DOSSIÊ CULT LITERATURA DE TESTEMUNHO

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    1/25junho/99 -CULT 39

    l i t e r a tu r a de t e s t emunho

    Passagens Homenagema Walter Benjamin,inst ala o de DaniKaravan montada no Museude Arte de Tel-Aviv em 1997

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    ...die Narbe der Zeittut sich auf...

    Abend der Worte

    ...a cicatriz do tempoabre-se...

    Anoitecer das PalavrasPAUL CELAN

    H dois anos, durante os primeirosdias que sucederam ao nosso retorno,estvamos todos, eu creio, tomados porum delrio. Ns queramos falar, final-mente ser ouvidos. Diziam-nos que anossa aparncia fsica era suficientementeeloqente por ela mesma. Mas ns jus-tamente voltvamos, ns trazamosconosco nossa memria, nossa expe-rincia totalmente viva e ns sentamos

    um desejo frentico de a contar tal qual.E desde os primeiros dias, no entanto,parecia-nos impossvel preencher a

    diante de fatos (inenarrveis) comotambm e com um sentido muito maistrgico a percepo do carter inima-ginvel dos mesmos e da sua conseqenteinverossimilhana. Continuando a passa-gem acima, Antelme afirma ainda: Essadesproporo entre a experincia que nshavamos vivido e a narrao que era

    possvel fazer dela no fez mais que seconfirmar em seguida. Ns nos defront-vamos, portanto, com uma dessas reali-dades que nos levam a dizer que elasultrapassam a imaginao. Ficou claroento que seria apenas por meio daescolha, ou seja, ainda pela imaginao,que ns poderamos tentar dizer algodelas.

    O testemunho se coloca desde o inciosobre o signo da sua simultnea neces-

    sidade e impossibilidade. Testemunha-seum excesso de realidade e o prprio teste-munho enquanto narrao testemunha

    A literatura de testemunho, conceituada a partir dos relatos de sobreviventes doscampos de concentrao nazistas, se articula como tenso entre a necessidade denarrar a experincia da barbrie e a percepo da insuficincia da linguagemdiante do horror redimensionando a relao entre literatura e realidade,salientando o carter traumtico de toda experincia e pondo em xeque a equaops-moderna que transforma a histria em fico. Este Dossi concebido eorganizado pelo professor e ensasta Mrcio Seligmann-Silva analisa o papel daliteratura de testemunho na histria dos gneros literrios, a possibilidade dapoesia e da cultura depois de Auschwitz, a tarefa dos historiadores do Holocausto

    e a formulao de uma tica da memria a partir da obra do escritor Primo Levi.

    A literatura do traumaMrcio Seligmann-Silva

    distncia que ns descobrimos entre alinguagem que ns dispnhamos e essaexperincia que, em sua maior parte, nsnos ocupvamos ainda em perceber nosnossos corpos. Como nos resignar a notentar explicar como ns havamoschegado l? Ns ainda estvamos l. E,no entanto, era impossvel. Mal come-

    vamos a contar e ns sufocvamos. A nsmesmos, aquilo que ns tnhamos a dizercomeava ento a parecer inimaginvel.

    Robert Antelme abre com essas pala-vras o seu relato sobre a sua experincianos campos de concentrao nazistas que na qualidade de um dos primeiros eleredigiu j em 1947 (com o ttuloL espcehumaine). Essa passagem descreve ocampo de foras sobre o qual a literaturade testemunho se articula: de um lado, a

    necessidade premente de narrar aexperincia vivida; do outro, a percepotanto da insuficincia da linguagem

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    uma falta: a ciso entre a linguagem e oevento, a impossibilidade de recobrir ovivido (o real) com o verbal. O dado inima-ginvel da experincia concentracionriadesconstri o maquinrio da linguagem.Essa linguagem entravada, por outro lado,s pode enfrentar o real equipada com aprpria imaginao: por assim dizer, s

    com a arte a intraduzibilidade pode serdesafiada mas nunca totalmente sub-metida.

    Ali onde cessa a filosofia, a poesiatem de comear, afirmou FriedrichSchlegel no limiar do sculo XIX, criti-cando justamente a falta de imaginaodos filsofos contemporneos a ele. Paraesse pensador de Iena, a imaginao estno centro do nosso entendimento. J paraa testemunha de um evento-limite, como

    o assassinato em massa perpetrado pelosnazistas, coloca-se ou melhor: impe-se uma questo incontornvel: a

    opo entre a literalidade e a ficoda narrativa. Nesta encruzilhada encon-tramos vrias das principais questes queesto na base da literatura de testemunho.Tentemos discutir alguns desses pontos.

    O real e o trauma

    Literatura de testemunho umconceito que nos ltimos anos tem feitocom que muitos tericos revejam arelao entre a literatura e a realidade.O conceito de testemunho desloca oreal para uma rea de sombra: teste-munha-se, via de regra, algo de excepcio-nal e que exige um relato. Mrtir nosentido de algum que sofre uma ofensaque pode significar a morte vem dogrego martur, testemunha. Devemos,

    no entanto, por um lado, manter umconceito aberto da noo de testemunha:no s aquele que viveu um martrio

    pode testemunhar; todos o podem. E, poroutro lado, o real em certo sentido,e sem incorrer em qualquer modalidadede relativismo sempre traumtico.Pensar sobre a literatura de testemunhoimplica repensar a nossa viso da Histria do fato histrico. Como lemos emGeorges Perec autor de W ou a memria

    da infncia , o indizvel no est escon-dido na escrita, aquilo que muito antesa desencadeou. A impossibilidade estna raiz da conscincia. A linguagem/escrita nasce de um vazio a cultura, dosufocamento da natureza; o simblico, deuma reescritura dolorosa do real (que vivido como um trauma).

    Aquele que testemunha se relacionade um modo excepcional com a lingua-gem: ele desfaz os lacres da linguagem

    que tentavam encobrir o indizvel quea sustenta. A linguagem antes de maisnada o trao substituto nunca perfeito e

    Memorial em Treblinka,projetado por Adam Haupt e

    Franciszek Duszenko,edificado em 1964 com 17 milpedras de granito dispostas em

    torno de um obelis co,repres entando um cemitr io

    Reproduo do livro After Auschwitz(N orthern C entre for Contemporary Art, Londres)

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    CULT - junho/9942

    Reproduo

    do

    livro

    MahnmaledesHolocau

    st(editora

    Prestel,Munique)

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    satisfatrio de uma falta, de umaausncia. O mesmo Perec afirma ainda:sempre irei encontrar, em minha prpriarepetio, apenas o ltimo reflexo de uma

    fala ausente na escrita, o escndalo dosilncio deles [os pais de Perec, assassinadospelos nazistas] e do meu silncio... A lem-brana deles est morta na escrita; a es-crita a lembrana de sua morte e aafirmao de minha vida.

    A experincia traumtica , paraFreud, aquela que no pode ser totalmenteassimilada enquanto ocorre. Os exemplosde eventos traumticos so batalhas eacidentes: o testemunho seria a narrao

    no tanto desses fatos violentos, mas daresistncia compreenso dos mesmos.A linguagem tenta cercar e dar limitesquilo que no foi submetido a umaformano ato da sua recepo. Da Freud des-tacar a repetio constante, alucinatria,por parte do traumatizado, da cenaviolenta: a histria do trauma a histriade um choque violento, mas tambm deum desencontro com o real. (Em grego,vale lembrar, trauma significa ferida.)

    A incapacidade de simbolizar o choque o acaso que surge com a face da mortee do inimaginvel determina a repetioe a constante posterioridade, ou seja, avoltaaprs-coup da cena.

    interessante notar que Freud desen-volveu o seu conceito de trauma, entreoutros textos, emPara alm do princpio doprazer (1920), um trabalho que inicia comuma reflexo sobre o carter acidental eexcepcional do acidente traumatizante,

    mas que depois se ocupa em descrever aspulses estruturais (eros e sobretudo! tanatos) com base em termos muito seme-lhantes. Portanto, a leitura que WalterBenjamin fez desse texto de Freud noseu ensaioSobre alguns temas em Baudelaire(1939) e que normalmente vista comouma apropriao indevida do conceitofreudiano de trauma, por alarg-lodemais, de certo modo est in nuce emFreud. Para Benjamin, o choque parte

    integrante da vida moderna: a experincia

    agora deixa de se submeter a uma ordemcontnua e passa a se estruturar a partirdas inmeras interrupes que cons-tituem o cotidiano moderno.

    Evidentemente, na medida em quetratamos da literatura de testemunhoescrita a partir de Auschwitz, a questodo trauma assume uma dimenso e umaintensidade inauditas. Ao pensar nessaliteratura, redimensionamos a relaoentre a linguagem e o real: no podemosmais aceitar o vale-tudo dito ps-mo-derno que acreditou ter resolvido essacomplexa questo ao afirmar simples-mente que tudo literatura/fico. Ao

    pensarmos Auschwitz fica claro que maisdo que nunca a questo no est naexistncia ou no da realidade, mas nanossa capacidade de perceb-la e desimboliz-la.

    Observao dosignificado ausente

    Saul Friedlnder, um dos maiores his-toriadores da Shoah (catstrofe, em he-

    braico, termo que prefiro utilizar por noter as conotaes sacrificiais includas emHolocausto), resumiu o estado atual daspesquisas sobre esse evento com as pala-vras: Trs dcadas aumentaram o nossoconhecimento dos eventos em si, mas noa nossa compreenso deles. No pos-sumos hoje em dia nenhuma perspectivamais clara, nenhuma compreenso maisprofunda do que imediatamente aps aguerra. O trabalho de luto que realiza-

    mos com relao Shoah um trabalhodbio, fadado a sempre recomear, muitomais melancolia que propriamente luto, Fridlnder compara ao que MauriceBlanchot denominou de observao dosignificado ausente. Portanto, o parasoliberal do ceticismo espertalho na ex-presso de Gertrud Koch , que nega aexistncia do real (em vez de negar apenasa existncia de uma determinao nica eontolgica do mesmo), serve de guarda-

    chuva para as idias dos (in)famosos

    negacionistas de Auschwitz e simples-mente evita a reflexo sobre o espaoentre a linguagem e o real.

    No fora de contexto, alis, recordar

    que Lacan descreveu a constituio dosimblico como um passo anterior constituio do real, na medida em queeste constitui o mbito do que fica forada simbolizao. Para ele o que no veio luz do simblico aparece no real (naspalavras de Lacan: Ce qui nest pas venuau jour du Symbolique, apparat dans leRel). O real resiste ao simblico,contorna-o, ele negado por este mastambm reafirmadoex negativo. O real se

    manifesta na negao: da a resistncia transposio (traduo) do inimaginvelpara o registro das palavras; da tambma perversidade do negacionismo quecomo que coloca o dedo na ferida dodrama dairrepresentabilidade vivido pelosobrevivente. Este vive a culpa devido ciso entre a imagem (da cena trau-mtica) e a sua ao, entre a percepo eo conhecimento, disjuno entre signi-ficante e significado.

