Doutrina384 Falsificacao de Documento

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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E ESTELIONATO: PONTOS CONTROVERTIDOS ROGÉRIO TADEU ROMANO Procurador Regional da República aposentado I – O DELITO DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E A PRÁTICA DE ESTELIONATO Em voto, no Recurso Especial 259, o Ministro Costa Leite, enfrentando a matéria da possibilidade de que o estelionato absorve o falso, consistindo este no meio empregado pelo agente para induzir ou manter a vítima em erro, dá informação perfeita com relação ao enunciado 17 do Superior Tribunal de Justiça onde se afirma: Quando o falso se exaure ao estelionato, sem maior potencialidade lesiva, é por este absorvido. Disse o Ministro Castro Leite: O tema é dos mais controvertidos, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial, somandose às aqui confrontadas duas outras posições: a que divisa o concurso material e a que sustenta a prevalência do falso, pontificando,com relação à última, o magistério de Hungria. A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por longo tempo, mostrouse vacilante, como anotou o saudoso Ministro Bilac Pinto, em percuciente voto proferido no RE 79.489(RTJ 72/292). No RE 63.584(RTJ 46/667) e nos ERE 63.584(RTJ 52/182), foi acolhida a tese da absorção do falso pelo estelionato; no RE 41.199(RTJ 9/257), a do concurso material; no RE 58.543(RTJ 35/435) e no HC 53.702(RTJ 81/710), a atinente à prevalência do falso. Só mais recentemente é que se firmou a orientação estampada nos acórdãos paradigmas, na conformidade, aliás, do pensamento da maioria dos nossos tratadistas, no sentido de que, na concorrência do falso e do estelionato, aplicase a regra do concurso formal. Conquanto concorde com essa orientação, calcada em sólidos e convincentes argumentos jurídicos, não a reputo totalmente incompatível com a tese da

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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E ESTELIONATO: PONTOS CONTROVERTIDOS 

 

 

ROGÉRIO TADEU ROMANO 

Procurador Regional da República aposentado  

 

 

I – O DELITO DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E A PRÁTICA DE ESTELIONATO  

 

 

Em  voto,  no  Recurso  Especial  259,  o  Ministro  Costa  Leite,  enfrentando  a matéria  da  possibilidade  de  que  o  estelionato  absorve  o  falso,  consistindo  este  no  meio empregado pelo agente para induzir ou manter a vítima em erro, dá informação perfeita com relação ao enunciado 17 do Superior Tribunal de  Justiça onde  se afirma: Quando o  falso  se exaure ao estelionato, sem maior potencialidade lesiva, é por este absorvido.  

Disse o Ministro Castro Leite:  

 

O  tema  é  dos mais  controvertidos,  seja  em  sede  doutrinária,  seja  em  sede  jurisprudencial, somando‐se às aqui confrontadas duas outras posições: a que divisa  o  concurso  material  e  a  que  sustenta  a  prevalência  do  falso, pontificando,com relação à última, o magistério de Hungria.  

A  própria  jurisprudência  do  Supremo  Tribunal  Federal,  por  longo  tempo, mostrou‐se  vacilante,  como  anotou  o  saudoso  Ministro  Bilac  Pinto,  em percuciente voto proferido no RE 79.489(RTJ 72/292). 

No RE 63.584(RTJ 46/667) e nos ERE 63.584(RTJ 52/182), foi acolhida a tese da absorção do  falso pelo  estelionato; no RE  41.199(RTJ  9/257),  a do  concurso material; no RE 58.543(RTJ 35/435) e no HC 53.702(RTJ 81/710), a atinente à prevalência do falso.  

Só mais recentemente é que se firmou a orientação estampada nos acórdãos paradigmas,  na  conformidade,  aliás,  do  pensamento  da maioria  dos  nossos tratadistas,  no  sentido  de  que,  na  concorrência  do  falso  e  do  estelionato, aplica‐se a regra do concurso formal.  

