Dormindo no asfalto

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Dormindo no asfalto Thiago Penna

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Livro de autoria de Thiago Penna, apresentado como TCC do curso de Comunicação Social - Jornalismo na UFV (2014)

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A meus pais,à minha irmã,

e aos amigos da Turma do Gao

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sumário

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prefácio, 12

paulo duarte

sobre a loucura, 23

esquizofrenia, deus e crack, 31

eu não nasci pra morar na rua, mas eu moro, 43

fábio pereira rocha

o poeta das ruas, 51

os primeiros anos, 55

de ex-viciado a rei do tráfico, 65

uma segunda chance,71

o reencontro, 77

tatiane

sobre o amor nas ruas, 81

na cadeira, 89

fabiano pereira mota

um relato sobre os efeitos do crack, 93

o segundo primogênito e o princípio do fim, 101

o declínio, 107

o fundo do poço, 115

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júlio caburé

a procura da liberdade, 121

pelo mundo, 129

ah, o rio de janeiro, 135

ana lucia

sobrevivente, 149

vivendo no inferno, 157

com o mst, 161

a dura vida na lavoura, 165

uma mulher incapaz de desistir, 169

dos que ajudam, 178

sobre viver em sociedade, 188

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prefácio

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“O repórter luta contra o esquecimento.” Esta fra-se abre um dos livros-reportagens mais importantes escritos no país: Holocausto Brasileiro: Vida, Genocí-dio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil. Nele, a repórter Daniela Arbex dedica-se a contar a história por de trás do hospício Colônia, em Barbacena-MG. Milhares de pessoas foram mandadas a um lugar que mais se assemelhava aos porões de Auschwitz (temido centro de concentração nazista): homossexuais, pros-titutas, viciados em drogas e doentes mentais mistura-vam-se, entregues à sujeira e as mais variadas formas de tortura. “Transmitida” (contra a própria vontade) a liberdade aos carrascos e sob um estado de miséria total, lutavam por uma utopia e, principalmente, pela sobrevivência.

Em muitos pontos as condições de vida em Colô-nia podem ser comparáveis ao cotidiano dos pedintes de Belo Horizonte. A sombra da tortura ainda presente, a violência, a indiferença da maior parte da sociedade, a sujeira... Os sobreviventes das ruas de Belo Horizonte, porém, diferenciam-se dos sobreviventes do holocaus-to brasileiro em um aspecto fundamental: a liberdade. Os internos de Barbacena estavam ali por algum infor-túnio; os mendigos de Belo Horizonte não. A maioria está ali por uma questão de “escolha” - e isso nenhum deles nega.

São escravos do próprio destino e em boa parte dos casos de alguma substância mais forte. No filme One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Um Estranho no Ninho) o protagonista interpretado por Jack Nicholson é um ho-mem em perfeitas condições mentais que, após come-

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ter um crime, é condenado a viver em um hospício. Lá, descobre outros homens que poderiam ter condições de viver em liberdade mas que, no entanto, preferem passar seus dias em um sanatório. São homens que ab-dicam da própria liberdade por se mostrarem incapa-zes de lidar com ela. A relação entre obra e realidade se faz presente nesse ponto: o quão livre para fazer esco-lhas nós realmente somos.

O prefácio de Holocausto Brasileiro nos diz que o repórter é aquele que luta contra o esquecimento. E esse trabalho procurará exatamente isso: resgatar as memórias de moradores de rua e de pessoas em situ-ação de risco, além de mostrar que, encobertos pela paisagem estão homens e mulheres, que não são vilões nem mesmo vítimas. São personagens do cotidiano de uma metrópole urbana qualquer.

Afinal de contas quem são eles?De acordo com o último censo do IBGE (2005), são

dois milhões de pessoas morando nas ruas e em alber-gues pelo país. Este número equivale a cerca de 1% da população total brasileira. Em Belo Horizonte são qua-se duas mil pessoas vivendo ao relento. Destes, 54% sa-íram de casa por conta de problemas com a família e 44% por abuso de drogas lícitas e/ou ilícitas. 87% são homens e quase metade utiliza ou já utilizou algum serviço de auxílio da prefeitura. A cidade conta atual-mente com seis abrigos que oferecem um total de 1.022 vagas para moradores de rua.

Espalhados pelas calçadas estão homens e mulhe-res de idades variadas. O cenário é quase idêntico, não importando a rua ou a cidade. Enquanto pessoas co-

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muns caminham apressadas, eles estão ali, dormindo sob a proteção de marquises e viadutos, deitados em papelão, jornal, ou míseros colchonetes, que mais se assemelham a folhas de papel. Fitar aqueles seres hu-manos relegados ao segundo plano deveria estranhar ou, ao menos, causar algum espanto. Nelson Rodrigues, que certa feita escreveu que o que faltava ao brasileiro era “espanto político”, completou afirmando categori-camente que “por aqui as coisas espantosas deixaram de espantar”.

Nas avenidas mais movimentadas de BH eles se aglomeram em meio ao lixo e ao caos urbano. A roti-na dessas pessoas é diferente do cidadão comum: pela manhã, enquanto o resto da cidade acorda e se prepara para mais um dia, eles buscam um lugar seguro para dormir. A rua é mais segura durante o dia. O sol, o ba-rulho dos carros e a correria desenfreada do cidadão comum garantem segurança àqueles que dependem das ruas pra sobreviver. Durante uma das entrevistas, um mendigo idoso, cujo apelido é Caburé explica “que a rua é muito loca, né, véi!? Se der vacilo, a maré leva”. Nesse ambiente, composto por vadios, policiais corrup-tos, traficantes, “mauricinhos” de classe alta e donas de casa enfurecidas, o erro é quase sempre fatal. Logo, co-nhecer a “malandragem” é fundamental.

As regiões centrais de Belo Horizonte são os re-dutos da maior parte dos moradores de rua. Por mais de uma vez fui repreendido ao falar em “morador de rua”: de acordo com eles, ninguém mora na rua. Morar implica “ter um lugar”, uma casa, “alguma maloca em que se possa voltar em segurança no fim do dia”. Viver

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nas ruas é, meramente, uma questão de sobrevivência. São pessoas de diferentes idades, gêneros, problemas e histórias. Principalmente histórias.

Em conversa com uma conhecida moradora de rua do centro da cidade, esta me avisa que só concede-rá a entrevista caso me disponha a passar alguns dias com ela. Insisto, mas ela se recusa a me contar detalhes de sua vida.

Em rápida pesquisa na internet, descubro que a moradora em questão é conhecida por Dona Lúcia e vive há três anos na esquina da Rua Espírito Santo com a Rua Timbiras, juntamente de mais cinco cães vira-la-tas que a acompanham pelas andanças no centro. Atu-almente, fixou moradia em uma barraca próxima a um curso pré-vestibular. Lúcia tem 55 anos, cabelos bran-cos e tom de voz altivo. No papelão que envolve a barra-ca, notam-se mensagens pedindo para que as pessoas não alimentem os cães e, até mesmo, uma poesia es-crita por ela. Os alunos, os moradores, os comerciantes enfim, quase todos a conhecem e não é raro que algum desses pare para trocar algumas palavras com ela. No ano passado, Dona Lúcia ganhou notoriedade ao cri-ticar as políticas higienistas do prefeito de Belo Hori-zonte, Marcio Lacerda. Em um vídeo, veiculado no site do jornal Estado de Minas, se mostra dura e critica, pe-dindo aos belo-horizontinos que “acordem”. Termina citando o lema da bandeira mineira: libertas quae sera tamem. No papelão é possível notar as comparações entre as políticas praticadas durante o nazismo com as adotadas pela prefeitura da capital mineira.

Dona Lúcia me leva a crer que é possível ir além

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do perfil estereotipado do “mendigo”. Passados alguns dias, comprovo essa tese. Apesar de alguns traços em comum, o perfil do morador de rua é bem mais ecléti-co e complexo do que se imagina. Perambulando pela cidade, dormindo em qualquer lugar e vivendo no li-miar da dignidade, encontram-se poetas, empresários, trabalhadores, prostitutas, mulheres abandonadas pelo cônjuge, doentes mentais e tantos outros tipos.

A confusa relação entre pedintes e os “moradores do asfalto” é uma característica comum entre todos eles. Mesmo os mais “conhecidos” ainda convivem em uma relação pautada por um misto de compaixão e desconfiança, de ambas as partes. Quando há sinto-nia entre moradores do asfalto e de rua a convivência é amistosa; quando, porém, predomina a desconfiança dos dois lados, é comum que ocorram conflitos. Confor-me afirmam alguns moradores de rua entrevistados, os belo-horizontinos são complacentes com os pedintes, principalmente em comparação de outras capitais. Rio de Janeiro e São Paulo são exemplos frequentemente citados por conta da violência e das condições que ofe-recem. A própria geografia urbana da capital mineira, com seus prédios com marquises enormes e seus pas-seios largos, beneficia os desfavorecidos. Além disso, pequenos detalhes como a ducha paga da rodoviária (que a princípio foi elaborada com o intuito de facilitar a vida de imigrantes que teriam que ficar muito tempo aguardando ônibus) é uma grande ajuda para quem so-brevive nas vias de BH.

A rua é um importante elemento das histórias dos indivíduos. Ao mesmo tempo, as histórias dos morado-

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res e ex-moradores de rua ajudam a contar a narrativa de vida de Belo Horizonte. No futuro, se alguém quiser contar como viviam os indigentes de hoje, ele necessa-riamente será direcionado ao tema “drogas”. Da ma-conha (cujo uso é mais comum devido aos seus efeitos mais inofensivos) ao crack (e seu alto poder de vício) todo morador de rua, direta ou indiretamente, já pas-sou por algum tipo de problema com entorpecentes. Tendo um contexto onde existe um grande número de consumidores e favorecidos por uma série de fatores que vão do mau aparelhamento da polícia a um judici-ário incapaz de cumprir o seu papel, os traficantes lu-cram à vontade nas ruas da capital mineira.

O arrebatador poder de vício do crack, em alguns casos, reduz o usuário a praticamente um animal que, no intento de consumir mais droga, pode ser capaz de fazer qualquer coisa. E é justamente aí que mora o pe-rigo: um ser humano capaz de qualquer coisa torna-se um risco tanto para os moradores do asfalto, quanto das ruas.

O Primeiro ContatoMeu primeiro contato com moradores de rua me

remete a infância. Aos 7 ou 8 anos notei, pela primei-ra vez, aqueles seres humanos alheios a paisagem. Foi num desses domingos que, de tão quentes, nos fazem ter a impressão de que o sol está mais perto da Terra do que deveria. Era um dia de um céu aberto, azul, um típico dia de ir ao clube. Mas meus pais preferiram ir à famosa Feira Hippie da Afonso Pena.

Para os que não conhecem, é uma enorme feira re-alizada todo domingo na principal avenida da cidade.

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Lá se vende de tudo: de chapéus para senhoras de gosto duvidoso ao acarajé feito por “baianas”, adornadas com enormes vestidos de renda brancos. Tudo isso ofereci-do aos milhares de moradores e turistas que se dispõe a andar por espaços estreitos, conferir um pouco de tudo e gastar quantias consideráveis em produtos que poderiam ser encontrados em qualquer outro ponto da cidade pelos mesmos preços. Os feirantes começam cedo: armam suas barracas às 4 horas da manhã. Por volta desse horário começam a chegar, também, os pri-meiros clientes - em geral vendedores e viajantes que aproveitam o horário para comprar produtos a serem revendidos em outras cidades.

Meus pais frequentavam a Feira Hippie desde a ju-ventude. Minha mãe via na tal feira uma oportunida-de de fazer compras aliadas ao lazer em família. Meu pai, por sua vez, apreciava as obras de arte exibidas nos cantos da calçada, nas proximidades do Palácio das Ar-tes. Eu e minha irmã sofríamos com o calor forte, com a aglomeração de gente e com o fluxo da multidão. Como forma de distração, eu acabava fixando bem o olhar nas pessoas que andavam pela feira, imaginando que tipo de histórias eles poderiam esconder.

E foi nesse ambiente que me deparei pela primeira vez com um morador de rua. Eram 11 horas da manhã e ele estava deitado em cima de um papelão, quase tão velho quanto aparentava. Tinha uma barba espessa, grudenta e meio acinzentada pela poeira. Era um ho-mem magro que se agarrava a uma coberta repleta de fiapos. Fazia um calor infernal e, mesmo assim, o velho homem estava deitado em pleno asfalto quente, tendo

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somente um papelão entre ele e o chão. Em plena feira. Em pleno centro nevrálgico de Belo Horizonte. Meus pais, ocupados com outras coisas, não chegaram a ver o indivíduo. Aquela cena, porém, nunca mais sairia da minha cabeça. Jamais tornei a ver tal homem. Todavia, por inúmeras vezes, me peguei pensando qual teria sido seu destino e, principalmente, que tipo de história aquele idoso poderia esconder.

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“there are worse things thanbeing alone

but it often takes decadesto realize this

and most oftenwhen you do

it's too lateand there's nothing worse

thantoo late.”

Oh, Yes - Charles Bukowski

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Sobre a loucura

Meu nome é Paulo Duarte. Tenho 33 anos. Com essa mesma idade Cristo já havia: arrebatado multidões, sido traído por

mais de uma vez, beijado os pés de uma prostituta, ex-pulsado os mercadores do Templo, andado sob as águas e, por fim, morrido crucificado. Com 33 anos eu tam-bém vivi muita coisa. Às vezes eu olho para o passado e a impressão que tenho é que minha vida passou num piscar de olhos.

Nasci em 1981. Nesse mesmo ano, o papa João Pau-lo II e o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, foram vítimas de atentados. Nenhum deles morreu e os dois ainda tiveram muito tempo para moldar o mun-do cada qual a sua forma. Foi em 81 também que Bob Marley e Glauber Rocha morreram. Um gênio da músi-ca, outro do cinema. Nessa época, o mundo era dividido em dois. O Brasil era governado por plutocratas auto-ritários e, um ano depois, veríamos Paollo Rossi calar o mais genial dos escretes canarinhos. Tudo era, defi-nitivamente, muito distante do que é hoje. Esse era o mundo quando eu nasci. Do berço ou do colo da minha mãe eu não via muita coisa, nem poderia...

Eu venho de uma família pobre. Miserável não, mas pobre. Durante a infância não passei fome, nem che-guei a viver da caridade alheia, mas tive de ajudar em

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casa. Com sete anos tive que “escolher”: ou trabalhava ou estudava. E como “possibilidade de ganhar mais no futuro” não enche barriga de ninguém, larguei a escola e fui labutar em três turnos. De manhã vendia coxinha em um quiosque perto de casa. A tarde e a noite vigiava carros e engraxava sapatos no centro da cidade. Minha mãe não era uma má pessoa, ela só não tinha alternati-va. Era isso ou nada. Além do mais, ela sempre foi muito pobre; não conhecia muita coisa. Para ela, a vida sem-pre foi muito impositiva. Não havia o meio termo. Um exemplo claro foi quando eu nasci.

Meu pai não assumiu sua responsabilidade e de-sapareceu no mundo quando ficou sabendo que eu ia nascer. Minha mãe podia ter me abandonado, ter tido uma vida mais confortável. Mas preferiu me criar. Nas-ci em Mogi Guaçu, cidade do interior do estado de São Paulo, mas fui criado em Betim, na região metropoli-tana de Belo Horizonte. Mogi Guaçu, em tupi-guarani, significa “grande rio que serpenteia”. Identifico-me. Os acontecimentos recentes me fazem crer que minha vida pode ser resumida como um imenso rio que ser-penteia: ora viaja por águas calmas, ora se debate con-tra o barranco e desce em velocidade descomunal. Eu tinha um irmão mais novo. Apesar das dificuldades, a gente se dava bem. Durante a infância fomos verdadei-ros companheiros. Depois, nos distanciamos um pouco.

Fiquei dois anos trabalhando em período integral. Nesse tempo, minha mãe juntou algum dinheiro e me colocou de volta na escola. Eu estava atrasado, mas me virava. Nessa época ficávamos muito trancados em casa. Era complicado: havia o medo de que não corres-

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pondêssemos ao esforço que a nossa mãe fez pela gen-te. Mesmo assim, com 13 anos, comecei a beber e a fu-mar maconha. Era simples: bastava entrar no colégio, assistir a primeira aula, esperar uns minutos e, junto de uma turma de cinco ou seis meninos e menina, pular o muro. Em um lote vago, nós acendíamos o “baseado” e entre, um gole e outro de cachaça, fumávamos. Aos poucos fui ficando cada vez mais independente. O di-nheiro que eu ganhava dava para ajudar em casa e ain-da sobrava pra usar comigo mesmo.

Em uma dessas saídas conheci a Sara. Estava to-cando um pagode perto de casa. Aproveitei que minha mãe tinha ido dormir e, em silêncio, pulei a janela do meu quarto e depois o muro da nossa casa. A turma toda reunida, todo mundo fumando. Música ao fundo e ela estava ali. Uma morena da minha idade, do mesmo bairro que eu, mas com quem eu nunca havia conver-sado antes. Naqueles dias ela andava bonita demais. Bo-nita de verdade! Mais bonita do que qualquer outra ga-rota da sua idade. Ela era diferente: era uma dessas que com um gesto era capaz de cativar qualquer menino. Eu sentia a necessidade de tê-la. Começou com uma con-versa, mas, em pouco tempo, virou um relacionamento. E, dez anos mais tarde, um filho. Éramos muito ligados. Nosso cotidiano era o mesmo, nossos amigos também. Tínhamos a certeza de que estávamos preparados para qualquer coisa.

Eu tentei me firmar nos estudos, mas com 18 anos larguei. Nunca tive o perfil de estudante comportado, que faz tudo que lhe é pedido. Muito pelo contrário: sou um cara de temperamento tranquilo, mas de espírito

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rebelde. Eu sempre gostei da ação, da prática, de ver tudo se erguendo diante dos meus olhos e não de gente contando o que aconteceu ou deixou de acontecer. Me-nos ainda dessas matérias que quase ninguém usa de-pois que sai da escola. Odiava matemática assim como odiava história. E quando vi que estava ficando pra trás por conta das aulas cabuladas, acabei abandonando de vez.

Assim que larguei a rotina escolar, fui atrás de um emprego melhor. Eu trabalhava meio turno em uma serralheria, mas recebia pouco e não via perspectiva de crescimento. Em pouco tempo, consegui uma vaga de ajudante em uma empresa localizada em Contagem. Era longe, mas me prometeram que eu teria oportu-nidade de mudar de cargo rapidamente e, consequen-temente ganhar mais. Larguei tudo e fui. Eu planejava me casar com a Sara. Tinha certeza de que não iria de-morar. Era só uma questão de tempo pra gente acertar tudo.

Em quatro anos, passei de ajudante a encarregado e meu salário quase dobrou. Trabalhava muito mais que os outros funcionários e, por conta disso, tive uma ascensão meteórica lá dentro. Dava-me bem com todo mundo. E ao ver o fruto do meu trabalho sendo reco-nhecido, passei a labutar ainda mais. Até o momento em que vi que esta era A hora: Era novo, ganhava bem, estava crescendo profissionalmente e estava há oito anos com a mesma mulher.

Num sábado, fomos a um restaurante italiano co-mer pizza. Ao fundo tocava um rock antigo. Do lado de fora as estrelas não eram ofuscadas nem mesmo pelas

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luzes da cidade. Pedi uma garrafa de vinho e, de manei-ra tímida, disse que queria me casar com ela. Por dentro eu “explodia”! Ela riu. Talvez já soubesse (ou ao menos suspeitasse). Ficamos noivos e, pouco tempo depois, nos casamos no civil. Fiz minhas malas, aluguei um apartamento pequeno e fui morar com a Sara. Eu sabia que precisava ganhar mais, sabia tinha potencial pra ir mais longe. Então, assim que oficializei o casamento, eu decidi arriscar. Pedi demissão, saquei algumas econo-mias e abri uma empresa.

Decidi montar meu negócio na área que mais gos-to de trabalhar: serralheria. Peguei um empréstimo, contratei dois funcionários, ergui um galpão e come-cei. No início era duro. Trabalhava mais de dez horas por dia! Mas segui o exemplo daquilo que via em casa e, assim como a minha mãe, eu não podia falhar. Eu nun-ca pude falhar.

No início deu certo. Com um ano comecei a lu-crar bem. Devagar, meu padrão de vida ia aumentando. Pude ajudar mais a minha mãe, trocar de apartamen-to, vislumbrar um futuro diferente. Foi nesse contex-to que nasceu, em 2005, meu primeiro filho: Wendell. Um bebe mirrado, um parto complicado. Minha espo-sa nervosa e eu me agarrando a fé o tempo todo. Mas, graças a Deus, ele veio ao mundo saudável. Já nasceu lutando feito o pai. Deve estar no sangue...

Após o nascimento de Wendell comecei a me preocupar com questões relativas à religião. Antes eu acreditava, mas me faltava fé. Algo que me guiasse no escuro, que me fizesse apaixonado. Eu queria descobrir Deus dentro de mim. E um dia encontrei. Um amigo me

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convidou para conhecer a Igreja Congregação Cristã no Brasil e lá me achei. Ao menos três vezes na semana, minha mulher, meu filho e eu íamos ao culto. Era uma forma de deixar a família ainda mais unida e, ao mes-mo tempo, celebrar a importância de Deus em nossas vidas.

O pequeno Wendell ia crescendo. Eu já tinha um carro e um apartamento no meu nome. Decidi come-çar vários projetos em 2008, sendo o mais importante deles a abertura de uma empresa de confecção, que eu iria gerir junto com a minha mulher. Era a forma de empregar um dinheiro que tínhamos economizado, gerar mais uma forma de renda e ainda reposicionar a Sara no mercado de trabalho. Daria um trabalho enor-me, mas o retorno seria alto. Foi quando descobri que a Sara estava grávida de novo e eu teria que gerir tudo sozinho. A felicidade no início foi imensa. Eu seria pai pela segunda vez e, dessa vez, seria uma menina! Em-polgado com a novidade, comecei a trabalhar cada vez mais e mais. Se antes acordava as seis, saía de casa as oito e só voltava as 18h, agora eu saía de casa as seis e na, melhor das hipóteses, chegava às 20 horas.

Eu tinha duas empresas, um galpão, um aparta-mento, um bom carro, uma esposa, duas crianças e a única forma de dar conta disso tudo era labutando ainda mais. Cada minuto na serralheria era trabalha-do com afinco, um esforço quase sobre-humano. Even-tualmente, quando sentia o peso do cansaço, ia para a Igreja. O contato com Deus me relaxava, me trazia uma paz interna que balanceava a pressão sofrida no dia-a-dia. Ocorreu tudo bem por um ano seis meses.

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Era novembro de 2009 e, definitivamente, eu esta-va muito cansado. Era como se fosse incapaz de domar meu cérebro e pensar sobre algo que fugisse a tríade Deus, trabalho e filhos. Pior: de alguma forma, todos os três, em algum momento, me traziam preocupações. Foi quando surtei. Surtei, enlouqueci. Tive uma crise, um acesso. Parei de pertencer ao mundo dos normais. Pirei, comecei a “jogar pedra em avião”. Use o eufemis-mo que quiser. A verdade é que eu nunca mais fui o mesmo.

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“Quem do mundo a mortal loucura … cura,A vontade de Deus sagrada … agradaFirmar-lhe a vida em atadura … dura.

O voz zelosa, que dobrada … brada,Já sei que a flor da formosura, … usura,

Será no fim dessa jornada … nada”.

Mortal Loucura - Caetano Veloso

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Esquizofrenia, Deus e crack

Sexta-Feira, 19 horas. Eu estava trabalhando desde as seis da manhã. No meio do expe-diente, uma autoridade da Igreja havia me li-

gou pedindo para que levasse dois missionários estran-geiros até a Serra do Cipó. Era importante e exigia certa urgência. Querendo retribuir tudo que Deus tinha me dado, decidir ir. Liguei para Sara e avisei que chegaria mais tarde em casa. Ela compreendeu, mas pediu que eu fosse com calma.

Peguei-os na Igreja e fomos. Um deles era baixi-nho, barbudo e falava o tempo todo, ora em inglês se dirigindo ao outro americano, ora em português, quan-do queria que eu participasse da conversa. Vestia uma roupa sóbria e gesticulava bastante. Se o encontrasse na rua juraria que era um rabino. De qualquer forma, fiz questão de tratá-lo com reverência. Dizia-se que ele era o homem capaz de espalhar a verdadeira doutrina pe-los quatro cantos do país. O outro sujeito era um gordi-nho de bigode que parecia meio desengonçado, talvez até pela timidez. Falava pouco e escutava muito. Tinha uma voz grossa, forte, imponente. Os dois passavam um respeito enorme e era como se fossem mesmo envia-dos de Deus. Em meio à conversa, comecei a pensar se eles eram realmente homens santos.

Um deles me advertiu a prestar mais atenção na

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estrada. Notei que, por pouco, não causei um acidente. Tive medo. Um homem que mata um missionário des-ses muito dificilmente conseguiria escapar da sanha do Diabo. Me pego pensando em como deveria ser o Tinhoso. Provavelmente semelhante a qualquer outro ser humano. De preferência alguém em quem as pes-soas confiassem, como os missionários cristãos. Quase bato o carro de novo. Começo a pensar se eles são mes-mo quem dizem ser. Um dos estrangeiros está assusta-do. O outro me pede para pararmos um pouco. Aceito a sugestão e encosto próximo a um comércio. Noto que o tanque está ficando vazio e fico preocupado. Caminha-mos até um bar. Peço um salgado e vou ao banheiro. Na pia, lavo o rosto e me vejo no espelho: meus olhos cansados, vermelhos. Minha pele está pálida. A blusa social que eu visto está encharcada de suor. Abro-a um pouco. O calor me massacra. Ainda dentro do banheiro, ouço uma voz forte. Mas não há ninguém comigo. Fico com medo e a voz grossa me diz, pausadamente:

De-us não te aban-do-nou. O ser hu-ma-no é com-pli-ca-do mesmo. Siga o seu ca-mi-nho que ele esta com você.