    Primo Levi abriu o seu livro Osafogados e os sobreviventes uma das maisprofundas reflexes j escritas sobre otestemunho lembrando a incredulidadedo pblico de um modo geral diante dasprimeiras notcias, j em 1942, sobre oscampos de extermnio nazistas. E mais,essa rejeio das notcias diante de seuabsurdo fora prevista pelos prpriosperpetradores do genocdio. Estes esta-vam preocupados em apagar os rastros

    dos seus atos, mas sabiam que podiamcontar com a incredulidade do pblicodiante de barbaridades daquela escala.Levi lembra a fala de um SS aos prisio-neiros narrada por Simon Wiesenthal:Seja qual for o fim desta guerra, a guerracontra vocs ns ganhamos; ningumrestar para dar testemunho, mas, mesmoque algum escape, o mundo no lhe darcrdito... Ainda que fiquem algumasprovas e sobreviva algum, as pessoas

    diro que os fatos narrados so to mons-

    esquerda, The Holocaust (1984),escultura ao ar livre de George Segal,no Linco ln Park, So Francisco (EUA)

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    Nesta pgina e napgi na opos ta,

    o Monumento contrao Fascismo,

    em Hamburgo-Harbu rg

    Reproduo do livro After Ausch witz R eproduo do livro Mahnmale des Holocaust

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    truosos que no merecem confiana:diro que so exageros e propagandaaliada e acreditaro em ns que nega-remos tudo, e no em vocs. Ns queditaremos a histria dos Lager (camposde concentrao).

    Memria e narrao

    Auschwitz pode ser compreendidocomo uma das maiores tentativas dememoricdio da histria. A histria doTerceiroReich, para Levi, pode ser relidacomo a guerra contra a memria, falsi-ficao orwelliana da memria, falsi-ficao da realidade, negao da reali-dade. Os sobreviventes e as geraesposteriores defrontam-se a cada dia com atarefa (no sentido que Fichte e os romn-ticos deram a esse termo: de tarefa infinita)

    de rememorar a tragdia e enlutar os mor-tos. Tarefa rdua e ambgua, pois envolvetanto um confronto constante com a cats-trofe, com a ferida aberta pelo trauma e,portanto, envolve a resistncia e a supe-rao da negao , como tambm visaum consolo nunca totalmente alcanvel.

    Aquele que testemunha sobreviveu de modo incompreensvel morte: elecomo que a penetrou. Se o indizvel estna base da lngua, o sobrevivente aquele

    que reencena a criao da lngua. Nele a

    morte o indizvel por excelncia: que atoda hora tentamos dizer recebe nova-mente o cetro e o imprio sobre a lingua-gem. O simblico e o real so recriadosna sua relao de mtua fertilizao eexcluso.

    A memria assim como a lingua-gem, com seus atos falhos, torneios deestilo, silncios etc. no existe sem a

    sua resistncia. Elie Wiesel, que resolveuredigir o seu relato testemunhal,Nuit, dezanos aps a libertao do Campo deConcentrao de Auschwitz portanto,aps dez anos de silncio e de resistncia memria , narra-nos que o seu teste-munho nasceu de uma promessa que elefizera na sua noite de chegada a Aus-chwitz. Jamais je noublierai cette nuit, lapremire nuit de camp qui a fait de ma vieune nuit longue et sept fo is verrouil le ,

    Nunca me esquecerei dessa noite, aprimeira noite do campo que fez da minhavida uma noite longa e sete vezes selada.Como Harald Weinrich nos chamaateno no seu belssimo livroLethe. Kunstund Kritik des Vergessens (Lete. Arte e crticado esquecimento), Elie Wiesel utilizou adupla negativa para a sua promessa nunca me esquecerei em vez da formaafirmativa: vou me lembrar.

    A memria s existe ao lado do esque-

    cimento: um complementa e alimenta o

    outro. Esses conceitos no so simples-mente antpodas, existe uma modalidadedo esquecimento como Nietzsche j osabia to necessria quanto a memriae que parte desta. O gegrafo Pausniasnarra que, na Becia, o rio do Esque-cimento, o Lete, corria ao lado da fonteda Memria, Mnemsina. Segundo osantigos, as almas bebiam do rio Lete para

    selivrar da sua existncia anterior e pos-teriormente reencarnar em um novocorpo (como se l em Virglio, Eneida,VI, 713-716).

    Para o sobrevivente, a narrao com-bina memria e esquecimento. PrimoLevi afirma que no sabe se os testemu-nhos so feitos por uma espcie deobrigao moral para com os emudecidosou, ento, para nos livrarmos de suamemria: com certeza o fazemos por um

    impulso forte e duradouro. Jorge Sem-prun, que foi libertado de Buchenwaldem 11 de abril de 1945, comps o seutestemunho sobre a sua experincia noLager apenas em 1994. A explicao paraesse atraso, esse aprs-coup, est clarano texto: Semprun optara pelo esque-cimento. Graas a Lorne, ele narra emL criture ou la vie, que no sabia de nada,que nunca soube de nada, eu voltei para avida. Ou seja, para o esquecimento: a vida

    era o preo.

    Antimonumento foi concebido para desaparecerOMonumento contra o Fascismo em Hamburgo-Harburg, na Alemanha, de autoria do casal Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, na verdade um anti-monumento: o pilar de ao de 12 metros de altura e recoberto por uma pelcula de chumbo foi instalado em 1986 e depois, aos poucos, enterrado noseu pedestal at desaparecer por completo em 1993. O pblico participou da obra escrevendo no monumento com cinzis: palavras antifascistas, mastambm neonazis. Os Gerz expressaram a necessidade e a impossibilidade da memria literalizando o dito de Nietzsche: Fora com os monumentos!

    Reproduo do livro Mahnmale des HolocaustReproduo do livro After Ausc hwitz

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    Por outro lado a modalidade da me-mria da catstrofe tem uma longa tra-dio no judasmo uma cultura marcadapelo pacto de memria entre Deus e seupovo: um no dever esquecer-se do outro.A religio judaica antes de mais nada

    estruturada no culto da memria. Suasprincipais festas so rituais de rememo-rao da histria (no Pessah a leitura daHaggadah traz a histria do xodo com ointuito detransportar as geraes posterio-res quele evento; no Purim recorda-se asalvao dos judeus da perseguio deHaman; no casamento judaico, em um atode luto, um copo quebrado para recordar,em meio comemorao, a destruio doTemplo e a impossibilidade de reparo o

    tikkun na tradio da mstica judaica desta perda).

    A Tor, como conhecido, mantidaatual graas aos seus comentrios midra-chsticos. O filsofo norte-americanoBerel Lang aproximou de modo particu-larmente feliz a literatura sobre a Shoahe a tradio do comentrio bblico: emambos os casos trata-se de uma reatua-lizao, de uma recepo aprs-coup dealgo que nunca pode ser totalmente com-

    preendido/traduzido. O comentador,assim como o que compe seu testemu-nho, tenta preencher os espaos abertosno texto/histria, sabendo que essa tarefa infinita, e, mais importante, com aconscincia de que a leitura perpassadapor um engajamento moral, por umcompromisso tico com o original.

    A necessidade de testemunhar Ausch-witz fica clara se nos lembrarmos dosinmeroslivros de memria redigidos logo

    aps aquela tragdia. Os chamados YizkorBikher no so nada mais do que umacontinuidade tanto da tradioiconoclasta judaica como da outra facedessa tradio: a da escrita e a da narraocomo meio de manter a memria. Emum desses livros podemos ler: O livromemorial que ir imortalizar as mem-rias dos nossos parentes, os judeus dePshaytsk, servir, portanto, como umsubstituto do tmulo. Sempre que ns

    tomarmos este livro, ns sentiremos que

    ns estamos ao lado do tmulo deles,porque at isso os assassinos negaram aeles. Escritura e morte se reencontramaqui nos livros de memria, mas agorano sentido oposto, ou seja, no mais damorte como estando na base da lingua-

    gem, mas sim na medida em que o textodeve manter a memria, a presena dosmortos e dar um tmulo a eles.

    Catstrofe e a arteda memria

    O texto de testemunho tambm tempor fim um culto aos mortos. No poracaso esse culto est na origem de uma

    antiqssima tradio da arte da memriaou da mnemotcnica (ars memoriae). Valea pena recordar nesse contexto a anedotaacerca do poeta Simnides de Ceos (apr.556-apr.468 a.C.), considerado o paidessa arte, e que foi narrada, entre outros,por Ccero (De oratore II, 86, 352-354),por Quintiliano (11,2,11-16) e por LaFontaine. Nessa anedota, Simnides salvo do desabamento de uma sala debanquete onde se comemorava a vitria

    do pugilista Skopas. O que nos importanessa histria o que se sucedeu aps essacatstrofe. Os parentes das vtimas noconseguiram reconhecer os seus fami-liares mortos que se encontravam total-mente desfigurados sob as runas. Elesrecorreram a Simnides o nico sobre-vivente que graas sua mnemotcnicaconseguiu se recordar de cada partici-pante do banquete, na medida em que elese recordou do local ocupado por eles. A

    sua memria topogrfica procediaconectando cada pessoa a um locus (outopos: da se ver a mnemotcnica comoum procedimento topogrfico, como adescrio/criao de uma paisagem mne-mnica). A memria topogrfica tam-bm antes de mais nada uma memriaimagtica: na arte da memria conectam-se as idias que devem ser lembradas aimagens e, por sua vez, essas imagens alocais bem conhecidos. Aquele que se

    recorda deve poder percorrer essas paisa-

    gens mnemnicas descortinando as idiaspor detrs das imagens.

    Essa anedota que est na origem datradio clssica da arte da memria deixaentrever de modo claro no apenas a pro-funda relao entre a memria e o espao,

    e portanto notar em que medida a me-mria uma arte dopresente, mas tambma relao entre a memria e a catstrofe,entre memria e morte, desabamento.Em portugus, note-se, fica acentuada adialtica ntima que liga o lembrar aoesquecer, se pensarmos na etimologialatina que deriva o esquecer de cadere,cair: o desmoronamento apaga a vida, asconstrues, mas tambm est na origemdas runas e das cicatrizes. A arte da

    memria, assim como a literatura de tes-temunho, uma arte da leitura de cica-trizes. (Georges Perec, alis, narra na suaobra autobiogrfica a importncia que eleatribua a uma cicatriz no seu lbio su-perior, uma marca de uma importnciacapital que ele nunca tentou dissimular.Outra revelao para ns central no seulivro um plano de redigir um livro quejustamente deveria se chamar Les lieux[Os locais ] no qual eu tento descrevero devir, no decorrer de doze anos, de dozelugares parisienses aos quais, por umarazo ou outra, estou particularmenteligado. Walter Benjamin realizara emparte esse projeto tendo Berlim comotopos nos seus textos autobiogrficosInfncia berlinense e Crnica berlinense.)

