Dons Espirituais - Um Denominador Comum

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    O denominador comum para o entendimento dos dons espirituais Rev. Dr. Misael Batista do Nascimento. www.misaelbn.com Copyright 2012 permitida a reproduo ou distribuio desde que citada a fonte.

    Voc j deve ter ouvido os seguintes argumentos:

    1. Todos os dons espirituais so para hoje; afirmar que um ou mais deles cessou e outros continuam ilgico e contrrio Bblia.

    2. Deus continua falando por meio de profecias. 3. A igreja organizada segue mais aos homens do que ao Esprito; por isso

    necessrio deixar de lado a liderana institucional humana e submeter-se s ao governo de Deus.

    4. A letra mata, s o Esprito vivifica; teologia e doutrina no so importantes; o estudo produz enfado e sufoca o fervor e verdadeira espiritualidade.

    5. Quem sustenta a doutrina da igreja antiga (que condenou o montanismo) ou dos pais reformadores (que reafirmaram o fim das revelaes e de alguns dons ligados ao apostolado e profetismo) nega a pessoa e obra do Esprito; ou entende mal as Escrituras ou luta contra Deus.

    Tais argumentos no so atuais ou criativos. Eles tm sido repetidos ao longo dos dois mil anos, primeiro pelos montanistas do 2 sculo, depois pelos reformadores radicais e entusiastas do sculo 16, e por msticos do movimento de santidade (holiness) e semipelagianos (arminianos), a partir do sculo 19. Tais colocaes foram devidamente rechaadas pela igreja antiga e os pais reformadores (os lderes da Reforma do 16 sculo e os telogos que escreveram os Smbolos de Westminster, no sculo 17).

    Heresias do montanismo no 2 sculo

    Desde cedo a igreja teve de administrar dois movimentos aparentemente opostos, de organizao e revitalizao. O primeiro enfatiza a estruturao ou ordem da igreja; o segundo, sua vitalidade espiritual. No Novo Testamento as duas coisas se combinam; na histria da igreja, nem tanto. Esta ltima testemunha o protesto perene suscitado dentro da igreja quando se aumenta a fora da instituio e se diminui a dependncia do Esprito de Deus.1

    Aps 155, surgiu um movimento na Frgia denominado montanismo.

    1 CAIRNS, Earle Edwin. O Cristianismo Atravs dos Sculos: Uma Histria da Igreja Crist. 2ed. So Paulo: Vida Nova, 2008, p. 87.

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    Diz-se que em Msia da Frgia existe uma aldeia chamada Ardaban. Ali foi, dizem, que um recm-convertido f, chamado Montano, pela primeira vez, em tempos de Grato, procnsul da sia, saindo contra o inimigo com a paixo desmedida de sua alma ambiciosa de proeminncia, ficou merc do esprito e de repente entrou em arrebatamento convulsivo como se possesso e em falso xtase, e comeou a falar e proferir palavras estranhas, profetizando desde aquele momento contra o costume recebido pela tradio e por sucesso desde a igreja primitiva.2

    Montano juntou-se a duas profetisas, Priscila e Maximila e estabeleceu uma seita legalista.3 Sua pregao da proximidade da volta de Cristo e do estabelecimento da Nova Jerusalm em Pepuza (cidade da Frgia) atraiu muitos adeptos, dentre eles, o Telogo Tertuliano.4 O montanismo foi considerado hertico em 381, pelo Conclio de Constantinopla.5

    O monasticismo e o declnio dos dons a partir do 4 sculo

    O movimento dos Pais do Deserto, iniciado com Santo Anto, no 4 sculo, deu origem ao monasticismo.6 Esta proposta de vida crist, inicialmente solitria e, depois, comunal, desenvolveu-se sob uma determinada compreenso da igreja e do ministrio do Esprito Santo. Este operava no contexto da simplicidade de vida, trabalho, devoo e obedincia.7 Tambm neste sculo foi escrito o primeiro Tratado Sobre o Esprito Santo, por Baslio de Cesareia,8 focalizando o lugar e papel do Esprito Santo na orao e adorao trinitrias, sem qualquer meno aos dons espirituais.

    A efuso de profecias e dons do 2 sculo declinou. Em suas homilias sobre 1Corntios 12, Joo Crisstomo afirmou que alguns detalhes do texto de Paulo pareciam obscuros porque nem todos os acontecimentos da poca apostlica eram conhecidos da igreja do 5 sculo, ou seja, alguns dons haviam cessado.