No balcão, como a coxinha e tomo um gole de co-nhaque. O álcool desce rasgando a garganta. Os es-trangeiros também comem. Pela primeira vez em todo trajeto eles estão em silêncio. Falo a eles que me sinto meio mal. Prossigo a viagem? Explico a eles que tenho sentido uma falta de ar em decorrência do estresse. Eles me entendem. Entramos no carro e seguimos via-gem. Ligo o som. Começa uma musica gospel em inglês e os americanos, a essa altura, já estão mais tranquilos.

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Em meio à música, a voz volta a falar comigo, me dizen-do sempre as mesmas coisas. Sinto medo. Falta pouco para chegarmos, só 30 quilômetros. Os últimos 30 qui-lômetros. Subitamente, o carro para. Havia me esque-cido da gasolina! Explico tudo a eles e peço perdão. No acostamento, pedimos carona e logo aparece alguém disposto a ajudar. São dois jovens que pretendem pas-sar o final de semana acampados na Serra do Cipó.

Eles vão e eu fico na estrada. Os dois me prometem que assim que chegarem a um ponto em que haja sinal de celular, ligarão para o guincho e pedirão a alguém da Igreja para me buscar. Percebendo que as vozes não paravam, tentei dialogar com elas. Dizia que me sentia bem e pedia para pararem de me atormentar. Estava tudo escuro, muito escuro e eu noto que minha cabeça dói. Uma dor dilacerante. Tenho a impressão que um coração pulsa dentro da minha cabeça. As vozes me pe-dem para dar tudo e seguir Cristo. Saio caminhando a esmo com o objetivo de me acalmar. Paro na porta de um bar que tem as paredes todas pintadas de azul. In-tuitivamente, me vem o vozeirão do Tim Maia cantan-do “Azul da Cor do Mar”. Logo isso passa e as vozes re-tornam. Com medo de que elas continuassem por mais tempo, distribuo os 300 reais que tenho na carteira en-tre os frequentadores do comércio local. Sem entender nada, eles aceitam de bom grado.

Aquilo não estava dando certo. Procuro, então, algo ou alguém que possa espantar as vozes ou, ao menos, ajudar. É quando um jovem se aproxima de mim e me oferece ajuda. Parece ter pouco mais de 20 anos. Tem os olhos claros, seus cabelos pretos caem partidos no

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rosto tudo com uma estranha simetria. Tento falar, mas me embolo. Meu corpo parece insistir em não obede-cer ao que minha cabeça diz. Enquanto o rapaz tenta me socorrer, as vozes ficam mais fortes. Caio no chão e imploro para que elas se calem. Vejo que se aproxima um ônibus com destino a BH. Sem perceber, eu havia andado até o ponto, sempre na companhia desse jo-vem. Dou a única nota de cinquenta reais que resta na carteira e pago a passagem. Dentro do ônibus as vozes continuam a me atormentar. Choro em silêncio. As fi-guras passando por de trás do vidro do meu assento são assustadoras. Durante a viagem, por duas vezes, regur-gito no banheiro. O veículo parece estar andando em círculos e a cada volta meu estômago fica mais embru-lhado. A essa altura, estou todo sujo. Parte do vômito es-capou e manchou minha camisa.

Na rodoviária consigo pegar um táxi que aceita pa-gamento em cartão de crédito. Dou meu endereço e peço para que ele si dirija até lá. No trajeto, explico com detalhes tudo que aconteceu, falo das vozes, do medo, do cansaço... Já em casa, preparo uma mala, beijo meus filhos e digo a minha esposa que preciso voltar a Serra do Cipó. Ela pede que eu tome um banho e descanse. Diz que todos estavam preocupados comigo, mas igno-ro. Digo que o táxi está me aguardando e que passaria alguns dias com os irmãos. A essa altura, eles são mi-nha única esperança por fim as vozes que insistem em me atormentar. Entro novamente no carro.

No caminho, o taxista (um homem negro, com bi-gode e barba tão brancos quanto a camisa que veste) para em um posto de gasolina. Ele diz que vai ao ba-

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nheiro e me pede para espera-lo dentro do automóvel. Respiro fundo e ligo o rádio. Enquanto o aguardo, um policial me aborda e ordena que eu saia do carro. Saio, digo que não fiz nada, que nunca roubei ninguém e que só pode estar havendo um mal entendido. Ele me diz para ficar tranquilo: quer somente que eu o acompa-nhe até a delegacia. Tento explicar, mas é tudo em vão.

Entro na viatura e rapidamente chegamos a um prédio todo murado, com varias viaturas da Polícia Mi-litar estacionadas na parte da frente. Lá dentro, dois homens bem armados sorriem e jogam conversa fora. Penso em quantas pessoas cada um deles já poder ma-tado. Se eu matasse alguém jamais conseguiria me portar com aquela calma. Na delegacia, ligaram para a minha mulher. Em questão de uma hora, minha sogra chega para me buscar. Com medo do estado em que eu me encontrava, ela me pergunta se eu poderia dormir sozinho em um hotel. Acabei escolhendo um hotel lo-calizado na região sul da cidade. Já era madrugada e, apesar do horário, minha mente permanecia agitada. Sem alternativas, tomo um calmante forte e adormeço.

Acordei no dia seguinte, às 11 horas. Estava exaus-to. Mas ao menos as vozes haviam sumido. Aproveitei para tomar um banho. Meu corpo sujo fedia feito um vira-lata qualquer. O banho me fez bem e eu começava a compreender a situação. Havia surtado momentane-amente. Pelo visto, não fora nada sério. Do hotel peguei um táxi e fui para casa. Lá, as vozes voltaram com uma intensidade muito mais forte que antes. Deitava e co-meçava a ver os rostos. As memórias do dia anterior me sufocavam e eu chorava como poucas vezes na minha

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vida. Ajoelhado, implorava a Deus que fizesse cessar as vozes. Eu estava em posição fetal no meio do quar-to quando a Sara chegou. Com vergonha de tudo que havia acontecido, fugi escondido dela. Na rua, peguei um táxi e fui para São Domingo do Prata, cidadezinha localizada a pouco mais de 150 quilômetros de Belo Ho-rizonte, atrás de antigos companheiros que poderiam ajudar.

Não sei como cheguei lá. Sai de casa no dia 15 de novembro e me dei conta de que havia chegado a São Domingo do Prata somente no dia 18. Há um hiato na minha memória e, dos três dias, a única coisa que eu lembro é que eu andei muito e quase não dormi. Quan-do me dei conta, estava na frente da casa de uma irmã da Igreja. Bati na porta e expliquei que não me sentia bem. Conversamos um pouco enquanto comíamos. Ela me explicou que o marido estava em depressão e que poderia me acolher por uns dias até que eu me recupe-rasse.

A partir daí foi tudo muito rápido. Eu tomei um gole de suco e acordei em um carro, acompanhado de um homem forte vestido de branco, de um motorista e da minha esposa. Meio zonzo, ainda notei que estáva-mos chegando à casa da minha sogra. Quando recobrei a consciência, tive medo de ser internado para sempre em um desses hospícios em que se torturam os inter-nos. Minha sogra explicou que iriamos a um hospital e que lá eles avaliariam a minha situação. Ao ver minha esposa chorando, cedi. Dispus-me a ir sem reclamar.

No hospital Espírita André Luiz, especializado em saúde mental e dependência química, vi um mendigo.

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Um mendigo desses, sujo, cabisbaixo, com uma barba espessa e uma boca que exibia poucos dentes. Olhei para ele e, num lapso, enxerguei meu rosto no lugar do dele. Fiz aquilo que gostaria que fizessem comigo caso eu chegasse àquela situação: beijei-o nas bochechas, dei-lhe um abraço e disse que se não nessa vida, um dia seríamos todos iguais e que as vozes haveriam de nos deixar em paz. Ao ver a cena, minha mulher chegou a desfalecer momentaneamente, enquanto minha sogra chorava aos soluços.

Deram-me duas injeções com soníferos. Acordei dois dias depois, em outro lugar. Era um quarto branco, uma cama confortável e, ao meu lado, uma mulher ma-gra fazia anotações. Tento mexer os braços e noto que estou amarrado. Ela me pede para ficar calmo. Diz que é psicóloga e que eu estou no Galba Veloso1. Pergunto o que eu tenho. Ela balança a cabeça, passa a caneta de uma mão para outra e diz que vai ter que me examinar mais a fundo. Explica-me que tive um surto temporário e que pode ser que o estresse seja a causa. Porém, não sabe o quanto isso pode ter me afetado. Nos próximos dias vou passar por uma série de exames. As vozes vol-tam, ela me dá outro calmante e adormeço novamente.

Nos três dias que se sucedem, passo por uma bate-ria de exames, incluindo consultas com um psicólogo e um psiquiatra. Sou diagnosticado com esquizofrenia e transtorno bipolar. A médica chefe é a mesma psicó-loga que me acolhera no primeiro dia. Em uma longa conversa, ela explica para mim e para Sara todos os de-

1 Hospital psiquiátrico localizado em Belo Hozironte

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talhes. Diz que estou diante de um problema grave, mas que pode ser tratado. Saio de lá com uma enorme recei-ta, livre para poder prosseguir com a vida, mas tendo de seguir uma rotina rígida para por fim as vozes que me atormentavam.

Em casa, sigo o tratamento a risca. Tomava todos os remédios nos horários exigidos. Até a minha alimen-tação estava modificada. Eu tentava começar uma vida nova. Os remédios, porém, me atrapalhavam. O desem-penho na empresa começou a cair drasticamente. Eu não tinha mais a mesma concentração; estava sempre disperso, com sono e cansado. Errava cálculos simples, ficava irritado fácil, discutia com todo mundo e admi-nistrar tudo parecia uma tarefa muito extenuante pra mim.

Consegui manter o ritmo por dois meses. As vozes haviam diminuído, mas ainda persistiam. Para piorar, eu não podia beber nem cerveja nem qualquer outra bebida alcoólica. Na impossibilidade de frequentar oca-siões sociais regadas a álcool, comecei a ficar depressi-vo e me tornei um pessimista convicto. Tudo sempre haveria de dar errado. Minha vida era um caso sem vol-ta. No fundo, tinha medo de jamais voltar a ser o que eu era, de me tornar um inválido, sobrevivendo à base de remédios. Perdi as forças e deixei me abater por um desanimo cada vez mais dilacerante.

Foi quando Sara me apresentou a um tio dela, abs-têmio, que na época estava desempregado. Era exata-mente o tipo de companhia que eu precisava. Con-versávamos por horas a fio. Fazia o tipo meio solitário, cheio de historias, inteligente, espirituoso. Até o dia em

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que ele me perguntou se eu já havia experimentado alguma droga. Respondi que já tinha cheirado cocaína algumas vezes, mas nunca tinha ido além. Ninguém na família desconfiava que ele usasse crack. Explicavam seus insucessos baseados em chavões comuns. Diziam que era um vagabundo irresponsável. E foi justamente por isso que eu mal acreditei quando ele tirou um ca-chimbo do bolso e perguntou se eu me ofenderia caso ele fumasse um pouco, ali na minha frente. Justificou dizendo que aquilo o ajudava a ficar menos estressado. Eu já havia visto antes, mas nunca provado. Pedi um tra-go. Há muito estava precisando de uma tranquilidade dessas! Mandar os remédios às favas ao menos uma vez poderia ser proveitoso.

Daquele dia em diante, abandonei tudo e fiz do crack um hábito. Tornei-me um administrador cada vez menos presente. A mistura entre as drogas lícitas e ilícitas me transformava em uma bomba ambulante. Eu estava me destruindo lentamente, numa espécie de suicídio silencioso. Em uma última tentativa desespe-rada, minha esposa pagou uma viagem para Portugal com o objetivo que eu me consultasse com um espe-cialista em saúde mental. Sem escolhas, arrisquei. Du-rante a baldeação, porém, perdi meus remédios e, logo ao chegar a Lisboa, tive um surto. As vozes vieram cada vez mais altas e eu começava a sentir os princípios da crise de abstinência. Para amenizar, bebia e procurava usar qualquer droga que visse pela frente.

Depois de dois dias nessa situação, tive medo de en-louquecer de vez. Por conta disso, adiantei a passagem volta. No caminho, fui internado na França por conta de

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uma bronquite, mas acabei conseguindo chegar bem em Belo Horizonte. Por aqui, as coisas não mudaram e todos os tratamentos falharam miseravelmente. A luta cotidiana contra as vozes (e agora contra o vício em cra-ck também) foi minando devagar as minhas energias, até o dia em que tive que dormir na rua.

Foi desesperador. Eu menti para minha esposa di-zendo que iria visitar um grande amigo. Este, porém, sa-bia do meu vício e, logo que a Sara ligou, disse que não estava comigo e que o único lugar em que eu poderia ser encontrado seria num morro próximo, comprando pedra. Ao chegar em casa, discutimos feio. Indignada com os acontecimentos e com medo de que as minhas crises piorassem, ela decidiu me abandonou. Sem ter para onde ir, acabei dormindo na rua.

A vida nas ruas é como um filme. Tudo acontece ao mesmo tempo: o efeito das drogas, do álcool e as vo-zes, sempre presentes em minha cabeça, tornam difícil lembrar os detalhes. A impressão que fica é que os últi-mos cinco anos passaram de maneira rápida, mas que cada segundo durou uma eternidade. Uma eternidade da qual sou incapaz de me lembrar da sua maior parte. No asfalto é assim. A gente se lembra da primeira noi-te, do primeiro dia frio, da primeira prisão, da primeira surra, do primeiro dia no albergue e, então, tudo passa a ficar estranhamente corriqueiro.

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Eu não sou da sua rua,Eu não sou o seu vizinho

Eu moro muito longe, sozinho.Estou aqui de passagem.

Eu Não Sou da Sua Rua - Titãs

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Eu não nasci pra morar nas ruas, mas eu moro

Jamais imaginei que um dia eu fosse morar na rua. Até que a Sara me expulsou de casa. Surta-do, fumando crack, sem cartão de banco e com

uma mochila nas costas me restou tentar arrumar um lugar pra ficar. Sabendo que meus amigos me encami-nhariam para uma clínica e sem ânimo para tal desti-no, optei pelo asfalto frio. Desse dia eu me lembro como se fosse hoje: depois de tanto rodar e já sem o efeito da droga, comecei a sentir um forte sono, coisa que eu não tinha já há muito tempo. Havia meses que eu dormia mal. No desespero, acabei me sentando em frente a um comércio, na zona sul de Belo Horizonte. Olhei bem para os lados e quando vi que estava solitário, pus a ca-beça sobre a mochila e adormeci.

No dia seguinte, acordei sob o olhar do comercian-te que tentava abrir o estabelecimento. Apesar de es-tar em seu caminho, ele não chamou a polícia nem me agrediu. Somente pediu para que saísse dali. Coloquei a mochila nas mãos e, como faria tantas outras vezes, vaguei por Belo Horizonte.

Demorou seis meses para que sentisse fome. Por seis meses me virei com trabalhos alternativos. Até que um dia não tive forças sequer para me levantar. Havia passado um número extenso de dias fumando crack. Meu corpo já não reagia aos impulsos nervosos

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e nem a fome me motivava a algo. Por um breve mo-mento senti vontade de morrer e lembrei-me do filme Mar Adentro, em que um marinheiro busca desespe-radamente a morte após ficar tetraplégico. A sensação era que jamais conseguiria me levantar novamente. Eu era um pobre diabo, abandonado até mesmo pelas vozes que haviam me levado até ali. Nem mesmo elas tiveram compaixão por mim. Meu corpo ardia em fe-bre. Eu suava frio e uma solidão imensa invadia o meu peito. Diante de mim, surge Cristo em pessoa pergun-tando a Deus: “Pai, porque me abandonastes?”.

Acordo algum tempo depois sendo tratado por ou-tro morador de rua. Ele ouviu meus berros e me ajudou da forma que pode. Eu nunca me esqueci da compai-xão daquele homem. Talvez, não fosse por ele, hoje eu seria só mais um indigente enterrado pela prefeitura. Alguns dias depois, já estou melhor. Outro episódio que marcou minha vida nesses últimos quatro anos foi à primeira vez em que fui preso. Já morava na rua há um tempo, e a sensação de fissura1 pelo crack era tão incômoda quanto a esquizofrenia. Meu coração batia rápido demais. Eu salivava, meu corpo esquálido tre-mia e eu estava sem dinheiro e sem droga. Foi quando notei um comércio aparentemente tranquilo. Diferen-temente dos outros, nesse não havia seguranças e a proximidade com uma avenida de grande movimento era um atrativo a mais. Um celular de última geração estava lá, logo na vitrine. Era só quebrar o vidro, pegar e

1 Sensação de abstinência provocada pela ausência de dro-gas

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chegar à avenida. Foi exatamente o que eu fiz. Quebrei o vidro, peguei o celular e corri como nun-

ca. Em questão de segundos, já estava na esquina. Mais um pouco e eu me misturaria em meio à multidão. Foi quando uma perna me passou uma rasteira e me jogou no chão. Quando tentei levantar já estava sendo imobili-zado por um policial à paisana. Devo dizer que dei sorte: o policial em questão evitou que uma turba viesse em minha direção e fizesse justiça com as próprias mãos. Vendo que a multidão poderia causar mais tumulto, ele me pôs em na viatura e nos dirigimos à delegacia. Agra-decido por ter sido salvo de um linchamento, prometi que não fugiria nem ofereceria qualquer resistência. Sabia que minha vida estava em risco e que o militar poderia atirar caso eu tentasse fugir.

Para o meu azar, a delegacia estava lotada. Sem ter aonde me prender, me algemaram a uma barra de fer-ro em um quarto localizado nos fundos. O problema foi que a abstinência voltou a fazer efeito e as vozes grita-vam como nunca, a tal ponto de ser incapaz de distin-guir o que vinha de fora da minha cabeça e o que vi-nha de dentro dela. Desesperado, me agarrava à barra e gritava por ajuda. O calor fazia dessa experiência algo ainda mais massacrante. Assustados com o barulho, os PMs me pediam para que parasse. Mas vendo que eu estava completamente longe das faculdades mentais normais, tiveram de acionar um psiquiatra.

O doutor, um senhor de meia idade, óculos de ar-mação grossa, paletó impecável, transmitia calma quando falava. Tinha a típica aparência de um Papai Noel moderno. Desses sujeitos que, quando você olha

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na rua ,tem certeza que é aposentado, tem três netos e um cachorro gordo, de raça. Teve comigo uma conversa breve. Perguntou sobre as vozes, pediu que eu contasse resumidamente a minha história e, por fim, chamou os policiais e explicou-lhes que era melhor que me libe-rassem ou me encaminhassem para algum abrigo.

Na dúvida, me soltaram e deixaram claro que não existiria uma segunda chance. Entendi o recado e voltei para as marquises. Em um papel amassado, deixaram o endereço da “República Reviver”, que abriga morado-res de ruas de Belo Horizonte. Guardei o papel no bol-so durante algum tempo. Tirei-o só quando decidi que não dormiria nas calçadas nunca mais.

Demoraram meses para que eu tirasse do bolso o papel de forma definitiva. E só decidi que tentaria, de fato, mudar a condição em que eu estava após um inci-dente que eu me meti. Foi numa noite em que eu havia saído para conseguir crack. Como dinheiro no bolso estava “contado”, tive de ir a pé. O trajeto era imenso e minhas pernas doíam muito. Meu joelho estava enfai-xado por conta de uma briga em que eu havia me me-tido dias antes, o que tornava meus passos ainda mais lentos.

Na metade do caminho, em uma rua próxima a uma das regiões mais boêmias da cidade, encontrei um rapaz deitado no banco do carona, com a porta da frente encostada. Aproveitei a brecha e entrei no carro. Vi que as chaves estavam no bolso do sujeito e ele estava visi-velmente embriagado. Pelo visto, além de ter bebido, havia fumado muita maconha. O carro exalava o cheiro doce característico e, no banco de trás, havia ainda al-

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guns restos do baseado. Peguei a chave, liguei o carro e fui em direção a um tradicional ponto de drogas. No meio do trajeto, o jovem acordou atordoado e me per-guntou para onde estávamos indo. Menti dizendo que eu era um amigo antigo, que ele havia bebido demais e que o levaria para casa. Quase chegando à boca de fumo, fui surpreendido com um soco que me quebrou os óculos e me feriu na altura dos olhos. Perdido, puxei o freio de mão e o carro deu um rodopio inteiro em tor-no do eixo. O rodopio jogou o jovem pra trás e impediu que ele desferisse mais golpes. Ferido, disse que estava próximo a um dos morros mais perigosos da cidade e que qualquer movimentação suspeita poderia ser mal interpretada pelos traficantes. Apreensivo e bêbado, ele deixou que eu comprasse a droga e prometeu que não tentaria falar com a PM. Com o celular dele em mi-nhas mãos, pedi, antes de descer do carro, que ele me desse algum dinheiro antes de devolver o telefone.

Ele me deu 20 reais e me deixou no centro da ci-dade. Com medo de que ele voltasse, peguei um táxi e me lembrei do papel que o policial havia me dado me-ses atrás. Mostrei ao taxista e pedi que ele me levasse, o mais rápido possível, ao endereço escrito ali. Era ma-drugada e o abrigo já estava fechado. Acabei dormindo encostado ao muro, como outros moradores de rua fa-ziam. Ao lado da “República Reviver” há um posto po-licial. Em frente, um muro separa a calçada onde dor-mem alguns mendigos da linha férrea. Tudo em um bairro tradicional de classe média.

Logo cedo, o barulho do trem me acorda. Sem ter para onde ir, entro no abrigo e conheço as normas do

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local. Em uma conversa com uma das assistentes so-ciais, descubro que existem centros públicos de saúde mental que podem me ajudar. Além disso, há também um projeto dedicado a reabilitação de viciados em dro-gas. Em questão de dias, me inscrevo nos dois. Com o tempo, minha vida foi melhorando e comecei a alternar entre as ruas e as pensões e abrigos menores. Hoje, ain-da durmo na “República Renascer”. Faço tratamento psiquiátrico e psicológico na parte da manhã e contra o vício durante a tarde. Vejo meus filhos com alguma frequência e estou me separando da minha ex-mulher. Minha relação com ela ficou intolerável por conta da pensão e da divisão de bens.

Perdi tudo que tinha por conta de um surto psi-cótico. E, mesmo com todos os diagnósticos, parte da minha família ainda é capaz de me taxar de “drogado vagabundo”. Na rua, conheci todos os tipos de pessoas, com histórias tão diversas quanto a minha. Cada um carrega consigo uma razão diferente, um porquê, um motivo, algo que, mesmo de forma modesta, é capaz de explicar como cada um chegou onde está. As próximas páginas serão exatamente disso: histórias de pessoas que tem como único ponto em comum o fato de mora-rem nas ruas.

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Nesses quatro anos conheci muita gente de bem e muita gente de

má índole. O que eu aprendi é que não se deve nem acreditar nem

desacreditar em todo tipo de gente”.

Paulo Duarte

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O Poeta das ruas

Ele estava de pé, em frente a uma agência ban-cária, na calçada de um bairro nobre de Belo Horizonte. Vestia calça jeans limpa e uma ca-

misa amarela. Uma mochila e meia dúzia de pedaços de papelão recostados atrás dele evidenciavam que ali dormira um morador de rua. Seu porte é altivo, desa-fiando a deficiência na perna. O cabelo castanho claro desgrenhado em frente ao rosto e a barba mal feita fa-ziam com que ele parecesse, muito mais, um estudante “engajado” do que qualquer outro tipo urbano.

Rapidamente descubro estar enganado. Antes mesmo de trocarmos algumas palavras, ela

me encara firmemente. Atabalhoado, vou até ele e per-gunto onde eu poderia encontrar o rapaz que vivia de-baixo daquela marquise. Prontamente ele me respon-de:

- Sou eu o morador de rua que vive aí.Seu nome é Fabio Pereira Rocha, conhecido como

“Fabinho”. Tem 30 anos, dois cursos superiores no cur-rículo e sobrevive nas ruas há 10 anos. A organização de seus pertences me chama atenção. A mochila preta se encontra em bom estado, apesar de meio desgastada pelo tempo. Para minha surpresa, estou diante de um morador de rua incomum, a ponto de se recusar a con-viver com moradores de rua que não sejam tão assea-

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dos quanto ele:- Quem nasceu pra viver no lixo é porco. O ser hu-

mano não nasceu pra viver no meio do lixo. Muitas das pessoas que vivem nas ruas são isso. Tem gente que não consegue manter um senso de higiene, explica com fir-meza.

Pergunto se posso me assentar. Ele assente com a cabeça e noto nos seus olhos o sentimento de “não repara a bagunça. Meus caos é organizado”. Como se adivinhasse meu intento, Fabinho começa a me contar sua história de vida sem que eu lhe perguntasse nada.

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“Pobre mesmo é o diabo que vive debaixo dos nossos pés. A gente era financeiramente

desprovido.”