    Esttica e ticaMas voltemos por ltimo ao tema

    inicial da inimagibilidade da Shoah, sua inverossimilhana. Para AharonAppelfeld um judeu da Bucovina, localde origem de outros dois escritores centraisna literatura de testemunho: Paul Celan eDan Pagis tudo o que ocorreu foi togigantesco, to inconcebvel, que a prpriatestemunha via-se como uma inventora. Osentimento de que a sua experincia nopode ser contada, que ningum podeentend-la, talvez seja um dos piores que

    foram sentidos pelos sobreviventes aps a

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    guerra. J Aristteles, o primeiro grandeterico da recepo das obras de arte, diziana sua Potica: Deve-se preferir o que impossvel, mas verossmil, ao que possvel, mas no persuasivo (1460a). EBoileau, no sculo XVII, escreveu ecoan-

    do Aristteles: O esprito no se emo-ciona com o que ele no acredita (Artepotica, III, 59). Os primeiros documen-trios realizados no imediato ps-guerra,extremamente realistas, geravam esseefeito perverso: as imagens eram reaisdemais para serem verdadeiras, elascriavam a sensao de descrdito nosespectadores. A sada para esse problemafoi a passagem para o esttico: a busca davoz correta. A memria da Shoah e a

    literatura de testemunho de um modo geral desconstri a Historiografia tradicional(e tambm os tradicionais gneros liter-rios) ao incorporar elementos antes reser-vados fico. A leitura esttica dopassado necessria, pois essa leitura seope musealizao do ocorrido: elaest vinculada a uma modalidade damemria que quer manter o passado ativono presente. Em vez da tradicional represen-tao, o seu registro do ndice: ela querapresentar, expor o passado, seus fragmen-tos, cacos, runas e cicatrizes. No s naliteratura, tambm nas artes plsticaspercebe-se esse percurso em direo aotestemunho, ao trabalho com a memriadas catstrofes (lembremos apenas dasobras de Cindy Sherman, Anselm Kiefer,Samuel Back e Francis Bacon). Asfronteiras entre a esttica e a tica tornam-se mais fluidas: testemunha-se o despertar

    para a realidade da morte. Nesse despertarna epara a noite como dizia Walter Ben-jamin: a noite salva despertamos an-tes de mais nada para a nossa culpa, poisnosso compromisso tico estende-se mortedo outro, conscincia do fato de quea nossa viso da morte chegou tardedemais.

    Mrcio Selig mann-SilvaMrcio Selig mann- SilvaMrcio Selig mann-SilvaMrcio Selig mann- SilvaMrcio Seli gm ann -Silva

    professor de teoria literria na P UC -SP, a utor de Ler o livro

    do mund o. Walter B enjamin: Romantismo e c rtica poticae

    tradutor de O c once ito de crtica d e arte no romantismo alemo,

    de Walter Benjamin, e de Laocoonte, de G .E. Lessing todos

    pela editora Iluminuras

    Sada para a luz, parte do monumentoPassagens, construdo por Dani Karavan emhomenagem a Walter Benjamin no cemitr io dePortbou , na Espan ha (frontei ra com a Frana),local onde o filsofo se suicidou em 1940

    Reproduzido do catlogo Passages Homage to Walter Benjamin, Tel-Aviv M useum of Art

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    Talvez a frase mais conhecida dofilsofo alemo e judeu Th. W. Adornoseja essa afirmao peremptria de umensaio de 1949: Escrever um poemaaps Auschwitz um ato brbaro, e issocorri at mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossvel escreverpoemas. Uma frase polmica, cuja

    recepo foi bastante infeliz, como se elasignificasse uma condenao pura e sim-ples da poesia contempornea. No con-texto do ensaio sobre Crtica cultura e sociedade que ela conclui, essa sentenaressalta a urgncia de um pensamento noharmonizante, mas impiedosamente cr-tico, isto , tambm a necessidade dacultura como instncia negativa e utpicacontra sua degradao a uma mquina deentretenimento e de esquecimento (es-

    quecimento, sobretudo, do passado nazis-ta recente nessa Alemanha em recons-truo).

    Adorno retomar, por duas vezes eexplicitamente, essa polmica afirmao:em 1962, no ensaio intituladoEngagement,e em 1967, na ltima parte da Dialticanegativa . Ele no trata de ameniz-la,pedindo desculpas aos poetas, mas, ao con-trrio, radicaliza e amplia seu alcance. No somente a beleza lrica que se transforma

    em injria memria dos mortos da Shoah,mas a prpria cultura, na sua pretenso deformar uma esfera superior que exprime anobreza humana, revela-se um engodo, umcompromisso covarde, sim, um docu-mento da barbrie, como disse WalterBenjamin. Cito a passagem bastanteprovocativa da Dialtica negativa:

    Que isso [Auschwitz] possa ter acontecidono meio de toda tradio da filosofia, da arte edas cincias do Esclarecimento, significa mais

    que somente o fato desta, do esprito, no terconseguido empolgar e transformar os homens.Nessas repart ies mesmas, na pre ten so

    enftica sua autarquia, ali mora a no-verdade. Toda cu ltura aps Auschwitz,inclusive a crtica urgente a ela, lixo.

    Por sorte, esse livro bem mais com-prido e bem mais difcil que o ensaio de1949 no se tornou to famoso! Culturacomo lixo, essa expresso poderia gerarmuito mais mal-entendidos ainda do que

    aquela sentena sobre a impossibilidadeda escrita potica. Minha tentativa decompreenso se atm definio a menospolmica possvel daquilo que constituio lixo: no somente aquilo que fede eapodrece, mas antes de mais nada aquiloque sobra, de que no se precisa, aquiloque pode ser jogado fora porque nopossui existncia independente plena. Ainverdade da cultura, portanto, estarialigada sua pretenso de autarquia, de

    existncia soberana. No que ela sejaperfumaria intil, como o afirmam tantoalguns comunistas obtusos quanto posi-

    Para Adorno, a violao nazista da dignidadehumana destitui a soberania da razo e da arte,impondo-nos um novo imperativo categrico queconsiste em fazer com que Auschwitz no se repita ecom que a poesia rejeite o princpio de estilizao

    que torna o Holocausto representvel e assimilvel

    Jeanne Marie Gagnebin

    A (im)possibilidadeda poesiaFotos/Reproduo

    Acima, Theodor W. Adorno. Na pgina oposta, Paul Celan

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    tivistas de vrias provenincias. Mas elatampouco constitui um reino separado,cuja ordem somente precisaria seguiruma verdade intrnseca. Quando a cultu-ra consagra a separao entre esprito etrabalho corporal, quando se fortalecepela oposio existncia material, emvez de acolher dentro dela esse fundo ma-

    terial, bruto, animal no duplo sentido debicho e de vivo, esse fundo no-concei-tual que lhe escapa, ento, segundo Ador-no, a cultura se condena ideologia.

    No simples compreender essa con-denao daautarquia da esfera cultural emAdorno se lembrarmos que ele, simulta-neamente, sempre defendeu a possibi-lidade e mesmo a necessidade da arteautnoma, em oposio ao entretenimentoda indstria cultural. Tentemos pensar

    essa aparente incoerncia. Proponho lan-ar mo de uma dimenso essencial nessetexto, a dimenso tica que no pode se

    subordinar, segundo Adorno, nem a umapostura esttica nem a uma sistemticaespeculativa, mas que deve se afirmarcomo exigncia incontornvel, inscre-vendo uma ruptura no fluxo argumen-tativo. Assim como o conceito de auto-nomia da arte reenvia, antes de mais nada, necessidade de resistncia (e no a uma

    suposta independncia da criao ar-tstica), assim tambm a recusa da autar-quia em relao esfera cultural remeteao corte que o sofrimento, em particular osofrimento da tortura e da aniquilaofsica, o sofrimento provocado, portanto,pelo mal humano, instaura dentro doprprio pensar. Podemos nos arriscar adizer que Auschwitz como emblema dointolervel, isto , daquilo que funda-menta a filosofia moral negativa de

    Adorno (expresso feliz de G. Schweppe-nhuser), domina com sua sombra de cin-zas a reflexo esttica. A instncia tica,

    que nasce da indignao diante do horror,comanda, pois, sua elaborao esttica.Nas mesmas pginas daDialtica negativaencontramos a famosa transformaoadornania do imperativo categricokantiano:

    Hitler imps um novo imperativo cate-grico aos homens em estado de no-liberdade:

    a saber, direcionar seu pensamento e seu agirde tal forma que Auschwitz no se repita, quenada de semelhante acontea. Esse imperativo to resis tente sua fundamentao comooutrora os dados (die Gegebenheit) dokantiano. Querer trat-lo de maneira dis-cursiva blasfemo: nele se deixa sentir demaneira corprea (leibhaft) o momento, not ico, de algo que vem por demais (desHinzutretenden).

    Sem poder entrar numa anlise deta-

    lhada dessa citao, gostaria de fazer duasobservaes. Esse novo imperativo cate-grico no mais fruto de nossa livre de-

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    ciso prtica-moral, sendo ao mesmotempo a condio transcendental dessa

    liberdade, como o era o imperativo deKant. Ele nos foi aufgezwungen (impostopor coero) por Hitler, por uma figurahistrica precisa, manifestao da cruel-dade e da contigncia histricas. ComoSchweppenhuser o ressalta, Auschwitzinstaura na reflexo moral uma rupturaessencial (e, para Adorno, definitiva) coma tradio tica clssica em busca deprincpios universais e trans-histricos.Agora devemos nos contentar com as

    sobras dessa bela tradio que provousua impotncia em relao ao nazismocomo j afirmava a Dialtica do Esclare-cimento , obra seminal de Adorno e deHorkheimer (1947). Devemos, antes demais nada, construir ticas histricas econcretas orientadas pelo dever de resis-tncia , afim de que Auschwitz no serepita, que nada de semelhante acontea;a ressalva essencial: no h repetiesidnticas na histria, mas sim retomadas

    e variaes que podem ser to cruis mes-mo que diferentes. Ver Srebrenica etc....

