dos editores Juca Diplomacia e Humanidades - Número 03 ... · nos seus dias de juventude e boemia...

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Juca e Caju

É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa

revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisar o conteúdo das páginas que se

seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará

reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.

A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das

ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que

nos trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.

JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.

A escolha de ilustrar a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de

homenagear o nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa

de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa

identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que

se passa no mundo. Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,

brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.

Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande

caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes

cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,

assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.

Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e

em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não

só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar

a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade

criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo

Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas

e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias

profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.

Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o

mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como

enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com

a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!

dos editores

Ano 3 - 2009

Nesta edição:

Especial: Mundo Lusófono Entrevistas: Embaixador arnaldo carrilhoProfessor cançado Trindade

Perfil: Embaixador Francisco alvim

Depoimento: crônicas do Sauípe

A revista dos alunos do Instituto Rio Branco

Instituto Rio Branco

Fundação Alexandre de Gusmão

www.irbr.mre.gov.br

Juca

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O que é Juca?É a revista anual dos alunos do curso de Formação/Mestrado Profissional em Diplomacia do Instituto Rio Branco. compõem o universo temático do periódico a diplomacia, relações internacionais, demais ciências humanas, artes e cultura - todas agrupadas sob o binômio “Diplomacia e Humanidades”. concebida para refletir a produção acadêmica, artística e intelectual dos alunos da academia diplomática brasileira, a juca visa também recuperar a memória da política externa do País e difundi-la nos meios diplomático e acadêmico.

Por que juca?josé Maria da Silva Paranhos júnior, o chanceler que ingressou no panteão dos heróis nacionais na qualidade de patrono da diplomacia brasileira, era conhecido nos seus dias de juventude e boemia como juca Paranhos – à época, ainda despido da honraria nobiliárquica que viria a batizar nossa academia diplomática. Fosse o Itamaraty no século XIX organizado como o é hoje, o jovem diplomata que consolidaria as fronteiras nacionais e estabeleceria novo paradigma para a política externa brasileira seria tratado, em sua temporada na academia diplomática, por Terceiro Secretário juca Paranhos. a revista elaborada pelos diplomatas recém-ingressados no Instituto Rio Branco presta homenagem à política exterior legada pelo Barão do Rio Branco e ao próprio, que antes das glórias nas questões arbitrais e políticas foi o... juca.

revista JUCA | INSTITUTO RIO BRANCOFundação Alexandre de Gusmãowww.irbr.mre.gov.br

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Juca e Caju

É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa

revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisar o conteúdo das páginas que se

seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará

reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.

A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das

ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que

nos trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.

JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.

A escolha de ilustrar a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de

homenagear o nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa

de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa

identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que

se passa no mundo. Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,

brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.

Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande

caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes

cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,

assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.

Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e

em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não

só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar

a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade

criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo

Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas

e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias

profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.

Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o

mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como

enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com

a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!

dos editores

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Diretor HonorárioEmbaixador Fernando Guimarães Reis

Editora-Chefe - Laís de Souza Garcia Diretor Executivo - Marcelo Almeida C. CostaEditoria de Resenhas - Ramiro BreitbachEditoria de Textos Literários - Krishna Mendes MonteiroEditoria do Dossiê - Eduardo Brigidi de Mello e Eduardo Freitas de OliveiraEditoria de Perfis e Entrevistas - Rodrigo de C. Dias Papa e Rafael Rodrigues PaulinoEditoria de Artigos e Ensaios - Izabel Cury de Brito Cabral e Luiz Felipe CzarnobaiEdição de Arte - Amena Martins Yassine e Marco Kinzo BernardyEdição de Texto - Igor Trabuco BandeiraRelações Públicas - Filipe Abbott Galvão Sobreira LopesDiretor Jurídico - Fernando de Azevedo Silva Perdigão Diretor Financeiro - Eduardo Minoru ChikusaRevisão - Filipe Abbott G. Sobreira Lopes

cajuLaís, Marcelo e Marco

Direção de arte e DiagramaçãoFabiana Marafiotti ([email protected])

expedienteAgradecimentosEmbaixador Celso AmorimEmbaixador Jerônimo MoscardoEmbaixador Arnaldo CarrilhoEmbaixador Francisco AlvimMinistro Sérgio Barreiros de Santana AzevedoSecretário Aurélio Romanini de Abranches ViottiSecretário Leonardo de Almeida Carneiro EngeSecretário Rodrigo de Oliveira CastroSecretário Filipe NasserSecretário Felipe Krause DornellesSecretário Raphael Oliveira do NascimentoSecretário Octávio Moreira Guimarães LopesAna Claúdia Milhomem FreitasEquipes Juca 01 e Juca 02Professor Antônio Augusto Cançado TrindadeDeputado José Fernando Aparecido de OliveiraMiguel Girão de SousaPedro PassosRenato Cabral de RezendeMuseu da Língua PortuguesaEditora Capivara

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Artigos e ensAios 70 josué de castro: 101 anos de nascimento. Quantos mais de esquecimento? Marcelo Almeida C. Costa e Pedro Vinícius do

Valle Tayar

75 Ordem Internacional e Potências Médias: uma importante lacuna da teoria das relações internacionais Paulo Thiago Pires Soares

78 Sfumato: a dimensão ambígua da linguagem Diego Kullmman 84 Deus e o charlatão Gustavo Henrique Maultasch de Oliveira

88 augusto Ruschi: O homem que falava com beija-flores Ricardo dos Santos Poletto

resenhAs94 a Viagem de Saramago Caio Flávio de Noronha e Raimundo

96 adam Smith em Pequim Eduardo Brigidi de Mello

PoesiA e ProsA 102 Tatajuba Eduardo Freitas de Oliveira

106 Dedos Bailarinos Eduardo Brigidi de Mello

107 Delfos Janaína Lourençato

108 O que não existe mais Krishna Mendes Monteiro

113 O Viajante Irineu Pacheco Paes Barreto

DePoimento 114 crônicas do Sauípe Eduardo Brigidi de Melllo ju

ca n

úmer

o 03

Perfis 06 Vida de cinema Amena Yassine, Igor Trabuco Bandeira,

Marcelo Almeida C. Costa e Rodrigo de

Carvalho Dias Papa

12 Revolucionar a corte Internacional de justiça. Pour quoi pas? Amena Yassine, Filipe A. G. Sobreira

Lopes e Pedro Veloso

20 chico, o Poeta Ramiro Breitbach

esPeciAl: munDo lusófono 28 Embaixador josé aparecido: in memoria Embaixador Francisco Alvim e

Embaixador Celso Amorim, Ministro

das Relações Exteriores

34 O Brasil e os esforços pela sustentabilidade da paz em Guiné-Bissau Marina Moreira Costa e Melina Espeschit Maia

48 Gilberto Freyre e o lusotropicalismo: passado, presente e futuro Rafael Rodrigues Paulino

56 Novo acordo ortográfico: língua e poder Marcela Magalhães Braga

63 Diáspora Portuguesa: Odisseia de uma Nação Desterritorializada Rafael Soares

sumário

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ViDA De cinemAamena YassineIgor Trabuco BandeiraMarcelo almeida cunha costaRodrigo de carvalho Dias Papa

FOTOS DE amena Yassine e Marco Kinzo Bernardy

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ViDA De cinemA

a vida do Embaixador Arnaldo Carrilho poderia ser explicada por

uma sequência numérica: 72, 47, 37, 12, 10, 5, 4. Primeiro embaixador do

Brasil em Pyongyang, na Coreia do Norte, aos 72 anos, Carrilho tem 47

anos de carreira no Itamaraty, tendo passado 37 anos no exterior, sendo

12 no Mundo Islâmico e 10 na Ásia. Abriu cinco postos: Jeddah, na Arábia

Saudita, Berlim Oriental, Bissau, Praia, e, agora, Pyongyang. Além disso,

serviu em quatro países comunistas: Polônia, Alemanha Oriental, Laos e

Coreia do Norte. Antes de chegar a Pyongyang, Carrilho foi designado

Embaixador Extraordinário junto à Cúpula América do Sul – Países Árabes,

uma iniciativa emblemática da lógica de cooperação sul – sul perseguida

pela diplomacia nacional. Antes, ainda, foi representante do Brasil junto à

Autoridade Nacional Palestina, em Ramalá, o que demonstra sua predileção

por missões consideradas difíceis.

Para Carrilho, o pragmatismo vem substituindo o romantismo no fazer

diplomático, realidade bastante diversa daquela que vivenciou em Roma,

quando compartilhou da dolce vitta com Bernardo Bertolucci e com Pier

Paolo Pasolini.

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Mas não só de política internacional vive o Embaixador, conhecido cinéfilo e propagador das causas do cinema nacional desde a década de 1960. Amigo pessoal dos mais importantes cineastas do Cinema Novo, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, Carrilho ajudou a tornar viável a exibição de filmes brasileiros em festivais internacionais em pleno regime militar. Mais recentemente, já em 2001, presidiu a Riofilme.

Carrilho é uma síntese do que se imagina de um diplomata: um homem culto, que presenciou alguns dos principais momentos da história recente. Ao mesmo tempo, quebra expectativas ao ter servido em 14 países diferentes, muitos dos quais considerados desafios na carreira. Uma demonstração de que trajetórias profissionais bem-sucedidas não têm de ser, necessariamente, óbvias.

Como foi sua aproximação com o Itamaraty?

Foi por causa do Houaiss, eu o conheci em seu período de ostracismo. Por intermédio do João Batista Pinheiro, que era de direita. Ele me sugeriu que eu procurasse o Houaiss para ter aula de português. Houaiss estava sofrendo o processo durante o governo JK, junto com João Cabral. Eu, na época, trabalhava no BNDE. Os anos JK foram maravilhosos, mas também foram terríveis. Descobri que o Consulado em Argel só podia conferir vistos a cidadãos de origem europeia. Contra o Houaiss e o grupo havia processos administrativos, depois eles foram liberados pelo STF.

Então o Houaiss foi uma grande influência?

Sim. Ele estava cedido à Agência Nacional, e, conversando com ele, fui me interessando...Levei bomba no primeiro concurso, em 1957, em Português oral, porque discuti com a banca, sem razão. Fiquei com 58,8, precisava de 60. Guimarães Rosa me deu uma nota baixa em cultura geral. Depois se tornou meu amigo. Fiz o concurso quatro vezes, passei em 1960. Eram

dois anos no Instituto Rio Branco, só éramos nomeados depois. Guimarães Rosa não gostou da minha redação, o tema era Ocidente x Oriente, tirei 80 e o Ricupero tirou 100.

O senhor lembra-se de algum professor memorável no IRBr?

O IRBr era a escolinha, fazíamos todas as matérias. Havia um professor de inglês muito engraçado, Kenneth Pain. Havia o professor de francês que diziam ser foragido do regime de Vichy, havia sido préfet de Nice à época, Andrés Felon. Ele gostava de mim porque eu falava francês bem, e ele me convidava pra falar para a classe. Uma vez fiz a turma dar gargalhadas incríveis, pois falei de erotismo no cinema. Ele ficou perplexo.

Muitos se tornaram Embaixadores?Sim, vários. Um, ainda na ativa, era mais

novo da turma, o mascote, o Henrique Rodrigues Valle.

Como foi o período no IRBr?Eu trabalhava fora do ministério, com o

Evaldo Cabral, no escritório da BRASTEC, de consultoria econômica. Em 1961, fui chamado pelo Lauro Escorel. Este é o momento em que começa a aproximação maior entre o Itamaraty e o cinema nacional. A UNESCO bancou toneladas de equipamentos (...) junto com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional), sob liderança do Dr. Rodrigo Mello e Franco.

Eu, Terceiro Secretario, era quem pedia liberação na aduana para liberar os equipamentos. Em 1º de abril de 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas estavam inscritos no festival de Cannes... Dois dias depois fui procurado pelos militares! O golpe de 64 foi muito traumático para mim, até hoje. Eu trabalhava no Departamento Cultural, na DODC. Eles (os militares) falavam assim: “engraçado eles, são hierarquizados como nós”. Aí ficou combinado que Deus e o Diabo na Terra do Sol seria exibido na delegacia de

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policia, que tinha uma salinha de projeções por causa da censura, pois o então Coronel Figueiredo precisava dar o aval.

Sentia-se que a Política Externa Independente era realmente algo inovador?

Sim, mas os inovadores eram muito poucos. O Ministério era muito conservador, ligado à UDN. Senhoras protestaram contra a posse de Hermes Lima. Waldir Pires seria ministro, mas não deu certo. Afonso Arinos era um grande progressista entre os conservadores.

O senhor passou muito tempo no exterior?

Quase 38 anos. Peguei a fase mais dura aqui, parte do governo Médici e o governo Geisel. A segunda metade do governo começou a entrar ar. Vocês não imaginam o que era Brasília. Fui trabalhar no patrimônio, chamado pelo Raul de Vincenzi. Fiquei muito feliz porque não queria trabalhar em nenhuma divisão opinativa. Dediquei-me a cuidar do patrimônio, cuidava do palácio, que hoje está mal cuidado, já disse isso ao Celso (Amorim, Ministro de Estado) algumas vezes.

O senhor acredita que, de fato, o Itamaraty conseguiu conservar alguma autonomia durante o governo militar?

Tirando o período Castello Branco, que era a política da ESG (Escola Superior de Guerra), muito pró- EUA, não se esqueçam do episódio do chanceler Juracy Magalhães. O período Militar, mesmo Costa e Silva, Geisel muito, menos Figueiredo, teve um grande viés nacionalista. Toda política africana! No governo Costa e Silva, o Secretário-Geral, que era um aristocrata, Sergio Correia da Costa, defendeu a não adesão do Brasil ao TNP (Tratado de Não-Proliferação). Houve uma política externa semi-independente. O governo Geisel era antiamericano. Ele tinha horror! O Geisel é um direitista que eu admiro. Ele não gostava do Jimmy Carter. Ele nunca visitou os EUA; foi

à Alemanha, Grã-Bretanha, Japão, mas nunca aos EUA. Por isso, criou certo ar aqui dentro, quando eu estava aqui na divisão de patrimônio.

O senhor chegou a conviver com figuras como João Guimarães Rosa, Vinícius de Morais, João Cabral de Mello Neto?

Sim, claro, com todos eles! Ribeiro Couto, Antônio Houaiss, que foi o primeiro que conheci. Isso me deu muito alento. Claro que os superiores me achavam um cara pouco confiável, pois eu tava discutindo sobre política externa, mas estava pensando em encontrar-me com Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha, que vivia lá em casa. Isso desequilibrava um pouco o superior hierárquico, que só pensava e só se dedicava à diplomacia. Eu, por exemplo, saía de uma reunião chata na Embaixada em Roma e ia jantar com Pasolini e isso gerava uma situação desequilibrante. Alguns superiores gostavam, o Gibson (Barbosa), por exemplo, gostava muito, ele me convidava para jantar para que eu convidasse o Bertolucci, e eles ficavam conversando...

Quem o senhor citaria como um grande chefe, marcante em sua vida?

Lauro Escorel! Era um homem muito rígido, com passado de direita, que havia sido integralista, de camisa verde. Tornou-se diplomata em 1943, quando teve uma transformação em sua tomada de consciência, que passou a ser democrática e progressista. Era um homem de uma correção excepcional, de uma inteligência fora do comum. Autor de alguns livros bastante válidos, como o que fez sobre o pensamento político de Maquiavel. Era um excelente critico literário, muito amigo de João Cabral. Inclusive tem livros bons sobre João Cabral. Trabalhei com ele no Departamento Cultural, que se chamava, acreditem vocês, antes do golpe, Departamento Cultural e de Informações, que se referia à imprensa.

Quais os postos mais marcantes? Ao falar disso, precisamos ter a noção da

relatividade do momento. Os tempos em que

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vivi em Roma foram importantérrimos. Sorte minha! Eu cheguei a Roma no momento em que havia ainda um resto de dolce vita e depois voltei para trabalhar na Santa Sé, na época em que a Igreja estava implantando o Conselho Ecumênico Segundo, portanto era uma Igreja progressista, de Paulo VI. Na nossa América Latina, corria livremente a Teoria da Libertação, inclusive por causa do próprio Papa. A palavra libertação foi o Papa quem usou no congresso de Medellín, em 1978, no encerramento do congresso Latino Americano. Tive essa sorte, assim como meu segundo posto foi Varsóvia, num período de muita criatividade local, época dos primeiros embates contra a rigidez do governo soviético. Peguei uma Polônia em transformação, a queda de Goumuka foi algo muito importante. Então os postos marcam também pelo que acontecia no tempo. Eu juro a vocês, sem querer ser metido a besta,

que eu não gostaria de ir hoje para Roma nem para Paris, a Roma de Berlusconi ou Paris de Sarkozy, não! Gostava da Paris do General de Gaulle, sempre provocando os americanos... Isso acabou.

O senhor chegou a abrir quantos postos durante sua carreira?

Vou abrir o quinto agora. O primeiro foi Jeddah, na Arábia Saudita; o segundo foi Berlim, RDA, os dois entre 1973 e 74. Depois fui abrindo postos rapidamente, Guiné-Bissau, Cabo Verde (1976), eu abria postos com embaixadas em construção ou por construir. Já instalei e reinstalei vários postos. Em Lagos, já existia uma Embaixada, mas eu fui lá para lançar a construção da embaixada que já foi projetada como futuro consulado em Lagos, pois havia o projeto da capital em Abuja. Isso tudo foi entre 74 e 76, eu viajava muito.

O senhor queria ir para São Francisco por causa do cinema?

Por causa do cinema, dos amigos. Nunca se esqueçam que Coppola mora em Oakland .Depois fui pra Lima, Peru. Tenho saudades de Lima, vivi uma época de transformação do cinema peruano, todos eles frequentavam minha casa. Uma época de transformação do país, que, em seus períodos democráticos, só tinha tido presidentes conservadores. O presidente do meu tempo era um homem muito simpático, o Belaunde Terry. Eleito! Arquiteto! Casado com uma mulher chamada Carlota Aubri, prima da Cecília Aubri, atriz do Cluzot, e ela se apaixona por um Zambo, que era um negro. Esta é

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Eu gosto dessa cachaça que vocês adotaram por concurso: a diplomacia.

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uma particularidade do Peru, toda classe política era branca, e era minoria. A maioria eram índios, asiáticos e negros. Os negros são muito fortes culturalmente, na musica, por exemplo. Eram muito desprezados. A mulher do presidente então foge com um negro; neste momento atuavam o Sendero Luminoso e os Tupamaros, que explodiam bombas perto da minha casa. Outra coisa foi em Melbourne, uma de minhas cidades preferidas na Austrália. Sydney é uma cidade bonita, maior cidade do país, concentra um quinto da população da Austrália. As pessoas lá só pensam em ginástica, praia, diversão. Mas lá foi palco dessa retrospectiva completa do Antonioni, que durou um mês. Outro foi uma lindíssima exposição minimalista do artista plástico brasileiro Valtércio Caldas, em Sydney também. Fez um sucesso incrível. A terceira coisa foi uma mostra completa de tudo aqui que foi usado por Stanley Kubrick, no museu de Melbourne. Mas um belo dia, eu telefonei ao Celso Amorim, pois soube que a Palestina estava vaga, e eu soube com certo atraso, quase oito meses depois. Pedi para ir para a Palestina.

Em que ano foi aberto o escritório de representação do Brasil em Ramalá?

Em 2004, eu fui em 2006. O escritório ficou nas mãos de um colega nosso, que é agora embaixador em Harare . Ele ficou dez meses lá. Entre o Brito (atual embaixador brasileiro no Iraque, Bernardo de Azevedo Brito) e mim.

O que de mais importante a diplomacia brasileira logrou com a aproximação do Brasil em relação aos palestinos?

Graças a um trabalho de Affonso Ouro-Preto e um pouco meu, a coisa mais importante que a gente fez foi mostrar aos palestinos que nós entendíamos a causa Palestina. Não no sentido propagandístico, nem demagógico, mas no sentido de direitos que assistem ao povo palestino.

Qual sua experiência com o mundo islâmico?

Eu tenho 12 anos de mundo islâmico: Arábia Saudita; Beirute durante a guerra civil 89-90; saí de Argel pra ir para lá.

E o Brasil é visto de fato como um ator importante no Oriente Médio?

Está tentando ser. Os palestinos culturalmente estão muito ligados aos colonizadores europeus, principalmente à Inglaterra. Há então uma dificuldade cultural porque a política externa brasileira para a palestina só foi tomando forma a partir do Celso Amorim. O Celso está muito certo, ele tá indo gradualmente.

Embaixador, quais são suas expectativas pra Coreia do Norte?

As melhores possíveis, estou muito entusiasmado!

Falando da Coreia do Norte, lembro que o senhor comentou que o senador Cristovam Buarque falou que Pyongyang talvez não fosse bom pro seu currículo, mas seria ótimo pra sua biografia. O senhor concorda?

Sim, mas não sou vaidoso com biografia não. Eu gosto dessa cachaça que vocês adotaram por concurso: a diplomacia.

Amena martins Yassine (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, mestre pela London School of Economics and Political Science (LSE).igor trabuco Bandeira (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.marcelo Almeida cunha costa (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba.rodrigo de carvalho Dias Papa (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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REVOlucIONaR a cORTE INTERNacIONal DE juSTIça. Pour quoi PAs?

amena YassineFilipe abbott Galvão Sobreira lopesPedro Velloso

Risos! É assim que começa e termina uma conversa com Antônio

Augusto Cançado Trindade, jurista, internacionalista e o mais recente

brasileiro a ocupar um assento na Corte Internacional de Justiça (CIJ).

Professor do Instituto Rio Branco (IRBr) por três décadas e consultor

jurídico do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Cançado

Trindade assumiu, em fevereiro de 2009, seu lugar no mais importante

tribunal internacional em atividade, o qual se encontra num momento

decisivo para concretizar sua autonomia e atuação. “Um momento

histórico”, para usar uma expressão que lhe é cara. Trindade entra

determinado a imprimir sua marca, a despeito de controvérsias e

pressões que possa enfrentar e que são parte indissociável da Corte da

Haia. Nesta entrevista concedida à JUCA, a última antes de embarcar

para os Países Baixos, ele rememora, com carinho e irreverência, seus

anos no Itamaraty, sua extensa experiência no Direito Internacional,

sua eleição e suas expectativas para os anos que se seguem na CIJ.

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Como o senhor foi chamado a dar aulas no IRBr?

Houve um convênio, celebrado entre o nosso departamento da UnB e o Rio Branco, que acabava de se trasladar do Rio de Janeiro para Brasília. Eles necessitavam de novos professores, uma vez que muitos professores ficaram no Rio. Então, no âmbito desse convênio, eu passei a lecionar, em março de 1978, tive essa grande satisfação, e o convênio está em vigor até hoje, e, portanto, exatamente 30 anos de docência.

Como foi ensinar Direito Internacional por 30 anos?

Eu sempre busquei dar uma visão própria do Direito Internacional. Nos primeiros anos, a situação pela qual passava o país ainda era sombria e não havia uma total liberdade para abordar certos temas. Eu não me contentava com a doutrina prevalecente na época e já naquela época eu questionava muito do que se ensinava nas nossas faculdades. Então eu me recordo que a expressão, por exemplo, “Direitos Humanos” era anátema na época, então eu consegui incluir no primeiro programa do curso de Direito Internacional do IRBr em 1978 um capítulo sob o título de “A Condição do Indivíduo no Direito Internacional.” Então eu passei, a partir daí, a ensinar um capítulo de Direitos Humanos no Direito Internacional. Isso foi no final dos anos 70.

A primeira grande oportunidade surgiu no caso do “Último Limite” brasileiro, que foi o limite litoral marítimo entre o Brasil e a França, e a partir daí eu cada vez mais passei a colaborar com o Ministério mediante pareceres e, em 1985, com a redemocratização do país, fui chamado para ser Consultor Jurídico do Ministério, mas nunca deixei de dar aulas.

O Senhor tem medo de virar um Marco Teórico?

Não, eu repudio o Marco Teórico como algo que inibe o jovem pesquisador a ler o

máximo que ele puder ler. Eu sou um livre pensador. Como livre pensador, na primeira metade da década de 80 eu comecei a questionar algumas posições que ainda prevaleciam em nosso país. Precisamente através do vínculo com o IRBr, tive a oportunidade de estabelecer um novo paradigma não só no ensino como também na prática, ao fundamentar as novas posições do Brasil em matéria da proteção internacional

dos direitos humanos e emiti pareceres para mudar radicalmente a posição do nosso País e graças a Deus isso foi bem aceito pelo Ministério das Relações Exteriores, a quem fui absolutamente leal durante todos esses 30 anos. Esses pareceres que foram emitidos de 1985 a 1989 serviram para inserir o Brasil no plano internacional na área de direitos humanos. A posição do Brasil e do Itamaraty sempre esteve à frente dessas mudanças. Então isso marcou meados dos anos 80.

Os anos 80 foram marcados por esta ambivalência, um sonho perdido e a busca pela construção de uma nova realidade. Na segunda metade dos anos 80, houve algumas iniciativas importantes como a conclusão da obra de codificação do Direito Internacional com a segunda grande Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados. Internamente, com a redemocratização, foi convocada a Constituinte, aí eu tive um papel muito importante, não só como professor do Rio Branco, mas como Consultor Jurídico: introdução do parágrafo 2o do artigo 5o. (veja box na página ao lado)

Uma memória que o senhor guarda do IRBr com carinho?

Eu nunca vou me esquecer nem do início nem do fim. Sempre vou me lembrar da turma

o Direito internacional tem passado por momentos de gravíssima de crise, mas é nos momentos de crise que se dá saltos qualitativos.

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de vocês (Turma 2008-2010). Vou me lembrar da primeira turma, que são meus amigos até hoje, alguns são Embaixadores. Um momento que me lembro bastante foi o momento em que me ausentei por alguns meses, logo depois que assumi na Corte Interamericana de Direitos Humanos e fui para a Costa Rica. Quando eu voltei, foi uma festa no Itamaraty e no Rio Branco. Isso foi super gratificante. Fui recebido com muito carinho. Isso ocorreu em 1996.

Como era dar aula de Direito Internacional há 30 anos?

Há 30 anos havia muita influência no Brasil dos cursos de ciência política. A escola realista predominava e eu era sempre contrário. A resistência nas universidades era muito maior que hoje. A maioria era puro positivismo. Há 30 anos, os horizontes eram mais limitados. No nosso último semestre discutimos temas que seriam impossíveis há 30 anos, como os tribunais de caráter universal e de direitos humanos, o novo jus-gentium, a proibição do uso da força, isso não se discutia abertamente.

O Direito Internacional tem passado por momentos de gravíssima de crise, mas é nos momentos de crise que se dá saltos

qualitativos. Assistimos a momentos dramáticos em 2003, com o problema da invasão do Iraque, uma das mais graves violações do Direito Internacional já vista. Agora, em 2009, já se vê com olhos críticos o que ocorreu.

Uma memória mais inusitada, pitoresca, ou anedótica?

Há cerca de cinco anos, fui convidado para ser paraninfo de uma das turmas do Rio Branco. O cerimonial me avisou que eu tinha sete minutos para falar na formatura, porque o presidente também ia falar por sete minutos. Eu perguntei: sete minutos longos ou breves? (Risos). O pessoal no Planalto ficou preocupadíssmo, porque ninguém pode falar mais que o Lula. Meus sete minutos duraram 40. (risos) Quando o Lula foi falar depois, ele disse que não ia ler o discurso, pois esse ia para as atas. E falou de improviso por 41 minutos. (risos) Nós dois falamos sete minutos longos. No final, todo mundo estava morrendo de rir.

Como surgiu a candidatura para a CIJ?Começou com os meus doze anos

como juiz titular da Corte Interamericana, que marcaram época, pois o Brasil era

O parágrafo 2º do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 diz que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Sua redação foi originalmente apresentada à Assembleia Constituinte pelo Professor Cançado Trindade, que afirma ter tido a intenção de incorporar direitos assegurados por tratados internacionais ao rol de direitos e garantias fundamentais listados pela Constituição. É, por isso,

crítico feroz do parágrafo 3º somado ao Artigo 5º pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que concedeu status de Emenda Constitucional a tratados de direitos humanos que seguissem tramitação específica no Congresso Nacional. Para ele, foi uma adição desnecessária que ainda gerou incertezas jurídicas, já que o novo parágrafo vai de encontro ao 2º, que não exigia tramitação diferenciada de tratados para que tivessem seus direitos incorporados àqueles garantidos pela Carta de 1988. O parágrafo 3º não deixa claro, ademais, a hierarquia de tratados aprovados anteriormente à aprovação da EC 45.

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absolutamente avesso à ideia de participar de Tribunais Internacionais. Na primeira gestão do Celso Amorim, como na do (Luiz Felipe) Lampreia, através de conversas minhas com os dois, o Itamaraty tomou a liderança para aceitar a competência contenciosa da Corte Interamericana, que foi histórico. Eu fui o primeiro brasileiro a presidir o plenário de um tribunal internacional, que dirigi por meia década. Nenhum brasileiro, nem vivo, nem morto, teve tanta experiência em magistratura internacional.

Quando a Corte Interamericana veio ao Brasil, em 2006, e teve uma sessão no STJ (Superior Tribunal de Justiça), a fala do Celso Amorim já indicava que, terminando meu período, eu seria o candidato natural para a CIJ. Antes eu já havia declinado pedidos. Eu sempre fui muito cauteloso em queimar etapas. Só fui apresentado como candidato após ter terminado o ciclo na Corte. A candidatura teve uma acolhida muito positiva no plano internacional. Aqui no Brasil, o tráfico de influência foi superado e a candidatura foi mantida. Um fato digno de registro foi que todos os países que condenei por violações de Direitos Humanos votaram no meu nome para a CIJ, o que seria impensável alguns anos atrás. No total foram 32 grupos nacionais que me apoiaram.

O senhor achou estranho esse debate dentro do Brasil?

Esse debate foi uma das coisas mais lamentáveis, uma das páginas mais negras de postulação para a Corte Internacional porque significou tráfico de influência de uma pessoa que integra o Poder Judicíário, que não pode, jamais, pedir emprego depois de lançada uma candidatura pelo Poder Executivo. Todo mundo se conhece no campo do Direito Internacional e isso foi condenado por todos.

O senhor entrou nesse debate?Eu pessoalmente nunca entrei nesse

debate, pois a minha candidatura já tinha sido oficializada nas Nações Unidas e todo o mundo jurista brasileiro já havia condenado o ocorrido.

O desfecho foi histórico, maior votação na Assembleia Geral. O senhor estava lá? Como foi receber essa dupla notícia?

Foi algo histórico. A Embaixadora Maria Luiza RibeiroViotti me chamou para me sentar com a delegação. Eu estava discretamente, como bom mineiro, sentado nas laterais. Me sentei com eles já como juiz eleito. Poucos dias antes, o Embaixador do Reino Unido falou com a Embaixadora. “I think our candidates will be elected. Your candidate has a very good chance to come close to ours, after ours and the French candidate. He’s just as good as ours.” (risos) Ele só não esperava que ia ficar na frente dos dois (risos). Então na primeira votação, saímos eu em primeiro, em segundo o inglês e, em terceiro, o francês.

Na hora em que eu estava saindo, tive uma grande surpresa. O Presidente da Assembleia Geral era um latino-americano, o Padre Miguel d’Escoto, antigo líder sandinista. Ele desceu e me deu um grande abraço, quase me beijou. Ele é engraçadíssimo, uma figura folclórica. Ele disse: “Estoy muy contento, quiero darte un abrazo en nombre de toda latinoamérica.”

O Brasil já teve juizes na CIJ, sem que eles tivessem experiência de Direito Internacional. É possível ser juiz sem essa experiência?

Muito difícil! É muito importante que a pessoa conheça o mundo do Direito Internacional, e eu estou dentro desse mundo há muitos anos. Eu creio que o mundo de Direito Internacional tem sua linguagem própria.

Então como foi entrar numa Corte Internacional pela primeira vez, na Corte Interamericana?

Nos meus primeiros anos na Corte Interamericana, não era o mesmo que na CIJ. A experiência e a lógica juntas é que ajudam a formar um bom critério, no momento de decidir. Nos primeiros casos, a gente sente uma necessidade especial de ajustar

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os fatos às normas. Mas depois de ter essa experiência, isso vem naturalmente.

Qual é a relevância de um juiz na CIJ para o povo brasileiro?

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça determina que os juízes devem representar os principais sistemas de pensamento jurídico, não seus países. Mas todo juiz é identificado com seus países de origem, para efeito da distribuição geográfica. Existem regras não escritas que fazem que, na atualidade, dois juízes sejam da América Latina. Então eu sempre vou ser identificado como um juiz brasileiro, mas eu sempre fui independente nas minhas decisões e creio que seja importante que o juiz o seja, para que as fundamente bem.

Qual a receita do seu sucesso?É aceitar a precariedade da condição

humana. Dar-se conta de que a gente não é tão importante quanto achava que era. Se nos damos conta disso, a gente se dissocia da própria vaidade e começa a seguir as ideias. As pessoas que se preocupam demais com o sucesso são as que mais rapidamente se esvaem. O melhor que a gente pode fazer é servir a certas ideias e causas com as quais a gente se identifica. É muito mais provável que se deixe uma mensagem que será lembrada.

O maior inimigo do ser humano é a vaidade. No mundo da Haia, há muita vaidade, mas eu quero me manter à parte de tudo isso, para dar minha contribuição sem esse tipo de preocupação. Quanto mais tarde nos dermos conta de que não somos tão importantes quanto pensávamos, pior. Espero ser capaz de resistir a todo esse charme da Haia. O que me interessa é resolver os casos.

A CIJ é um órgão da ONU, ligada a ela principalmente pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança. É um órgão político?

