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DOS MUNDOS INTERIORES de Luís Mestre peça-epitáfio 2015 Dos Mundos Interiores estreou no Porto, na Sala do Tribunal do Mosteiro São Bento da Vitória, a 15 de Janeiro de 2016, com encenação de Luís Mestre, cenografia de Ana Gormicho, desenho de luz de Joana Oliveira, assistência de encenação de Tamar Aznarashvili e interpretação de Ana Vargas e Tânia Dinis, numa co-produção Teatro Nacional São João e Teatro Nova Europa.

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DOS MUNDOS INTERIORES de Luís Mestre peça-epitáfio 2015 Dos Mundos Interiores estreou no Porto, na Sala do Tribunal do Mosteiro São Bento da Vitória, a 15 de Janeiro de 2016, com encenação de Luís Mestre, cenografia de Ana Gormicho, desenho de luz de Joana Oliveira, assistência de encenação de Tamar Aznarashvili e interpretação de Ana Vargas e Tânia Dinis, numa co-produção Teatro Nacional São João e Teatro Nova Europa.

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1º Momento 1. Festa 2. Apaixonar / Ruínas Circulares / Tigre 3. Assobiar 4. Cinema / Flashes / Comboio 5. Mar / Mergulhar / Água 6. Comboio / Anna Karenina / Assobiar 7. Torcello 8. Insónia 9. Apaixonar 10. Silêncio 11. Amor / Mar 12. Sonho / Torcello / Neve 13. Mar / Fim de Festa 2º Momento 1. Leitura / Sombra 2. Noite a1 uma mulher a2 a mesma mulher nota 1: as indicações cénicas aparecem entre parêntesis simples. nota 2: algumas porções do diálogo aparecem entre parêntesis duplo, e servem para marcar uma pequena mudança de perspectiva por parte do emissor – uma mudança momentânea para um modo mais introspectivo.

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1º Momento (luz muito rápido. a1 está sozinha num local isolado. é tudo lento e tranquilo. algo abafado, ao fundo, ouvimos música, pessoas, sons característicos de uma festa num local próximo. a1 está sentada num banco. a seu lado, caído no chão, um flute de champagne vazio. silêncio muito longo. a2 entra, segurando o seu flute com champagne, e fica de pé. pausa longa. calmamente, a1 sente a presença de a2 e vira-se. olham-se. sorriem. silêncio) (1…) a2 longe da festa… a1 ah sim. a2 barulho, ruído. confusão. a1 (pausa) pessoas… a2 sim. pessoas. a1 gente a falar de coisas. de outras pessoas. em vez de… a2 (interrompendo) discutir ideias? a1 (sorrindo) sim. (silêncio) a2

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como é que vieste aqui parar? a1 aqui? a2 à festa. a1 alguém me convenceu de que seria melhor que a solidão. a2 e é? (olham-se.) a1 não sei… (pausa curta) é? (2…) a1 já te apaixonaste alguma vez? (pausa curta. sorri) claro que sim. mas falo de algo avassalador. muito maior que o primeiro amor. algo que te consome e te torna o pensamento turvo. o pensamento racional turvo. (pausa curta) que te turva o pensamento. como se existisse uma força maior que te leva a fazer coisas que sabes serem... (interrompe-se) que te contradizem. que te fazem sentir... (interrompe-se. silêncio curto) como se fosse como se não fosses dona

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de ti própria das tuas acções. como se houvesse um turbilhão em ti que te levasse sempre à outra pessoa. é o que te alimenta. a outra pessoa. sempre a outra pessoa. (pausa) já o sentiste. a2 (silêncio curto) sim. (pausa curta) já. a1 faz-nos sentir vivos, não faz? (silêncio) e doentes. é como se estivesses doente. sempre doente. não sabes o que é, exactamente. mas sabes que te consome, cada vez mais depressa. é como se vivesses dormente adormecida. como se vivesses numa ruína circular. (silêncio curto) a2 e a outra pessoa é o tigre. (riem. pausa) sempre desejei um amor assim. (3…) a2 (bebe. pausa. brinca com o flute, tentando assobiar para dentro dele. não conseguindo)

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sabes assobiar? a1 o quê? a2 se consegues assobiar. a1 não. a2 inveja. tenho inveja da pessoas que assobiam. para o ar. (pausa) não sei como o conseguem. e como não sei, não consigo perceber porque o fazem. não percebo porque o fazem. (4…) a2 tenho saudades de ir ao cinema. ver… aquela tela enorme. a luz sobre a tela. que torna tudo maior. maior que nós. que eu e tu. (pausa) se fechares um pouco os olhos, é como se fossem fotografias. mil fotografias a passarem diante dos olhos muito rapidamente. como como se fosse como se fossem os últimos momentos da tua vida como se fosse uma memória. a1 flashes?