Conquanto concorde com essa orientação, calcada em sólidos e convincentes argumentos  jurídicos,  não  a  reputo  totalmente  incompatível  com  a  tese  da 

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absorção, que,  a meu  juízo,  é de  ser  invocada quando o  falso  se  exaure no estelionato, não lhe restando, pois, potencialidade lesiva.  

Isto porque, em tal hipótese, a fé pública se mantém incólume, aperfeiçoando‐se tão só a lesão patrimonial.  

Com outras palavras, é o que expressa o voto – vogal do eminente Ministro Assis  Toledo  na Ação  Penal  49  –  RS,  julgada  pelo  Pleno  do  extinto  Tribunal Federal de Recursos, verbis:  

¨Defendo  a  tese  da  possibilidade  do  concurso  formal  entre  o  falso  e  o estelionato, na hipótese em que o primeiro guarda potencialidade para a lesão de outro bem  jurídico. É o  caso, por exemplo, da  falsificação do documento público,  utilizada  para  a  prática  de  um  determinado  estelionato,  quando  o documento falsificado continua lesando a fé pública, com potencialidade para a prática de outros delitos.¨ 

No mesmo diapasão do voto do Ministro Cordeiro Guerra, no HC 53.702(RTJ 81/713),  que,  posto  em  reconhecer  o  concurso,  faz  a  seguinte  ressalva:  a menos, é claro, que a falsidade seja elementar, ou seja, se o próprio falso é um simples  instrumento  ou  ardil  do  estelionato.  Sua  Excelência  rematou  o raciocínio afirmando que, nessa hipótese, o que se consuma é o estelionato.  

Segue‐se que a tese do concurso formal não é totalmente incompatível com a da  absorção,  como  antes dito,  tudo dependendo das  circunstâncias de  cada caso.  

No caso vertente,segundo  filtra da sentença e do acórdão, o  falso se exauriu no estelionato, não lhe restando potencialidade lesiva.  

Com  efeito,  foram  falsificadas  as  primeiras  vias  de  notas  fiscais  relativas  à verba de  insumos agrícolas  (¨notas calçadas¨), para obtenção de  recursos do Programa de Subsídios aos Preços dos Fertilizantes – PROFERT.  

Assim  sendo,  senhor  Presidente,  conheço  do  recurso,  já  que  demonstrado dissídio jurisprudencial, mas lhe nego provimento. É o meu voto.¨ 

 

Caso o estelionato(crime contra o patrimônio) seja obtido mediante o uso de documento falso, há quatro correntes:  

a) o  estelionato  absorve  a  falsidade  quando  esta  foi  o  meio  fraudulento empregado para a prática do crime‐fim que era o estelionato(STJ – Súmula 17);  

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b) Há  concurso  formal1(STF:  RTJ  117/70;  RT  636/381;  609/440;  606/405; 582/400;  

c) O crime de falso prevalece sobre o de estelionato(RT 561/324);  d) Há concurso material2(TJSP – RJTJ 85/366).  

 

II – A FALSIDADE DOCUMENTAL E O ESTELIONATO  

 

O crime de falsidade documental é um crime contra a fé pública. Esses crimes de falsum podem ser divididos em duas categorias: os de falsidade material e os de falsidade ideológica.  Integram o primeiro grupo os delitos dos artigos 296, 297, 298, 301, § 1º, 303 e 305. Por  sua vez,  são crimes de  falsidade  ideológica, os  listados nos artigos 299, 301 e 302, havendo  figuras  comuns,  como  relata Magalhães Noronha3,  às  duas  espécies  de  falsidade, como as do § 2º do artigo 301 e do artigo 304.  