Não. Muita gente diz que a Corte é politizada, o que pode ser verdadeiro. Há uma visão segundo a qual os órgãos das Nações Unidas não podem se controlar mutuamente, o

que eu não compartilho. Se surgir oportunidade, eu terei condições para expressar o que eu penso. Hoje há o reconhecimento do primado do Direito Internacional.

Os cinco grandes têm juízes na CIJ, garantindo, desse modo, lugares em dois foros privilegiados: a Corte Internacional de Justiça e o Conselho de Segurança. O Brasil logra agora um lugar na CIJ. Há nisso alguma relação com a pretensão brasileira por um assento no Conselho de Segurança?

Dentro da psicologia das Nações Unidas, sim. É por isso que a minha eleição era uma prioridade para o Brasil e a próxima prioridade é o Conselho de Segurança. É o próximo passo do Itamaraty, por isso é que esse debate que se armou dentro no plano interno foi deletério, uma das páginas mais negras, de falta de visão de certas pessoas. Poderia ter causado um prejuízo enorme ao país.

A CIJ julga casos enviados pelo Conselho de Segurança e dá opiniões consultivas. Alguma decisão da corte pode influenciar o rumo das Nações Unidas?

Essa pergunta me foi feita em uma sabatina com um grupo africano da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) e uma com o CARICOM (Comunidade do Caribe), que citou o parecer do caso do muro de Jerusalém, para justificar a preocupação. Eu disse que a Corte tem de dizer qual é o direito, não apenas resolver uma questão jurídica. Se uma sentença não é acatada, o que a Corte deve fazer é informar claramente que não foi acatada na hora de apresentar seus relatórios anuais na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança. Muitas vezes o cumprimento de uma sentença não é imediato, mas ele vem.

O senhor vê a possibilidade de ser impedido ou atravancado em sua função por poderes ou razões políticas?

Não, mas é difícil especular sobre isso. Na minha experiência na Corte Interamericana,

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apresentados casos não mais pela cláusula facultativa (de jurisdição obrigatória), mas com base em cláusulas compromissórias, como, por exemplo, os casos latino-americanos. Há cinco no momento, e pode haver um sexto, em breve, invocando o Pacto de Bogotá e cláusulas compromissórias.

O que isso muda? Quando a base de jurisdição da Corte é uma cláusula compromissória, é melhor no sentido de não haver tanto debate quanto à sua base. A Corte não consumirá tanto tempo discutindo a jurisdição e poderá passar mais prontamente ao mérito. Acaba de

entrar na Corte um caso da Alemanha contra a Itália. A base da jurisdição foi um special agreement. Não haverá debate sobre questões jurisdicionais. Quanto mais casos houver desse tipo, melhor, pois se gasta menos tempo com questões de admissibilidade, o que foi fatal em alguns casos anteriores.

Diz-se que a Corte é reacionária. O que

o senhor acha da atuação da CIJ hoje?Eu acho que a Corte terá de reavaliar sua

maneira de ver os problemas que afetam a comunidade internacional. Ela tem se apegado muito às questões de forma e de procedimento. No que depender de mim, ela terá em mente a importância dos temas tratados.

Na Corte Interamericana, o senhor sustentava posicões controversas para a época, com vários votos dissidentes que, depois, se tornaram padrão. O senhor pretende fazer o mesmo na CIJ?

Eu pretendo chegar com bastante discrição, como bom mineiro, mas trabalhar com eficiência. Estou muito interessado em

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eu enfrentei com todo vigor tentativas nesse sentido e apliquei sanções que, depois de mim, não foram mais aplicadas. Apliquei no caso Fujimori e em Trinidad e Tobago. Eu prefiro pensar que isso não vai ocorrer, porque se nós não pudermos agir de acordo com a consciência dentro de um tribunal internacional, o trabalho não vale a pena.

Quais desafios o senhor prevê enfrentar na Corte?

É difícil especular. Pela primeira vez, a Corte tem na sua agenda casos que dizem respeito a toda a comunidade internacional.

Hoje em dia estão diante da Corte casos relativos ao uso da força, à proteção do meio ambiente, à liberdade de navegação, ao Direito Internacional Humanitário, ao Princípio da Não-Discriminação, ao reconhecimento de Estados, ou seja, há uma variedade de temas, o que nunca havia ocorrido antes. Por outro lado, pela primeira vez há casos levados à Corte que pertencem às diferentes regiões do sistema ONU: casos atinentes a Estados africanos, asiáticos, latino-americanos, europeus. É particularmente interessante ver isso e poder ingressar nesse momento.

De casos contenciosos, há um desenvolvimento recente muito interessante, de que, pela primeira vez, começam a ser

tenho sempre presente uma reflexão do machado de Assis, de que qualquer emoção privada vale mais que cem alegrias públicas.

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examinar de perto, com os meu pares, o regulamento da Corte. Começar por aí.

Que tipo de juiz está faltando na CIJ?Um juiz atento aos valores, atento

à importância dos temas que afetam a comunidade internacional, para a além da visão clássica estato-cêntrica.

O senhor vê alguma reação interna ou externa a essa atitude do senhor?

Eu estou preparado para isso, pois tenho refúgio da vida interior (risos).

Existe alguma injustiça na Corte Internacional de Justiça, quanto ao reconhecimento de questões fundamentais ou de personalidades que deveriam estar lá?

A CIJ tem se evadido sistematicamente do tratamento da questão das normas imperativas do direito internacional. Ela tem se referido vez por outra às obrigações erga omnes, mas as obrigações erga omnes são uma emanação das normas imperativas. Eu creio que aí existe um terreno fértil a percorrer no sentido de se pronunciar sobre essas normas, de construir um direito internacional que se imponha aos Estados, que não seja uma mera emanação da vontade de um ou de outro, mas em benefício de todos.

O senhor tem várias atividades paralelas: o Curso da Haia, o Rio Branco, a Universidade de Brasília.Como vão ficar essas atividades de agora em diante?

Vou continuar com todas elas. O Institut só se reúne a cada dois anos. O curatório da academia da Haia me permitirá continuar no mundo acadêmico, mesmo sendo juiz. Fiz um levantamento dos juízes da Corte que continuaram a atividade acadêmica enquanto eram juízes. Se alguém vier me dizer que não pode, vou mostrar a lista. Não há incompatibilidades. Isso me dá o privilégio de acompanhar a formação das novas gerações de internacionalistas de diversos países, especialmente latino-americanos.

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Já houve outros brasileiros na CIJ. O senhor se sente como herdeiro de alguma atuação passada?

Eu acho que é uma coisa muito pessoal. Sou diferente de todos os meus predecessores. A minha maneira de pensar é distinta, cada pessoa é uma pessoa.

Qual é a sua mensagem para quem está ingressando na carreira?

É um serviço, é um serviço que se presta aos demais. Não se deixem tomar pelas aparências do poder. Tenho sempre presente uma reflexão do Machado de Assis, de que qualquer emoção privada vale mais que cem alegrias públicas. É importante ter uma vida pessoal bem estruturada e a noção de servir a uma causa, de servir às ideias, de fazer o bem.

Agora uma última pergunta: a CIJ está preparada para o seu senso de humor?

Sou irreverente para poder viver no mundo irracional. Essa irreverência é uma maneira de manter a consciência viva da irracionalidade do mundo. Ao mesmo tempo em que sou irreverente, sou respeitoso com as pessoas, mas sou irreverente com a irracionalidade do mundo, para que as pessoas não se deixem tragar pelo poder. Essa irreverência é um instrumental para assegurar uma sobrevivência sadia. Na medida em que as pessoas compreendam isso, eu creio que elas compartilharão dessa minha preocupação. É uma irreverência em favor da consciência. (risos).

Amena martins Yassine (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, mestre pela London School of Economics and Political Science (LSE).filipe Abbott galvão sobreira lopes (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade McGill (Montreal).Pedro Veloso (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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chico, O POETa

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Ramiro Breitbach FOTOS DE laís de Souza Garcia

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Francisco Alvim é reconhecido como um dos maiores poetas

brasileiros vivos. Desde a estreia com O Sol dos cegos (1968) até o mais

recente livro de poemas inéditos, Elefante (2000), Alvim vem desenvolvendo

um percurso poético rico e variado, agradando, a um só tempo, à crítica

de matriz acadêmica e artistas ligados à chamada poesia marginal, como

Cacaso, Waly Salomão, Chacal e Zuca Sardan com quem desenvolveu

fecunda colaboração.

Além da faceta poética, Francisco Alvim é diplomata de carreira

(aposentou-se em outubro de 2008), inserindo-se (embora sem que ele se

ache merecedor disso), numa galeria de grandes nomes a conciliar as duas

atividades, como Raul Bopp, Vinicius de Moraes e João Cabral de Mello

Neto .

Esbanjando alegria e generosidade, Francisco Alvim recebeu a Juca

em sua casa em Brasília para uma conversa franca e instigante sobre poesia,

diplomacia e suas experiências de vida.

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Embora nascido em Minas, as primeiras lembranças de Francisco Alvim são do Rio de Janeiro. Seu pai fora prefeito de Araxá, onde Alvim nasceu, mas já se transferira com a família para o Rio antes de o filho completar dois anos. Apesar de não ter sempre vivido em Minas, Alvim diz que, com a família mineira de ambos os lados, fica “aquela música, aquela prosódia na fala”.

“Até os 11, 12 anos, eu gostava de brincadeira, bola, e gostava de batucar no violão de minha irmã, batucar mesmo, não mexia com as cordas, o que me interessava era o batuque na caixa”. O contato com a poesia veio um pouco mais tarde, através dessa mesma irmã, Maria Ângela, já falecida, 11 anos mais velha, que Alvim venera. Maria Ângela publicara um livro de poemas. “Superfície”, que, por essa época, já começara a fazer a cabeça do irmão. “Ângela ganhara uma agendinha muito bonita de uma empresa alemã. Um dia, eu a furtei e ela ficou procurando pela casa inteira.” Quando descobriu que o jovem Francisco tinha pego a agenda e nela garatujado os seus primeiros versos, em vez de brigar, deu-lhe a agenda de presente e passou a incentivá-lo. “Foi o meu primeiro furto ligado à poesia. Houve outros depois, de natureza diversa, quem sabe mais censuráveis, que foram igualmente premiados, pois não me lembro de nenhuma vítima, ou alguém por ela, que os tenha denunciado. Salvo uma vez: meu irmão caçula Fausto, extremamente precoce, que já se iniciara em Machado, descobriu que não eram de minha lavra uns trechos do Quincas Borba que eu assumira como versos meus. Fui exposto à execração de meus leitores, nessa época, felizmente, apenas meus pais e irmãos. Um vexame. Passei vergonha”.

Maria Ângela deu-lhe um segundo presente, o exemplar da primeira edição das obras completas de Jorge de Lima, que a ela fora oferecido e autografado pelo autor, o qual Alvim leu e releu fascinado, sobretudo o “Livro de sonetos”. Recitou de memória (“eu que a tenho péssima...”) um deles: A torre de marfim, a torre alada... O contato com a poesia de Carlos Drummond, em meados dos anos 50, já rapaz, foi uma revelação para Francisco Alvim. “Só lamento que Drummond tenha dado, com seu realismo, uma rasteira

em Jorge de Lima, na poesia visionária deste. Trocar de poeta é como trocar de universo”.

Por volta dessa época, Francisco começou a se interessar, também, pelo estudo de línguas estrangeiras, motivado pela atração crescente pela literatura. Começou a pensar numa profissão (“porque precisava de uma”) e achou que o Itamaraty era uma carreira que não devia maltratar aspirantes a literato (“pois ali estavam, por exemplo, João Cabral e Guimarães Rosa”). Além do mais, considerava a diplomacia uma profissão “charmosa”, que lhe permitiria viajar pelo mundo e ter uma vida confortável.

Em 1963, Alvim, 24 anos, passou no concurso para ingresso no Instituto Rio Branco. Já mais maduro, foi capaz de enxergar a profissão sob novos ângulos de interesse. Sua geração passava por um processo de politização crescente, resultante dos confrontos políticos e ideológicos do período, e o jovem aspirante empolgou-se com os rumos da Política Externa Independente do Governo Jânio Quadros. Porém, a política externa, como tudo o mais no país, seria logo profundamente alterada em sua trajetória pelos rumos da história. Após o golpe de 1964, Alvim afirma que “o trabalho no Itamaraty ganhou uma dimensão ideológica muito forte, justamente quando comecei a trabalhar”.

Em 1968, publicou Sol dos cegos, seu primeiro livro de poesia, em edição do autor, como seriam todas suas obras até o quarto livro, Lago, montanha, no início dos anos 1980. A gênese de Sol dos cegos foi complicada em mais de um sentido: o proprietário português da gráfica contratada para a impressão do livro, acostumado a trabalhar para uma freguesia de freiras, hesitava em fazer o serviço porque o longo poema “Paralaxe” continha os seguintes versos:

Puxa o gogo o pedagogocusporeja a grande perdaNão deviam consentiré mesmo um país de merda

“O senhor está a chamar vosso país de ‘merda’? Não posso imprimir isso”, argumentava o tipógrafo, talvez preocupado com o conteúdo político de um verso assim,

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às vésperas dos anos de chumbo. Alvim disse que compreendia as razões (“e, tanto quanto o português, eu estivesse preocupado ...”) mas que não concordaria em alterar ou retirar o verso, portanto, que ele não se preocupasse, pois recolhia o livro. O proprietário então propôs consultar um intelectual de expressão, afinado com a ideologia do período e a quem recorria quando se defrontava com situações semelhantes (que se amiudavam...); dependendo do que o personagem achasse, o livro seria impresso. Alvim assentiu. O parecer foi algo como: “A poesia é meio ruinzinha, mas hoje está todo mundo escrevendo desse jeito mesmo”, e o livro foi publicado, saindo diretamente da gráfica para um armário na casa da sogra de Alvim, que havia, entrementes, sido removido para seu primeiro posto no exterior. Armário espaçoso, pois nele couberam os quase mil exemplares da edição, que custou mil cruzeiros, um cruzeiro por exemplar.

Em outubro de 68, às vésperas do AI-5, Francisco Alvim partiu para Paris, para servir

como Secretário na delegação brasileira junto à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Em Paris, encontrou o diplomata e pensador José Guilherme Merquior, que trabalhava na Embaixada. Merquior gostou muito de Sol dos cegos e acabou publicando um artigo elogioso sobre o livro. A partir daí, a reputação de Alvim como poeta começou a se firmar, e ele recebeu um poema manuscrito de Carlos Drummond elogiando sua primeira publicação. “Um poema curto, de circunstância – um gesto de agradecimento pelo exemplar que eu lhe enviara; que ia, contudo, bastante além para mim, pois na realidade era uma apreciação crítica na qual apontava o que talvez seja a pulsão central de minha poesia, já para ele, tão evidente naquele meu primeiro livro”.

licença do Itamaraty e a patotaDe volta ao Brasil em 1971, tirou licença

do Itamaraty (o clima político da época

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talvez tenha contribuído para essa decisão) e trabalhou alguns anos na Livraria José Olympio, no Rio de Janeiro, então uma das maiores editoras do país. O passado da editora, que foi a grande casa do período áureo de nossa literatura, a editora de Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, João Cabral e tantos outros, ainda reverbera em seu presente. Pela editora, transitavam os nossos grandes escritores, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Murilo Mendes, estes dois últimos em suas passagens pelo Brasil; além de escritores já consagrados de gerações posteriores, como Dalton Trevisan e Hilda Hilst.

Paralelamente, Clara, mulher de Francisco, lecionava literatura brasileira no Departamento de Letras da PUC - Rio, o que permitiu a Alvim tomar contato com toda uma nova geração de poetas, como Cacaso, de quem se tornou um grande amigo, Ana Cristina Cesar, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua, entre outros. Alvim relembra com carinho a amizade que unia a todos e o clima criativo dessa época:

“Era uma época muito dura (em função da ditadura), mas quanto mais difícil era, mais dava vontade de escrever, de viver... E de um convívio muito intenso entre artistas em geral e gente que se interessava pelas artes”. Desse ambiente resultou a coleção Frenesi, editada por iniciativa de Cacaso, de maneira quase artesanal, de que Alvim fez parte com seu livro Passatempo (1974), em companhia de Cacaso, João Carlos Pádua, Geraldo Carneiro e Roberto Schwarz. Na mesma época, aparecia o grupo de poetas Nuvem Cigana, que buscava resgatar o elemento cênico na representação poética, e o grupo de teatro Asdrúbal trouxe o trombone, que Alvim recorda como “um estouro” quando do seu surgimento, com a encenação que fizeram do Capote, de Gogol.

Talvez o único traço em comum dos artistas que produziam no contexto que ficou conhecido como “poesia marginal” seja a busca livre da experimentação, numa espécie de retomada dos ideais do modernismo dos anos 20. Francisco Alvim também reconhece a importância da matriz da poesia concreta

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na produção da época, mas entende que “a geração dos anos 70 não comungava com os concretos. Eles tinham essa característica de uma crença exarcebada na materialidade da linguagem, além de um espírito muito combativo. Isso acabava por excluir muitos aspectos importantes da poesia, era algo muito programático, e essa geração [anos 1970] surge, em alguma medida, em oposição ao dogmatismo da poesia concreta.”

Como sua produção não saía pelas grandes editoras, mas por iniciativa de grupos que se formavam, os poetas desses círculos acabaram por desenvolver, segundo Alvim “aquela camaradagem, que a gente adorava. A gente não queria saber de outra coisa que aquela patota. Todo mundo fala mal de igrejinha [panelinha, em algumas regiões do Brasil], mas igrejinha é a melhor coisa do mundo. Tem que ser gente próxima, gente que você gosta”.

Desse contexto de efervescência criativa, surgiria também um marco da poesia brasileira contemporânea: a coletânea 26 poetas hoje, editada por Heloisa Buarque de Hollanda, da qual Alvim participou, juntamente com Roberto Schwarz, Roberto Piva, Capinam, Cacaso, Torquato Neto, Waly Salomão, os também diplomatas Vera Pedrosa e Zuca Sardan, entre outros. Francisco Alvim credita a publicação à persistência da editora: “Heloisa tem uma capacidade impressionante de trabalho. E o mais importante: de perceber sob o aparente marasmo, as camadas pulsantes que seguem por debaixo. Antena fabulosa, desbravadora, que não pára de vibrar e captar. Alguém que se interessa pelo nervo das coisas culturais, tempos atrás como agora, deve acompanhá-la no que anda fazendo”.

O livro teve grande repercussão quando do seu lançamento, com farta cobertura de imprensa, nem sempre favorável. Mas nem a crítica mais contundente, pelo próprio teor de contundência, deixava de expor um elemento altamente perturbador da antologia, “o de chamar a atenção para uma produção poética cujo sentido não se limitava ao plano exclusivamente literário, mas ia além, ao conseguir dar expressão artística a todo um momento extremamente significativo da vida nacional e assim interagir efetivamente com

ela. Havia muita coisa de qualidade duvidosa nessa produção, o que ensejou naturalmente muita paulada justificada. Mas para o público leitor de poesia jovem e menos jovem ofereceu, sem sombra de dúvida, a oportunidade de tomar conhecimento de um vasto território ainda desconhecido de enorme interesse, que se formou num período que a voz corrente assinalava como de marasmo na literatura”.

Em seguida, em 1978, já de volta ao Itamaraty e estabelecido em Brasília, Alvim publicou, ainda de seu próprio bolso e na coleção marginal, por isso mesmo chamada “Mão no bolso”, Dia sim dia não, em parceria com Eudoro Augusto; em 1981, saíram mais dois livros, por outra coleção marginal - a “Capricho”: Festa e Lago, montanha. O momento da publicação por uma grande editora chegou nesse mesmo ano de 1981, provocado por um artigo da revista Veja: a editora Brasiliense reuniu os livros de Alvim, salvo Dia sim dia não, sob o título de Passatempo e outros poemas.

Com mais de quarenta anos desde a publicação do primeiro livro, a obra poética de Francisco Alvim, que já lhe valeu dois Prêmios Jabutis e o Paula Brito, coube num único volume relativamente reduzido1. Sobre a concisão de sua obra, o poeta diz que “não escrevo de uma maneira intencional, programada. Sou dos que acreditam em inspiração. Somente quando estou trabalhando em um livro, tento manter uma rotina de mão-de-obra, de dedicação. Por outro lado, o Itamaraty me tomou muito tempo. Minha obra é curta, meus poemas são curtos, porque meu tempo era curto”. Sobre o novo momento de sua trajetória, após a aposentadoria do Itamaraty, Alvim evita fazer grandes previsões: “Não sei, é um novo período de minha vida, de conteúdo muito especial, que extrapola de muito o plano do trabalho literário, vamos ver como me comporto”.

Referências Ao avaliar o movimento modernista

brasileiro, com o qual se acha profundamente identificado, a ponto de se considerar um “modernista tardio”, Alvim referiu-se aos

1 ALVIM, Francisco. Poemas (1968-2000). São Paulo/ Rio de Janeiro , CosacNaify/ 7 Letras, 2004

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_perfil

poetas que mais admira: “Drummond, em primeiro lugar, pelo lugar que a experiência pessoal tem em sua poesia, pelo corpo a corpo que mantém com a realidade e com a vida; Jorge de Lima, pelos jogos de sombra nas paredes da caverna; Murilo, pelo que há de aéreo, de leveza e de humor em toda luz, pneuma do mundo: é pelo olho que o homem respira; João Cabral, pelo batuque dissonante do verso de uma polegada, que palmilha cada centímetro desta terra, nele incutindo toneladas de emoção que pretende escamotear e que nos chega redobrada; Manuel, pelas assonâncias de um espírito clássico; Oswald, pela paulista jaula sem grades, por onde apontam o uirapuru e o cobra norato”.

Sobre seu próprio processo de composição, Alvim afirma que o senso de construção do poema só veio mais tarde em seu percurso poético. “Era muito mais uma reação como que epidérmica a uma emoção. Só mais tarde é qua essa epiderme foi desenvolvendo e fortalecendo os elementos intelectivos, de

construção, os quais, contudo, nem por isso estavam fora dela. Minha aspiração máxima, até onde percebo, não se alterou: é sempre a mesma, a de despertar nos outros a emoção que sempre tive ao ler um poema”.

Sobre a “vida dupla” de poeta e diplomata, Alvim confessa não se sentir em condições de ser juiz em causa própria. Reconhece que um diplomata tem de ter certas faculdades: alguma frieza de percepção (“sem virar uma geladeira...”), “certo distanciamento, acuidade, precisão, capacidade de articulação, raciocínio rápido e preciso”. Além disso, “o diplomata deve dominar a linguagem, a postura, até mesmo a postura física e o espaço. Você precisa ter controle da situação, saber onde está pisando e, sobretudo, quem, ou o quê, manda no pedaço. Não é essa certamente a coreografia de um poeta e a ideia de que dele o vulgo faz. E o vulgo tem razão”.

ramiro Breitbach (turma 2008-2010 do IRBr) é licenciado em Letras (Português e Francês) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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esPeciAlmunDolusófono

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_especial

Embaixador Francisco alvim

como andavam as relações com Portugal, à época em que a

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) se constituía? Na

verdade, o período era marcado por muitas e graves dificuldades entre

os dois países.

O presidente Itamar Franco certamente tomara em consideração esse

fato, ao deslocar José Aparecido de Oliveira (num primeiro momento, ele

fora nomeado Chanceler) para a chefia de nossa representação em Lisboa.

Tratava-se de indicação muito especial, uma vez que recaíra sobre eminente

político brasileiro, com notável folha de serviços prestada ao país e que,

ademais, desfrutava da amizade e da confiança do Presidente.

EMBaIxaDOR jOSé aPaREcIDO: in memoria

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b_especial

Aeroporto de Lisboa com o propósito de reforçar a atuação de nosso Cônsul. Nessas ocasiões, dentro do clima reinante, a reação das autoridades policiais portuguesas era a que se podia prever, mas isso não alterava a disposição de nosso Embaixador.

Nessa conjuntura especialmente delicada das relações, o projeto da CPLP terá surgido, na mente de José Aparecido de Oliveira, como fórmula redentora: o núcleo irradiador de uma agenda positiva entre Brasil e Portugal. O projeto vingou e, em retrospectiva, pode-se pensar que não poderia ser de outro modo. No entanto, não faltaram obstáculos e tropeços. Isso para não falar de acirradas resistências, a começar pelo fato de que o Governo conservador do Primeiro Ministro Cavaco Silva tendia a considerar a iniciativa brasileira como uma interferência indébita numa área de influência portuguesa.

Um episódio circunstancial mostra bem as dificuldades com que se defrontava o nosso Embaixador no exercício de suas atividades, bem como o modo bastante singular – e eficaz – de que se valia para superá-las. No cumprimento de uma gestão oficial, José Aparecido procurou falar por telefone com um Ministro do Gabinete português. Depois de sucessivas e infrutíferas tentativas, o Embaixador acabou por dizer ao intermediário que o atendia: caso não recebesse do Ministro uma resposta em dez minutos, iria apresentar seu pedido de demissão do cargo de Embaixador do Brasil; só que não o faria ao Presidente Itamar Franco, mas ao Presidente Mário Soares. O fato é que – depois disso – o reticente Ministro português respondeu à chamada telefônica dentro do prazo concedido.

Se assim era no dia a dia, Aparecido contava – em compensação – com alguns

Dentre as dificuldades que tolhiam o relacionamento entre Brasil e Portugal, sobressaía a questão dos dentistas, envolvendo a regularização da situação trabalhista desses profissionais brasileiros que emigraram para Portugal sob o amparo do Acordo Cultural firmado entre os dois países. A questão alcançou ampla repercussão junto à opinião pública de Portugal e do Brasil, que acompanhava, com alto teor emocional, a evolução de um processo de negociação caracterizado por impasses. De um lado, os brasileiros interpretavam a intransigência portuguesa como violadora da letra do Acordo: sentiam-se atingidos pela falta de reciprocidade com respeito à postura acolhedora que o Brasil sempre manteve em relação ao imigrante português. Do outro lado, parecia aos portugueses que faltava aos brasileiros sensibilidade para as questões derivadas do tamanho reduzido do mercado de trabalho no setor, em Portugal, que não permitiria, sem prejuízo para o profissional português, a prevalência das regras previstas no histórico Acordo.

Para ilustrar a tensão existente, basta lembrar que o então Presidente Mário Soares – no texto que fez divulgar por ocasião de homenagem prestada ao falecido Embaixador José Aparecido de Oliveira – chegou a reconhecer que “a crise dos dentistas brasileiros ameaçou pôr em causa as relações diplomáticas luso-brasileiras”.

Havia ainda, naquele período, os frequentes incidentes com brasileiros que chegavam a Portugal e eram impedidos de ingressar no país, sob diferentes pretextos. Esses incidentes exasperavam o Embaixador Aparecido de Oliveira, que não relutava em se expor pessoalmente na tentativa de oferecer proteção aos brasileiros vítimas daquela situação, não hesitando em comparecer ao

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baliados poderosos em seus incansáveis esforços para criar a Comunidade. Em primeiro lugar, tinha o total apoio do Presidente Itamar Franco e de seu Chanceler, o Embaixador Celso Amorim, que em várias oportunidades se deslocou a Lisboa para tratar do tema. Paralelamente, o Presidente Mário Soares era comprovado amigo do Brasil e amigo pessoal de José Aparecido. Para ilustrar as afinidades existentes entre os dois, basta mencionar a inauguração conjunta que fizeram, nos jardins da Embaixada, de um busto de Tiradentes, de autoria de Bruno Giorgi: o simbolismo do gesto ganhava maior relevo naquele momento particular do diálogo luso-brasileiro. Finalmente, a favor de Aparecido jogava o dado objetivo – por assim dizer estrutural – da vertente atlântica da própria política externa de Portugal. Nesse contexto, Mário Soares seria uma peça-chave: como estadista que era, sempre se mostrou sensível aos vínculos históricos de Lisboa com os países convidados a participar da Comunidade. O Embaixador soube valer-se dessa realidade política, de enorme ressonância no corpo social português.

h De 1993 a 1995, acompanhei de

perto a criação da CPLP, em companhia do Embaixador Fernando Reis, então Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos, de quem fui chefe de gabinete. Em Lisboa, pude testemunhar o ânimo vigoroso, sem desfalecimentos, com que José Aparecido, embora já a essa época bastante fragilizado em sua saúde, se entregou à tarefa de constituição da Comunidade. A iniciativa despertou uma energia prodigiosa entre os países envolvidos, a que Aparecido respondeu com energia igual, fazendo com

que essa corrente resultasse em ações que fortalecessem o propósito de constituição da Comunidade.

Tornou-se um viajante contumaz entre as sete capitais, com vistas inclusive a sensibilizar as sociedades locais e a mobilizá-las para o projeto da CPLP. Para Aparecido, era mais do que uma campanha diplomática – era uma cruzada cívica em nome da língua-mãe. Ele se desdobrava na promoção de seminários nas mais diferentes áreas, envolvendo universidades e instituições científicas e técnicas; também no setor privado, com vistas à exploração de oportunidades para um melhor entrosamento da economia e do comércio desses países; ou, voltando à esfera de atuação governamental, na realização de missões de cooperação, inclusive com a participação de terceiros países. O âmbito da cultura mereceu especial atenção por parte de Aparecido, que de forma entusiástica promoveu encontros de intelectuais, escritores e artistas, incentivando, além do mais a realização de um sem número de eventos nessa área.

Com tudo isso, o Embaixador em Lisboa não descuidou do aspecto propriamente diplomático da operação: articulou sucessivas reuniões entre os diferentes segmentos dos Governos dos sete países para negociar a institucionalização da entidade. Sua atuação chegou a alcançar o campo da política externa multilateral, tendo contribuído para a criação de uma instância informal de consulta reunindo os países envolvidos nos foros multilaterais internacionais.

O fato é que a sede da nossa missão diplomática em Portugal logo se tornou um centro de convergência para todos os que estivessem vinculados à causa da CPLP, em maior ou menor grau. A residência, mais que a chancelaria, atraía as iniciativas. Todos nos

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O Embaixador José Aparecido foi um homem público de ideias e de ação. Secretário particular de Jânio Quadros, parlamentar de vibrante atuação, governador do Distrito Federal, Ministro da Cultura do Governo Sarney, mentor intelectual da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o legado de José Aparecido ultrapassou os domínios da política e da cultura nacionais e estendeu-se a todos os povos lusófonos.

Em várias ocasiões pude testemunhar a dimensão do seu prestígio e sua capacidade de traduzir iniciativas em ação política. Cito aqui duas delas: o pioneiro encontro entre os Ministros da Cultura dos países da América Latina e Caribe, que teve lugar em Brasília, em 1989, que vejo como um remoto, mas promissor, embrião da Cúpula da América Latina e do Caribe (CALC), realizada em dezembro de 2008, na Costa do Sauípe, por iniciativa do Presidente Lula; e a primeira cúpula de Chefes de Estado e de Governo dos países lusófonos, também em 1989, e que teve lugar em São Luís do Maranhão, a convite do Presidente José Sarney, da qual resultou o Instituto Internacional de Língua Portuguesa. Como Embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido batalhou tenazmente para viabilizar a criação de uma comunidade de países lusófonos, o que viria a acontecer, finalmente, em 1996. A união dos povos de língua portuguesa deve-se, em grande medida, à visão política deste mineiro de Conceição do Mato Dentro.

Minha própria indicação a Ministro das Relações Exteriores do Governo Itamar Franco teve, de certa forma, a assinatura do Embaixador José Aparecido, que, por motivo de doença, não pôde assumir o cargo. Foi uma imensa satisfação profissional ter trabalhado com o Zé Aparecido e ter contribuído para a realização de algumas de suas iniciativas. É também razão de verdadeiro orgulho ter tido um relacionamento tão próximo com este brasileiro patriótico e idealista, que será sempre lembrado como o “Zé de todos os amigos”.

Celso AmorimMinistro das Relações Exteriores

Depoimento

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tornamos cativos da acolhida carinhosa que nos fazia a Embaixatriz Leonor Aparecido de Oliveira, que ali soube criar, em volta das atividades do marido, um ambiente de bem estar, descontraído e alegre. Ali se reuniam os Embaixadores brasileiros nos países da futura Comunidade, convocados para reuniões periódicas em Lisboa. Foram muitas também as ocasiões sociais organizada pelo casal, com a presença de autoridades de governo, personalidades, artistas e intelectuais dos sete países. Nessas oportunidades, Aparecido atuava como uma espécie de diretor de cena de quadros vivos, como se já estivesse compondo o álbum de fotos e de memórias da nascente irmandade. O entusiasmo do Embaixador era contagiante.

h

Em 17 de julho de 1996 reuniu-se em Lisboa a Cimeira de Chefes de Estado de que resultou a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, integrada por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Portugal. José Aparecido de Oliveira já tinha deixado de ser nosso Embaixador em Portugal. Nem por isso lhe faltou o reconhecimento pelo legado extraordinário que deixara – a CPLP plenamente constituída. Mas a obra ainda não estava completa. Em 2002, com a independência de Timor-Leste, o novo Estado asiático tornou-se o oitavo membro da Comunidade de língua portuguesa. Esse era um desejo sempre acalentado por Aparecido, que trabalhou para tanto - com a clarividência que lhe era própria - antes mesmo da independência daquele país.

Por seu sentido de missão, Aparecido encantava a quem dele se aproximava. Que o diga Durão Barroso, então Ministro dos

Negócios Estrangeiros de Portugal. Nas vezes em que estive presente em reuniões entre os dois, notei uma curiosa sensação de prazer que pareciam retirar do árduo trabalho que junto executavam. Não havia tensão entre eles, o que tornava o ambiente de trabalho sempre descontraído e bem humorado. Não sei se erro em dizer que havia uma curiosidade de um pelo outro, uma simpatia; no fundo, dois personagens políticos com biografias pouco convencionais, donos de inteligências políticas fortes e originais e que, ademais, pareciam compartilhar a mesma consciência da natureza poderosa e singular das relações que unem Brasil e Portugal.