    2 EUSBIO DE CESAREIA. Histria Eclesistica, XVI.7. So Paulo: Novo Sculo, 1999, p. 174. 3 O montanismo recomendava o rompimento de matrimnios e jejuns. Cf. EUSBIO DE CESAREIA, op. cit., XVIII.2, p. 177. 4 MACARTHUR JR., John F. O Caos Carismtico. So Jos dos Campos: Fiel, [200-?], p. 92-93. 5 O Conclio [] declarou que os montanistas deviam ser considerados pagos (CAIRNS, op. cit., loc. cit.). Grifo nosso. 6 CAIRNS, op. cit., p. 130-134. 7 Ibid., p. 131. 8 MAGNO, Baslio. Baslio de Cesareia: Homilia Sobre Lucas 12; Homilias Sobre a Origem do Homem; Tratado Sobre o Esprito Santo. So Paulo: Paulus, 1998. (Coleo Patrstica).

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    O desconhecimento dos acontecimentos de ento, e que agora no advm, produz a obscuridade. E por que agora no sucedem? Eis, pois, que a causa da obscuridade gera outra interrogao para ns. Por que acontecia ento e agora, no?9

    Pregando sobre o Evangelho de Joo, o mesmo Crisstomo afirmou:

    Ainda agora no h tambm quem sai em busca de sinais? Deveras ainda h, nesta nossa poca, quem inquira por que tambm agora os sinais no so dados? Se voc crente, como deve ser, se voc ama a Cristo como deve ser amado, ento voc no necessita de sinais, pois estes so dados aos incrdulos.10

    Buscas espirituais com nfases distintas at a Reforma

    Buscas com consequentes experincias espirituais ocorreram nos sculos seguintes. Das entranhas da Igreja Medieval surgiram entendimentos diferentes da obra do Esprito, de um lado, os pr-reformadores John Tauler (1300-1361), John Wycliff (1328-1384), John Huss (1373-1415), Jernimo Savanarola (1452-1498) e William Tyndale (1494-1536), com sua nfase no evangelho fiel s Escrituras e, de outro, os msticos espanhis Joo da Cruz (1542-1591) e Teresa de vila (1515-1582), centrados na orao e xtases contemplativos.

    A clara bifurcao entre reformados e entusiastas, no que diz respeito nfase em novas revelaes, a partir do sculo 16

    Lutero, Calvino e especialmente Zwinglio, no sculo 16, se referiram ao ministrio do Esprito Santo e seus dons enquanto lidaram com os anabatistas e entusiastas ligados reforma radical.11 Sua pluralidade e pulverizao impedem uma sistematizao; no entanto, possvel sugerir um ncleo de questionamento da igreja institucional e anseio por um governo eclesistico e civil implementado diretamente pelo Esprito. No centro da batalha estava a ideia de suficincia da Bblia sola Scriptura. Tanto os papistas quanto os entusiastas diziam valorizar a autoridade da Bblia admitindo a continuidade de novas

    9 CRISSTOMO, Joo. 2: Homilias Sobre a Primeira Carta aos Corntios: Homilias Sobre a Segunda Carta aos Corntios. So Paulo: Paulus, 2010, p. 403. (Coleo Patrstica). Grifos nossos. Parece que no 2 sculo havia uma convico de que o dom de profecia teria continuidade at a volta de Cristo. Cf. BURGESS, Stanley M. The Holy Spirit: Ancient Christian Traditions. Fourth Printing 2002. Peabody, Massachusetts, 1984, p. 51. 10 CRISSTOMO, Joo. Homily 24*, Homilies on John [NPNF1, 14:84, p. 59.143-44], apud TURRETINI, Franois. Compndio de Teologia Apologtica, 18.XLIV. So Paulo: Cultura Crist, 2011, p. 151. v. 3. Grifos nossos. 11 Calvino criticou os fanticos entusiastas que desconsideravam a Bblia enquanto seguiam seus sonhos. Cf. CALVINO, Joo. As Institutas: Edio Clssica, I.IX.III. So Paulo: Cultura Crist, 2006, p. 102. v. 1. Sobre os embates de Lutero e Zwinglio, cf. GILBERT, William. Renaissance and Reformation. Lawrence, KS: Carrie, 1998. Captulo The Radicals Of The Reformation. Disponvel em: . Acesso em: 23 out. 2012.

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    revelaes. Os reformadores foram unnimes em admitir que a aceitao das Escrituras como nica regra de f e prtica exigia a cessao do ofcio proftico.