Protegem‐se a fé pública no tocante ao selo público destinado à autenticação e ao  selo  ou  sinal  atribuído  à  entidade  de  direito  público,  autoridade  ou  tabelião.  Não  são propriamente documentos, mas a estes são opostos para integrá‐los e dar‐lhes autenticidade. No caso, trata‐se de crime formal, onde consuma‐se a falsificação de forma  independente de qualquer resultado. Prevê a lei as mesmas penas previstas para a falsificação para quem usa o selo ou sinal falsificado(artigo 296, § 1º, inciso I). A expressão faz uso inscrita no tipo significa, além  da  utilização  normal  do  selo  ou  sinal  como  forma  de  autenticação,  a  compra,  venda, troca,  etc,  do  selo  ou  sinal  falsificado.  Há  crime  ainda  na  conduta  de  ¨quem  utiliza indevidamente o selo ou sinal verdadeiro em prejuízo de outrem ou em proveito próprio ou alheio¨(artigo 296, § 1º,  inciso II), onde o objeto material  já não é o   selo ou sinal falsificado, mas o verdadeiro utilizado  indevidamente. Há ainda crime na conduta de alterar,  falsificar e usar  indevidamente marcas,  logotipos,  siglas e outro  símbolos(artigo 296, § 1º,  inciso  III, do CP).  

A  legislação penal brasileira prevê o uso de documento  falso, no artigo 304, que tem como objeto jurídico a fé pública, sendo que a conduta punível é a de fazer uso, que significa  empregar,  utilizar.  Incrimina‐se  o  comportamento  de  quem  faz  uso  de  documento materialmente  falsificado,  como  se  fora  autêntico  ou  emprega  documento  que  é ideologicamente  falso,  como  se  verdadeiro  fora.  Trata‐se  de  uma  conduta  comissiva  e  o documento deve ser utilizado em sua destinação própria, com relevância jurídica, exigindo‐se o  uso  efetivo,  não  bastando  a mera  alusão  ao  documento.  É  crime  remetido  e  seu  objeto material  é  o  documento  falso  ou  alterado,  referido  pelos  artigos  297(documento  público), 298(documento particular), 299(documento ideologicamente falso), 300(documento com falso 

                                                            1  Ocorre  quando  há  uma  única  conduta  em  uma  pluralidade  de  crimes.  Aplica‐se  uma  única  pena, aumentada de um sexto até a metade.  2 Ocorre quando há duas ou mais  condutas(comissivas ou omissivas), que  resultam em dois ou mais crimes, idênticos ou não. As penas são somadas. O concurso material pode ser homogêneo se os crimes são idênticos ou heterogêneo, se os crimes não são idênticos.  3 NORONHA, E.Magalhães. Direito penal, 15ª edição, São Paulo, Saraiva, 1978, volume IV, pág. 159.  

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reconhecimento  de  firma),  301(certidão  ou  atestado  ideológico  ou materialmente  falso)  e 302(atestado médico falso). O crime é doloso.  

Prevê  o  artigo  297  do  Código  Penal  o  crime  de  falsificação  de  documento: ¨Falsificar,  no  todo  ou  em  parte,  documento  público,  ou  alterar  documento  público verdadeiro¨,  com  pena  de  reclusão  de  dois  a  seis  anos  e multa.  Tutela‐se  a  fé  pública,  no tocante  aos  documentos  públicos  e  aos  que  lhe  são  equiparados  por  força  da  lei  penal, levando‐se em  conta que é mais  grave  a ofensa à  fé pública quando  a  falsificação  tem por objeto documento emanado de autoridade  ou funcionário, no exercício regular de sua função, o que, na  lição de Heleno Claudio Fragoso4, constitui normalmente uma garantia exterior de autenticidade.  

Falsificar é criar materialmente, fabricar, formar, contrafazer. O agente forja o escrito integralmente ou acrescenta algo a um escrito inserindo dizeres em espaço em branco. A segunda ação é de alterar o documento verdadeiro, de modo que o papel, onde o agente trabalha,  no  seu  mister  criminoso,  preexiste  à  sua  ação  e  constitui  documento verdadeiro,sendo objetivo do agente emprestar‐lhe aspecto ou sentido diferente daquele com que nasceu , enquanto que quando se trata de falsificação, o documento nasce como fruto do trabalho do agente com o objetivo de dar existência a um documento fictício.  

No entanto, a mera correção de erros materiais, em documento, não constitui crime.  

