DOWBOR (2009) Sujeitos Da Assistência Social. Estado, Entidades Assistenciais, Assistente.

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1 Sujeitos da assistência social. Estado, entidades assistenciais, assistentes sociais e usuários na trajetória da assistência social entre 1974 e 2005.

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DOWBOR (2009) Sujeitos Da Assistência Social. Estado, Entidades Assistenciais, Assistente.

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    Sujeitos da assistncia social. Estado, entidades assistenciais, assistentes sociais e usurios na trajetria da assistncia social entre 1974 e 2005.

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    Sujeitos da assistncia social. Estado, entidades assistenciais, assistentes sociais e usurios na trajetria da assistncia social entre 1974 e 2005.

    Monika Dowbor*

    Resumo:

    Importante conjunto de estudos sobre a assistncia social no Brasil ressalta o protagonismo do Estado no seu desenvolvimento e implementao, uma nfase que eclipsa a atuao de outros sujeitos como entidades assistenciais, assistentes sociais e usurios. Ancorado na abordagem que focaliza as interaes entre atores estatais e sociais e seus efeitos para a produo e reproduo de polticas sociais, o presente artigo aponta

    para as formas de atuao dos atores sociais e discute a falta de alianas capazes de incidir na poltica at 1988 e seu perfil ainda incipiente nas duas ltimas dcadas.

    Palavras-chaves: assistncia social, atores sociais, instituies, interao, poltica social,

    abordagem de polis

    Introduo

    A trajetria de assistncia social no Brasil objeto de uma vasta literatura, primordialmente produzida pelos pesquisadores ligados rea acadmica de servio social. A nfase presente nessas excelentes anlises recai sobre o protagonismo do Estado,

    portador de interesses alheios e avessos universalizao dessa poltica pblica, mas acaba ocultando a atuao de atores sociais. A abordagem terica adotada neste artigo1

    permitiu resgatar o papel de entidades assistenciais, assistentes sociais e usurios de servios na trajetria da assistncia, ao focalizar as interaes entre atores estatais e societrios e seus efeitos para a produo e reproduo de polticas (SKOCPOL, 1995).

    *Pesquisadora do Cebrap e doutoranda do Departamento de Cincia Poltica da USP; contato: [email protected]. 1 Este artigo faz parte das atividades previstas na pesquisa internacional intitulada A reforma de servios pblicos: o papel da ao coletiva e da accountability social (Delhi, Cidade de Mxico e So Paulo), coordenada pelos professores doutores Peter P. Houtzager e Anuradha Joshi. Informaes gerias sobre o projeto e sua metodologia podem ser encontradas em: http://www.ids.ac.uk/futurestate/research/Phase2/prog2/projects/modesofservdel.html . No processo da elaborao deste artigo, foram importantes e substanciais as colaboraes dos membros do projeto Adrian Gurza Lavalle, Graziela Castello, Julia Moretto Amncio e Peter P. Houtzager.

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    Se por um lado fica evidente a expanso pelo Estado de aes assistencialistas, as formas de atuao e os objetivos dos principais atores sociais dificultaram a conformao de alianas capazes de incidir na poltica de modo a frear a adoo dos programas de cunho assistencialista (1974 a 1988) e incorporar, sob a gide da Lei Orgnica de Assistncia Social, amplos programas de combate fome e pobreza implementados pela Presidncia da Repblica durante as duas ltimas dcadas.

    Ao abordar o perodo do regime militar, a literatura descreve o Estado como aquele

    comprometido com os interesses capitalistas e que, deliberadamente, no promoveu a poltica nacional de assistncia, enquanto os atores societrios envolvidos assistentes

    sociais e entidades assistenciais prestadoras de servio so retratados como refns da situao (FALEIROS, 1979; SPOSATI et al., 1995; PEREIRA, 1998; BOSCHETTI, 2003; SPOSATI, 2007; MESTRINER, 2005; SILVA et al. 2006). Aps a Constituio, a anlise da literatura reproduziu a chave explicativa para dar conta do fracasso da implementao da assistncia como poltica pblica, que sofreu processo de refilantropizao e reprivatizao devido s medidas neoliberais decorrentes da Reforma

    do Estado nos anos 1990 (RAICHELIS, 2000; YAZBEK, 2004; SPOSATI, 2007).

    Diferentemente, na presente anlise, evidencia-se que, entre 1974 e 1988, ocorreu a expanso considervel de aes, recursos e cobertura e institucionalizao da maior agncia de assistncia, a Legio Brasileira de Assistncia, e que entidades filantrpicas e assistentes sociais , por razes distintas, no estavam envolvidos coletivamente na

    promoo de uma poltica nacional. As alianas entre assistentes sociais e um conjunto de entidades assistenciais preocupadas com estabelecimento da assistncia como poltica

    pblica foram acionadas depois de 1988 e resultaram nos importantes marcos regulatrios e na implementao da poltica nos nveis estadual e municipal. No havia, no entanto, alianas capazes de incorporar amplos programas de reduo de pobreza, desenvolvidos pelo mais alto executivo da Unio, sob o manto institucional da assistncia

    e controle de seus atores.

    Na primeira seo, apresenta-se a interpretao mais recorrente na literatura nacional

    sobre a assistncia social, indicando principais nfases e custos analticos, como tambm a abordagem adotada neste artigo para rediscutir a trajetria a partir da observao do papel dos atores societrios e estatais, suas formas de interao e incidncia na poltica

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    setorial. A segunda seo, que abrange as dcadas de 1970 e 1980, indica a institucionalizao da assistncia no nvel federal e sua expanso em termos de cobertura

    e recursos, uma descrio baseada no percurso da maior agncia do setor, a Legio Brasileira de Assistncia. Em seguida, analisa-se a atuao dos atores societrios mais

    relevantes nesse processo. Na terceira seo, esto em foco os vinte ltimos anos da assistncia, a partir da Constituio de 1988, ao longo dos quais se deu implementao dessa nova poltica pblica concomitantemente promoo e expanso de programas de combate fome e pobreza fora do mbito institucional da assistncia social.