    No sculo 17 George Fox fundou a Sociedade dos Irmos, reivindicando inspirao direta do Esprito Santo e indiferena para com a doutrina. Por causa das manifestaes fsicas dos crentes que participavam de suas reunies, eles foram apelidados de quackers ou quacres, tremedores.12 Na mesma poca o cristo reformado John Owen publicou um tratado denso e profundo sobre a pessoa e obra do Esprito com um captulo especialmente dedicado aos dons espirituais.13 Ainda em 1679 Franois Turretini, telogo de Genebra, escreveu em suas Institutas contra a glria dos milagres14 e a luz proftica15 duas reivindicaes de suposta autenticidade da Igreja Catlica Romana destacando, quanto aos primeiros, que os milagres dependem e devem ser julgados pela doutrina e devem ser aceitos medida que a doutrina [...] seja conformada com a Palavra de Deus; do contrrio, devem ser rejeitados como esprios.16 Quanto luz proftica:

    um dom extraordinrio, no um dom perptuo, o qual pertence aos dons miraculosos, como a espcie ao seu gnero. [...] H muitas igrejas verdadeiras que existem sem esses dons notveis, os quais foram peculiarmente outorgados igreja apostlica no incio do Novo Testamento.17

    Notemos que os telogos reformados dos sculos 16 e 17 no deixaram de tratar da doutrina do Esprito Santo e dos dons espirituais. Eles fizeram isso respondendo s demandas de seu tempo. Naquela poca era preciso combater as reivindicaes de autenticidade das novas revelaes e dons milagrosos tanto do Catolicismo Romano quanto dos reformadores radicais.

    A necessidade de esclarecimentos sobre a obra do Esprito no sculo 18

    O sculo 18 testemunhou um derramamento do Esprito denominado Grande Despertamento, cujas figuras centrais foram George Whitefield, John Wesley e Jonathan Edwards. Este ltimo procurou explicar biblicamente as experincias do avivamento. Seus escritos tm grande valor para o entendimento da pessoa e obra do Esprito Santo. Edwards no mencionou o uso de dons espirituais na igreja local, mas lanou luz sobre

    12 CAIRNS, op. cit., p. 277, 345, 353. 13 OWEN, John. or A Discourse Concerning The Holy Spirit. In: OWEN, John. The Works of John Owen. Edinburg: T&T Clark, 1862. v. 3. LogosBible. 14 TURRETINI, op. cit., 18.XLIIIXLVI, p. 150-151. 15 Ibid., 18.XLVIIXLVIII, p. 151-152. 16 Ibid., 18.XLIII, p. 150. 17 Ibid., 18.XLVII, p. 151-152. Grifos nossos.

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    outra questo importante: dentre os diversos fenmenos psicolgicos e fsicos oriundos do avivamento, como discernir o que, de fato, obra do Esprito?18

    Os desvios do segundo grande despertamento e a tomada da igreja pelos restauracionistas, a partir do sculo 19

    O chamado Segundo Grande Despertamento do sculo 19 no trouxe boas contribuies ao entendimento da pessoa e obra do Esprito Santo. Pelo contrrio, ele enfatizou a experincia em detrimento do conhecimento da Bblia, assumindo a herana dos montanistas, msticos da Idade Mdia, entusiastas, reformadores radicais e quacres, estes ltimos empacotados nos movimentos de santidade (holiness).19 Tais tendncias foram misturadas ao semipelagianismo arminiano e ao pragmatismo influenciado pelo iluminismo tudo isso travestido de linguagem e estratgia evangelstica crist propugnadas pelo avivalista Charles G. Finney.20 Essa estranha amlgama dos ideais iluministas (preconizando o uso de subsdios ou mtodos humanos), misticismo holiness (anti-institucionalismo e averso Teologia) e semipelagianismo arminiano, produziu o anti-intelectualismo evanglico.

    Pavimentou-se o caminho para o pentecostalismo dos sculos 20 e 21.

    A data tradicional do incio da renovao pentecostal [...] o dia de ano-novo de 1901, em Topeka, Kansas. Na escola bblica de Charles Parham, um culto de orao devota tinha sido realizado na vspera de ano-novo, e durante todo o dia de ano-novo a presena de Deus foi sentida, tranquilizando os coraes a esperar pelas coisas maiores por vir [...]. Por volta de 11 horas da noite, Agnez Ozman, uma das estudantes, recebeu uma orao pelo dom do Esprito Santo, e o Esprito Santo caiu [...]. A segunda erupo aconteceu em Los Angeles, no dia 9 de abril de 1906, entre um grupo de pessoas brancas e negras que haviam orado e jejuado durante dez dias, pedindo a Deus que enviasse o seu Esprito. No dcimo dia, um jovem negro falou em lnguas, logo seguido por outros seis crentes.21