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Os primeiros anos

Tudo começa em 1981, no interior de Minas Gerais. Em um dos vários rincões do estado, nascia Fabio Pereira Rocha. A mãe e o pai

trabalhavam na roça e ele, desde a mais tenra idade, teve que seguir o mesmo caminho, alternando os estu-dos primários e o trabalho na lavoura. Muito suor para pouco pão.

A pobreza, a fome e a difícil vida no interior minei-ro de trinta anos atrás não aparecem como desculpas para nada, apesar de claramente dificultarem as coi-sas. A mãe trabalhava na lavoura todos os dias sob o sol quente enquanto o pai, um alcoólatra inveterado, consumia todo dinheiro ganho em cachaça e recusa-va-se a assumir seu em casa. Diante disso era comum que, quando na ausência de carne, a família tivesse de apelar para o preá (pequeno roedor que vive em locais onde há capim alto), caçado no mato e ingerido junta-mente com arroz e angu. E, mesmo assim, muitas ve-zes o alimento não era suficiente e desde cedo Fabinho teve de enfrentar o fantasma da fome.

Tal qual a personagem bíblica homônima, Maria seguia imponente e, ignorando as adversidades, conse-guiu o improvável: fazer a vida na capital e dar, ao me-nos, uma formação de base aos quatro filhos. Em Belo Horizonte foram morar em uma favela localizada na

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região da Pampulha. Tudo transcorria na mais abso-luta normalidade até o 22º aniversário de Fabio. Nesse tempo, ele dividia o barracão com a ex-mulher e foi o primeiro dos irmãos a conseguir um diploma univer-sitário. Formou-se em psicologia em uma faculdade particular, graças a uma bolsa integral conseguida pelo bom desempenho no vestibular da instituição. Nos fundos da casa moravam a mãe e os três irmãos. O que ninguém podia esperar é sua vida pudesse mudar tanto do dia pra noite

Era uma sexta feira cinzenta, chuvosa, de clima frio. Na época, já formado em psicologia, Fabinho procurava emprego na área enquanto tirava o próprio sustento tomando conta de uma quadra de tênis, localizada na parte nobre do bairro. Como de costume, acordou, pôs seu tênis branco, vestiu uma calça jeans junto de uma camisa pólo verde com o logo da empresa, mas decidiu tomar um rumo diferente. Ao invés de fazer o trajeto cotidiano em direção à quadra de tênis, optou por visi-tar um amigo e tratar de por em prática os planos que haviam combinado dias antes. O sujeito em questão é Miguel dos Anjos, um conhecido de longa data. O plano era deixar “dos Anjos” tomando conta da quadra en-quanto ele aproveitaria para voltar para casa e passar a manhã com a esposa. Obviamente, o período de tra-balho perdido seria reposto posteriormente. Ambos se conhecem há muito tempo; não teria o quê dar errado. Durante o trajeto, ele reflete em como a folga seria pro-veitosa: fazia muito tempo em que ele não tinha uma manhã livre.

Na parte da tarde, ele voltaria ao serviço e tudo

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estaria de novo em seu devido lugar. Teria dado cer-to se, logo após o horário de almoço, assim que Fábio chegou ao trabalho, um dos usuários da quadra não ti-vesse dado falta da carteira contendo certa quantia em dinheiro. Desse fato em diante, a situação foi se desen-rolando como em um filme: primeiro, a chegada de po-liciais militares munidos de cassetetes; em seguida, a descoberta da carteira (já sem o dinheiro) ocultada jus-tamente no cômodo reservado aos vigilantes.

Restava a Fabinho “explicar o inexplicável”. Como se inocentar sem ter de apontar o ladrão? Como expli-car a presença da carteira ali, sem o dinheiro? Seu úni-co pensamento era a vontade imensa de dar cabo de “dos Anjos”. Antes disso, porém, teria de encarar a polí-cia. O dono da carteira - um estudante de classe média alta que costumava praticar tênis as sextas-feiras pela manhã, estava indignado. Berrava, urrava, exigia justiça e ameaçava processar até mesmo os donos do estabe-lecimento.

O proprietário teve de ser acionado assim que a coisa começou a sair do controle. E, em questão de pou-cos minutos, surgia no local acompanhado de um ad-vogado. O objetivo era aliviar o nome da empresa, não importando o que ele tivesse que fazer. O suspeito era “um moleque novo”, que não tinha sequer seis meses no cargo de vigia. No caminho, se dividiu entre os sen-timentos de piedade e justiça. Se por um lado, Fabinho, jovem com diploma, estivesse desperdiçando seu futu-ro, por outro ele havia roubado alguém e, certamente, deveria estar entre seus semelhantes dentro da cadeia. Demitir, portanto, seria a forma mais simples de evitar

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problemas maiores.Ao adentrar no local do delito, encontrou o “circo

pegando fogo”. O cliente reclamava da lentidão na re-solução do problema, enquanto Fabinho jurava e ten-tava demonstrar que houvera um engano. Em toda a vida, ele jamais havia cometido um crime e agora es-tava prestes a pagar por um delito que não era seu. A polícia garantia alguma ordem, mas esperava o dono do local para tomar maiores providências. De terno e gravata, óculos escuros, cigarro na boca e cara de pou-cos amigos o proprietário consegue, em pouco tempo, cessar a balbúrdia. O cliente teve o dinheiro ressarcido e decide não processar ninguém. A reputação da casa estaria mantida e Fabio, tal qual um João do Santo Cris-to , é condenado a ir “para o inferno pela primeira vez”...

Foram longos quatro meses de reclusão no Cen-tro de Remanejamento de Presos (CERESP). Detido em flagrante por um crime que não cometera Fabinho só conseguiria se livrar da vida atrás das grades quando “dos Anjos”, preso por outro delito e vendo o amigo inocente preso, acabou por confessar o também o rou-bo na quadra, inocentando o ex-parceiro. A essa altura, porém, não havia muita coisa a ser feita (ou desfeita).

De volta as ruas, foi pouco a pouco descobrindo que a realidade que o esperava era ligeiramente diferente da anterior. Sair da cadeia foi doloroso. De bota e mo-chila, desconfiado de tudo e de todos que o cercavam, ele se dirigiu ao antigo lar. Ao chegar, não se surpreen-deu quando foi prontamente expulso por traficantes locais. O motivo: haviam espalhado o boato de que ele era X-9 (na gíria da favela, significa alcaguete). Com a

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permissão dos “donos do morro”, conseguiu, ao menos, reaver seus pertences. Ao conversar com sua mãe des-cobriu que a ex-mulher havia se mudado do barraco

Sem ter onde cair morto, sem poder dormir em casa e correndo riscos, Fábio decidiu vagar pela cidade. Observava as pessoas: todo mundo ia de algum lugar para o outro e ele ali, sem destino ou futuro.

Logo anoiteceu. O céu estrelado aliviava o peso carregado nos últimos quatro meses. 120 dias de infer-no. E hoje ele estava livre, porém sem liberdade. Não podendo mais visitar os amigos que moravam no mor-ro e com pouco dinheiro no bolso, percebeu que não tinha nada nem ninguém. Sentiu na pele, pela primeira vez, uma das mais tristes faces da rua. A notícia certa-mente havia se espalhado e, naquele dia, ele certamen-te era um dos homens mais odiados dos aglomerados belo-horizontinos. Boato viaja rápido e desmentir tudo poderia ser arriscado demais. Portanto, teria de carre-gar consigo a fama de “traíra”.

Perdido pelas calçadas da Avenida Fleming, pro-curou abrigo na bebida. Bebeu observando toda aquela movimentação. Bebeu com gosto cada gota de uma gar-rafa de vodca (mesmo não sendo sua bebida preferida). Sentou-se ao lado de um vira-lata e como num filme, tudo veio à mente: a traição do amigo, a humilhação de ser preso, os momentos na cadeia, o abandono da mu-lher...

Meio cambaleante, subiu na parte de trás de um caminhão abandonado e dormiu abraçado a sua mo-chila, coberto apenas por uma lona preta. Fazia frio e logo no primeiro dia, Fabio Rocha comprovava uma das

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máximas da vida nas ruas: “a primeira noite de frio a gente nunca esquece”.

No dia seguinte, cansado pelos acontecimentos e debilitado pela ressaca, ele tem uma surpresa: por uma ironia do destino, do outro lado da rua estava uma qua-dra de tênis, tal qual a que ele trabalhava antes. Bem organizada, limpa, cheia de gente. A cena não chegava a incomodar, mas ele prefere sair dali. O passado recen-te ainda o atormentava. Para tentar mudar a situação, estabeleceu uma rotina: de dia, procura emprego e de noite procura lugar para dormir. De início, esbarra em um problema que até então nunca tinha enfrentado: as empresas exigem moradia fixa. Além disso, muitas pesquisam os antecedentes criminais. Dessa época, Fa-binho guarda más lembranças. Até hoje:

- Às vezes, a pessoa coloca um ladrão dentro da própria casa porque ele “tá” vestindo um Armani. Dei-xa de por um trabalhador honesto, que precisa de opor-tunidade para crescer na vida, porque está com um tê-nis fedorento, com a calça rasgada e a barba grande..., lamenta-se.

Apesar de inocentado, a acusação de furto pesa e, aos poucos, ele vai notando que não é uma prioridade para o mercado de trabalho. Nesse ínterim, entra de cabeça nas drogas. Havia experimentado somente ma-conha e a cocaína na juventude. Nas ruas descobre o crack.

Pouco a pouco, o álcool e o crack passam a se tor-nar companhias inseparáveis nas ruas. O que até então era passageiro, torna-se permanente. Fabio Pereira Ro-cha deixa de existir e dá lugar a “só mais um morador

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de rua de uma zona nobre de BH”. A essa altura, ele já perambula por vários bairros e mesmo seus familiares mais próximos desconhecem seu paradeiro.

Andando pela Savassi, ele nota um senhor, mais ve-lho, deitado próximo a jovens que jogavam capoeira. O senhor parecia ser um espelho do que a sua vida se tor-naria, caso persistisse no caminho em que se encontra-va. Os jovens, por sua vez, faziam lembrar-se dos raros finais de semana livres na infância quando, ao invés do trabalho, ele se dirigia à praça da cidade e acompanha-va os capoeiristas. O corpo franzino e a força advinda do trabalho braçal fizeram com os primeiros movimentos da luta fossem aprendidos com relativa facilidade.

Passada a lembrança dos tempos bons, decidiu que, fosse como fosse, largaria as drogas e tentaria mu-dar de rumo. Levantou-se, conseguiu algum dinheiro e foi tomar uma ducha na rodoviária. Da região central, pegou um ônibus em direção a BR-116. Lá, de regata, barba feita, chinelo de dedo e óculos escuros, estendeu os braços e de carona em carona, chegou à Bahia. Foi além: ao longo de três anos, viajou por 18 estados, fican-do poucos meses em cada um deles.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro encarou os obs-táculos de duas cidades, divididas entre a truculência da polícia e o alto poder de fogo do trafico. Ele define a capital paulista como “uma cidade devoradora, uma grande Babilônia”. Um morador de rua em São Paulo, logo que chega a cidade é abordado pela ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – grupo de elite da polícia militar paulista) e pelo tráfico. Os policiais oferecem vaga em algum dos inúmeros albergues da cidade e

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deixam claro que não hesitarão em atirar caso o sujeito “procure problemas”. Os traficantes, por sua vez, tam-bém têm suas regras: ajudam a comprar um barracão, conseguem armas, mulheres e, drogas, mas exigem a lealdade, cobrando um preço caro caso não seja cum-prido o prometido. No Rio de Janeiro, a situação é pare-cida:

- No fim das contas, tanto o Rio quanto São Paulo são duas imensas Cracolândias. No Rio de Janeiro, se eu deixar minha mochila aqui, levantar e atravessar a rua, quando eu tiver do outro lado, já tem alguém lá na frente correndo com ela. Em São Paulo, a mesma coisa, explica.

Dormiu em lugares inóspitos. Conheceu pessoas de todos os tipos. Atravessou riscos e sobreviveu nas duas maiores cidades do país. Do primeiro destino pla-nejado, guarda a saudade da capoeira e do povo baia-no. Para ele, a Bahia tinha sido o estado mais acolhedor. Longe do vicio em crack e com saudades da terra natal, Fabinho decide voltar a Belo Horizonte e tentar recons-truir a própria história.

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“E nem é necessário: Vídeo cassete, TV, um som,pra mim é tudo descartável

Basta estalar os dedos vem como um imã, cai do céuChove noite e dia pra mim, só tenho que definir

o valor quanto é em papelEu sou o Deus e os viciados são meus seguidores

Sou o demônio e os nóias são as minhas almasAs vadias fazem fila na minha porta, um de 5,

um de 10, por um foda”

A História de Um Traficante - Facção Central

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De ex-viciado a reido tráfico

À volta a BH trouxe consigo algumas mudan-ças. Se antes ele estava entregue aos vícios, trabalhando em pequenos bicos e sobre-

vivendo na esperança de conseguir algum emprego que lhe oferecesse condições de mudar de vida, agora as coisas estavam diferentes. Havia rodado pelos qua-tro cantos do país e conhecia a malandragem melhor do que nunca. Logo começou a por em prática aquilo que havia “aprendido” nos outros estados. Estudado e bem articulado, não demorou a galgar cargos maiores no trafico de drogas. A lista de contatos de traficantes de outros estados virou uma arma fundamental nessa conquista.

Sair da rua nessas circunstâncias foi relativamen-te fácil. Até mesmo a injusta fama de X-9 foi esquecida. De persona non grata nas comunidades, se transfor-mou num traficante requisitado; e junto da ascensão meteórica veio o dinheiro. Muito dinheiro. Mais di-nheiro do que ele jamais pensara em ganhar. A procura por cocaína e maconha encontrava-se sempre maior que a demanda e, com isso, o preço subia e o lucro atin-gia margens estratosféricas. Carro, dinheiro, mulheres e respeito: quase tudo era conquistado com facilidade. Ostentava pesados cordões de ouro, óculos escuros de grifes, roupa de marca e fuzil a tiracolo. A favela era dele

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e ninguém ousava discordar. O poder iludia e o entor-pecia mais do que qualquer outra coisa. Tal qual uma droga, seu alto poder de vício não permite a satisfação plena. Sempre é necessário vender mais, dominar ou-tros morros, conseguir mais armamentos... Pouco im-portando se o faturamento batesse recordes expressi-vos e se as classes média e alta estivessem consumindo cocaína e maconha como nunca.

Foi em busca dessa sensação de poder que ele re-solveu descer um grau na hierarquia do tráfico e fa-ria, ele mesmo, a compra da droga naquela noite de domingo, trabalho geralmente delegado a traficantes com menos carreira no crime(geralmente maiores de idade e sem ficha criminal). O relógio apontava sete horas e ele estava em casa, bebendo. Não tinha ânimo para sair e se nada tivesse acontecido talvez ele tivesse permanecido em casa. Mas o “se” não existe. Sempre há algo para acontecer quando se lida com cocaína. O telefone toca. Do outro lado da linha, um “soldado do tráfico” diz que o motorista que iria buscar um carrega-mento de dez quilos de cocaína de boa qualidade tinha sofrido um acidente e, portanto, não poderia dirigir. A quantidade era irrisória, mas a qualidade do produto interessava e a boa relação com o intermediário inte-ressavam. O traficante que repassava o produto era um parceiro antigo da “boca” e o acordo pela mercadoria já estava selado havia mais de um mês. Vem à mente o desespero. Os demais “soldados” que poderiam fazer o serviço ou eram menores de idade ou tinham exten-sa ficha criminal. Arriscar perder alguém de graça não estava nos seus planos. Fabinho percebeu que teria de

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utilizar de um trunfo que há tempos estava guardando. Mesmo sendo um dos principais nomes do tráfico em Minas Gerais, nenhum órgão oficial tinha seu. Era um ilustre desconhecido que, favorecido por uma série de circunstâncias, havia chegado até ali.

Após meia dúzia de telefonemas, Fabinho reúne o “bonde” (gíria para grupo, quadrilha, turma...). Jun-to dele vão dois seguranças armados e um menor, que acompanha tudo e poderá ser útil como “laranja” (as-sumir crimes que não cometeu). O importante nesses casos é errar o mínimo possível. Qualquer deslize pode significar alguns anos na Nelson Hungria ou no CE-RESP da Gameleira (duas cadeias localizadas na região metropolitana de Belo Horizonte).

Em alta velocidade, eles se dirigem ao local com-binado. Já é madrugada e a cidade está em silêncio. Dentro do veículo, o clima é um misto de apreensão e ansiedade. Os dois elementos menos experientes estão no banco de trás e engatilham as armas freneticamen-te. No lugar combinado - um galpão no meio do mato, tudo ocorre como o previsto. Metódico, Fabio descon-fia da aparente normalidade da situação. Ele repassa o dinheiro ao caminhoneiro, estica uma carreira e dá um “teco”. Com a droga a percorrer seu sangue, ele se agita novamente. Reúne-se com os três e manda chamar o que estava como vigia: é hora de “meter o pé na estra-da” e subir o morro o quanto antes. Antes de partirem, cada um estica mais uma carreira. Para comemorar, um deles abre uma garrafa de conhaque. Bebem um gole e Fabio acelera o carro.

Na estrada, um caminhão faz manobras arriscadas.

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Com as pupilas dilatadas e se agarrando ao volante, Fa-bio ultrapassa o caminhoneiro. Não é hora de perder tempo e nem se expor demais. O velocímetro marca 150 km/h, mas nenhum deles parecem se importar. Fa-binho aproveita para dar mais um gole no conhaque. Na entrada para Belo Horizonte, tudo acontece de for-ma instantânea: o carro não responde aos comandos e os pneus derrapam soltando fumaça. A última tentati-va de virar o volante faz com que o carro seja arremes-sado contra um pequeno barranco, depois de capotar quatro ou cinco vezes. Após a batida, o veículo torna-se um monte de ferro velho retorcido. Três saem vivos, li-geiramente machucados, mas sem nada de mais grave. Eles pegam a cocaína e, imediatamente, ligam para o gerente da “boca”. Ao explicarem o ocorrido, a ordem é dada: um taxista conhecido na comunidade buscará os três e a droga. Aparentemente, Fabinho está morto. O mais jovem deles reza agarrado a um terço enquanto os outros agradecem a ajuda divina. Do orelhão, um deles liga para o serviço de emergência.

A ambulância chega fazendo o barulho habitual. Os médicos imobilizaram Fabinho desfalecido. Ele é le-vado às pressas ao hospital mais próximo.

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“I felt the powerOf death over life

I orphaned his childrenI widowed his wife

I begged their forgivenessI wish I was dead”

I Hung My Head - Johnny Cash

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Uma segunda chance

Um ditado popular do submundo do crime diz que só existem duas saídas nesse estilo vida: a cadeia ou o caixão. Não seria exagero

dizer que, o tempo todo, Fabio sempre esteve mais pró-ximo do segundo. A morte pode ser uma ideia aterrori-zante para quem não está acostumado a lidar com ela; Pergunte a um oncologista e ele falará sobre o quanto ela é um processo natural; Pergunte a um filósofo e ele tratará da beleza por trás do fim; Pergunte a um policial militar ou a um traficante e a única coisa que eles lhe dirão é que ela é inevitável.

Quatro meses se passaram e Fabio Pereira Rocha, enfim, acordou do coma. Quatro meses na cadeia servi-ram para transformar um trabalhador em morador de rua. Quatro meses em coma serviram para constatar que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”. Tão logo acordou e as notícias ruins começaram: a perna esquerda estava destroçada. 14 parafusos foram neces-sários para evitar a amputação.

Fora do hospital, a primeira providência verificar o que tinha lhe restado da antiga vida. Durante o trajeto, se punha a analisar o quanto daquilo valia a pena. Pen-sava na vida, na morte, no tempo em que não via a mãe, no acidente, nos antigos parceiros... Tudo vinha à men-te de uma só vez. Encontrava-se tão perdido quanto no

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primeiro dia em que dormiu nas ruas e mais solitário do que nunca. Diante de tantos infortúnios, apelou para Deus. Rezou e se agarrou a Bíblia como nunca fizera an-tes na vida. Pediu, em silêncio, um sinal e lembrou-se da passagem em que Cristo encontra com o centurião:

Senhor, o meu servo jaz em casa paralítico e sofre horrivelmente. Disse-lhe Jesus: Eu irei curá-lo. Mas o centurião respondeu-Lhe: Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa; mas diz uma só palavra e o meu servo ficará curado. (Mt 8,5-17)

Sentiu escorrer uma lágrima. Chegando aos pés morro, deparou-se com uma cena que até hoje per-manece guardada na retina: próximo a um comércio, um corpo caído sob uma escada. Próximo a cabeça do homem, um menino chorava, se desesperava. Pode ver que os olhos do menino estavam inchados de tanto chorar. A camisa amassada continha o sangue paterno. O pai dizia ali suas ultimas palavras, pronunciava seu próprio epitáfio, consciente disso. Respirava com difi-culdade. Enquanto se despedia, o moribundo implora-va pelo perdão do filho. O sol batia em ambos e ilumina-va, para quem quisesse ver, aquele espetáculo grotesco. Fabio estava paralisado. Era incapaz de dizer qualquer coisa. Aproximou-se da dupla e viu, quando a despeito de todos os esforços do filho, o pai finalmente partiu. Ao redor, comentava-se que o desfecho todo ocorrera por conta de uma dívida de crack. de 80 reais. Oitenta reais

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capazes de deixar uma criança órfã. Pior: o assassino era, quando muito, três ou quatro anos mais velho que o filho da vítima e, aquilo, havia sido a forma com que o dono do morro testara a fidelidade de seu comandado. Um garoto de 13 anos havia matado um homem de 40 e deixado órfão um menino de 10. Tudo isso por conta de uma dívida de drogas. Havia alguma coisa muito errada naquilo. Fabio pegou a mochila e se dirigiu ao centro.

De volta as ruas, Fabinho retornou ao consumo de drogas. Dessa vez, porém com um agravante: o fígado começava a dar sinais de fraqueza e a perna acidenta-da atrofiava lentamente. Fixou moradia em um bairro da região nobre de Belo Horizonte, passando a viver de pequenos bicos e doações. Pouco a pouco, fez amizades e tornou-se figura conhecida no bairro. A obsessão por limpeza e a organização ajudaram a tornar a relação com os moradores mais amistosa.

A vida parecia seguir por um caminho tranquilo até que, mais uma vez, tudo virou de cabeça para baixo. Fabio estava deitado na Avenida Getúlio Vargas quando dois policiais militares o acusaram de roubar um carro e um celular nas imediações do bairro.

A lembrança da cadeia, da injustiça e da inseguran-ça vieram a tona. Um ano atrás, ele era um dos maiores traficantes de Belo Horizonte. Há oito meses ele es-tava em um leito de hospital e com sérias chances de não sobreviver. Há poucas semanas ele estava na rua de novo. Na delegacia suportou toda pressão e se recu-sou assumir a culpa pelos dois crimes não cometidos. Os policiais insistiam na tese de que ele era o culpado mas, vendo que não conseguiam arrancar a confissão,

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permitiram que Fabio conversasse com um defensor público.

A conversa fez com que ele visse que só consegui-ria sair da cadeia sozinho. O advogado de defesa era jo-vem, inseguro e praticamente implorou para que Fabio se declarasse culpado em troca de uma pena menor. Teimoso desde criança, ele decidiu enfrentar a Justiça. O advogado serviria para “segurar” a situação enquan-to ele faria um curso de Direito por correspondência.

A experiência na cadeia fora um pedaço do infer-no. Um lugar onde reina a lei do mais forte. Zelar pela própria vida e dignidade sempre exige um esforço a mais. Astúcia é fundamental para sobreviver nesse am-biente. Os moradores da ala conhecida como “seguro” são detentos que transgrediram uma ou mais regras da cadeia. Quando irrompe uma rebelião, eles são os primeiros a sofrer as consequências. Fabio conta que certa vez alguns detentos fugiram por um buraco aper-tado nos fundos da cela. Era o mês de maio, num frio dia de garoa que recobria toda a cidade. Possessos pe-los fugitivos, os guardas logo trataram de tirar todos os presos da cadeia e, nus, tiveram de esperar até que os condenados fossem recapturados.

A segunda vez na prisão durou 16 meses. Foi o tem-po necessário para comprovar a impossibilidade de se roubar um carro e um celular num curto intervalo de tempo em dois lugares distintos. Pior: o primeiro cri-me havia sido o roubo do celular. Com os problemas na perna, seria impossível que Fabio tivesse cruzado a Sa-vassi e ainda roubado um carro em míseros dez minu-tos. O juiz o absolveu.

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“Deixamos escapar por entre nossos dedosA chance de manter unidas as nossas vidas

Amanhã ou depois, tanto faz se depoisFor nunca mais... nunca mais”

Amanhã ou Depois – Nenhum de Nós

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O reencontro

Um dia antes de sair da cadeia, uma nova sur-presa: era dia de visita e Fabio se preparava para a liberdade quando um senhor debili-

tado adentra a cadeia e vai até ele. Tinha o rosto mar-cado pelo tempo e andava com dificuldade. Vestia uma camisa social amarrotada, uma calça cáqui e sandálias do tipo alpargatas. Quando o homem chega mais perto, Fabio o reconhece. Como se tivesse sido atingido por um tiro, o corpo balança e a emoção chega aos olhos. Ali, bem na sua frente estava o homem que havia lhe criado. O homem que ele nunca havia acostumado cha-mar de pai.