    I. Da trajetria do Estado trajetria de atores societrios e estatais

    A trajetria da assistncia social na viso da literatura nacional

    O diagnstico da literatura nacional sobre a trajetria da assistncia social , na maioria das vezes, pessimista: indica, no regime militar, o carter emergencial e provisrio das aes e, no perodo aps a redemocratizao do pas aponta rupturas constantes que

    retardam a constituio da poltica de assistncia como direito do cidado e dever do Estado. Apesar da diferena de contextos, a origem identificada como semelhante: a

    explicao passa pelo carter de classe do Estado brasileiro, portador de interesses capitalistas e avesso s polticas danosas ao capital (MARQUES, 1997: 69), como seria o caso da universalizao de assistncia social. Nessa viso, as mudanas institucionais ocorridas nas dcadas de 1970 e 1980 no passaram de medidas administrativas e tecnocrticas promovidas pelo Estado interessado em pacificar a classe trabalhadora, enquanto nas dcadas de 1990 e 2000 a recm-nascida poltica de assistncia social foi refilantropizada e reprivatizado pelo Estado marcado pelo projeto neoliberal.

    Esse Estado, ocupado pelos interesses da classe dominante, no permevel ao dos demais atores, e esse pressuposto da separao entre o Estado e a sociedade guia as

    anlises presentes na literatura. Focaliza-se, consequentemente, o processo de longa durao da formao do Estado brasileiro e seus reflexos nas instituies do setor. Resulta disso um robusto material de carter crtico, mas, em funo do insulamento

    analtico do Estado e do seu carter monoltico, no so analisados com profundidade atores societrios, suas formas de interao com atores estatais e impactos para a

    trajetria da poltica. A citao a seguir sintetiza o tipo de abordagem e seus custos:

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    Ainda que as abordagens estruturalistas vejam o comportamento humano como produto social, excluem como atores sustentam e como durante transio transformam estruturas

    do regime poltico. Essa concepo de agncia cria um forte vis para enfatizar processos impessoais e de longo prazo e negligenciar a possibilidade de margem da manobra que

    os atores podem ter durante os perodos da mudana de regime (MAHONEY & SNYDER, 1999: 5).

    O estudo de Mestriner (2005), O Estado entre a filantropia e a assistncia social um bom exemplo do percurso analtico adotado pela literatura. Retoma o processo de longa durao da constituio das prticas assistenciais, que se inicia em 1800 e enfatiza, ao

    longo no texto, a resistncia do Estado em promover a assistncia social como poltica pblica. Seu objeto de anlise - o Conselho Nacional de Seguridade Social , uma das importantes instituies que compunham o arcabouo institucional da assistncia, avaliado pelo seu papel cartorial como resultado condizente com o perfil do Estado que o criou. Outro exemplo da perspectiva que isola as instituies do Estado da influncia dos atores da sociedade o estudo de Sposati e Falco (1989) sobre a trajetria da maior agncia nacional responsvel pela assistncia social no Brasil desde 1942, a Legio Brasileira da Assistncia Social, na qual os atores diretamente envolvidos como

    entidades filantrpicas e assistentes sociais so descritos como meros coadjuvantes de um processo no qual o uso da assistncia pelo Estado objetivava o controle da classe trabalhadora pelo capital.

    A abordagem compartilhada leva os autores ao mesmo diagnstico sobre as mudanas promovidas pelo Estado ao longo das dcadas de 1970 e 1980 na assistncia. Estas so recorrentemente avaliadas como administrativas e tecnocrticas, no mximo de carter racionalizador e modernizador e que, em funo do perfil do Estado, no objetivavam alterar o status quo, isto , a produo das aes essencialmente compensatrias, eventuais e descontnuas (FALEIROS, 1979; SPOSATI et al., 1995; MESTRINER, 2005: 164; 5; SPOSATI, 2007; SILVA, YAZBEK, GIOVANNI, 2006: 17). O estado das coisas na assistncia antes de 1988 de consenso: Yazbeck (2004:14) caracteriza a assistncia como assistencialista e de tradio de no-poltica; Boschetti (2003: 25) aponta para a dificuldade da assistncia em receber a nomenclatura de poltica social; Sposati et al. (1995: 22 e 23) salientam que as aes de assistncia, antes de 1988, configuravam mais um conjunto de programas do que uma poltica social; Pereira (1998:

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    69) enfatiza que apenas em 1988 a assistncia social ganhou status de direito social e passou a ser identificada com uma poltica.

    A despeito da importncia dos marcos regulatrios, como a Constituio de 1988 e a Lei Orgnica de Assistncia Social de 1993, que atriburam assistncia o status de poltica pblica, a literatura tende a avaliar em termos de fracasso a implementao da nova poltica social nas dcadas de 1990 e 2000. Novamente a chave explicativa se encontra na atuao do Estado que, ao adotar a poltica neoliberal, imprimiu assistncia perfil

    focalizado, despolitizado, reprivatizado e refilantropizado (YAZBECK, 2004: 25; RAICHELIS, 2000: 104-106; SPOSATI, 2007), e como evidncias so apontados programas de combate pobreza criados fora do mbito institucional de assistncia social como o Programa Comunidade Solidria ou o Programa Fome Zero. No entanto, o argumento terico perde ligeiramente na fora, na medida em que a prpria literatura comea e introduzir, sem assumi-las teoricamente e sem tirar as conseqncias necessrias, outras explicaes. A persistncia da tradio clientelista, assistencialista e tuteladora, que exerce sua influncia e que resiste a inovaes e mudanas, ilustrada

    pela continuidade da presena de primeiras damas nos cargos dirigentes do setor e pela presena pouco expressiva de movimentos sociais em atuao nos espaos participativos

    da assistncia social (YAZBECK, 2004: 23). Por outro lado, a conquista da Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS) atribuda aos atores sociais, entre os quais se encontravam as entidades de representao de assistentes sociais. Em outras palavras, timidamente, entram em cena os atores societrios e estatais, e sua atuao comea a ser

    utilizada, ainda que de forma marginal, para completar as anlises.