Pode ocorrer, inclusive, a ocorrência de crime de falso em documento nulo.  

Consuma‐se o crime com a alteração ou alteração,  independente de seu uso ou qualquer consequência ulterior(RT 505/304, 539/356, dentre outros).  

Por  sua  vez, não  se  configura o  crime de  falsum,  artigo 297,  a  alteração da chapa identificadora do veículo, que é punida nos termos do artigo 311 do Código Penal.  

Documento  púbico,  considerado  como  tal,  é  o  que  deve  ser  elaborado  por funcionário  público  no  desempenho  de  suas  atribuições.  São  assim  alcançados  tanto  o documento  formal  e  substancialmente  público  como  o  formalmente  público,  mas substancialmente  privado.  O  artigo  297,  parágrafo  segundo,  faz  equiparação  a  documento público  o  emanado  de  entidade  paraestatal(oriundo  do Banco do Brasil,  CEF,  por  exemplo, pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação é autorizada por lei)5, o título ao portador ou transmissível  por  endosso,  as  ações  de  sociedade  comercial,  os  livros  mercantis  e  o testamento particular. Documento, como explica Júlio Fabbrini Mirabete6, é toda peça escrita que condensa graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou a realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica. São documentos públicos as cópias autênticas,  translados,  certidões,  fotocópias  e  xerocópias  autenticadas  ou  conferidas  dos 

                                                            4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1981, volume III, pág. 338.  5 No domínio do direito administrativo, a autarquia é entidade paraestatal, com personalidade  jurídica de direito público.  6 MIRABETE,  Júlio  Fabbrini. Manual  de  direito  penal,  São  Paulo,  Atlas,  22ª  edição,  São  Paulo,  Atlas, volume III, pág. 212. 

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documentos  originais.  Mas,  não  são  considerados  documentos  os  papéis  totalmente datilografados  ou  impressos  sem  assinatura,  nem  as  xerocópias  não  autenticadas(RTJ 108/156). Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir(§ 3º), figuras equiparadas: na folha  de  pagamento  ou  em  documento  de  informações  que  seja  destinado  a  fazer  prova perante a Previdência Social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório; na carteira  de  trabalho  do  empregado  ou  em  documento  que  deva  produzir  efeito  perante  a Previdência Social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita.  

A falsidade material envolve a forma do documento, enquanto a ideológica diz respeito  ao  conteúdo do documento(STF, RTJ 105/980).  Se  alguém  cria documento, mas  se valendo  da  identidade  de  outrem  o  falso  é material  e  não  ideológico.  Quando  a  forma  é alterada,  forjada  ou  criada  a  falsidade  a  identificar‐se  é  a material(RT  513/367).  Repita‐se: distingue‐se o falso ideológico do material porque neste o agente imita a verdade, através da contrafação  ou  alteração,  enquanto  naquele  o  documento  é  perfeito  em  seus  requisitos extrínsecos,em sua forma, e emana de pessoa que nele figura como seu autor, mas é falso no seu conteúdo, no seu teor, no que diz ou encerra. A chamada simulação maliciosa(a simulação e  papel  assinado  em  branco)  é  uma  declaração  fraudulenta  deformadora  da  verdade, constituindo‐se em falsidade ideológica quando pode o fato prejudicar terceiros.  

A  xerox,  sem  autenticação,  não  pode  ser  objeto  do  crime  de  uso  de documento falso, pois não há a figura do documento para fins penais. Isto porque, exigindo‐se a  forma  escrita,  excluem‐se  as  fotografias  e  reproduções  não  autenticadas.  È  indiferente  a forma escrita, se a tinta ou à lápis. Por sua vez, já se entendeu que não é grosseira a falsidade que  enganou  seus  destinatários  durante  longo  período  e  que  só  pôde  ser  descoberta  com exame acurado ou por pessoa com conhecimentos especializados(STF, RTJ 93/1.036). 

Seja para a falsidade de documento pública ou ainda de documento particular, é mister que ele tenha relevância jurídica.  