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a2 flashes, é isso. uma… uma explosão de imagens. e com esta explosão o movimento. as pessoas movem-se embora estejam paradas na fotografia. é paradoxal, não é? (pausa) como se aquilo não estivesse a acontecer. não pudesse acontecer. e, contudo, movem-se. o movimento acontece. as pessoas movem-se. ganham vida. e com alguma atenção, podemos ver que respiram. ganham vida como personagens no teatro. como se fossem actores. são actores! ((embora, por vezes, não o saibam.)) desconhecem que aquela máquina os transforma em actores. que, de repente, projectados através da luz tornam-se maiores que nós. é tudo maior. tornam-se gigantes. ((vi tudo isto, um dia na chegada de um comboio à cidade.)) (5…) a2 o mar. (pausa curta) oiço o mar.

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a1 o quê? a2 ouves? o mar. a1 (pausa) não. acho que não. (pausa muita curta) espera… (silêncio) não. (pausa curta) nada. (pausa) como poderia ouvir? nem estamos perto da costa. a2 (pausa) tenta de novo. a1 não… a2 por favor. (pausa) tenta. a1 (pausa) já mergulhaste no mar numa noite de chuva? a2 água por todo o lado?… a1 sim. como se os outros elementos desaparecessem. de quatro para um.

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(pausa) transformas-te num outro animal. algo… aquático. um mamífero aquático que procura gotículas de ar no meio daquela água toda para poder sobreviver. e depois todo aquele som barulho do embate da água, sentes-te pequena... a2 mas pura. a1 pura sim. pequena e pura. (pausa) água dentro de água. (6…) a1 “Foi invadida por uma sensação idêntica àquela que experimentava quando, ao tomar banho, se preparava para entrar na água, e benzeu-se.” a2 é belíssimo. o que é? a1 momentos antes da Anna Karenina se atirar para debaixo do comboio. a2 e sabes isso de cor? a1 sim, sei. “(…) e de repente, a escuridão que cobria tudo para ela rompeu-se, e a vida surgiu-lhe por um instante com todas as suas luminosas alegrias passadas.” mas ela continuou.

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a2 isso não a salvou. a1 não. (silêncio curto) a2 alguma vez criaste alguma coisa? a1 criar como? a2 criar... de raiz. do nada. a1 como uma escultura ou uma pintura. a2 escrever um livro, uma peça de teatro... (pausa) eu já. (pausa curta) existe um sentimento de abandono. sente-se isso. és tu e aquilo. aquela coisa que vai aparecendo. no início não sabes o que é. para onde vai. por vezes, tens breves vislumbres. mas nunca podes ter a certeza. nunca tens a certeza, pelo menos até terminares. até a forma fechar. percebes o que eu estou a dizer? (pausa curta) até tudo fechar. tudo convergir. tudo coincidir. aí, nesse instante, sabes o que é.

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o que está ali. naquele momento. o que fizeste, não sabes bem como. (silêncio curto) a1 é como assobiar? a2 (surpreendida) oh. (sorrindo. pausa) sim. talvez. (7…) a1 conheces Torcello? (pausa) eu nunca fui a Torcello. embora saiba exactamente como é aquela ilha. aquela vila. (pausa) já estive a uns minutos de Torcello. a uns minutos de barco. mas nunca lá fui. acabei por não ir. por não querer ir. sabes porquê? a2 não. a1 porque já lá estive. (pausa) é como se já lá estivesse estado. como se tivesse apanhado o barco. para ir a Torcello. a2 queres descrever-me a ilha? a1 pequena.