    A insistncia dada corporeidade dosofrimento e do impulso de indignao quelhe responde um outro elemento impor-tante a ser notado. Adorno retoma vrioselementos da tica da compaixo(Mitleidsethik) de Schopenhauer, isto , deuma tica cujo fundamento no seencontra numa norma racional abstrata,mesmo que consensual, mas sim num

    impulso pr-racional em direo ao outro

    FUGA SOBRE A MORTELeite-breu daurora ns o bebemos tardens o bebemos ao meio-dia e de manh ns o bebemos noitebebemos e bebemoscavamos uma cova grande nos ares onde no se deita ruimNa casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve

    que escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margareteele escreve e aparece em frente casa e brilham as estrelas[ele assobia e chama seus mastins

    ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma cova na terraordena-nos agora toquem para danarmos

    Leite-breu daurora ns te bebemos noitens te bebemos de manh e ao meio-dia ns te bebemos tardebebemos e bebemosNa casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreveque escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro MargareteTeus cabelos de cinza Sulamita cavamos uma cova grande

    [nos ares onde no se deita ruim

    Ele grita cavem mais at o fundo da terra vocs a vocs ali cantem e toquemele pega o ferro na cintura balana-o seus olhos so azuiscavem mais fundo as ps vocs a vocs ali continuem tocando

    [para danarmos

    Leite-breu daurora ns te bebemos noitens te bebemos ao meio-dia e de manh ns te bebemos tardinha

    bebemos e bebemosNa casa mora um homem teus cabelos de ouro Margareteteus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com as serpentes

    Ele grita toquem mais doce a morte a morte uma mestra dAlemanhaEle grita toquem mais escuro os violinos depois subam aos ares como fumaae tero uma cova grande nas nuvens onde no se deita ruim

    Leite-breu daurora ns te bebemos noitens te bebemos ao meio-dia a morte uma mestra dAlemanha

    ns te bebemos tarde e de manh bebemos e bebemosa morte uma mestra dAlemanha seu olho azulela te atinge com bala de chumbo te atinge em cheiona casa mora um homem teus cabelos de ouro Margareteele atia seus mastins contra ns d-nos uma cova no arele brinca com as serpentes e sonha a morte uma mestra dAlemanha

    teus cabelos de ouro Margareteteus cabelos de cinza Sulamita

    PAUL CELAN

    Traduo de CLAUDIA CAVALCANTI

    Sai no Brasil antologiade Paul Celan

    O poema Fuga sobre a morte, re-produzido ao lado, faz parte dovolume Cristal, uma antologia depoemas de Paul Celan (1920-1970)que ser lanada em breve pelaeditora Iluminuras, com traduesde Claudia Cavalcanti.

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    sofredor. Simultaneamente, porm, essesmotivos so transformados materialis-

    ticamente, numa tentativa de despoj-losde qualquer elemento de condescendnciaou de aceitao do dado, elemento facil-mente presente na categoria de com-paixo. O pensamento de Adorno sobreAuschwitz o leva a tematizar uma dimen-so do sofrer humano pouco elaboradapela filosofia, mas enfaticamente evocadanos relatos dos assim chamados sobre-viventes: essa corporeidade primeira, nolimiar da passividade e da extino da

    conscincia que uma vontade de aniqui-lao esta sim, clara, precisa, operacio-nal se esmera em pr a nu para melhorextermin-la. Forma-se aqui esse pactosinistro entre uma racionalidade rebaixada funcionalidade da destruio e umacorporeidade reduzida matria passiva,sofredora, objeto de experincias nos cam-pos da morte como ratos ou sapos noslaboratrios da cincia. E a violao dessecorpo primeiro (Leib), passivo e tenaz, vivo

    e indeterminado, acarreta a violao docorpo como configurao fsica singularde cada sujeito individual (Krper).

    Como nos livros de Primo Levi oude Robert Antelme, uma afirmao radi-cal nasce nessas pginas de Adorno: amais nobre caracterstica do homem, suarazo e sua linguagem, ologos, no pode,aps Auschwitz, permanecer o mesmo,intacto em sua esplndida autonomia. Aaniquilao de corpos humanos nessa sua

    dimenso originria de corporeidade

    indefesa e indeterminada como que con-tamina a dimenso espiritual e intelectual,

    essa outra face do ser humano. Ou ainda:a violao da dignidade humana, em seuaspecto primevo de pertencente ao vivo,tem por efeito a destituio da soberbasoberania da razo.

    No domnio mais especificamenteesttico, esse abalo da razo e da lingua-gem tem conseqncias drsticas para aproduo artstica. Criar em arte comotambm em pensamento aps Aus-chwitz significa no s rememorar os

    mortos e lutar contra o esquecimento,uma tarefa por certo imprescindvel, mascomum a toda tradio desde a poesiapica. Significa tambm acolher, noprprio movimento da rememorao,essa presena do sofrimento sem palavrasnem conceitos que desarticula a vontadede coerncia e de sentido de nossosempreendimentos artsticos e reflexivos.Adorno analisa essa exigncia paradoxalde uma rememorao esttica sem

    figurao no ensaio de 1962, Engagement,no qual cita novamente sua afirmao so-bre a impossibilidade da poesia apsAuschwitz e a retrabalha, reelabora-a,tentando pensar juntas as duas exignciasparadoxais que se dirigem arte de hoje:lutar contra o esquecimento e o recalque,isto , igualmente lutar contra a repetioe pela rememorao, mas no trans-formar a lembrana do horror em maisum produto cultural a ser consumido;

    evitar, portanto, que o princpio de esti-

    lizao artstico torne Auschwitz repre-sentvel isto , com sentido, assimilvel,

    digervel , enfim, que transformeAuschwitz em mercadoria que faz suces-so (como fazem sucesso, alis, vrios fil-mes sobre o Holocausto para citar so-mente exemplos oriundos do cinema!).A transformao de Auschwitz em bemcultural arrisca tornar mais leve e maisfcil sua integrao na cultura que ogerou, afirma Adorno.

    Desenha-se assim uma tarefa para-doxal de transmisso e de reconheci-

    mento da irrepresentabilidade daquiloque, justamente, h de ser transmitidoporque no pode ser esquecido. Um para-doxo que estrutura as mais lcidas obrasde testemunho sobre a Shoah (e tambmsobre o Gulag), perpassadas pela neces-sidade absoluta do testemunho e, simul-taneamente, pela sua impossibilidade lin-gstica e narrativa. Ser, alis, este para-doxo que vai reger a obra do grande poetaque Adorno reconhece e homenageia na

    ltima parte da sua ltima obra, a Teoriaesttica (1970), Paul Celan, cuja poesia,ao transformar o corpo das palavras emalems, como que lembra os corpos sempalavras e sem nome aniquilados poralgozes que tambm falavam alemo.

    Jeanne Marie Gagneb inJeanne Marie GagnebinJeanne Marie Gagneb inJeanne Marie GagnebinJeanne Marie Gagne bin

    professora de filosofia na PU C -SP e na Unicamp, autora

    de Histria e narrao em Walter Benjam in(Perspectiva) e

    Sete Aulas sobre Linguagem , Memria e Histria(Imago),

    entre outros; o presente ensaio retoma teses de uma

    conferncia apresentada no C olquio de Esttica

    em B elo Horizonte, em setembro de 1997

    Museu

    de

    Israel,Jerusalm

    O anjo da Histria direita, Angelus Novus (1920), aquarela de Paul Klee que Walter Benjamin comprou em1921 em Munique, por ocasio de uma visita ao seu amigo Gershom Scholem. Ela oacompanhou por toda sua vida e inspirou a sua famosa nona tese Sobre o conceito daHistria: Existe um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Nele vemos um anjo queparece estar na iminncia de se afastar de algo para o qual ele olha fixamente. Seus olhosesto arregalados, sua boca est aberta e suas assas estendidas. O anjo da Histria deve teressa aparncia. Ele volta sua face para o passado. Onde aparece para ns uma cadeia de

    acontecimentos, ele v a uma nica catstrofe, que de modo ininterrupto acumula escombrossobre escombros e os lana diante dos seus ps. Ele gostaria de tardar-se, despertar osmortos e juntar o destrudo. Mas uma tempestade sobra do Paraso, prendeu-se nas suasassas e to forte que o anjo no pode mais fecha-las. Essa tempestade impele-o de modoirresistvel para o futuro, para o qual ele vira as costas, enquanto diante dele a pilha deescombros cresce at o cu. O que ns denominamos de progresso essa tempestade.(traduo de Mrcio Seligmann-Silva)

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    No conto autobiogrfico A mortedo meu pai, no livroHolocausto: Canto deuma gerao perdida, o escritor Elie Wieseldilacera-se na dvida sobre rezar ou noo kadish, a reza judaica dos mortos, noaniversrio da morte de seu pai, assas-sinado pelos nazistas. O eixo principalda narrativa est na revolta do homem

    diante do que Wiesel chama de ausnciade Deus, que teria tornado possvel ogenocdio.

    Rezar o kadish, buscar Deus, escreveWiesel, constituiria o mais duro protestodiante da sua ausncia. Em A morte domeu pai, o conflito central de Wiesel com Deus. No h conflitos entre ho-mens. Os judeus no reagem e no serevoltam contra os nazistas, e estes encar-nam uma espcie de mal teolgico, sobre-

    humano. Em outro conto, o desfecho sed no plano divino. Um judeu deportadode trem foge milagrosamente do vago.

    Memria ehistria do

    HolocaustoRoney Cytrynowicz

    O homem era um profeta, escreve Wiesel,e sabia o seu destino. O sobrevivente noresistiu com armas, no ajudou oscompanheiros; tampouco se salvou porsuas prprias foras. Foi um milagre.

    Esses dois contos de Elie Wiesel sobastante significativos no apenas de suaobra, mas de uma recorrente e dominante

    abordagem da memria do Holocausto. como se Wiesel nos dissesse que no possvel reconhecer uma dimenso hu-mana no nazismo, humano no sentido deentender o nazismo na histria, que no possvel reconhecer homens nos nazistas.Essa idia compartilhada por alguns dosmais conhecidos historiadores e filsofosdo ps-guerra, como Saul Friedlander eGeorge Steiner.

    Essa recusa de um plano histrico de

    compreenso faz com que ao mesmotempo que Wiesel insista na necessidadede lembrar e de contar, ele acabe blo-

    queando o acesso para um compartilha-mento da sua experincia. Porque seuscontos falam sempre da impossibilidadede entender e de comunicar. Talvezalgum dia algum explique como, nonvel humano, Auschwitz foi possvel;mas, no nvel de Deus, Auschwitz cons-tituir para sempre o mais desnorteante

    dos mistrios, escreveu Wiesel.Como entender que Wiesel escritore prmio Nobel da Paz, tornado ohomem-memria do Holocausto, cujavoz ouvida sempre que se trata da viola-o dos direitos humanos afirme a im-possibilidade de comunicar? Nas pala-vras de Wiesel, os eruditos e filsofos detodos os matizes que tiverem a opor-tunidade de observar a tragdia recuaro se forem capazes de sinceridade e

    humildade sem ousar penetrar no ma-go do assunto; e, se no o forem, a queminteressaro as suas concluses grandi-

    A Torre das Faces, no United States Holocau st Memorial Museum

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    O genocdio dos judeus foi concebidopara evitar a reao das vtimas e oenvolvimento pessoal dos nazistas,eliminando os vestgios dos assassinatos,provocando nos sobreviventes um efeitode estranhamento em relao vida forados campos de extermnio e conferindoao historiador a tarefa de recuperarmemrias e fragmentos individuais quetornem compreensvel a gramtica de umaideologia que organizou o plano

    sistemtico de destruio de um povo

    loqentes? Por definio, Auschwitz ficaalm do seu vocabulrio. Esta frase podeser entendida como uma ruptura pro-funda entre os planos da memria e dahistria.