Lembro-me de uma reunião particularmente difícil: o Embaixador foi à Chancelaria portuguesa para comunicar formalmente o intempestivo cancelamento da visita oficial – há muito programada – do Presidente Itamar Franco. Não era a primeira vez que isso acontecia e representava um desgaste político no meticuloso processo de construção da Comunidade. Naquele dia, como era natural, José Aparecido se sentia frustrado e não escondia seu abatimento. Creio que o Chanceler português viu nisso a sincera dedicação do homem público. Solidário com seu interlocutor, Durão Barroso reagiu com perfeita elegância e tato diplomático.

Depois do encontro, de volta à Embaixada, Aparecido adotou uma postura que dá bem a medida de seu temperamento: não se recolheu. Convocou todos os funcionários e relatou a reunião na Chancelaria e a decisão do Presidente Itamar de não realizar a visita prevista. Ele concluiu suas palavras com um toque de humor, entre amargo e irônico: “É, às vezes os fatos se recusam a acontecer”. Talvez a frase não fosse de sua autoria, mas vinha bem a propósito.

“às vezes os fatos se recusam a acontecer”

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O BRaSIl E OS ESFORçOS PEla SuSTENTaBIlIDaDE Da PaZ EM

Marina Moreira costaMelina Espeschit MaiaFOTOS DE Miguel Girão de Sousa

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O engajamento da comunidade internacional

em Guiné-Bissau, um dos países de menor

desenvolvimento relativo do mundo, não tem

impedido que sucessivas ondas de instabilidade

interna dificultem o desenvolvimento do país,

desestabilizem a região e impulsionem o tráfico

internacional de drogas. Desde 2007, a situação

em Guiné-Bissau está na agenda da recém-

criada Comissão para a Consolidação da

Paz (CCP), cuja configuração específica

para Guiné-Bissau encontra-se sob a

coordenação do Brasil.

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_especial

Guiné-Bissau: um país fadado à instabilidade?

O assassinato do Presidente João Bernardo Nino Vieira, em março de 2009, é só mais um capítulo da turbulenta história de Guiné-Bissau, marcada por constante instabilidade política desde 1974, quando o país conquistou a independência de Portugal. A ausência de um aparato estatal estável afeta a capacidade do país de reagir a uma conjuntura interna caracterizada pela estagnação econômica, altos índices de desemprego, pobreza extrema, falta de intra-estrutura adequada e avanço do tráfico de drogas. As disputas internas e a instabilidade política são influenciadas pelo contexto regional dos países da África Ocidental, caracterizado por conflitos entre forças rebeldes e governamentais, e pela existência no país de setor mailitar de perfil intervencionista em número desproporcional à população civil.

A história recente do engajamento da comunidade internacional em Guiné-Bissau tem início em 1998, com a guerra civil desencadeada pela demissão do então Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Assumane Mané. O afastamento do General foi resultado de acusações de contrabando de armas para rebeldes senegaleses da região fronteiriça de Casamança. Na ocasião, tropas do Senegal e de Guiné atuaram no conflito ao lado do Presidente Nino Vieira, como parte de acordos bilaterais de cooperação em matéria de segurança e defesa. Esse tipo de ingerência era recorrente nos conflitos da África Ocidental e denota a influência dos países francófonos em Guiné-Bissau naquele momento.

Um novo revés no processo de estabilização foi provocado pelo Golpe de Estado de 1999, liderado pelo General Mané contra o Presidente Vieira, que buscou

exílio em Portugal. Dessa vez, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) estabeleceu, por força da resolução 1233 (1999), o Escritório das Nações Unidas de Apoio à Consolidação da Paz em Guiné-Bissau (UNOGBIS), missão política responsável pela coordenação dos esforços de reconstrução após os conflitos civis.

A atuação da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi crucial para a cessação de hostilidades. A CEDEAO enviou, a pedido do Presidente Vieira, a Força de Interposição da ECOMOG (Economic Community of West African States Monitoring Group). A CPLP atuou de modo ativo para o término dos conflitos ao promover a assinatura do Acordo de Abuja, entre o Governo e a

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O ex-Presidente Nino Viera chegou ao poder pela primeira vez em 1980, por meio de golpe militar, contra Luís Cabral, herói da independência e fundador do principal partido do país, o PAIGC - Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. O golpe de Estado provocou a separação do PAIGC de Guiné-Bissau e Cabo Verde.

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Auto-Proclamada Junta Militar. A atuação da CPLP na estabilização de Guiné-Bissau foi reconhecida como o primeiro grande feito da então recém-criada Organização.

Em 2000, o Partido da Renovação Social (PRS) conquistou as eleições presidenciais, mas o mandato do presidente Koumba Yalá não chegou ao fim devido a novo

golpe militar em 2003. Mais uma vez, a coordenação diplomática entre CPLP e CEDEAO foi responsável pela assinatura da Carta de Transição Política, que estabeleceu a organização do Estado até a realização de eleições.

Uma nova sublevação militar, em 2004, deu início à trajetória de assassinatos de

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local de votação: eleições presidenciais

em julho de 2009

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preceitos constitucionais, com a morte ou afastamento do Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional Popular assume o cargo de Presidente interino, até a realização de eleições presidenciais antecipadas.

Em julho de 2009, Malan Bacai, do PAIGC, foi eleito no segundo turno com 63,3% dos votos válidos, regularizando o quadro jurídico-institucional. Contudo, a debilidade institucional do país, em particular no tocante ao papel das forças de segurança, torna premente a necessidade de envolvimento da comunidade

internacional para a superação dos problemas estruturais de Guiné-Bissau.

Como a instabilidade política é reflexo, principalmente, do distanciamento crescente entre os anseios das forças armadas e as aspirações da população civil, a reforma do setor de segurança afigura-se como peça-chave no processo de consolidação da paz. Em abril de 2009, o governo de Cabo Verde, juntamente com a CPLP, a CEDEAO e a UNOGBIS, sediou mesa redonda sobre o tema. A preferência por realizar evento em outro país lusófono (o Senegal também havia proposto sediar conferência internacional sobre Guiné-Bissau), é sinal da importância crescente da lusofonia como elemento de concertação política, capaz de influir nos processos de consolidação da paz .

a comissão para a consolidação da Paz: solução pós-conflito?

À época da criação da Organização das Nações Unidas, certamente não era previsível que o CSNU fosse envolver-se cada vez mais em processos de manutenção da paz em países de todas as regiões do

dirigentes de alto nível, com o atentado contra o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Veríssimo Correia Seabra, substituído pelo General Tagme Na Waie (que também seria assassinado, em março de 2009). No ano seguinte, eleições presidenciais conferiram vitória

ao Presidente Nino Vieira, que já havia presidido o país de 1980 a 1998. Seu governo foi caracterizado por sucessivas tentativas de golpes, uma tentativa de assassinato e eleições legislativas bem-sucedidas, realizadas em novembro de 2008. Essas eleições contaram com o apoio de missões de observação eleitoral da CPLP, da União Africana (UA), da CEDEAO, da União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA) e da União Europeia (UE), o que demonstra a importância conferida às eleições para a consecução de estabilidade no país. O Brasil também enviou auxílio técnico e financeiro para a realização das eleições.

Os assassinatos, no primeiro semestre de 2009, do Presidente Nino Vieira, do Chefe de Estado-Maior, Tagme Na Waie, do ex-Ministro da Defesa, Helder Proença e do candidato às eleições presidenciais, Baciro Dabó, lançam dúvidas sobre a eficácia dos projetos de estabilização em curso no país. Por não configurarem golpes de Estado, os magnicídios não levam ao afastamento do país da União Africana (como nos casos de Guiné e Madagascar, excluídos em 2008) ou a mudanças significativas nas ações das Nações Unidas. De acordo com os

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o Brasil conjuga o diferencial linguístico com o aporte de um modelo de cooperação sul-sul que tem se mostrado efetivo em diversas partes do globo.

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mundo. Principalmente, não se esperava que casos de conflitos civis e internos, com causas profundas muito mais complexas que disputas territoriais entre Estados soberanos, dominariam a agenda do órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais. O CSNU teria agora que ocupar-se da árdua tarefa de manter a paz e garantir sua sustentabilidade nos Estados emergentes de conflitos.

As próprias operações de manutenção da paz, que se tornaram o grande empreendimento da Organização após os anos de 1960, foram criadas a partir de uma lacuna na Carta das Nações Unidas, ou o Capítulo “VI e 1/2”, como dizia o então Secretário-Geral da Organização, Dag Hammarskjöld (1953-1961). Uma vez

instauradas, prolongavam-se por muitos anos (como ainda ocorre no Chipre, Saara Ocidental e Líbano, entre outros), com os países contribuintes de tropas forçando sua retirada, e a ONU encontrando grandes dificuldades para deixar regiões em risco de conflito iminente. O que fazer a partir daí?

Já no processo de “repensar” ou “reformar” as Nações Unidas, o então Secretário-Geral Boutros-Ghali (1992-1997) apresentou, em 1992, em seu

relatório “Uma Agenda para a Paz”, o conceito de “consolidação da paz pós-conflito”, conjugando os conceitos de operações de manutenção da paz e de consolidação da paz. Surgiu daí um conceito emanado da necessidade de preencher a lacuna existente no sistema ONU entre a manutenção da paz e a auto-suficiência de governos nacionais em manter a estabilidade interna.

Em 2000, o entendimento de que era necessário suprir prontamente essa lacuna ganhou impulso com o Relatório Brahimi, que resultou das reuniões do Grupo de Alto Nível formado pelo então Secretário-Geral Kofi Annan (1997-2007) para discutir questões na área de operações de paz. O Relatório suscitou a proposta de estabelecimento de “capacidade institucional permanente nas Nações Unidas para a consolidação pós-conflito”. Em 2004, um novo relatório, o do “Painel de Alto Nível”, também reunido por Kofi Annan, em 2003, lançou a ideia de criação da Comissão para a Consolidação da Paz (CCP).

O passo seguinte na criação da CCP veio com a publicação do relatório “Por uma Liberdade Mais Ampla: Desenvolvimento, Segurança e Direitos Humanos para Todos”, em 2005, em que Kofi Annan expressou diretamente a recomendação de criação de órgão para suprir a lacuna institucional decorrente da falta de tratamento consistente das Nações Unidas aos países recém-egressos de conflitos armados.

O conceito de peacebuilding, traduzido literalmente como “construção da paz”, seria mais bem traduzido para o português como “consolidação da paz”, porque assim consta em francês e em espanhol, e porque “construção” pressupõe formar alguma coisa onde nada havia - ao passo que a ideia de peacebuilding é dar continuidade a algo que teve início em etapa anterior.Santos Neves, G. “O Brasil e a Criação da Comissão para a Consolidação da Paz”. Em O Brasil e a ONU, Brasília: FUNAG, 2008, p. 85.

Composição do Comitê Organizacional da CCP: total de 31 membros, dentre os quais 7 membros do CSNU, incluídos os P-5, 7 membros oriundos dos grupos regionais do ECOSOC, 5 maiores contribuintes financeiros, 5 maiores contribuintes de tropas e 7 membros eleitos pela Assembleia Geral.

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comemoração do 36º aniversário da independência de Guiné-Bissau

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As negociações para a efetiva criação da CCP foram impulsionadas pela Reunião de Cúpula da AGNU de 2005, ano em que se comemoraram os 60 anos da ONU. A Cúpula de 2005, que serviria para analisar os resultados obtidos desde a Cúpula do Milênio na implementação das Metas de Desenvolvimento do Milênio, acabou tratando de ampla agenda, inclusive da reforma das Nações Unidas. A criação da CCP e do Conselho de Direitos Humanos foram as decisões mais importantes adotadas pelos Chefes de Estado durante a Cúpula.

As negociações para definir os parâmetros de implementação e funcionamento da CCP foram, no entanto, contenciosas. Os desacordos se concentravam na definição: i) das competências da CCP para trabalhar com prevenção de conflitos; ii) da composição da CCP; e principalmente, iii) do órgão da ONU ao qual a CCP deveria reportar-se - o CSNU, a AGNU, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) ou uma combinação desses órgãos. Kofi Annan defendia, como o Brasil, que a Comissão deveria reportar-se ao CSNU e ao ECOSOC, enquanto os membros permanentes do Conselho de Segurança e a maioria dos países ocidentais defendiam arduamente a subordinação unicamente ao CSNU

(segundo eles, de acordo com o artigo 29 da Carta da ONU).

O embate se prolongou a ponto de não se conseguir acordar, a tempo da Plenária de Alto Nível, como seria o funcionamento

do novo órgão. No último momento, a delegação britânica apresentou um harvest text em que assuntos polêmicos foram deixados em aberto. As negociações se prolongaram nos três meses seguintes, até que, em 20 de dezembro de 2005, a Resolução A/RES/60/180 da AGNU e a Resolução 1645 do CSNU estabeleceram formalmente a Comissão, com o objetivo premente de impedir que países retornem ao estado de guerra após o término do mandato de missões de manutenção da paz da ONU. Foi acordado que a CCP se reportaria tanto ao CSNU quanto à AGNU e foi estabelecido um complexo sistema de eleição de membros para o Comitê Organizacional da CCP.

O Brasil sempre ressaltou a importância do desenvolvimento nas negociações sobre operações de paz e defendeu a inclusão de atividades voltadas à inclusão social e ao fim da pobreza nos mandatos das operações de paz. Esteve, assim, firmemente engajado na criação da CCP.

Como os países latino-americanos inicialmente não se engajaram nas negociações para a criação da CCP, o Brasil viu-se muitas vezes compelido, como lembra a Conselheira Gilda Motta Santos Neves (SANTOS NEVES, p. 92), a se juntar a países de outras tradições diplomáticas, como Irã, Egito, Paquistão, Argélia e Cuba. Nas negociações, o Brasil concentrou-se em garantir que a CCP tivesse suficiente autonomia e não fosse um órgão subsidiário

A maior parte do trabalho da Comissão é conduzida pelas Configurações Específicas para cada país da agenda, composta por países da região engajados em consolidação da paz, organizações regionais e sub-regionais relevantes, principais contribuintes financeiros e de pessoal para a missão de paz, instituições financeiras e representantes do governo em consideração.

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do CSNU. Outra preocupação brasileira foi garantir que os países em desenvolvimento, principalmente da América Latina e Caribe, fossem representados de forma equilibrada no novo órgão.

O Brasil não logrou, no entanto, que o Fundo para a Consolidação da Paz fosse diretamente subordinado à Comissão. Seu estabelecimento foi negociado por grupo restrito de doadores e resultou em uma modalidade anacrônica de atuação, em que a CCP não goza de autoridade prática sobre o Fundo. Não se resolveu, portanto, um dos maiores problemas para o avanço de uma agenda pró-desenvolvimento nas Nações Unidas. A constituição do Fundo de Consolidação da Paz é ilustrativa das contradições do sistema ONU, em que os P-5 e países europeus resistem em ampliar no tempo as operações de paz.

O Brasil e a configuração Específica para Guiné-Bissau

A situação de Guiné-Bissau ingressou na agenda do Conselho de Segurança no biênio 1998-1999, quando o Brasil ocupava assento não-permanente. Em julho de 2007, Guiné-Bissau solicitou ao Conselho de Segurança a inclusão do país na agenda da Comissão de Consolidação da Paz. Em 19 de dezembro de 2007, a CCP incluiu Guiné-Bissau em sua agenda e elegeu o Brasil como coordenador da Configuração Específica para a Guiné-Bissau (CCP-GB).

Ao assumir a posição de coordenador da CCP-GB, o Brasil ressaltou os estreitos vínculos culturais, sociais e políticos que unem os dois países, reforçando a política brasileira de fortalecimento do mundo lusófono. Como afirmou a Embaixadora Maria Luiza Viotti, coordernadora da Configuração Específica para Guiné-Bissau da CCP: “Fortes laços unem nossas duas

nações. O compromisso brasileiro é de trabalhar ativamente com os membros da Comissão com vistas a promover o desenvolvimento guineense, conforme as prioridades a serem estabelecidas pelo Governo daquele país.” O Representante Permanente de Guiné-Bissau junto às Nações Unidas corroborou essa afirmação ao declarar que “o Brasil, em função de seus laços históricos, culturais, linguísticos e de amizade, tem a sensibilidade necessária para compreender os problemas e aspirações do povo bissau-guineense.”

O CSNU requisitou à CCP a análise da situação em Guiné-Bissau em três esferas: reforma na administração pública e no setor de segurança, fortalecimento do Estado de Direito e combate ao narcotráfico. Os trabalhos da Configuração Específica tiveram início em janeiro de 2008, com a realização da primeira reunião e da visita de campo a Bissau, chefiada pela Embaixadora Maria Luiza Viotti, coordenadora da Configuração. Fortaleceu-se o entendimento de que a reforma do setor de segurança (security sector reform - SSR) seria prioritário, devido à intrínseca relação com a instabilidade política que impedia a consolidação de um Estado capaz de encaminhar efetivamente os problemas do país.

Encontros formais da Configuração vêm ocorrendo em bases quase mensais e, em fevereiro de 2008, a Comissão recomendou ao SGNU a elegibilidade de Guiné-Bissau ao Fundo da CCP. Ao Grupo Piloto, copresidido por representante do SGNU no país e autoridade designada pelo governo, foi atribuída responsabilidade pela análise e aprovação final dos projetos com orçamento do fundo. Os projetos aprovados abrangem áreas relativas à realização de eleições, emprego para jovens, reabilitação de prisões e de quartéis militares. A Estratégia Integrada para Consolidação da Paz foi adotada em

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outubro de 2008 para guiar os trabalhos da Comissão e inclui como prioridades o fortalecimento do Estado de Direito, a geração de riqueza, a modernização do sistema de administração pública e, mais uma vez, a reforma do setor de segurança.

Para fazer frente ao tema, o governo de Guiné-Bissau elaborou um plano nacional para reforma do setor. A União Europeia atua na reforma do setor de segurança por meio de uma missão civil-militar, com fundos da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). O tema voltou a ganhar visibilidade com a realização de mesa redonda, em 20 de abril de 2009, em Praia, Cabo Verde. A mesa redonda foi organizada pela CPLP em conjunto com a CEDEAO e o UNOGBIS, fazendo prova do envolvimento dos países lusófonos na consecução de estabilidade no país. A CCP, contudo, não foi incluída no documento de base da reunião, suscitando questionamento em relação aos aportes concretos da configuração, mais de um ano após seu estabelecimento. Cumpre ressaltar que, embora a CCP tenha sido representada na reunião pela Coordenadora da Configuração, a sua desconsideração pela documento de base pode ser sintomático dos parcos ganhos conquistados por Guiné- Bissau desde a inclusão do país na agenda da CCP.

Apesar de a própria Guiné-Bissau apontar a reforma do setor de segurança como prioridade do país, a atenção da CCP ao tema reflete, em parte, as preocupações de nações desenvolvidas, que temem que a CCP se transforme em uma agência de desenvolvimento, priorizando temas relacionados à estabilidade política e reforma institucional. Além disso, Guiné-Bissau é considerada estratégica para a segurança na África Ocidenal e a estabilidade no país diminuiria os efeitos das redes de crime organizado,

principalmente em países desenvolvidos. A fim de contornar esse impasse, o Brasil busca promover a CCP como agente facilitador para aumento da base de doadores e mobilizador da comunidade internacional a favor do país.

Assim como sua atuação no Haiti, a estratégia brasileira na Comissão está calcada em duas vias principais, combinando estratégias de médio e longo prazo com adoção de projetos de curto prazo que possam ter impacto imediato para a população. Ademais, o estabelecimento de prioridades está a cargo das próprias

autoridades bissau-guineenses. A adequação dos projetos de cooperação essas prioridades demonstra o compromisso do Brasil com o conceito de apropriação nacional por parte de Guiné-Bissau no seu processo de consolidação da paz. O Brasil também tem estimulado o envolvimento do país com instituições financeiras multilaterais, defendendo tratamento diferenciado para Guiné-Bissau, devido às suas características de país em processo de consolidação da paz.

O Brasil constituiu-se como agente mobilizador de recursos da comunidade internacional, com o intuito de avançar abordagem equilibrada para dar mais sustentabilidade à paz, integrando as dimensões sociais e econômicas no processo de reconstrução, com efetiva integração das vertentes de segurança e desenvolvimento. Esse último ponto relaciona-se ao

Cooperação Sul-Sul: segundo dados da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Brasil presta cooperação técnica a Guiné-Bissau em diversos projetos, incluindo projetos nas áreas agrícolas (centro de promoção de exportações de caju), militar e educacional (formação técnica).

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favorecimento recente do Brasil da modalidade de cooperação Sul-Sul, em que a própria experiência como nação em desenvolvimento pode gerar contribuições específicas para a reconstrução de Guiné-Bissau.

Os trabalhos da CCP em Guiné-Bissau são restringidos pela insuficiência de recursos orçamentários dedicados a programas de desmobilização, reabilitação e reintegração social de combatentes, e ilustra uma das maiores falhas do pacote institucional da CCP. Ao não conferir à CCP autoridade prática sobre o Fundo, não se resolveu um dos maiores problemas para o avanço de uma agenda pró-desenvolvimento nas Nações Unidas: a existência de recursos financeiros prontamente disponíveis para a execução de projetos de construção pós-conflito.

A aprovação da Resolução 1876 (2009) pelo Conselho de Segurança traz novo alento ao tratamento de Guiné-Bissau pelas Nações Unidas. Decidiu-se pela criação de um Escritório Integrado para Consolidação da Paz (UNIOGBIS), a partir de janeiro de 2010, com o objetivo de assegurar maior coordenação entre as diversas instituições no terreno. O mandato do UNIOGBIS refere-se, ademais, ao seu papel de auxiliar a CCP nos trabalhos relativos à consolidação da paz, fortalecendo a atuação do novo órgão. Além disso, a participação do Brasil como membro não-permanente do CSNU no biênio 2010-2011 permitirá incrementar o tratamento dado à Guiné-Bissau no Conselho.

conclusão

“O princípio da não-intervenção nos assuntos externos dos outros Estados sempre orientou a política exterior do Brasil. Mas este princípio deve ser matizado pela ‘não-indiferença’; isto é, a disposição de colaborar, por meio de canais legítimos, com outros

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Desfile militar: 36º aniversário da independência nacional

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países que se encontram em situações particularmente difíceis.”

Embaixador Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores, em palestra proferida na Conferência Anual dos Embaixadores Franceses (Agosto, 2009)

A liderança brasileira em Guiné-Bissau

associa-se a pelo menos duas diretrizes importantes da política externa brasileira:

a aproximação com os países de língua portuguesa e a ideia da não-indiferença. Faz parte da construção de um perfil diplomático baseado no princípio da solidariedade internacional ativa, que vem se firmando por meio de uma extensa agenda de cooperação Sul-Sul e da chamada de atenção em foros multilaterais como o ECOSOC, a CPLP e o CSNU, para a necessidade de se conjugarem estratégias de promoção do desenvolvimento (combate à pobreza e à exclusão social) com as atividades tradicionais de manutenção da paz.

Nas discussões sobre a consolidação da paz em Guiné-Bissau, o Brasil considera de particular relevância a superação dos obstáculos estruturais e das condições econômicas precárias, fortemente ligadas à situação de segurança. Defende, assim, que somente uma política conjugada entre desenvolvimento e segurança será efetiva para superar as mazelas do país. A melhora nas

condições de vida dos militares, vislumbrada em propostas como a criação de um fundo de pensão para militares desmobilizados, deve ser conjugada à reintegração à vida civil de ex-combatentes. A estagnação econômica, por seu turno, impede geração de renda e faz com que o Estado continue sendo uma das únicas fontes de subsistência no país.

O papel desempenhado pelos laços históricos e culturais comuns, consubstanciado

na ideia de lusofonia, é crucial para a compreensão da atuação brasileira na questão de Guiné-Bissau. A confirmação do Brasil como Coordenador da Configuração Específica da CCP foi saudada por diferenciar-se do perfil tradicional de país doador com pouca experiência prática nos desafios enfrentados por países em desenvolvimento. O Brasil conjuga, portanto, o diferencial linguístico com o aporte de um

modelo de cooperação Sul-Sul que tem se mostrado efetivo em diversas partes do globo.

Ainda é muito cedo para avaliar a contribuição real da CCP e da liderança brasileira para a consolidação da paz em Guiné-Bissau. Não há dúvidas de que o país se afigura como tema central na agenda brasileira e, talvez, este tenha sido o principal aporte concreto da Configuração da CCP: dar visibilidade aos problemas bissau-guineenses e mobilizar a comunidade internacional nos esforços para consolidação da paz.

marina moreira costa (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e mestre em Development Studies pela Universidade Sophia (Japão).melina espeschit maia (turma 2006-2008 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de Nottingham (Inglaterra).

talvez este tenha sido o principal aporte concreto da configuração da ccP: dar visibilidade aos problemas bissau-guineenses e mobilizar a comunidade internacional nos esforços para consolidação da paz.

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Sinto-me um verdadeiro privilegiado pela oportunidade de viver na Guiné-Bissau. As sensações são únicas e difíceis de descrever. Ter uma experiência de vida no estrangeiro sempre foi um dos meus desejos e logo tive a sorte de que isso fosse possível num país africano tão especial e com tantas ligações históricas a Portugal. Quando me convidaram só podia aceitar o desafio.

Encontro-me aqui a trabalhar para a União Européia desde Abril de 2008 e são raros os dias em que não sinto ter aprendido um pouco mais com a gente deste país. Como não deve ser difícil de perceber, adaptei-me rapidamente, e é com enorme prazer que aqui estou. O facto de já conhecer o país de viagens anteriores, fruto do meu trabalho na cooperação portuguesa, contribuiu também para uma melhor e rápida integração.

O país é muito pobre, e atravessa dificuldades enormes a todos os níveis, sobretudo no que respeita às condições de saúde e educação. É também conhecida a sua instabilidade política e militar e, se bem que aos poucos a situação parece estar a melhorar, o caminho a percorrer é ainda muito longo.

No entanto, quem aqui trabalha para uma organização internacional ou representação diplomática consegue facilmente ter uma vida agradável. No fundo tudo depende um pouco de cada pessoa. Há quem goste muito de viver aqui e que se adapte facilmente às dificuldades e outros que estão sempre a contar os dias para a próxima ida a casa ou para as férias. Não há luxo, mas com mais ou menos esforço conseguimos encontrar o essencial, bem como aquilo a que nos fomos habituando nos nossos países de origem, nomeadamente ao nível de alimentos.

A comunidade internacional não é grande mas suficiente para se fazerem amizades e se organizarem programas comuns. Estar ocupado e ter uma vida activa é fundamental. Tem muito a ver com nossa maneira de ser e com a necessidade de manter a cabeça saudável. Para além da ocupação normal resultante do trabalho, aqueles que gostam de fazer desporto tem a sua vida facilitada, pois a oferta é variada. Facilmente

se encontram grupos ou parceiros para jogar futebol, tênis, voleibol, ir ao ginásio, correr ou nadar e por isso acaba por não ser difícil evitar os tempos mortos. Às vezes o mal está mesmo em ter muito tempo sem nada para fazer e começar a pensar demais.

A Guiné-Bissau, ao contrário de outros países em África, é muito pacífica, a população é amável e acolhedora, não implicam com os estrangeiros e em geral somos sempre muito bem tratados. No que toca às mulheres, Bissau e o país em geral são excelentes se compararmos com outras capitais africanas, pois aqui uma mulher pode andar livremente nas ruas sem ser incomodada e sempre sem preocupações de segurança. Talvez uma das grandes lacunas, para quem está habituado a outro estilo de vida, seja a falta de oferta cultural, pois raramente se organizam eventos relevantes. Neste campo será de elogiar as Embaixadas de França e do Brasil pelo seu constante esforço em dinamizar a área. Outros deveriam seguir o exemplo. Em Bissau não existem salas de cinema ou de teatro e os concertos são esporádicos. Também as lojas são muito raras e os centros comerciais inexistentes, a solução pode ser uma ida ao mercado local… Existem, no entanto, inúmeras vantagens também e conhecer os Bijagós, arquipélago junto à costa, é uma delas. Descansar numa ilha deserta, aproveitar a sua beleza natural, visitar as tartarugas ou comer o que acabamos de pescar, são realidades possíveis aqui.

Apesar de todos os problemas e lacunas existentes no país, os guineenses são positivos e têm esperança num futuro diferente. Sabem sempre agradecer com gestos simpáticos e sorrisos aquilo que recebem e, ao contrário do que seria de pensar, não se queixam muito. Esta tão grande simplicidade do povo conquista-nos e demonstra bem o seu carácter. A Guiné-Bissau não é o fim do mundo que muitos pintam. Felizmente a realidade é bem diferente.

miguel girão de sousa é português e assessor político na Missão para Reforma do Setor de Segurança da União Europeia em Guiné-Bissau.

Depoimento

Viver na Guiné-Bissau

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gilbertofreyreE O luSOTROPIcalISMO:

PaSSaDO,PRESENTE EFuTuRO

“Se me perguntarem quem sou, direi que não sei classificar-me. Não sei definir-me. Sei que sou um eu muito consciente de si próprio. Mas esse eu não é um só. Esse eu é um conjunto de eus. Uns que se harmonizam, outros que se contradizem. Por exemplo, eu sou, numas coisas, muito conservador e, noutras, muito revolucionário. Eu sou um sensual e sou um místico. Eu sou um indivíduo muito voltado para o passado, muito interessado no presente e muito preocupado com o futuro. Não sei qual dessas preocupações é maior em mim. Mas todas elas como que coexistem e até me levaram a conceber uma ideia de tempo, porventura nova: a do tempo tríbio. A de que o tempo nunca é só passado nem só presente nem só futuro, mas os três simultaneamente. Vivo nesses três tempos simultaneamente. Sou um brasileiro de Pernambuco. Gosto muito da minha província. Sou sedentário e ao mesmo tempo nômade. Gosto da rotina e gosto da aventura. Gosto dos meus chinelos e gosto de viajar. Meu nome é Gilberto Freyre.”

em entrevista à TV Cultura de São Paulo.

Rafael Rodrigues Paulino

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Introdução

Para os que, em algum tempo, já se interessaram pelo estudo do Brasil, sua gente e sua cultura, o nome de Gilberto Freyre dispensa qualquer tipo de apresentação – tanto para o bem como para o mal. Dono de uma extensa obra, que abrange desde a sociologia à historiografia, Freyre logrou abordar, por diversos ângulos, um mesmo objeto de estudo: seu próprio país. Um tanto narcisisticamente, Freyre parecia identificar-se com seu tema, que de alguma forma, era sua musa. Fez dele a tradução de um estilo de vida, de um sistema valorativo, enfim, de um ideal, muitas vezes afastando-se da realidade em prol de um dever-ser normativo. Por esta e outras razões, tornou-se polêmico.

Nas primeiras linhas de “Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira”, Jessé Souza qualifica o mestre de Apipucos como “talvez o mais complexo, difícil e contraditório de nossos grandes pensadores”. Essa afirmação pode ser ao mesmo tempo puramente verdadeira ou terrivelmente falsa, dependendo de como se entendam os adjetivos nela contidos. Freyre é complexo, mas não por excesso de erudição ou pelo uso corrente de conceitos só entendidos pelos iniciados. Ao contrário, seu estilo é definitivamente coloquial, um tanto literário e oral, e é, ao mesmo tempo, friamente factual e científico, e subjetivamente afetivo.

É tanto que o próprio autor sempre se apresentou como escritor e ensaísta, e nunca como antropólogo, sociólogo ou historiador. As narrativas de Freyre, sempre cheias de digressões e caminhos sinuosos, quase nunca escapam ao tema, ao contrário, o enriquecem com percepções dos cinco sentidos, como sabores, cheiros, cores, texturas. Muitas vezes notamos o apelo ao emocional nas descrições de casos e situações, o que nos diz que Freyre era, de fato, um cientista social muito diferente. Sem afastar-se do rigor das fontes, ele conseguiu estabelecer um diálogo entre situações passadas, presentes e futuras em uma mesma narrativa, que para seus admiradores durou todos os oitenta e sete anos de sua vida.

O presente ensaio tem a intenção de sublinhar alguns poucos excertos da principal tese de Freyre – o Lusotropicalismo – e sua interlocução com as três dimensões do tempo. Essa, aliás, é uma inovação única ao autor: a do tempo tridimensional, que se desdobra e se articula em fatos históricos e cenas cotidianas. Mais especificamente, pretendemos trazê-lo para os domínios da política

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exterior e da diplomacia, assunto que de forma alguma foi ignorado em sua prolífica carreira como ensaísta.

Passado Contextualizar o autor, no caso em

tela, é absolutamente necessário para compreendermos o conteúdo de sua obra – ainda que sua vida pessoal, por ser tão cheia de ricos detalhes e passagens interessantes, mereçam um trabalho à parte. O essencial, para nosso estudo, é saber que, nascido no Recife em 15 de março de 1900 e morto na mesma cidade em 18 de julho de 1987 , Gilberto de Mello Freyre era filho do juiz de direito Alfredo Freyre, de uma família da tradicional aristocracia pernambucana. A influência da academia norte-americana sempre foi muito significativa: fez o colegial no Colégio Americano Batista do Recife, e a graduação na Universidade Baylor, no Texas. Fez mestrado e doutorado na prestigiada Universidade Columbia, onde foi orientado por ninguém menos que Franz Boas, um dos pais da antropologia moderna. Sua tese Brazilian social life in the middle of the 19th century, defendida em 1922, é o embrião de sua primeira e mais importante obra, Casa Grande & Senzala (1933), em que o autor descreve a formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal de 1500 a 1900, e que segue sendo sua obra mais publicada e traduzida no exterior, senão uma das mais importantes obras brasileiras de todos os tempos.