    A trajetria dos atores e instituies a abordagem terica adotada

    A visada terica que guia a presente anlise do setor de assistncia social a partir dos anos 1970 coloca, justamente, as interaes entre os atores societrios e estatais no primeiro plano. Neste sentido, possui uma ntida diferenciao em relao abordagem mais utilizada em produes nacionais, que identificam o Estado como principal agente engendrador de mecanismos de reproduo da assistncia.

    A abordagem terica de polis (polity approach) parte da premissa de que os atores estatais e societrios constituem-se, tornam-se politicamente significativos e interagem

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    atravs do divisor de guas privado/pblico para produzir uma mudana propositada (HOUTZAGER, 2004:31). Reala-se a constituio mtua dos atores da sociedade e do Estado, isto , o processo de interao no qual se forjam suas capacidades de ao e suas identidades. Os atores esto em constante disputa e conflito o que faz com que a

    trajetria de uma poltica, tanto na suas inflexes, quanto nos mecanismos de sua reproduo, possa ser explicada pelas formas e episdios de interao entre os atores. Desta forma, as polticas sociais no se restringem s (...) respostas mudana de longo prazo concebida nos termos socioeconmicos (SKOCPOL, 1995: 39).

    Dois pressupostos guiam a anlise. O primeiro deles ressalta que (...) padres do desenvolvimento burocrtico influenciam a orientao dos grupos de classe mdia escolarizada como tambm as possibilidades de todos os grupos sociais fazer as coisas por meio da autoridade pblica (SKOCPOL, 1995, 47). Em outras palavras, analisam-se os efeitos das instituies polticas e procedimentos nas identidades, objetivos e capacidades dos grupos sociais que se envolvem na elaborao da poltica. A capacidade dos atores de fazerem as coisas se cristalizam em mecanismos que

    contribuem para a reproduo desse arranjo. No setor de assistncia antes de 1988, a forma individualizada de conceder as subvenes e estabelecer os convnios entre as

    agncias estatais e as entidades filantrpicas reforou a dinmica de contatos individuais e no demandou nenhuma forma mais perene de ao coletiva por parte destes atores.

    Pode se falar tambm dos efeitos das solues institucionais setoriais sobre os usurios

    finais que, no caso de assistncia, eram beneficirios de aes assistenciais do Estado, oferecidas e executadas por uma legio de entidades filantrpicas. Essa intermediao

    eclipsava a figura do Estado, que tampouco possua, no setor de assistncia, um arcabouo institucional capilar suficiente para se fazer presente na vida das pessoas ou se tornar objeto de disputas e barganhas. A recente idia do equipamento pblico chamado Centro de Referncia de Assistncia Social (CRAS), a ser instalado em municpios como porta de entrada ao Sistema de Assistncia, contribui para estabelecer a relao direta dos usurios com o Estado.

    O segundo pressuposto auxilia a compreenso de como se produz uma mudana propositada ao utilizar a conceito de encaixes institucionais entendidos como (...) pontos de acesso e de influncia, historicamente transformadores, permitidos pelas

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    instituies polticas de uma nao (SKOCPOL, apud HOUTZAGER, 2004: 32). Os encaixes podem ser constitudos por uma legislao favorvel ou novas instituies, por

    exemplo, permitem incidncia de certos grupos na poltica ao mesmo tempo em que impedem acesso a outros atores. Oferecem acesso e alavanca para certos grupos e

    alianas, encorajando e premiando seus esforos e simultaneamente negam acesso e alavancagem a outros grupos ou alianas presentes na mesma poltica nacional.

    Nos anos 1990, o desenho institucional conquistado pelos grupos de assistentes sociais vinculados academia e s associaes e sindicatos, com suporte dos demais interessados, constituiu a possibilidade da entrada institucionalizada de uma srie de

    atores no palco da poltica por meio de conselhos e novas secretarias de assistncia social. Por outro lado, o governo federal desenvolveu amplas linhas de programas de transferncia de renda, cabveis no interior da poltica de assistncia, mas vedou o acesso participao neles por parte dos atores da assistncia.

    No interior da trajetria de uma poltica pblica, os pontos de acesso oferecidos pelas instituies polticas colocam em evidncia a capacidade dos atores societrios de aproveit-los, capacidade essa que foi influenciada, conforme o primeiro pressuposto,

    pelo arranjo institucional anterior. Dito de outra forma, nem sempre as oportunidades de acesso que se abrem so aproveitadas pelos atores atuantes na poltica. A reorganizao institucional no sentido de atribuio de responsabilidades, a expanso da cobertura e dos recursos no setor de assistncia a partir de 1974 at 1988 poderiam ser vistas como oportunidades, mas por falta de um projeto poltico reformista compartilhado e de alianas entre os atores no foram aproveitadas.

    II. Expanso e institucionalizao de assistncia social nas dcadas de 1970 e 1980. Oportunidades perdidas?

    A trajetria da Legio Brasileira de Assistncia

    A presente seo se debrua sobre as mudanas que ocorreram no setor de assistncia a partir de 1974, exemplificadas na trajetria da principal agncia federal incumbida da

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    implementao das aes - a Legio Brasileira de Assistncia2 (LBA), no perodo de expanso dos direitos sociais pelo regime militar (CARVALHO, 2007). Esta descrio evidencia o conjunto de oportunidades que se abriram com maior institucionalizao do setor, aumento de cobertura e recursos, e analisa as principais formas de atuao e

    incidncia na poltica setorial dos atores societrios envolvidos no setor. As entidades assistenciais prestavam em silncio servios delegados e financiados pelo Estado; a vertente crtica dos assistentes sociais estava envolvida primordialmente na produo da teoria crtica e na constituio de entidades de classe enquanto os usurios do setor

    careciam de qualquer forma de organizao.