    18 Cf. EDWARDS, Jonathan. A Verdadeira Obra do Esprito: Sinais de Autenticidade. 2ed. revisada. So Paulo: Vida Nova, 2010. 19 PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, p. 285-286, nos informa que os presbiterianos norte-americanos se dividiram em duas alas, a velha ala, ligada f confessional e a nova ala, ligada f reavivalista. Quanto ao estilo de pregao, o sermo reavivalista era, alm de emotivo, simples e informal (op. cit., p. 295). 20 Finney, apontado por alguns como o grande responsvel pelo pragmatismo evanglico deste sculo, reportou uma experincia espiritual: O Esprito Santo desceu sobre mim de um modo que parecia passar atravs de mim, corpo e alma. [...] Na verdade, parecia vir em ondas e ondas de amor fluido (FINNEY, Charles F. An Autobiography. Old Tappan: Revell, 1966, p. 20-21, apud WILLIAMS, J. Rodman. Teologia Sistemtica: Uma Perspectiva Pentecostal. So Paulo: Editora Vida, 2011, p. 528). 21 WILLIAMS, op. cit., p. 616-617. Afirma-se, porm, que o primeiro registro de uma ocorrncia do dom de lnguas dos tempos modernos data de 1830. Cf. CANTO, Judson. O Avivamento da Rua Azusa [sic] No

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    A segunda reunio mencionada acima ocorreu na rua Bonnie Brae, na residncia de um casal da Igreja Batista. Em pouco tempo a multido era to grande que no se podiam fechar as portas nem as janelas [...]. A reunio estendeu-se por trs dias ininterruptos, e a essa altura j causava alvoroo na cidade.22 Uma vez que a casa no comportava mais pessoas, alugou-se um prdio maior. Sendo assim, alguns consideram como data de incio do reavivamento pentecostal o dia 14 de abril de 1906, e seu local, um prdio que havia sido da Igreja Metodista Episcopal Africana, localizado na rua Azuza. A convico de Frank Bartleman, um dos lderes daquele movimento, era de que eles participavam de uma obra restauradora: [...] demos mais um passo em direo ao caminho para a restaurao da igreja. Ns estamos completando o crculo.23

    Meio sculo depois, mergulhadas no ambiente de contestao de ideias, valores e instituies tradicionais, algumas igrejas histricas abraaram a renovao carismtica.24 A Teologia Pentecostal adquiriu nova roupagem; as atividades do Gospel Mens Fellowship, se espalharam por todo o mundo. No Brasil, o surgimento das primeiras igrejas evanglicas renovadas foi precedido de visitas de pregadores avivalistas:

    George W. Ridout, um metodista norte-americano, em 1930; o escocs J. Edwin Orr, em 1950; Raymond Boatright, um pentecostal norte-americano, em 1952 e o ingls Roy Hession, entre 1958 e 1960. A estas influncias somaram-se os trabalhos de Rosalee Appleby, assim como dos lderes batistas Jos Rego do Nascimento e o prprio Tognini. Estabeleceu-se o movimento de renovao espiritual que dividiu igrejas histricas.25

    As trs tentativas de explicao dos dons espirituais, a partir do sculo 20

    Excetuando a literatura abertamente pentecostal, surgiram livros diversos, tentando explicar os dons espirituais. Tais obras podem ser organizadas em trs grandes blocos.

    Comeou na Rua Azusa [sic]. Disponvel em: . Acesso em: 24 out. 2012. 22 CANTO, op. cit., loc. cit. 23 McCLUNG, L. Grant. (Org.) Azuza Street and Beyond [originalmente intitulado How Pentecost Came to Los Angeles] South Plainfield: Bridge, 1986, p. 74-75, apud WILLIAMS, op. cit., p. 528. Este o primeiro registro encontrado pelo autor da experincia pentecostal especialmente os xtases e o falar em lnguas como uma restaurao. A ideia restauracionista repercute em vrios escritos atuais sobre dons espirituais. 24 Nunca houve um ano como 1962, quando muitas das transformaes gestadas pela juventude nasceram. Algumas s explodiram algum tempo depois; ALTMAN, Fbio. O Nascimento do Ps-Tudo, in Veja, ed. 2291, ano 45, n. 42 (17.10.2012), p. 114-115. De fato, as alteraes culturais refletiram em todas as reas: na msica, no cinema, no sexo e na igreja (op. cit., p. 115). 25 MATTOS, Luiz Roberto Frana. Jonathan Edwards e o Avivamento Brasileiro. So Paulo: Cultura Crist, 2006, p. 20-22. O movimento de renovao espiritual sacudiu as igrejas histricas apregoando: (a) o batismo com o Esprito Santo como um evento distinto da converso e (b) o falar em lnguas como evidncia deste batismo. Cf. NASCIMENTO, Misael; PORTO, Ivonete. O Esprito Santo e o Pacto. So Jos do Rio Preto: Misael Nascimento, 2013, p. 31. (Srie Discipulado Maduro e Reprodutivo).