“Ninguém aqui sabia o que era mestrado, coisa típica dos países anglo-saxões. Não vingava nem na Europa continental, embora lá o reconhecessem como equivalente ao doutorado em ciências do homem ou em letras. Mas no Brasil de 1923, quando cheguei, não havia ainda nenhuma noção

do que fosse universidade. Sempre me perguntavam: ‘Formou-se em direito?’ Eu dizia não. ‘Formou-se em engenharia?’ Não. ‘Formou-se em medicina?’ Não. ‘Mas, então, que diabo você fez com o dinheiro do seu pai no estrangeiro?’ Eu não tinha a menor vontade de explicar nada: ‘fiz umas bobagens, estudei umas coisas...’ No terreno da antropologia, só existia a antropologia física. Tudo isso concorreu para que eu vivesse uma fase de ‘monstro’ rejeitado e ignorado”.

Entrevista a Gilberto Velho (Museu Nacional e UFRJ), César Benjamin e Cilene Vieira Areias, publicada em Ciência Hoje, maio de 1985.

Após uma longa temporada no exterior, retornou ao Brasil após a defesa de sua tese, em 1923, escolhendo não estabelecer-se nas metrópoles do sudeste, senão em sua terra natal, o Recife. A cena intelectual brasileira fervilhava naqueles dias de Semana de Arte Moderna, mas Freyre não era um modernista. Ao contrário, considerava aquele “pseudo-cosmopolitismo” nocivo à cultura brasileira. Articulou então, com intelectuais de várias partes do país, o primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, do qual resultou a publicação do Manifesto Regionalista de 1926.

Remontam a essa época as primeiras críticas ideológicas ao trabalho de Freyre, críticas essas que não deixavam de ter uma motivação partidária, uma vez que, em 1927, tornou-se chefe de gabinete do então governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, permanecendo até sua destituição pela Revolução de 1930. Embarcou então, com o governador, para um exílio de quatro anos em Lisboa, retornando com a anistia de 1934. Eleito Deputado Constituinte pela UDN em 1946, foi autor do projeto que criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, um

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dos poucos órgãos federais de pesquisa em ciências sociais fora do centro-sul do país. Sua colaboração com a imprensa também foi notória, dirigindo os maiores e mais tradicionais periódicos do Recife, o Diário de Pernambuco e A Província, sendo também um dos principais colaboradores da revista de maior circulação nacional de seu tempo, o semanário O Cruzeiro, de cujos artigos vêm boa parte das referências desse trabalho.

Teve uma vida editorial excepcionalmente prolífica, sendo autor de quase setenta obras, descontadas as coletâneas – o que alcança, em média, um livro novo por ano de produção. Boa parte delas tornaram-se sucessos de vendas, bem como referências acadêmicas e científicas. A trilogia Casa Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) é, segundo muitos comentadores, o que há de mais essencial em sua obra, sendo em grande medida complementares em termos de períodos históricos abordados. À parte os inúmeros prêmios literários e dos título de Doutor Honoris Causa de diversas universidades, recebeu também, da Rainha Elizabeth II, o título de Cavaleiro do Império Britânico, sendo portanto um Sir. Foi reconhecido também como referência mundial nas ciências sociais por acadêmicos do calibre de Roland Barthes e Fernand Braudel, dentre muitos outros scholars de renome. Sobre a grafia de seu nome, o respeito ao desejo do autor:

“Não falta, porém (...) a cortesia de grafar o nome do modesto autor como deve ser grafado. O que já é muito em jornal do Rio com relação ao pobre do provinciano que insiste no y do seu nome com o mesmo direito que o eminente Chanceler San Thiago Dantas no San (e não São) do seu San Thiago.”1

Presente

Mesmo falecido há 22 anos, faz-se apropriado dissertar sobre o pensamento de Gilberto Freyre nesta seção do ensaio. É uma maneira singela de homenagear o tema deste trabalho e, mais uma vez, chamar a atenção para a questão do tempo.

Um de seus principais pressupostos era a tese, revolucionária no início do século XX, de que não há raças biologicamente inferiores, e que não há relação necessária entre a pobreza e a raça – na verdade, o autor contestava a própria existência da categoria “raça” no sentido de então, utilizando-a, na maioria de seus artigos, apositivamente. Desnecessário é frisar a importância desse tipo de reflexão em um Brasil às voltas com o debate sobre cotas raciais nas universidades, em uma das muitas possíveis articulações de seu pensamento com o tempo presente. Freyre, como seu mestre Franz Boas, nega o determinismo racial e geográfico, conferindo ênfase à cultura e desprezando a leitura pseudo-evolucionista de conceitos como raça. De seu mestre, ele diz:

“Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio”. (Freyre, 2005, p.31)

É do contato com Boas que advém as empatias com a escola idealista alemã,

1 FREYRE, Gilberto. “A propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.

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herdeira de Kant e Hegel. Vale notar que, bastante dialeticamente, o título de boa parte dos livros de Freyre é a sucessão de dois substantivos-conceitos, aparentemente inconciliáveis, ligados pelo símbolo “&”, que, segundo o autor, era um símbolo de interpenetração e conectividade. O primado da cultura sobre o determinismo das primeiras leituras evolucionistas proto-darwinianas, bem como outras premissas, o aproximam de Weber, bem como o uso de tipos ideais para descrever o homem, o espaço e o tempo em suas obras. Cientificamente, a opção é clara a favor de um método qualitativo, adjetivo, o que se afasta em muito da tradição norte-americana de quantitativistas das escolas em que estudou, como Columbia.

O método utilizado por Freyre, mesmo em obras predominantemente antropológicas, é quase sempre historiográfico. Mas é importante frisar sua natureza não-evolucionista e também não-evolucionária: para ele, não há o pressuposto de que o passar do tempo trará avanços. Um hábito comum a seu estilo é a transposição de si mesmo para o passado, estabelecendo uma espécie de canal direto de comunicação deste com o presente. Esta, e outras, são influências da École des Annales francesa, e de seu gosto pela história cotidiana e das mentalidades coletivas. São valorizadas como fontes de relevância histórica livros de receitas, fotografias, festas, expressões religiosas, relatos de viajantes, cantigas de roda, diários íntimos. Isso confere um caráter multi-facetado, poliédrico, à obra de Freyre.

Como aponta o professor José Carlos Reis, a obra de Freyre é neo-varnhageniana, no sentido em que elogia as virtudes da colonização portuguesa, mesmo considerando o traumático processo

histórico da conquista da América. No entanto, as semelhanças e convergências com Varnhagen param aí, uma vez que os dois têm opiniões, premissas e metodologias opostas para quase tudo. Em primeiro lugar, Varnhagen não via valor na raça negra, e preconizava que o brasileiro deveria ter sido uma raça branca pura, pela imigração maciça de europeus. A miscigenação, para Varnhagen, era um desprestígio, e a escravidão teria sido mais tolerável se fosse a do índio, que segundo ele, a pseudo-filantropia do jesuíta impediu. Freyre, por outro lado, valoriza enormemente a presença do negro, a riqueza de sua cultura, sua companhia alegre e terna, e por sua sensualidade.

“E que vergonha há na condição de negróide? Que vergonha há na condição de negróide diante da antropologia moderna que não reconhece ‘superioridades’ ou ‘inferioridades’ de raça? Por que pretender-se com ‘documentos’ destruir uma verdade que só é vergonhosa hoje aos olhos dos retardados em ciência?”2

Outra divergência ocorre em relação ao sistema econômico e de trabalho na colônia. Varnhagen, apesar de defender a colonização portuguesa, lamenta profundamente que ela tenha sido latifundiária e escravista, justamente pela motivação racista exposta acima. Já para Freyre, é injusto acusar os portugueses de terem manchado com a escravidão a sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstâncias, segundo ele, exigiram o escravo. Principalmente, parecia-lhe inapropriada tal espécie de julgamento histórico, em que o delito era tipificado a posteriori.

2 FREYRE, Gilberto. “Português, branquidade e documento”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 04 nov. 1950.

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“tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à colonização do Brasil pelo europeu - só a casa grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o escravo capaz do esforço agrícola”

“No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica – a monocultura latifundiária; do outro, pela escassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. O açúcar não só abafou as indústrias democráticas de pau-brasil e de peles, como esterilizou a terra, em uma grande extensão em volta aos engenhos de cana, para os esforços de policultura e de pecuária. E exigiu uma enorme massa de escravos. A criação de gado, com possibilidade de vida democrática, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semi-feudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando, patriarcais e polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palhas, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão.”3 Freyre vai além. E é nisso que consiste

sua principal tese, a do Lusotropicalismo.

Para ele, no Brasil foi forjada uma sociedade multirracial, por obra do gênio português, fertilizada pela presença africana e indígena, e que encontrou nos trópicos sul-americanos o cenário topográfico ideal para sua realização. A principal premissa da tese é considerar que esse amálgama só poderia ter sido feito, em seu tempo, pelo povo português, por vários motivos, entre os quais destacamos dois: o fato de que o português, diferentemente de outros povos europeus de semelhante expertise técnica, 1) gostava dos climas quentes, e 2) já era ele próprio mestiço de romanos, visigodos, celtas e mouros.

(...) “ the Portuguese never to have displayed great enthusiasm for settling in foggy regions or for adapting themselves to climates colder than that of Portugal. Their ideal or messianic climate seems always to have been a hotter one than that of Portugal - Portuguese emigration to colder countries such as the United State has been principally from the Azores. It may be noted that popular folklore has long since shown hostility to the cold winds that blow from Spain and linked them to Spanish brides supposedly less affectionate than Portuguese or tropical women. “From Spain neither a good wind nor a good wife” says the proverb. Spain here seems to be symbolic of an Europe colder, in its climate or ‘winds’, than Portugal.”

“Among other traits worthy of being re-established was the readiness of the well-born Portuguese to go and pit his vigour and strength against the tropics such as the African bush or the Brazilian jungles; contacts which were better calculated to

3 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50.ed. revista. São Paulo: Global, 2005. P. 32-35

4 FREYRE, Gilberto. Impact of the Portuguese on the American tropics. Neuchatel: La Baconniére, 1958.

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regenerate European energies than those with the civilized East.”4

Dos excertos citados, pode-se inferir um fato importante: para Freyre, o elogio do passado é uma exaltação, uma idealização, o que dá um caráter quase onírico à sua obra. É importante notar também a importância e o poder dessas ideias no início do século. Freyre foi, provavelmente, o primeiro a ter defendido, com bases científicas, o valor da mestiçagem na formação do país, o que teve um papel central em revelar uma das características mais estudadas por brasilianistas de todas as escolas: a síndrome de vira-latas.

Futuro Um equívoco comum na leitura da obra

de Freyre é o de considerá-la, inteiramente, como a expressão da realidade passada. Isso não quer dizer que a obra de Freyre seja, de alguma maneira, fictícia. Do contrário, é o lembrete de que a perspectiva de Freyre é, muitas vezes, a do dever-ser, e não do ser. É parte do esforço do autor de estabelecer a conexão tridimensional do tempo, e fazer conexões entre passado e futuro. O caráter normativo da obra de Freyre é revelado, em muito, nas opiniões externadas por ele sobre o papel do Brasil no mundo e sobre a natureza da política externa, em sua coluna no semanário O Cruzeiro. Nesse ponto, suas revelações chegam a ser mais que visionárias. Para seus admiradores, são semi-proféticas.

Freyre acreditava que o Brasil era o interlocutor ideal entre o norte desenvolvido e o sul em desenvolvimento, entre o branco e o preto, entre o rico e o pobre, simplesmente

porque, mestiço, o Brasil é um pouco de ambos. Nesse aspecto, o lusotropicalismo torna-se não uma explicação do passado, mas uma fundação, uma base para uma atuação externa futura.

“Em livro recente e ricamente sugestivo, (...) um sociólogo francês, que todos os estudiosos brasileiros de assuntos sociológicos estimam e admiram - o Professor Roger Bastide - reconhece ter o Brasil se tornado potência demasiado grande para limitar seu destino à América do Sul. É uma nação que tem, a seu ver, papel internacional a desempenhar no Mundo de hoje. E refere-se, a êsse propósito, à ideia de uma federação de países de língua portuguêsa, infelizmente sem considerar, como devia ter considerado, a base sociológica para uma tal federação de evidente importância política, oferecida por aquêles seus colegas brasileiros que vêm sugerindo a especificidade de uma civilização dinâmicamente luso-tropical: civilização em desenvolvimento e não estabilizada. (...) E o grande mediador entre a Europa e o Trópico tem sido, não um vago latino, mas o hispano. Principalmente o português, a ser continuado num futuro já presente, pelo brasileiro.”5

Essa noção é especialmente preciosa nos dias de hoje, em que se busca, talvez pela primeira vez em nossa história, um papel de prioridade nas relações internacionais do Brasil para os países da África Lusófona e da América Hispânica e, de forma mais ampla, para o mundo em desenvolvimento. No

5 FREYRE, Gilberto. “O Brasil, mediador entre a Europa e o trópico”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 22 jul. 19616 FREYRE, Gilberto. “A propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.7 FREYRE, Gilberto. “O Brasil, lider da civilização tropical”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1 jul. 1961.

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entanto, o próprio Freyre já reconhecia as dificuldades de implementação de uma visão desse tipo:

“Pois de modo algum pretende a ‘tese freyreana’ subordinar a condição lusotropical de uma cultura ou de uma população ao seu simples status político. Ou aos altos e baixos da política exterior do Brasil que, ultimamente, parece vir sofrendo, com relação a certos problemas, o impacto de interêsses eleitoralistas ou de impulsos demagógicos de políticos nacionais demasiadamente ‘domésticos’ no seu modo de lidar com aspectos internacionais”.6

Por fim, é preciso fechar o último vértice do triângulo. Os últimos oito anos de nossa política exterior foram caracterizados por um novo olhar sobre as relações internacionais. Um olhar por muitos definido como mais protagônico e altivo, de um país que sabe quem é e o que deseja do mundo. Ao nos debruçarmos sobre a obra de Gilberto Freyre, podemos facilmente perceber que tais caracterizações e mudanças, como muitas outras em nossa história, são bem maiores do que as pessoas que as implementam , e decorrem não dos caprichos de indivíduos, senão de um cálculo de um desígnio de Estado, com fundações datadas de algumas décadas. O mestre de Apipucos, mesmo escrevendo há mais de quarenta anos, parece nos sussurrar, no dia de hoje:

“Ao Brasil de hoje, abrem-se

oportunidades de povo condutor de povos tropicais, acompanhadas de responsabilidades que se não forem assumidas pelos brasileiros terão de ser assumidas - e assumidas exclusivamente - pelos indianos ou pelos árabes unificados, pela Venezuela ou pelo México, ficando os brasileiros reduzidos a uma situação politicamente inerme entre êsses povos quando, sob outros aspectos, sua civilização simbiòticamente luso-tropical ou hispano-tropical talvez seja a mais criadora e a mais dinâmica das modernas civilizações que se desenvolvem nos trópicos (...) Não será sem êsse ânimo um tanto romântico que o Brasil assumirá o seu comportamento político o papel de líder de uma articulação de forças que comece a reunir as populações de formação lusitana, em particular, e as de formação hispânicas, em geral, situadas em espaços tropicais, sob uma unificadora “consciência de espécie”, que se traduza em atitudes e até em atos de solidariedade característicos de uma vasta comunidade com vários e fortes interêsses em comum; é capaz, à base dessa solidariedade, de afirma-se como tipo de civilização moderna do qual outras civilizações modernas têm evidentemente o que aproveitar, em proveito de relações mais saudáveis entre europeus e não-europeus, e entre o homem civilizado - à europeia e o trópico - a terra, o solo, o clima, nativo dos trópicos.”7

rafael rodrigues Paulino (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais e mestre em Teoria da Comunicação pela Universidade de Brasília.

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NOVO acORDO ORTOGRáFIcO:

líNGua E PODERMarcela Magalhães Braga

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As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo.

Wittgenstein

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1. linha do tempo

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O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em 1990, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Tais Estados comprometeram-se a elaborar um vocabulário comum, almejando conferir completude e uniformidade ortográfica ao idioma português. O Acordo dará mais dinamismo ao idioma e contribuirá para evitar eventual dispersão linguística entre os países lusófonos.

A adoção de um vocabulário ortográfico comum afetará diretamente todos os países cuja língua oficial é o Português. Há, nos dias de hoje, duas ortografias oficiais da língua portuguesa: a adotada no Brasil e aquela utilizada em Portugal e nos demais integrantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A unificação gráfica evitará que as grafias brasileira e portuguesa se distanciem ainda mais, evitando o desenvolvimento de dois dialetos estanques. Esse processo é essencial para superar os obstáculos que envolvem as relações políticas, econômicas, comerciais e culturais entre esses países.

Na história da língua, a grafia nem sempre foi objeto de controle. Durante o período do Português arcaico, por exemplo, cada um escrevia como lhe aprouvesse, e foi só no século XVI que se passou a buscar uma grafia comum, movimento que levou, posteriormente, à regulamentação legislativa do tema. O histórico de acordos ortográficos no Brasil e em Portugal demonstra que tal prática é corriqueira e obedece ao próprio dinamismo da linguagem, devendo os países

adequar-se ciclicamente às ondas de inovação dialética entre língua falada e língua escrita.

O primeiro acordo ortográfico celebrado entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa ocorreu em 1931. A Constituição brasileira de 1934 revogou esse acordo, marcando o início de um longo período de distanciamento entre os dois sistemas. O projeto da Nomenclatura Gramatical Brasileira – NGB, iniciado em 1958, contribuiu para ampliar o hiato já existente entre as ortografias. A publicação de obras que adotaram a NGB, tais como gramáticas e dicionários, fixaram a utilização de uma norma ortográfica própria da língua vernácula.

É importante ressaltar que a manutenção da divergência, no que concerne à língua escrita, não interessava nem à Academia de Ciências de Lisboa nem à Academia Brasileira de Letras, o que levou à elaboração de novo acordo. Após vários entendimentos, foram redigidas as chamadas Bases Analíticas da Ortografia Simplificada de 1945, renegociadas em 1975 e consolidadas em 1986.

Finalmente, em 1990, surgiu uma nova versão do documento, o Acordo de Ortografia Simplificada entre Brasil e Portugal para a Lusofonia, que passou a ser reconhecido como Acordo Ortográfico de 1995, por ter sido aprovado oficialmente em 1995 pelo Governo dos dois principais países envolvidos. Os principais pontos foram, por um lado, o fato de usar-se, pela primeira vez, a expressão “ortografia simplificada”, e, por outro lado, a tentativa de se estabelecer um acordo válido para todo o mundo lusófono.

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Uma língua é identificada por suas características fonéticas, sintáticas, morfológicas e lexicais. O código gráfico é tão-somente uma convenção, que pode ser adotada sem que haja qualquer ameaça à identidade linguística de um determinado país. De acordo com Garcia1, um sistema ortográfico pode ser elaborado de três maneiras:

a) sob uma perspectiva fonética, atribuindo-se um símbolo para cada som;

b) sob uma perspectiva etimológica, em que se procurará seguir fielmente a grafia de um determinado período da história da língua (no caso da língua portuguesa, o latim);

c) sob uma perspectiva mista, em que se procurará combinar as virtudes da ortografia fonética, com seu caráter de exatidão, e da ortografia etimológica, com seu caráter de permanência. A língua é um construir diário, um

organismo vivo e, por isso mesmo, está sujeita à evolução. Quanto mais perspectivas tiver a língua em sua formação, mais perspectivas terá em sua expressão. Isso significa maior poder de persuasão, e se de palavras faz-se a diplomacia, tanto maior será a influência do idioma quanto mais seus falantes dominarem o reino das palavras, como pediu Drummond:

Penetra surdamente no reino

das palavras.

Lá estão os poemas que espe-

ram ser escritos.

Estão paralisados, mas não há

desespero,

há calma e frescura na superfí-

cie intata.

Ei-los sós e mudos, em estado

de dicionário.

Chega mais perto e contempla

as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a

face neutra

e te pergunta, sem interesse

pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?

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2. Praça da língua:nuances ortográficas

1 www.filologia.org.br/revista/artigo/3(9)5-14.html

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José Saramago lembrou que as línguas se cercam umas às outras, e a língua que não se defende morre. Defender-se, no caso, é preparar o fundamento gráfico para que o discurso científico, a expressão cultural e a manifestação artística mantenham-se firmes para ancorar as relações econômicas e políticas no mundo lusófono.

O Português é uma língua com grande base de falantes. Tal base estende-se por várias culturas e continentes, exigindo um código comum para manter os canais de comunicação diante da contínua simbiose entre língua falada e língua escrita. É instrumento de comunicação fundamental no contexto atual, em que as informações são fundamentais para a distribuição de poder no mundo.

Para seus falantes, a manutenção da identidade cultural passa pela defesa e reforço da língua portuguesa, para que siga utilizando referenciais linguísticos próprios na evolução do conhecimento. Na era da informação, é essencial que o idioma busque espaço para manter-se como primeira língua ou, mesmo, segunda, em regiões de maior projeção dos países da CPLP, como a América do Sul e o Sul da África.

É emblemático o fato contado pelo Embaixador do Brasil no Chile, Mário Vilalva, em palestra do Chanceler chileno

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Mariano Fernández, no Instituto Rio Branco: os dez alunos formados no último ano da academia diplomática chilena Andres Bello optaram pelo português como segunda língua estrangeira. Isso demonstra que o Português pode exercer função importante na relação do Brasil com o entorno sul-americano, e que ainda há espaço a ser aproveitado.

Sérgio Vieira de Mello afirmava, quando questionado sobre a insistência com que importunava seus colegas a conhecerem o idioma de cada país, que “primeiro você precisa aprender a língua. A língua é a chave para a cultura de um povo, e a cultura é a chave para o coração de um povo. Se você forçá-lo a falar a sua língua, nunca conquistará sua simpatia”. O homem se constitui sujeito pela linguagem. É por meio dela que ele ingressa na organização social para compartilhar uma cultura comum.

Assim, o Português deve ser fortalecido pois possui base de falantes proporcional ao Espanhol e ao Francês, mas sua influência é desproporcional no sistema internacional. Em tempos de multilateralismo cultural, cada idioma deverá manter sua projeção se quiser evitar futura extinção ou irrelevância. Afinal, em tempos de importância do soft power, não se deve esquecer a beleza e plasticidade da língua portuguesa, nossa forma de expressar sonhos e projetos para o novo século.

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Dentre os problemas enfrentados no curso de adoção do modelo de

Estado-nação ganha destaque a questão linguística. A homogeneidade linguística

não é, como fazem crer as ideologias nacionais, uma característica natural

das nações que remete a tempos imemoriais. A unidade sob uma só língua

é construída através de um complexo processo. E assim como as próprias

nações da Europa Ocidental precisaram passar por esse processo de criação

e naturalização da homogeneidade linguística, também os países que importam

esse modelo precisam resolver seus dilemas linguísticos internos. Que língua

utilizar na educação e na administração? Como criar, por meio da língua, a

imagem de um Estado único e indivisível? (Mana, vol.8 no.1, Rio de Janeiro,

2002. Língua e poder: transcrevendo a questão nacional)

2 A economia das trocas linguísticas. 1982. EDUSP. São Paulo

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A língua está diretamente envolvida com o papel do Estado no plano internacional, tanto em sua criação como em seus usos sociais e sua manutenção. O linguista Saussure afirmava que não era o espaço que definia a língua, mas a língua que definia seu espaço. O idioma sempre foi considerado um dos principais atributos na definição do Estado-nação, como assinalado por Juliana Dias:

3. Soft power ou poderbrando: nuances linguísticas

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Segundo Bourdieu2, é no processo de constituição do Estado que se criam as condições da constituição de um mercado linguístico unificado e dominado pela língua oficial. Para que esse modo de expressão se imponha como legítimo perante os demais, é preciso que o mercado linguístico seja unificado e que os diferentes dialetos estejam subordinados à língua oficial.

No processo que conduz à elaboração, legitimação e imposição de uma língua oficial, o sistema escolar tem papel determinante no ensino do código que rege a língua escrita, identificada à língua correta, por oposição à língua falada. É preciso ressaltar que “essa língua legítima não tem o poder de garantir sua própria perpetuação no tempo nem o de definir sua extensão no espaço. Os escritores, gramáticos e pedagogos exercem um poder simbólico sobre a cultura, impondo uma língua distinta e distintiva” (Bordieu, op. cit., pg. 45).

É com base nesse contexto teórico-político que deve ser interpretado o Novo Acordo Ortográfico, que tem diversos objetivos. Politicamente, servirá para dar suporte linguístico à projeção dos países lusófonos no mundo, especialmente no novo crescente processo de cooperação Sul-Sul, facilitando afinar posições em questões simples, mas instrumentais, como a redação de acordos internacionais ou documentos das Nações Unidas. Afinal, o Português é a terceira língua ocidental mais falada e, ao contrário do Inglês e do Espanhol, ainda apresenta grandes diferenças em sua grafia.

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4. Beco das palavras

Econômica ou comercialmente, possibilitará a criação de um mercado editorial que proporcionará ganhos de escala em muito superiores ao que existe no comércio atual. Social ou ideologicamente, trará aumento da auto-estima nacional ao manter, ou recuperar, a força do idioma, que funciona como eficaz instrumento de projeção de poder cultural no mundo, como bem o demonstram o Inglês e o Francês.

Cada pessoa, cada região, cada país possui sua identidade cultural. Não é possível, nem desejável, criar uniformidades estéreis, pois é por meio da linguagem que o ser humano realiza plenamente seus ideais e desenvolve suas aptidões. Aplicando-se tal raciocínio às macroestruturas, tem-se que os países somente podem manter sua identidade e levar adiante seus projetos de desenvolvimento se puderem comunicar-se com facilidade. É nesse espaço de racionalidade que se coloca o Novo Acordo.

O Novo Acordo passará por uma fase de transição até 2012, e traz alterações principalmente quanto à acentuação e hifenização. Serão eliminadas sete regras de acentuação, dando-se prioridade às regras de amplo alcance, cuja generalidade facilitará seu uso e ensino. O mesmo objetivo de generalidade norteou as mudanças quanto à hifenização.

Sem considerar as alterações quanto ao hífen e ao trema, estima-se que apenas 2% do vocabulário será alterado pelo Novo Acordo, equivalendo a 2.000 palavras num total de aproximadamente 110.000, que são

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diariamente relidas e renovadas por mais de 200 milhões de falantes do Português em todo o mundo.

Uma das dificuldades de implementação do Acordo anterior foi a dependência de legislação posterior, a ser editada por cada Estado signatário, que causou atrasos e progressivo desinteresse em sua aplicação. Essa lição deve servir ao Novo Acordo Ortográfico, sendo fundamental esclarecer seus objetivos, a fim de que haja permanente conscientização da importância de sua implementação.

A unificação gráfica facilitará o ensino de português para estrangeiros, a difusão cultural, a divulgação de informações, as relações privadas e interestatais, e as relações comerciais. A língua transforma-se diuturnamente, exigindo rapidez nos movimentos constantes de uniformização a serem feitos pelos signatários do novo acordo.

É preciso lembrar que a comunidade linguística é uma unidade natural da história humana. Segundo Ostler, há, hoje, no mundo, entre seis e sete mil comunidades identificadas pela língua que falam. Nem todas têm o mesmo peso. Mais da metade das línguas, por exemplo, é utilizada por menos de 5 mil falantes. Outras têm mais projeção, como o Chinês Mandarim, que é falado por, aproximadamente, 900 milhões de pessoas.

Mia Couto, nesse contexto, trata do lugar da língua portuguesa no mundo:

Eu acho que a língua portuguesa é hoje, talvez, uma das línguas europeias com maior vivacidade, com maior dinamismo. Não por causa de nenhuma essência especial do português, mas por causa de uma razão histórica que aconteceu no Brasil, em que Portugal deu origem a um filho maior que o próprio pai. A língua passou a ser gerida por outros mecanismos de cultura. Depois aconteceram os países africanos que introduziram

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na Língua Portuguesa alguns fatores de mudança, coloração, que tornam o Português hoje realmente uma língua que aceita muito, que é capaz de introduzir tonalidades, variações, que enriquecem muito a Língua Portuguesa, não só do ponto de vista linguístico, mas o quanto ela pode traduzir culturas. O que foi notável foi depois, num processo histórico, que está para além da língua, como é que estas culturas se mestiçaram e, a certa altura, o Português perdeu o dono, quer dizer, ficou sem dono. Felizmente. (Depoimento no documentário “Língua: vidas em português”, de Victor Lopes, 2001).

As línguas dividem a humanidade em grupos. É por meio de uma língua comum que um grupo de pessoas age em concertação, possuindo, portanto, uma história e uma estratégia geopolítica comum. Falar uma língua é compartilhar percepções, anseios e inspirações. Quando uma língua toma o lugar da outra, a visão de mundo de uma pessoa ou um povo mudam radicalmente.

Migrações, crescimento populacional e mudanças nas técnicas de educação e comunicação podem alterar o equilíbrio das identidades linguísticas ao redor do mundo. A existência de uma miríade de idiomas, contudo, protege e alimenta culturas diferentes, oferecendo caminhos diversos para o conhecimento humano. Os países lusófonos, por meio do Novo Acordo Ortográfico, continuarão a defender sua cultura como forma de manterem-se ativos – e altivos – no sistema internacional. Parafraseando Wittgenstein, as fronteiras da nossa língua serão as fronteiras do nosso universo.

marcela magalhães Braga (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Letras, português-inglês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela mesma instituição.

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DiÁsPorA PortuguesA:ODISSEIa DE uMa NaçÃO DESTERRITORIalIZaDa

Rafael Soares

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Denomina-se diáspora o fenômeno de dispersão de um povo, anteriormente concentrado em um território, para diferentes destinos, por motivos diversos. Historicamente, vários povos submetidos a perseguições abandonaram suas terras em movimentos de diáspora. Judeus vagaram pelo Oriente Médio devido a um castigo divino, armênios abandonaram seu país sob a ameaça genocida otomana e milhões de negros deixaram a África para ser escravizados em outros continentes. O mundo moderno conheceu, entretanto, inéditos movimentos migratórios em massa, animados fortemente por razões econômicas e sociais, e facilitados pelos avançados meios de comunicação e de transporte. Destaca-se a diáspora portuguesa, um dos maiores e mais antigos movimentos de repulsão de nacionais de um país, em termos proporcionais.

Portugal é tradicionalmente reconhecida como uma terra de emigração. Prova disto é a presença de comunidades lusitanas em todos os continentes. O processo de assentamento de portugueses no além-mar e no próprio Continente Europeu tem-se dado desde os tempos do Império e perdura até as décadas mais recentes, devendo-se a razões socioculturais, demográficas e, principalmente, econômicas. O espírito desbravador português e a exiguidade territorial de Portugal continental fomentaram a difusão da lusitanidade por todo o mundo e constituíram pilar essencial da consolidação do atual universo lusófono.

O presente artigo pretende apresentar um panorama da diáspora de portugueses

pelo mundo desde o século XV até os dias atuais, com destaque para a evolução das políticas do Estado português vis-à-vis suas comunidades expatriadas, bem como para o condicionamento daquelas à transição do antigo país colonial e pluricontinental para o novo Portugal europeu e moderno.

HISPÂNIA, LUSITÂNIA, GALÉCIA, GHARB AL-ANDALUS, PORTUCALE, PORTUGAL

A história de Portugal ancestral, região conhecida como Lusitânia à época dos romanos, inscreve-se na realidade compartilhada da Península Ibérica, até 1143, quando o Condado Portucalense adquire sua independência.

A despeito de o imaginário popular alicerçar o espírito da nação em torno do povo Lusitano, este foi apenas um dos componentes formadores da população portuguesa moderna. Na verdade, esta é resultado da mescla entre galaicos, lusitanos, celtas e cinetes, que, mais tarde, receberiam influxos de povos viajantes e afeitos ao comércio, como fenícios e cartagineses. O melting pot português completar-se-ia com as contribuições demográficas advindas do domínio romano, seguido pelas invasões germânicas, e, posteriormente, pela ocupação árabe-berbere da península. A esse mosaico de povos somam-se ainda as levas de escravos africanos importados para a região até meados do século XVII.

A composição diversificada de sua população não impediu a nação portuguesa de se consolidar prematuramente no

_especial

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Fernando Pessoa

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território que conformaria um dos primeiros países do mundo. A posição geográfica peculiar – projetando-se para o oceano –, associada à exiguidade territorial e ao caráter migratório inerente à sua população, animou o folclórico espírito desgarrado e aventureiro dos portugueses, levando-os a abandonar os limites ibéricos para transpor oceanos e Pirineus.

“DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR”

Inicialmente organizado em função da empresa colonial do Reino, o fluxo emigratório de portugueses articulou-se com vistas à exploração econômica das ilhas atlânticas e, posteriormente, dos continentes africano, asiático e americano. Enquanto estes territórios não se tornaram independentes da metrópole, não se pôde falar em emigração ou imigração de portugueses, mas em colonização.

A primeira grande leva de portugueses cruzou o Atlântico no século XVIII, por ocasião da descoberta de ouro e diamante no interior da América do Sul. Segundo Boris Fausto1 ao longo das seis primeiras décadas daquele século, aproximadamente seiscentos mil portugueses, provenientes do Continente e das ilhas atlânticas, aportaram nas Colônias Americanas, movimento que seria secundado pelo estabelecimento de colonos também nos domínios africanos e asiáticos da Coroa.

As vagas emigratórias lusitanas ganharam impulso a partir do século XIX, quando se assistiu a processos de modernização

econômica, concentração fundiária e expulsão de campesinos em toda

a Europa. A perda do Brasil e o profundo endividamento de Portugal somaram-se àqueles fatores para desencadear a saída de centenas de milhares de portugueses, que foram atraídos pela economia industrializada norte-americana, pelas promessas de terras no Brasil e por facilidades oferecidas para quem se estabelecesse nas posses ultramarinas do Reino.