Mais próximos, os dois se abraçam. Tirando forças do fundo do peito, o homem lhe pede perdão por tudo e explica que está debilitado pelo álcool. Afirma saber que não viverá por muito mais tempo, mas se sente re-novado por ver o filho deixar a cadeia. Ambos choram enquanto se perdoam. A cena é comovente. Os outros detentos observam a cena.

No dia seguinte é expedido o alvará de soltura. Mi-nutos antes de deixar o presídio, Fabio descobre que o pai havia falecido. Sai do CERESP diretamente para o cemitério. Era hora de velar e a carregar o corpo do pai.

O poeta Atualmente, Fabio dedica-se a poesia grafitada nos

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muros da cidade. Durante a conversa conta que costu-ma se usar como exemplo para crianças. Sempre vê um pai acompanhado por um filho, ele se dirige a criança e pede para que ela não use drogas e acabe tendo mesmo destino que ele. É um espetáculo a parte assistir aquilo tudo, além de ser emocionante a forma com que os pais o agradecem depois. Fabinho ainda encontra-se preso ao vício, embora tenha reduzido significativamente o consumo de drogas.

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“Minha vida é um livro aberto. Não pedi hora nenhuma para estar nessa na rua. Não

me aceito como morador de rua. Procuro estar batalhando ao máximo. Procuro

fazer esse trabalho que eu estou fazendo escrevendo pelas paredes pelo Brasil inteiro. Com a caneta que é uma grande arma, uma

arma que pode ajudar a mudar o mundo. Pretendo muito que meus netos um dia

vejam lá, ó aquele ali é meu avo. Tá vendo aquelas escritas ali? Foram escritas pelo

meu avo na pior fase da vida dele, quando ele morou na rua. Eu tenho orgulho de

dizer que meu avo escreveu aquilo ali. Cê conhece o Fabinho um cara que foi ‘assim e assado’ e até hoje é lembrado porque é

um cara que superou a rua. Ele venceu as drogas e ele venceu as ruas.”

Fabio Pereira Rocha

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“Morrer de amor, morrer por amor, era a sua clara predestinação. Estamos tão esquecidos de sofrer que a sua dor nos parecia, e cada vez mais, uma doença

psicológica, quase a loucura. E ninguém entendia que a grande dor deve ser

preservada (a dor que passa abre, na vida interior, imensas elívidas sibérias).”

Amor para Além da Vida e da Morte - Nelson Rodrigues

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Sobre o amor nas ruas

Foi há um ano que tudo aconteceu. Ela traba-lhava como atendente de telemarketing em uma empresa, no centro de Belo Horizonte.

Vivia com os pais. Nunca foi rica, contudo, jamais pas-sou por qualquer tipo de necessidade. Ele, morador de rua, desempregado há vários meses, sustentava-se através do tráfico de pequenas quantidades de maco-nha e cocaína. Estava longe de ser um “barão da droga”, mas conseguia se virar com o que vendia para os outros mendigos da cidade.

Era sexta-feira, às 18 horas. Ela saía do trabalho quando passou pela Praça da Estação. Ele andava pelo centro da cidade quando viu um grande fluxo de pesso-as se dirigirem para as imediações do metrô.

A Praça Rui Barbosa está localizada bem em frente ao prédio da antiga Estação da Estrada de Ferro Cen-tral do Brasil (atual Museu de Artes e Ofícios - MAO) e da Estação Central do Metrô de BH. Erguido em 1922, o imóvel quase centenário do Museu chama atenção pelo seu esplendor. É um dos pontos turísticos mais be-los da cidade. No centro da praça há o “Monumento à Terra Mineira”, escultura feita em bronze, homenage-ando os Inconfidentes, representada por um homem nu erguendo uma bandeira aos céus. Ao lado, duas fon-tes de água brotam do piso de forma intercalada.

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No dia em questão, uma escola de samba movi-mentava a praça. E mesmo em meio à multidão que se divertia com o samba e as águas da fonte, os olhos dela cruzaram com os dele. Era improvável que os dois se cruzassem por ali. Improvável porque ela deveria ter seguido direto para casa, como fazia sempre. Ele, por sua vez, não era afeito a multidões, mas, naquele dia, decidiu ficar um pouco mais por ali. E apesar dos “poréns”, os enormes olhos castanhos dela cruzaram com os negros olhos dele.

Mas, “comecemos tudo do início”. Desde bem an-tes de ela decidir desviar sua rota e cruzar os olhos com um certo morador de rua.

Tatiane nasceu e cresceu em um bairro de classe média baixa. Mesmo assim, nunca precisou trabalhar. Os pais, esperançosos de que ela e os três irmãos vies-sem a ascender socialmente, preferiam incentivar os estudos, no afã de que com um diploma nas mãos, os caminhos se abrissem mais facilmente.

O primeiro envolvimento com as drogas foi logo cedo. Aos 11 anos experimentou maconha pela primei-ra vez. Foi num dia ensolarado quando, junto a outras crianças mais velhas, ela fugiu do colégio. Em um lote, distante menos de um quarteirão da escola, um gru-po de sete jovens fumava tranquilamente a Cannabis sativa. Jenifer e outros três alunos que matavam aula, juntaram se a eles conforme combinado no dia an-terior. Em uma roda, o “baseado” passava de mão em mão, enquanto uns tossiam e outros começavam a ficar “chapados”. Ao chegar às mãos pequenas da garota, ela

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repetiu o ritual que todos faziam: primeiro, lentamente pôs o cigarro entre os dedos e o levou a boca. Depois, puxou um poucos da fumaça. Com o fumo na boca, ela passa o cigarro a outro usuário e logo a começa a sentir o pulmão queimando, enquanto a garganta seca e irri-tada pela substância tóxica, faz com que ela comece a tossir desesperadamente. O cérebro, inebriado com a explosão sensorial, logo envia sinais de que o corpo co-meçara a ficar entorpecido. O cigarro volta a passar por Tatiane e, dessa vez, ela já não tosse mais.

Desse dia em diante ela nunca mais voltou à esco-la. Todos os dias seguia o mesmo roteiro: da escola para o lote, do lote para casa. Não demorou mais do que al-guns meses para se aventurar com cocaína. Aconteceu numa festa do bairro. Era noite e o mesmo grupo da es-cola se reuniu. A novidade da vez era um pó branco que o mais velho deles havia experimentado. Todos sabiam o que era, mas nenhum havia provado da tal droga. So-bre um caderno, eles estendiam os filetes e, com uma nota de dez reais enrolada em formato cilíndrico, as-piravam até que as narinas se contorcessem de ardor. Logo em seguida vinha a sensação de euforia. Todos fa-lavam ao mesmo tempo, riam uns dos outros e começa-vam a planejar como e onde conseguiriam mais “coca”.

Os pais logo notaram que a filha não levava jeito para a vida acadêmica e começaram a persuadi-la a tentar conseguir um emprego. Apesar das inúmeras tentativas, Tatiane não conseguiu se estabelecer em ne-nhum serviço. Foi de auxiliar de escritório a atendente de telemarketing, em nenhum obtendo regularidade. O comportamento relapso, as faltas sem justificativa e

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o rendimento abaixo do esperado foram, pouco a pou-co, “queimando” seu nome dela no mercado de traba-lho. Dos inúmero cursos gratuitos oferecidos pela cida-de, interessou-se por um. Concluiu com louvor, tendo ido a todas as aulas e se dedicado com afinco ao tema. Todavia, tão logo terminou o curso, Tatiane voltou à an-tiga rotina. Aos 19 anos experimentou o crack junto do namorado com quem vivia. Um ano depois, já solteira e tentando se firmar no emprego de telemarketing, ela decidiu por atrasar um pouco o retorno a sua casa.

O samba mal tinha acabado e os dois já estavam conversando e trocando carícias. Em pouco mais de uma hora, haviam se transformado em um dos mui-tos casais formados na praça. Demorou somente uma semana para que ela decidisse morar com ele. Mentiu para a família dizendo que iria morar em uma peque-na cidade do interior. Juntou suas coisas em uma mo-chila pequena e foi para debaixo do viaduto Sarah Ku-bitschek (popularmente conhecido como viaduto B), sem ter nenhuma noção de como seria a vida dali em diante. Estava segura, porém, de que “tudo daria certo”. Tinha de dar certo: finalmente havia encontrado um homem capaz de corresponder a todos os seus anseios, mas que, por uma infelicidade do destino, era morador de rua.

Ele era um homem de 25 anos, sendo 17 destes na rua. Dormiu pela primeira vez debaixo de um viaduto, logo aos sete anos de idade. Criado somente pelo pai, perdeu tudo quando este faleceu e, sem rumo, teve que sobreviver na rua. Nesse tempo, aprendeu a viver sob a

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lei do mais forte. E a experiência fez com que ele sou-besse os segredos das ruas como poucos.

A vida debaixo do viaduto era conturbada. A inse-gurança, a fome e o frio assustavam muito. Definitiva-mente, não era fácil sobreviver naquelas condições. Durante o período em que morou nas ruas, Tatiane usou muitas drogas. O crack e a cocaína aliviavam a fome, além de trazer um imenso prazer físico.

Nas ruas, ela descobriu uma nova faceta dele. O homem carinhoso, capaz de tecer as mais melosas ju-ras de amor deu lugar a um sujeito truculento, irritado com qualquer coisa, em constante crise de abstinência e capaz de espancá-la na primeira discussão. A primeira surra foi inesperada: em meio a uma conversa banal, ir-ritado com a forma como ela falava, de súbito, desferiu um forte soco forte em sua face. Sem saber como rea-gir, ela apenas se afastou, com lágrimas no rosto. Após ver o olho inchado e todo o estrago que havia causado, ele levou-a até a casa de uma prima. Curados os feri-mentos, ambos voltaram às ruas. Desse dia em diante, os episódios violentos tornaram-se frequentes. E, mes-mo assim, ela insistia, acreditava, mentia para os pais...

- Então eu apanhava, dormia junto com ele e no ou-tro dia estava beleza.

Foi graças dele que Tatiane começou a traficar. Percebendo que a vida nas ruas não lhes ofereceria os luxos almejados, começou a “repassar” cocaína. Era um dinheiro fácil e propiciava um conforto inacessível a maior parte dos mendigos da cidade. Foi depois de conhecer o submundo do crime que ela recebeu uma proposta audaciosa: tentar entrar na cadeia com uma

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grande quantidade de maconha escondida nos órgãos genitais. O risco era enorme, mas o pagamento com-pensaria todos os problemas. Cada ida à penitenciária renderia um dinheiro capaz de sustentar, com folga, to-dos os gastos mensais com as drogas.

Nas duas primeiras vezes, tudo ocorreu como o es-perado. O segredo era entrar tranquila e não demons-trar nervosismo. Na terceira vez, porém, um infortúnio: uma das funcionárias do sistema penitenciário havia sido recém-substituída e, no lugar dela, assumiu uma senhora experiente, capaz de identificar facilmente uma farsa como aquela. Tatiane acabou sendo presa.

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“Liberta Coração! Liberta CoraçãoA vida na cadeia amigo não é mole não

A vida na cadeia não dá nem pra imaginarAcredite meu amigo só vendo para falar

Na mão do delegado ele tem que responder”

Vida na Cadeia – Mr. Catra

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Na cadeia

Tatiane passou 26 dias na cadeia. Tomou 26 surras. Apanhou de inúmeras mulheres, pe-los mais diversos motivos. A sua presença

ali incomodava as demais detentas, principalmente por não fazer parte da mesma realidade social delas. Para as internas, Tatiane era somente uma “burguesinha” que se aventurou no mundo do crime.

Dentro da cadeia não há segredos: as detentas sa-biam que ela havia conseguido bastante dinheiro nas duas primeiras travessias. A extorsão facilitada pela omissão das carcereiras era uma prática comum. As agentes se sentiam enganadas por ela. As presas ti-nham inveja. Quando não apanhava de um grupo, apa-nhava do outro:

-Eu fiquei presa por 26 dias. Foram os piores dias da minha vida.

Somente conseguiria sair daquela vida quando a mãe e o pai descobriram a farsa e com um enorme esforço, pagaram a fiança. Passou pelos portões da ca-deia prometendo a si mesma nunca mais voltar para as ruas. Uma semana, porém, lá estava de novo. Vivendo com o mesmo homem a mesma vida de antes. Logo na primeira semana de liberdade, presenciou um homem esfaqueando a ex-mulher. Permaneceu em silêncio, as-sistindo aterrorizada a cena acontecer diante dos seus

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olhos. Terminado o ato, o homem pergunta ameaçado-ramente se alguém havia visto alguma coisa. Tatiane e o companheiro mentiram dizendo que estavam dor-mindo e que, por isso, não haviam presenciado o crime. O homem foge, satisfeito.

Na segunda vez, porém, a vida com ele durou me-nos tempo. Na primeira agressão, ela se arrependeu e pediu perdão aos pais, voltando para casa. Sentia-se mal e estava disposta a mudar completamente o pró-prio destino. Sua motivação, porém, durou pouco - duas semanas para ser exato. Sentiu falta de algo e, depois de um filete de cocaína, voltou a morar na rua. Debaixo do mesmo viaduto em que vivia antes.

Uma nova história“Quando eu morava na rua o meu medo era com a

minha família. Minha mãe é hipertensa meu pai tam-bém tem problema de saúde”

Tatiane passou mais três meses vivendo nas ruas. Nesse tempo, apanhou poucas vezes e optou por ficar mais afastada dos outros moradores de rua da região. O companheiro andava distante e já não era segredo para ninguém que ele andava dormindo com outras mu-lheres. O estopim para o fim do relacionamento foi a prisão dele. Tatiane, então, voltou para casa e mais uma vez pediu perdão aos pais.

Recentemente, ele foi posto em liberdade. Ela, por sua vez, permanece morando com os pais, mas namora outro morador de rua. Ela me jura que o atual cônju-ge não é usuário de drogas e me explica que “a história dele é difícil”. Promete a si mesma que nunca mais mo-rará na rua e se mostra arrependida pelo tempo per-

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dido. Dos quatro irmãos, somente ela não terminou os estudos e só ela permanece desempregada. Em diver-sas visitas a um albergue de Belo Horizonte, ela revê os velhos amigos e aproveita para visitar o namorado. O sonho de ambos é conseguirem um emprego e paga-rem uma casa (de preferência bem longe das drogas, do viaduto e do passado). Tatiane é uma jovem de 21 anos com a missão refazer o próprio destino. Segundo ela, dessa vez será para valer.

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“O que que você quer ser quando você crescer?Alguma coisa importanteUm cara muito brilhante

Quando você crescer”

Quando Você Crescer - Raul Seixas

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Um relato sobre os efeitos do crack

Na primeira vez em que usou crack, Fabia-no Pereira Mota tinha 26 anos. Trabalhava com o estofador, era casado e tinha dois fi-

lhos, provenientes de relacionamentos distintos. Com o salário garantia o sustento de um, a pensão do outro e ainda lhe sobrava uma boa quantia. Apesar de ter estu-dado somente até a sétima série do ensino fundamen-tal, havia feito sólida carreira na área de estofamento. Estava empregado há dois anos. Morava com a esposa em Betim e costumava frequentar shows de rock na re-gião central de Belo Horizonte. Foi exatamente em um desses shows que ele teve contato com o entorpecente.

É necessário deixar claro: as drogas nunca foram novidade em sua vida. A maconha experimentou aos 16. A cocaína aos 21. Sobre a erva diz que ela inspirava e o auxiliava a render mais no serviço. Nessas circuns-tâncias, não era raro parar o trabalho para fumar um baseado e, logo em seguida permanecer na empresa além do expediente.

- A questão é que a maconha me estimulava.A cocaína preferia consumir em shows de rock.

Apesar do uso cotidiano da maconha e dos finais de se-mana regados a pó e álcool, nunca chegou a ter maiores problemas com nenhuma das duas substâncias. A ele o mundo das drogas se mostrava inofensivo. A cocaína

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era mais agressiva, verdade. Contudo, mesmo quando virava uma ou duas noites sob o efeito dela, não chegou ao ponto de prejudicar a vida pessoal. Tudo se ajusta-va e a vida seguia na mesma normalidade de sempre. Com o crack foi diferente. Diferente de tudo que ele já havia vivido.

Fabiano Mota Pereira nasceu em Belo Horizonte, em 1980, e foi criado em Virgolândia, uma pequena ci-dade do interior de Minas Gerais. Ainda no hospital, foi “dado” a avó materna para que ela, sozinha, desempe-nhasse o papel de pai e mãe da criança. Apesar disso, nunca guardou qualquer ressentimento dos genitores. A avó havia sido capaz de prover todas as necessidades da criança.

A infância foi típica de uma criança criada em um município com menos de dez mil habitantes. Ruas pe-quenas, poucos bairros, turmas grandes, poucas opções de lazer. Foi como toda criança deveria ser: feliz.

A felicidade durou exatos 12 anos. Esse foi o tempo que a avó demorou paraa perceber que seria necessá-rio ir além da qualidade de vida que uma cidade pacata pode oferecer. Juntaram as coisas e encararam a estra-da. 360 quilômetros e cinco horas depois, chegaram a Belo Horizonte. O objetivo era nobre: ajudar o neto a conquistar um diploma de ensino superior e lutar para que ele conquistasse um futuro mais tranquilo que o do resto da família.

No inicio dos anos 90 a capital mineira apresen-tava uma perspectiva bem mais atraente que os rin-cões de Minas Gerais. Ruas largas, um grande fluxo de

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automóveis e, sobretudo, muita gente nas ruas. Tanta gente que, agarrado a uma das mãos da avó, o menino contemplava silenciosamente tudo aquilo. Para quem havia sido criado em uma cidade com menos de 10 mil habitantes, Belo Horizonte representava a “Babilônia”. Na cidade, dividiu com a avó um pequeno apartamento alugado. Era pouco, mas bastava.

Aos 13 anos conseguiu o primeiro emprego. Seria estofador em uma empresa de móveis. Seu ofício con-sistiria, basicamente, em encher o interior de sofás e poltronas com uma espécie de espuma. Nada muito lú-dico. Mas não demorou para que ele pegasse o jeito da coisa. Organizava o tempo entre os estudos e o serviço, com o qual tirava algum sustento. Não ganhava muito, mas era o suficiente para ajudar nas despesas de casa.

Com o passar dos meses, Fabiano acabou notan-do que rendia mais no trabalhando que estudando (na época cursava o ensino fundamental). Aos 15 abando-nou de vez a escola. A justificativa era a possiblidade de ganhar mais dinheiro fazendo carreira na área de es-tofamento. Os diversos anos de estudos que ainda lhe restavam fazia do diploma uma realidade distante. Nes-sa época pagava-se bem e sustentar quase que sozinho a casa pela primeira vez foi um motivo de orgulho.

- Eu parei de estudar na sétima série porque eu de-diquei mais ao trabalho. Eu sou estofador e vi que no es-tofamento eu poderia levar a minha vida e deslanchar naturalmente. Eu acho que não precisava de escola pra ganhar X. Eu ganhava razoavelmente bem.

Com dinheiro e emprego, não tardou para que con-quistasse a tão sonhada independência. Tinha 20 anos,

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um bom salário, um emprego estável e sentia-se livre, como poucas vezes na vida. Nos finais de semana reu-nia a turma de amigos e costumava frequentar inferni-nhos que tocavam rock no centro da cidade.

E foi em um desses eventos que conheceu a pri-meira mulher. “Regados” a bandas pesadas dos anos 70, bebida e jovens eufóricos pela liberdade de uma de-mocracia recém-conquistada, eles trocaram olhares ao som de “Wish You Were here ”. Em meio a fumaça, ele reparou em um belo par de olhos azuis cintilantes de uma mulher que bebia, despretensiosamente, afastada da multidão agitada. Ele aproximou e se apresentou ti-midamente. Ela já o havia notado ele antes. Ele estava com uma turma grande; ela havia ido sozinha porque queria conhecer o lugar.

Antes de prosseguir é necessária uma ressalva. Tudo na vida do Fabiano acabava de alguma forma, vi-rando uma paixão. Não existia o meio termo. Tudo era muito intenso. Não foi surpresa para ninguém que ele estivesse morando com ela poucas semanas após a co-nhecer no show cover de Pink Floyd. Surpreendente foi que em questão de meses ela engravidasse e tivesse o primeiro filho dele. Nem ele e tampouco ela estavam preparados. Eram dois jovens com um relacionamento muito recente. Na década de 90 os preservativos ainda não eram tão populares. Seu único uso era para evitar o HIV.

O primogênito veio no pior período possível. Justa-mente em um momento de crise do casal, com discus-sões cada vez mais agressivas e brigas diárias. O gênio intenso dos dois conflitava e, a cada desordem, acirrava

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ainda mais o abismo que havia entre eles. A separação era inevitável.

Antes disso, porém, ocorreu um episódio impor-tante na vida do Fabiano. Foi após uma dessas brigas intensas que, desesperado, expulso do próprio lar e completamente perdido na cidade, ele foi pedir abrigo junto ao teto mais improvável: o do próprio pai. A figu-ra paterna era, naquela altura, a única que o poderia ajudar. A avó havia voltado para o interior. As crises no relacionamento se refletiram no ambiente de trabalho de forma que Fabiano fora demitido após uma discus-são com o supervisor. Com uma ficha em mãos, foi ao orelhão azul que ficava na esquina e ligou para o pai. Havia anos que não se falavam e a perspectiva de ouvir de novo a voz daquele homem mexeu com ele. A voz fria do outro lado marcou uma reunião entre os dois para o dia seguinte. Uma reunião. Nem uma conversa, nem um bate-papo, nem uma cerveja. Uma reunião. Tratava o próprio filho com a mesma frieza característica com que tratava os peões que trabalhavam para ele.

O encontro tão esperado durou pouco. Fabiano vestia sua melhor calça e uma blusa social simples. Na noite anterior, havia sonhado com o que poderia acon-tecer. Estava ansioso e tinha esperança de que diante de todos os acontecimentos, o próprio pai não fosse capaz de negar moradia ao filho. Ledo engano. Vestido com terno importado, dirigindo um carro de ultima gera-ção, ele logo afirmou que falaria somente uma vez para Fabiano e que fosse bom que ele entendesse. Explicou que seu nascimento havia sido um erro, um “acidente de percurso” que ele não conseguira evitar e tampou-

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co se importava com algo que acontecesse na vida do filho. Ficava claro que ele se importava muito mais com a empresa do que com os filhos.

Orgulhoso, Fabiano preferiu dar as costas ao velho arrogante. Jamais abaixaria a cabeça por conta disso. Prometeu silenciosamente que jamais seria igual ao pai. Voltou para casa, pegou suas coisas e foi morar na casa de um amigo. Não voltou a ter contato com a ex-mulher e, com o tempo, passou a ter cada vez menos contato com o próprio filho. Sem querer, acabara de contrariar sua promessa.

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“When you ain’t got nothing you got nothing to loseYou’re invisible now, you got no secrets to conceal

How does it feel?How does it feel?

To be on your own?With no direction home?

Like a complete unknown?Like a rolling stone?”

Like a Rolling Stone – Bob Dylan

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O segundo herdeiro e o princípio do fim

O tempo passou e após alguns meses na casa de amigos, Fabiano finalmente conseguiu se reestabelecer. Graças às indicações foi

contratado por uma empresa de estofamento de auto-móveis localizada em Nova Lima. Lentamente as coi-sas iam se acertando. Tinha 23 anos quando conheceu Adriana. Era um sábado ensolarado quando um amigo o convidou para ir a um barzinho que havia acabado de ser inaugurado próximo a um shopping da região. Aceitou e lá, entre um copo de cerveja e outro, conhe-ceu uma morena tímida que fazia faculdade particular e sonhava em ser doutora.

Era diferente da maior parte das mulheres que conhecera: confiante, organizada, com um brilho nos olhos que o fascinava. Num instante, passou a desejá-la como jamais havia desejado alguém. Ligava, insistia, chamava-a para ir aos lugares mais diversos. Não tar-dou muito para que ela cedesse às investidas. Em pou-co tempo, os dois já estavam namorando e, em menos tempo ainda, casados e morando juntos. Eles se com-pletavam: ambos ganhavam bem e pouco a pouco iam planejando o futuro.

Após dois anos dividindo a mesma casa, Adriana descobriu que estava gravida. Fabiano seria pai pela segunda vez. Porém, agora estaria dividindo os cuida-

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dos da criança com uma mulher a quem amava inten-samente. A vida parecia melhor. No ventre da esposa estava um pequeno pedaço de vida, fruto da relação dos dois. 26 anos e estava próximo da vida que tanto sonha-ra. Um dia, porém, tudo isso desmoronou.

A vida estava perfeita, tão perfeita, que ele aceitou o convite para comemorar o aniversario de um velho conhecido. O local era um show de rock a céu aberto, como há tempos ele não ia. Adriana não pode ir por con-ta do bebê. Pediu, num tom quase premonitório, que ele se cuidasse. No flat (onde se reuniram antes do show) muita cerveja, muito rock e muita maconha.

Os baseados não paravam de trocar de mãos, num ritmo frenético. As cervejas acabavam e logo eram re-postas, numa velocidade que não demorou muito para que todos ali começassem a ficar ligeiramente embria-gados. Já passava das dez horas da noite e eles nem ha-viam saído do apartamento quando alguém apareceu com a novidade: cocaína. A droga não era exatamente algo novo para quase nenhum dos presentes. Mas na-quele momento surpreendeu a todos. Logo a sala já estava vazia e o quarto cheio. Antes de dar a primeira cheirada, conferiram quem queria e quanto cada um estava disposto a consumir. Notas de cinco e de dez pu-lavam rapidamente para as mãos ágeis do intermedi-ário. Inebriado pelo momento, Fabiano resolveu arris-car. Deu 20 reais e pegou dois gramas. Logo as carreiras começavam a ser estendidas e, feito animais famintos, eles se debruçavam para fazer uso.