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    1. Primeiro, alguns estudiosos se esforaram para assegurar uma Teologia do Esprito Santo estritamente arraigada leitura das Escrituras sob a tica dos pais reformados, especialmente Abraham Kuyper, Herman Ridderbos, Sinclair Ferguson e Frederick Dale Bruner.26

    2. Outros eruditos de influncia e carter incontestveis propuseram leituras tambm bblicas, mas conciliatrias, no sentido de fazer concesses a algumas aspiraes do novo evangelicalismo. Dentre estes eu destaco D. M. Lloyd-Jones, John Stott e J. I. Packer.27 Como eu explico na nota de rodap, as obras destes telogos, ainda que boas, louvveis e teis, contriburam para deixar os cristos confusos especialmente acerca dos dons de lnguas e profecia como novas revelaes.

    3. Parte da literatura recente forneceu auxlio para compreenso dos dons e da igreja como corpo sacerdotal, sem firmar posio em pontos controvertidos, ou seja, os autores sugerem como implementar equipes de ministrios e fornecem apoio til para o entendimento de alguns tpicos, mas afastam-se de qualquer discusso esclarecedora das questes que dividem opinio; a gente l tais textos e

    26 FERGUSON, Sinclair B. O Esprito Santo. So Paulo: Editora Os Puritanos, 2000. RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apstolo Paulo: A Obra Definitiva Sobre o Pensamento do Apstolo dos Gentios. So Paulo: Cultura Crist, 2004; KUYPER, Abraham. A Obra do Esprito Santo. So Paulo: Cultura Crist, 2010; BRUNER, Frederick Dale. Teologia do Esprito Santo: A Experincia Pentecostal e o Testemunho Do Novo Testamento. So Paulo: Cultura Crist, 2012. Uma edio da obra de Bruner foi lanada pela Edies Vida Nova em 1983, mas no foi reeditada. 27 LLOYD-JONES, M. Grandes Doutrinas Bblicas: Deus o Esprito Santo. So Paulo: Publicaes Evanglicas Selecionadas, 1998. v. 2. Ainda que ligado tradio reformada no que diz respeito doutrina do Esprito Santo, o Dr. Lloyd-Jones destoa desta ao sustentar a necessidade de uma segunda bno ou batismo com o Esprito Santo (op. cit., p. 301-313). STOTT, John. Batismo e Plenitude do Esprito Santo. 3ed. Reimp. 2011. So Paulo: Vida Nova, 2007. Stott posiciona-se dentro do que eu chamo ortodoxia confortvel, pois no examina em profundidade, luz da Teologia Pactual, Soteriologia e Histria da Revelao, a ligao entre a obra do Esprito e os ofcios da igreja, muito menos os fenmenos das lnguas e novas revelaes ou profetismo no pentecostalismo e nos grupos renovados, que deram luz ao novo apostolado neopentecostal. Em suma, sua obra no fornece subsdios compreenso sistmica destas questes. Prova disso so os milhares de leitores de Stott todos admiradores e concordantes com seu livro que no chegam a um acordo quando discutem, nas fileiras de suas denominaes, o oficialato feminino e a contemporaneidade das lnguas e profecias. PACKER, J. I. Na Dinmica do Esprito: Uma Avaliao das Prticas e Doutrinas. So Paulo: Vida Nova, 1991. O Dr. Packer devoto e cuidadoso em sua avaliao dos dados bblicos. Junto com Stott, compreende melhor do que Lloyd-Jones o ensino da Bblia sobre o batismo com o Esprito Santo. Ele ainda rebate as principais teses do restauracionismo pentecostal, carismtico e, por conseguinte, neopentecostal. No entanto, ele parece compreender que a profecia na poca do Novo Testamento era menos do que infalvel e irreformvel, havendo a possibilidade de precisar ser qualificada ou, de fato, corrigida (op. cit., p. 210). Ademais, ele sustenta que no possvel sabermos o que eram as lnguas mencionadas por Paulo em 1Corntios (op. cit., p. 202-203). O resultado da aplicao de sua obra similar de Stott. Cristos que se dizem herdeiros da tradio bblica e reformada no conseguem entender ou aceitar os dons espirituais dentro da moldura pactual dos telogos da Reforma e, portanto, creem e assumem a prtica de novas revelaes e glossolalia.