Segundo a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas2, durante todo o século XIX e na primeira metade do século

XX, um milhão e meio de portugueses abandonaram o país, quase sempre por motivos econômicos. Compreende-se melhor o vulto alcançado por esta diáspora quando se vislumbra o contingente demográfico português total à época. Segundo Joel Serrão3, Portugal contabilizava 5.446.760 habitantes em 1900, incluídos Continente e domínios de ultramar. Para o autor, o fenômeno emigratório português condicionou-se à realidade de país atrasado, direta ou indiretamente dependente dos polos de desenvolvimento socioeconômico, tecnológico e cultural.

PORTUGAL MALTHUSIANOPara alguns estudiosos, a emigração em

massa dos portugueses obedece a uma lógica malthusiana, segundo a qual o crescimento exponencial da população seria a causa dos males da sociedade. O controle populacional por meio da emigração de nacionais haveria

1 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2006. 2 PRESIDÊNCIA DA UNIÃO EUROPEIA. “Comunidades Portuguesas”. Disponível em <http://www.eu2007.pt/UE/vPT/Bem_

Vindo_Portugal/Mundo/Comunidades+Portuguesas.htm>. Acesso em 9 mai 2009.3 SERRÃO, Joel (1985). “Notas sobre emigração e mudança social no Portugal contemporâneo” in Análise social, vol. XXI (87-

88-89), 995-1004.

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sido o modo encontrado pela sociedade portuguesa de manter a estrutura social prevalecente. A mesma tática serviu como estratégia de arrecadação de divisas, advindas das remessas dos emigrados.

As dimensões desse movimento migratório já eram compreendidas à época de sua ocorrência. Nas palavras do estudioso Basílio Teles,

(...) esta sangria operada nas mais activas e robustas das populações portuguesas, não obstante representar um prejuízo nacional incalculável, tem sido, contudo o único e estúpido processo de proporcionar aos trabalhadores que não emigram uma situação tolerável.4

EMIGRAÇÃO CONTROLADA E CLANDESTINA

No início do século XX, o fenômeno emigratório alcançou níveis alarmantes, principalmente no tocante às saídas clandestinas do país. Para Miriam Halpern Pereira5, o rigor com que se aplicou a legislação emigratória portuguesa variou consideravelmente ao longo do tempo. As políticas migratórias, entretanto, assumiram um viés dissuasivo junto aos emigrantes em potencial na viragem do século.

De fato, a opção dos migrantes lusitanos pela clandestinidade, principalmente aqueles que seguiam para o Brasil, os Estados Unidos e a Venezuela, deveu-se fundamentalmente à série de óbices que se lhe impunham para deixar o país. Em Portugal inexistia política de subvenção à emigração, dificuldade que se somava à exigência de emissão de passaporte especial para emigrantes e à cobrança de fiança para os indivíduos em idade militar que

se ausentassem do país. Muitos portugueses aproveitavam as janelas de migrações sazonais para a Espanha e solicitavam às autoridades consulares brasileiras no país passaportes brasileiros, os quais não lhes outorgavam a nacionalidade, mas serviam de documento válido para a viagem ao Rio de Janeiro.

EUROPA À VISTAA crise de 1929, aliada à saturação da

economia brasileira e aos reveses do pós-Segunda Guerra Mundial, redirecionou os fluxos migratórios lusitanos para além dos Pirineus, rumo à então Comunidade Econômica Europeia (CEE), especificamente para a França.

À medida que se esvaia o regime salazarista, a economia portuguesa entrava em bancarrota devido aos enormes custos das guerras coloniais e da manutenção de um combalido e retrógrado império ultramarino. A escalada emigratória prosseguiu a todo vapor e as décadas de 1960 e 1970 assistiram à debandada de mais um milhão e meio de patrícios, segundo Rogério Roque Amaro. O mesmo estudioso constata que, só no ano de 1970, 180.000 portugueses partiram para

_especial

4 TELES, 1904 apud SERRÃO, 1985, p. 996. 5 PEREIRA, Miriam (1990). “Algumas observações complementares sobre a política de emigração portuguesa” in Análise social,

vol. XXV (108-109), 735-739.

E, se mais mundo houvera, lá chegara.

Camões

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a Europa rica e desenvolvida. O número exato nunca será conhecido, uma vez que a maioria dos viajantes deslocava-se de forma clandestina, cruzando a Espanha como verdadeiros retirantes, para assentar-se nas periferias pobres dos grandes centros urbanos franceses, em suas “bidonvilles”, ou, em bom português, bairros de lata.

PORTUGAL DOS CRAVOS: MODERNO E EUROPEU

A tendência à emigração em massa arrefeceu no final dos anos 1970, após os desdobramentos da Revolução dos Cravos, de 1974. O período coincide com o colapso do império luso e com a chegada a Portugal de 500.000 a 700.000 egressos das recém-independentes províncias ultramarinas.

Ao final dos anos 1970, não só havia estancado a saída de portugueses do país, como se passou a registrar o retorno progressivo dos emigrados. Segundo Serrão (1985), no quinquênio 1976-1980, meio milhão de portugueses retornaram e, entre 1981 e 1985, mais 700.000. Para o autor, até 1990, metade dos portugueses residentes em outros países europeus já haveriam retornado ao país.

Ao final dos anos 1980, especulou-se estar praticamente finda a hemorragia de emigrantes portugueses para a CEE, fato que se coaduna com a adesão de Portugal ao bloco e com o recebimento das preciosas subvenções do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. Os investimentos e subsídios da CEE, aliados ao crescimento econômico mundial vivenciado na última década do século XX, transformariam, em médio prazo, o antigo Portugal exportador de braços em um país de imigração.

Atualmente Portugal é um país

desenvolvido e bem inserido no espaço europeu, realidade que o transformou num ímã migratório na última década. Hoje, mais de 5% da população do país compõe-se de imigrantes, com destaque para as comunidades lusófonas – especialmente a brasileira –, e para aquelas provenientes do Leste Europeu.

Não obstante esta nova tendência, as correntes emigratórias portuguesas não cessaram de todo. Transformaram-se, mas continuam a influenciar nas dinâmicas sociais e econômicas do país. Para o estudioso João Peixoto7, Portugal é, na atualidade, um país tanto de imigração como de emigração.

As atuais correntes emigratórias que deixam Portugal continuam a fazê-lo por razões econômicas e compõem-se fundamentalmente por jovens do sexo masculino, majoritariamente solteiros. Os novos migrantes, entretanto, executam trabalhos temporários, em diferentes paragens europeias e por curtos períodos, de modo a maximizar o retorno auferido com o trabalho no exterior. Segundo Peixoto, os migrantes são previamente arregimentados por empresas e dedicam-se basicamente à construção civil, agricultura e indústria metalomecânica e naval.

IGNOTOS PORTUGUESES Após cinco séculos de políticas colonialistas

e de parco desenvolvimento interno, Portugal enviara milhões dos seus filhos para os mais diversos rincões do mundo.

Recentemente, a imprensa portuguesa divulgou que, não fosse a emigração, o país atualmente teria uma população aproximada de quarenta milhões de habitantes, quatro vezes maior que o atual

6 AMARO, Rogério (1985). “Reestruturações demográficas, econômicas e socioculturais em curso na sociedade portuguesa: o caso dos emigrantes regressados” in Análise social, vol. XXI (87-88-89), 605-677.

7 PEIXOTO, João. “País de emigração ou país de imigração? Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal”. Disponível em <http://www.museu-emigrantes.org/JO%C3%83O%20PEIXOTO.pdf>. Acesso em 18 abr 2009.

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contingente demográfico. Os restantes 30 milhões de lusitanos não desapareceram, são facilmente encontrados em rostos franceses, luxemburgueses, suíços, angolanos, norte-americanos, venezuelanos, canadenses, australianos, sul-africanos e, fundamentalmente, em 80% de todas as faces brasileiras.

Segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística8, entre 1500 e 1990, aproximadamente dois milhões e meio de portugueses aportaram e estabeleceram-se no Brasil. Para estudioso da área, o coeficiente multiplicador de colonos e de imigrantes portugueses no país é nove, o que resultaria em mais de vinte milhões de brasileiros descendentes diretos de portugueses ao longo dos séculos, afora os demais luso-brasileiros que se seguiram à quarta ou quinta geração a contar dos primeiros colonos-imigrantes portugueses. Em quinhentos anos, Portugal aparentemente transferiu mais da metade de sua gente para o Brasil, e mais um quarto desta para o resto do mundo.

ONDE HOUVER UM PORTUGUÊS AÍ ESTÁ PORTUGAL

(...) só poderemos sobreviver, só (...) poderemos acreditar em Portugal, e no seu futuro, se nos concebermos como nação que abrange os residentes e os não residentes. Todos tratados em pé de igualdade.

Francisco de Sá Carneiro, 1980

Para um país cujas fronteiras englobam atualmente dez milhões de nacionais,

enquanto oficialmente se contabilizam mais cinco milhões de cidadãos no exterior, faz-se indispensável transcender o trinômio povo-território-governo para que se alcance a real dimensão da nação portuguesa. Após a queda do salazarismo e a derrocada do império colonial, o senso comum das lideranças políticas nacionais passou a compreender a necessidade de os emigrantes serem incluídos no projeto de nação portuguesa, que não se concentraria na Península Ibérica e nas ilhas atlânticas, mas que se estenderia por todo o globo.

Segundo Eduardo Caetano da Silva9, para as novas forças políticas portuguesas pós-Revolução dos Cravos, o país teria de perceber-se sob um novo enfoque, o de nação desterritorializada. A ideia é repensar a nação portuguesa para que nela seja incluía a diáspora lusa mundo afora. A noção de território deve ser relativizada, presumindo-se que onde houver um português aí estará Portugal.

A nova postura do governo lusitano junto a seus emigrados deveu-se à percepção da importância que seu enorme contingente demográfico espalhado pelo mundo pode representar para suas relações internacionais. Considerou-se também o dever de se reparar minimamente o moral daqueles que se viram compelidos a abandonar a pátria-mãe por razões materiais, o que se fez ao incluí-los no novo projeto nacional. Finalmente, a valorização do português no estrangeiro incentivou a continuidade do envio de divisas para a combalida economia lusitana das décadas de 1970 e 1980.

PORTUGAL NO SANGUE A evolução da legislação portuguesa

concernente à nacionalidade é retrato fiel

_especial

8 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/brasil500/index2.html>. Acesso em 10 mai 2009.

9 SILVA, Eduardo. Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre portugueses e luso-descendentes de São Paulo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2003. Dissertação de mestrado.

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das mudanças pelos quais passaram os paradigmas regentes das relações entre Portugal e seus cidadãos no exterior, incluída aí a descendência destes. Transitou-se paulatinamente de uma legislação alicerçada no princípio de jus solis para o coroamento do jus sanguinis.

A opção inicial pela atribuição da nacionalidade pelo critério territorial justificava-se pela necessidade de incorporação das populações dos domínios ultramarinos à nação portuguesa, que se dizia multirracial e pluricontinental. Após a independência dos domínios de ultramar, tentou-se conter os fluxos de retorno à metrópole, por meio de restrições ao acesso à nacionalidade portuguesa. Consolidada a democracia, Portugal reconheceu-se europeu e aderiu à CEE, fazendo coro com as políticas comunitárias de fechamento de fronteiras e de restrições à imigração. Estes fatores se somam ao desejo de a nação estreitar laços com suas comunidades emigradas e deságuam na consolidação do atrelamento da nacionalidade portuguesa ao sangue e não ao solo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Brade a Europa à terra inteira: Portugal não pereceu

A Portuguesa(hino nacional)

Após cinco séculos desbravando o mundo, Portugal constata, melancólico, seu retorno à exiguidade territorial de sua porção europeia. Os brios de grandiosidade lusitana certamente não foram suplantados pela adesão do país ao projeto europeu de união supranacional. Assim, Portugal projeta seu conceito de nação sobre seus nacionais espalhados pelo mundo, como forma de alívio para seu sufocamento ibérico, e vai além ao lançar mão da lusofonia

para relançar o projeto de portugalidade intercontinental. O intento ganha corpo com a consolidação das despretensiosas Comunidades dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com o estreitamento dos vínculos – sobretudo econômicos –, com o Brasil, bem como com as mediações políticas junto às ex-colônias em crise.

A afirmação de Portugal no mundo seguramente passará pelo fortalecimento de seus laços históricos, culturais e econômicos com suas comunidades expatriadas. Os instrumentos necessários a uma política desta envergadura certamente incluirão a promoção da língua e dos valores históricos, o reforço da participação cívica e política dos portugueses da Diáspora nos rumos do Portugal moderno e o aperfeiçoamento dos vínculos de cunho político e administrativo entre a pátria-mãe e seus contingentes emigrados.

De fato, a presença de Portugal nos cinco continentes e o legado deixado por esta odisseia são memoráveis e indeléveis. Há

muito a diáspora portuguesa deixou de ressentir o país pelos braços perdidos e passou a ser compreendida como estratégia de inserção global do Portugal ibérico e europeu no atual mundo multipolar em processo de reequilíbrio de vetores de força.

Ao longo de quinhentos anos, Portugal lamentou a diáspora de seus filhos mundo afora sem saber que, em vez de render seus melhores frutos ao estrangeiro, plantava eternas sementes de lusitanidade, que, mesmo recônditas, perpetuarão a nação portuguesa.

rafael soares (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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101 aNOS DE NaScIMENTO

Marcelo almeida cunha costaPedro Vinícius do Valle Tayar

Quantos mais de esquecimento?

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Efemérides são sempre oportunidades para relembrarmos fatos e personalidades. No entanto, a tarefa de resgatar a memória de grandes brasileiros não deve se restringir a ocasiões em que efemérides se fazem presentes. Josué de Castro é um exemplo de vulto nacional que não recebe a atenção merecida, como se percebe depois de passadas as comemorações de seu centenário de nascimento em 2008. Devem ser recordados, também, os 101, 102, 103 anos, numa demonstração de que seu pensamento permanece vivo e atual.

Josué de Castro foi um dos maiores pensadores brasileiros do século XX. Nascido no Recife, em 5 de setembro de 1908, foi médico, geógrafo, cientista social, parlamentar, Embaixador do Brasil junto às Nações Unidas, em Genebra, e presidente do Conselho Executivo da Organização para Alimentação e Agricultura (FAO).

Seu principal objeto de estudo foi o problema da fome, tanto em escala nacional, quanto mundial. Segundo o autor, a problemática tratava-se de tema proibido, delicado e perigoso, de forma a constituir “um dos tabus da nossa civilização”.

Durante a sua infância, no Recife, Josué travou contato com a pobreza: brincava nos mangues da cidade, onde sujava os pés na mesma lama que servia de fonte alimentar a numerosa população de miseráveis. Os versos de seu conterrâneo, João Cabral de Mello Neto, em Morte e Vida Severina, ilustram, com realismo, o cenário que sensibilizou o jovem Josué:

“Minha pobreza tal é que coisa alguma posso ofertar: somente o leite que tenho para meu filho amamentar, aqui todos são irmãos, de leite, de lama, de ar. Minha pobreza tal é que não trago presente grande: trago para a mãe, caranguejos pescados por esses mangues, mamando leite de lama conservará nosso sangue”.

A infância traz-lhe, como reminiscência, a, muitas vezes invisível, geografia da desigualdade: a aproximação física dos homens não necessariamente se reflete em igualdade de condições.

“Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife – Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Essa foi minha Sorbonne.”

Ao mesmo tempo em que vivencia os díspares meios sociais, Josué procede à densa e precoce formação humanística que

“Não foi na Sorbonne, nem em

qualquer outra universidade sábia

que travei conhecimento com o

fenômeno da fome. A fome se

revelou espontaneamente aos meus

olhos nos mangues do Capibaribe,

nos bairros miseráveis do Recife

– Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha

do Leite. Essa foi minha Sorbonne.”

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antecipava o engajamento político e sua luta por justiça social. Ainda jovem, optou pelo curso médico, realizado na tradicional Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de onde retornaria aos vinte e um anos, para exercer a profissão em sua cidade natal. Iniciava, então, sua contribuição para que os homens dos mangues recifenses se tornassem menos caranguejos e mais homens.

Em paralelo à sua formação científica e universitária, Josué de Castro valorizava o papel das artes e dos artistas como elemento de transformação da sociedade. Em especial, sempre nutriu grande admiração pelos romancistas nordestinos, que expunham as mazelas sociais da região e abordavam frontalmente o tema da fome.

O paraibano José Américo de Almeida foi pioneiro neste gênero com A Bagaceira:

“Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos. E, em vez de comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva”.

O Quinze, obra-prima da cearense Rachel de Queiroz, demonstra a preocupação dos autores em retratar as amarguras do homem comum:

“Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz”.

Na qualidade de acadêmico, Josué de Castro provocou rupturas. O médico colocou em evidência a fome como realidade, como instinto primitivo de todos os seres. Em seguida, demonstrou claramente seu contexto social. Josué conceitua o fenômeno da seguinte maneira: fome é a expressão biológica dos males

sociológicos. Seu pensamento enquadrou tanto o problema quanto a solução nos meios sociais. O autor chegou a chamar a fome de flagelado fabricado pelos homens contra outros homens.

O cientista desenvolveu, ademais, tipologia da fome. A fome epidêmica (ou quantitativa) seria a ocasião em que há privação aguda de calorias, provocando o definhamento acelerado do indivíduo. Há, também, a fome endêmica (ou qualitativa), ocasião em que ocorre suprimento de calorias, porém não há ingestão adequada de micronutrientes (vitaminas, gorduras, proteínas) essenciais ao pleno desenvolvimento do ser humano.

A publicação de Geografia da Fome, em 1946, projetou-o à esfera mundial. Desse ponto em diante, foi crescente o reconhecimento internacional, do que são exemplos as indicações ao Nobel de Medicina, em 1954 e ao da Paz, em 1963 e 1970, justamente por oferecer uma leitura inédita desta temática e desmascarar o recurso do eufemismo, recorrente, quando se tratava de escrever sobre a fome. Nota-se esse procedimento no prefácio à primeira edição:

“Resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva, de um plano

_artigos e ensaios

“Resolvemos encarar o problema

sob uma nova perspectiva, de um plano

mais distante, donde se possa obter

uma visão panorâmica de conjunto,

visão em que alguns pequenos detalhes

certamente se apagarão, mas na qual se

destacarão de maneira compreensiva as

ligações, as influências e as conexões

dos múltiplos fatores que interferem

nas manifestações do fenômeno. Para

tal fim, pretendemos lançar mão do

método geográfico, no estudo do

fenômeno da fome”.

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mais distante, donde se possa obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim, pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome”.Tratava-se de uma resposta científica

ao determinismo biológico, muito popular no Brasil do final do século XIX ao início do século XX. Sua fundamentação teórica provinha de autores internacionais, como Arthur de Gobineau (Essai sur l’inégalité des races humaines) e de autores nacionais, como Sílvio Romero (Etnografia brasileira). Essa teoria sustentava que a mestiçagem e o clima, fatores naturais, eram a causa do malogro social brasileiro. No Brasil, tratava-se de explicação natural e racial para o círculo vicioso da pobreza, como demonstra o estigma do Jeca Tatu: um camponês fadado ao fracasso, acometido por vermes intestinais; faminto, mas culpado, em face de suas pretensas preguiça e vagabundagem. Por isso Josué de Castro foi inovador: rompia-se ali com a falsa explicação naturalista predominante à época, ao considerar a fome como resultado de forças sociais e não de intempéries naturais, necessitando, portanto de ações políticas que promovessem mais equidade na produção, distribuição e consumo de alimentos.

Josué de Castro ousou levantar temas sensíveis e fundamentais da política brasileira, que até então permaneciam intocáveis. Ele denunciou que, muitas vezes, a elite, na chefia do Estado, não atua de modo a atender ao interesse público. Durante a Presidência Constitucional de Vargas, Josué apontou

a necessidade de a fome ser incorporada na qualidade de política de Estado; visto o surgimento de uma classe ascendente de trabalhadores que sofriam de fome tanto em forma epidêmica, quanto endêmica. Demandava, igualmente, maior justiça no acesso à terra, adotando a reforma agrária como uma de suas bandeiras.

A biografia de Josué de Castro é permeada de militância e atuação política. Marcou sua atuação parlamentar, em um dos períodos de maior turbulência de nossa historiografia política, pela defesa de ideais democráticos e populares. Elegeu-se duas vezes Deputado Federal pelo Estado de Pernambuco (1955 e 1959), ao concorrer na mesma chapa de Francisco Julião, então líder das Ligas Camponesas.

Progressivamente, Josué passou a atuar no plano internacional. Em suas palavras.

“E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era drama universal. Aquela lama humana do Recife, que eu conheci na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome.” Em 1951, o autor lançou Geopolítica

da Fome, ao mesmo tempo em que desempenhou altos cargos na Organização para Alimentação e Agricultura.

Josué considerava que sua atuação na política internacional não deveria estar acima das preocupações locais: era apenas um instrumento para obtenção das mudanças socioeconômicas desejadas. Assim, em setembro de 1955, com o patrocínio da FAO, realizou-se o Primeiro Congresso de Camponeses de

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Pernambuco – durante o período em que se acirravam os ânimos internos no tocante à reforma agrária.

No que concerne o sistema internacional, Josué advertia os riscos de uma política de alinhamento irrestrito aos Estados Unidos, sugeria a progressiva reaproximação diplomática com a União Soviética, condenou interferências externas em Cuba. Do mesmo modo, antecipava gerações ao propor que desenvolvimento econômico e preservação ambiental não eram excludentes e que havia necessidade de uma política de desarmamento global, em especial de armas nucleares.

Após a emergência do regime de exceção, em 1964, Josué de Castro foi destituído do cargo de Embaixador junto às Nações Unidas, em Genebra. A partir de então, impedido de retornar ao Brasil, radicou-se definitivamente em Paris. Nos últimos anos de sua vida, Josué de Castro sentia o peso do afastamento de suas origens, do Brasil e de sua querida cidade do Recife, em suas palavras “o fundo essencial do quadro de minha infância e juventude”.

Josué de Castro foi pioneiro no combate à fome, tanto em escala nacional, quanto global. A grandeza de Josué, todavia, não se revela somente naquilo que ele realizou, mas também no que ele apontou que há por se fazer. No mundo, a fome aumentou nos últimos dez anos. A crise dos alimentos, no ano de 2008 e a corrente crise financeira global elevaram para 900 milhões o número de pessoas em insegurança alimentar, segundo os dados mais recentes da Organização para Alimentação e Agricultura.

A discussão sobre o problema da fome não foi carente de resultados. Em tempos recentes, veem-se as ideias de Josué de Castro crescentemente em prática. No Brasil, a Política Nacional de Segurança Alimentar, o Programa Fome Zero, e a atuação do Ministério

das Relações Exteriores – por meio da Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome – seguem, em grande parte, a estrutura do pensamento de Castro. No plano mundial, os pactos, acordos e ações que visam combater a fome e erradicar a pobreza, cujo exemplo principal são os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, foram sucessivas vezes sonhados por Josué de Castro.

Por fim, deve-se recordar que Josué não deve ser objeto de definições simplificadoras, pois defini-lo seria limitá-lo. Ele pautou sua existência na transposição dos limites - na crença de que a fome e a miséria são desnecessárias e de que todos os homens nasceram para a felicidade e o pleno desenvolvimento de suas capacidades. Para as futuras gerações, fica a mensagem do saudoso Chico Science:

“Tem que saber pra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro... rapaz!”.

marcelo Almeida cunha costa (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba.Pedro Vinícius do Valle tayar (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de Brasília e especialista em Saúde Pública pela Universidade Castelo Branco (Rio de Janeiro).

_artigos e ensaios

“E quando cresci e saí pelo mundo

afora, vendo outras paisagens, me

apercebi com nova surpresa que o que

eu pensava ser um fenômeno local,

um drama do meu bairro, era drama

universal. Aquela lama humana do

Recife, que eu conheci na infância,

continua sujando até hoje toda a

paisagem do nosso planeta como negros

borrões de miséria: as negras manchas

demográficas da geografia da fome.”

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orDem internAcionAl e PotÊnciAs méDiAs:

uMa IMPORTaNTE lacuNa Da TEORIa DaS RElaçÕES INTERNacIONaIS

uma das maiores lacunas apresentadas pelas duas tradições de

pensamento das relações internacionais, a realista e a idealista, bem como

das mais recentes teorias explicativas da realidade internacional, consiste na

omissão do papel das potências médias. A disciplina Relações Internacionais

foi estruturada em torno das preocupações de seus criadores, as nações

anglo-saxãs. Em decorrência, assumiu um caráter elitista, restrita tão

somente ao papel das grandes potências no sistema internacional.

Paulo Thiago Pires Soares

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_artigos e ensaios

seja, extensão territorial, população, recursos naturais, capacidade industrial, capacidade militar etc. A segunda categoria abarca os elementos de poder intangíveis, tais como a cultura, os valores, a ideologia, a tecnologia etc.

Os Estados possuem esses recursos nos mais variados tipos de combinação. Os Estados Unidos, por exemplo, representam a única experiência de domínio da maior parte desses recursos; por isso, apresentam-se como a maior potência desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Representa, portanto, o que podemos definir como grande potência. No polo oposto, encontramos o Estado de Serra Leoa, a nação mais pobre do planeta. Entre esses dois extremos, encontramos mais de duas centenas de países com diferentes arranjos de recursos de poder. Todavia, não seria demasiado simplificado afirmar que todas essas nações se dividem em três níveis hierárquicos: aquelas que estão mais próximas da realidade dos Estados Unidos (Alemanha, França, Inglaterra, Japão etc.); as que se aproximam do patamar de Serra Leoa (Haiti, Somália, Sudão, Etiópia etc.); e as que se encontram em um nível intermediário (Brasil, China, Índia, África do Sul, Rússia etc.).

Embora essa tipologia seja de difícil refutação, a teoria das relações internacionais produzida pelas grandes potências ainda não se adaptou a essa nova realidade. Isso está explícito, por exemplo, na obra de um dos maiores expoentes da tradição de pensamento realista. Raymond Aron afirma que:

Qualquer que seja a configuração existente, as unidades políticas formam uma hierarquia, mais ou menos oficial, determinada essencialmente pelas forças que cada uma é capaz de mobilizar. Numa extremidade estão as grandes potências, na outra os pequenos países; umas reivindicam o direito de intervir em todos os assuntos, mesmo naqueles que não lhes dizem respeito diretamente; outros têm como única ambição intervir, fora da sua limitada esfera de ação, nos assuntos que lhes concernem de modo direto (e às vezes se resignam mesmo a respeitar as decisões

A hierarquia entre os Estados foi teoricamente delineada, então, de maneira simplista e dicotômica: as grandes potências e o restante.

Essa perspectiva refletia relativamente bem a realidade internacional do período entre guerras, quando surge a disciplina. Nesse momento da história, grosso modo, o sistema internacional era composto por colônias e metrópoles. Evidentemente, cada uma dessas categorias era perpassada por inúmeras diferenciações, o que não impedia a compreensão das relações internacionais em termos de potências e não-potências. Entretanto, as quase oito décadas que separam o marco de criação dos primeiros cursos de Relações Internacionais da atual conjuntura foram palco de profundas transformações e reviravoltas nas relações internacionais. Os processos de descolonização e de industrialização de uma parcela dos países pobres inserem-se nessas amplas transformações como o ponto de inflexão que alavanca a emergência de Estados não tão poderosos quanto as tradicionais potências e nem tão fracos quanto as antigas colônias.

A multiplicação do número de Estados ao longo da segunda metade do século XX contribuiu para tornar muito mais complexa a hierarquia das relações internacionais. As potências da primeira metade do século, não obstante algumas alterações, preservaram seus status. A inovação resultou do processo de crescimento econômico e da importância política e estratégica de parte do antigo conjunto de países sem voz. Portanto, emergiu uma terceira categoria de países, nem tão ricos nem tão pobres, nem tão poderosos nem tão fracos, que não foi incorporada às análises teóricas advindas dos países dominantes.

Objetivamente, o que define uma potência são os recursos de poder de que ela dispõe, tornando-a capaz de influir no comportamento dos demais Estados. Esses recursos de poder podem ser classificados em duas categorias: o hard power e o soft power1. A primeira categoria engloba os recursos de poder tradicionais, ou

1 A respeito dessa diferenciação, ver NYE 2002.

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que foram tomadas sem sua participação). A ambição dos grandes Estados é modelar a conjuntura; a dos pequenos, adaptarem-se a uma conjuntura que essencialmente não depende deles (ARON, 2002, p. 124).

Aron apresenta, em linhas gerais, um sistema internacional formado por dois tipos de Estados, os que moldam tal sistema e os que se adaptam a ele. Não há dúvidas quanto a isso caso nos atenhamos somente aos extremos da hierarquia. Os Estados Unidos moldam o sistema, e Serra Leoa se adapta. Contudo, há uma miríade de países que não possuem recursos de poder suficientes para moldar o sistema, mas que, por outro lado, não são tão fracos a ponto de simplesmente se adaptarem ao status quo. De fato, esses Estados constituem a principal força de desestabilização do sistema, pois a eles interessa a alteração da hierarquia. As grandes potências são responsáveis pela preservação, pela imobilidade; as potências intermediárias, pela tentativa de mudança, pela dinâmica; e os Estados fracos não possuem responsabilidades sistêmicas.

As potências médias desempenham um papel fundamentalmente regional. O exercício do papel de protagonistas mundiais cabe às grandes potências. Não obstante essa limitação, a projeção de poder em escala regional interfere sobremaneira na capacidade de atuação das grandes potências nas diversas regiões que compõem o

sistema. A atuação brasileira na América do Sul e a atuação chinesa no Extremo Oriente, por exemplo, constituem empecilhos significativos para a implementação das ambições da grande potência atual. Além disso, o protagonismo regional também tende a criar condições que permitam a ampliação da área de atuação das potências médias, como já se verifica, embora em escala relativamente limitada, no caso chinês.

Samuel Pinheiro Guimarães aproxima-se muito da compreensão de potências médias defendida aqui. Utilizando o termo “grandes Estados periféricos”, Guimarães caracteriza as potências intermediárias como países não-desenvolvidos, detentores de dimensões territoriais e populacionais substancialmente expressivas, com grandes potencialidades econômicas e estruturas industriais e mercados internos significativos. Na perspectiva desse autor, assim como deste artigo, o desenvolvimento das potencialidades apresentadas por esses países geraria desdobramentos notáveis em suas capacidade econômica e em seu poderio militar. Consequentemente, a capacidade de exercer influência regional e mundialmente ampliar-se-ia profundamente (GUIMARÃES 1999, p. 18-23).

Paulo thiago Pires soares (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Relações Internacionais pela mesma instituição.

Bibliografia:

ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

CABRAL, Severino. Brasil Megaestado: Nova Ordem Mundial Multipolar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos Anos de Periferia: Uma Contribuição ao Estudo da Política Internacional. Porto Alegre / Rio de Janeiro: Editora da UFRGS / Contraponto: 1999.

NYE, Joseph S. O Paradoxo do Poder Americano. São Paulo: Unesp, 2002.

VILANOVA, Pere. El Estado y el sistema internacional: una aproximación al estudio de la política exterior. Barcelona: EUB, 1995.

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SFuMaTO: a DIMENSÃO aMBíGua Da lINGuaGEM

Diego Kullmman

“Então me diz qual é a graça/ De já saber o fim da estrada/Quando se parte rumo ao nada?”

A seta e o alvo – Paulinho Moska e Nilo Romero

“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.”

Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa

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a terceira margem do rioPoucos admitiriam passividade diante

da “Mona Lisa”. A dama florentina parece verdadeiramente observar-nos, aparentando não mera vivacidade, mas um espírito próprio. Demais, a impressão que se tem da obra sugere contínuas reinterpretações: um ar misterioso, indefinido, turvo, preenche as curvas faciais da “Gioconda”, instigando a imaginação do observador.

As grandes obras dos mestres italianos do Quattrocento que seguiram a proposta de Mosaccio1 comportam elemento comum: por mais habilidosos que tenham sido os artistas no uso do delineamento e da perspectiva, as figuras se mostram algo duras, rijas, com pouca expressividade.

É Leonardo Da Vinci quem vence esse desafio, por meio do sfumato, um “delineamento esbatido e cores adoçadas que permitem a uma forma fundir-se com outras”2. Essa técnica empresta à imaginação indescritível deleite; sempre algo a alimentar, a fustigar, como se a proposta artística não aceitasse fruições unívocas.

O sfumato consagra a genialidade de Leonardo na pintura, mas o efeito do sombreamento da Mona Lisa não se limita à maneira pictórica de expressão artística. De forma análoga, é intuitivo reconhecer que o sfumato configura uma das principais características do texto literário.

la vida secreta de las palavrasConstitui tarefa pendente na crítica

literária, em que pese o empenho de estudiosos formalistas e estruturalistas, revelar o índice de literariedade de um texto. Essa limitação, porém, não exclui a possibilidade de pormenorizar alguns aspectos típicos do discurso literário, sobretudo se o contrapomos à linguagem utilitária do cotidiano.

Domício Proença Filho verifica seis caracteres distintivos3, dos quais três reclamam análise particular: a complexidade, a multissignificação e a liberdade criativa.

A linguagem literária configura-se complexa, em virtude de sua evidente opacidade. Inexiste, pois, transparência, precisão informativa, fluidez lógica, um relacionamento imediato com o referente, motivo que constrange a significação pedestre dos signos. Assim é que o vínculo entre escritor e leitor se estabelece em diferente campo semântico, no plano da sugestão, da ambiguidade; recurso caro à fruição estética, dado que o texto literário não apenas avança pela mera reprodução, mas também “abre-se a um tipo específico de decodificação ligado à capacidade e ao universo cultural do receptor”4. A mensagem literária possui, nesse sentido, uma “intenção estética”, diferentemente da linguagem cotidiana, cujo objetivo situa-se nos limites da comunicabilidade, porque pretende ser útil, clara, precisa. O texto literário “não estabelece uma relação ordinária, mas uma comunicação que se situa em outro nível: o nível artístico”5.