Nesse frenesi eles se dirigiram ao show. Um grupo composto por dez pessoas completamente alteradas.

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Estimulados pelo efeito psicotrópico da droga, bebiam de tudo: vodca, cerveja, cachaça... Gritavam, conversa-vam alto, gesticulavam e riam. Riam muito. No auge de toda a loucura, Fabiano se viu conversando com uma mulher do grupo. Vez ou outra iam a um lugar afastado, cheiravam mais e voltavam. A essa altura, a apresen-tação musical não mais importava. Até que a cocaína. Completamente alucinado, Fabiano queria mais. Fazia tanto tempo que ele não usava nada que sentia a neces-sidade de quebrar todas as barreiras. Sacou uma nota de 20 reais e pediu a menina que procurasse alguém do grupo disposto a lhe vender a droga. Demorou meia hora para que ela voltasse. Alegava não ter achado nin-guém e que, na falta de cocaína, havia conseguido algo muito mais forte. Com as mãos pequeninas pôs a subs-tância esbranquiçada dentro do cachimbo artesanal, acendeu e deu um trago forte. Em seguida, passou para as mãos de Fabiano. Completamente “chapado” ele re-petiu o ritual.

Demorou dois ou três minutos para que sentisse seu corpo quase explodir. Foram instantes que parece-ram uma eternidade. O coração acelerado, o cérebro agitado e de repente... Bum! Era como se sua alma flu-tuasse. A droga agia em cada célula do seu corpo. Foi a coisa mais intensa que já sentiu em toda a sua vida. E, na mesma rapidez com que ela fazia efeito, este também se findava. Ele mal acreditava no que havia acabado de experimentar. Depois da euforia, claro, a depressão. Queria mais. Queria testar todos os seus limites físicos. A questão era urgente.

Fumou uma pedra atrás da outra até que acabasse

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o dinheiro. O sol já tinha nascido e ele estava rodeado de gente que mal conhecia. Assim que o primeiro ban-co abriu, ao invés de ir para casa, sacou todo o dinheiro que tinha na conta e saiu em busca de mais droga. A essa altura a garota já havia sumido e a sua companhia não lhe era mais importante. Vagou por três dias usan-do crack pelo centro da cidade, até que se viu sozinho, sem dinheiro e cansado. Sem ter a quem recorrer aca-bou batendo na porta de um conhecido. Era madrugada e Fabiano estava desesperado. Assustado com o aspec-to do colega, ele logo lhe ofereceu um espaço no sofá, além de algum dinheiro para que pudesse voltar para a casa no dia seguinte.

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“Throughout his life the sameHe’s battled constantly

This fight he cannot winA tired man, they see no longer cares

The old man then preparesTo die regretfully

That old man here is me”

The Unforgiven - Metallica

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O declínio

Chegou a casa pela manhã, sem fazer barulho para não acordar a esposa ou o filho. Men-talmente procurava uma explicação para

tudo que acabara de passar. A tristeza que o arrebata-va por conta daqueles dias era insuportável. O pior dos porres. Só de pensar numa explicação sobre o episódio fazia com que se sentisse um lixo. Nada daquilo fazia sentido. Ele tinha um filho e se dera ao luxo de gastar uma fortuna usando drogas com uma desconhecida. Atribuiu toda a culpa ao contexto: como fazia tempo que não usava nada, era “natural” que tivesse ficado enfraquecido. Por outro lado, lhe vinha à mente as lem-branças da sensação que aquela nova droga havia lhe proporcionado. Há meses estava estressado, trabalhan-do muito e insone. O medo de errar com o filho era o que mais lhe assustava. Havia feito uma promessa a si mesmo de que não cometeria o mesmo erro que o pai havia perpetrado contra ele.

Mentiu pela primeira vez. Teve medo de que a mulher o julgasse errado e não compreendesse o que havia se passado. Para evitar problemas, disse à espo-sa que havia cheirado cocaína demais em um dos dias e que nos outros dormiu na casa de um amigo que ela não conhecia. As olheiras, o rosto abatido e o corpo exausto denunciavam outra coisa. Mas sem ter moti-

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vos para desconfiar, ela acreditou. Pediu somente que não repetisse mais isso. Fabiano nada disse sobre o di-nheiro gasto.

Demorou um mês para que usasse o crack de novo. As coisas iam bem até que, numa sexta feira a noite após chegar do serviço, teve uma discussão intensa com Adriana. Acabou decidindo sair para aliviar o clima.

Ligou para um amigo e foram a um bar próximo. Tomaram algumas cervejas e uma turma logo foi se sentando a mesa. O que seria somente um desabafo de-sanuviador entre amigos acabou tornando-se um re-encontro da turma que não se via há anos. Foi quando, em meio a uma cerveja e outra, um dos amigos convi-dou a turma para ouvir o novo LP que ele havia com-prado. Em dois carros, foram em direção a Zona Sul de Belo Horizonte. O apartamento era amplo, as paredes brancas, tudo organizado. Lá, o amigo mostrou a vitro-la adquirida recentemente. Antiga, feita em madeira e em perfeito estado, o som saía puro da caixa. Coloca-ram um disco antigo do Led Zeppelin e o som agitado transformou tudo em festa. O dono da casa estendeu a primeira carreira e ofereceu a Fabiano como corte-sia em nome dos velhos tempos. Logo após a primeira cheirada o filme se repetiu. O álcool, a cocaína... E logo lhe veio à mente como poderia conseguir crack. Dessa vez estava mais preparado: não haveria como dar erra-do. Como se ocorresse uma transmissão de pensamen-to, um amigo de colégio disse que tinha em mãos algo mais forte. Saíram do apartamento com mais dois co-nhecidos, entraram em um carro e só pararam de fu-mar no dia seguinte. Dessa vez, Fabiano havia gastado

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apenas 100 reais e conseguiu voltar para casa ainda no sábado. Ele sentia-se mal, mas hesitava em achar que fosse a consequência da droga.

A partir desse dia, as coisas começaram a mudar. Passou a ficar mais irritado. As discussões em casa aflo-ravam a todo instante. Tudo era motivo para uma ce-leuma interminável. Junto a isso, passou a usar a droga com uma frequência cada vez maior. Durante um ano conseguiu restringir o uso a intervalos quinzenais, mas depois começou a usar uma vez por semana. Chegou ao ponto de sair de casa na sexta e só voltar no domingo à noite. Os gastos com a droga tornaram-se exorbitan-tes. Incontáveis foram às vezes em que só passou em casa para tomar banho e ir trabalhar. No emprego, seu desempenho caia vertiginosamente. Eram frequentes as discussões com amigos e com colegas de trabalho. Cansado do gênio forte e do temperamento desregrado dele, seu chefe ligou para Adriana e no intuito de des-cobrir como as coisas iam. Queria saber o porquê de ele ter se transformado tanto. Também assustada, ela ape-nas disse que não entendia. As coisas ocorreram dessa forma até o dia seis de julho de 2009.

Segunda-feira. Fabiano havia acabado de receber o pagamento. Com o dinheiro em mãos, ele decidiu ir tomar uma caipirinha em um bar próximo ao trabalho. Acabou tomando várias. Bebeu como nunca havia bebi-do na vida. Do bar foi para um ponto de venda de drogas em uma das favelas de Belo Horizonte e se abasteceu com crack. Precisava de um lugar para consumir a dro-ga. Dirigiu-se ao centro e por lá permaneceu fumando.

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Durante quatro dias. Quatro dias entorpecido, sem que ninguém soubesse seu paradeiro.

Era noite e Fabiano não tinha mais dinheiro. Tre-mia de fome e de frio, quando começou a pensar numa forma de voltar para casa. Tinha medo de dormir na calçada e sofrer algum tipo de violência. Além disso, se-ria humilhante demais deitar-se ali, a vista de qualquer pessoa. Foi quando viu do outro lado varias ratazanas correndo em meio a linha de ferro. Era o fim. Pulou o muro e foi repousar junto a eles, próximo de onde cor-ria o trem. Teve certeza que estava no inferno: Lúcifer era aquela substância branca que havia fumado nos últimos quatro dias enquanto que os roedores eram os auxiliares do diabo maior. Sentia-se contaminado pela sujeira do local, mas, exausto, não tinha outra alternati-va. Pela primeira vez dormiu na rua.

Ao fim dessa jornada, o saldo: havia consumido 800 reais e conseguido a proeza de zerar a própria conta. Na manhã seguinte, tomou um ônibus e explicou ao troca-dor que havia sido assaltado. Compreensivo feito todo bom brasileiro, o homem liberou a catraca. Em casa já não tinha qualquer desculpa. Para amenizar a situação, ligou para Dionísio e pediu 400 reais emprestados. O patrão depositou em sua conta, mas ressabiado com a situação, começou a investigar. Por meio de um funcio-nário soube do envolvimento de Fabiano com crack. Não se surpreendeu: pelo comportamento que vinha apresentando, era previsível que estivesse envolvido com algo tão pesado. Adriana, por sua vez, se desespe-rava a cada novo sumiço.

Passar três ou quatro dias na rua tornou-se rotina.

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Desesperada, Adriana procurou Dionísio e este lhe con-tou tudo o que sabia. Assim que Fabiano pôs os pés em casa, ambos tiveram uma conversa franca. Ele expli-cava que estava doente, que desejava mudar, mas que não tinha forças. Ela o perdoou e passou a gerenciar sua conta bancária. Logo que o dinheiro caía na conta, a esposa sacava e evitava que ele gastasse em crack. Um mês depois Fabiano conseguiu outro cartão e a história repetia-se. O vício era muitas vezes maior do que qual-quer outra necessidade.

O fundo do poço aconteceu quando Fabiano usou o dinheiro do aluguel para gastá-lo com a droga. Exaus-ta, Adriana ameaçava “jogar a toalha”: a sensação era de perdera a guerra. Por fim, descobriu uma dívida de mais de mil reais com Dionísio, seu antigo chefe. Era a gota d’água: juntou suas coisas, pegou o filho no colo e foi para a casa da mãe.

Desesperado por conta dos acontecimentos recen-tes, Fabiano tentava reorganizar os pensamentos. Ha-via perdido o emprego por conta das sucessivas faltas. Não tinha mais dinheiro; a mulher o havia abandonado e a única coisa que lhe restava era a casa em que vivia (mesmo assim, sob o risco de ser despejado a qualquer momento). Procurou pelos velhos amigos. Um a um, eles declinaram. Ninguém estava com dinheiro e a fama de que estava “quebrado” já havia se espalhado. Somente um deles se dispôs a ouvi-lo. Quando do en-contro, levou consigo uma antiga conhecida que Fabia-no não via há anos, mas que também poderia ajudá-lo. Ele estava magro, com olheiras. Vestia a melhor roupa

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que restava e, mesmo assim, parecia maltrapilho e men-tia o tempo todo: dizia que, por conta de uma doença e do estresse, perdera a mulher e o emprego. Conversa-ram durante toda à tarde. O amigo lhe prometera e a conhecida, por sua vez, ficou encantada com Fabiano. O tempo havia passado, mas a personalidade e os gos-tos dos dois continuavam iguais. Ouviam as mesmas musicas, comiam as mesmas coisas e se interessavam pelos mesmos assuntos. Quando o amigo notou que os dois se olhavam de uma forma diferente, logo arrumou um pretexto para ir embora mais cedo e deixa-los a sós. Assim que ele fechou a porta, meio que num impulso, ambos se agarraram numa volúpia intensa. Arranha-vam-se, abraçavam-se... Os lábios se tocavam como se esperassem a vida inteira por esse momento. Dormi-ram juntos. Condoída pela situação, ela rapidamente o convidou para morar em sua casa.

Com o dinheiro da poupança, ela montou uma pe-quena empresa de estofamento para Fabiano. Ele já não sentia necessidade da droga; havia parado de beber e trabalhava todos os dias por horas e horas. Com o tem-po, foi recuperando o patrimônio investido e voltando a sonhar com uma nova vida. Num certo dia ele teve de ir a Betim resolver o problema da pensão do filho mais velho. Na volta, foi tomado por uma felicidade intensa, como poucas vezes provara na vida. Ele era um novo homem! Havia dado a volta por cima. Decidiu ir a um bar para comemorar. Após o primeiro gole, o vício vol-tou com força total. Novamente parou nas ruas voltan-do pra casa somente uma semana depois. Ao chegar, explicou toda a situação. Ela acreditou e prometeu aju-

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dar no que precisasse. Lutaram juntos até o momento que ele começou a vender os móveis da casa para con-seguir a droga. Com medo, ela terminou tudo que havia entre ambos. Era impossível viver ao lado dele. Já não era mais seguro viver com Fabiano.

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“Mas eu sou o espelho da agonia de um homemSem identidade, caráter, sem nome

Sem Mercedes, Audi ou MitsubishConsumidor da praga do apocalipse

Tão jovem, sem esperança de vidaTão novo e já suicida

São 2 da manhã e faz chuvaO pesadelo ainda continua”

Depoimento de um Viciado - Realidade Cruel

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O fundo do poço

Sem ter pra onde ir, Fabiano passou a viver nas ruas, entregue ao vício. Já não havia muito a ser feito. Sem esperança, sem dinheiro e aco-

metido por uma depressão, nada poderia piorar. Os me-ses e as semanas se passavam com a mesma lentidão. Definhava vagarosamente e não tinha forças para mu-dar nada. Sentia saudade dos filhos, porém, tinha ver-gonha de se apresentar as ex-mulheres. Tudo caminha-va para um fim lento até que um episódio mudou tudo.

É impossível distinguir a data precisa e nem há quanto tempo ele já estava nas ruas. A única certeza é que era noite. Noite escura, com a Lua encoberta por nuvens e poucas estrelas no céu. Fabiano estava em um lote vago, usando crack, solitário, quando um mo-rador de um dos prédios que rodeavam o lote a ROTAM (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas - unidades operacionais da Polícia Militar). Com o giroflex desli-gado e munidos de pistolas 9mm, três soldados pron-tamente imobilizaram Fabiano. Começava um sórdido ritual de barbárie. Um dos militares era forte, moreno, alto, usava um bigode tímido e tinha os olhos grandes. O outro, baixinho, franzino, com as sobrancelhas gros-sas e arqueadas, fumava um cigarro o tempo todo. O úl-timo deles era um jovem recém-egresso na polícia: um desses jovens de classe média alta cujo maior sonho

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é fazer justiça com as próprias mãos (entendendo por “justiça”, basicamente, “descer a porrada” em quem aparecesse em seu caminho).

Primeiro, colocaram Fabiano no banco de trás da viatura e, depois de algumas voltas, chegaram a um ma-tagal na beira de uma rua pequena, próximo à rodovia. Lá o despiram e começaram a espancá-lo. Não conse-guia ver a origem das pancadas, mas sentia cada uma em seu corpo. Era impossível fugir dadas as condições em que se encontrava. Após a surra, o mais jovem grita-va ensandecido:

-Nós vamos te matar. Vamos abrir uma cratera do tamanho da lua na sua cabeça, nós vamos compra sua passagem de volta para o inferno. Seu frango desgraça-do.

Os outros dois, incentivados pelos gritos, prepa-ravam o ritual de praxe. Primeiro, pegaram a lata que Fabiano havia utilizado para fumar e abriram-na um pouco. Posteriormente, deitaram Fabiano e colocaram a lata próxima ao seu pescoço. O moreno pôs os cotur-nos sobre a cabeça de Fabiano. A lata aberta o machu-cava e um filete de sangue começava a escorrer. A essa altura tinha certeza que morreria. Pedia perdão a Deus ao mesmo tempo em que implorava por misericórdia. O mais baixo dos três pedia para que o mais jovem ati-rasse nas de Fabiano. Por sorte, uma ambulância SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) parou próximo ao local. Com medo de serem descobertos, os policiais abandonaram Fabiano. Deus, ao que parece, ouvira Fabiano: próximo ao local da tortura havia ocor-rido um acidente e a ambulância estava indo prestar o

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socorro. Ao ouvir os gritos, um dos médicos resgatou Fabiano. Chorava e agradecia pela oportunidade. Guar-da até hoje no pescoço as marcas daquele dia.

Depois do episódio, Fabiano tentou por várias vezes sair do vício do crack. Chegou a se internar numa clini-ca de reabilitação. Ficou duas semanas, tempo que de-morou a perceber que o local praticava tortura contra os internos. Nunca chegou a levar um tapa sequer, mas soube de usuários que sofreram até choques elétricos nos genitais. Não tolerava também os gritos e humilha-ções a que todos eram submetidos. Teve outra grande oportunidade: um tio distante o encontrou e prometeu-o que pagaria por uma internação. Feliz com a novi-dade, Fabiano decidiu tomar uma cerveja. Ficou cinco dias incomunicável e perdeu mais uma chance. Atual-mente vive no abrigo “Renascer”, no bairro Floresta. Só permitiu ser entrevistado porque viu nessa oportuni-dade uma forma de contar ao mundo a própria história e alertar sobre os perigos que as drogas trazem. Apesar de ter se tornado morador de rua, visita os filhos sem-pre que pode. filhos. Luta para que eles jamais passem pela mesma situação. No primeiro reencontro com o filho mais velho, a história se repetiu. Fabiano chegou a juntar mais de mil reais e, no entanto, teve uma recaída e gastou tudo em drogas.

-É uma situação complexa. Tem hora que parece que você nunca mais vai sair dessa. Você começa a fi-car bem e vem uma rasteira. No momento de mudar mesmo, aí eu caí.

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“Sempre tive uma vontade muito grande de voltar pra casa. Final de semana eu reunia

com os amigos pra ouvir vinil de metal de punk e tal. É disso que eu sinto mais

saudade. É de levantar de manha e ter um estimulo pra poder ir trabalhar. Quando você começa a mexer com esse tipo de droga você não quer acordar de manha, não quer ter horário, não quer saber de

mais nada.”

A gente vai caindo – Fabiano Mota Pereira

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“Sempre tive uma vontade muito grande de voltar pra casa. Final de semana eu reunia

com os amigos pra ouvir vinil de metal de punk e tal. É disso que eu sinto mais

saudade. É de levantar de manha e ter um estimulo pra poder ir trabalhar. Quando você começa a mexer com esse tipo de droga você não quer acordar de manha, não quer ter horário, não quer saber de

mais nada.”

A gente vai caindo – Fabiano Mota Pereira

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“Meu pai me mandava ir pra escola e eu não ia. Eu nasci para o mundo, você en-

tende? Eu nasci para o mundo.”

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A procura da liberdade

Quando Júlio Caburé decidiu sair de casa, ninguém levou muito a sério. Ele era uma criança como as outras: vivia desaparecen-

do pelas matas de Sabará e voltando pra casa depois de alguns dias. Tinha um jeito tinhoso, meio malandro. Um tanto quanto distraído, mas nada tão diferente as-sim dos outros moleques da sua idade. Como todos que vivem na zona rural, ele também acordava cedo. Às seis horas da manhã sua rotina começava: trabalhava com o gado e tinha um serviço semelhante ao dos outros pe-ões. Na melhor das hipóteses, largava o serviço às dez. Na pior, às 11 da manhã. Se cometesse um mínimo des-lize apanhava do pai. Acostumou-se às palmadas quase diárias. O motivo: ele sempre se esquecia de fazer algu-ma coisa. Meio dia em ponto, a família se reunia na sala para o almoço. O pai na cabeceira, a mãe a sua direita e o pequeno Júlio em frente a ela. De vez em quando apa-recia algum comerciante para tratar de negócios com o patriarca da família. Nesses casos, Júlio e a mãe sempre esperavam os dois comerem para almoçarem depois. Não era exatamente uma família rica, mas tinham boas condições de vida.

Depois do almoço ele ia direto para a escola. Estava no primeiro ano de alfabetização e o pai lhe exigia que, no mínimo, se formasse no ensino médio. Contudo,

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sonhava mesmo era com o filho formado em uma uni-versidade e com diploma de doutor (de preferência, em Direito). Ter ao seu lado um filho advogado adminis-trando a fazenda, compartilhando do mesmo estilo de vida interiorano, era tudo que ele queria. No colégio, a primeira coisa que Júlio fazia ao chegar era exatamente sair de lá. Pulava o muro e ia para o mato, munido de um facão, uma trouxa de roupa, um canivete e uma toalha. Lá, a diversão era caçar paca, frango e tomar banho de cachoeira. Em uma dessas fugas chegou a passar mais de dez dias acampando sozinho. Foi exatamente depois de todo esse tempo solitário que ele decidiu que iria co-nhecer o mundo ao seu modo.

Voltou pra casa, tomou um banho, comeu e espe-rou a mãe voltar da feira. Quando o viu, lançou-se em direção a ele de forma desesperada. Beijava suas bo-chechas, mexia em seus cabelos e perguntava agonia-da onde é que ele havia estado por todos esses dias. Ele olhou-a nos olhos e explicou calmamente tudo que passara. Por fim, despediu-se dizendo que estava par-tindo atrás de seu sonho. Ao vê-lo, de tão aliviada que estava, acreditou que aquilo era só um blefe de criança. Beijou-lhe a face mais uma vez, deu de ombros e foi pra cozinha. Foi a última vez que os dois se viram.

Após despedir-se da mãe e portando apenas uma mochila, sem qualquer dinheiro, foi para a estrada em direção a Belo Horizonte. O dia estava quente, o sol bri-lhava forte e o clima estava seco. A sensação de calor era amenizada pelo boné que impedia que os raios do sol massacrassem a sua testa. De dedo em riste, passou a manhã pedindo carona, até que um velho caminhão

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baú parou. O veículo era guiado por um homem jovem, de barba feita, brinco e camisa bem passada. Subiu e se-guiu viagem junto do motorista, quando foi perguntado o que fazia pedindo carona na estrada. Mentiu dizendo que ia a Belo Horizonte encontrar um parente distan-te que estava internado por motivos graves. Comovido com a história, o homem não só o deixou no centro da capital como fez questão de dar-lhe algum dinheiro além de pagar um lanche para o menino.

Nas ruas, Caburé não tinha a mínima ideia de onde poderia ir. Sem rumo, chegou a cogitar terminar a aventura, mas desistiu. Estava convicto de que a maior conquista que poderia ter na vida era a própria liberda-de. Era uma criança de seis anos e não imaginava o que aquela palavra forte poderia significar. A única certeza é que, naquele instante, ela simbolizava uma vida in-dependente. Nos primeiros dias, optou por dormir nas proximidades de uma igreja. Era um lugar seguro e, du-rante o dia, conseguia se alimentar através das gorjetas dos fiéis.

Aos poucos foi conhecendo outras crianças que vi-viam nas ruas, mas que em sua maioria tinham família, casa e roupas limpas. Tinham de tudo, mas preferiam vagar pelas ruas a ir para a escola ou arrumar algum emprego como menor aprendiz. Quando finalmente conquistou a confiança da turma, foi convidado a su-bir o morro junto de um deles. Com as novas amiza-des conseguiu também um local para passar as noites. Alguém sempre lhe oferecia lugar. Tinha uma rotina estabelecida: acordavam ao meio dia; às duas horas da tarde iam para o centro e a noite viam as prostitutas

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junto com toda sorte de malandros que perambulavam pela região. Voltavam somente quando o sol começa-va a aparecer. Dez crianças perambulando pela capital. Eram uma espécie de Capitães de Areia1 do asfalto be-lo-horizontino.

Aos sete anos teve a primeira experiência com as drogas. Na época, os entorpecentes mais comuns eram os xaropes (facilmente encontrados em qualquer dro-garia da cidade), e a cola de sapateiro2 , conseguida em estabelecimentos especializados em material automo-tivo e em oficinas mecânicas. Eram drogas simples e baratas de se adquirir. Para que o dinheiro não faltasse, praticavam pequenos furtos, capazes de abastecer a tur-ma inteira. Do xarope, descobriram a maconha. Bastava uma “ponta de baseado” (resto de cigarro de maconha) para que “viajassem” a madrugada inteira. O preço e os efeitos proporcionados pela Cannabis sativa foram fa-tores que colaboraram para que a turma abandonasse as outras drogas de vez e se concentrassem na erva. Ao contrário da cola, a maconha não provocava nenhum efeito colateral forte e, diferentemente do xarope, não era adquirida em farmácias. O traficante era uma fi-gura menos estranha que o farmacêutico. Além de os pouparem de eventuais perguntas inconvenientes, um criminoso não se importa a respeito do motivo que o

1 Livro do escritor brasileiro Jorge Amado. Conta a história de grupo de menores abandonados, chamados de “Capitães da Areia”, que sobrevivem pelas ruas da capital baiana.

2 É uma mistura de solventes orgânicos produzida para ser usada como adesivo para couros e borrachas. Pode ser inalada pela via oral ou respiratória.

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levou a comprar, nem te pergunta sobre os seus pais. Ele simplesmente vende o produto que você quer. Era exatamente disso que a turma estava atrás. Não demo-rou e, três anos depois, vieram a experimentar cocaína que, na época, era conhecida pela popularidade entre as classes mais altas. Era a droga de artistas, de celebri-dades e de intelectuais de toda sorte.