    A fundao da LBA em 1942, por Darcy Vargas, esposa do ento Presidente Getlio Vargas e primeira-dama da Repblica, no era diretamente relacionada com as aes assistencialistas voltadas populao pauperizada, porque objetivava articular as mulheres brasileiras para prestar assistncia s famlias dos soldados brasileiros que lutavam na Segunda Guerra. A Legio, instituda como entidade civil e reconhecida em lei como rgo de colaborao com o Estado, apoiou suas atividades de forma bem

    sucedida no trabalho voluntrio e na mobilizao da contribuio da sociedade civil: em 1945, a LBA j estava presente em 90% dos municpios por meio das comisses da Legio, presididas pelas primeiras damas.

    Com o fim da guerra, o objetivo inicial da LBA perdeu, evidentemente, o sentido, mas a entidade se manteve, redirecionando suas aes: em primeiro momento, para a defesa da

    maternidade e infncia e, na dcada seguinte, expandiu o leque de aes e pblicos por meio de equipamentos prprios (a ttulo de exemplo, Casas da Criana, Postos de Peurocultura, Hospitais Infantis, Maternidades entre outros) e delegando a execuo s organizaes civis sem fins lucrativos e aos voluntrios (SPOSATI & FALCO, 1989: 19). No incio do regime militar, houve o primeiro impulso da institucionalizao da entidade que consistiu na criao da Diviso do Servio Social e formalizao de suas

    Comisses Estaduais em Diretorias (1966), na expanso de unidades para todos os estados (1968) e sua transformao em Fundao vinculada ao Ministrio de Trabalho

    2 Na grande maioria dos textos, o mais freqente material emprico para a reflexo sobre a assistncia social como

    ao governamental abrange duas agncias a Legio Brasileira de Assistncia (LBA) e a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). No presente texto, a FUNABEM no foi considerada em funo de sua especializao no menor infrator, enquanto a LBA desenvolvia aes em diversas frentes programticas. De todo modo, a FUNABEM tambm foi beneficiada com a expanso da poltica social (NEPP, 1989).

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    (1969) e financiado com os recursos repassados pela Unio (SPOSATI & FALCO, 1989: 21) .

    O regime militar ampliou os direitos sociais (CARVALHO, 2007), e essa expanso consistiu no desenvolvimento de numerosos programas direcionados a parcelas maiores da populao brasileira, entre os quais pode se citar o de Alfabetizao (MOBRAL), Complementao Alimentar (PRONAM), formao de mo-de-obra (SENAFOR), casas populares (BNH-PLANHAP) (SPOSATI & FALCO, 1989: 22) e tambm na ampliao de cobertura de servios existentes, como foi o caso de assistncia mdica previdenciria, que quintuplicou o nmero de beneficirios, entre 1960 e 1978 (POSSAS, 1980: 276). No caso da LBA, a expanso significou, do ponto de vista institucional, a passagem de uma fundao de direito privado, que recebia os recursos pblicos, para um rgo governamental, integrado ao recm-criado (1974) Ministrio de Previdncia e Assistncia Social. Em 1977, ao integrar o Sistema Nacional de Previdncia Social (SINPAS), foi atribuda Legio a tarefa de prestar assistncia social populao carente, mediante programas de desenvolvimento social e de atendimento s pessoas,

    independentemente da vinculao destas a outra entidade do SINPAS (LEI n 6.439, cap. III, art. 9), contedo que denota especializao da rea em relao a outros servios pblicos.

    A especializao teve reflexo concreto nas agncias do SINPAS: os equipamentos de assistncia mdica da LBA foram transferidos outra agncia, e a Legio concentrou os

    recursos destinados at ento assistncia por demais agncias do Ministrio. As mudanas institucionais foram acompanhadas por um considervel crescimento de

    recursos e cobertura no s o oramento da LBA dobrou de 1976 para 1977 e continuou crescendo at 1981, como quase duplicou o nmero de usurios cobertos pelos programas da Legio de 1977 a 1978 (SPOSATI & FALCO; 1989: 26; TEIXEIRA, 1995: 36 e 38). A introduo da ferramenta de convnio, que exigia dos prestadores de servio a execuo de projetos especficos, ao lado do instrumento da subveno, que deixava livre a aplicao dos recursos, denotava de outra forma o aprofundamento da interferncia das agncias estatais na rea de assistncia social.

    Em 1979, a rea contava com a Secretaria de Assistncia Social como rgo mximo de combate da pobreza instalado no MPAS e com a LBA, que era incumbida de promover,

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    mediante o estudo da pobreza e o planejamento de solues, a implementao e a execuo da Poltica Nacional de Assistncia Social, bem como orientar, coordenar e

    supervisionar outras entidades executoras dessa poltica (Estatuto FLBA, apud SPOSATI et al., 1995: 87). A agncia cumpria sua misso, coordenando aes de cuidados educacionais e higiene direcionadas para mulheres, crianas, idosos e populao de rua por meio de sua vasta e capilar estrutura organizacional, que consistia em escritrios estaduais e comisses municipais presentes em quase todos os municpios (em 1986 estava presente em 80% dos municpios) (TEIXEIRA, 1995: 80). A execuo estava a cargo de 135 mil voluntrios, 6 mil entidades sociais conveniadas, 2 mil equipamentos prprios e 8 mil servidores (SPOSATI & FALCO, 1989: 28).

    Com o fim da ditadura militar, no governo da Nova Repblica (1985-1988), o I Plano Nacional de Desenvolvimento incluiu a assistncia social no conjunto de suas prioridades, na base do diagnstico realizado em 1986 pela Comisso de Apoio Reestruturao da Assistncia Social, que indicou a insuficincia e inadequao de recursos, baixa qualidade de atendimento e excessiva centralizao poltica e administrativa de sua

    organizao (NEPP, 1989: 30). A participao da LBA no oramento do SINPAS, que havia apresentado decrscimo entre 1982 e 1985, cresceu de novo significativamente: nos anos 1986 e 1987, o gasto da agncia subiu 122,99% e 166,99%, respectivamente (NEPP, 1989: 304). O aumento de recursos foi acompanhado pela intensificao de desenvolvimento de aes em convnio com as prefeituras: entre 1985/86, dos 36,7% dos convnios firmados com o poder pblico, a esmagadora maioria mais que 90% - eram com as prefeituras (SPOSATI & FALCO, 1989: 68).