O  falsário  não  responde,  em  concurso,  pelo  crimes  de  falso  e  uso  de documento falsificado. Já se entendeu que, na progressão criminosa(quando há duas ou mais infrações penais, há dois fatos e não só um, como no crime progressivo), ele só responde pelo crime de falso(STF, RTJ 102/954; RHC 58.602). Há ainda entendimento de que ele só responde pelo crime de uso(STJ, CComp 3.115, DJU 7 .12.92).  

Mas, o objetivo do presente estudo diz respeito ao concurso entre esse crime de falso e o estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal.  

O artigo 171 do Código Penal traz a hipótese de crime material assim descrito:  

¨Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo  alguém  em  erro, mediante  artifício,  ardil,  ou  qualquer  outro meio fraudulento. ¨ 

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Por outro lado, nos casos de estelionato cometido contra a instituição pública, há o que chamamos estelionato qualificado, com previsão de causa de aumento de pena de 1/3(artigo 171, § 3º, do Código Penal).  

Para que o estelionato se configure é mister:  

a) o  emprego  pelo  agente  de  artifício  ou  ardil  ou  qualquer  outro  meio fraudulento;  

b) induzimento ou manutenção da vítima em erro;  c) obtenção de vantagem patrimonial ilícita pelo agente;  d) prejuízo do enganado ou de terceira pessoa;  

 Deverá  ocorrer  uma  vantagem  ilícita  e  prejuízo  alheio  relacionado  com  a 

fraude onde alguém agiu mediante ardil, artifício, que levou a erro a vítima.   O elemento subjetivo do crime é o dolo.   Trata‐se  de  crime material  consumando‐se  no  tempo  e  no  local  em  que  o 

agente obtém a vantagem ilícita, admitindo a tentativa.   Assim  estamos  diante  de  um  crime  comum,  material  e  que  vem  a  ser 

instantâneo.  Quando não  se  reconhece o  crime de  falso diante da  conclusão de que não 

houve a imitatio veri ou de que a falsidade é grosseira, pode ainda restar a ocorrência do crime de estelionato, quando o agente, mesmo diante disso, logra a obtenção da vantagem ilícita(RTJ 13/308, RF 260/343).  

 Como  já salientado, são várias as hipóteses para o concurso entre o crime de 

falso e estelionato.   Caracteriza‐se  o  crime  de  estelionato,  se  o  agente  se  serve  de  documento 

forjado, entendendo‐se que a falsidade deixa de existir como delito autônomo, por não haver o propósito de  lesar a  fé pública, serve ela de ardil, de crime‐meio para   a prática de delito‐fim(RTJ  45/494;  46/667;  52/182).  Aplica‐se  o  principio  da  consunção.  Assim  entendeu  o Superior  Tribunal  de  Justiça,  no  julgamento  do  HC  22.913/SP,  6ª  Turma,  Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJU de 26 de maio de 2008, onde se considerou que a própria denúncia  deixava  claro  que  o  falsum  prendia‐se  especificamente  ao  ganho  específico  da aposentadoria, não servindo a outros objetivos que lhe pudessem conferir objetivo autônomo e  independente.  Entendeu  ainda  o  Superior  Tribunal  de  Justiça,  no  julgamento  do  REsp 300.103/SE, 5ª Turma, Relator Ministro  José Arnaldo da Fonseca, DJU de 25 de  fevereiro de 2004, que o crime de falsidade ideológica, quando utilizado como meio para cometimento do crime de  apropriação  indébita,  é por  este  absorvido.  É o  caso de  aplicação do principio da consunção. O princípio da consunção consiste na anulação de uma norma que já está contida na outra, de âmbito menor(assim o crime de roubo, inclui o de furto e de lesões corporais ou de ameaça). 

 

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Num segundo entendimento, surge a ideia de que se está diante de um crime de  falsum(ou uso de documento  falso). Assim a contrafação  iria além da simples encenação, do ardil para enganar a vitimas,  constituindo‐se num delito autônomo, mais grave,  sendo o estelionato nada mais que o exaurimento do falso(RTJ 35/435, 66/345, dentre outros).  