Foi preso pela primeira vez aos dez anos. Na época, a polícia mandava as crianças em situação de rua direto para a FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor). Em um quarto estreito, Caburé ficou confina-do durante alguns dias em companhia de vários outros menores. Acostumado com a violência das ruas, não se intimidou com a situação do presídio. Assim como no asfalto, dentro da fundação vigorava a lei do mais for-te. Sem medo de nada, o importante era não abaixar a cabeça para ninguém, mesmo que isso significasse um inimigo ou uma briga a mais. Com o tempo, ganhou res-peito dentro e fora da FEBEM. Demorou pouco tempo para aprender a fugir. Acompanhado de outras crian-ças, pulavam o muro e corriam em direção à linha do trem. De lá, corriam até chegarem a uma mata fechada. Na mata, entravam num rio e, cobertos até a cintura de água, andavam em direção à estrada. Desse ponto em diante, cada um tomava seu rumo. O trajeto era perigo-so e sempre havia o risco de serem pegos pela polícia. Mesmo assim, foram raras as ocasiões em que passou mais do que alguns dias na instituição. Superlotada e com os internos brigando frequentemente, tinham a impressão que as fugas facilitavam a vida de policiais e de carcereiros.

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Dois anos depois da primeira vez que foi preso, de-cidiu mudar de ares. Reuniu a turma e explicou-lhes a decisão que havia tomado. Partiriam rumo a Vitória e, de lá, conheceriam o resto do país. Quem quisesse que o acompanhasse. Se ninguém topasse fazer parte da empreitada, iria sozinho mesmo. De uma turma de dez, seis animaram por os pés na estrada. A vida havia de ser mais do que somente as ruas do centro. Haveria outras ruas, outros centros, outras avenidas, outras drogas e, quem sabe, até um mar.

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“Louco! de longe eu vinhaMeus cabelos compridos, o meu colar

A vida era uma viagem, a estrada eu seguiaA vida era uma viagem, a estrada eu seguia

De passos leves e pé no chãoCabelos compridos, mochila e violão”

Sonho de um Louco- Ventania

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Pelo mundo

Foram de carona para o Espírito Santo. Ne-nhum dos sete fazia ideia de como proceder em Vitória. Deles, apenas Júlio já havia experi-

mentado a vida longe dos pais. A rua, vista da perspecti-va de quem está longe de casa, parecia ser ligeiramente diferente de tudo que já haviam provado na vida. E era justamente por isso que estavam excitados. Queriam ter a certeza de que estavam preparados para qualquer coisa.

Ver o mar pela primeira vez os levou a uma como-ção geral. Olhavam para aquelas águas revoltas e, mes-mo com um céu cinzento, deixaram suas mochilas na areia e se jogaram ao mar, como se aquilo fosse a única coisa que existia no mundo. Nenhum deles sabia na-dar, mas não importava: apenas o contato com aquela imensidão já valia a pena. Em frente ao mar, vendo um resto de pôr-do-sol, acenderam um baseado. Fumaram, compraram bebida e foram conhecer as ruas do Espíri-to Santo.

Passaram cinco longos anos dormindo nas areias quentes e sobrevivendo na rua. Cinco anos usando to-das as drogas que tivessem acesso e levando uma vida semelhante a que já levavam em Belo Horizonte. Des-cobriram, porém, que a rua é diferente de estado pra estado. Perderam a conta de quantas vezes viram mo-

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leques iguais a eles sendo assassinados por dívidas de droga ou por implicância da polícia ou de moradores do asfalto. Por isso, aproveitavam o fato de estarem em grupo para se protegerem. Durante os cinco anos tive-ram de dormir em turnos alternados.

Ao fim desse tempo, Caburé decidiu que precisava ir mais longe. Havia encontrado um antigo conhecido chamado Raimundo. Durante a infância, por algumas vezes ele havia trabalhado a mando do pai no sítio des-se senhor. Raimundo era um homem velho que enri-queceu rapidamente trabalhando no ramo hoteleiro e que precisava de alguém em quem confiasse para ser-vir de segurança em seu barco de pesca. Conhecendo as origens de Júlio, enxergou nele a figura ideal para lhe prestar esse tipo de serviço. Era um homem forte, tinha uma boa estatura e, principalmente, era malan-dro. Tinha no sangue a malandragem que procurava. Sabia que com ele a bordo, nenhum dos homens da tri-pulação seria capaz de aprontar.

- Ai eu falei que não sabia o nadar. Como eu vou fazer? Lá você aprende, “cê” não é burro!

Mesmo sem saber nadar, ele foi. Conseguiu levar junto os companheiros de rua. Arrumou a mochila, guardou uma boa quantia de maconha, certificou-se de que não havia deixado nada para trás e comandou a turma. Naturalmente, se tornou o líder daquele bando de aventureiros. Junto de Raimundo e de outros ma-rinheiros, subiram na velha embarcação. As laterais eram pintadas de branco e de um azul já desgastado pelo tempo. Os quartos eram abafados, mas suficientes. E quando o motor arrancou, Júlio perguntou se aquele

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barco realmente seria capaz de carregar todos duran-te vários dias. Foi acalmado pelo condutor dizendo que aquela embarcação já havia enfrentado tantas tempes-tades quantas fossem possíveis e que somente um de-sastre os derrubaria.

Inicialmente, rodaram durante três horas mar adentro. Em um ponto mais isolado, o motor foi desli-gado e o barco deixou-se guiar somente pelas águas. No mar, estabeleceram algumas regras para o grupo. O sono, tal qual nos tempos de rua, continuaria sendo revezado entre todos eles. Manteriam a maconha e a bebida somente entre eles e evitariam beber durante momentos em que o mar estivesse revolto ou que hou-vesse muita gente acordada. Em uma noite, Caburé foi escolhido para ficar acordado. Saiu e sentou-se no bar-co observando as estrelas e o mar. Fazia um frio inten-so. Para diminuir o incômodo dos ventos cortantes, ele tirou um cigarro do bolso, acendeu e se pôs a contem-plar o que estava diante de seus olhos. As estrelas bri-lhavam intensamente. O cigarro lhe acalmava o corpo e o espírito. E dali tirou uma certeza: liberdade era o mar. O mar era infinito, revolto, belo, perigoso, misterioso... Exatamente tudo que a liberdade simbolizava. Navegar pela imensidão azul era ser independente.

Ficaram um ano viajando. Durante as idas e vindas ao mar, conheceu o Rio de Janeiro e Salvador. Na Bahia, teve uma das melhores experiências. Haviam aportado temporariamente no arquipélago de Abrolhos. Lá, Júlio fez amizade com turistas do mundo inteiro que ficaram encantados com o seu jeito indiscreto. Como recom-pensa a toda simpatia, presentearam-no com um curso

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de mergulho. No fundo do mar viu peixes, corais e se encantou com a beleza de tudo aquilo.

Puderam aproveitar somente alguns dias. Logo, voltaram e tiveram de desembarcar no Espírito Santo. Ao fim de um ano, tendo cumprido o trato com Rai-mundo e munido do pouco dinheiro que havia conse-guido economizar nesse tempo, deixou a turma em Vila Velha e partiu sozinho para a cidade maravilhosa.

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“Eu sou o sambaA voz do morro sou eu mesmo sim senhorQuero mostrar ao mundo que tenho valor

Eu sou o rei do terreiroEu sou o samba

Sou natural daqui do rio de janeiroSou eu quem levo a alegria

Pra milhões de corações brasileiros”

A Voz do Morro – Cartola

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Ah, o Rio de Janeiro!

Desembarcou no Rio de Janeiro da mesma forma como havia chegado a Belo Horizon-te. Com pouco dinheiro, sem conhecer nin-

guém e sem lugar pra dormir. Na cabeça tinha vivas as lembranças de uma capital carioca eternamente mar-cada pela tríade “Copacabana, tráfico de drogas e fa-velas”. Era exatamente atrás disso que ele estava indo. Quando saiu de casa, ainda menino, estava decidido a conhecer, de qualquer forma, o país que a televisão mostrava. E depois das ruas capixabas e das praias baia-nas, havia chegado à vez dos morros cariocas.

Mais velho e se julgando mais maduro, escolheu dormir no cais do porto do Novo Rio, na Baía de Guana-bara. Em pouco tempo conheceu marinheiros, estiva-dores, pescadores e vários outros tipos que ganhavam a vida no cais. Graças a uma dessas amizades, conse-guiu emprego de recepcionista no porto. Não ganharia muito, mas teria um local mais seguro para dormir. Foi mais que o suficiente para que aceitasse a proposta. Nas poucas semanas em morou no cais, presenciou ao menos uma dúzia de corpos boiando no mar. Traba-lhou por pouco tempo. O porto era um ambiente pesa-do demais até para alguém que havia vivido dez anos na rua. Mudou-se de lá quando conheceu um velho pesca-dor que o convidou para dividir um barracão, localiza-

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do no Morro do Galo. O velho era um negro barrigudo que pescava desde os doze anos e vivia entre o samba e os peixes. Fumava maconha sempre que podia e, nos finais de semana, costumava cheirar cocaína.

A vida na favela lembrava vagamente os tempos de adolescência em que, durante a noite, procurava drogas no asfalto e dormia durante o dia. A diferença residia no fato de que agora ele tinha lugar fixo para descansar. Quando descobriu como o tráfico funciona-va na terra do Cristo Redentor, quis entrar no esquema. Para isso, abandonou em definitivo o antigo emprego e foi conhecer a fina flor do crime organizado carioca. No começo não ganhou muito dinheiro. Mesmo assim, descobriu cada recanto boêmio que a cidade oferecia.

- Rio foi carnaval puro. “Cê” sabe que carioca não gosta de trabalhar né? Dá meio dia e todo mundo some. Ai nós íamos fazer pagode, tomar cerveja e cheirar co-caína.

Com jeito abusado e falante, em pouco tempo caiu nas graças da malandragem. Fez inúmeros amigos no crime. Ganhou algum dinheiro e passou a ser frequen-tador assíduo das rodas de samba. O samba aprende-ra ainda em Sabará quando, acompanhado dos pais, frequentava festividades populares e ficava de canto de olho observando os adultos dançarem. Na rua e, du-rante o curto espaço de tempo que viveu em Salvador, chegou a tentar alguns movimentos. Mas foi somen-te no Rio de Janeiro que colocou em prática os passos que aprendera. As quintas-feiras passou a frequentar a

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“Feira dos Paraíbas1” . Lá aprendeu a dançar forró e tor-nou-se um autêntico conquistador. Mentia, inventava histórias mirabolantes, se passava por músico, empre-sário, artista... Não tinha um centavo no bolso e, mesmo assim, era capaz de ter sucesso tanto com as patricinhas do Leblon e de Copacabana2 quanto com as morenas da comunidade.

O tempo no Rio de Janeiro passou voando. Era um sujeito simples, mas que por mais de uma vez, já havia provado lealdade aos donos do morro. Bom atirador desde os tempos de criança, quando aprendeu a mane-jar a garrucha velha e enferrujada com o avô. Em casa, errar o alvo poderia significar uma coronhada de leve na cabeça. Dentro do tráfico, esse conhecimento, pou-co a pouco, foi se tornando fundamental.

Bastaram alguns anos e meia dúzia de provas de coragem mostradas em situações de risco para que um traficante local o promovesse a “atravessador”. Teria a missão de buscar armas e drogas no Peru e atravessar para o Brasil de carro ou barco. Os ganhos nesse tipo de trabalho eram proporcionais aos riscos assumidos na empreitada. Na operação em questão, os valores envolvidos seriam altos e os donos do morro optaram por Caburé para realizar o trabalho. Ele era um rapaz jovem, que atirava bem, tinha boa experiência e ainda era de confiança.

- Dinheiro era o que não faltava. Nego quase não

1 Feira com temática nordestina localizada no bairro de São Cristóvão.

2 Bairro nobre carioca

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tem coragem porque é “chumbo grosso”, sabe que é fronteira de PF e Exército. Então, se marcar, perdeu.

Realizou o serviço por algumas vezes. Cada ida ao Peru ou à Bolívia o deixava mais conhecido no mun-do do crime. Vodca e cocaína abasteciam seus trajetos (que podiam durar semanas) e impediam que o medo da Polícia Federal ou do Exército o prejudicasse de al-guma forma. Completamente alucinado, o trabalho parecia até menos complicado que o planejado. Os ví-cios e a certeza de que o tráfico pagaria os advogados em caso de problemas com a Justiça, o impediram de juntar qualquer quantia que fosse. Uma vez realizada a passagem, ia direto para bares ou bordéis gastar tudo aquilo que havia ganhado.

No Mato Grosso do SulA fama conquistada como atravessador se espa-

lhou e chegou a um latifundiário que vivia no Mato Grosso. O boato que corria era de “um mineiro com ginga de baiano que atravessava a fronteira trazendo armas e drogas do exterior”. O fazendeiro em questão era um senhor com muitas posses, dono de fazendas imensas e com bom trânsito no Congresso Nacional. Ele queria era alguém corajoso, que topasse, em troca de uma generosa quantia em dinheiro, comandar um grupo de capangas armados para proteger a fazenda. Era, antes de tudo, um trabalho ilegal, com ordens ex-pressas para atirar ao primeiro barulho. Quanto mais silencioso fosse o serviço, melhor. Os principais alvos eram integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e posseiros da região.

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O “patrão” era um senhor de idade, rico, magro e com um rosto sério. Tinha as bochechas puxadas e usa-va óculos de armação grossa. Falava pausadamente. Fazia questão de explicar todos os pormenores envol-vidos. Deixava claro que, a partir do momento em que topassem, não poderiam voltar atrás. Lembrou que não toleraria nenhum tipo de traição. E qualquer deslize, por menor que fosse, poderia significar uma questão de vida ou morte. Entusiasmado pela ideia de ganhar muito dinheiro atirando, Júlio topou a proposta. Antes, porém, deixou claro que só entraria no negócio se o pu-desse fazer de forma provisória. Estipularam um prazo mínimo de seis meses. Durante esse período ele teria que trabalhar apenas para a fazenda. Depois disso, po-deria continuar ou ir embora.

O grupo era composto por Júlio e mais quatro ho-mens. Todos com experiência em tráfico ou assalto. Todos sem nenhum laço familiar. Eram homens solitá-rios, pagos para matar ou morrer e entusiasmados com a ideia de poder fazer muito dinheiro com isso. A morte, aliás, parecia ser a coisa mais natural do mundo. Esta-vam tendo uma oportunidade única de resolver a vida.

Logo na primeira semana já tiveram de trocar tiros com um homem armado que tentava invadir a fazenda. Na segunda, enfrentaram as espingardas dos integran-tes do MST. E nas seguintes, tiveram ainda mais inci-dentes. E assim foi durante seis meses. Um semestre inteiro atirando e caçando os inimigos do patrão. Ao término desse período, Caburé decidiu voltar ao Rio. Estava bebendo cada vez mais e manter-se sóbrio e con-centrado para mais uma temporada no Mato Grosso

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havia se tornado uma tarefa ingrata. Gostava de atirar e o fazia com maestria. Tinha um bom soldo, mas esta-va farto de ter de viver por conta de um compromisso. Para alguém que até então havia prezado a liberdade acima de qualquer outra coisa, passar a vida protegen-do uma versão moderna de um senhor de engenho 3, por mais prazeroso que fosse, era uma forma de prisão.

Breve passagem pelo Rio, São Paulo e a volta defini-tiva a Belo Horizonte

“Eu saí, mas a rua não saiu de mim. Tenho meu barraco, mas estou aqui. É como um vício. Você acostuma e tem tudo. Amizade, Inimigo, bebida, moeda, comida.”

Voltou ao Rio para seguir na antiga vida: a “Feira do Paraíba”, o samba no morro, beber muito e eventual-mente trocar tiros com a polícia. Na capital fluminense não demorou a se deparar com o mesmo problema que havia começado a enfrentar no Mato Grosso. Passava dias e dias bebendo vodca. Tornou-se cada vez mais relapso. Usava muita cocaína e quase não tinha con-centração. De traficante famoso se transformou em usuário inconveniente. Não mais se interessava pelo manejo de armas e sentia que o Rio seria incapaz de lhe prover a liberdade tanto sonhava.

Apesar disso, continuava conhecido por todos os

3 Aristocratas donos de engenhos de açúcar no inicio do século.

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traficantes. No entanto, andava cada vez mais solitário. Vagava pelas ruas sob o efeito da cocaína e do álcool. Parou de frequentar o Morro da Mangueira. Sentiu ne-cessidade ir atrás de algo diferente. Por conta disso, foi embora do Rio de Janeiro. Desta vez, sem falar nada a ninguém, foi embora quase tão solitário quanto havia chegado pela primeira vez.

Sem ter a mínima ideia do que fazer, pegou um ônibus e parou em São Paulo. Não conhecia ninguém na capital paulista. Decidiu diminuir o ritmo: conse-guir um emprego, sair do crime e levar uma vida nor-mal. Era uma mudança radical para um homem de mais de trinta anos que havia passado a maior parte da vida na sarjeta. Com o dinheiro que tinha, foi atrás de documentos novos, comprou um jornal e tentou a sorte. Sem experiência e já velho, a única vaga em que se encaixava foi como cortador de cana em Ribeirão Preto. Permaneceu debaixo do sol escaldante durante oito meses. Ganhava pouco, mas conseguia poupar di-nheiro. Largou as ruas, os vícios e chegou a frequentar a Igreja, por pouco tempo.

O trabalho braçal, a rotina e a vida modesta não o convenceram. Mais uma vez estava insatisfeito com a vida que levava. Sentia falta das ruas, da malandragem, das drogas, dos dias sem ter onde dormir. Em 32 anos de vida, só havia tido uma casa durante sete. Estava a 25 anos rodando pela estrada, sendo que durante todos esses anos, não havia tido um lar fixo. Quando já esta-va decidido a abandonar tudo, experimentou, ainda no canavial, o crack. Na época era uma droga nova que, de forma silenciosa, tomava conta do tráfico local.

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Após conhecer a novidade, abandonou de vez o em-prego em Ribeirão Preto, o pequeno quarto de pensão e foi viver nas ruas da capital paulista. Completamente desorientado pelos efeitos da nova droga, foi até o cen-tro atrás de crack. Encontrou e acabou ficando por lá. São Paulo era uma cidade ensandecida pela correria e pela violência urbana. Era tudo planejado no modo su-perlativo. Não havia espaço para nada que não tomas-se grandes proporções. Foi assim que o crack tomou conta das regiões centrais, como uma infestação. Tal qual ratos se reproduzindo, os viciados começaram a surgir e a ocupar espaço. Com o tempo, estabeleceram um território próprio. Sob a completa ausência do po-der público “fundaram” a Cracolândia. A Cracolândia é um espaço no centro de São Paulo que concentra um grande número de viciados em drogas e moradores de rua. Durante três anos e meio, foi lá que Caburé “sobre-viveu”. Em meio a traficantes, viciados, alcoólatras, po-liciais e muita sujeira. Chegou a dormir em cima de fe-zes, de urina, próximo a ratos tão gordos quanto os cães vira-latas que andavam por ali atrás de restos de comi-da. Os esquemas para conseguir a droga eram variados. Em comum, o fato de que na imensa maioria dos casos, não se olhava diretamente para o traficante. Eles fica-vam em quartos escuros ou atrás de janelas com vidro fumê, onde o dinheiro entrava por uma fresta e a droga saía de um cano que era esticado para fora.

- A Cracolândia é o demônio puro. Porque lá você não precisa de muito dinheiro pra usar. Imagina o in-ferno. Lá ninguém é de ninguém e fica todo mundo usando aquela desgraça, homem, mulher criança.

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Sabia que se continuasse vivendo como estava morreria mais cedo do que imaginava. Fugiu da Cra-colândia. Fugiu prometendo nunca mais voltar. Juntou dinheiro e foi novamente para o Rio de Janeiro. Na capi-tal fluminense, voltou ao Morro da Mangueira e passou a viver como fogueteiro. Sentado a beira do morro, avi-sava aos traficantes da chegada da polícia. Quando os militares tentavam subir o morro, ele se jogava na fren-te do bando e fazia com que diminuíssem o ritmo da investida. Por essas e outras, apanhou muito. Tomava socos, coronhadas, pontapés. Era agredido com o cas-setete. Para recompensar Júlio pelo ato, os traficantes lhe forneciam crack e cachaça. Ambos amenizavam as escoriações, os olhos roxos e até os dentes que perdia nesses confrontos. Foram três longos anos apanhando quase que diariamente. Tempo suficiente para que de-cidisse largar a droga e o Rio de Janeiro.

Bebendo mais do que nunca, viu como única alter-nativa retornar a Belo Horizonte. O tráfico e a violência eram menores em Minas Gerais. Na capital passou a vi-ver nas ruas de um bairro nobre. Tinha quarenta anos, uma barba espessa, quase toda branca. Na boca, o uso do crack e as seguidas surras da polícia carioca fizeram com que perdesse alguns dentes. Vestia uma camisa velha do Atlético Mineiro, uma bermuda jeans rasgada e uma sandália de dedos. Quem o visse provavelmen-te pensaria estar diante de um homem de mais de 60 anos. Estava decidido a diminuir o consumo de drogas mais fortes. Conseguiu. A cachaça, porém, se transfor-mou em companheira inseparável.

Dormia sempre debaixo de marquises próximas

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aos bares frequentados pelas classes média e alta. O longo tempo (já são mais de dez anos morando em BH) que permanece na região fez com Caburé criasse, pela primeira vez na vida, um vínculo forte com algo ou al-guém. Os comerciantes e moradores já o tem como parte da cultura local, ao ponto até de um dono de um botequim conhecido, ter dado a ele de presente uma pequena casa localizada em uma favela da cidade. É uma maloca pequena. Um quarto, uma sala conjugada com a cozinha. Os outros comerciantes da região cola-boraram e pagaram a mobília. Hoje, apesar de ter o pró-prio barraco, Caburé prefere viver na rua.

Na capital mineira vivenciou muita coisa. A rela-ção com moradores nem sempre foi fácil. Houve uma vez em que partiu para a briga com um jovem do bair-ro. No dia em questão, Júlio estava dormindo embaixo de uma marquise quando foi acordado pelo barulho de um carro que cantava pneu em alta velocidade. Acor-dou e sentou-se no meio fio, vendo o veículo ir e vir, fa-zendo manobras arriscadas na Avenida Afonso Pena. Após um tempo, o carro parou e de dentro dele saiu um rapaz, famoso na vizinhança pelas festas que varavam a madrugada. Por mais de uma vez, Caburé já o havia vis-to cheirando cocaína dentro do carro ou mesmo fora dele. O jovem em questão chamava-se Rodrigo. Era gordo, mas vestia sempre blusas curtas que realçavam os braços fortes, ligeiramente inchados. Estava sem-pre de preto, com um relógio caro no pulso e uma cor-rente de prata pendurada no pescoço. Ao sair do carro, Caburé não se espantou quando Rodrigo foi para cima dele e começou a insultá-lo. Não acostumado a ignorar

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desaforos do tipo, Caburé respondeu a altura e a troca de insultos logo se transformou em briga. Apesar do tamanho e da força, o jovem só sobreviveu graças aos comerciantes locais apartaram a briga. O episódio pre-judicou a fama de Júlio no bairro. Mas não demorou para que Rodrigo se envolvesse em outros problemas e a própria vizinhança acabou absolvendo Caburé diante dos fatos.

Nos últimos tempos, Júlio tem se mantido mais tranquilo. Ainda bebe, fuma maconha, mas tem evitado entrar em confusão. O corpo já não tem mais a força para se defender tão bem. E apesar de ter uma arma e se virar bem, prefere não arriscar. A única vez em que se excedeu para valer nos últimos anos foi no dia 24 de julho de 2013. Foi o dia em que seu Atlético Minei-ro conquistou a primeira Taça Libertadores da Amé-rica. Devido ao preço dos ingressos, ele não pode ir ao estádio. Mas compensou comemorando no centro da cidade e bebendo tudo que podia beber, por três dias se-guidos. Pôs a velha e surrada camisa alvinegra que ha-via ganhado de um morador da Savassi e passou horas gritando e cantando em cima de um dos monumentos mais importantes da cidade.

- A coisa que mais me impressionou na vida foi a Galoucura e a Taça Libertadores do ano passado.

Hoje, passa os dias no mesmo lugar, na mesma calçada, no mesmo bairro. Por tudo que já viu, tem se mantido mais distante do crack. O medo da Cracolân-dia permanece vivo. Seu rosto está envelhecido. Fal-tam-lhe muitos dentes e os olhos estão ligeiramente inchados. Ele me conta que eles estão assim por con-

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ta de algumas brigas que teve na rua. Apesar de tudo, ri e me diz que continua sem levar desaforo para casa. Ao fim da conversa, me diz que ama música e canta um trecho que, de certa forma, conta sua história:

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“Há tempo, muito tempoQue eu estou longe de casa

E nessas ilhas cheias de distânciaO meu blusão de couro se estragouOuvi dizer num papo da rapaziada

Que aquele amigo que embarcou comigoCheio de esperança e fé já se mandou

Sentado à beira do caminho pra pedir caronaTenho falado à mulher companheira

Quem sabe lá no trópico/A vida esteja a mil...”