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    continua sem saber o que explicar ao membro da igreja quando formos perguntados sobre a proposta restauracionista.28

    Os dons espirituais como parte de um sistema teolgico coerente

    Precisamos entender os dons espirituais como parte de um sistema teolgico coerente. Isso no acontece atualmente porque somente nas ltimas trs dcadas os dons passaram a ser considerados em textos de teologias sistemticas.29 Sendo assim, lidamos com trs dificuldades:

    1. Alguns professores antigos de Teologia Sistemtica adotam somente as obras clssicas produzidas at a primeira metade do sculo 20, privando seus alunos dos novos textos.

    2. Os textos destas teologias sistemticas recentes que mencionam os dons pelo menos nas obras consultadas por este autor no fazem uma ligao clara entre os dons espirituais e os outros tpicos relevantes da Teologia Sistemtica.

    3. Nem todos os professores de Teologia conseguem enxergar estas ligaes. Resultado: os alunos de Teologia, quando estudam os dons em Teologia Sistemtica, enxergam o assunto em um compartimento estanque, desvinculado do sistema ou totalidade harmnica da f.

    Um irmo que conheo ficou paraplgico por dois anos, consultando-se com diversos especialistas, tentando encontrar a razo de sua imobilidade. Ele simplesmente acordou um dia com dificuldades para andar e foi perdendo os movimentos e sensibilidade das pernas aos poucos. Depois de dois anos de exames, descobriram que sua paralisia decorria de um problema gerado por um tratamento dentrio. Uma bactria entrou em seu organismo quando ele obturou um dente; tempos depois a bactria migrou para sua coluna. Voc j tinha ouvido falar de algum que deixou de andar por causa de um problema dentrio? Isso acontece porque somos um organismo o que ocorre em uma parte afeta as outras. Simples assim.

    Pois bem, a maior parte da confuso quanto aos dons reside nesse ponto. Se os analisarmos os textos que tratam dos dons isoladamente, chegaremos a determinadas 28 RICHARDS, Lawrence; MARTIN, Gib. Teologia do Ministrio Pessoal: Os Dons Espirituais na Igreja Local. So Paulo: Vida Nova, 1984; cf. os tpicos pertinentes de HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel G. (Org.). Dicionrio de Paulo e Suas Cartas. So Paulo: Vida Nova; Paulus; Loyola, 2008. 29 Cf. ERICKSON, Millard J. Christian Theology. 2ed. Grand Rapids: Baker Book House Company, 1998; ERICKSON, Millard J. Introduo Teologia Sistemtica. So Paulo: Vida Nova, 1997; GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemtica. So Paulo: Vida Nova, 2000; FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemtica: Uma Anlise Histrica, Bblica e Apologtica Para o Contexto Atual. So Paulo: Vida Nova, 2007; WILLIAMS, op. cit., passim.

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    concluses. Se fizermos isso luz das grandes doutrinas da Trindade (Teologia Prpria), da Salvao (Soteriologia), do Bendito Redentor (Cristologia), da igreja (Eclesiologia) e da Histria da Revelao (Teologia Exegtica), chegaremos s mesmas concluses da igreja antiga e dos pais reformadores (figura 01).

    Figura 01. Os dons espirituais nos contextos das Teologias Sistemtica e Exegtica

    Os reformadores entenderam a pessoa e obra do Esprito Santo luz da economia da Trindade o Deus Trino aplicando a justia pela f e inserindo o eleito na igreja visvel, em um contexto de desfrute de Jesus que o clmax da revelao salvfica, tornando-o um servo e adorador sustentado unicamente pelos meios de graa objetivos a Palavra e os sacramentos.

    A dificuldade em assumirmos um ponto de partida comum sobre os dons espirituais encontra-se exatamente aqui. Eles no so estudados formalmente nos contextos da Teologia Prpria, Soteriologia, Cristologia, Pneumatologia ou Eclesiologia. Tambm no h associao entre eles e a Histria da Revelao (a Teologia Bblica conforme entendida por Geerhardus Vos).30 Da eles serem abordados, em algumas instituies teolgicas, quando muito, no contexto da Teologia Pastoral [ou Prtica], como ferramentas para o servio, ou seja, por um ngulo apenas funcional ou estratgico, uma engrenagem que fazemos rodar para que a igreja se movimente e cresa. Parte da literatura ainda

    30 VOS, Geerhardus. Teologia Bblica: Antigo e Novo Testamentos. So Paulo: Cultura Crist, 2010, p. 14-23. H muitas obras de Teologia Bblica, a maioria delas bastante til. No entanto, somente Vos elabora uma Histria da Revelao com um desdobramento vital para o entendimento do dom de profecia. Antes dele, Warfield fez algo semelhante, abordando a questo dos milagres (cf. WARFIELD, Benjamin B. Counterfeit Miracles. New York: Charles Scribners Sons, 1918. v. 12). Uma resposta restauracionista aos argumentos de Warfield fornecida por DEERE, Jack. Surpreendido Pelo Poder do Esprito. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1995.