 Há a hipótese de concurso material de falso e estelionato, pois seriam feridas 

duas objetividades jurídicas, o patrimônio e a fé pública(RTJ 9/257; 46/667; 85/78).   Fabbrini Mirabete7 afirma que é preferível uma outra posição, envolvendo a 

hipótese  de  concurso  formal  entre  os  dois  crimes.  O  uso  de  documento  falso  é  o  ardil  e constitui ato executório do crime de estelionato. Obtida a vantagem ilícita, há dois resultados: a lesão à fé pública e a lesão ao patrimônio particular ou do Estado,aplicando‐se o disposto no artigo 70,primeira parte, como  já entendeu o Supremo Tribunal Federal(RTJ 90/830, 98/852, 106/991; RT 582/399). O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 114.552/RJ, Relatora Ministra  Rosa  Weber,  DJe  de  13  de  agosto  de  2013,  entendeu  plenamente  possível  o reconhecimento  do  concurso  formal  entre  o  crime  de  estelionato  e  um  crime  de  uso  de documento falso e outro concurso formal entre um crime de estelionato e outro crime de uso de  documento  falso  ocorrido  quase  um  ano  depois,  com  a  soma  dessas  penas  pelo reconhecimento  do  concurso  material  entre  cada  conjunto  dos  fatos.  Ainda  no  RHC 83.990/MG, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 22 de outubro de 2004, entendeu‐se que se a falsidade é meio para o estelionato, aplica‐se o concurso  formal, não a absorção, mas, que, todavia,  não  era  o  caso  dos  autos,  ao  se  aplicar  o  concurso material,  considerando  que  o paciente  pagou  dívidas  com  cheques  próprios  e  de  terceiros,  que  sabia  sem  fundos  ou  de contas encerradas. Posteriormente, em circunstâncias de tempo e modo distintas, e valendo‐se de sua condição de policial, inseriu dados falsos na representação de extravio utilizada por um dos emitentes dos cheques para elidir sua responsabilidade  junto à  instituição financeira, configurando‐se o delito previsto no artigo 299 do Código Penal.  

Mas, vem uma hipótese a estudar:  E se o crime de falsificação tiver ocorrência 

autônoma, se consumado após o delito de estelionato?  

 III – A EXISTÊNCIA AUTÕNOMA DE CRIME DE FALSO DIANTE DO ESTELIONATO PRATICADO  

 Caso  interessante  foi  objeto  de  julgamento  no  HC  154.380/PE,  em  que  foi 

Relator o Ministro Félix Fischer, DJe de 4 de outubro de 2010.   

O  Tribunal  Regional  Federal  da  5ª  Região,  no  julgamento  do  HC  2.959/PB, Relator  Desembargador  Federal  Marcelo  Navarro,  julgado  em  6  de  novembro  de  2007,  

entendeu que não há que se  falar em absorção do crime de uso de documento  falso(crime‐meio) pelo crime de estelionato(crime‐fim), quando aquele for cometido após a consumação 

deste último.   

                                                            7 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, 22ª edição, São Paulo, Atlas, volume III, pág. 221.  

Page 8: Doutrina384 Falsificacao de Documento

Se  o  falso  ocorreu  dias  após  a  consumação  do  estelionato,  não  funciona, portanto, como crime meio para a consecução do delito  fim,  face  sua existência autônoma, sendo inviável o principio da consunção.  

Aplica‐se o  raciocínio  feito pelo Ministro Félix Fischer, no HC 154.380/PE, no sentido de que se, no momento da consumação do crime de falso, o delito de estelionato  já havia  se aperfeiçoado, o  falso não esgotou a  sua potencialidade no estelionato, até porque veio depois da  consumação deste delito, demonstrando  capacidade própria de  lesão a bem jurídico  diverso. O  crime  de  estelionato  lesa o  patrimônio  e  o  crime  de  falso  lesionou  a  fé pública.