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muito pequena. numa hora, podemos atravessá-la. talvez menos. (pausa) uma ou duas coisas, para ver. nada mais. (pausa longa) nunca foste a Torcello? a2 não. a1 tal como eu. nunca foste lá. a2 não. nunca. (8…) a1 não consigo dormir. não tenho conseguido dormir. a2 insónia. a1 sim… é pavoroso. (pausa curta) depende das noites. a2 há já muito tempo que não dormes. que não consegues dormir. a1 depende das noites. a2

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já pertences a esse grupo. a1 o quê? a2 a um grupo de homens e mulheres, de todas as classes sociais, idades, religiões… (pausa) o grupo dos insones. a1 fica tudo lento. vago. (pausa) branco. a2 não consegues dormir, não consegues ver televisão, não consegues ler, não consegues trabalhar, estudar… a1 porque só pensas em dormir. apenas isso. só em dormir. a2 é uma obsessão. torna-se uma. (9…) a1 como se faz desaparecer um corpo? (silêncio longo) a2 (tentando perceber a pergunta) como é que nos apaixonamos?

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(silêncio) a1 é horrível, não é? fica-se tão vulnerável. com o peito e coração abertos. e a outra pessoa pode entrar dentro de ti e revolver-te por dentro. constróis todas essas defesas, constróis uma armadura que te cobre, protecção de alto a baixo para que ninguém te possa ferir, e depois uma pessoa uma pessoa estúpida, igual a qualquer outra pessoa estúpida, atravessa-se na tua estúpida vida… (pausa) dás um bocado de ti. não to pediram. fizeram um dia uma estupidez qualquer, como beijar-te ou sorrir-te, e a tua vida deixou daí em diante de ser tua. o amor faz reféns. entra dentro de ti. come-te e deixa-te a chorar no escuro, vai directo ao teu coração. dói. (pausa curta) não é só imaginação. não é só mental. é uma dor de alma, uma dor real que te invade e te rasga e te parte. odeio o amor. (silêncio) como é que eu fui fazer uma coisa tão estúpida. como consegui ser tão estúpida? (silêncio longo) depois um dia, um dia acordas de manhã e não sentes nada. sentes um vazio. quase um vazio.

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e perguntas-te, como se não desejasses aquele momento, para onde foi aquele amor? toda aquela vontade, todo aquele desejo, aquela força que te parte e rasga. (pausa) onde está? para onde foi? (pausa) e não sabes para onde. nunca sabes. de todas as vezes. sentes apenas que já lá não está. e voltas para a tua vida estúpida. para os dias estúpidos. uns atrás dos outros. até que alguém de novo faz uma estupidez qualquer e começa tudo outra vez. e pensas: não aprendi nada? (pausa curta) não. e todo aquele desejo que te rasga, volta. (pausa) agora estou aqui. à espera… (silêncio. Sorri levemente) sabes que... (interrompe-se. Silêncio longo) eu sinto sentia cada gota. cada gotícula. cada célula, um número infinito delas. sentia um dilúvio quando ele se vinha cá dentro, dentro de mim. é uma torrente de forças, algo monstruoso o momento em que ele me agarra

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com os braços longos e fortes. quando me agarra pela cintura e me puxa para o corpo dele. (pausa longa) eu pertenço-lhe. todas as minhas células. (pausa) e eu quero pertencer-lhe. (silêncio) ser dele. e que ele se sirva de mim. é com isso que o meu corpo vibra. todo o meu corpo vibra. e com isso, afasta-me de tudo. de todos. toda a minha vida converge para ele. para aquele momento. (pausa curta) ele venceu-me. por isso quero-o. e agora estou aqui… à espera. simplesmente à espera. como numa longa insónia. (silêncio longo. Lentamente, imaginando cada momento) lembro-me de todos os momentos. todos os momentos avassaladores, como se mais uma vez o olhar dele… como se estivesse aqui, agora e o olhar dele atravessasse o meu corpo. recordo tudo, relembro tudo exactamente o que cada célula do meu corpo sente, sentia, como se ele estivesse aqui. perante mim. recordo cada momento, cada adereço, cada peça de roupa que eu vestia e que sabia que ele ia ver, olhar, analisar,