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    enfatiza os dons como recurso devocional.31 Essa migrao para o campo nebuloso da espiritualidade32 dificulta ainda mais qualquer formulao teolgica precisa.

    Qual o resultado? Alguns livros atuais tratam dos dons como uma questo adifora.33 Cada um abraa uma ideia e prtica prprias, e no apenas ns podemos, mas devemos caminhar em unidade uns com os outros, mesmo assumindo posies diametralmente opostas. Quando um crente muda de igreja at dentro de sua denominao, recebe ensinamentos contraditrios de diferentes pastores; cada um deles oferece o seu sabor da doutrina dos dons espirituais.

    Isso se torna pior em decorrncia do surgimento de um paradigma de leitura da histria da igreja que enxerga os grupos heterodoxos como minoria crist sufocada pelo imperialismo de uma igreja dogmtica e sedenta de poder. Como resultado, esto sendo reabilitados no apenas Montano, mas tambm Ario, Armnio e outras figuras tidas anteriormente como herticas.34

    31 A obra de Williams um exemplo disso; os argumentos bblicos e teolgicos so entretecidos com relatos de pessoas no apenas crentes evanglicos, mas tambm catlicos romanos batizados com o Esprito Santo! que tiveram experincias pentecostais. O livro de Deere, citado na nota anterior, catalogado como experincia religiosa. Como responder ao argumento irrefutvel da experincia? Os crentes que lidaram com o Montanismo e os pais reformados dos sculos 16 e 17 fizeram isso muito bem; a igreja dos ltimos dois sculos roda em crculos. 32 Em algumas instituies teolgicas a espiritualidade consta na grade de Teologia Pastoral ou Prtica, em uma disciplina intitulada Vocao e Espiritualidade. Ela vista distinta da Teologia Prpria, Soteriologia, Cristologia, Pneumatologia e Eclesiologia (ou seja, da Teologia Sistemtica) e da Teologia Bblica enquanto Histria da Revelao (um campo da Teologia Exegtica). Corre-se o risco de assumir-se o equvoco do cultivo de uma espiritualidade dissociada da s doutrina. 33 O termo adifora significa indiferente; questes adifora so aquelas em que cada cristo pode ter a sua interpretao, sem prejuzo da ortodoxia e, por conseguinte, da comunho. Sobre dogma, doutrina e adifora, cf. OLSON, Roger. Histria da Teologia Crist: 2000 Anos de Tradio e Reformas. So Paulo: Vida, 2001, p. 17-18. Cf. ainda GRUDEM, Wayne. Cessaram os Dons Espirituais? 4 Pontos de Vista. So Paulo: Vida, 2003. (Coleo Debates Teolgicos). Nesta ltima obra o assunto apresentado de modo que o leitor opta pela posio que achar melhor. Na poca da Reforma os debates eram realizados para resolver uma questo, para que a Verdade fosse esclarecida com base nas Escrituras. Atualmente no h autntico debate teolgico, e sim apresentao de verses ou leituras distintas todas vlidas, como dizem que podem ser escolhidas ainda que mutuamente excludentes. Isso assim porque a questo dos dons espirituais situada nas reas da Espiritualidade ou de uma Teologia Prtica que sugere inadvertidamente uma eclesiologia pragmtica. Isso um contrassenso, uma vez que a Eclesiologia sempre deve ser considerada em seu devido lugar, na rea de Sistemtica, e nenhuma cogitao sobre a igreja, sua misso, modo de funcionamento ou proposta ministerial, deve contrariar tal formulao. O fato que sempre h prejuzo quando os dons espirituais so considerados parte das Teologias Sistemtica e Exegtica (a Teologia Bblica enquanto Histria da Revelao). 34 Cf. BURGESS, op. cit., passim.

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    A possibilidade de unidade ortodoxa

    Ns dizemos que o bendito Esprito Santo nos guia a toda a verdade; que ele ilumina as Escrituras e distribui dons relacionados obteno de conhecimento e ao ensino bblico (Jo 16.13-14; 1Co 12.8). Ns assumimos que, como famlia unida em torno de um mesmo fundamento bblico, somos habitao do Esprito e, portanto, possumos a uno (Ef 2.19-22; 1Jo 2.20; Jr 31.33-34). Mesmo assim, estranhamente, ns no chegamos a um entendimento claro e compartilhado dos dons espirituais.