    Os sobreviventes do Holocausto, co-mo Wiesel, sentem uma solido insupe-rvel, como se a memria constitusse um

    peso terrvel do qual jamais se est livre. Ahistria (entendida como o ofcio dohistoriador) jamais os ampara, no importaquantos livros sejam escritos ou centrosde documentao organizados. Apenas ocurso da memria suspende tempora-riamente a angstia. A ruptura ou distnciaentre histria e memria pode ser enten-dida como uma hiptese a partir deuma aproximao histrica que pesquisea prpria concepo e execuo do exter-

    mnio nazista. O processo de genocdiodos judeus europeus foi concebido eexecutado, entre 1941 e 1945, para evitar

    qualquer reao das vtimas, negando sprprias vtimas, at a consumao ltimada sua prpria morte, que elas seriamassassinadas.

    Nas cmaras de gs atingiu-se olimite mximo de capacidade fsica dematar com o mximo de no-envolvi-mento pessoal dos prprios nazistas e

    mxima possibilidade de negao damorte e posterior destruio dos vestgios.As vtimas recebiam cabides numeradospara encontrar as roupas aps o banhode desinfeco. Dentro das cmaras degs era calculada uma luz para atenuar opnico. O Zyklon B foi utilizado apstestes com vrias tipos de gs. Umanovilngua utilizada pela burocraciaimpedia qualquer referncia direta morte: assassinato em massa era trata-

    mento especial, cmaras de gs eramcasas de banho, banho de desinfeco,aes ou tratamento apropriado.

    No plano ideolgico, os nazistas seconsideravam soldados biolgicos queestavam executando uma misso que aprpria natureza se encarregaria de fazercontra as raas consideradas inferiores,em um processo de seleo natural.Para o nazismo, a histria era luta de raase eles estavam fazendo biologia apli-

    cada. Eram mdicos, como mostrouRobert Jay Lifton, que faziam todo oprocesso de seleo na entrada doscampos e operavam as cmaras de gs.Todo o processo de extermnio foi medi-calizado segundo uma concepo euge-nista, central no nazismo, de que matarjudeus significava manter a sade docorpo ariano, associada propagandamilenarista e anticomunista de que mataro povo judeu era a salvao do Reich de

    Mil Anos.Diante do processo de dissimulaoe negao da morte, as vtimas sofriam

    Fotos/Reproduo

    do

    livro

    MahnmaledesHolocau

    st

    Entrada do campo de concentrao de Auschwitz

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    um processo ainda mais violento de

    estranhamento. Tudo era conduzido namais absoluta ordem e normalidade;no havia dio, mas sim uma burocrati-zao limite da morte. Em Eichmann emJerusalm, Hannah Arendt mostrou quea personalidade emblemtica do nazismo Eichmann, o burocrata cumpridor deordens, um vazio de pensamento, semdio pelas vtimas. Isso muito maisperturbador do que perceber os nazistascomo o mdico de Auschwitz, Mengele,

    que suscita explicaes do tipo loucuracoletiva ou do nazismo como a lou-cura de lderes como Hitler e Mengele.Em um filme alemo sobre o julgamentodos carrascos de um campo de concen-trao v-se a esposa de um guarda contarcomo era boa a vida na casa a poucos me-tros das cmaras de gs, o amor do maridopela filha, os cuidados com o jardim.

    Como pode o sobrevivente retomar avida no mundo, ressignific-la, retomar

    os vnculos e os laos que aliceram umavida corriqueira em um mundo que setornou, repentina e inexplicavelmente, doponto de vista subjetivo, inteiramentees tranhado? Uma visita ao campo deextermnio de Auschwitz-Birkenau e aoscampos de concentrao, como Dachau,revela a inaceitvel proximidade fsicados campos com a vida cotidiana polo-nesa ou alem. Onde estava a fronteiraentre o genocdio e as tramas do coti-

    diano? Esta fronteira nunca existiu, masa experincia do sobrevivente a de queele teria sido deportado para outro pla-neta, tamanha a sensao de isolamento efalta de sentido do que estava ocorrendo.O verdadeiro horror dos campos deconcentrao e de extermnio reside nofato de que os internos, mesmo que consi-gam manter-se vivos, esto mais isoladosdo mundo dos vivos do que se tivessemmorrido, porque o horror compele ao es-

    quecimento, escreveu Hannah Arendt.

    Este mundo no este mundo poderia

    ser a frase dita por todos os sobreviventes.Quem no esteve l jamais vai poderentender, dizem muitos sobreviventes

    Trabalhando em um documentrio doexrcito britnico sobre campos de con-centrao e de extermnio ao final daSegunda Guerra Mundial, o cineastaAlfred Hitchkock, ao encarar a viso devalas com milhares de cadveres emBergen Belsen, decidiu filmar de formaque a cmera deslizasse das testemunhas

    que olhavam em direo s valas semoperar nenhum corte de imagem. ParaHitchkock, aquelas imagens eram toterrivelmente inditas que era preciso fil-mar sem truques, para que nunca algumpudesse acusar as cenas de montagem.

    De certa forma, a memria e o teste-munho negam o acesso do historiador auma aproximao racional do nazismoe do Holocausto. Entre memria ehistria parece haver, em certos mo-

    mentos, uma impossibilidade de comu-nicao, conforme os contos de Wiesel.O que est em questo com Auschwitzno a morte individual, que pode sercontada pela memria, mas o genocdiode um povo executado por um Estadomoderno no corao da Europa empleno sculo XX. Ao historiador caberecuperar as memrias e os fragmentosindividuais e torn-los compreensveis,a ele cabe superar a barreira do intan-

    gvel para entender a organizao doEstado alemo a partir de 1933, para en-tender a gramtica interna da ideologia,sua potncia, em que esferas da vidasocial e psicolgica ela atua, a emer-gncia desta ideologia na histria daAlemanha e da Europa e como ela seapossou do Estado e como este orga-nizou, pela primeira vez na histria, umplano sistemtico de destruio de todoum povo. O nazismo condensou em grau

    mximo at agora conhecido as

    possibilidades de destruio neste

    sculo.A partir do trabalho de historiadores,

    psicanalistas e pesquisadores de cinciassociais, compreendemos hoje significa-tivamente mais do que ao fim da guerra,se pensarmos em Breviaire de la haine, deLeon Poliakov e depois em Raul Hilberg,e estudos mais especficos como RobertJay Lifton, sobre mdicos e medicinanazista, em Martin Broszat, George L.Mosse, Arno Mayer, Martin Gilbert,

    sobre o no bombardeio de Auschwitzpelos aliados, o trabalho nico sobre osciganos de Grattan Puxon e DonaldKenrick, entre dezenas de estudosdecisivos.

    Os sobreviventes testemunharamfatos que no tm paralelo na histria,fatos para os quais nenhuma experinciapessoal pode contribuir para um enten-dimento coletivo. Na memria reside,portanto, muitas vezes, um presente sem

    codificao, sem atualizao possvel doconhecimento e da experincia. Sem tra-dio, escreveu Arendt, que selecione enomeie, que transmita e preserve, pareceno haver nenhuma continuidade consci-ente no tempo e, portanto, humanamentefalando, nem passado nem futuro, masapenas o ciclo biolgico. E o que podeser mais desesperador do que isso? Nodevemos esperar do testemunho que eleexplique algo, ns no devemos lhe fazer

    perguntas, apenas garantir-lhe o direitode falar, de contar.

    A solido do sobrevivente a dor dedescobrir-se em um mundo em que tudotem a mesma aparncia, homens, carros,mdicos, caminhes, chuveiros, e nopoder entender como tudo isso transfi-gurou-se em uma gigantesca mquina demorte. dor pela sensao de absolutoisolamento em um mundo no qual sereshumanos mxima semelhana torna-

    ram-se assassinos de um povo. Pode-se

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    The texture of memory: Holocaust memorials and meaning, de James Young. New Haven/Londres,Yale University Press, 1993.

    compreender Elie Wiesel. como se sua

    fala fosse o sentido da sua vida. Porqueno importa mais o que ele conta, e muitomenos sua descrena na possibilidade decontar. Importa apenas falar (ouvir),como a manter-se vivo, falar para si mes-mo que se est vivo, que se sobreviveu ebuscar restabelecer algum tipo de vnculocom a idia de que existe uma huma-nidade fundada em leis como NoAssassinars!.

    Em muitos de seus contos, Wiesel no

    escreve para comunicar, mas para nodeixar morrer, para si mesmo, seu prpriotestemunho, garantia de continuidade, devida. A literatura o testemunho de suaprpria sobrevivncia. Ns precisamosque o sobrevivente conte sem com-partilhar e ele precisa que ns escutemossem indagar.

    Memria e histria devem serespeitar, mesmo que se desencontrem.A histria deve resgatar as histrias de

    vida, as dores e as intensidades subjetivas,mas jamais pode recusar a aproximaocom a mais (aparentemente) incom-preensvel destruio. preciso que cadadocumento da barbrie seja recuperado,estudado, criticado, entendido, conser-vado, arquivado, publicado e exposto, deforma a tornar a histria uma formapresente de resistncia e de registro dignodos mortos, muitos sem nome conhecidoe sem tmulo. Entender cada vez mais

    como Auschwitz tornou-se realidadehistrica um imperativo para com-preender o horror que reside no centroda histria deste sculo e sustentar a resis-tncia contra o horror que nunca deixade se aproximar.

    Roney CytrynowiczRoney CytrynowiczRoney CytrynowiczRoney CytrynowiczRoney Cytrynowicz

    historiador, doutor em histria pela U SP, autor de Memria

    da b arbrie. A histria do g enocdio d os jud eus na Segund a

    Guerra Mundial(E dusp), e escritor, autor do volume de contos

    A vida secreta do s relgios e outras histrias(Scritta)

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    CULT - junho/9956

    ...um texto belo e verdadeiro,verdadeiro como unicamente a

    fico pode ser...Emmanuel Lvinas

    Na obra de Primo Levi h dois temas, oumelhor, duas referncias literrias marcantes: A

    Divina Comdia de Dante Alighieri e a Bblia,

    mais precisamente, o Antigo Testamento.Ambos remetem questo da tica, central naliteratura de testemunho. O ttulo de seuprimeiro e mais famoso livro narra a experinciado autor no campo de concentrao deAuschwitz: isto um homem? (Se quest o un

    uomo de 1947). O ttulo originalmente propostopor Levi foiAfogados e sobreviventes (Sommersi e

    salvati), que se tornou posteriormente ttulo deseu ltimo livro, publicado em 1986. Pelo queo prprio autor afirma, os afogados do ttulo

    aludem a um verso do sexto canto doInferno,ea Divina Comdia como um todo est presentenos dois livros. Ademais, o captulo maisimpressionante e significativo de isto um

    homem? sem dvida alguma O canto deUlisses, onde o narrador autobiogrficoPrimofaz uma interpretao do canto XXVI doInfernocom a finalidade de ensinar a lngua italiana aseu colega de deportao Pikolo.