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enquanto o meu corpo era atravessado por aquela sensação. esta sensação. ((o que estará ele a fazer agora?)) (pausa) quero-o. (pausa curta) quero os nossos jantares. os nossos dias na cama. acordar e ele ali. os ombros grandes, fortes. os braços longos, fortes. as mãos a descansarem do meu corpo. para logo depois, assim que acordar voltarem para mim, para o meu corpo. que é dele. como é que nos apaixonámos? (silêncio) um beijo. os lábios. um beijo estúpido. e logo ali, fiquei presa. refém. um único toque e toda a minha armadura cai. para agora, tanto tempo depois sentir esta dor real que me rasga aqui, enquanto espero, não sei o quê. a2 estás em ruínas. a1 eu estou em ruínas. (pausa) sou uma ruína circular… a2 ele é o tigre.

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a1 sim, é o meu tigre: territorial e solitário. (10…) (silêncio. a2 senta-se ao lado de a1. olham-se por uns momentos. silêncio muito longo) (11…) a2 o amor, o meu amor é uma coisa imensa e curiosa. ((não preciso dizer quem amo, não é isso que importa.)) são os seus sintomas que contam, a profunda deformação que provoca. ((em mim.)) não se trata de degeneração, se fosse assim, já o terias percebido, sentindo-o. ((tudo se pode esconder, excepto o espírito.)) a1 não, não se apagou nada na minha vida, digo-o com enorme surpresa. a2 o fenómeno, este fenómeno é tão belo. é uma coisa única, da qual não me consigo libertar um instante, um único instante, nem mesmo em pensamento. penso nele constantemente. o fenómeno… os sintomas que esse amor produz em mim, resumem-se a isto:

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uma graça que me atingiu, como se fosse uma peste. (pausa) e, a par da angústia, sinto uma contínua e infinita alegria. levanto-me de manhã, e o que é que me espera? (pausa curta) um dia repleto deste… amor. (pausa) é muito importante, nesta alegria que experimento, que eu seja a única a conhecê-la. e por isso os seus actos devem ser cumpridos em segredo. e esse segredo permite-me mergulhar na vida. sem isso, eu não poderia encontrar refúgios, clandestinidade, pretexto, silêncio, e todas essas coisas... entro, mergulho na vida e evito-a nos seus aspectos mais mesquinhos: os sociais. ((aqueles a que estou ligada por nascimento deixo-os activos: a casa, a família, etc., e que me protegem do meu desejo ilimitado de solidão.)) excluíndo esses aspectos resta-me enfrentar uma vida pura. bela ou terrífica... sem meio termo. (pausa) ((o que me que resta?)) (silêncio longo) é por isso que, depois do amor, as cores do mundo são intoleráveis:

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o céu da explosão de uma bomba atómica, a luz sobre uma cidade empestada, o silêncio que entenebrece as coisas. até porque, entretanto, caiu a noite. acendem-se as primeiras luzes, a hora é dedicada à pureza. antes da noite há uma espécie de festa, destinada a acabar rápido, mas que, todavia, enche o coração de remorsos e arrependimentos. o céu é de um laranja sereno, e ilumina claramente outros espaços. sente-se no ar um gelo que não perdoa. e, de repente, ouve-se o mar. ao longe. como um farol. o mar como um farol. (12…) a1 não é de estranhar se, durante a noite, tenho pesadelos horríveis. mas eles são a coisa mais sincera da minha vida. ((não tenho outro meio para enfrentar a verdade.)) (silêncio) sonhei há poucas noites que andava por uma estrada escura, cheia de água. com pequenas poças de água. procurava algo à beira do passeio. ((o que seria exactamente?)) e por aquelas poças cheias encontrava uma luz, lugares de outras vidas, talvez uma aurora boreal ou um grande crepúsculo siberiano, neve por todo o lado. alguma coisa: o quê, não sei... e, na escuridão dessa estrada escura, tenho então a impressão de ir a Torcello. de ter ido a Torcello. (pausa longa)