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! (...)6

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É consenso admitir também que o texto literário é plurissignificativo, visto que os signos linguísticos admitem significados plúrimos. Não se busca a plena clareza da comunicação, tampouco a obediência às balizes gramaticais; antes, o escritor, no intuito de alcançar a perfeita expressividade artística, remodela os significantes e os significados estanques da língua.

Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo para a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões (...)7

Conjugadas, a complexidade e a multissignificação conduz-nos à própria liberdade artística. Permite-se, portanto, subverter o léxico, porque o arcabouço existente de signos não raro se mostra insuficiente para representar no papel a inspiração mental do escritor. A esse respeito, embora em outra seara artística, o pintor holandês Jan van Eyck é caso basilar: no

século XV, ele revolucionou as ferramentas usuais da técnica pictórica, ao inventar a pintura à óleo. Por que o bafejo artístico deveria atender a prescrições normativas?

Desfecho doloroso apre bisbórria aqui desalumiado rezingando pelos cantos oxe vida toda luz viva huifa tempo fosforejando preluzindo resplandecendo huum ser iluminado literalmente pirilâmpico aie desfecho deprimente velho feito eu terminar com todos eles órgãos luminescentes desativados apre.8

Não se pretende aqui afirmar, todavia, que a vocação sugestiva reclame, necessariamente, novo instrumental expressivo. De fato, é

1 Pintor florentino (1401-28) que, além de criar estratagema técnico da pintura em perspectiva, buscou também simplicidade e grandeza nas suas figuras: constituíam maciças e sólidas formas angulares, mas com incrível sinceridade e comoção.

2 GOMBRICH, E. H, História da Arte, Editora LTC; Rio de Janeiro, 16ª edição, pg. 302.agenda da Assembleia Geral sob o item intitulado “Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the

Security Council”.3 São eles: complexidade, multissignificação, liberdade de criação, variabilidade, ênfase no significante, predomínio da conotação.

PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária, 7ª edição, Editora: Ática, São Paulo, Série Princípios, pgs. 37 a 44.4 PROENÇA FILHO, Domício, idem, pg. 8.5 VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. Editora Martins Fontes, 2003, São Paulo, 12ª

edição, pg. 179.6 Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, em Ode Marítima.

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igualmente possível que a inspiração do autor, bem como a ambiguidade natural de sua arte, apóie-se na “experiência coletiva” e se utilize de “meios comunicativos acessíveis”9. É o que Antonio Candido denominou “arte de agregação”, em oposição à “arte de segregação”. De todo modo, o destino estético permanece em ambas.

Cumpre salientar que o discurso literário pertence à esfera da Estilística, espaço dedicado à originalidade, ao engenho, à criação. Em suma, a liberdade permite desmerecer as fronteiras da comunicabilidade, óbices do texto utilitário, pois o objetivo estético deve atender unicamente às intuições, às transpirações do autor. O escritor transforma-se, portanto, em um “designer” da linguagem.10

Uma das coisas que mais profundamente distinguem a Gramática da Estilística é o conceito de erro: ao contrário do que sucede na Gramática, em Estilística não há propriamente erros, porque para os maiores desvios é achada uma determinante psicológica, natural.11

Uma atitude de independência em face de regras gramaticais cabe de direito aos literatos, antes que aos que usam a língua com objetivo prático. Do literato espera-se uma visão pessoal em questões de forma estilística, já que a língua é a sua preocupação primária e a matéria-prima de sua arte.12

Os três aspectos revelam a dimensão ambígua da linguagem literária, o sfumato de Leonardo Da Vinci. Evidenciam também um problema: qual o limite, a fronteira do direito dos intérpretes? Será o texto literário um “piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido”13? É ainda permitido “desbastar o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito”14? Enfim: até onde pode levar-nos o sfumato de Leonardo?

uno, nessuno, centomilaAo publicar, em 1962, o livro “Obra

aberta”, Umberto Eco busca aclarar o papel ativo do intérprete na leitura de textos com intenção estética. Delineando nova dialética entre autor e leitor, Eco assevera que a linguagem literária não é algo acabado ou definido, que autoriza um percurso univocamente organizado, mas uma miríade de sugestões conferidas ao deleite do intérprete. Nesse caso, as obras não se mostram concluídas; em verdade, podem ser reinterpretadas a todo instante.

A poética da obra “aberta” tende, como diz Pouseur, a promover no intérprete “atos de liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos de organização da obra fruída (...)15

Há de ressaltar, no entanto, que a palavra “abertura” não implica infinitas possibilidades

7 José Saramago, em O conto da ilha desconhecida.8 Evando Affonso Ferreira, em Barbalhoste, mini-conto

do livro Zaratempô!.9 MELLO e SOUZA, Antonio Candido. Literatura e

Sociedade, 8ª edição, São Paulo: T. A Queiroz, 2000; Publifolha, 2000 – Grandes nomes do pensamento brasileiro -, pg. 21.

10 PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem, comunicação, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, 25ª edição. pg. 19.

11 LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa, 4ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1998, pg. 197.

12 CÂMARA JR., J. Matoso, pg. 13…13 TUDOROV, T. “Viaggio nella critica americana”,

Lettera, 4 (1987), pg. 12. 14 RORTY, Richard. Consequences of Pragmatism,

Minneapolis, University of Minnesota Press, 1982, pg. 151.

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de fruição e de interpretação da forma. Isso porque, não se pode evitar a direção sugerida pelo autor. Assim, “há somente um feixe de resultados rigidamente prefixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa do leitor não escape jamais ao controle do autor”16. Aliás, cumpre frisar que, no desenrolar da Era Moderna, a função do autor no seio do texto literário reforça-se de forma gradual e significativa, tendência que não se arrefeceu nos séculos seguintes. Segundo Foucault, “o autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”17. Isto é: o autor estabelece uma atmosfera de interpretações, a fim de evitar que o leitor se perca em um vácuo fruitivo.

Além dos limites implícitos estabelecidos pelo autor, deve-se mencionar que um texto literário vislumbra também um destinatário final, um leitor-modelo. Esse intérprete qualificado não apenas reúne as ferramentas necessárias para respeitar o substrato sócio-cultural, histórico e linguístico do período em que se situa a obra, como também pode inferir as minúcias sugestivas do autor, tendo em vista que costuma conhecer o repertório estilístico do próprio texto. Embora a linguagem se projete, funcione, atue no tempo, ela pertence ao espaço.

(...) a função da linguagem não é o seu ser: se sua função é tempo, seu ser é espaço. Espaço porque cada elemento da linguagem só tem sentido em uma rede sincrônica. Espaço porque o valor semântico de cada palavra ou de cada expressão é definido por referência a um quadro, a um paradigma.18

Assim sendo, o leitor-modelo acaba por estabelecer relação confidente com o autor, o que favorece a descoberta da “intenção do texto”:

Como a intenção do texto é basicamente a de produzir um leitor-modelo capaz de fazer conjecturas sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo consiste em imaginar um autor-modelo que não é o empírico e que, no fim, coincide com a intenção do texto.19

Do ponto de vista sociológico, promove-se um arranjo inextrincável entre o autor, a obra e o público:

Na medida em que a arte é (...) um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel.20

Ressalte-se que a “intenção do texto” não objetiva revelar um rumo, uma verdade narrativa, mas um leque de possibilidades viáveis, que jamais deve ser confundido com arbitrariedade.

Há limites, portanto, para os misteriosos contornos da Mona Lisa. Como se percebe, a liberdade plena é tão-só criativa, não interpretativa.

15 ECO, Umberto. Obra aberta. Editora Perspectiva, “debates”, São Paulo, 2003, 9ª edição, pg. 41.16 ECO, Umberto, idem, pg. 43.17 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970 -, Edições Loyola,

São Paulo, 8ª edição, julho de 2002, pg. 28.18 MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, pg. 168.19 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, 3ª tiragem, “Coleção tópicos”, pg. 75.20 MELLO e Souza, Antonio Candido, idem, pg. 33.

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catarse: individuum est ineffabileA esse tempo, é permissível concluir que a

arte não apresenta qualquer utilidade. Oscar Wilde, no prefácio de Retrato de Dorian Gray (1923), ressaltara que toda arte é inútil. Essa irrelevância prática, esse desapego a necessidades imediatas esconde, no entanto, um objetivo metafísico de essencial importância para a humanidade. 21

Parodiando José Saramago, que atestou serem os olhos a nossa janela da alma, pode-se inferir que o sentido de uma obra reside nessa capacidade de tornar-se um reflexo da intimidade humana – terreno incógnito, impronunciável, insondável, labiríntico, privativo. E por universalizar o singular, a manifestação artística conquista status perene, atemporal, eterno, capaz de atravessar imune a torrente dos tempos.

Uma obra aberta e imperfeita parece revolver, assim, o âmago da nossa espécie. “Conhece-te a ti mesmo”, diria Sócrates, evidenciando-nos de um lado a inexorável fatalidade da existência e, de outro, a inferioridade humana ante a vida em si. Ao revelar o íntimo do ser humano, a arte soleva-se, portanto, como transfiguradora da realidade. Como afirmou Eça de Queiroz, trata-se de “cobrir a nudez crua da verdade com o manto diáfano da fantasia”. Assim é que a “luta contra a morte parece se constituir na vocação essencial da arte”.

A arte, em sua aparição dominadora, sob as máscaras por meio das quais se manifesta, é como a lâmpada de Aladim, repleta de prodígios se friccionada pela magia do artista contra as sombras do real palpável e visível mas, infelizmente, transitório.22

Os traços de Leonardo, a poesia de Guimarães Rosa, a música de Chico Buarque, os filmes de David Lynch estabelecem um intercâmbio sinérgico com o Homem: defronte ao espelho, ele se reconhece, e se contenta com isso. Sua imperfeição é agora júbilo; sua mortalidade, regozijo. E nesse fúlgido momento, nesse instante raso, a nossa espécie eleva-se sobranceira e majestosa a mais alta esfera do espírito.

Diego Kullmann (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá e mestre em Governo e Gestão Pública na América Latina pela Universidade Pompeu Fabra (Barcelona).

21 Segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida”. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pg. 26.

22 MONTEIRO, Ângelo. Escolha e sobrevivência: ensaios de educação estética. São Paulo: É Realizações, 2004, pgs. 193 a195.

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DeusGustavo Henrique Maultasch de Oliveira

Nas fronteiras do país semântico, os exércitos do Charlatão preparavam-se para a invasão.

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e o chArlAtão

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Enquanto isso, o nosso herói......acordou inquieto, com náuseas; os

pensamentos granulados. Ainda deitado, olhava para os riscos de luz que venciam as dezenas de paletas horizontais que formavam a cortina, e via, nas frestas, imagens que seu quarto buscava esconder. Algumas palavras, um ou outro logotipo, figuras geométricas. Não chegou a ler as letras que vira, pois as frestas parecerem formas identificáveis já lhe era tradução suficiente do real; qualquer outra ação seria exagerar na já sobreinterpretação daquele mundo que o despertou. Tornava a fechar os olhos, e era o mundo interior, seus raciocínios, que se consubstanciava em figuras: sequências de imagens multiformes, em múltiplas cores cambiantes, revezavam-se, configurando novas formas, em infinitos fade in’s; um agitato eletrônico acompanhava o tempo do caleidoscópio mental.

Abriu os olhos, a realidade se impôs, precisou ir ao banheiro. Levantou-se e, a meados do caminho, ouvia batuque forte, polifônico tambor de crioula – até o respiro do encanamento mantinha ambições de representação. No banheiro, os raios de sol que perfuravam o cobogó traziam à vida as poeiras que se provocavam; brincavam de se pegarem e o convidavam à coreografia do milagre – o da cabala de se ver, em tudo, significado e razão. Provocado, aprendeu, com o fino pó da luz, a provocar a realidade; haveria de ver imagens não apenas nas brincadeiras com as grandes nuvens no céu em finais de semana; de pôr ordem em todo o caos. Ver além é alucinar, ver aquém não é para heróis; decidiu-se pela loucura. Às vezes, só o proceder com extrema irreflexão revela o verdadeiro prudente que se é.

Teve fé no que lhe disseram, acreditou no que viu, aceitou o que lhe era provado: viveu; e, ainda assim, restava-lhe pouco para dizer sobre a realidade que lhe amaldiçoou a igualdade da relação entre ele e o mundo. Com as pupilas da alma dilatadas, não demoraria muito para que as inconfidências do real também se lhe tornassem visíveis.

Forçado a viver com a realidade, haveria de buscar, dentro de si, solução que o apaziguasse em sua submissão. Passou a sonhar todas as noites com o real e com o que poderia fazer dele; em posições trocadas, em linguagem cifrada, comunicava-se com a realidade, ia-na compreendendo. Perseguia imagens que lhe informassem do mundo, testava projetos políticos, vivia vidas inteiras de amores, mutuamente excludentes, simultaneamente. O que seu corpo retinha, sua alma dava forma, caprichava, permitindo-lhe voltar a sofrer a realidade em sensibilidade renovada. Tinha esperança também, é evidente, mas isso não o afastava dos sonhos; ao contrário, trazia-se a esperança para dentro deles, pois sabia que, humanamente, todo ser é dever-ser.

Era, portanto, através de sonhos que se relacionavam; a experiência corpórea e direta entesava-lhe, nada mais. E pôde, cada vez mais, pôr os sonhos para trabalhar para si; pôde interpretar a realidade no limite de sua utilidade, sem deixar-se levar por uma nova realidade, fantasiada, mas igualmente dominadora. Não seria, definitivamente, mulher de malandro; decidiu que sonhar com uma banana significaria, às vezes, apenas sonhar com uma banana.

Era-lhe providencial que o dia se dividisse em dia e noite; era-lhe útil que ele mesmo se dividisse em corpo e alma; era-lhe vital, portanto, que mantivesse sua capacidade de sonhar e que erigisse, dentro de si, o palco em que se dariam os atos da realidade que lhe permitiriam ser humano e moldar o real em nome de seus projetos para a humanidade. Suas sessões libidinais com a realidade tornavam-se, à noite, inspirações para seus sonhos e, com o passar dos anos, intensificava-se seu apetite, sua busca por sensações de qualidade, por prazeres ainda não experimentados.

Não encenava cópias repetidas do real, mas complexas representações dirigidas, onde introduzia a carga humana de sua arte. Não se distanciou do real de nenhuma maneira, nem se vendo estanque, nem se vendo como

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incapaz de apreendê-lo e, portanto, obrigado a contentar-se com esperanças. Enobrecia o que sentia, abrilhantava o resultado e obtinha, por fim, a representação do que a realidade é e do que deveria ser.

O lisérgico, que antes inebriava sua mente, passou a perfumar a realidade esconjurada.

A realidade exorcizada e o livre-arbítrio

Mérito, mérito dele; mas só podia, mesmo, ter sido assim. A realidade contém seus elementos futuros, e ele era apenas uma das peças biológicas da progressão real. Chegou-se àquilo, mas o tempo não existe; se somente há o devir, e o devir é o pré-devir do devir seguinte, somente há a soma total dos devires, o encadeamento infinito de todos os tempos. O tempo não passa, ele já passou inteiro; toda a história do mundo já se realizou – embora a falta de script dispense a constatação. Seja essa a realidade, pouco importa, em seus sonhos ele representa o que crê ser melhor para a humanidade; é ser humano, e ansioso com sua insignificância diante do tempo, injeta-se dever-ser para dormir.

Teve, uma ou outra vez, sonhos mais poderosos, mais verdadeiros. Quando se ocorria, seu sonho não mais se limitava aos contornos do que havia sentido; tornou-se impressionista, personagens borravam-se com o tempo, os cenários fundiam-se aos ânimos, os dizeres coloriam os olores das ideias. Todo o espaço-tempo de todos os tempos somou-se, sinestesiou-se a realidade, Deus surgiu. Obrigou a Deus a criar o céu e a terra; em seguida ele mesmo os criou, enquanto Deus observava. Deus, como qualquer objeto do real, estava à sua disposição, e sentiu-se autorizado para retalhá-lo em signos e pôr ordem ao caos. Deus existindo, há liberdade para tudo.

A máquina de sonhosToda a vida de nosso herói, e a

preparação para o combate – que já se aproximava –, ele devia à máquina de sonhos, que o usava a seu serviço. Seu corpo todo eram terminais a alimentar a prospecção da máquina por material imaginatório; dia e noite, o equipamento sugava-lhe por novas sensações, novas impressões, os quais eram ruminados, devolvidos à realidade, para novos processamentos consecutivos. A máquina não descansava nunca; por mais que porventura se tentasse fechar, a inquietude entrava-lhe pelas narinas.

Ao final de cada sonho, enxergava a realidade com uma nova realidade em mente. Não conseguia mais vê-la como antes; quanto melhor o dia da máquina, maior a propositividade de sua presença no mundo. Viver era orquestrar o material de sonho com o sonho, compondo-lhes o ritmo, afinando seus instrumentos.

Gradualmente tornou-se capaz de delinear seus sonhos, ainda que sem poder dirimir sua necessidade; sonhar era involuntário, mas com gerência possível, assim como sua ação no mundo, necessariamente ética, mas aberta a suas cores. Eventualmente, porém, quando precisava libertar-se em busca de sonhos mais puros – assim como se deu quando sonhou com Deus – precisava borrar a realidade; queria escutar música sem ver notas, o prazer do som pelo prazer do som; era o contato com a realidade pura, aliviada de seus fetiches. E, após a fruição desses sonhos puros, podia voltar, revigorado, a trabalhar as partituras regentes da vida.

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A invasão da gripeEra precisamente na manipulação

dessas partituras que se configurava o poder do Charlatão; os músicos que as interpretassem tornariam silenciosos seus instrumentos enquanto as seguissem. A música do Charlatão era pura semiótica de guerra – somente exércitos surdos-mudos as entendiam. A luz não demandava mais o iluminar; o semeador prescindia do semear; a tradição, de seu arrazoado. Fazer a convicção mais forte do que a verdade; era esse o vírus do charlatanismo. A invasão do Charlatão iniciou-se, assim, em guerra psicobiológica, perfurando a membrana das terras do país semântico, aproveitando-se das fraquezas constitutivas dos paisanos de nosso herói.

Em pouco tempo, a virose grassou. A forma da representação brilhava independentemente do representado. Os significantes viraram estrelas, caras de atenção, beneficiosas da economia do tempo. O que serviria para chancelar a realidade, passou a confundir-se com ela; o nome vira o real, o título vira a qualidade; o que deveria atalhar a complexidade da realidade passou a defini-la aos olhos de quem pouco a compreende. É o efeito da gripe charlatã.

Delirando de febre no mundo simbólico, circulando por representações sem voltar à realidade para checagens, as vítimas cometem, inevitavelmente, soluções ruins, enunciados toscos. Descompassam-se o enunciado e a realidade; a lei e as bases sociais que a tornam necessária. Inevitavelmente, o vírus atingiria a representação; significantes sem significados, representantes sem representados. Por fim, ninguém saberia mais o que é importante; a política fadar-se-ia ao fracasso. No limite, a gripe borraria o país, tornando o mundo uma alegoria impressionista do que poderia ser uma convivência útil; Deus tornar-se-ia impossível.

Nosso herói também dispunha dessas mesmas ferramentas de manipulação, mas o Charlatão não mantinha respeito aos absolutos em referência; se a realidade se impusesse restringindo-lhe o campo semântico, ele simplesmente esquivava-se; impostor, impostava a entonação e iludia os outros; desonesto, ignorava a realidade.

Expedido às fronteiras, nosso herói dirigiu-

se ao confronto com o Charlatão. Não se deixaria ludibriar; ordenou que o amarrassem ao mastro de Deus, para que não o atraíssem as seduções das facilidades. Protegido das palavras falsas, nosso herói precisava defender a política de seu país, repelir a incursão charlatã e suas falcatruas para re-significar a realidade paisana em nome de projetos pouco úteis à convivência. Acendeu o abajur de sua tenda, e a epifania; não pela luz, mas pelo próprio abajur – o abajur somente seria um abajur no dia em que acender sozinho; o real somente seria a si próprio no dia em que se significar sozinho. Jurou-o para si. Até lá, dependente de seu trabalho de retalhamento, será o que nosso herói quiser que seja, no limite da utilidade para seu país.

Havendo encontrado a Deus, e imune ao Charlatão – graças ao abajur epífano –, nosso herói deveria preparar-se para curar os afetados. Muitas máquinas em conjunto seriam necessárias, com a humildade dos que crêem no trabalho em grupo, e vêem a vitória de um como o caminho para a vitória de todos – já que um está contido em todos. A convicção do Charlatão havia, porém, contaminado os paisanos, que obedeciam às regras erradas; infectados com a virose charlatã, restavam incapazes de dar valor a seus símbolos – as formas se corromperam, os objetivos de amesquinharam, a incompreensão dotou-se de jactância, o nada tornou-se capaz de vaidade.

O herói estava sozinho. Fixou-se a trégua. O Charlatão comemora a vitória com os paisanos, enquanto nosso herói lamenta a derrota e põe a máquina no trabalho de recriar a Deus.

gustavo henrique maulstach de oliveira (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro

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auGuSTO RuScHI:O Homem que falava com Beija-Flores

Ricardo dos Santos Poletto

_artigos e ensaios

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Ando dentro desta florestamelhor do que você na rua,

sou um habitante dela

Infância: iniciação científica

Enquanto não se formar a criançada na direção certa, o futuro da natureza do

Brasil continuará ameaçado

A inclinação da família Ruschi para a ciência deu seus frutos no Brasil quando os imigrantes Giuseppe Ruschi e Maria Roatti desembarcaram no Espírito Santo para prestar auxílio técnico aos colonos italianos. O pequeno Gutti nasceria, então, na cidade de Santa Teresa em 12 de dezembro de 1915. Desde cedo, o pequeno teresense se embrenhava nas matas e esquecia do mundo dos homens e do progresso urbano-industrial que, veloz, fagocitou o verde. Absorto em seu mundo natural de coleções, registros e experiências, Ruschi já vivia seu mundo lúdico de infância naquilo que seria a razão de sua vocação profissional e humana.

O Museu Nacional e Jardim Botânico já recebia desde então contribuições do precoce cientista, como quando, por intermédio do Professor Mello Leitão, participou de maneira decisiva das pesquisas do entomologista Felippo Silvestre no combate internacional à praga dos laranjais. As atividades de campo, portanto, já eram empenhadas desde insetos sobre a carteira da sala de aula às suas ilustrações dos espécimes florais do jardim cultivado pelo pai na Chácara Anita.

O facho vermelho da lanterna cintila em meio ao emaranhado de galhos e ramos que se adensam na mata fechada. Margeando o rio Timbuí, uma figura de estatura privilegiada caminha com notável desenvoltura. Com efeito, os passos ágeis e silenciosos entre as pedras do terreno irregular revelam grande intimidade com o ambiente. O som de queda d’água se torna mais forte à medida em que se avança. Ouve-se, enfim, a força das águas da cascata Santa Lúcia. O luar vence a resistência das frondes mais altas e penetra suave, pousando sobre trechos da trilha; e o personagem, absorto na escuridão serena da Mata Atlântica, recosta-se em um de seus jacarandás favoritos, de onde observa animais e plantas que somente olhos treinados podem reconhecer. Desliga a lanterna. Augusto Ruschi se mistura, por completo, à natureza.

Foi assim durante mais de cinquenta anos em que vocação, trabalho e filosofia de vida se provam indissociáveis. A história de Ruschi

é a história de um homem que respeitava a floresta, entendia os morcegos, namorava orquídeas e falava com

beija-flores. Os vinte e três anos que nos separam

da morte de Augusto Ruschi são também anos de transformações importantes político-institucionais, de mentalidade, de resposta sistêmica do meio-ambiente à ação humana. Assim, o momento de resgatar a memória de Augusto Ruschi é também o momento de discutir o Brasil e suas raízes, sua vocação territorial, seus desafios, suas responsabilidades, enfim, seu projeto de nação e de desenvolvimento. Afinal, nunca é tarde para rememorar exemplos do melhor da brasilidade.

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_artigos e ensaios

a paixão de uma vida: os colibris

A alegria do barulho desses beija-flores ninguém vai silenciar enquanto eu existir.

Ruschi inclina levemente o pescoço, enquanto o colibri, congelado no ar, aguarda o momento de se aproximar. Em um átimo, a máquina fotográfica paralisa as lépidas asas no momento em que o bico comprido toca os lábios do professor. Uma cena de intimidade única entre o homem e a natureza recebeu o fortuito título de “beijo que o tempo não esquecerá”, em edição da Revista Manchete no final dos anos 70.

O reconhecimento internacional da contribuição científica de Ruschi teria eco maior anos antes. “The man who talks to hummingbirds” foi o título da matéria da National Geographic Magazine, que correu o mundo em janeiro de 1963. O jornalista Louis Marden se confessou impressionado com as cenas testemunhadas em Santa Lúcia; ficara convencido de que o cientista capixaba era capaz de se comunicar com os beija-flores que visitavam constantemente a casa centenária incrustada na mata virgem. Narra também a transformação do “verdureiro” - como Ruschi era chamado pelos teresenses por passar dias na floresta em busca de bromélias e orquídeas - em “Dr. Augusto Ruschi, cientista, o homem dos beija-flores”.

O menor vertebrado do reino animal, beija-flor, colibri ou guainumbi na língua dos caraíbas, deriva seu nome indígena dos tons metálicos de sua plumagem: pássaros cintilantes. A Ruschi não faltou inspiração para nomeá-los a cada novo registro de um árduo trabalho de identificação de espécies e subespécies; para cada novo beija-flor, uma marca singular de topetes, caudas, bicos, cores, tons, chilreios e acrobacias.

Os beija-flores representavam uma grande lacuna nos estudos ornitológicos e ambientais da época e Augusto Ruschi abraçou a missão de preencher esse vazio, a ponto de se tornar, em poucos anos, precursor e inigualável especialista. De seu interesse pelas orquídeas, Ruschi acaba por se apaixonar por seus

velozes e delicados polinizadores. Justificava: “essa importância pessoal e biológica que eles realmente têm para mim se estende também para a biologia como ciência”.

Ruschi data o início de seu interesse pelos beija-flores em 15 de dezembro de 1934, quando descobre a polinização da orquídea Stankopea graveolens pelo balança-rabo-da-mata (Glaucis hirsuta hirsuta). Com justiça, os beija-flores se tornaram a epítome da luta de Augusto Ruschi. Os estudos pioneiros sobre os pequenos colibris deram origem a obras completas sobre Beija-flores do Espírito Santo e do Brasil em vários volumes; foi o primeiro a ter sucesso em reproduzi-los em cativeiros e a domesticá-los, o que lhe valeu justo reconhecimento internacional.

O mestre: o amigo e exemplo de disciplina

’Eu não posso estudar entre quatro paredes. Eu quero voltar para minhas

florestas’ (…) Percebendo minha determinação, os diretores do museu

(Nacional) concordaram em fazer uma estação de campo em minha casa em

Santa Teresa. Meu mentor morreria em 1948, e, em 1949, eu fundaria o museu

cujo nome lhe é homenagem.

Fundamental a figura do professor Cândido Firmino de Mello Leitão, que tomou o jovem Ruschi por seu discípulo nas ciências. Admirado pela observação sistemática do ciclo de vida da praga dos laranjais, Mello Leitão percebeu no jovem Ruschi o perfil de um promissor naturalista. Logo, o adolescente Ruschi passaria a trabalhar no Museu Nacional e Jardim Botânico, onde pôde contribuir para a catalogação da flora e fauna da Mata Atlântica. Embora a Universidade Federal do Brasil e a prática docente, no Rio de Janeiro, tenham se provado uma grande escola do rigor científico sob a supervisão do mestre

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Mello Leitão, Ruschi almejava retornar logo para sua terra natal, para execução de suas pesquisas de campo. Ao contrário dos livros, a natureza nunca se esgotava diante de sua curiosidade penetrante. E, de fato, ao sinal do primeiro pretexto, retornou para Santa Teresa, de onde julgava mais apropriado disseminar sua mensagem. Ruschi passou a produzir artigos e trabalhos, além de auxiliar organismos governamentais na formulação de políticas públicas tangentes à temática ambiental.

as lutas: o Dom Quixote das matas

E indignação era o que mais lhe detonava o temperamento irascível. O tom

de voz crescia de volume assustadoramente, o rosto ficava rubro, e mesmo que estivesse

narrando um fato já ocorrido, qualquer interlocutor sem intimidade com o mestre,

temeria que tal exaltação transbordasse em atos ali mesmo. Nada. Só a miopia e a

iniquidade humana eram capazes de lhe detonar tal furor.

Diógenes Rebouças Filho, Jornal A Tarde, Salvador, junho de 1996

À febre do jacarandá, então a madeira de lei mais cobiçada pelos serralheiros, seguiu-se a febre do palmito. A corrida do palmito teve como alvo o santuário natural que consumira a Ruschi quarenta anos de trabalho e conservação.

Espingarda em punho, com o chapéu de feltro preto a escurecer seu semblante de cenho franzido, aguardava quem quer que fosse na soleira do casarão. Os oficiais e topógrafos enviados pelo governo do estado receavam em se aproximar, ao se defrontarem com a irredutibilidade do naturalista sentinela. As duras palavras de Ruschi, ao prometer reagir a bala a um ataque à sua floresta, foram respaldadas pelo frenético bater de asas de dezenas de colibris que congestionavam a varanda.

A alguns metros dali, assessores e secretários andavam com livros e códigos debaixo do braço a fim de justificar a legalidade da autorização dada pelo governador do estado à extração do palmito para uma indústria de enlatados. Ruschi, ele mesmo advogado de formação, levantou-se contra a lei dos homens para fazer valer o código da floresta. Não podia aceitar definições de órgãos ambientais contaminados por interesses econômicos. Vinha à memória a derrubada de florestas no norte do estado, o reflorestamento indiscriminado de eucaliptos, o comprometimento da reserva de Comboios, a desertificação, o desaparecimento dos tamanduás e bem-te-vis...

Inevitável mesmo resgatar o episódio do decreto do governador Élcio Álvares, quando a mensagem de Ruschi teve maior eco, atraiu a imprensa e sensibilizou a opinião pública para sua causa tantas vezes antes silenciosa. No fim, após a repercussão da caravana ecológica que se alinhou à causa do naturalista, o governador foi sensato diante de um gigante adversário: desistiu da execução do decreto. No episódio de 1977, os jornais estampavam o rosto do naturalista com a pergunta evidente: “Você trocaria este homem por uma lata de palmito?”. Triunfo semelhante ele obteve na Floresta da Acesita, Sooretama, na Fazenda Klabin e outros santuários naturais de terrenos particulares, cujos proprietários eram muitas vezes demovidos do intuito de desmatar pela intervenção de Ruschi, disposto a arcar com a compensação pecuniária, enquanto o Estado permanecia cego às suas responsabilidades. Salvar o jequitibá-rosa de seis séculos foi mais uma entre tantas. Não raro, estampavam os jornais de Vitória: “Augusto Ruschi está metido em outra confusão ecológica no Espírito Santo”.

As lutas contra os poderosos das grandes corporações e da política local lhe valeram a alcunha de “Dom Quixote das Matas”. Se não é de todo despropositada a comparação com o personagem de Cervantes, ela guarda também uma abordagem ambígua da imprensa sobre um protagonista de noticiários. Fontes da imprensa local, sob a guarda de interesses particulares, empreenderam política de difamação contra as ações inusitadas

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do desafeto. As publicações nacionais e internacionais, contudo, enalteciam a bandeira do cientista, cujo reconhecimento científico e moral ultrapassava fronteiras.

O legado: defensor de maravilhas

O segredo de uma vida não está em descobrir maravilhas, mas em encontrá-las.

Encontrar maravilhas era mesmo uma de suas motivações. No final dos anos 50, em visitas aos Museus Britânico e de Nova Iorque, Ruschi se deparou com registros do desaparecido beija-flor-de-gravata-vermelha. O espécime parecia para sempre perdido entre vidros de coleção de peles de ornitólogos europeus e norte-americanos. O Augastes lumachellus seria encontrado em 1961 em uma expedição de busca. Seguindo pistas da presença do pássaro na região do Morro do Chapéu, na Bahia, Ruschi confessa ter vivido um momento único ao reconhecer o beija-flor presumivelmente extinto próximo à Cachoeira do Ferro Doido.

Outro momento de fascinante descoberta na vida de Ruschi se deu na Serra do Navio, quando o naturalista se deparou com um beija-flor até então desconhecido, o beija-flor-brilho-de-fogo (Topaza pella), aquele que consideraria o mais bonito que seus olhos veriam em anos catalogando centenas de espécies e subespécies. Diz-se que foi ainda hipnotizado pela beleza do pássaro-topázio que o cientista se deixou envenenar pelos pequenos sapos preto-amarelos, cujos efeitos do toque se fariam sentir alguns anos depois.

O legado de Ruschi, entretanto, não se resume a práticas isoladas. O naturalista formulou políticas de preservação com base em estudos sobre a criação de bancos genéticos, que embasariam a proliferação de reservas ecológicas em todo o mundo. O Congresso Florestal das Nações Unidas em Roma, 1951, notabilizou e disseminou o trabalho de Ruschi sobre o tema. Da mesma

maneira, desenvolveu a tese da agricultura auto-sustentável em florestas tropicais, sendo pioneiro em pesquisas de agroecologia. Além disso, elucidou a ocorrência das “doenças ecológicas”, causadas pelos desequilíbrios ambientais decorrentes da ação humana. Mas as diversas lições de Ruschi só foram se tornando mais claras com o tempo. Chamado de “o profeta da desertificação”, Ruschi prenunciara os efeitos da destruição da Amazônia após as atrocidades cometidas na Mata Atlântica. Dizia: “acabaram com o estado do Espírito Santo. O Espírito Santo é pequeno demais, contudo serve de exemplo para ainda se evitar o maior de todos os crimes do mundo, que é a destruição da Amazônia”. A mudança climática, hoje no topo das preocupações globais, já era tópico na agenda do ecologista. O afinco de Ruschi em todas suas expedições, estudos e lutas dá provas de que não basta descobrir maravilhas, nem tampouco encontrá-las; deve-se também, a seu exemplo, defendê-las.