Tudo Outra Vez – Belchior

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“Olho roxo, escoriação. Porra, o que foi que eu fiz?pra em vez de tá brincando tá colecionando cicatriz

Por que não pensou antes de abrir as pernas?Filho não nasce pra sofrer, não pede pra vir pra Terra

O seu papel devia ser cuidar de mim,Não me espancar, torturar, machucar, me bater

Eu não pedi pra nascer”

Eu Não Pedi Pra Nascer - Facção Central

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Sobrevivente de um pesadelo

Para uma criança, poucas coisas podem ser mais aterrorizantes que um sonho ruim. Um “bom” pesadelo, desses em que monstros,

pessoas e animais se misturam à penumbra, ilumina-dos apenas pela luz de um poste solitário, em que é im-possível distinguir o que é real e o que não é, mesmo depois de acordado, mantem-se o medo, o receio de que não tenha sido um sonho ruim; receio em pensar que essa situação pode se repetir... E essa situação é fácil de explicar. Crianças são incapazes de fazer duas coisas essenciais aos adultos: entender a realidade e se defen-derem. Quando alguém mais experiente sonha com monstros que surgem do matagal, ele sabe que, ao me-nos em tese, tais seres não existem. Além disso, ele dor-me seguro de si porque, ainda que tais diabos existam, ele tem chances muito maiores de se proteger. E que fique claro na cabeça de uma criança que um mons-tro não é, necessariamente, um ser sujo e gigantesco, desses que aparecem na televisão. Em alguns casos, o maior medo começa dentro de casa e vem justamente de quem ela mais confia. Um adulto pode representar um perigo enorme a uma criança.

Foi assim com Ana Lucia. Ela nunca havia visto um filme de terror, nunca havia sonhado com bruxas, dra-gões ou qualquer coisa do tipo. Morava com a mãe, Ana,

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alcoólatra e com o padrasto desempregado, Osmar. O pai biológico era viciado em drogas e vagava pelas ruas de Belo Horizonte. Viviam em um casebre humilde e se sustentavam graças aos bicos feitos pelo padrasto e pela mãe. Eventualmente, a vizinhança colaborava com o que faltasse. Apesar da pobreza material, a vista do local em que viviam era linda. Do alto do morro po-dia-se observar o outro lado da cidade. O lado compos-to por gente que teve mais sorte que eles, de crianças que brincavam no parque e comiam sorvete nos finais de semana. Todavia, talvez a pobreza fosse o menor dos problemas (por ser mais fácil de contorna-lo). Desde o nascimento Ana Lucia teve de conviver com a epilepsia e com as crises de pressão alta que a deixavam ainda mais frágil e tornavam-na ainda mais dependente de seus tutores.

Mas voltemos aos monstros. A pequenina Ana Lu-cia não fazia ideia de quem eram Edgar Allan Poe1 ou mesmo Regan MacNeil2 quando teve contato com o que de mais aterrorizante o ser humano pode produzir. Aos cinco anos ela foi acordada pelo padrasto e convi-dada para ver um sapo morto em um lote vago no alto do morro. Era um convite estranho: não era o tipo de coisa que o padrasto costumava fazer. Inocente, segu-rou nas mãos grandes de seu algoz e foi. Adorava sapos. O barulho que eles fazia era incrível! Um sapo morto seria uma novidade para se gabar pelo resto da vida.

1 Escritor americano especialista no gênero terror

2 Personagem principal do filme ‘O exorcista’. No filme ela é uma garota possuída por entidades malignas.

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Com certeza, no dia seguinte haveria de falar a todos sobre o tal sapo. No lote, porém, o enredo se desenrola tal qual um filme de horror: logo que chegou, Osmar a empurrou bruscamente contra as paredes de um ve-lho banheiro abandonado. Assustada, o choro veio e, por causa dele, o padrasto tampou lhe a boca. Em se-guida, feito um animal, jogou seu corpo contra o dela e consumou a barbárie. Bufava feito um vira-lata raivoso e, enquanto praticava tal selvageria, sussurrava no ou-vido dela que, se algo acontecesse a ele, ela e a mamãe morreriam. Terminado o ato, ele levou a criança desfa-lecida e sagrando no colo, e a colocou de volta na cama. Aos cinco anos havia perdido a inocência em um lote sujo, no alto da favela.

Entendendo que havia passado por algo fora da normalidade, pediu auxílio à mãe. E ouviu dos lábios finos de sua genitora que, se aquilo a tivesse incomo-dado, era melhor, então, que procurasse outro lugar para morar. Deixou claro que entre a filha e o padrasto, preferia o segundo. Se Osmar era o grande vilão da sua infância, a mãe acabara por ser tornar cúmplice. A par-tir desse dia os abusos foram frequentes. Bastava que a mãe saísse de casa para o algoz se aproveitar da vítima. Com o tempo, até mesmo o local foi se alternando. Não havia mais a necessidade de se expor no lote. Já era pos-sível consumar o ato em casa, no sofá, enquanto consu-mia uma cerveja com a televisão ligada. Aos sete anos, sozinha, denunciou o padrasto ao juizado de menores. Quando investigaram a situação, acabaram convenci-dos pela mãe da menina de que o padrasto não havia feito nada.

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Além dos frequentes estupros, passou também a apanhar dos dois. A mãe, para conseguir sustentar o ví-cio em álcool e maconha, pôs Ana Lúcia para trabalhar. Das 8 às 22 horas era empregada doméstica na casa de uma família de classe média. O salário era pago dire-tamente a mãe e ao padrasto, que logo o consumiam em bebida e maconha. Por conta do trabalho, acabou abandonando a escola ainda no ensino fundamental. Trocou os cadernos e os livros por uma rotina que ia de lavar banheiro a preparar o jantar.

Aos 12 anos a situação ficou insustentável. Cansa-da dos maus tratos e dos abusos sexuais, Ana fugiu de casa depois do serviço. Incapaz de pedir ajuda a patroa, foi dormir na escadaria de uma igreja. Nesse local teve mais uma de suas crises epilépticas. Virava os olhos, se debatia fortemente contra a escadaria e espumava sa-liva freneticamente. Vendo a cena (e com medo que a garota morresse), um morador de rua acionou as auto-ridades através de um orelhão. Em pouco tempo uma ambulância e dois representantes do Conselho Tutelar chegaram ao local e a levaram para um hospital publi-co. Internada, teve ao seu lado apenas os representan-tes do Estado. Sentia uma solidão insuportável dentro do peito:

- Foi o pior dia da minha vida porque eu fui interna-da e não tinha ninguém pra ficar do meu lado.

Conseguiu se manter trabalhando e morando nas ruas durante alguns meses. Mesmo ganhando pouco, conseguia sobreviver. Para isso, tinha de mentir para a patroa: falava que entregaria o dinheiro para mãe; que ela não poderia recolher o dinheiro, pois estava doen-

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te... A farsa, porém, durou pouco. Em uma tarde, a pró-pria mãe apareceu no serviço. Bêbada, suja e visivelmente mais drogada que o normal, chegou gri-tando, exigindo ver a filha. Assustada, Ana Lúcia cho-rava. Tinha medo do que lhe esperava. Comovida com o medo da garota, a filha mais velha da patroa ousou ir até o portão do apartamento e ameaçou chamar a polí-cia. Escandalosa, a mulher não parava e não hesitou ao exigir a presença da filha. Ana Lucia desceu. Quando a viu, a mãe fez ainda mais barulho. No momento de des-cuido de um morador distraído que abriu o portão sem querer, a mulher entrou como um raio e acertou um soco na filha da patroa e, depois, um chute na barriga de Ana Lucia. Mais que o suficiente para que a patroa a demitisse.

Sem casa e sem emprego, acabou voltando a morar com a mãe. Em menos de um mês, uma trágica novida-de: trocaria de algoz. O pai viciado em crack a havia pro-metido a um rico traficante da região. O meliante, por sua vez, a venderia a um velho rico, dono de milhares de pés de Cannabis sativa e perdoaria a divida. O acordo era sinistro, porém, já havia se tornado “comum”: não era a primeira vez que se vendiam crianças ao longe-vo pedófilo. Algumas fugiam. Outras não suportavam e acabavam morrendo. Cansada do temperamento forte da filha, a mãe comemorava e Osmar, por sua vez, la-mentava a perda de seu “brinquedo”.

Sob a escolta de vários traficantes armados, Ana Lúcia foi levada até próximo da fronteira com a Bolívia. Passou um dia e meio amarrada dentro de um carro, sendo ameaçada de morte até chegar às proximidades

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de Corumbá-MS. Lá, o veículo adentrou uma mata fe-chada até chegar a uma imensa fazenda. O dono, men-salmente, pagava vultosas quantias em dinheiro para que os agentes federais o deixassem em paz. A casa central era enorme: dois andares, imensas varandas e enormes janelas de vidro. Um verdadeiro palacete em meio à floresta. De lá, podia-se ver milhares de peque-nos pés de maconha sendo tratados por funcionários fortemente armados.

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“O inferno nem é tão longeBem depois de onde nada se esconde

Mais perto do que distanteNão demora muito e ele chega pra qualquer um

No coração das trevas estouE já não tenho mais direção

Num labirinto sem cheiro e sem corE o braseiro acendendo o chão”

Inferno – Nação Zumbi

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Vivendo no inferno

Na porta da casa, um homem esperava. Era velho. Vestia calça jeans e camisa social preta que mal escondia os pelos brancos

que cobriam todo o corpo e a imensa barriga. No pes-coço, um cordão de ouro e na cintura uma pistola nove milímetros. De óculos escuros Ray Ban, estava acom-panhado de dois capangas armados com fuzis AK-47 e com vestimentas semelhantes as da Polícia Militar. Ao contrario do velho, os dois não sorriam; mostravam-se tensos o tempo todo: ser responsável pela sobrevivên-cia do patrão não era tarefa fácil. Assim que Ana Lucia e os traficantes saíram do carro, foram logo revistados. Após entregarem a “encomenda” ao chefe, entraram no carro e arrancaram em alta velocidade. Ao ver a menina indefesa, o velho tratou de levá-la para a casa e começou a beijar suas pequenas bochechas. Em dado momento, interrompeu o que estava fazendo e pediu a dois de seus seguranças que se juntassem ao restante da guarda e dessem tiros em comemoração ao “presen-te” recém-adquirido. Feito isso, voltou a virar sua carga contra a menina. Vendo que ela se recusava a ceder e irritado com o “investimento” malsucedido, começou uma dura sessão de pontapés e coronhadas contra a ga-rota até que ela desmaiasse. Só assim pode consumar o estupro.

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A partir de então, a cena se repetiria todos os dias. Com o tempo, acabou cedendo à volúpia interminável do velho traficante e se resignando com o fato de ter se tornado uma escrava sexual, um objeto sem valor, uma infeliz, cujo destino se cruzara com o de um dos homens mais asquerosos que a raça humana havia sido capaz de conceber. E mesmo assim as surras não ces-savam. Quebrou braço, perna, nariz, costelas... Tudo por conta do ciúme doentio do velho. Bastava que ela ou-sasse dizer uma palavra a outro homem para que a ce-leuma fosse instaurada. Tentava, apesar de tudo, man-ter-se firme e evitar danos piores. Foram longos sete anos vivendo no inferno.

Aos 18 anos teve noticia de que a vida do velho es-tava correndo perigo. Na cidade, corriam boatos sobre uma dívida com um traficante carioca. O falatório dava conta de que, cedo ou tarde, uma “guerra” iria estourar. Sem apoio e visto com maus olhos dentro do crime or-ganizado (por conta de antigos calotes, além da fama de pedófilo), restava ao velho tentar se defender enquanto buscava angariar simpatia de outra facção.

Era abril. Precisamente, dia 23 de abril. Aliados a policiais locais, o bando invadiu o sítio. A operação foi batizada de ”São Jorge” em homenagem ao santo guer-reiro falecido e celebrado na data. Sem ter para onde ir, restava ao velho abandonar seus capangas, colocar Ana Lucia em uma caminhonete e fugir para longe. No meio da fuga, porém, percebeu que estava cercado. Armado com uma submetralhadora Uzi, atirou contra o bloqueio policial e conseguiu rodar mais alguns me-tros até ser alcançado por dois carros em alta veloci-

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dade. Em um dos carros, quatro traficantes munidos de fuzis de guerra atiravam compulsivamente contra a caminhonete. Após alguns minutos de perseguição, o velho bateu em uma árvore. Percebeu que havia sido atingido no braço. O carro que vinha atrás parou e es-perou pela chegada do líder da quadrilha. A ordem era que ele fosse o responsável pela morte do velho. Um homem alto, armado até os dentes, de bermuda e com um pingente de São Jorge no pulso, colocou-se diante do velho ferido e sem munição. Fez questão de olhar nos olhos da vitima antes de disparar as rajadas fatais. Agora tinha a certeza agora de que o caloteiro estava morto e seu nome preservado. Ninguém nunca mais tentaria esse tipo de ousadia com ele.

Ana Lucia estava encolhida e sangrando no banco da frente. O homem, então, se lembrou dos boatos de que o velho tinha o costume de “comprar” meninas de outras regiões do Brasil. Mesmo com 19 anos, a jovem aparentava ser bem mais nova. O traficante tratou de esclarecer que o problema dele não era com ela e que chamaria alguém para tratar dos seus ferimentos.

No dia seguinte, a polícia soltou uma nota dizendo que havia matado um dos principais traficantes do es-tado e prendido outros integrantes que comandavam o tráfico. No hospital, Ana Lucia foi, pouco a pouco, re-cobrando a consciência. Sete longos anos perdidos na companhia de um velho asqueroso que agora estava morto.

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“Quem disse que a terra é um bem pra ser vendido?Quem disse que um sem-terra não passa de um bandido

Sentem fome e frio e o governo os rejeitaEntão respeite o movimento como você se respeita

Respeite o movimentoRespeite o M.S.T.

Respeite o movimentoRespeite até morrer”

Respeite o M.S.T. - Bye Bye Bilis

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Sem ter para onde ir, pegou carona com um caminhoneiro da região. Em troca, ela lavaria o veículo e arrumaria tudo. Em Três Rios-RJ

conseguiu emprego em um bordel da cidade, através de uma antiga conhecida. Suas tarefas seriam cuidar da cafetina (que era idosa) e arrumar a casa. Traba-lhou por um ano auxiliando a senhora e cedendo aos caprichos de suas filhas que, além de a apelidarem de “macaca”, ainda obrigavam-na a cozinhar e arrumar a casa de madrugada, mesmo quando tudo já estava lim-po. A velha cafetina acabou falecendo por morte cere-bral. Vendo seu elo mais forte naquela casa se romper, preferiu pedir demissão: não suportaria os desmandos daquelas mulheres por nada no mundo. Apesar da vida sofrida, ela ainda se dava o devido valor.

Novamente sem moradia, tomou um ônibus rumo a Paraíba do Sul-RJ. Na cidade, deparou-se com barra-cas vermelhas próximas à rodoviária. Era um acampa-mento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Decidiu ir até eles a fim de saber se pode-ria juntar-se ao grupo. De prontidão, foi acolhida como nunca havia sido na vida. Ali, homens, mulheres e crianças lutavam por uma causa: moradia a quem não tem moradia. Foi viver na ala feminina e, pela primeira vez, sentiu-se “blindada” do assédio masculino. Estava,

Com o MST

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enfim, segura. Durante as invasões, as mulheres eram protegidas. A prioridade era que os homens fossem para a “guerra” enquanto a parte feminina resguarda-va o quão possível fosse.

Foram os seis meses mais felizes da sua vida. En-fim, alcançava duas coisas que jamais sonhara conse-guir: respeito e uma família. Junto da caravana viu os homens do grupo enfrentarem a fome, o frio e o medo dos latifundiários(este último compartilhado por todos os integrantes do grupo). Sem ter o que comer e preo-cupados com a saúde das mulheres, muitos integran-tes se arriscavam para saquear alimentos essenciais ao dia a dia. Sentia uma compaixão enorme por aqueles “guerreiros”. Seria capaz de matar e morrer por eles. Enquanto lá esteve, nenhuma das mulheres e crianças passou fome ou frio. Mesmo que para isso os membros mais fortes tivessem de passar por longos períodos de jejum.

Ao término de seis meses o movimento decidiu levantar acampamento e rumar para Brasília. Sem ter qualquer tipo de documento e ainda sofrendo com os problemas de pressão alta e epilepsia, Ana Lucia não pode acompanha-los. Essa era uma determinação in-terna do movimento. A única saída seria se ela se casas-se com algum dos integrantes. Traumatizada com tudo que havia vivido e sem encontrar nenhum que de fato lhe agradasse, acabou tendo abandonando os amigos. Amava aqueles homens, mas era incapaz de apaixonar-se fortemente por qualquer um. Despediu-se e os assis-tiu marcharem rumo a capital do país.

Novamente se via na velha situação: sem empre-

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go e sem moradia. Sua sorte mudou quando encontrou um tio que a convidou para trabalhar na lavoura em Três Rios. Ele tinha por volta de 50 anos e chamava-se Jorge. Era irmão do pai de Ana Lucia. Fizera fama no agronegócio e hoje tinha um bom dinheiro guardado. Ao tomar ciência das condições da sobrinha ofereceu estadia e emprego na fazenda.

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“Vocês que fazem parte dessa massa,Que passa nos projetos, do futuro

É duro tanto ter que caminharE dar muito mais, do que receber.

E ter que demonstrar, sua coragemA margem do que possa aparecer.E ver que toda essa, engrenagem

Já sente a ferrugem, lhe comer.Eh, ôô, vida de gado

Povo marcado, ê povo feliz”

Admirável Gado Novo – Zé Ramalho

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A dura vida na Lavoura

Diante da proposta de emprego e tendo em vista o que a vida lhe oferecia, Ana Lucia prontamente aceitou o trabalho e foi para

a fazenda. Lá descobriu logo cedo que nem tudo seria exatamente como o prometido. Dormia junto dos filhos mais velhos do casal em um paiol de milho, protegido apenas por telhas. Passava frio e trabalhava muito. Se durante oito meses conseguiu contornar a situação foi porque, apesar das crises do tio, sua mulher evitava que ele batesse nos filhos e na sobrinha.

Essa proteção somente perdurou até o dia em que a tia morreu. Após o episódio, Jorge passou a dar ordens a Ana Lucia e aos filhos tal qual um senhor de escravos. Passaram a trabalhar de uma da manhã as nove da noi-te. Em alguns dias até as onze, sem qualquer direito a descanso e sob o chicote atento dos supervisores. Quando muito, tinham direito a três ou quatro horas de sono. Qualquer mísera falha era pretexto para es-pancamentos e ameaças de morte. Até mesmo o filho mais novo, uma criança de 10 anos de idade, era forçado a labutar com os mais velhos. Não havia perdão. Jorge possuía homens armados que, além de cumprirem a função de proteção à propriedade, agiam como verda-deiros “capitães do mato”: tinham ordens de atirar pra matar caso houvesse qualquer motim ou tentativa de

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fuga. Ana mal havia se acostumado àquela situação

quando seu tio levou-a juntamente dos os filhos para uma imensa plantação de feijão. Já era noite e o frio in-tenso. Lá ele ordenou que os quatro trabalhassem até o dia seguinte. Ao amanhecer, as crianças e Ana Lucia já não tinham mais forças para nada. Ao chegar e ver um resultado que não lhe satisfez, Jorge ordenou que terminassem de colher todo o campo até a a tarde, caso contrario pagariam com a vida.

Restou aos quatro fugir desesperadamente. Assim que o carro alcançou uma distância segura, eles aden-traram aos pés de feijão e empreenderam fuga rumo a qualquer lugar que lhes oferecessem algo mais digno. Chegando a rodovia, porém, tiveram um contratempo: uma das crianças havia sido picada por uma cascavel. Munida de um canivete enferrujado, Ana Lucia matou a cobra e fez um pequeno corte no local em que a crian-ça havia sido picada. Lembrou-se de um programa que havia visto quando criança: nele a apresentadora expli-cava a forma correta para chupar o veneno de cobra. Desesperada ela vira na TV. Para desespero dos irmãos, a pequenina desmaiou.

Eram seis horas da tarde. O frio cortava a pele. O vento uivava feito um lobo a procura da matilha. Os carros corriam numa velocidade enorme e, na linha do horizonte, o sol se punha. Uma Lua Nova tímida surgia no céu. Desesperada, com dedo em riste pedia carona ao mesmo tempo em que rezava em silencio e tenta-va acalmar as crianças. Foi quando o parou um carro da Policia Militar. De dentro dele, dois oficiais olha-

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ram preocupados a condição da mulher e das crian-ças. Aquela que parecia ser a mãe estava visivelmente magra; as duas meninas e o menino aparentemente sofriam de desnutrição. Ao ver que se tratava de uma jovem picada por uma cascavel, os policiais logo acele-raram em direção à cidade mais próxima. Sabiam que a vida dela poderia estar em risco. No hospital, para a surpresa geral, foi constatado que a criança estava re-lativamente bem e que muito disso se dava pela ação rápida de Ana Lucia. Tiveram que amputar somente um dedo do pé. Dos males o menor. Tendo em vista os outros diagnósticos, todos tiveram que passar por uma bateria de exames além de alguns dias de repouso an-tes de serem liberados.

No hospital, tiveram de se deparar com a dura rea-lidade: as crianças voltariam a morar com o pai. Mas ao menos Ana Lucia estava livre. Assim que foi acionado, Jorge foi buscar a prole no hospital. Agora livre dos chi-cotes e sem qualquer vínculo com o tio, Ana Lucia se rebelou e recusou-se voltar a trabalhar na lavoura.

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“People, peopleHere me go

You know what it means to be left aloneYeah, people hear me people

Do you know what it means to be left alone?Not even a love to call your own

A little understandin’Lord that’s all in the world I need

Understandin’ and a little bit of lovin’ babyThat’s all in the world I need

A misunderstanding of a no good woman”

Bleeding Heart – Jimmi Hendrix

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Uma mulher que é incapaz de desistir

Ao término de duas semanas, Ana Lucia teve de rever o tio. O primogênito sentia sauda-des e chorava sentindo falta dela. Ressabia-

da de que o pequeno viesse a falecer, voltou ao convívio do carrasco. Ficou lá por quatro dias e nesse período se dedicou integralmente ao menino. Com a experiência de quem já havia vivenciado tantas tragédias quantas fossem possíveis, explicou que “nem sempre consegui-ríamos ficar ao lado de quem gostamos, mas que temos que ter força para seguir em frente”. Lembrou-se dos tempos de MST e deixou cair uma lagrima. Deu adeus àquelas crianças e teve medo do futuro que lhes aguar-dava.

Durante dias em que esteve na casa do tio, apro-veitou para rever um amigo que havia conhecido nos tempos de lavoura. Vanderlei trabalhava em um bote-co. Tinha 25 anos, era alto, moreno e vinha de uma fa-mília conhecida na região. Chegaram a trocar bilhetes de amor escondido. Na época, ele jurava que assim que conseguisse algum dinheiro a tiraria das garras do tio algoz. Coincidiu então de Ana Lucia estar finalmente livre e de Vanderlei ter conseguido o dinheiro. Com alguma segurança financeira, ele propôs a ela em ca-samento. Era uma forma prática de cortar quaisquer vínculos com o passado.

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Recém-casados, eles se mudaram para Belo Ho-rizonte. Vanderlei era um homem batalhador. Traba-lhava muito e a relação dos dois ia muito bem. Ele a respeitava muito e nunca tivera coragem de cometer qualquer tipo de violência contra ela. Pelo contrário: ti-nha nele a imagem de um protetor. Uma imagem que, por poucas vezes na vida, havia tido em um homem. A sintonia era tanta que o primeiro filho não demorou: com menos de um ano de casamento tiveram o primo-gênito.

Em três anos tiveram cinco filhos. Os gastos au-mentaram e o trabalho com os pequenos também. Ana Lucia vivia a responsabilidade de dar aos filhos aquilo que nunca tivera da própria mãe.

Foi quando, já em estado terminal, esta reapareceu na vida da filha. Bateu a porta já pedindo perdão. Sabia de tudo que havia feito e agora, a beira da morte, espera-va um pouco de compaixão. Chorando, Ana Lucia a per-doou. Que homem ou mulher seria capaz de negar uma coisa dessas a um pai ou uma mãe próximos da morte? Por pior que fossem, por mais que até hoje lhe doessem às lembranças da infância, lembrou-se de quando um pastor lhe contara que Cristo havia dito para perdoar não apenas sete vezes, mas setenta vezes sete. Ou seja, o certo seria que perdoássemos a todos, sempre.

A convivência com a mãe foi pacífica até o dia em que Lucia encontrou aquilo que até hoje seus olhos se recusam a lembrar. Num sábado pela manhã, ela havia saído para a feira. Ao voltar, estranhou que as crianças estivessem no vizinho. Entrou devagar e, na cama em que o casal dormia, viu uma cena que ficaria marcada

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pelo resto da vida: o marido, ainda excitado, se cobria e tentava explicar o inexplicável. A mãe chorava e, mais uma vez, implorava pelo perdão a filha. Enfurecida, Ana Lucia expulsou o marido e a moribunda de casa.

No dia seguinte, já mais calma reencontrou-se com a mãe e perdoou-a com a condição de que fosse embora. A cena havia lhe deixado marcas profundas. Apesar de não perdoá-lo, voltou a viver com o marido. As crianças precisavam de um pai e ela de alguém que ajudasse no sustento da casa. Olhar para Vanderlei era, de certa forma, reencontrar a fase mais escura da sua vida. Pouco tempo depois da partida da mãe, Ana Lucia teve a noticia de que ela havia morrido por conta de um enfisema pulmonar. Foi incapaz de se lamentar, chorar ou sentir saudades. Entretanto, foi uma das pouquíssi-mas pessoas a comparecer ao enterro. Ajudando a levar o caixão, pensou em quanto havia sofrido e perdoou-a por todos os males que havia lhe causado. Em silêncio, se pôs a pensar em quantas vezes Deus a havia posto a prova e chorou sozinha.