    O interessante deste captulo que o Ulissesdo texto de Dante um hertico e rebelde, quedesafia a ira dos deuses sabendo estar fadado

    morte. Ulisses, cujo parentesco com o prota-gonista de Homero muito remoto, quer alcan-ar o conhecimento e a virtude . Seu projetoexplorador nasce de um ato de vontade indi-

    vidual, de um estado de insatisfao, de umsentimento de insaciabilidade que culmina no

    vislumbre da montanha do paraso e na sentenainfernal, nas palavras de Guilhermo Giucci(Viajantes do maravilhoso). O texto de Levi podeser lido como uma dupla metfora, pois oinfernodo campo de concentrao se apresenta mais

    monstruoso e unheimlich (sinistro, no-fami-liar) do que a prpria fonte literria. Por outrolado, o valor tico da impossvel operao detraduo (paraPikoloque no entende o italiano),

    o carter lacunar da memria de Primo e suaangstia em tentar juntar os fragmentos da me-mria representam a sublime mmese literriada tentativa de elaborar posteriormente o trau-ma: Levi relata que, para escrever o captulotodo, levou a meia hora do intervalo do almoona firma onde trabalhava como qumico. Onarrador alcana, nesse contexto impossvel,

    uma nova intuio para interpretar o texto:Algo de gigantesco que eu mesmo vi s agora,na intuio de um momento, talvez o porqude nosso destino, de nosso estar hoje aqui....

    Shem IsraelAs alteraes no ttulo do poema colocado

    como epgrafe de isto um homem?so tambmalgo muito significativo, j que o poema possuium estilo fortemente bblico. Seu ttulo ori-ginal era Salmo, na primeira verso (1946),

    quando o texto foi publicado ainda em ca-ptulos separados numa revista. Na edio de1947, o ttulo do poema mudar para Se questo

    un uomo (idntico ao ttulo do livro), at ser

    Na obra do escritor italiano Primo Levi, que escreveu livros fundamentaissobre a experincia de Auschwitz, coexistem uma tica pragmtica euma tica da leitura que remonta ao modelo de exegese permanente da

    tradio judaica, cujo apelo ao livre-arbtrio est na raiz do anti-semitismo

    A tica damemriaAndrea Lombardi

    Na pgina oposta, Shulamite (1983), tela de Anselm Kiefer

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    mudado novamente, na coletnea de poemasA ora incerta, para Shem. O ttuloNuma horaincerta se origina do famoso poema de Co-leridge, The rime of the ancient mariner , esimboliza a angstia oriunda da compulso repetio do ato de contar a prpria histria,estabelecendo uma significativa analogia entre

    testemunha e escritor: Desde ento,numa hora

    incerta,/ Essa agonia retorna:/ Enquanto nonarrar minha fbula medonha/ Esse coraoem mim continuar ardendo, que se tornara epgrafe de A trgua, um relato da aventurado narrador Primo em sua volta para a Itliaaps a libertao do campo pelas tropassoviticas. A escolha no casual:Shem Israelrepresenta a profisso de f pela tradioreligiosa judaica, seu princpio mximo e acondensao de seus ideais (segundo A Lei de

    Moiss e as Haftarotdo Rabino Meir Matzliah

    Melamed). O texto deShem formulado pelaprimeira vez em Gnesis, 49. Num comentrioque se apia no do Talmud, aparecem doiselementos interessantes: Levi um dos filhos

    de Jacob e Shem interpretado como o textoque funda a noo de testemunho , pois se liga afirmao de um Deus nico:

    O Midrash conta que Jacob reuniu aoredor de sua cama todos os filhos e antes deabenoar fez-lhes esta ltima pergunta: Meusfilhos! Estais bem firmes na vossa crena numnico Deus?. Como resposta, os filhos levan-

    taram suas mos ao cu e disseram: ShemaYisrael. Ouve, Israel (Jacob)! O Eterno nossoDeus, o Eterno um!.... A frase da Shemficou desde ento como a profisso de f do

    judasmo, seu princpio mximo e a conden-sao de seus ideais. Essas palavras foram asltimas pronunciadas pelos mrtires israelitasque caram em todas as geraes Al kidushHashem (pela santificao do nome de Deusde Israel). Shema Yisrael, Hashem ElohnuHashem Ehad (O Eterno nosso Deus, o

    Eterno um) ... em qualquer idioma que ouas,mesmo que no compreendas o que ouves...deve penetrar directamente no teu corao e natua alma.

    E o comentrio do Talmudacrescenta: Altima letra da primeira palavra de Shem e altima letra da ltima palavraEhaddo versculoquatro se acham escritas na Torah com letrasgrandes. O exegeta Baal Haturim faz notar queessas duas letras compem a palavra ed, o quesignificatestemunho. Cada um de ns, recitandoa Shem, testemunha a divinidade do Eterno e

    aceita o jugo de seu reino.

    Duas perspectivas da ticaA literatura de testemunho e no

    unicamente os textos de Levi se caracterizapela presena constante do tema da tica, deforma direta ou indireta, com ou semreferncias Bblia. Tome-se como exemplo arecente publicao de Se no agora, quando?, onico livro de fico dos quatro escritos por

    Primo Levi sobre o tema. Em seu Psfcio oautor declara: No tive como meta escreveruma histria real, mas reconstruir o itinerrio,plausvel, porm imaginrio, de um desses

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    bandos. O ttulo do livro remete a uma fraseatribuda ao rabino Hilel, do sculo I, e indica aurgncia do imperativo moral na tradio

    judaica. Hilel teria afirmado, segundo fonte doTalmud: No faa aos outros aquilo que vocmesmo combate; esta toda a Tor. O resto comentrio. Essa frase contm toda a Tor, orestante comentrio... (Sergio Sierra. La

    lettura ebraica delle Scritture). O texto atribudoa Hilel, fundador de uma escola que ter muitainfluncia na tradio judaica, mostra umaimpressionante analogia com o pensamentocristo.

    Em relao tica, as observaes de Leviapontam para problemticas novas, antes noexaminadas, verdadeiras descobertas: a situao-limite, segundo sua descrio, deixa aflorar umazona cinzenta da tica para efeito de um

    julgamento posterior:

    Uma zona cinzenta, cujas bordas so inde-finidas, que separa e ao mesmo tempo rene osdois campos dos senhores e dos escravos (...).Quanto mais dura a opresso, tanto maisdifusa entre os oprimidos a disponibilidade emcolaborar com o poder... No existe propor-cionalidade entre a piedade que provamos e aextenso da dor que suscita essa piedade: umanica Anne Frank suscita mais comoo do queas inmeras que sofreram como ela, mas cujasimagens permaneceram na sombra.

    Se o narrador autobiogrfico testemunha,ser o leitor posterior a ser induzido a tomar olugar do juiz: Em quem l (ou escreve) hoje ahistria dosLager, evidente a tendncia, alis anecessidade, de dividir o mal e o bem, de podertomar partido,repetindo o gesto de Cristo no JuzoUniversal [grifo meu] (Afogados e Sobreviventes,p. 25). Note-se: nas Notas do segundo volumedas Obras de Levi consta: repetindo o gestode Cristo noJuzo Universal de Michelangelo[grifo meu], que desloca a observao de Levi

    para o universo tico cristo (analogamente citada frase de Hilel).

    Isso nos leva hiptese de que existem duasperspectivas da tica para tratar dos textos deLevi e nos textos da literatura de testemunho:por um lado, uma referncia (implcita ouexplcita) a um Deus da justia, que inspira (oudeveria inspirar!) nosso comportamento comocidados. Trata-se de uma tica pragmtica,cujos efeitos afetam nossa cidadania de sereshumanos, aquela que inspira nosso compor-

    tamento cotidiano, mas que no neces-

    sariamente idntica noo de tica que seorigina da perspectiva do leitor e da leitura.

    Por outro lado, mesmo realizando umaleitura laica de seus textos (em vrias entrevistasLevi reafirma seu agnosticismo), teremos deadmitir que o Deus de Shem apresenta umelemento dramtico que poder ser lido comoum Deus do texto, hiptese que o crtico Harold

    Bloom atribui aos cabalistas (em Cabala e crtica),um elemento de interesse enorme para a crticacontempornea. Trata-se do mesmo Deus quese manifesta em xodo 3, 14 e que responde pergunta sobre seu nome, formulada pelaprimeira e nica vez em todo o texto do VelhoTestamento. A resposta, altamente enigmtica, a seguinte: Serei tudo aquilo que ser.

    Contrariamente opinio manifestada porMartin Buber (em seu textoMoiss), que afirmatratar-se de uma frase realmente pronunciada,

    o texto pode ser lido como uma metfora nohorizonte hermenutico do judasmo: omomento de simbolizao da inveno-introduo da escrita na tradio ocidental. Essareinterpretao simblica (pois a escrita alfa-btica j existia na poca a que se refere o relatobblico) ir se contrapor de forma evidente aorelato da inveno da escrita descrito por Platono Fedro . Os dois mitos relatados em textosdiferentes (que correspondem a contextosdiferentes), ambos fundantes dentro da tradio

    ocidental, no s provm de perspectivasdiferentes, como podem ser tomados como basepara vises opostas: otimista e libertadora, a

    viso de Moiss fundamenta a exegese da escritaem permanente tenso com a oralidade;pessimista e conservadora, a viso de Thoth no

    Fedro estabelece um limite e desautoriza o textoescrito, atribuindo-lhe o efeito de favorecer oesquecimento. Os atributos dessa nova desco-berta atribuda a Moiss sero idnticos funo da escrita para o leitor contemporneo:

    seu poder criador (ou mgico), ela eterna eonipotente, ou seja, possui os atributos de Deus.

    O que judasmo?Em segundo lugar, convm deter-se na

    problemtica da definio de judasmo, tantoem relao aos textos de Levi quanto em relaoaos textos que formam a literatura de testemu-nho em geral. Renato Mezan formula a se-guinte pergunta em Psica nlis e e judasmo:

    Ressonncias: O que significa, para os judeus,

    o ser judeu? A definio que ele d uma

    variante.. . de algo que podemos chamar deesprito judaico, pensamento judaico, ma-neira judaica de ver o mundo. Sua conclusoem relao ao fundador da psicanlise queFreud retm do judasmo algo que tambmconseqncia dos complexos processos hist-ricos e sociais que afetaram os judeus da EuropaCentral no sculo XIX: a idia de que o judasmo

    , essencialmente, uma tica. (p. 28). extremamente significativo que em

    Freud haja, como efeito do anti-semitismonazista, um consciente deslocamento de suaidentidade em relao a sua prpria tradiofamiliar e cultural: de alemo para judeu, analo-gamente ao que relatam muitos dos autores daliteratura de testemunho: Minha lngua alem afirma ele em 1930 , minha cultura,minha formao so alems e eu me viaespiritualmente como alemo at perceber o

    crescimento do preconceito anti-semita na Ale-manha e na ustria alem; desde ento, prefirodenominar-me judeu. Para Primo Levi, aquesto se apresenta em termos anlogos:Adaptei-me condio de judeu unicamentecomo efeito das leis raciais, promulgadas na It-lia em 1938..., e da deportao em Auschwitz.Ou, expresso de forma mais contundente:Admiti ser judeu: em parte pelo cansao, emparte por uma irracional teimosia provocadapelo orgulho..., segundo afirmar o narrador

    autobiogrfico Primo Levi emA tabela peridica,ao relatar sua priso anterior deportao paraAuschwitz.