O Desfecho: saudades dos beija-flores

Que os beija-flores me levem ao reino de Deus...

O negro reluzente dos pequenos anfíbios escondidos entre as folhagens amazônicas chamou a atenção de Ruschi, que logo pensou em presentear o herpetólogo alemão Peter Wevergold. Naquela expedição ao Amapá, em 1975, tivera a fortuna de encontrar um beija-flor único, mas cometera a imprudência de se deixar tocar pela peçonha dos sapos dendrobatas. Dez anos depois, o País acompanhava o drama do naturalista. A mobilização de médicos e cientistas em busca de um antídoto foi intensa, porém inútil. Quatorze quilos mais magro, sofrendo das dores, das hemorragias e da insônia, Augusto Ruschi se encontrava agora, dez anos depois, no Parque da Cidade do Rio de Janeiro para a

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pajelança do pajé Sapaim e cacique Raoni, que foram ao encontro do naturalista a pedido do Presidente Sarney. Os sinais de melhora foram um alento após o ritual que extraíra do pescoço de Ruschi uma massa densa e verde. Incansável, dizia que se a doença lhe permitisse, concluiria algumas obras em curso: “Macacos do Espírito Santo”, “Orquídeas do Espírito Santo” e “Beija-flores do Brasil”. Resistia também naquele que chamava de sua floresta: o filho mais novo, Pietro.

“Morro de saudades, fico daqui recordando a vida dentro dela. Por isso o meu desejo de ser enterrado na Reserva Biológica de Santa Lúcia.” Às 13h10 de uma quarta-feira, dia 4 de junho de 1986, no Hospital São José em Vitória, padecia Augusto Ruschi, aos 72 anos, após setenta dias de internação. Seu enterro se daria no dia 5, dia Mundial do Meio Ambiente. À margem direita da cachoeira encontra-se o túmulo do naturalista Augusto Ruschi, que recebe todas as manhãs a visita dos beija-flores, em homenagem. O patrono da ecologia no Brasil inspirou e continua a inspirar muitos, prova de que, definitivamente, sua luta e suas ideias continuarão a ser polinizadas por todos nós, beija-flores.

ricardo dos santos Poletto (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e mestre em Política Internacional e Comparada pela mesma instituição.

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a VIaGEM DE SaRaMaGOcaio Flávio de Noronha e Raimundo

Voltemos a meados do século XVI, quando, nos aposentos

do rei de Portugal, tomou-se a decisão de oferecer ao arquiduque

austríaco um elefante indiano. Presente de casamento de D. João III

e da rainha Catarina de Áustria ao primo Maximiliano, o elefante

Salomão é preparado para ir a pé, ou melhor, à pata de Lisboa a

Viena, invejado pela rainha por “ir gozar a vida na cidade mais bela

do mundo”, enquanto ela ficava em Lisboa, “entalada entre hoje e o

futuro, sem esperança em nenhum dos dois”.

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Como explica o autor em breve nota na primeira página do livro, a ideia de escrever o conto surgiu em um restaurante em Salzburg, chamado O Elefante. Saramago reparou por acaso em uma escultura de elefante, onde havia um friso de outras pequenas esculturas que, entre a Torre de Belém, que era a primeira, e outra de um monumento que representaria Viena, marcavam o itinerário da viagem de um elefante. Com efeito, o elefante fora um presente oferecido pelo rei português à corte austríaca e a viagem da comitiva entre Lisboa e Viena de fato ocorrera por volta de 1550. O autor, inspirado por uma história simples e inusitada, estabelece, com muita imaginação, relações interessantíssimas que revelam, acima de tudo, a grandeza e a miséria da existência humana.

Entre Salomão, os reis e o leitor existe Subhro, o conarca (tratador do elefante), personagem central na trama. As críticas mais afiadas ao sistema são feitas por meio da voz do indiano, intelectualizado e crítico, eu - lírico de Saramago no conto. Montado sobre Salomão, ele observa as armações religiosas e políticas que se estabelecem no decorrer da viagem, sem compreender o ego e a estupidez das autoridades.

Igreja e burocracia estatal são os temas preferidos de Saramago para realizar, com humor, crítica contundente e profusa. Em um trecho do livro, por exemplo, Salomão é forçado a ajoelhar-se diante de uma igreja, de modo a protagonizar falso milagre que impressionasse a população local. Nas palavras do sacerdote idealizador do espetáculo, “necessitamos mesmo esse milagre, esse ou qualquer outro, porque lutero, apesar de morto, anda a causar grande prejuízo à nossa santa religião, tudo quanto possa ajudar-nos a reduzir os efeitos da predicação protestante será bem-vindo”.

A crítica à Pátria, por sua vez, pode ser percebida por meio de inúmeros trechos do livro: “nunca a viste, perguntou o comandante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabem aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que umas vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na mão, avistei a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria”. O próprio elefante pode ser a pátria, que não

sabe para onde vai e se sustenta pela figura impositiva, mas na verdade é lento e indefeso como a burocracia do reino.

Aspecto importante de A Viagem do Elefante é o trabalho sempre genial de narração feito pelo autor. Em seu tradicional, ou pouco tradicional estilo, prescinde de nomes próprios com iniciais maiúsculas e deixa de lado pontos finais e travessões, optando pela vírgula, que oferece grande fluidez ao texto. Prima na obra a interação leitor-autor, evidenciada pela utilização frequente da primeira pessoa do plural, engendrando conto que tem em seu narrador um elo constante entre o leitor do presente e a história do passado. Nesse sentido, a linguagem do livro é oportuna, mistura de português contemporâneo e arcaísmos da época de João III que torna a leitura mais prazerosa e interessante.

Em alguns momentos do livro, o autor, assumindo posição de narrador-filósofo, analisa aspectos da vida humana, como quando afirma que “o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas”, ou quando diz que “a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginamos silêncios, e súbitos regressos quando pensamos que não voltaríamos a encontrar-nos”. Nesse ponto, é possível fazer referência à própria história de vida do autor que, logo às 40 páginas de sua empreitada literária, deparou-se com sérios problemas de saúde que o fizeram interromper o processo de escrita da obra.

A Viagem do Elefante, por lugares inóspitos, caminhos difíceis e céus estrelados é a longa marcha dos homens, a Viagem de qualquer um de nós, que, como afirma a epígrafe do livro, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Vale a pena viajar pelas palavras fluidas de José Saramago nesse conto que é, sobretudo, metáfora da vida humana.

caio flávio de noronha e raimundo (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (São Paulo).

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_pelo mundo

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Giovanni Arrighi tem o mérito de arriscar e ousar em suas análises, contribuindo para o debate científico. Já no prefácio de Adam Smith em Pequim (lançado pela Boitempo Editorial, em 2008, em seguida ao lançamento nos Estados Unidos, em 2007), afirma que a tese do livro é que “quando a história da segunda metade do século XXI for escrita desse ponto de vista mais distante, é possível que nenhum tema seja mais importante do que o renascimento econômico da Ásia Oriental. A revolta contra o Ocidente criou as condições políticas para a passagem do poder social e econômico para os povos do mundo não-ocidental. O renascimento econômico da Ásia Oriental é o primeiro sinal claro de que essa transferência de poder já começou”.

Para Arrighi, o fracasso do Projeto para o Novo Século Americano e o sucesso do desenvolvimento econômico chinês, tomados em conjunto, tornaram mais provável do que nunca, nos quase dois séculos e meio desde a publicação de A Riqueza das Nações,

a concretização da ideia de Adam Smith de uma sociedade mundial de mercado baseada em uma maior igualdade entre as civilizações. A teoria dos mercados de Smith é particularmente relevante para a compreensão das economias de mercado não-capitalistas, como era a China antes de sua incorporação secundária no sistema globalizante de Estados europeus e como poderá voltar a ser no século XXI, sob condições históricas nacionais e internacionais totalmente distintas.

O autor recupera o conceito de “revolução industriosa”, que seria a corresponde oriental da Revolução Industrial. Lá, a revolução ocorreu como desenvolvimento baseado no mercado, sem tendência de uso intensivo de capital e energia, desenvolvendo entre os séculos XVI e XVIII um modo de produção que fazia uso intensivo de mão-de-obra como reação à restrição de recursos naturais. A grande diferença entre esse modelo de

aDaM SMITH

Eduardo Brigidi de Mello

EM PEQuIM

_resenha

PRIMEIRa PaRTE:

adam Smith e a

nova época asiática

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“QuaNDO a HISTóRIa Da SEGuNDa METaDE DO SéculO xxI FOR EScRITa DESSE PONTO DE VISTa MaIS DISTaNTE, é POSSíVEl QuE NENHuM TEMa SEja MaIS IMPORTaNTE DO QuE O RENaScIMENTO EcONôMIcO Da áSIa ORIENTal. _��

desenvolvimento e o do Ocidente era a priorização da mobilização de recursos humanos, ao invés de não-humanos.

Arrighi utiliza a perspectiva smithiana para acompanhar a turbulência global e a ascensão econômica da China. A origem da turbulência é atribuída à acumulação excessiva de capital em um contexto global marcado pela revolta contra o Ocidente. O resultado foi a primeira crise profunda da hegemonia dos Estados Unidos, entre o fim da década de 1960 e início da década de 1970. Os Estados Unidos reagiram a essa crise competindo agressivamente pelo capital no mercado financeiro global e intensificando a corrida armamentista com a União Soviética, na década de 80, reação que teve sua manifestação mais forte no Projeto para um Novo Século Americano, implementado pela administração de George Bush Pai.

Analisando o fracasso desse projeto, o autor afirma que a Guerra do Iraque foi forte indicativo de que a força ocidental atingiu seu limite. Assim como a derrota no Vietnã levou os Estados Unidos a trazer a China de volta à política mundial para conter os danos políticos do fracasso militar, o resultado da debâcle iraquiana pode significar o surgimento da China como a verdadeira vencedora da guerra dos Estados Unidos contra o terror. Nesse cenário, o autor ressalta que é falha a tentativa de prever o comportamento futuro da China com base na experiência do sistema de Estados ocidental.

Arrighi recorda que Smith via a China como modelo de desenvolvimento econômico a ser promovido pelos governos, por seguir um caminho “natural” baseado no comércio interno. Não via superioridade no modelo europeu, pois não acreditava em crescimento ilimitado do capitalismo, como Marx acreditava. Smith era enfático ao afirmar que a acumulação interminável de capital (poder capitalista), em um contexto de liberdade do mercado, deveria ser atenuada com ação do governo.

O antigo modelo chinês estaria mais próximo desse ideal, pois buscava desenvolvimento não-capitalista com base no mercado, priorizando o comércio interno e a agricultura como lastro para a indústria manufatureira. Posteriormente, eventuais excedentes seriam comercializados no mercado externo, ao contrário do modelo europeu, que priorizou a conquista de mercados externos.

O que caracterizou o modelo europeu como capitalista, diferenciando-o do chinês, foi a sinergia entre capitalismo, industrialismo e militarismo, impulsionada pela competição entre Estados. Essa simbiose, que gerou círculo virtuoso de enriquecimento e de aumento de poder dos povos de origem europeia, teve por contrapartida um círculo vicioso correspondente de empobrecimento e perda de poder para a maioria dos outros povos.

Após séculos de fricção entre tais círculos, o sistema começou a entrar em crise profunda a partir da aceleração da desigualdade, que até o início da década de 1960 foi um jogo de soma positiva, uma simbiose entre centro e periferia. Na década de 1970, a queda das taxas de lucro e o

SEGuNDa PaRTE:

Rastreamento da

turbulência global

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“POR QuE OS ESTaDOS uNIDOS, EM VEZ DE EMPRESTaR, TOMa EMPRESTaDOS ENORMES VOluMES DE caPITal, cOMO já FOI cONSTaTaDO, aO RITMO DE MaIS DE 2 BIlHÕES DE DólaRES POR DIa? E POR QuE é QuE PaRTE caDa VEZ MaIOR DESSE caPITal VEM DE cENTROS EMERGENTES, PRINcIPalMENTE Da cHINa?”

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aumento da competição econômica geraram excesso de capacidade produtiva mundial e, por consequência, mais pressão sobre o lucro. Repetiu-se, assim, a tendência dos ciclos hegemônicos anteriores: boom econômico – intensificação da concorrência – redução da lucratividade – estagnação comparativa – aumento da lucratividade com base na expansão financeira da principal economia.

Como resultado desse processo, a mudança fundamental nas relações Norte-Sul tem em seus bastidores a tentativa dos Estados Unidos de conter o desafio do nacionalismo e do comunismo no antigo Terceiro Mundo. Assim como a Inglaterra em seu período de crise de hegemonia, uma das táticas norte-americanas foi a financeirização, que acelerou o desenvolvimento desigual e desestabilizou sua própria hegemonia.

O fracasso da aventura no Iraque reforçou a tendência de recentralização da economia global na Ásia oriental e, dentro desta, na China, trazendo questionamentos importantes sobre a diferença entre os modelos primitivos de desenvolvimento europeu (capitalista) e asiático (não-capitalista).

O processo de desenvolvimento capitalista, ou modelo europeu, seguiu política de Estado e de império, bem como processos de acumulação de capital no espaço e no tempo. Esses processos foram impelidos por uma lógica territorial, limitadora da lógica capitalista de acumulação interminável de capital. A saída para o impasse da limitação territorial, em todas as fases de reorganização e/ou transição econômica, foi a financeirização.

Outro traço do modelo de desenvolvimento capitalista, típico de sua extroversão, é que ele tem origem no surgimento dos Estados territoriais como principais agentes da expansão capitalista. Esse processo, como visto, baseou-se na fusão entre capitalismo, militarismo e imperialismo. Tal estratégia foi reforçada por elementos como a comercialização da guerra, a expansão externa sistemática, o uso intensivo de máquinas e a empresa privada de grande escala.

Como a tendência natural é que a potência hegemônica irradie capital para os demais pólos, o que não ocorre atualmente, Arrighi questiona:

Por que os Estados Unidos, em vez de emprestar, toma emprestados enormes volumes de capital, como já foi constatado, ao ritmo de mais de 2 bilhões de dólares por dia? E por que é que parte cada vez maior desse capital vem de centros emergentes,

_pelo mundo_resenha

TERcEIRa PaRTE:

a hegemonia

desvendada

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principalmente da China? Essa anomalia assinala um bloqueio dos mecanismos que no passado facilitaram a absorção de capital excedente em ajustes espaciais de tamanho e alcance cada vez maiores. (...) Outra razão poderia ser que a acumulação por desapropriação chegou ao seu limite, seja porque o principal centro emergente está acumulando capital por outros meios, seja porque os meios coercitivos não podem mais criar um ajuste espacial de tamanho e alcance suficientes para absorver de modo lucrativo a massa de capital excedente nunca antes vista que se está acumulando no mundo todo.

Nesse contexto, ressalta que as fases de expansão financeira foram momentos de “outono” da potência dominante. As expansões materiais ocorrem até o momento-limite em que os agentes capitalistas decidem manter líquida uma proporção cada vez maior do seu fluxo de caixa. Ingressa-se, então, na fase financeira. E em todas as expansões financeiras de importância sistêmica, a acumulação de capital excedente em forma líquida teve como principal efeito a reorganização geopolítica do sistema, sendo essa a grande interrogação intelectual no século que se inicia.

As linhagens da nova era asiáticaTeóricos como Kissinger e Brzezinski

questionam o pressuposto de que é inevitável o confronto estratégico com a China, pois ambos tem interesse em cooperar na busca de um sistema internacional estável, que vai ao encontro da doutrina chinesa de Heping Jueqi. Tal doutrina afirma que a China evitará o caminho da agressão e da expansão seguido pelas potências anteriores no momento de sua ascensão, pois visa crescer e avançar sem perturbar a ordem, de um modo que também beneficie os vizinhos e a estabilidade sistêmica.

O autor ressalta que a dinâmica da região, não só da China, é diversa da do Ocidente, por não ter um histórico de impérios comerciais e territoriais ultramarinos. Com base no dizer de Hobbes de que a riqueza acumulada com liberalidade é poder, porque traz amigos e criados, a sustentabilidade da prática na China dos séculos XVI a XVIII dependia de não exaurir recursos naturais e, diferenciando-se da acumulação por desapropriação do modelo ocidental, de não abalar a estabilidade sócio-política dos Estados vassalos.

Arrighi, citando Stiglitz, atribui o sucesso da abertura econômica chinesa a diversos fatores, como abertura gradual, atenção à estabilidade social, desregulamentação e privatização seletivas, expansão e modernização da educação superior, e forte papel indutor do Estado na condução da economia. Com esse processo complexo, e provavelmente por incorporar traços híbridos, surgem contradições tipicamente capitalistas, como desigualdade social e crescente descontentamento popular.

O epílogo resume as razões pelas quais a tentativa norte-americana de reverter a

QuaRTa

PaRTE

“POR QuE OS ESTaDOS uNIDOS, EM VEZ DE EMPRESTaR, TOMa EMPRESTaDOS ENORMES VOluMES DE caPITal, cOMO já FOI cONSTaTaDO, aO RITMO DE MaIS DE 2 BIlHÕES DE DólaRES POR DIa? E POR QuE é QuE PaRTE caDa VEZ MaIOR DESSE caPITal VEM DE cENTROS EMERGENTES, PRINcIPalMENTE Da cHINa?”

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ESSaS caRacTERíSTIcaS DO cONSENSO DE PEQuIM PODEM lEVaR O MuNDO EM DIREçÕES RaDIcalMENTE DIFERENTES. PODEM lEVaR à FORMaçÃO DE uM NOVO BaNDuNG, Ou SEja, uMa NOVa VERSÃO Da alIaNça DO TERcEIRO MuNDO NaS DécaDaS DE 1950 E 1960, VISaNDO, cOMO O aNTIGO, cONTRaBalaNçaR a SuBORDINaçÃO EcONôMIca

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transferência de poder para o Sul global não vem sendo bem-sucedida. Ela criou condições nunca antes tão favoráveis para o surgimento do tipo de comunidade de civilizações que Smith vislumbrou. A dominação ocidental pode se repetir de maneiras mais sutis que no passado e, acima de tudo, ainda há a possibilidade de um longo período de violência crescente e caos mundial interminável. A ordem ou a desordem mundial dependerão da capacidade dos Estados mais populosos do Sul de abrir para si e para o mundo um caminho de desenvolvimento mais igualitário em termos sociais e mais sustentável em termos ecológicos do que o caminho que enriqueceu o Ocidente.

O que haveria mudado desde os anos de 1960, quando os países outrora chamados “periféricos” organizaram-se pela primeira vez, para o momento atual, em que novamente buscam tornar mais democrático o sistema internacional? Parte da resposta localiza-se na atual transição por que passa o sistema internacional, principalmente pela ascensão chinesa. Para Arrighi, tal ascensão pode ser considerada produto de uma filosofia sócio-econômica com base em maior igualdade e respeito mútuo entre os povos. O ganho de poder relativo da China, ante a atenção dos Estados Unidos ao terrorismo, levou a uma inversão de papéis, dando

origem ao chamado Consenso de Pequim: um caminho para os outros países do mundo não só se desenvolverem, mas também se encaixarem na ordem internacional de modo a permitir que sejam verdadeiramente independentes, protejam seu modo de vida e suas opções políticas.

A cooperação Sul-Sul encontra no Consenso de Pequim dois aspectos extremamente favoráveis: localização e multilateralismo. A primeira reflete o reconhecimento de ajustar as políticas de desenvolvimento às necessidades locais, contrariamente ao superado Consenso de Washington. A segunda, especialmente prezada pela diplomacia brasileira, baseia-se no reconhecimento da importância da cooperação e de uma ordem fundamentada na interdependência econômica, mas ciosa da diversidade cultural de cada país:

Essas características do Consenso de Pequim podem levar o mundo em direções radicalmente diferentes. Podem levar à formação de um novo Bandung, ou seja, uma nova versão da aliança do Terceiro Mundo nas décadas de 1950 e 1960, visando, como o antigo, contrabalançar a subordinação econômica e política, mas adequado a uma época de integração econômica

_pelo mundo_resenha

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global sem precedentes. Ou podem levar à cooptação dos Estados do Sul em alianças Norte-Sul que visem conter a subversão, liderada pela China, da hierarquia global de riqueza.

Arrighi identifica a possibilidade de um “novo Bandung”, dessa vez com base econômica razoável, pois poderia ser feito o que o anterior não conseguiu: mobilizar o mercado global como instrumento de equalização das relações de poder entre Norte e Sul. A viabilidade reside no fato de que as bases do “antigo Bandung” eram estritamente político-ideológicas, facilmente vulneráveis à contra-revolução monetarista. Agora, são basicamente econômicas e, como tais, mais sólidas.

A predição do autor parece confirmar-se, pois na nova crise financeira os países do Sul poderão ter papel fundamental, já que a resistência do Norte à “subversão” da hierarquia global de riqueza e poder só pode ter sucesso com a colaboração organizada dos países em desenvolvimento. A condição para tanto seria que os grupos dominantes do Hemisfério Sul buscassem emancipar não só seus países, como o mundo todo, da devastação social e ecológica provocada pelo desenvolvimento capitalista ocidental clássico:

Uma inovação de tamanha importância histórica mundial exige certa consciência da impossibilidade de levar os benefícios da modernização à maioria da população mundial, a não ser

que, para parafrasearmos Sugihara, o caminho ocidental de desenvolvimento convirja para o caminho da Ásia oriental, e não o contrário. Essa descoberta não é nova. Há quase oitenta anos, em dezembro de 1928, Mohandas Gandhi escreveu: “Que Deus impeça à Índia adotar a industrialização à maneira do Ocidente. Hoje, o imperialismo econômico de um reino insular minúsculo mantém o mundo acorrentado. Se toda uma nação de 300 milhões de pessoas adotasse exploração econômica semelhante, devastaria o mundo como uma nuvem de gafanhotos.

Em resumo, Adam Smith em Pequim, última obra de Giovanni Arrighi antes de sua morte, aponta a tendência de que o século XXI trará um modelo híbrido de desenvolvimento, mesclando a tradição não-capitalista da Ásia oriental e a tradição capitalista do Ocidente. A configuração geopolítica daí derivada pode ter como resultado a consolidação do multilateralismo político, econômico e cultural. Nesse cenário, o Brasil deverá assumir sua posição de interlocutor ativo, altivo e global, por dispor de um excedente de poder fundamental em tempos de multipolaridade: a capacidade de dialogar com os mais diversos atores do sistema internacional.

eduardo Brigidi de mello (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande Sul.

ESSaS caRacTERíSTIcaS DO cONSENSO DE PEQuIM PODEM lEVaR O MuNDO EM DIREçÕES RaDIcalMENTE DIFERENTES. PODEM lEVaR à FORMaçÃO DE uM NOVO BaNDuNG, Ou SEja, uMa NOVa VERSÃO Da alIaNça DO TERcEIRO MuNDO NaS DécaDaS DE 1950 E 1960, VISaNDO, cOMO O aNTIGO, cONTRaBalaNçaR a SuBORDINaçÃO EcONôMIca

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Eduardo Freitas de Oliveira

TaTajuBa

O vento continua a soprar a areia fina por sobre os telhados da nova Tatajuba. Homens, mulheres, crianças, velhos – todas as mãos afundadas nos montículos brancos que se formavam em cada canto da vila, tentando nos resgatar da boca infinita das dunas.

Aqui da janela vejo a praça através da areia que sopra... A igrejinha, toda branca, continua parada ali no centro de tudo, impassível. As portas já estão quase vedadas, o teto range sob o peso areia que se acumula incessante. A igreja: a igreja é o signo do destino que se aproxima. De início, a comunidade acudia em mutirão para retirar a areia que cercava o portão de entrada, se espalhava pelos bancos e castigava os joelhos dos que rezavam; o uivo do vento do lado de fora era abafado pelo canto que erguiam as gargantas ásperas. Mas as dunas continuaram a avançar sobre o vilarejo, mais e mais rápido, e logo todos

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tiveram que abandonar os cuidados da igreja na tentativa de salvarem suas próprias casas.

Olhar pela janela agora é ver a vida correr em dois tempos distintos: nas casas em volta, prevalece o tempo circular de quem luta contra a natureza. Assim que se acorda, trata-se de desconstituir o que a tempestade da madrugada criou. Montanhas de areia são empurradas para fora, e tudo volta a ser como foi certa vez. No dia seguinte, o processo se repete – vento sopra, o homem ressopra. Giram os ponteiros do relógio para voltarem ao mesmo lugar; as engrenagens são as mãos calejadas, os peitos cravados de grãos, o rosto arranhado de areia.

A igreja, contudo, é diferente. Em meio às casas que retornam todo dia ao mesmo momento passado, a igreja avança, sem relutar, rumo ao seu destino inexorável. Nela a areia se acumula selvagem, obstrui a passagem, pega no manto dos santos,

nas asas dos anjos, na cruz. A areia invade a nave da igreja como invadiria uma ampulheta, e escorre pelo altar como escorre o próprio tempo.

Essa igreja é uma cópia fiel daquela que, décadas antes, foi devorada pelas dunas com o restante da velha Tatajuba. Agora me lembro; a igreja aonde ia à missa todos os domingos da minha primeira infância. A igreja velha.

Olhando aqui da janela na direção do sol nascente, ainda é possível ver uma elevação, um pequeno promontório que se destaca em meio à duna. É a torre da igreja velha, que até hoje marca, para não esquecermos, a localização – e o destino – da velha Tatajuba. A vila que jaz embaixo das dunas de areia fina.

Sim, me lembro; lembro de acordar cedo e ajudar a família a retirar a areia que, acumulada sobre o telhado, ameaçava

Pedr

o Ku

o Pa

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a estrutura da casa, que se curvava sob o peso imprevisto. Lembro de tentar agarrar um monte de areia para expulsá-lo e vê-lo escorrer, rapidamente, entre as fendas da minha mão, pelos espaços entre os meus dedos. Contra aquela areia nada podiam as mãos e a vontade dos homens. Ela burlava todos os esforços e, como mágica, permanecia exatamente onde estava. O pai desesperava – buscava abraçar uma carga maior de areia contra o peito e jogá-la par fora da casa que era dele; mas a areia não cabia naqueles braços pequenos de homem, e se diluía ante os nossos olhos como uma nuvem – ou um sonho.

Depois, passávamos ao interior da casa. E o trabalho era ainda mais duro; a areia se espalhava por todo o chão, invadia o cano da torneira e as gavetas de roupa, polvilhava os lençóis. Havia dias em que, para acordar, tínhamos que fazer força para empurrar a pequena duna que se formara sobre os nossos troncos durante a noite.

Com o passar do tempo, era impossível ficar sequer um segundo sem contato com a areia. O vento a soprava sobre nós mesmo quando debaixo da água, a ducha do chuveiro contra a rajada que entrava pelas frestas da janela. A mãe botava a mesa e os grãozinhos se imiscuíam na comida, tomavam parte no arroz. E comíamos calados, a areia estalando dentro da boca com o triturar das dentadas. Nada além disso: nós comíamos areia.

Engraçado pensar nisso agora... Desde que saímos da velha Tatajuba que não me

lembrava dessas velharias, do suor dos tempos mais difíceis. O pai chegou por aqui, levantou a nova casa sozinho, tijolo por tijolo – e depois morreu. Os irmãos então passaram a sair no barco pelas madrugadas, trazer o peixe, e a vida entrou nos eixos. A mente apagou a memória das coisas que passaram. Acho que se, naqueles tempos, eu desse de pensar na velha Tatajuba sendo tragada pelo estômago das dunas, eu mesmo não podia acreditar.

Mas era verdade, pura verdade. Podia se tratar de mero delírio de velha, anciã senil perdida nesse canto do Ceará que tem tempo demais para delirar, imaginar as coisas mais fantásticas. Mas eu tenho uma memória da infância que, de tão viva, se mistura com o presente de um jeito engraçado e um pouco torto: e a lembrança de, no final da tarde, ficar em pé no meio da praça – paradinha, os olhos fechados, a respiração tranquila – sentindo a areia esvoaçante se roçar nas minhas pernas, se prender nos meus cabelos, entrar pela minha boca, pelo meu ouvido, pelas minhas narinas. Um pequeno monte de areia se formava rapidamente sobre os meus pés e eu me pegava imaginando que ia me fundir na duna, me esfarelar em mil grãozinhos de areia, voar com o sopro do vento.

E esses olhos pesados, agora... Esse vento carregado brincando nos cabelos... Quando era pequena, ouvia os antigos comentarem que as dunas caminhavam. Olhava para o horizonte e era exatamente isso – as dunas vinham na nossa direção, devagar mas sem

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pausas, sem concessões. É exatamente isso: basta fechar os olhos e esperar que elas cheguem, que venham ao meu encontro.

Os antigos... A antiga agora sou eu, esse monte de pele jogado sobre um ranger de ossos velhos, essa vida decrépita nesse corpo decrépito. A igreja condenada me lembra, da forma mais inclemente, do destino que me espera. Me lembra de que, apesar dos meus melhores esforços, da minha disposição em acordar e tentar, a cada dia, começar do zero – encher o estômago que se tinha esvaziado, limpar os dentes mais uma vez sujos, recostar na rede o corpo cansado de trabalho – meu destino se aproxima a cada dia. É impossível enganar o tempo, tergiversar, esconder-se.

E, apesar disso tudo... Saio de casa, os passos lentos. O cenário é apocalíptico: casas semi-soterradas, crianças chorando, homens desesperados. Muitos já se limitam a juntar o que podem salvar e preparar a partida; cansados de lutar contra as dunas, preparam-se para fugir dela. Para mim, no entanto, não faz mais sentido fugir. Fugir de quê, se há algo inescapável que me espera? Não se pode enganar o tempo com a distância...

Cá estou, onde meus passos inconscientemente me levaram: o centro da praça. A igreja é a mesma, o vento é o mesmo, as dunas continuam sua caminhada incessante. Se fecho os olhos e respiro fundo, eu também ainda sou a mesma. Ainda sou capaz de curtir os grãos de areia rolando pelas maçãs do rosto, de ouvir o canto da natureza, de sonhar.

Se abrisse os olhos agora, creio que veria um horizonte cortado por filas de homens cruzando a amplidão das dunas em busca de uma nova vida, de um novo começo em uma novíssima vila de Tatajuba. Mas não: sigo de olhos fechados. Já não me interessa aonde vão, aonde vamos. Nesse momento, já vivo numa vila toda própria – uma vila que, oblíqua, não cabe em nenhum recorte de tempo e espaço. Uma vila onírica, única, que é todas as vilas do mundo fundidas em uma. A minha Tatajuba. Nem nova, nem velha; simplesmente minha.

Os ventos da destruição ainda sopram, mas sinto-os passando ao largo.

eduardo freitas de oliveira (turma IRBr 2008-2010) é bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

muitos já se limitam a juntar o que podem salvar e preparar a partida; cansados de lutar contra as dunas, preparam-se para fugir dela. Para mim, no entanto, não faz mais sentido fugir. fugir de quê, se há algo inescapável que me espera?

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DeDos BAilArinos

lição política internacional: França.

Embevecido pela intemperança,

meu espírito ia longe, sem peias:

vagava no mundo das ideias - que ideias!

Mas, onde vamos?

Em que classe estamos?

juraria que de ciência se tratava, mas... desatinos!?

agora, sou espectador: teus dedos, bailarinos.

leveza/transe: tudo isso porque esculpiste uma trança!

que em meu olhar evocou uma terna dança:

cadenciado balé de dedos habilidosos

para olhos felizes, gratos, sequiosos...

Eduardo Brigidi de Mello

_poesia e prosa

eduardo Brigidi de mello (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande Sul.

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Delfos

I

Faz-te como uma revelaçãona fímbria luz desta aura baçae se te encontro em águasnãoora a linha emergee se trança em marés calmas.Fiz-te um ramalhetena abnegaçãoe de que basta...silencia-me a terra um diae te envolvo no seu soproentão.

II

Perdido o dom de te predizereu te contradigoe perpasso estas horas de desalinhoque a cada valsa me entorpece.Ao timoneiro eu perscruto quem seguee a surpresa, um rodopio.

Quem transporta a exatidão desperto?À manhã surpreende os sonhosa matéria certamas o ar que inspira retém tantos e diversosdas memórias vãs, epifania crédula.Levianamente séria.

III

Quando destes teus versoso meu desta vastidãoa minha vistado mais puro seresta imagem restrita.E seuma estrela fixa traz a certeza, a dor, a ilusãoquem sou esta luz indistintae num momentoestou.

Janaina Lourençato

Janaina lourençato (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

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_poesia e prosa

Krishna Mendes MonteiroIluSTRaçÃO DE Pedro Vinícius do Valle Tayar

o que não existe mAis

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Na primeira vez em que te vi depois de tua morte, tu estavas na sala, de pé em frente à minha estante e aos meus livros. O imaculado paletó bege de sempre, a cadência firme dos sapatos a esmagar a superfície do tapete, tu alteravas a ordem dos volumes, retiravas compêndios, violavas páginas, maculavas segredos e silêncios. Arrancavas das prateleiras autores há muito ali abrigados, personagens e sonhos por tanto tempo esquecidos. Sem dar-me conta da distância, dos mundos a nos separar, sem ponderar que talvez o conhaque ou os cigarros ou os vapores da noite aos quais me submetia fossem os responsáveis por teu regresso, desci os degraus que davam para a sala do sobrado da Rua da Várzea, onde tu, eu e ela (lembras dela?) por tanto tempo moramos. Corri possesso pelos degraus, lancei-me à tua frente e interpelei-te com uma bravura que em mim nunca pulsou durante todo o tempo em que estiveste entre os vivos. Sim, interpelei-te, olhos nos olhos, o meu bafo áspero a arranhar teu semblante, e disse-lhe com ares de bêbado soberano: “Que direito tens tu de mexer em meus livros?”. E então tu me olhaste de cima a baixo, me deste as costas e prosseguiste em teu lento e indiferente trabalho de violação.