Sete filhos, um marido infiel, a pobreza... Mesmo assim, Ana mantinha-se forte. Até o momento em que o irmão do marido pediu auxílio a eles. O pedido vinha em péssimo momento: num curto intervalo de tempo após se reconciliar com Vanderlei, havia dado a luz a mais dois filhos e já estava gravida novamente. Mesmo assim, ainda tinha de catar papel pra ajudar nas contas. A casa estava cheia, porém compadecida da situação de um parente tão próximo, aceitou a vinda de mais um in-tegrante. Além disso, havia a promessa de que o irmão poderia auxiliar nas despesas.

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E nesse ínterim, as coisas pioraram de vez. Junto das inúmeras parceiras sexuais, o irmão trouxe tam-bém o crack. Saía dizendo que iria procurar emprego e voltava com varias notas e algumas pedras da droga. Não durou muito para que Vanderlei também entrasse “na onda”. Era um bom homem, honesto, trabalhador, mas de natureza fraca. Cedia facilmente aos impulsos, não importando quais fossem eles. Quando se deitou com a sogra foi assim. Depois de meia dúzia de provo-cações, ele simplesmente consumou o ato sem pensar em mais nada. Penetrou-a da mesma forma como faria em qualquer outra. Nesse ponto era um animal, inca-paz de fazer uso da razão, guiado pelos instintos mais elementares. O crack acentuou isso. Em pouco tempo estava desempregado de novo. Ficava em casa fuman-do a pedra na companhia do irmão, sem qualquer pu-dor em relação às crianças.

Desse dia em diante, a vida Ana Lucia voltou a ser um inferno. Quando soube que Vanderlei havia usado crack, discutiram duramente. Ameaçou sair de casa e mesmo sumir no mundo junto com os filhos. Nada, no entanto, surtiu o efeito desejado. Ela estava no meio da gestação quando o irmão de Vanderlei veio a falecer por conta de uma bala perdida. Na época, cogitou-se que ele poderia ter sido morto por dividas no morro. O boato, entretanto, não veio a ser confirmado.

Sem o irmão, Vanderlei se afundou ainda mais com o crack. Passou a juntar dinheiro e distribuir crack entre os “nóias”1 da região. A casa passou a ser um pon-

1 Gíria que significa “viciado em drogas”

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to de encontro entre traficantes e viciados. No morro, Vanderlei virou uma espécie de “faz-tudo” do crime or-ganizado. Desesperado por drogas, em um curto inter-valo de tempo chegou a matar, assaltar e traficar. Tinha algum nome no crime, mas era visto com desconfiança por conta do vício. Jamais chegaria a uma função mais alta. Com o tempo, o crack chegou a prejudicar até mesmo sua coordenação motora. Estava esquálido, as mãos tremiam e nem correr conseguia mais. Para o cri-me ele já não tinha mais qualquer função. E pior: agora, o bando de “nóias” passava a extorquir Vanderlei. Sen-tiam falta da fartura de crack. Extorquiram-no até o dia que ele não pôde mais.

Estava escuro quando ele e Ana chegaram em casa. Nem mesmo os postes estavam acesos. Quando abriram a porta, foram recebidos com uma saraivada de socos e pontapés. A mulher implorava enquanto Vanderlei apanhava resignado: sabia que tudo não pas-sava de consequência do próprio vicio. Apanharam por cerca de 40 minutos. Tempo bastante para que Ana Lú-cia perdesse o bebê.

Depois da surra ela prometeu abandonar Vander-lei. Porém, com uma postura mais agressiva, ele agora a ameaçava de morte caso fugisse. Além disso, tinha medo de deixar as crianças nas mãos de um pai vicia-do. Sem saída, teve de tolerar as ameaças. Nos finais de semana, fazia um trabalho social: visitar cadeias do Es-tado levando mantimentos que ganhava trabalhando na feira. Tudo o que sobrava em casa e no serviço ela levava para as penitenciárias. Sentia-se segura no meio daqueles homens privados de liberdade. Homens que

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repudiavam o estupro. Fazia isso porque aqueles ho-mens a lembravam um tio que conhecera na infância e que viveu encarcerado por mais de uma década. Ana Lucia sempre pensava que se ele não tivesse sido preso, o padrasto jamais faria o que fez. Ir a cadeia a fazia pen-sar no quanto a vida poderia ter sido diferente. Depois de ser abandonado na cadeia pela família, o tio acabou morrendo de tuberculose.

Vanderlei não podia acompanhá-la, pois temia ser reconhecido. Via as idas da mulher com bons olhos. Sa-bia que, cedo ou tarde, estaria entre os detentos e, por-tanto não só não tinha ciúmes, como a incentivava. Ter uma boa reputação antes mesmo de ser preso poderia ajudá-lo muito no futuro. Ele soube por vizinhos que os “nóias” que os espancaram haviam sido presos e, den-tro do sistema prisional, vieram a falecer. Feriram uma das normas de conduta básica do crime: não havia per-dão para o espancamento de uma gravida. Ainda mais se tratando de Ana Lucia. Nenhum dos detentos jamais conseguiu entender o que levava aquela mulher a visi-tar o presídio uma vez por semana. Sabiam que os pro-cedimentos para entrar no sistema eram humilhantes. Notavam que ela, assim como eles, era pobre e, no en-tanto, repartia o pouco que conseguia. Não levava dro-gas, não fazia parte de nenhuma facção criminosa, nem namorava nenhum dos detentos e, apesar disso, visita-va-os todos os Domingos. Nenhum preso jamais come-teu a ousadia de perguntar o porquê de tudo aquilo

Em casa, a situação com o marido tornou-se insus-tentável. Irritada com as agressões, passou a denunci-á-lo frequentemente. Para piorar, acabara de perder o

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filho mais velho por conta de uma bala perdida. Osci-lava entre a depressão e a revolta, ampliadas cada vez mais pelas crises conjugais. Nessa época, moravam em uma casa modesta em Barbacena. No auge do deses-pero, chegou a comprar uma arma para se defender do marido. Em uma das agressões ergueu o revolver e ameaçou dar um tiro nele. Foi quando a Polícia Militar invadiu a casa e prendeu o marido em flagrante, enqua-drando-o na “lei Maria da Penha”. Posteriormente, Ana acabou descobrindo que após as inúmeras denúncias contra o marido, a casa estava sendo vigiada. A sogra propôs então ela ficasse com a guarda dos netos. Era a única capaz de oferecer uma vida estável a eles.

Sem ter para onde ir, acabou dormindo sozinha na rua. O primeiro dia foi complicado. Sem a companhia de nenhum parente, com a mãe falecida, logo veio à mente a lembrança da primeira vez que enfrentou essa situação: aos pés de uma igreja, logo após uma crise de epilepsia, sendo salva por um morador de rua que ligou para a Polícia. Mais de 20 anos se passaram desde aque-le dia e de novo estava dormindo nas calçadas. Optou por dormir perto de um hotel no centro de Belo Hori-zonte.

Na falta de emprego, anda pela cidade catando papelão e material reciclável e vendendo pra Asmare (Associação dos Catadores de Papelão e Material Rea-proveitável). O dinheiro não é muito, mas aos poucos consegue reorganizar a vida. Quando os problemas de saúde pesam, ela procura um dos abrigos da prefeitura, principalmente o Centro de Referência da População de Rua, um enorme galpão gerido pela Prefeitura de

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Belo Horizonte em parceria com a Providência Nossa Senhora da Conceição (associação ligada a Igreja Cató-lica). Construído em 1996, o local acolhe homens e mu-lheres em situação de rua. Durante o dia são realizadas oficinas; à tarde, os frequentadores ficam livres para to-mar banho, lavar roupas e usar a internet. Além disso, assistentes sociais acompanham cada um dos morado-res de rua que frequentam o local.

Foi lá que ela conheceu Carlinhos, um sujeito sim-ples, tímido, moreno, alto, roupa sempre alinhada e de riso fácil e farto. Mora nas ruas desde criança e, atual-mente, trabalha como jardineiro. Não demorou em se aproximarem e, em menos tempo ainda, já estavam juntos. Nas ruas, ambos redescobriram Deus e hoje fre-quentam a Igreja do Evangelho Quadrangular.

Quando eu conversei com Ana Lúcia ela estava sentada em um degrau, em frente a uma casa próxima a um abrigo da prefeitura. Ela estava ali, magra, com um aspecto meio debilitado por conta de uma pneu-monia que havia contraído recentemente, mas uma vitalidade no rosto capaz de me impressionar. Ao fim da entrevista ela me conta que o ex-marido está prestes a sair da prisão e que vê os filhos esporadicamente. O antigo padrasto, por sua vez, após estuprar uma meni-na até a morte foi assassinado pelos irmãos da criança falecida. Em Belo Horizonte, sonha reestabelecer uma vida que nunca teve. Pergunto por fim de onde ela tira força para seguir em frente, ela levanta os dedos de for-ma tímida e aponta para cima “a minha força vem lá de cima, de Deus”.

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“Todos os dias, todas as horas, eu olho pra cima e peço senhor tende misericórdia

porque a tua filha está aqui. Se eu vou partir pra guerra ele vai junto comigo e me ajuda

a enfrentar qualquer problema.”

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Dos que ajudam

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Quinta-feira, véspera de feriado. São 18h30 e em frente a uma igreja neopentecostal, localizada na re-gião central Belo Horizontina, um grupo começa a se reunir. Os primeiros que chegam esperam pelo res-tante da turma na porta. Do lado de fora, em tatames improvisados ao lado da entrada do templo, lutadores de jiu-jitsu se engalfinham, treinando seus golpes. São os “Atletas de Cristo” - evangélicos, de origem humilde, que fazem parte de um dos inúmeros projetos sociais que a igreja promove. Dentro ocorre a pregação. Um pastor com uma voz forte fala sobre a importância da Bíblia e da “palavra de Deus”. Essa é somente uma das inúmeras catedrais espalhadas pela cidade. Do outro lado da rua, em um ponto um pouco mais acima, está localizada a principal delas. Enorme. Na frente, quatro colunas romanas brancas sustentam uma marquise em forma triangular. Nela está pintado um coração vermelho e uma pomba branca. Abaixo a frase: “Jesus Cristo é o senhor”. O prédio é cercado por escadarias, rampas e por muretas com trechos da Bíblia, escritos em metal. Trata-se de uma das principais congrega-ções religiosas do país.

Aos poucos, o saguão da igreja começa a encher. Em uma hora e meia chegam 20 pessoas. O perfil é ec-lético: o mais velho é um senhor de 60 anos, seguidor há mais de 30. A mais nova tem 17 anos e, assim como eu, vai acompanhar o trabalho com moradores de rua pela primeira vez. Todos os integrantes vestem cami-sa preta com as inscrições do grupo. São os “Anjos da Madrugada”. Duas vezes na semana eles saem às ruas de Belo Horizonte auxiliando mendigos e pessoas em

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situação de risco. Nas segundas, eles traçam uma rota e vão ajudando os moradores que encontrar pelo cami-nho. Nas quintas, eles concentram os trabalhos na Pra-ça Rio Branco (localizada em frente à Rodoviária, famo-sa por ser o abrigo de muitos indigentes). Às 20h, todos os membros já chegaram. Em rápida reunião, decidem como chegarão à praça. Uma van e alguns carros os le-varão.

Opto por ir a pé, sozinho. Durante o trajeto, um ho-mem correndo quase tromba em um casal. Já do outro lado da rua, grita que “se continuarem vacilando, ele vai voltar e acabar com eles”. A mulher nota que não há nada roubado e o homem a reconforta, segurando suas mãos de maneira firme. Noto que estou na parte perigosa do centro da cidade. Já no final da Avenida Olegário Maciel, bem próximo à Rodoviária, inúmeros botequins parecem estar em horário de pico. Em frente a eles, homens dormindo sob o papelão, mulheres ves-tindo saias curtas e até mesmo famílias inteiras de mo-radores de rua se aglomeram. Muitas pessoas bebem, algumas fumam, uns tem colchão, outros dormem em cima somente do papelão. O barulho do engarrafa-mento causado pelo feriado é alto, mas quase ninguém presta atenção nos carros. Deitados, os indigentes ocu-pam boa parte da calçada. Um pequenino espaço é usa-do para o enorme fluxo de pessoas que, em sua maio-ria, se encaminham para o Terminal Rodoviário. Todos parecem estar ocupados. Muitas malas solavancam-se pelo chão imperfeito e mochilas cheias esbarram em outros pedestres. São só alguns metros que, no entanto, se assemelham a quilômetros.

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No centro da Praça Rio Branco, o integrante mais velho do grupo ajuda a organizar as coisas. Em questão de instantes os mais jovens trazem e montam pesadas caixas de som e preparam o gerador a óleo. É tudo mui-to simples. Atrás das caixas há uma mesa com duas caixas, contendo pequenas embalagens de marmitex e roupas para doação. Aproximadamente 40 cadeiras brancas de plástico são alinhadas e, aos poucos, mo-radores de rua e curiosos começam a chegar. Alguns, com desconfiança, preferem ficar de pé. Outros, já fa-miliarizados com o ritual, sentam-se e aguardam.

O pastor é um acontecimento a parte. Ao chegar, cumprimenta todos os voluntários e os orienta. O ner-vosismo estampado na face dos presentes logo se dissi-pa com a sua chegada. Há um tom de reverência ao seu redor: é como se as coisas dependessem mais dele do que do resto. Vai ser ele quem vai liderar o voluntaria-do e os moradores de rua. Apesar disso, procura tratar todos de maneira informal. Antes de começar a oração ele conversa com alguns dos indigentes que estão sen-tados na primeira fileira. Pelo tom do bate-papo noto que ambos já se conhecem há tempos. Em seguida, ele pega o microfone e, depois de três testes vocais, o cul-to é iniciado. A essa altura, todas as cadeiras já estão ocupadas, em sua maioria por homens. Mesmo assim é possível notar algumas mulheres assistindo a fala do pastor.

Perto dali, uma viatura da Polícia Militar está esta-cionada. Do lado dela, dois policiais conversam. Ambos são altos e fortes. Um deles me conta que o trabalho é rotineiro e que nesse tipo de culto religioso não costu-

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ma acontecer nenhum problema. Segundo o mesmo, há um respeito muito grande com a igreja, mesmo en-tre a malandragem. Eles reconhecem a importância desse tipo de trabalho; muitos têm a certeza de que pode ser a última oportunidade dada a eles. Então, ex-ceto por alguns que bêbados ou drogados demais, a maioria ou respeita ou prefere não atrapalhar. Portan-to, a presença da Polícia nesse evento é somente para prevenção. Por fim, o PM me explica que existem áreas no centro da cidade que são ainda mais perigosas que a praça em que estamos. Ele me cita como exemplo o ini-cio da Avenida Olegário Maciel, local por onde eu havia chegado pouco tempo antes.

O discurso do pastor começa calmo e, pouco a pou-co, vai inflamando e ganhando tons mais dramáticos. O público permanece atento a cada movimento do reli-gioso. Enquanto fala, os voluntários conversam com os moradores de rua que não conseguiram cadeira para sentar. Noto que existe cumplicidade entre ajudantes e ajudados. Muitos deles se abrem, confessam os pró-prios pecados e, por fim, assumem-se como homens e mulheres que sucumbiram diante de algo. Não rara-mente falam creditam esse mal ao “demônio” ou as “energias ruins”. Alguns, porém não se dobram: um homem diz que vai se recuperar sozinho e que, apesar de respeitar o culto, prefere não acompanha-lo. Uma mulher magra tenta atrapalhar a fala do pastor algu-mas vezes. Um voluntário se aproxima dela e consegue puxar conversa. As costelas da mulher aparecem pe-las roupas curtas; suas pernas são tão finas que temo que se quebrem ao menor movimento. Ela fala muito,

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gesticula, coloca as mãos sobre o peito do homem com quem conversa. Ele, no entanto, permanece impassível: fala de Deus, do homem, de valores, da família.

Não chega a surtir o efeito desejado. Contudo, ela, ao menos, para de atrapalhar o culto. Depois, o homem me diz algo que, pelo visto, é a síntese de todo o traba-lho: é impossível auxiliar todos ao mesmo tempo. Mas a satisfação em ajudar, mesmo que seja uma pessoa so-mente a sair da rua, já compensa qualquer esforço. A sinceridade com que ele me diz isso é comovente. En-xergo um homem que se dispõe a sacrificar algumas horas da sua semana com o desejo cristalino de outro ser humano. Na visão daqueles voluntários, não se trata apenas de “salvar alguém”, mas sim, uma alma. Mesmo sendo ateu, consigo compreender perfeitamente o que eles querem dizer.

O culto se desenvolve até o momento em que ocor-re algo parecido com uma catarse entre moradores de rua e voluntários. O pastor conversa com um dos indi-gentes e ele parece sair um pouco de si por alguns mi-nutos. O líder faz uma oração e segura firme nas mãos do homem. Os ajudantes fazem o mesmo com os ou-tros e a coisa se a situação se multiplica. É a primeira vez que vejo algo do tipo. O fenômeno dura 20 minutos e, nesse intervalo, vários moradores de rua recebem orações dos “Anjos da Madrugada”. Quando o pastor anuncia que está tudo terminando, um homem pede uma oração para um familiar que faleceu recentemen-te. O pastor chama o homem para perto de si e, calma-mente, repete o procedimento com ele.

O ministro, então, volta a falar a todos. Estou bem

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próximo a uma árvore e noto que há muita gente de fora observando o evento. Muitas pessoas indo viajar param para tirar fotos e registrar aquilo tudo. Próximo a mim estão duas pessoas que, de tão distintas entrei si, acabam por criar um panorama interessante. Um deles é jovem, loiro, tem um porte físico atlético, é alto, está bem vestido e expõe suas ideias com clareza. Mora na região, mas só esta ali, pois tem a passagem marca-da para uma hora da manhã. O outro é um senhor que aparenta ter 40 anos. Está deitado dentro de um carri-nho de supermercados. Tem a barba mal feita, os cabe-los desgrenhados e não tem dente algum na boca. Ele tenta falar algo, mas é incapaz. Além das dificuldades motoras enfrenta também uma forte confusão mental. Tenta, se esforça, mas quando se vê incapaz de expres-sar oralmente um desejo, desiste. Dentro do carrinho há lixo acumulado. O senhor exala um cheiro forte, aze-do e sempre que tenta falar algo é possível notar um forte odor de álcool vindo de sua boca. É impossível ig-norar esse contraste, mesmo que passageiro, de ambos.

São 20h40. Mas a sensação, porém, é que todo ritu-al durou horas a fio. O pastor prepara-se para encerrar o rito. Noto que mesmo os que estão de pé, prestam aten-ção em cada palavra dele. Ele faz uma prece, agradece a Deus e tudo se encerra. Nesse momento, os voluntários estão se preparando para organizar as filas pelo mar-mitex. Em pouco tempo, quase todas são distribuídas. Assim que entregam a comida aos homens e mulheres na fila, os voluntários pegam uma marmita para cada um e comem junto com todo mundo. O pastor me ex-plica que há uma simbologia por trás disso: o fato de

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eles comerem da mesma comida que doam é um sinal de respeito a quem estão ajudando. Finalizado o jantar, voluntários começam a distribuir as roupas arrecada-das. A essa altura, a praça se encheu de moradores de rua, muito mais do que no início do culto. A maioria consegue alguma coisa. Alguns, porém, saem de mãos vazias e reclamam com o pastor. Ele acalma a todos e o princípio de tumulto logo se dissipa.

Quando todos já estão devidamente alimentados e receberam as roupas, o pastor e os voluntários tornam a ouvir as histórias pessoais dos assistidos. A maioria diz que esta tentando mudar. Muitos pedem orações. Estou próximo a um grupo de “Anjos” quando um mo-rador de rua chega e pede para conversar comigo. Em questão de minutos, me confessa que é alcoólatra e que esta na rua pela segunda vez na vida. Aos prantos, diz que “tudo começou a dar errado após ter sido aban-donado pela ex-mulher”. É um homem, de barba rala, um rosto visivelmente marcado e o cabelo quase todo branco. Veste uma camisa social azul, uma calça jeans velha e chinelo. Em um momento de desespero, ele diz que vai mudar! Que no dia seguinte estará na igreja! Nesse instante, seu rosto é inundado por lágrimas e ele me abraça. Um dos voluntários me adverte que tais de-monstrações são recorrentes, lembrando-me que o nú-mero de pessoas ajudadas é irrelevante. Se um homem já tiver sua vida mudada, valerá por tudo. O pastor me diz posteriormente que cada culto consegue resgatar um ou dois indigentes em situação precária.

Os moradores de rua se dispersam e começamos a arrumar tudo. O pesado equipamento de som é des-

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montado e levado até a van. O trânsito permanece in-tenso. Os carros buzinam o tempo inteiro, mas só agora notamos isso. O cansaço é intenso, muito intenso. To-dos, inclusive eu, estão estafados. No fim, fazemos uma pequena roda, rezamos e cada um toma seu rumo.

Assim como os “Anjos da Madrugada” vários são os grupos que se dedicam a ajudar moradores de rua. Além deles, há também aqueles que o fazem individu-almente. Gente que dedica parte do seu tempo a pesso-as que, pelos mais variados motivos, não tem lugar para dormir ou morar. É incrível como esses trabalhos ape-sar de muitas vezes tomarem um tempo, cada vez mais valioso em uma sociedade de consumo, são no fim das contas recompensadores. Após a conversa com varias pessoas que já participaram de ações semelhantes a impressão é a sempre a mesma; ajudar o outro nos faz sentir que somos parte de uma sociedade e saber que somos parte de uma sociedade no fim das conta nos torna mais humanos.

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“Nada será feito até que tenhamos percebido que caridade não é dar

recompensa aos merecedores, mas felicidade aos infelizes. (...) Ninguém parece ter o ordinário discernimento para lembrar que ir a um bar é exatamente o que alguém faria se fosse, não um enganador, mas um homem com fome. Ele vai lá, em primeiro

lugar, porque lá é o único lugar em que se vende um pão com queijo por alguns

reais. E se ele vai também para tomar algo estimulante, ele faz exatamente o que

qualquer sadio bispo ou juiz faria se ficasse enfraquecido pela fome.”

Gilbert Keith Chesterton

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Sobre viver emsociedade

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As pessoas, por vezes, gostam de usar o maniqueís-mo para explicar a questão da miséria e dos indigentes das grandes cidades. A forma mais simples de se enxer-gar algo é reduzi-lo a duas facetas opostas inconciliá-veis. Dois lados que serão sempre incapazes de dialogar entre si. É nesse espírito que nascem as dicotomias: ou o morador de rua é somente um malandro ou é vítima. Quem acredita na primeira sentença defenderá até a morte que a única solução razoável para a questão é tratá-los feito assassinos, trancafiando-os em nossas cadeias já lotadas de meliantes de toda sorte. Os que creem na segunda afirmativa, por sua vez, apelarão para o tacanho argumento “a culpa é da sociedade”. Portan-to, o indigente nada mais é do que um reflexo social e a única forma de evitar que ele chegue ao fundo do poço é reformar toda sociedade.

Tratemos de ambas as visões. Primeiro daquela que insiste em condenar sem qualquer tipo de direito a defesa e ignora os motivos que levaram o indivíduo em questão a morar na rua. Não ter moradia não con-figura crime. Mudar isso, portanto, seria justamente criminalizar toda forma de pobreza. É um desrespeito com aqueles que, por um motivo ou por outro, acaba-ram tendo de morar na sarjeta. Em um artigo publicado em julho de 2000 na revista “Bravo!”, o filósofo Olavo de Carvalho ataca esse tipo de visão de mundo:

No mais das vezes, o que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra,

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é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o refor-ço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente nor-mal e, em suma, um membro da es-pécie humana.

No outro oposto, temos aqueles que creem que o individuo é um mero fruto do meio em que vive. Ne-nhum morador de rua permite ser tratado como víti-ma. Todos se postaram de forma altiva, sem medo de assumir a responsabilidade por escolhas certas e er-radas que ajudaram a construir o que cada um deles é. No asfalto frio de uma grande cidade não há espaço para auto piedade. Existe uma noção bem clara de que cada um tem uma história e ocupa um lugar. Abordar um morador de rua como um pobre coitado, fadado ao fracasso por sua condição social é o maior insulto que alguém pode cometer a qualquer um deles; é afirmar que você é capaz de vencer os seus vícios, mas ele não. É trata-lo feito uma criança que não pode lidar com o próprio destino. Durante a conversa com Fabio Pereira, o poeta das ruas, ele diz duas frases emblemáticas:

Minha vida é um livro aberto. Não pedi hora nenhuma para estar nessa na rua. Não me aceito como mora-dor de rua.

Mesmo nos casos mais complicados - como na esquizofrenia do Paulo Duarte, é possível notar uma

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vontade aliada a uma crença de que tudo pode ser re-vertido. A rua é visto como um estado passageiro, uma queda que pode ser revertida, algo momentâneo.

A rua é um espaço composto de histórias. Histó-rias diferentes que de alguma forma se entrelaçam. São personagens que tem de conviver com um coti-diano violento, dormindo debaixo de marquises ou em albergues, encarando o fato de transformar em luxo necessidades tão básicas e essenciais como um banho. Estão longe de ser um fenômeno novo. Mas, ao mesmo tempo, podem ser vistos como um reflexo de alguns as-pectos do nosso tempo.

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“Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?

Poema em Linha Reta – Fernando Pessoa

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“Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?

Poema em Linha Reta – Fernando Pessoa

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