    Em resumo, a trajetria da LBA nas dcadas de 1970 e 1980 apontou para sua gradual institucionalizao e especializao como rgo governamental voltado s aes de assistncia social e cujos recursos cresceram, ainda que de forma irregular. Conforme discutido na seo anterior, na viso da literatura essas mudanas no passaram de

    tecnocrticas e administrativas, pois o Estado, portador de interesses capitalistas, no objetivava a inflexo no setor rumo universalizao de acesso e constituio da assistncia em direito 3 . A abordagem terica aqui adotada possibilita considerar as

    mudanas como potenciais oportunidades e analisar os papis desempenhados pelos

    3 O setor de sade tambm sofreu diversas intervenes que foram aproveitadas pelo movimento dos profissionais

    reformistas no sentido de ampliao da cobertura de servios de sade (DOWBOR, 2008).

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    atores societrios presentes e atuantes na assistncia e sua (in)capacidade de incidncia na poltica.

    Entidades filantrpicas, assistentes sociais e usurios

    O Estado brasileiro promoveu a execuo dos servios assistenciais primordialmente por meio de entidades privadas de carter no lucrativo. Sua relao com o Estado era regulamentada pelo Conselho Nacional de Servio Social (CNSS), fundado em 1934, que lhes atribua o status de entidades filantrpicas, do qual decorriam as isenes de diversos tipos, e que autorizava as subvenes financeiras s aes por elas executadas.

    Outra forma de relacionamento consistia no estabelecimento de convnios com as agncias e instncias dos nveis estadual e municipal.

    As entidades filantrpicas formavam um contingente bastante amplo: em 1964, havia, no CNSS, 20 mil entidades registradas 4 (MESTRINER, 2005: 150), enquanto a LBA contava com 6 mil conveniadas em 1985, conforme supramencionado. Embora sejam denominadas corriqueiramente de entidades sociais filantrpicas, importante destacar a diversidade existente entre elas, que revela origens, afinidades e vnculos distintos. Entre

    aquelas que assinavam convnios com a LBA, encontravam-se filantrpicas religiosas

    (por exemplo, aquelas com vnculos diretos ou indiretos com igreja catlica e doutrina esprita) e as filantrpicas no religiosas (por exemplo, o Lions, o Rotary, os Escoteiros), associaes comunitrias formais (centros comunitrios, clubes de mes, associaes de moradores), representao de classe e entidades particulares com fins lucrativos.

    importante salientar a presena e atuao da Igreja Catlica que, a partir do final dos anos 1960, fez a opo pelos pobres, um redirecionamento que significou maior compromisso da instituio com a justia social. A opo se traduziu tanto no posicionamento do seu rgo representativo, a Conferncia Nacional dos Bispos do

    Brasil (CNBB), quanto na criao ou fortalecimento de entidades voltadas ao trabalho com a populao pauperizada. Mais frequentemente citadas como manifestao dessa tendncia so as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que, apoiadas na Teologia da

    4 Vale lembrar que o CNSS registrava tambm as entidades executoras de servios na rea de sade e educao que,

    juntas com as de assistncia, compunham um universo numeroso e poderoso. Na sade, por exemplo, em funo da existncia e crescimento do setor privado de medicina, vrios hospitais de porte se beneficiavam com o certificado de filantropia.

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    Libertao, reuniam comunidades locais em torno das discusses sciopolticas. Foram constitudas 100 mil CEBs, abrangendo em torno de 5 milhes de pessoas pelo Brasil afora. Mas havia outras organizaes como Pastorais (da Sade, da Criana, da Terra entre outros), organizaes de irmandades (Instituto Regacionista, Fundao So Camilo, por exemplo) ou instaladas pelos laicos catlicos (como Centro Nossa Senhora do Bom Parto de So Paulo), que desenvolviam projetos assistenciais junto comunidade em que estavam inseridas, viabilizando seu trabalho na base de voluntariado, financiamento privado e dos recursos do poder pblico.

    A importncia numrica dessas mais diversas entidades filantrpicas no se traduzia na

    organizao associativa do campo. As entidades sociais prestadoras de servio na assistncia social no possuam nenhum rgo comum de representao de relevncia nacional, e a forma de interao com as instncias do Estado parece ter sido muito individualizada. Os depoimentos de duas grandes entidades de origem catlica de So Paulo indicaram o perfil de relacionamento direto entre o responsvel religioso e o poder pblico como forma de ganhar apoio para as atividades promovidas para a populao de

    baixa renda. No que se refere aos relacionamentos institucionais, apesar da substancial diferenciao entre a LBA e o CNSS nas suas respectivas formas de lidar com as

    entidades civis prestadores de servio, ambas resultavam no mesmo tipo de relao: direta e individualizada entre o rgo e a entidade5.

    O CNSS funcionava como rgo federal composto por pessoas ilustres da sociedade

    cultural e filantrpica. Ao Conselho pertencia o papel de atribuir tanto o certificado de utilidade pblica s entidades filantrpicas (exigncia para receber todos os tipos de benefcios como, entre outros, iseno de contribuio previdenciria e de imposto de importao) e quanto as subvenes, que constituam a forma mais utilizada ao longo das dcadas pelo Estado de financiar as atividades assistenciais executadas pelas entidades filantrpicas. Ao CNSS cabia a deciso sobre quais entidades deveriam ser

    auxiliadas por meio de subvenes. O processo se iniciava com a entrega do pedido de auxlio, que uma vez avaliado pelo Conselho, isto , munido de seu parecer, era encaminhado numa listagem para o Ministrio de Educao e Sade para aprovao e

    remessa ao presidente da Repblica para a designao da quantia subsidiada. A mudana

    5 Degenszajn e Paz (1999: 116) referem-se s histricas relaes das entidades com o Estado de seguinte maneira: (...) margem de qualquer mecanismo de controle pblico, fazem desaparecer as fronteiras entre o pblico e o privado, por meio de acordos ad hoc, das negociaes caso a caso(...)