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deixa-me contar-te uma história. uma história que, provavelmente, já conheces… (pausa) há cerca de trinta anos uma mulher foi esquiar sozinha nos Alpes. de repente, dá-se uma avalanche e a neve envolveu-a, completamente. ficou soterrada. o seu corpo nunca foi encontrado. a sua filha era apenas uma criança na altura, os anos passaram, ela cresceu. aprendeu a esquiar. adorava fazê-lo. tal como a mãe. e num Inverno, decide ir esquiar sozinha. nos Alpes. estava a descer uma montanha e, mais ou menos a meio do percurso, decide parar para comer qualquer coisa e apreciar a paisagem. estava sentada perto de uma enorme rocha, a desembrulhar uma sanduíche, olha para baixo e vê um corpo ali, aos seus pés, congelado. olha-o cuidadosamente e, de repente, sente como se estivesse a ver-se ao espelho. como se olhasse para ela própria. o corpo está perfeitamente intacto. congelado, é um bloco de gelo. suspenso no tempo. ela aproxima-se e olha, de muito perto, para a face, a cara do corpo morto. e percebe, naquele momento, que está a olhar para a sua mãe. e a coisa mais estranha, é que a mãe… é mais nova que a filha. (pausa)

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aquela criança cresceu e tornou-se mais velha que a sua própria mãe. (silêncio) a2 é um bela história. a1 é só uma história. nada mais do que isso: uma história. (pausa) fumava um cigarro, agora. (13…) a2 oiço-o de novo. o mar. a1 o mar? a2 sim. a1 (pausa) estamos longe da costa. a2 pelo menos tenta. tenta ouvi-lo. a1 (fecha os olhos. escuta. silêncio) não. acho que não. (pausa. sorri) não estamos perto da costa. (silêncio) oiço o silêncio. a2 (pausa) sim. a festa já terminou. (pausa longa)

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vou regressar. (pausa longa. a2 levanta-se e sai. a1 fica sentada de olhos fechados. escuro lento.)

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2º Momento (escuro. silêncio. luz suave. neblina. no mesmo lugar. a1 está sentada no banco a ler ‘Anna Karenina’ de Tolstoi. a seu lado, no chão, uma mochila. silêncio muito longo. a2 entra. pausa longa. calmamente, a1 sente a presença de a2 e vira-se. olham-se. sorriem um pouco. pausa. a2 senta-se ao lado de a1. silêncio) (1…) a2 estava à espera de encontrar-me (corrige-se) encontrar-te aqui. (pausa) o que estás a ler? a1 não sei exactamente. (pausa) já não sei ler. não consigo. já não consigo suportar a viagem a solo. não suporto a leitura. o meu corpo não aguenta. a2 sentes-te velha? a1 cansada. desgastada. mais velha que a minha mãe. (pausa) e depois procuro. sinto-me perdida. vagueio. e procuro memórias, nas coisas, nos lugares. e o mar, sabes bem, não o oiço. tu consegues compreender isto. a2 sim. tudo. a1

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porque vieste aqui? a2 vim para me despedir. de ti. de mim. aqui. (silêncio) agora. (silêncio longo. a2 levanta-se e começa a sair) a1 (a2 pára, antes de sair) quem és? a2 (pausa) a tua sombra. a1 e vais a algum lado? a2 sim. (a2 sai. silêncio) (2…) a1 e de repente, de um momento para outro, de uma noite para a outra, depois das palavras, os lugares ganham memórias memórias que já tiveram e que voltam num instante e nós (corrige-se) e eu sem saber o que fazer com elas. (pausa) a mão no ombro no cinema agora vazio ((espero sempre a mão quente no meu ombro…))