Pensei em escalar a socos o teu dorso, mas, antes de fazê-lo, lembrei-me daquele dia, do dia de tua morte, lembrei-me da caixa de pinho forrada de cetim em que dormias. Depositada sobre o tapete que teus pés novamente pisam, lá estava ela, suas seis argolas de bronze a pender no espaço, solitárias, subjugadas. Lembrei-me das coroas, das flores, dos círios. Lembrei-me do aliviado adeus que te dei. Adeus. Não, o que me agradava em ti não era a forma como tu chegavas de surpresa na véspera dos dias santos de fim de ano, o carneiro nos ombros, a faca do sacrifício nas mãos. Não me agradava a família inteira reunida no círculo em torno de tua presença, o cortejo em que nós, crianças, nos espremíamos até o terreiro, onde tu, pressionando todo o peso de teus joelhos sobre a garganta do animal, cortava centímetro a centímetro por entre a lã branca, vertendo o jorro de sangue na vasilha que todos nós dividiríamos, boca a boca, ombro a ombro, mão a mão. Todos nós, tua prole, beberíamos juntos noite adentro, bendito seja Ele. Não, não era isso o que mais me agradava em ti. Gostava da maneira como nossos olhares se fixavam quando tu, distraído e indefeso a barbear-te, mirava-me pelo espelho nas manhãs, da mesma forma que me

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olhas agora, na primeira vez em que te vejo depois de tua morte. Tu me olhas pelo espelho da sala, entre um e outro volume que retiras, que folheias, e mirando-me, emoldurado pelo marfim a envolver o vidro, tu investigas com o verde dos olhos este aposento, como a perguntar, a questionar: “Onde estão todos?” Não estão, eu vos respondo. Não mais existem, eu vos proclamo. Deles, restam apenas pinturas na parede. Sim, agrada-me em ti a forma perdida com que teu semblante percorre os quadros, o vestido de renda da irmã reproduzido a óleo, as gravatas do tio e do avô finamente pinceladas, a cesta de flores que ela (lembras dela?) costumava carregar às tardes, tão bem retratada em reflexos de verde, rosa e carmim. E eu olho para ti por entre este espelho, e eu a mim mesmo digo que estes teus olhos não mais existem, que este teu paletó bege não mais existe, que este teu cabelo branco e nas pontas engordurado não existe, não existe, e que a mim basta virar-lhe as costas e retornar à cama para, de manhã, dar com meus livros queridos na estante, perfeitamente ordenados, como sempre os deixei. Adeus. Acordo. Um feixe de luz irrompe pela cortina, atravessa meu cobertor e pousa em minha cabeceira. Levanto-me, colho em minhas mãos essa luz e, pé ante pé, descendo os degraus, convenço-me de que tu e tua presença não passaram de um sonho ruim, alimentado pelo peso frio que me corrói por dentro. Ao fim da escada, parado defronte ao espelho, certifico-me de que tu, de que teu olhar, não mais habita os limites daquela

moldura. E então caminho até a estante, rumo a eles, aos meus livros, e então farejo teu rastro ainda fresco, sinto tua respiração ainda viva. Fora de lugar, de ordem, modificados, aviltados, meus livros nesta estante são testemunho de que ainda não poderei terminar este relato, dizendo: “Encerrado, ponto final, tu não existes mais”. Não, os livros carregam consigo um veredicto: tu e eu estamos encerrados aqui, nesta história, e o curso destas linhas deve prosseguir. Continuemos, então. O que eu queria, o que eu mais queria em ti era que aquelas tardes em que eu te perseguia pelos corredores durassem por toda a eternidade. Tu partias escada acima, passo rápido, olhando para trás e sorrindo, escalavas desenvolto os degraus com pernas infinitamente mais longas que as minhas. Virava à direita. Desaparecia. E quando eu finalmente lá chegava, no cume da escadaria, um túnel interminável estendia-se defronte a mim, iluminado por lustres circunspectos. Em qual das múltiplas portas do corredor estarias tu? Os lustres oscilavam como pêndulos. Onde estarias tu? E então o fascínio de nossa brincadeira infantil tinha início. Uma a uma, eu abria as passagens, e mundos se descortinavam. Uma mulher enchendo um jarro. Um homem na cama com duas amantes, uma jovem, outra velha. Um andarilho e seu cachorro. Uma biga. A morte. Uma roda gigante. Eu, refletido no espelho. E esta porta tão conhecida, há anos trancada, que tento inutilmente agora abrir. Ela, sempre ela, com sua fechadura resistente a qualquer investida. Faço, assim, o que sempre

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mim, marco com trapos minha trajetória no túnel em que tanto te busquei. Acima, lustres oscilam, circunspectos. Ladeando-me, uma infinidade de passagens aguarda. Mas o homem nu sabe que há tempos todos estes quartos estão vazios. Chave nas mãos, ele abre a porta de teu gabinete. Puxa a arca escondida atrás de estantes em cacos, senta em tua poltrona e, abrindo o baú, certifica-se de que, roto e puído, teu terno lá está, de que, partida ao meio, tua bengala lá está, de que, foscos e sem brilho, teus sapatos lá estão, de que, morto eternamente às sete horas, teu relógio de bolso está lá, lá está. Bato a porta, fecho o gabinete. Tomo um longo banho, lavo-me da sujeira. E, antes de apagar a luz e dormir, lanço um último olhar ao homem nu no espelho, a ele digo num sorriso que sossegue, pois nada, nada existe mais. Boa noite. Adeus. Sonho. São sete horas, manhã de inverno. Reviro-me nu debaixo das cobertas, tento de todas as maneiras encontrar desculpas para fugir ao ônibus, ao comboio de crianças que dentro em pouco por aqui passará. Manhã de inverno, ruas e calçadas vestem-se de gelo, nem mesmo este cheiro de café que inunda meu quarto é suficiente para me despertar. E uma porta se abre, és tu, e uma mão pousa em meus cabelos, és tu, e uma boca em meu ouvido sussurra coisas a sorrir, és tu, e uma voz ameaça puxar minhas cobertas, és tu, e diz que sábado não tardará a chegar, és tu, e por fim abre a cortina, a janela, a luz irrompe, faz-se a luz, és tu. Acordo trinta e seis anos depois, nesta cama, a proteger minha vista da cegueira momentânea, e quando consigo divisar as fronteiras do

fiz. Bato. Bato. Bato. E a passagem se abre, revelando todo o esplendor de teu gabinete, de montanhosas estantes de mogno preenchidas de alto a baixo com encadernações. Ao ver-te sentado soberano na poltrona, fumando um cigarro e com um volume nas mãos, penso que até mesmo a morte não foi capaz de te privar de tua beleza. Sim, continuas belo. Dou dois passos e entro, em silêncio. Sento-me a teus pés como sempre fiz. Sabendo-me ali, tu me miras de relance, por cima das páginas que lê. Nossos olhares fixam-se um ao outro, cheios de subentendidos. E ao contemplar o caimento de seu terno bege, o brilho espelhado de seus sapatos de verniz, a leveza e o equilíbrio da bengala que manténs à tua direita, junto de ti, penso que talvez seja eu o morto e seja tu o vivo, que eu não mais exista e tu sim, e que, nesse caso, o sobrado da Rua da Várzea ainda é tua legítima propriedade, e que, sendo assim, daqui devo retirar-me, e que, como morto que sou, devo cobrir-me de terra, adormecer, para finalmente estar longe de ti. Deixo o gabinete. Bato a porta. Adeus. Acordo no terreiro, a lama cobre todo meu corpo. É fim da tarde, uma chuva fina, melancólica, está a cair. Levanto-me. Pé ante pé, subindo os degraus, busco em meu bolso a chave que trago comigo desde que partiste. Passo a passo, degrau a degrau, arranco de meu corpo roupas envoltas em barro, livro-me de meu paletó, gravata, de minha camisa, calça, de minhas meias, roupas de baixo, e atinjo, mais uma vez, o cume da escadaria. Viro à direita. Livrando-me de tudo de impuro que resta em

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aposento, dou contigo na janela, cobertor nas mãos, a lançar-me um último e irônico sorriso antes de sair, de bater a porta, de dizer adeus. Decido-me. Desço correndo as escadas, lanço-me ao mundo, abandono o sobrado, as pernas voam sobre paralelepípedos da Rua da Várzea, e, chegando à cidade dos mortos, ao terminar de percorrer seus labirintos, caem de joelhos sob um último cipreste, atingem o solo como se batessem num obstáculo duro, invisível. E os olhos leem dizeres esculpidos na pedra - eras tu –, e os dedos perfuram e apalpam a terra molhada – eras tu –, e as narinas aspiram teu cheiro, teu calor, sete palmos abaixo de mim – eras tu, eras tu. Isso é o que penso e repito à sombra dos ipês de nossa rua, enquanto vejo, ao longe, a fachada do sobrado surgir. Abro o portão. Piso a grama molhada. Passo pelos canteiros, pelo chafariz. Noto uma cesta de flores na soleira da porta, seus tons de verde, rosa e carmim. Entro. Na sala, acomodados ao redor da mesa, tu, o tio, o avô e a irmã pousam em uníssono seus olhos sobre os meus. Sim, tu ficas bem como estás na cabeceira, neste assento de alto espaldar. Acomodo-me no outro extremo, sinto a textura macia da toalha de renda, o brilho agudo dos talheres, os retratos vazios nas paredes. Noto um lugar vago à tua direita, penso nela e em sua cesta de flores, lembro-me dela, descanse em paz. E então comemos. Juntos. Os cinco, com a mais plena certeza de que tudo, tudo começava a acabar. Boca a boca, ombro a ombro, mão a mão, as mesmas vasilhas dividimos. Silenciosos, compenetrados, olhos baixos. Comemos. Lá

fora, volta a chover. Finda a ceia, levanto-me, tomo da taça de vinho, e, de pé, a ti oferto um brinde, olhos nos olhos, minhas palavras ásperas a arranhar teu semblante: “Pai, tu és aquele que eras. Tudo acabou, pai, tu morreste, pai, tu não existes, pai, tu não existes mais.” Tímidos, constrangidos, o tio, a irmã e o avô retiram-se da mesa, desaparecem nas cores de seus quadros. E então tu te levantas da cabeceira lentamente, caminhas até mim, e com um vazio a vincar teu rosto, traz os lábios aos meus ouvidos e diz palavras que nunca decifrarei, abafadas pela chuva a cair. Tu te viras, desapareces pelo corredor, apagas com vagar cada um dos lustres, prepara-se para dormir. Dou-te as costas. Caminho em direção à escada, ao meu quarto. Passo em frente ao espelho, nele sinto meu reflexo preso, encerrado na moldura de marfim. E ao contemplar meu terno bege, o verde de meus olhos, ao mirar o branco e a gordura de meus cabelos, o perfeito caimento da bengala a me apoiar, percebo que nunca, nunca poderei dizer: “Encerrado, ponto final, tu não existes mais”. Não, o espelho traz consigo um veredicto: tu, pai, estás encerrado em mim. Olho para o corredor. O último lustre se apaga. E ao deitar em minha cama, na última, derradeira vez em que te vi depois de tua morte, dou-me conta, pai, concluo, pai, que tu sempre haverás de existir. Boa noite. E Adeus.

Krishna mendes monteiro (turma 2008- 2010 do IRBr) é bacharel em economia e mestre em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas.

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O VIajaNTEIrineu Pacheco Paes BarretoÀ memória de João César Paes Barreto

A palavra de um cego, o som do seu violão,Um cantor astronauta,Um dia tocará um coração pequenoFazendo vibrar aquele sentimento obscuroCom uma nota só e abundante de conhecimento.

Mas as minhas palavrasEnchem teus ouvidos de ferro velho retorcidoQuebrando os espelhos do teu quarto de vidro.

Entre os teus olhos e os meusHá cinco segundos-luzDe detergente denso e negroCom o qual lavo as minhas mãosE tento me convencerDe que foi no teu coração velho, fraco e remendadoQue todas as tuas vozes se perderamdo grito à sugestão mais íntima –Todas as tuas vozes se afogaramNos teus pulmões encharcados.

E me resta de ti a tua metade.Um relógio rude que não mostra as horas passadas no teu pulso,Uma fotografia muito antiga de quando eras muito moço,Esfinges que se levantam como leoas famintas à caça de teus despojos,Agora que todos os teus desejos migraram para o nada.

E me pergunto, sem sabedoria, como fazer o bemCom esses elementos:A tua nudez, teus pés descalços, um deles sem dedos, as tuas mãos frias,Teu corpo inerme e inerte no interior da terra...

Haverá chegado o momentoDe lançar o fim ao fogoE forjar outro nascimento?

irineu Pacheco Paes Barreto (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Pará, mestre em História da Ciência pela Universidade de São Paulo e autor de Páginas Poluídas (poemas, Ed. Scortecci, 2004).

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cRôNIcaS DO SauíPE

Aos colegas da Turma 2008-2010 do Instituto Rio Branco, companheiros de uma experiência incomum

La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y como la recuerda para contarla.

(Gabriel García Márquez, Vivir para contarla)

Eduardo Brigidi de Mello

Ricardo Stuckert

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“a Procura da Poesia”Uma das dificuldades de buscar a linha

perfeita é a inevitável insatisfação que ocorre quando a ideia é traduzida em parágrafo. Melhor dito: as ideias podem ser transmitidas pela escrita, pois é possível estruturar tese, antítese, síntese. Com sentimentos e percepções tudo é mais difícil, não há conclusão, somente um labirinto de sons, cheiros, risos, lágrimas e cabelos ao vento. Como relatar o indescritível? Relatado, como convencer os céticos?

Tudo começou na manhã do dia 8 de dezembro de 2008, uma segunda-feira nublada. Foi um voo diferente, pois o embarque ocorreria na Estação de Autoridades da Base Aérea de Brasília. A sala de espera, sóbria em seus confortáveis sofás, mescla-se na memória com jovens semblantes de expectativa, semblantes de diplomatas ainda em formação. Finalmente conheceríamos o famoso “Sucatão”, apelido dos velhos Boeing 707, da Força Aérea Brasileira (FAB).

O avião não era dos mais modernos e a sensação era de ansiedade dúbia – misto de medo e brincadeira –, apesar da tranquilidade dos colegas da Aeronáutica que nos recebiam na entrada da aeronave. O nervosismo durou pouco: partimos para Salvador com um fartíssimo café da manhã, num voo que só não foi mais tranquilo por conta da aterrissagem-mergulho na chegada, menos de duas horas depois.

Desembarcados, fomos divididos: Hospedagem e Cerimonial foram para a Costa do Sauípe, enquanto Apoio às Delegações, Credenciamento, Transportes e “Dipligs” conheceriam o aeroporto. Recebemos as primeiras instruções do Ministro Eduardo Carvalho, na Sala Vip, onde posteriormente seriam recebidas autoridades. Fomos para o Sauípe por volta de quatro horas da tarde: o calor, acariciado pela brisa, evocava um clima de serenidade. Em um lugar assim, onde se somariam, para muitos, a primeira experiência profissional e a sonhada

participação em uma Cúpula de alto nível, como poderíamos conter o entusiasmo?

Nesse primeiro dia tivemos a primeira reunião no Centro de Convenções, que ainda estava sendo preparado para a montagem das inúmeras salas de conferências. Fomos recebidos afavelmente pelo Embaixador Ruy Pereira com “tenho grande alegria de ter vocês aqui, vocês são ‘carne de canhão’, sem vocês ele não dispara, sem vocês nada disso seria possível”. Disse que não seria apenas “a” Cúpula, mas “as” Cúpulas, cada uma com um propósito especial: Mercosul, União das Nações Sul-Americanas (Unasul), Grupo do Rio e a inédita Cúpula da América Latina e do Caribe de Integração e Desenvolvimento (Calc).

Essa última seria especial: pela primeira vez, em aproximadamente dois séculos de história, os países da América Latina reunir-se-iam por iniciativa própria, para iniciar a definição de uma visão latino-americana frente aos novos desafios do sistema internacional. Como disse o Embaixador Ruy Pereira, “vocês poderão dizer, quando forem embora e daqui a cinquenta anos, ‘eu estive lá’. Sejam bem-vindos, olhem a paisagem com calma, enquanto passam por ela a toda velocidade”...

Logo após, falou o Ministro Eduardo Carvalho, com mais detalhes da nossa participação. “Qualquer movimento de Chefe de Estado deve ser indicado para o diplomata da etapa seguinte”, “armas envolvem questão de segurança nacional, se algo der errado...”, “o pessoal da hospedagem vai ter trabalho, são quase mil e cem quartos reservados para as delegações”, “Não pensem em horário de trabalho, em conferências internacionais as conversas seguem noite adentro, às vezes é na madrugada que se decidem as coisas mais importantes”.

Os grupos reuniram-se com seus respectivos coordenadores, encerrando o longo dia de trabalho por volta de onze horas da noite. Essa era a rotina, mas em alguns dias o trabalho era menos desgastante, e, quando possível, nos

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reuníamos na piscina, sob a luz das estrelas e o arrebatamento do luar, para relaxar um pouco ao som dos violões de alguns colegas.

A semana foi de muita pressa para que tudo saísse perfeito nos dois dias em que se acumulariam as reuniões, 16 e 17 de dezembro, e pareceu interminável, pois o trabalho iniciava cedo na sala “Grupo de Trabalho CALC” (o “GT Calc”). O “GT” era bem agradável, já que o ar condicionado aliviava o calor úmido e pesado do Sauípe. O ambiente não poderia ser melhor, pois o trabalho era mesclado com as brincadeiras e a vista: se o “GT Calc” estivesse muito cheio, bastava sair para contemplar o mar, ou trabalhar nas mesas do lado de fora.

O GT Calc, por vezes, entrava em ebulição. Montagem de manuais, de programas, o pessoal do credenciamento com caixas e caixas de credenciais, “Embaixada da Colômbia, atende!”, o barulho constante da impressora, que se somava à irritação por ver a miragem da piscina logo ali, “Quem quer programa!?”, “Fecha a pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig, diplig, alguém?!”, “E a cachaça para o brinde, já foi providenciada?”, a disputa pelos computadores, “Afinal, o Presidente Uribe vem ou não vem?”, “Alguém de transporte? Carro para presidência da República’... ‘eu gelo quando ouço ‘Presidência da República’”, sugestões de colegas da coordenação de “não caiam na ansiedade dos jovens, acalmem-se, as respostas virão na hora certa”, “o presidente fulano não gosta de ar-condicionado, o beltrano só toma café de tal lugar”, e assim o dia inteiro.

Dos cinco hotéis que formam a Costa do Sauípe, quatro deles foram fechados para as Cúpulas. Ficam todos perto do mar, divididos pela Vila Nova da Praia, centro com lojas e restaurantes. Hospedados no Hotel Conventions, o mesmo das delegações de Brasil e Cuba, costumávamos jantar no restaurante do Hotel Suítes, onde ficava o “GT Calc”. O restaurante tinha como atração, nas mesas ao ar livre, uma combinação especial: calor-brisa, música ao vivo, cardápio

seleto e amizades sendo construídas à base de muita risada. Risadas, aliás, que enchiam o GT sempre que surgia alguma brincadeira para descontrair e manter o companheirismo em momentos de tensão, pois sempre é bom saber, na SERE, quem é o seu colega.

Na noite do dia 12, a base do trabalho estava pronta. Depois de um jantar na Vila, voltamos para o hotel e ficamos conversando na varanda, com vista para uma grande área verde, para a piscina, para o mar. Quando apareceram os colegas do credenciamento, que até então estavam em Salvador, foram ovacionados ao chegar de ternos em meio às camisas, já que o traje no Sauípe era mais informal. Como um batalhão que retorna do “front”, ouvimos muitos causos, confirmando o que havia pensado quando chegaram: “a noite vai ser longa...”

Os preparativos finais para as Cúpulas começariam na manhã seguinte.

“Vengo del Sur”No dia 15 de dezembro, além de a

mesa do meu quarto ter sido requisitada para o café da manhã do Presidente da República, iniciou-se a chegada dos Chefes de Estado e de Governo. Antes disso, já havia testemunhado a chegada do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, e do Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ao Hotel Conventions. Nesse mesmo local, vários colegas aguardavam o novo Presidente de Cuba, Raúl Castro, principal atração do evento, em sua primeira viagem internacional.

Sua chegada foi tranquila, aceitando a fita do Senhor do Bonfim oferecida pelas baianas, antes de rápida entrevista à agência espanhola EFE: “Señor Presidente, para sair do isolamento Cuba fará concessões?”, “Concessões a quem?”, respondeu Raúl, para surpresa da jornalista, ao que ele seguiu sorridente, dizendo que Cuba estava disposta

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a conversar, desde que em igualdade de condições1. O Presidente Lula, mais tarde, disse que “Cuba não tem que fazer nenhum gesto. Quem tem que fazer um gesto são os EUA, que fizeram o gesto de bloquear”2.

Nessa mesma noite, fui ao Hotel Golf&Spa, de arquitetura mais tradicional e um lobby sempre agradável, assistir à chegada do Presidente da Bolívia. Evo Morales chegou sem alarde, saudando a todos, vestindo calça jeans e a tradicional jaqueta com bordados indígenas, acompanhado de seus filhos adolescentes. Mantinha fisionomia serena em momento delicado na Bolívia, que enfrentava conflitos por autonomia em algumas regiões. Nesse mesmo hotel estavam, entre outros, os Presidentes de Argentina, Paraguai, Venezuela, Equador.

O dia seguinte, 16 de dezembro de 2008, seria o mais importante. Acordando um pouco mais cedo que de costume, às seis da manhã, começamos a preparação da Cúpula do Mercosul, a primeira das Cúpulas de Salvador, cada um na respectiva função: preparar os cortejos dos Chefes de Estado e de Governo até o Centro de Convenções, para serem recebidos pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; coordenar a imprensa; preparar as salas de reuniões com todos os detalhes do cerimonial; atender à multidão que congestionava o posto de credenciamento.

Os celulares não paravam de tocar, e cada um de nós recebia ligações de quase todos os colegas, uma após a outra. Pode-se dizer que todos falaram com todos em poucas horas: nada mais simbólico para expressar os laços de companheirismo que formamos desde o primeiro dia.

Fora da Sala Plenária havia, além de telões, comes e bebes: água, suco de acerola e laranja,

café, acarajé, vatapá e salgados. O mais saboroso, porém, eram as impressões: o Presidente do Paraguai, Fernando Lugo, vestindo uma serenidade de bispo, acidentalmente pisou o pé de um colega, “perdón, perdón, como estás, chico”. Ao lado, no almoço na Tenda Presidencial, os Presidentes Lula, Evo e Cristina conversavam e riam, enquanto os Presidentes Lugo e Correa trocavam ideias ao lado. A Presidente Bachelet procurava a sala dos presidentes, eu e mais três colegas ouvíamos o Presidente Chávez conversar com um grande grupo, o Presidente Evo perguntava pelo toalete, “por allá, Señor Presidente”, o Presidente Lula elogiava o cardápio para um assessor, “estava boa a comida”...

A XXXVI Reunião dos Chefes de Estado do Mercosul não conseguiu atingir seu objetivo principal (o fim da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum – TEC), mas avançou em diversos pontos, a começar pelos inúmeros encontros entre representantes de governos estaduais e da sociedade civil, realizados paralelamente aos eventos presidenciais. Ponto importante foi o item 13 do Comunicado Conjunto dos Estados-Partes do Mercosul e Estados Associados, em que se registrou a satisfação pela realização, em 10 de agosto, do Referendo Revogatório na Bolívia, com participação da Missão Observadora Eleitoral Ad Hoc do Mercosul. No item 12 do mesmo comunicado foi reiterada a Declaração de 25.06.1996, reafirmando-se o respaldo aos “legítimos direitos” da Argentina na disputa de soberania relativa à questão das Ilhas Malvinas.

O Mercosul também celebrou a implementação do Sistema de Pagamentos em Moedas Locais entre os Bancos Centrais

1 15/12/08 - 23h28 - Atualizado em 15/12/08 - 23h30 “Raúl Castro é o primeiro governante a chegar à Costa do Sauípe” (http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL924047-5602,00-RAUL+CASTRO+E+O+PRIMEIRO+GOVERNANTE+A+CHEGAR+A+COSTA+DO+SAUIPE.html

2 Entrevista coletiva concedida pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após almoço oferecido ao Presidente da República de Cuba, Raúl Castro, http://www.info.planalto.gov.br/download/Entrevistas/[email protected]

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da Argentina e do Brasil, permitindo que o comércio bilateral seja efetuado em moedas nacionais. Além disso, foi reforçado o compromisso com o multilateralismo e com a reforma integral das Nações Unidas.

Já a Reunião de Cúpula Extraordinária da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano, com o objetivo de construir uma identidade sul-americana em matéria de defesa que contribua para o fortalecimento da unidade região. Aprovado apenas 7 meses após sua proposição pelo Brasil, tem como propósito aperfeiçoar a confiança mútua e aumentar a cooperação em matéria de defesa.

Logo depois, a manifestação do Presidente da Venezuela provocou risos ao divulgar o canal de televisão Telesur. Disse que a Presidente Bachelet assistia a tal canal todos os dias, ao que ela respondeu brincando “só para poder te ver, Presidente”... No fim da reunião, o Presidente Lula, lembrando que o tempo era curto, brincou ao dizer “companheiros e companheiras, temos um problemita”, confirmando o clima de descontração.

Ainda no dia 16, ocorreu a reunião extraordinária do Grupo do Rio, conduzida pelo Presidente do México, Rafael Calderón, que aprovou a entrada de Cuba no bloco de discussões políticas regionais, criticando-se o embargo dos Estados Unidos à ilha, qualificado pelos participantes como incompatível com o novo momento mundial, de reforço do multilateralismo e do diálogo político aberto, relembrando-se das 17 resoluções consecutivas da Assembleia Geral das Nações Unidas contra o bloqueio.

No dia seguinte, era a vez da reunião mais esperada: a I Cúpula da América Latina e do Caribe de Integração e Desenvolvimento (Calc), resumida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil na nota 695, de 14 de dezembro de 2008. Para o Itamaraty, representou uma oportunidade inédita de avançar uma agenda comum, construída a

partir de uma perspectiva própria latino-americana e caribenha, a ser marcada pelos valores da cooperação e solidariedade, em uma visão renovada para o século XXI.

Os Presidentes Lula e Chávez ditavam o ritmo de descontração das Cúpulas. Após uma saída para uma reunião bilateral com a Presidente da Argentina, Cristina Kirchner, o Presidente da República dirigiu-se ao mandatário venezuelano dizendo “acho que está na hora de chamar o companheiro Chávez, pois ele já está tirando os sapatos...”, “Compañero Lula, o problema é se meu chanceler, que calça 48, atirar os dele”...

Um dos temas mais discutidos, e que mais ganharam espaço na imprensa, foi o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba. A Bolívia chegou a pedir um boicote dos latino-americanos enquanto tal bloqueio persistisse, mas o Presidente Lula afirmou esperar melhoras na política externa norte-americana em relação à América Latina e ao Caribe, na entrevista coletiva dos mandatários, feita no Hotel Golf&Spa.

Por fim, na Declaração de Salvador, que resume a Calc, assumiu-se o compromisso com o desenvolvimento regional integrado, não-excludente e equitativo. Celebrou-se o resgate da memória dos processos de independência, bem como as demais ações para gerar consciência sobre o passado compartilhado como povos das Américas, projetando um futuro que os encontre integrados em sua diversidade.

“Farewell”Apesar de algumas divergências específicas,

perfeitamente naturais, o que prevaleceu foi o clima propício ao diálogo, a fim de construir uma visão integrada e autônoma para os problemas da região, principalmente quanto à integração regional e energética. Em tempos de consolidação do multilateralismo, permitiu iniciar uma abordagem que uniformiza a

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...“embaixada da colômbia, atende!”, o barulho constante da impressora, que se somava à irritação por ver a miragem da piscina logo ali, “quem quer programa!?”, “fecha a pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig, diplig, alguém?!”, “e a cachaça para o brinde, já foi providenciada?”, a disputa pelos computadores, “Afinal, o Presidente uribe vem ou não vem?”, “Alguém de transporte? carro para presidência da república’... ‘eu gelo quando ouço ‘Presidência da república’”...

Eduardo Brigidi de Melo

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relação da região com o sistema internacional, de forma altiva e previsível, características fundamentais para o desenvolvimento.

O novo momento permite recordar o estado das relações da região há 50 anos, quando Pablo Neruda satirizou a América Latina no poema “Reunión de la OEA”, em que os países da América Latina oferecem suas tradições e produtos para agradar ao representante norte-americano, que dita acordos sem tomar conhecimento da região. Neruda ironiza tal época nas últimas linhas do poema: “Señores, la OEA tiene defectos / pero es deliciosamente unánime”.

O que diria, agora, das Cúpulas de Salvador? Certamente o poeta ficaria inspirado pela inédita iniciativa brasileira de reforçar os laços da região, pois, como disse o Ministro Celso Amorim, é importante “que nós sejamos capazes de tratar dos nossos problemas – nós, que somos países em desenvolvimento dessa parte do mundo” (“América Latina: Cúpula sem tutela”, Correio Braziliense, 16.12.2008).

Na memória, as recordações multiplicam-se e condensam-se, sem cronologia certa, e por isso as notícias começaram a se misturar com os momentos em que o tempo parecia parar. Política, amizade, céu estrelado, violão na piscina, correria por urgências, trabalho, família, mundo novo: “Chávez nega hegemonia”, “Lugo apóia equatorianos”, “O mergulho de Bachelet”, “Endividados demonstram união”, “Líderes sonham alto”, “ Criação de fundos para a integração”, “casamento, tu também!?”, “Transferência de tecnologia sobre produção de biocombustíveis - Integração energética”, “que bom que não passei no concurso de 2007”, “Programas de redução da mortalidade infantil”.

As Cúpulas chegaram ao fim, como todo sonho, e no Sauípe reapareceu o menino que fui, lamentando mais uma vez a passagem do tempo. A melhor maneira de festejar seria ir para a piscina do hotel All Inclusive, aquecida, com risos fáceis e estrelas ao alcance da

mão. Nesse momento, fomos interrompidos por um chamado do Embaixador Ruy Pereira: todos no saguão do Golf&Spa, oito horas, sem atraso. O penúltimo ato seria o agradecimento do Embaixador Ruy Pereira, do Ministro Eduardo Carvalho e dos Coordenadores de cada setor.

Nessa hora ouvi uma colega confessar que “quando o Embaixador começou a falar, me deu vontade de chorar”. A vida, que aos poucos vai nos dando uma face séria e respeitável em lugar do sorriso infantil, desta vez terá que redobrar o esforço. A noite foi longa, ventosa, musicada, e a nostalgia, nada mais que uma saudade resignada, já tomava minhas impressões quando fomos todos jantar no restaurante do Hotel Golf&Spa, em meio a fotos de despedida da brisa de praia do Sauípe, que ainda sinto, suave, na memória.

Despertávamos para a realidade sabendo de mais um compromisso no dia seguinte: o Ministro Celso Amorim convocou-nos a comparecer a seu gabinete, no Palácio Itamaraty. A reunião foi gratificante e encerrou nossa participação de forma única. Após cumprimentar-nos, disse que havia percebido a alegria dos colegas mais jovens que trabalharam no evento ao andar pelo Centro de Convenções. Falou que as Cúpulas marcarão o Governo Lula, pois foram uma grande oportunidade de os países da América Latina e Caribe reunirem-se sozinhos, a fim de discutirem seus próprios problemas.

Posteriormente, questionado em entrevista sobre qual foi seu momento mais difícil e qual o de maior gratificação nos últimos sete anos como Chanceler, o Ministro Celso Amorim afirmou:

- Olha, é difícil escolher um só. Por exemplo, quando assinamos aqui o tratado da Unasul, tínhamos a consciência que estávamos fazendo uma coisa histórica. (...) Agora, houve outros momentos. A Cúpula do Sauípe no final do ano, reunindo pela primeira vez em

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200 anos de vida independente todos os países da América Latina e do Caribe. Uma coisa extraordinária!” (Caros Amigos, ed. 143, março de 2009).

Política, amizade e acaso marcaram as Cúpulas, e o espírito do Sauípe perpassará as carreiras dos jovens diplomatas que lá estiveram. Recordo de personagem do romance “Um Livro em Fuga”, de Edgard Telles Ribeiro, em palestra para alunos do Instituto Rio Branco:

Permito-me recomendar que, em suas carreiras, não busquem receitas fáceis ou previsíveis, não sigam pistas já trilhadas, nem briguem contra o destino. E que, nesse processo lento e sinuoso, permaneçam fiéis a seus ideais de juventude. Para que, um dia – e a ousadia do comentário me leva a falar

sorrindo –, os retratos em três por quatro de suas atuais identidades sejam capazes de confrontar as figuras solenes que ostentamos todos mais ao final de nossas vidas, sem que o espanto e a tristeza prevaleçam.Os desafios profissionais irão tornar a vida

mais difícil e a poesia da Calc será desafiada pela prosa do Ministério, prosa muitas vezes pesada e estressante. Que não percamos o sinuoso encantamento dos versos que atiramos ao vento do Sauípe, um lugar que só nós conhecemos, só nós sabemos o quão especial foi, uma praia em que todos os minutos foram breves, mas vastos.

eduardo Brigidi de mello (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande Sul.

Ricardo Stuckert

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