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    mais relevante nesse procedimento se realizou durante o regime militar, quando a distribuio das subvenes foi atribuda aos parlamentares, que possuam uma cota

    reservada para isto no oramento. No entanto, de qualquer forma, o CNSS continuou com a funo de elaborar listas de entidades habilitadas de receberem os subsdios do

    poder legislativo. Esse procedimento reforava os contatos individuais, tanto das entidades com o CNSS quanto com os parlamentares6.

    A LBA tambm funcionou durante um tempo na base das subvenes e auxlios

    oferecidos s entidades, mas depois evoluiu para a forma de convnio, que atribua ao Estado papel de assessoria, superviso e assistncia tcnica s organizaes privadas que

    desempenham as atividades de assistncia. No entanto, o papel fiscalizador do Estado, que se traduzia em visitas s entidades, no era capaz de regulamentar os termos da parceria, pois estes dependiam mais de uma boa relao da entidade com o tcnico ou peso poltico do grupo filantrpico (SPOSATI & FALCO, 1989: 65).

    Em resumo, as entidades prestadoras de servios assistenciais constituam um campo

    vasto, porm no organizado em entidades de representao. A falta de evidncias de atuao coletiva e as formas de relacionamento com as instncias governamentais e

    estatais indicam que a interao das entidades com o poder pblico passava por canais individuais e diretos. Embora exista registro de queixas das entidades no que se refere sua relao com o Estado (SPOSATI & FALCO, 1989: 83), a expanso de programas de assistncia social sem mudar o perfil do executor colaborava com os interesses das

    entidades, tornando-as aliadas do formato das aes setoriais.

    Outro ator importante do campo de assistncia social foi constitudo pelos assistentes sociais, oriundos dos cursos de Servio Social cujas origens esto ligadas Igreja Catlica e datam da dcada de 1930. Na poca da ampliao dos programas sociais e da reestruturao institucional nos anos 1970, a categoria, inserida em 90% no funcionalismo pblico (MARTINELLI et al. 1979: 17), j havia atravessado o processo de renovao - uma perspectiva modernizadora que permitiu aos assistentes sociais a insero no Estado pautada na racionalidade do planejamento e eficincia tcnica e a colaborao com as mudanas em curso, sem todavia elaborar propostas crticas ou

    6 Uma anlise minuciosa da fundao e etapas de funcionamento do CNSS pode ser encontrada em Mestriner, O

    Estado entre a filantropia e assistncia social (2005).

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    inovadoras (BRAVO, 1996: 94). A institucionalizao do setor e a ampliao da cobertura e recursos nos programas de assistncia social no mbito da LBA no

    coincidiram com a prontido dos profissionais da rea para interferir na prtica institucional de modo a reformular o modelo de acordo com uma proposta, respaldada na

    assistncia social como direito dos cidados e poltica pblica universal.

    Um projeto crtico nasceu em 1979, integrando-se ao Movimento de Reconceituao presente em diversos pases da Amrica Latina. Os termos foram explcitos no Congresso

    Brasileiro de Assistentes Sociais de 1979, chamado de Congresso da Revirada, em que se decidiu romper com o conservadorismo, que trataria a assistncia como

    benemerncia a ser ofertada aos pobres necessitados, e assumir a direo sociopoltica da profisso. Os postulados do Movimento de Reconceituao incentivavam os profissionais a se voltarem para as relaes diretas com a populao demandatria de seus servios e com os movimentos sociais organizados, alm de insistir na prtica institucional mais crtica.

    A efervescncia ideolgica encontrou traduo na organizao dos assistentes no mbito sindical e de ensino. As entidades de representao ganharam um considervel impulso:

    alm dos compulsrios conselhos federal e regionais, revitalizavam-se antigas entidades e nasciam associaes como, por exemplo, a Associao Nacional Pr-Federao dos Assistentes Sociais (ANAS), que criou, em 1979, a Comisso Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais com a incumbncia, entre outros, de criar

    entidades sindicais nos estados onde no existiam. O cargo de direo dessas entidades no raramente foi ocupado pelos profissionais progressistas (BRAVO, 1996: 97).

    importante destacar o papel das faculdades de Servio Social, organizadas sob a gide da Associao Brasileira de Escolas de Ensino de Servio Social (ABESS), com o destaque para o curso de Servio Social na PUC-SP e PUC-RJ, onde j haviam sido introduzidos programas de ps-graduao, onde atuavam os principais militantes da rea e foram produzidas importantes pesquisas sobre a rea. O debate crtico sobre a prtica profissional de assistente social ganhou tambm um veculo de disseminao com o

    lanamento, em 1979, da revista Servio Social & Sociedade pela Editora Cortez. Nos anos 1980, a Movimento de Reconceituao, denominado tambm de inteno de ruptura concentrou seus esforos na consolidao acadmica, travando confronto com

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    os defensores de outras vertentes presentes na assistncia de cunho conservador, entre as quais, destaca-se a tendncia chamada reatualizao do conservadorismo, que rejeitava a raiz marxista da primeira e, pautada na inspirao fenomenolgica, defendia o perfil de ajuda psico-social da assistncia.

    A vertente de inteno de ruptura teve duas conseqncias importantes para as formas de interao entre a categoria e os atores estatais. A primeira refere-se postura altamente crtica, que redundava na rejeio das prticas assistencialistas promovidas pelo Estado como fadadas reproduo ideolgica de interesses do capital (SPOSATI et al. 1995: 51) e chegou a resultar em demisses voluntrias coletivas e opo pela atuao alternativa mais prxima dos movimentos sociais e comunidades. Em segundo lugar, como a prtica dos profissionais progressistas era concentrada no mbito de ensino e pesquisa, foi construdo um arcabouo terico-metodolgico capaz de coloc-los como parceiros paritrios frente a outras disciplinas (NETTO, 1989, apud BRAVO, 1996:118), mas que no resultou na construo de alternativas para a ao do profissional na prtica institucional. Os principais representantes da vertente continuaram na

    academia, dando suporte s instituies por meio de assessorias, mas sem ocupar cargos de destaque no Estado. As entidades sindicais canalizavam seus esforos para a

    legitimao e consolidao da carreira de assistente social e tampouco promoveram uma estratgia coletiva para a incidncia poltica no setor (BRAVO, 1996: 100 e 118). sintomtico dessa realidade que dois principais encontros da categoria a Assemblia da Associao Nacional de Assistentes Sociais e o V Congresso Brasileiro de Assistentes

    Sociais, ambos realizados em So Paulo em 1985, no apresentaram nenhum tese para assistncia social como poltica pblica, concentrando suas atenes em torno da

    consolidao da profisso.