    Isso assim porque ns no assumimos um denominador comum. Cada um parte um pressuposto diferente. Assim como um catlico romano entende os primeiros dois mandamentos do Declogo ou os ensinos de Paulo sobre a salvao e a igreja diferente de um protestante (por causa dos a priori distintos), ns fazemos o mesmo com a doutrina dos dons espirituais.

    Se independentemente da cor denominacional ns somos herdeiros da Reforma Protestante, o ponto a considerar : Qual o pressuposto Protestante? Somente assumindo este denominador comum, chegaremos a uma mesma resposta acerca dos dons espirituais. Ento poderemos falar uma mesma lngua e, de fato, lutar juntos pela f evanglica (Fp 1.272.4). Ou isso ou continuamos nesse dilogo de surdos sempre que fingimos conversar sobre os dons espirituais.

    Os dois pressupostos ou culos de leitura da doutrina dos dons espirituais

    Quanto aos dons espirituais, apesar da cortina de fumaa sobre o assunto, h somente dois pressupostos possveis (tabela 01). O primeiro o ponto de vista restauracionista, influenciado pelo montanismo, semipelagianismo arminiano e evangelicalismo ligado reforma radical, movimento holiness e reavivalismo que ganhou peso e forma a partir do 19 sculo. Esta a posio majoritria e prevalecente, at porque os telogos reformados no se sentem confortveis em confrontar uma proposta de discipulado cristo que destaca o fervor missionrio e a prtica da santidade. A igreja antiga no se sentiu constrangida em rotular o montanismo de hertico, apesar do notrio esforo de seus seguidores para alinhar-se a padres rigorosos de santidade. O montanismo foi julgado objetivamente, com base em uma anlise de sua doutrina.

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    Efetivamente, os fiis da sia haviam-se reunido para isto muitas vezes e em muitos lugares [...], e depois de examinar as recentes doutrinas, declararam-nas profanas e as rechaaram como heresia; desta maneira aqueles foram expulsos da igreja e separados da comunho.35

    O segundo paradigma o dos pais antigos e da igreja da Reforma, que prevaleceu do 2 ao 17 sculos. O modo como estes pais liam os dados da Escritura sobre o Esprito Santo diverge radicalmente da leitura restauracionista. A troca dos culos de leitura doutrinria, que alguns autores enxergam como um desenvolvimento natural e desejvel, de fato uma sada dos trilhos e um erro que precisa ser urgentemente corrigido.

    Dois pressupostos ou paradigmas sobre os dons espirituais A leitura restauracionista A igreja antiga e os pais reformadores

    Tabela 01. Dois pressupostos sobre os dons espirituais

    Eu no estou afirmando que a igreja at o sculo 17 formulou uma doutrina completa dos dons espirituais. Dizer isso seria um anacronismo, uma vez que aqueles cristos no lidaram com as mesmas questes que ns vislumbramos hoje. O que eu digo que eles forneceram uma moldura de interpretao imprescindvel para que ns compreendamos e empreendamos prticas corretas dos dons espirituais na igreja contempornea.

    H uma consistncia notvel entre aqueles primeiros crentes, de considerar a Pneumatologia nos contextos da doutrina da Trindade (Teologia Prpria), Soteriologia e Cristologia (como um desdobramento harmnico da aplicao dos Pactos da Redeno e da Graa), da Histria da Revelao (a considerao de Cristo e do Novo Testamento como clmax de toda revelao necessria para a salvao, santificao e consolao dos crentes) e da Eclesiologia (a igreja compreendida como resultado da obra do Esprito Santo que, pela efetivao dos meios de graa, aplica o evangelho). Isso que Burgess36 considera uma fraqueza exatamente o que permitiu igreja ortodoxa dizer a mesma coisa sobre o Esprito Santo, nos primeiros dezessete sculos de sua histria. A retomada desta moldura antiga vital para que os evanglicos protestantes hodiernos interpretem e compreendam consensualmente os dons espirituais.

    Este artigo uma contribuio a este exerccio milenar de meditao na Bendita Terceira Pessoa da Trindade, e de caminhada segundo a luz da s doutrina que emana da leitura da Palavra de Deus realizada pelos pais antigos e reformados. Os desdobramentos desta introduo sero publicados a seguir.

    35 EUSBIO, op. cit., XVI.9-10, p. 174. Grifos nossos. 36 BURGESS, op. cit., p. 4-5.