do resultado e empreende a ao na esperana ou persuaso de que este no ocorrer (Tribunal de Justia de So Paulo, Relator Desembargador Djalma Lofrano, RT 589:317).

2-Na hiptese de dolo eventual, no suficiente que o agente tenha se conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado: exige-se, mais, que ele tenha consentido no resultado (Tribunal de Justia de So Paulo, Relator Desembargador Hlio Arruda, RT, 380:302).

3-Nos casos em que no se revele inequvoca a atitude psquica do agente, ou se h irredutvel dvida em face dos coligidos elementos de informao, sobre se houve, ou no, aceitao do risco (consentimento, aprovao, anuncia, ratificao ex ante do resultado), a soluo de acordo com in dubio pro reo, deve ser no sentido de reconhecimento da culpa consciente, isto , da hiptese mais favorvel. (RJTJSP 89/385)

4-Age culposamente e responde pelas conseqncias o motorista que, visando ultrapassar veculos estacionados, invade a contramo de direo de forma a impedir trfego normal em sentido contrrio, dando causa a coliso. (Ac. unan., 2 C. do TACrimSP, na Apel. n 175.517, da Comarca de Tamba. Rel. Juiz EDMOND ACAR Julgados do TAC, vol.51/375).

5-Caracteriza imprudncia a ultrapassagem de veculo sem as condies que a permitam, de modo a levar um terceiro veculo, vindo em sentido contrrio, a manobra que normalmente no estaria obrigado, ocasionando a coliso do que ultrapassa com o terceiro, apesar daquelas manobras. (Ac. unan., 4 C. Do TACrim, na Apel. n 62.885, da Comarca de Bragana Paulista, Rel. Juiz AZEVEDO JUNIOR Julgados do TAC, Vol.3/59).

6-Manifesta a culpa do motorista que, em rodovia, pretende ultrapassar veculo que segue sua frente sem se certificar se poderia, com segurana, realizar a manobra e assim d causa a acidente. (Ac. unan., Apel. n 133.001, da Comarca de Sertozinho, Rel. Juiz GOULART SOBRINHO RT 493/347).

7-Evidente a culpa de quem, tentando ultrapassagem nas vizinhanas de lombada, fora veculo que viaja em sentido contrrio a manobra in extremis, de que resulta acidente. Irrelevante ao reconhecimento da responsabilidade penal, ter o acusado desistido da manobra, reingressando sua mo de direo. (Ac. unan., 1 C. TACrim, na Apel. 80.651, da Comarca de Bebedouro, Rel. Juiz DINIO GARCIA Julgados do TAC, vol. 35/218).

8-Age imprudentemente o motorista que efetiva ultrapassagem em local imprprio realizao de manobra, mxime quando implique esta em invaso de contramo de direo. (Ac. unan., 6 C. do TACrim, na Apel. n 114.629, da Comarca de So Paulo, Rel. Juiz GONALVES SOBRINHO Julgados do TAC, vol. 39/212).

9-Age com culpa evidentssima, resvalando para a culpa consciente, o motorista que, dirigindo um caminho tipo carreta, e procedendo de forma temerria e desnecessria, mas por esprito de emulao, fora a ultrapassagem de outro veculo, passando a trafegar pela contramo de direo em condies que sabia ser de alto risco, considerando tratar-se de rodovia com duplo sentido de direo, dando causa coliso frontal com automvel que vinha em sentido contrrio, em condies normais de trnsito e causa a morte de seus ocupantes.(RJTACrim, Apel. n 542.701/1, 2 Cm. do TACRIMSP)

10-Ementa oficial: Procede com insigne culpa, na modalidade de imprudncia, e responde pelo crime do art. 302 do Cdigo de Trnsito, o motorista que, faltando ao dever de cuidado objetivo, entra na contramo de direo e intercepta a trajetria regular de veculo, provocando acidente fatal RT 779/592

V - Concluso:

De todo o exposto, podemos concluir que quando no h provas concretas, definitivas de que o acusado tenha agido com a inteno de causar o resultado, no poder existir outra deciso seno no sentido de se reconhecer uma conduta culposa. Dolo eventual, como visto, dolo, e por isso exige a anuncia, a concordncia, a aceitao do resultado. Somente se caracteriza o dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado, concordando com ele. Assumir o risco, sabemos, significa tolerar o resultado, consentir em sua realizao e estar de acordo com ele. Existe uma considervel diferena, pois, enquanto no dolo eventual o agente d o seu assentimento, a sua aquiescncia, a sua anuncia ao resultado lesivo, na culpa consciente no h qualquer adeso nesse sentido.

Embora seja at admissvel, na hiptese de excesso de velocidade, ultrapassagem perigosa ou racha, que o agente tenha se arriscado a produzir o resultado, no se pode afirmar que concordou com ele, ou mesmo o consentiu. De parte as hipteses de suicidas, seria muito forado conceber-se que algum possa tomar uma atitude admitindo (anuindo, assumindo, concordando) que dela poder resultar sua prpria morte. At porque isso importaria na completa anulao do instinto de conservao, sempre presente nas pessoas que tm o psiquismo integrado. No ser exagero reiterar que quando exista dvida quanto ao agente ter atuado com dolo eventual ou culpa consciente, a posio correta do Julgador ser sempre a de definir-se pela soluo mais favorvel ao acusado. A soluo adequada juridicamente, humanamente correta e justa na hiptese de dvida, a da desclassificao para o delito culposo. S no ser assim quando houver certeza plena, total, absoluta de que o agente teria agido com dolo eventual, concordando ento, efetivamente, comprovadamente, com o resultado lesivo. Na dvida, o caminho a desclassificao.

Nesse sentido, de se trazer lume, desde que inteiramente ajustvel espcie em debate, a palavra abalizada de Nicola F. dei MALATESTA:

Quando se tem presente que a condenao no se pode basear seno na certeza da culpabilidade, logo se v que a credibilidade razovel, tambm mnima, da inocncia, sendo destrutiva da certeza da culpabilidade, deve, necessariamente, conduzir absolvio.. Lgica das Provas em Matria Criminal, vol. I, pg. 74.

Outro no tem sido, evidncia, o caminho trilhado por nossos Tribunais, ao deixarem estabelecido, de maneira incontroversa, que

No processo criminal, mxime para condenar, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidncia, positivo como qualquer expresso algbrica. Condenao exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutveis, de carter geral, que evidenciem o delito e a autoria, no bastando a alta probabilidade desta ou daquela. E no pode, portanto, ser a certeza subjetiva, formada na conscincia do julgador, sob pena de se transformar o princpio do livre convencimento em arbtrio. RT 619/267.

Sem a prova plena e verdadeira, a condenao ser sempre uma injustia e a execuo da pena uma violncia. RT 582/288.

de conhecimento elementar que o Direito Penal no opera com conjecturas. A condenao criminal exige certeza da existncia do fato punvel, de autoria e culpabilidade do agente. RT 534/416.

Finalizando, importante reiterar a enorme diferena relativamente pena aplicada em cada uma das duas hipteses, o que exige ainda maior cuidado e ateno na abordagem do tema.

Admitido o dolo eventual, a pena variar de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, ou de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, na hiptese de homicdio qualificado.

Na hiptese de desclassificao para homicdio culposo, nos termos do artigo 302, da Lei 9.503/97 (Cdigo Nacional de Trnsito), a pena ser de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, com suspenso ou proibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor.

Assim, s mesmo a certeza plena, inequvoca pode possibilitar o enquadramento da conduta do agente na modalidade do dolo. Do contrrio, em hipteses de acidente na direo de veculo automotor, o caminho recomendvel, obrigatrio, tecnicamente correto, repita-se, ser o da desclassificao para o homicdio culposo.

Ralph Trtima Stettinger Filho

O autor advogado criminal e professor

de Direito Penal e Direito Processual Penal.

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