    Havia mais um ator coletivo em potencial, a saber, o pblico beneficirio das aes de assistncia, definido ou pelo tipo de insero no mercado de trabalho (a falta de vnculo formal), ou pela vulnerabilidade (idoso, criana, moradores de rua). No entanto, os beneficirios no se constituram como grupo com pauta de reivindicaes relacionadas com a assistncia social. Poder-se-ia inferir que o alto grau de precariedade de suas

    condies de vida, sua relao indireta com o Estado, pois mediada em grande parte pelas entidades filantrpicas, e a falta de um projeto setorial amplamente compartilhado entre os atores relevantes formaram condies que contriburam para sua no-

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    organizao. Com isto, apesar da postura ideolgica dos assistentes militantes, que enaltecia a organizao das comunidades com as quais trabalhavam, no foram

    estabelecidas alianas com capacidade de incidir na poltica (SKOCPOL, 1995: 47).

    III. Implementao institucional da poltica de assistncia social versus programas de combate pobreza do executivo federal entre 1990 e 2000

    A Constituio de 1988 considerada na literatura como inflexo setorial visto que, com a legitimidade e fora da lei constitucional, a assistncia se tornou uma poltica social a

    ser implementada por trs nveis federativos em um sistema descentralizado, de acesso universal e com participao da populao (YAZBECK, 2004; SPOSATI et al. 1995; MESTRINER, 2005; BOSCHETTI, 2003). De 1988 at os meados dos anos 2000, j no contexto democrtico, dois processos ligados assistncia social se desenrolaram paralelamente, cada qual com seu conjunto de atores societrios e estatais. A institucionalizao da nova poltica contou com uma maior articulao, uma espcie de

    aliana, entre os atores defensores da Lei Orgnica de Assistncia Social, que era uma legislao necessria para esquadrinhar a forma de implementao. Por outro lado, o

    governo federal, por iniciativa do mais alto executivo, promoveu amplos programas de combate de pobreza fora do campo institucional da assistncia e sem a participao dos atores mais relevantes desse setor.

    O perodo entre 1988 a 1993, ano em que foi aprovada a LOAS, caracterizou-se pela configurao institucional cambiante e instabilidade nos cargos das principais instituies

    do setor de assistncia social (ARRETCHE, 2000: 173): em 1988, aps quatorze anos no Ministrio de Previdncia e Assistncia Social, a Legio Brasileira de Assistncia e a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor passaram a formar o Ministrio da Habitao e do Bem Estar Social; em 1989, foram incorporados ao Ministrio do Interior e, em 1990, a FUNABEM foi extinta e substituda por outro rgo que, junto com a LBA e outros programas, foi integrado ao Ministrio da Ao Social, posteriormente substitudo pelo Ministrio do Bem-Estar Social.

    Os atores sociais pr-LOAS no tiveram participao de destaque nesse campo

    institucional, e sua mobilizao se concentrava na elaborao e tentativas de aprovao

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    da Lei Orgnica. Ainda que as garantias constitucionais se mostrassem essenciais para tanto, a demora nesse processo indica uma capacidade limitada de barganha na poltica

    setorial dos atores societrios pr-LOAS, que s se tornou eficaz em uma conjuntura poltica favorvel. Entre as entidades atuantes, encontram-se aquelas mobilizadas desde

    a dcada de 1980 como o Conselho Federal de Servio Social (CFESS), a Associao Nacional dos Empregados da Legio Brasileira de Assistncia (ANASSELBA), a Associao Brasileira de Ensino de Servio Social (ABESS) e seu Centro de Estudos e Pesquisa em Servio Social, a Associao Nacional de Assistentes Sociais (ANAS) a Central nica dos Trabalhadores (CUT), junto a universidades como a Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e a Universidade de Braslia (UnB) (STEIN, 1999: 25; DEGENSZAJN, 1998: 135). A frente pr-LOAS foi alimentada por novos atores coletivos tais como os movimentos pelos direitos das pessoas com deficincia, das crianas e adolescentes e dos idosos7, j mobilizados em funo de suas reivindicaes especficas, e de alguns gestores pblicos de assistncia social 8 (SPOSATI, 2007: 46).

    Apesar da mobilizao, esse conjunto de atores no conseguiu inverter o veto do presidente Fernando Collor de Mello, que congelou o processo da legislao em 1990, e tampouco reagir de forma eficiente fragilizao do setor pelo executivo. O governo Collor reduziu a cobertura e os recursos dos programas do LBA: em 1991, a cobertura dos beneficiados com os programas do LBA caiu em 30% em relao ao ano 1989 (RAICHELIS, 2000: 98). Na Cmara Federal, deputados dos partidos de orientao centro-esquerda propuseram trs projetos de lei, apoiados pela articulao pr-LOAS, mas foi a presso do prprio Ministrio do Bem-Estar Social na figura do seu ministro,

    junto Presidncia, que gerou resultado efetivo (SPOSATI, 2007). Em 1993, o Presidente Itamar Franco enviou, em regime de urgncia, projeto de lei para a Cmara Federal. A LOAS foi aprovada finalmente em dezembro de 1993, definido as diretrizes e os princpios norteadores para a implementao da poltica no pas.