    Segundo o historiador Lon Poliakov (emO mito ariano), a definio especfica dejudasmono contexto do sculo XX se d como umproduto original do anti-semitismo. Nesse sen-tido, portanto, a prpria definio de formaocultural, utilizada por Mezan, deveria ser, porsua vez, reinterpretada segundo um modelo deexegese permanente, caracterstico da prpria

    tradio judaica. O conceito de judasmo dosculo XX ter de ser submetido a umareinterpretao a partir da afirmao de umasuposta tradio indo-g ermni ca de cunhonazista, cujo produto final ser o genocdio.Como no ver que os judeus no constituemum povo, no possuem uma lngua comum,no esto unificados pela crena em Deus, nemh um Estado que afirme a pretenso derepresentar todos eles? O judasmo pode assim

    vir a significar metaforicamente o retorno do

    recalcado (ou do reprimido?) na tradio

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    ocidental, ou seja uma das respostas perguntaimplcita sobre nossa prpria origem (posta enegada por Nietzsche) e remete a uma lutaferrenha contra a democracia interpretativa queo mito mosaico no texto bblico introduz.

    A tradio judaica expressa, entre outroselementos, a negao da existncia de limitesna interpretao, pois reconhece, incentiva e

    postula uma interpretao infinita. A indagaosobre o judasmo pode ser considerada j umaresposta questo radical posta por Adorno e,ao mesmo tempo, pergunta acerca de nossaidentidade ocidental. S possvel escreverpoesia, literatura, refletir sobre tica, depois deAuschwitz, indagando acerca do lugar do judas-mo em nossa tradio. Em outras palavras: so-mos todosmeio judeus (pois nosso outro lado ,com certeza, grego ou greco-cristo).

    De fato, coexistem duas vertentes dentro

    da tradio ocidental: uma tradio filosfica ereligiosa greco-crist, ontolgica ou essencialista(segundo anlise de Jacques Derrida emGramatologia e A farmcia de Plato), e umatradio exegtica fundamentada num Deus dotexto, produto simblico da introduo daescrita, como descrito no texto do AntigoTestamento, que apresenta a relao entre orali-dade e escrita de maneira diametralmente oposta viso contida no Fedro de Plato. A tradio

    judaica antecipa o ponto de vista defendido pela

    crtica contempornea, ou seja, afirma a centra-lidade do leitor no ato interpretativo, d nfase oralidade uma questo pertinente, a estepropsito, a do por que Plato introduziu ummito egpcio, evidentemente fundamentado na

    viso antidemocrtica dos sacerdotes tebanosem relao ao uso da lngua e de seu poder, em

    vez de utilizar mitos gregos, bem mais prxi-mos de seu contexto.

    A mesma tradio exegtica baseada noDeus do texto admite e incentiva uma possi-

    bilidade infinita de interpretao, o que leva auma reelaborao interpretativa do prprioconceito de tradio, ao menos em sua versocabalista ou hassdica. Efeito desse percurso que o texto examinado ir sugerir o caminhointerpretativo. Caso contrrio, qualquer anliseir tornar-se uma confirmao tautolgica desuas prprias premissas metodolgicas. Nessesentido, no pertinente nem produtiva umadefinio ontolgica do conceito de judas-mo (ou seja, vlida para todas as pocas e todas

    as correntes). Um bom exemplo de atitudes

    favorveis ruptura nessa tradio (dentro deuma substancial continuidade) dada pelatradio hassdica, assim como a relata MartinBuber nasHistrias do Rabi. Nela, os sucessoresdo Baal Shem Tov entram quase que perma-nentemente em conflito com seus mestres eprecursores.

    O anti-semitismo pode ser interpretado

    como brutal, radical e monstruosa oposio interpretao infinita, manifestada a partir dairritao de Plato contra os sofistas e os poetasem sua Repblica . Posteriormente, a reflexoplatnica-crist dos padres da Igreja ir alimentaressa oposio, que se manifestar na rejeio

    veemente da liberdade interpretativa infinita(notadamente contra a Cabala), afirmada reite-radamente por pensadores do porte de Pico dellaMirandola, na Renascena, e Friedrich Schleier-macher, no sculo XIX. O anti-semitismo

    nazista poderia representar uma das manifes-taes dessa oposio e a falta da reflexo acercade suas causas permite a repetio de atos per-

    versos e extremos. No se trata de uma mani-festao obrigatria. No h determinismonisso. Nesse sentido, o anti-semitismo pode sertomado como radicalizao, modelo-limite daopo de impedir ou simplesmente limitar (maisou menos radicalmente, de forma mais oumenos brutal) a liberdade e, particularmente, aliberdade de interpretao.

    Sendo assim, a indagao acerca da definiode literatura de testemunho poder originar doispontos de vista igualmente produtivos para umtrabalho de recuperao da histria passada erecente:

    1. A literatura de testemunho apresenta emforma literria o momento de elaborao do

    trauma dos sobreviventes do genocdio e tercomo modelo o trabalho propriamente psica-naltico. Estando repletos de referncias Bblia, sejam elas religiosas, histricas, culturais

    e hermenuticas, os textos que a compemremetem necessariamente problemtica do

    judasmo como conceito surgido no sculo XXa partir da oposio ao anti-semitismo, com asimplicaes j vistas, o que remete a uma auto-anlise da tradio cultural e relao entretradio judaica e tradio greco-crist.

    2. De um ponto de vista especificamentehermenutico, a literatura de testemunho podeser vista como designao daqueles textos quetm como referncia, de forma direta ou in-

    direta, o Deus do texto proclamado perem-

    ptoriamente em Shem e no xodo 3, 14.Consequentemente, ir se originar uma inda-gao sobre a tica do livre-arbtrio, fundamen-tada ma interpretao do texto do Velho Tes-tamento citado.

    O primeiro ponto de vista torna-se, assim,o ponto de partida de umatica pragmtica ou do

    comportamento, pois sua referncia um Deus dajustia. O segundo ponto de vista poderia cons-tituir-se num primeiro passo para definir umatica da leitura ou da literatura como tica damemria, que evoca a cena primria da escrita.Essa tica da leitura se identifica evidentementecom a tica do livre-arbtrio, que esse Deus dotexto defende, como ampliao do espao deliberdade interpretativa, que em ltima ins-tncia se torna uma tica da liberdade.

    Andrea LombardiAndrea LombardiAndrea LombardiAndrea LombardiAndrea Lombardi

    professor de literatura italiana da US P

    G razia Neni/Divulgao

    O escritor italiano e judeu Primo Levi

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    Ningum pode tornar-se aquiloque ele

    no pode encontrar nas suasmemrias.

    Jean Amry

    Existe uma identidade que pode serestabelecida sem recurso nossa

    memria? No verdade que cada um o que , porque acredita, por assim dizer,na histria da sua vida? Se nossas aesso garantidas apenas por traos dememria, inscritos na nossa mente e namemria da nossa coletividade, comopodemos ter uma garantia quanto verdadeira identidade/histria de cadaum? Um evento que abalou o mundo dasletras nos ltimos meses e que envolve atrajetria de um livro pode nos ajudar a

    refletir sobre essa fragilidade da nossaidentidade.Poucas obras de literatura tiveram

    uma carreira to vertiginosa como o livroFragmento s de autoria de BinjaminWilkomirski editado no Brasil no anopassado pela Companhia das Letras.Publicado em 1995, j foi traduzido paramais de doze lnguas. Com base nele, trs

    filmes foram rodados e uma pea teatralencenada. Desde a sua publicao, o seuautor no parou de dar palestras nasmelhores universidades europias enorte-americanas. Wilkomirski vive emThurgau, na Sua, e tambm tem sidofreqentemente solicitado a falar nasescolas, desse e de outros pases, para

    contar a histria da sua vida.O livroFragmentos narra a histria dasua infncia mais remota entre os trs eos sete anos de idade passada nos cam-pos de concentrao nazistas de Majda-nek e Auschwitz, na Polnia. Ali osleitores se confrontam com o limite dohumano, melhor dizendo, com a maisbestial brutalidade de que o homem capaz. Crianas so assassinadas com amesma facilidade com que se acende um

    isqueiro ou se mata uma mosca. Infantesde um ano de idade famintos comem seusprprios dedos. Wilkomirski narra seusfragmentos de memria de modo catico,porque, como ele afirma, trata-se de umamemria longnqua da sua primeirainfncia que, alm do mais, foi siste-maticamente negada e censurada porseus pais adotivos suos.

    O motivo da recepo ampla epositiva que o livro mereceu simples: aobra testemunhal de Wilkomirski , de fato,uma das mais impressionantes reali-zaes no gnero. Ningum sai inclumeda leitura desse livro. O seu leitor ficaimpregnado por um paradoxal e ater-rorizador excesso de realidade. Ao l-

    lo, no podemos deixar de refletir sobre ahumanidade e sobre os seus limites; sobrea tica e a maldade humana. Sobre amorte e sobre a dor como realidades oni-presentes e incontornveis. Nunca umtestemunho das atrocidades nazistas tinhaatingido o detalhamento que essa obracontm.

    O livro se estrutura todo com base nosfatos histricos. Ele antes de mais nadaum documento da barbrie. Tanto o autor

    no posfcio como o texto da orelha da ediobrasileira informam sobre a vida deWilkomirski. Ficamos sabendo que ele noapenas msico e construtor de instru-mentos, mas tambm um pesquisador doHolocausto (ou da Shoah, termo acade-micamente e politicamente mais corretopara indicar o assassinato de cerca de seismilhes de judeus pelos nazistas).

    Livro de Binjamin Wilkomirski, que foi considerado um dos exemplosmximos da literatura de testemunho e foi resenhado por Mrcio Seligmann-Silva na CULT 11, na verdade uma obra ficcional que, ao ser lida como

    inveno literria, se transforma em artefato de m-f e de esttica duvidosa

    Os fragmentos

    de uma farsaMrcio Seligmann-Silva

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    Wilkomirski x Doessekker

    O jornal suo Weltwoche publicouduas reportagens, em 27 de agosto e em 3de setembro de 1998, que logo se tornaramo epicentro de um dos maiores escndalosda vida literria dos ltimos anos. Nelaslia-se de modo inequvoco: OsFragmentos

    de Binjamin Wilkomirski, a obra sua quemais faz sucesso atualmente, so umafico. O autor dessas reportagens, oescritor e jornalista Daniel Ganzfried, filho de judeus hngaros e autor de umromance, Der Absender (O Remetente),sobre a segunda gerao dos sobreviventesda Shoah, e, logo, no teria motivospessoais ou polticos para desmontar aobra de Wilkomirski.