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os vidros as luzes do hotel onde se amou. o restaurante dos quatro elementos onde se fizeram juras. as ruas com pouca luz os barulhos da cidade e os silêncios. (pausa) o que fazer com eles? ((sinto-me só.)) (silêncio longo) foi a atracção do perigo que me trouxe a este lugar: a noite azul rasgada por tons de laranja. e saio à tua descoberta. és a minha cidade, com ruas fantasmas. acolho-te nos meus braços, onde me ensinas a linguagem dos olhos e eu… fico sem voz. (silêncio longo) as folhas caem por todo o lado. é altura de me pôr a caminho. ((estou muito agradecida por esta estadia.)) mas agora, é o momento de ir. pressinto a chuva fria que viaja, dolorosamente, na minha direcção. sinto-me cansada, mas sei o que tenho de fazer. (pausa curta) não direi aonde vou e o que farei. ((isso só me interessa a mim, imensamente.)) (a1 levanta-se para sair. pausa longa) “Foi invadida por uma sensação idêntica àquela que experimentava quando, ao tomar banho, se preparava para entrar na água, e benzeu-se.” (silêncio. a1 começa a sair quando, de repente, se ouve o mar. ondas fortes. a luz de público sobe síncrono com o som do mar. a1 pára. silêncio) “(…) e de repente, a escuridão que cobria tudo para ela rompeu-se, e a vida surgiu-lhe por um instante com todas as suas luminosas alegrias passadas.” (a1 volta-se, e dirige-se serenamente para o público. silêncio curto) ((ah, mar libertador!)) mas aproxima-se a minha hora e das ravinas. aí vem o caro mensageiro da minha noite, o vento do entardecer. chega o momento. sinto-o.

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((oh, bate coração!)) e tu, agita as tuas ondas, pois o teu espírito, por cima de ti, está como um astro luminoso; enquanto as nuvens, sem pátria, se agitam em fuga. (pausa) o que me acontece? tenho de me assombrar, como se agora começasse a viver. como se uma nova vida se tratasse. é tudo diferente. sou eu, agora. a encontrar as alegrias do vencedor num acto único, completo. (pausa curta) final. (silêncio curto) falta apenas um passo para o escuro. como gostaria de poder ver o meu olhar. ((que desejo terrível.)) (pausa) agora, a noite irá cobrir-me a cabeça de sombra. e, oh!, sinto uma chama a brotar-me do peito. neste instante, em mim, inflama-se uma chama, como um cálice tormentoso e fervente de natureza. (pausa) em breve, será tudo muito diferente. mais fácil. vou respirar livremente. (silêncio) ((demoras-te.)) ainda é tudo como dantes. vem. tomo-te nos braços, alegria dos meus olhos. seduz-me, sonho encantador. (pausa) sinto-te, estás próximo. vens suavemente ao meu encontro, revelar-te na minha escuridão.

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(pausa. sorrindo muito levemente) antes de cada um de nós o saber já nos pertencíamos. (silêncio muito curto) quando eu estava diante dele, de coração rendido, e lhe entregava toda a minha vida; quando ele se vinha cá dentro, numa enorme torrente de forças, e eu sentia cada gota; quando me agarrava com os braços longos e fortes e me puxava para ele; quando toda a minha vida convergia para aquele corpo; quando o olhar dele me contemplava e me vencia, e eu, embebida em deleite, enquanto a minha alma vogava; quando ele, maravilhosamente, descobria cada harmonia e desarmonia no mais fundo do meu corpo no perfeito momento em que surgia, ainda antes de eu o perceber; quando a mínima sombra de uma nuvem se esbatia na minha testa, ou cada sombra de melancolia escurecia nos meus lábios, quando ele escutava as marés do coração e pressentia com inquietação as minhas horas sombrias; quando o meu espírito demasiado incontível e esbanjador se consumia em conversas exuberantes; quando ele me revelava, fiel como um espelho, qualquer mudança na expressão do meu rosto; tu, inocente, contavas pelos dedos os degraus da escada que ia do nosso monte até à tua casa, e me mostravas os lugares por onde passavas e onde te sentavas e contavas como aí passavas o tempo

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e, por fim, me dizias, que era como se eu sempre lá estivesse estado. (pausa) não nos pertencíamos nós há já muito tempo? (silêncio longo) ((silêncio.)) a minha língua já quase não quer servir para um diálogo mortal nem para palavras vãs. em breve tudo será diferente e eu respirarei livremente, tal como a neve se aquece, brilha e se funde à luz do Sol. ecoa ao longe o que o tempo em mim acumulou, brota do meu coração, desprendendo-se em vagas. o que é pesado cai e continua a cair. (silêncio curto) o turbilhão aproxima-se como uma valsa de aviões. (silêncio) vou. vou até ao fim de mim. nada temo. tudo regressa. (silêncio longo) e o que tem de acontecer, já se cumpriu. (escuro lento. silêncio profundo)