    No seu extenso trabalho, ele conta

    como a partir de uma simples reportagemsobre Wilkomirski aos poucos ele foidesvendando a criao e inveno dopersonagem Binjamin Wilkomirski. Wilko-mirski chama-se na verdade BrunoDoessekker.

    Bruno Doessekker no judeu ou deorigem judaica: ele conheceu os campos deconcentrao de Auschwitz e Majdanek

    apenas na condio de turista. Ele nasceuem 12 de fevereiro de 1941. Esse ltimodado, alis, o prprio Wilkomirski tambmafirmou no posfcio do seu livro, mas logoacrescentando: Essa data, porm, nocoincide com a histria de minha vida oucom minhas lembranas. Tomei medidaslegais contra essa identidade decretada. A

    verdade juridicamente atestada uma coisa;a verdade de uma vida outra. Por que issohaveria de ser assim o que Ganzfriedcomeou a se perguntar. Afinal de contas, aSua uma pas civilizado, sobretudo noque tange burocracia: dificilmentealgum nasceria e viveria cinqenta anosnesse pas sem deixar traos. Ganzfried porassim dizer no aceitou o postulado coerente dentro do universo, digamos, deum Kafka segundo o qual existem duas

    verdades: uma da vida e outra juridi-camente atestada. Ele iniciou o confrontoentre os traos de memria criados porWilkomirski/Doessekker e os no menoscriados do pas onde ele sempre viveu.

    Para Wilkomirski, cada um tem a suaverdade, a sua verdadeira vida e podenarr-la. No caso dos sobreviventes daShoah, essa narrao sempre penosa e

    necessria: ela tecida tanto como umaforma de se libertar do passado comotambm se desdobra como um penosoexerccio de construo da identidade. Ela uma narrao necessria tanto emtermos individuais como tambm pensando universalmente deve fun-cionar como um te st emunho para a

    posteridade. Ela um ato subjetivo eobjetivo, psicolgico e tico.Wilkomirski, alis Bruno Doessekker,

    como est escrito na sua caixa de correio,sabe muito bem disso. Ele sabe em quemedida ele poderia desarmar os seusleitores com a sua narrao articulada doponto de vista de quem passou peloinferno. Apenas aps as pesquisas deGanzfried percebemos em que medida nsnos abrimos de modo sentimental e no

    suficientemente racional para essa lite-ratura. De agora em diante os estudiososda Shoah sero mais cautelosos.

    O jornalista Ganzfried descobriu queWilkomirski/Doessekker tinha ainda umoutro nome quando veio ao mundo. Ele na verdade um filho ilegtimo de YvonneBerthe Grosjean que foi parar em umorfanato em Adelboden e que, finalmente,

    Foto do livro -obj etoControvrsia

    iconoclasta II,de Anselm Kiefer

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    CULT - junho/9962

    foi adotado pelo casal Doessekker em1945. O casal de ricos mdicos que adotoua criana conseguiu mudar o seu nomeainda antes do incio da sua vida escolar.

    Bruno ento deixou de se chamar Grosjeane passou a atender pelo nome deDoessekker. A Senhora Grosjean morreuem 1981; os seus pais adotivos em 1985.Bruno Doessekker estudou em Zurique,tornou-se msico e pai de trs crianas.Um dado da sua biografia tambm dignode nota: ele estudou histria em Genebra.A sua paixo pela histria comprovadatambm pelo enorme arquivo que eleorganizou sobre o tema: o que deve ter

    servido de ajuda para a compilao da sua

    outra vida, a fictcia, de um sobre-vivente de Auschwitz.

    Como se j no bastassem as provastrazidas a pblico pela corajosa

    reportagem de Daniel Ganzfried, naedio de 22 de setembro do FrankfurterAllgemeine Zeitung, Lorenz Jger trouxemais um dado que funcionou como umgolpe definitivo na farsa armada porWilkomirski/Doessekker. Ele recordouque em 21 de abril de 1995 uma histriaemocionante foi publicada em um jornalberlinense. O clarinetista BrunoWilkomirski de Zurique viajara paraIsrael para reencontrar o seu pai Jaacov

    Morocco um sobrevivente do campo

    de concentrao Majdanek , que eleperdera de vista desde a guerra. Oreencontro de ambos, pai e filho, noaeroporto foi cheio de emoo eWilkomirski declarou ento a umreprter da AP: Ns possumos recor-daes em comum. Eu ainda vejo naminha memria diante de mim como o

    meu pai foi levado em direo cmarade gs. Quando alguns meses depois olivroFragmentos foi lanado, Wilkomirskij no se chamava mais Bruno, mas simBinjamin (nome do filho desaparecidode Morocco). Mais estranho ainda: a suahistria narrada em Fragmentos no falanada sobre esse reencontro com o pai emIsrael. No livro, Wilkomirski conta comoseu pai foi assassinado pela milcia let,esmagado por um carro. Por algum

    motivo, Morocco deixara entrementes dereconhecer em Wilkomirski o seu filho eeste teve de encontrar um outro pai paraa sua histria.

    Wilkomirski, confrontado com essesfatos, se limitou a falar em uma cons-pirao armada contra ele. Para ele,Ganzfried que perdeu seus pais noTerceiro Reich seria simplesmentealgum da segunda gerao (de sobre-viventes) que sofreu o destino do pai e

    foi atingido psiquicamente por umainfncia e uma juventude difceis. Euacho continua Wilkomirski que elenecessita de um substituto da figurapaterna que ele possa destruir e tornarresponsvel pelo seu desastre! A suaeditora, a Judische Verlag que propriedade da toda-poderosa editoraalem Suhrkamp , recusou-se acomprovar a veracidade dos fatosnarrados no livro. Unseld o presidente

    da Suhrkamp afirmou que isso no parte da sua responsabilidade.

    James Young, um renomado pes-quisador dos monumentos dedicados memria do Holocausto, considerou aobra em questo um testemunho mara-vilhoso. Diante das descobertas quejustamente negam obra a qualificaode um testemunho no sentido tradicionaldeste termo, ele se limitou a afirmar queo valor literrio da obra no fica aba-

    lado desse modo!

    Imagens de Controvrsia iconoclasta II, de Anselm Kiefer (1980)

  • 7/29/2019 DOSSI CULT LITERATURA DE TESTEMUNHO

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    Ser que um sobrevivente dos camposde concentrao seria capaz de afirmar algosemelhante? Charlotte Delbo, uma sobre-vivente, de fato, escreveu na epgrafe da suatrilogiaAuschwitz et aprs que hoje, eu noestou certa se o que eu escrevi verdade;mas, em seguida ela acrescentou: Eu estoucerta de que verdico. Para o sobre-

    vivente, a realidade do campo de concen-trao to intensa que vai alm daquiloque normalmente denominamos de verda-de: pelo simples motivo que Auschwitz vaialm dos nossos padres (superados!) dehumanidade, de tica, de cultura etc.Wilkomirski, pelo contrrio, parecesatisfazer-se sem relutncia com umaconcepo ps-moderna absolutamenterelativista quando se trata de estabelecer adistino entre o real e a fico. Ruth Klger,

    outra sobrevivente do Holocausto,respondeu a essa postura de Wilkomirskicom as seguintes palavras: A mentira nose torna literatura s por causa da boa-fdos leitores.

    Resta saber como Doessekker chegou idia de criar essa sua autobiografiafictcia. H alguns anos uma australianafizera o mesmo. Uma vez descoberto oembuste, ela disse que escolhera esse temapor saber que conseguiria muita

    publicidade com ele. Talvez encontremosa uma resposta.Por outro lado, Doessekker trabalhou

    intensamente junto a terapeutas (ehistoriadores) que utilizam a tcnica deterapia para recuperar a memria(recovered memory therapy). Nessaterapia, parte-se dos fragmentos dememria dos pacientes que passaram portraumas normalmente de cunho sexual para ento tentar remontar toda a sua

    histria/identidade. Aparentemente essemtodo diga-se de passagem, muito emmoda pode levar a uma confuso entrereconstruo e construo ex nihilo.Mas como escapar dessa encruzilhada?O prprio Freud, alis, que a princpiodirecionou a terapia psicanaltica nosentido de iluminar a cena de abuso(sexual) de suas pacientes histricas, aospoucos foi deixando esse mtodo de lado.Ele percebeu a dificuldade de se

    Como ler os Fragmentos como se setratassem de uma fico? s tentar paraque o leitor se depare com uma obra queno funciona mais e at mesmo beira omau gosto: o que se espera e se achaadmissvel na leitura de uma obra auto-biogrfica de um menino que conheceuAuschwitz e Majdanek torna-se ime-

    diatamente m literatura de fico.Existe uma excelente literatura defico sobre o Holocausto, como o casode um famoso texto de Zvi Kolitz (YosselRokover volta-se para Deus), que narra osltimos momentos de um judeu no guetode Varsvia. O filsofo Lvinas afirmouque esse texto de Kolitz verdadeirocomo unicamente a fico o pode ser.Cada gnero literrio possui as suasregras, prope um determinado jogo

    com o leitor. Sabemos que no existe umaautobiografia pura, sem correesestticas, que ela apenas uma cons-truo motivada pelo que vivemos.

    O caso em questo peculiar. Se olivro Fragmentos composto apenas aomodo de uma autobiografia, ele deixade ter um efeito esttico: e ganha apenasum teor amoral. Mas isso no tosimples. Devemos fazer uma distinoclara: Wilkomirski/Doessekker joga de

    um modo equivocado na medida em queele assume perante o mundo uma falsaidentidade. Ele deve ser condenado, creio,no por causa da sua obra, mas sim porter simulado de m-f essa identidade. Sea sua obra continua a ter ou no um valoresttico, mesmo aps a descoberta dafarsa, uma outra questo que cada umdeve decidir individualmente.

    Mas o prprio Wilkomirski/Does-sekker parece tambm ter seguido a sada

    pelo esttico, proposta por Young, ten-tando encobrir assim ou desculpar a suafarsa. Numa declarao ao jornal suoTages-Anzeiger podemos ler: Cada leitorpode deduzir do posfcio do livro que osmeus documentos no coincidem com asminhas memrias. A uma identidadesua mal costurada eu s posso oporessas memrias. Isso estava claro desde oprincpio. Os leitores sempre estiveramlivres para aceitar o meu livro como

    mticas que povoavam as mentes das suaspacientes.

    Raul Hilberg foi um dos poucosleitores que desconfiou da veracidade docontedo dosFragmentos desde a primeiraleitura. Quando ele encontrou Wilko-mirski em um congresso na universidadede Notre Dame (EUA), perguntou se a

    obra era uma fico. O autor negouenfaticamente. Hilberg, o maior especia-lista na histria da Shoah, estranhoudiversos fatos narrados no livro, quepara ele so incompatveis com os dadoshistricos.

    Hilberg foi astuto ao constatar aarmadilha armada por Doessekker. Eleaproveitou a polmica para condenar deum modo geral o que ele denomina deverdadeiro culto do testemunho. No

    posso, no entanto, compartilhar desse seudesprezo pela literatura testemunhal. Aliteratura