    7 Antes da LOAS, j em 1989, fora aprovada a Lei 7.853 da Pessoa Portadora de Deficincia, e, 1990, a Lei

    8.069 aprovou o Estatuo da Criana e Adolescente (SPOSATI, 2007:44). 8 O projeto de lei, que foi aprovado em 1993, recebeu emendas de trs fontes: do CFESS, do Frum de

    Dirigentes de Assistncia Social de Prefeituras do Estado de So Paulo e dos intelectuais da rea da PUC-SP (SPOSATI, 2007: 60).

  • 19

    Depois do esforo na aprovao da Lei, que mobilizou diversos atores societrios e estatais, estes tanto do legislativo quanto do executivo, a trajetria do setor, analisada pelo prisma dos atores que mediados pelas instituies disputam sua construo, desenrolou-se de forma cindida. Por um lado, os atores pr-LOAS estiveram envolvidos

    na implementao da lei, por outro, o mais alto executivo do governo federal ps em marcha macios programas de assistncia mas desconectados institucionalmente desse setor.

    O processo da construo institucional nos estados e municpios, que consistiu na implementao dos conselhos, fundos e planos e instalao de conferncias, estendeu-se

    de 1993 e 2004 (PAZ, 2006), visto que a falta de capacidade administrativo-organizacional dos municpios no permitiu a imediata descentralizao da poltica at esse nvel. As discusses a barganhas em torno desse processo encontravam sua expresso nas Conferncias Nacionais de Assistncia Social, que eram realizadas periodicamente: nas de 1995 e 1997, respectivamente, foi elaborada a Poltica Nacional de Assistncia Social. Em 1998, foi aprovada a Norma Operacional Bsica, que traduzia a Poltica em normas para sua implementao nos estados e municpios. Em todos esses marcos legaus houve contribuio dos principais intelectuais da rea (RAICHELIS, 2000: 110, 114, 124) 9.

    A necessidade de consolidao do setor e uma maior uniformidade ao conjunto de instituies e aes circunscritas no mbito da assistncia social motivou a elaborao do

    seguinte marco regulatrio - o Sistema nico de Assistncia Social (SUAS). Novamemnte, o processo da elaborao e aprovaao do SUAS percorreu as instncias participativas, que compem o desenho institucional da assistncia: a IV Conferncia Nacional da Assistncia Social, realizada em 2004, deliberou sobre sua implementao,

    e a partir dessa diretriz o Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome e o Conselho Nacional de Assistncia Social elaboraram a proposta de Poltica Nacional de

    Assistncia Social, que deu origem ao novo sistema, criado em 2005. Entre seus principais objetivos encontravam-se o de assegurar a Assistncia Social como um

    9 Para a reunio de debate sobre a proposta do PNAS, realizada em 17/091996, foram convidados pelo Conselho

    Nacional de Assistncia Social especialistas como Maria do Carmo Brandt de Carvalho, Aldaza Sposati, Carlos Marciel e Vincente de Paula Faleiros (RAICHELIS, 2000: 114).

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    conjunto de servios, programas, projetos e benefcios e o de consolidar a estrutura descentralizada, participativa e democrtica (MDS, 2007).

    No que se refere s entidades assistenciais, a partir do final da dcada 1990, preciso distinguir dois subgrupos, uma distino construda, principalmente, na base da

    regulamentao jurdica, mas que tambm corresponde a dois universos com trajetrias diferentes. No primeiro deles, circunscrevem-se aquelas entidades, que recebem do Conelho Nacional de Assistncia Social a concesso do certificado de filantropia, que

    lhes confere uma srie de isenes. Sua posio no setor ficou longe de ser secundria aps 1988, o que se expressa na sua participao em conselhos e conferncias e no papel a elas atribudo na execuo dos programas e servios circunscritos na assistncia social. Inseridas no sistema integrado de aes da iniciativa pblica e da sociedade

    (CONSTITUIO, 1988; LOAS, 1993, art. 1), so maiores executoras de aes. Embora presentes nas principais disputas setoriais nas fileiras dos atores pr-LOAS,

    essas entidades assistenciais no chegaram a se organizar no nvel federal, com a nica exceo de quando o Estado reformulou os critrios para a concesso de isenes. A

    ao, que estava circunscrita no interior das reformas do Estado, incitou a organizao da Rede Brasileira de Entidades Assistenciais (REBRAF), em 1998, que, na formulao da prpria entidade surgiu (...) quando a Unio sem distinguir o joio do trigo quis tirar a iseno fiscal que a Constituio garante s instituies filantrpicas (REBRAF, 2008). importante acrescentar que na categoria de entidade filantrpica se encaixam tambm aquelas atuantes nas reas de sade e educao (como Santas Casas e universidades, por exemplo) o que pode explicar a capacidade de presso contra revogao de isenes10.

    A atuaao da REBRAF no repercutiu em novas frentes e mobilizaes e parece

    razovvel dizer que a interao das entidades com o Estado continua principalmente por meio dos canais individuais. Uma pesquisa sobre as organizaes civis em So Paulo,

    realizada em 2003, evidencia essa tendncia. As entidades assistenciais tendem a adotar a forma individualizada de atuao, isto , constroem pouqussimas conexes entre si. Uma maioria 60% - se mantm isolada ou no mantm qualquer vnculo direto com seus

    10 Entre isenes vale citar a dispensa de recolher ao INSS a contribuio social sobre a folha de salrios de seus

    empregados. O impacto dessa renncia nos cofres da Seguridade Social era, em 1993, de 2,5 bilhes de reais, correspondentes a 1,5 milho de trabalhadores empregados nas entidades detentoras de certificado de filantropia (GOMES, 1999: 99).

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    pares, e os 40% demais compem subgrupos isolados uns dos outros (LAVALLE et al. 2008: 26).

    O segundo conjunto de entidades atuantes na assistncia social abarca as organizaes cujo marco legal partiu do Conselho da Comunidade Solidria11, da prpria presso das organizaes no-governamentais e da Reforma do Estado promovida na dcada de 1990. Com a Lei n. 9.790 de 1999 foi institudo status de Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP), no qual deveriam se enquadrar organizaes interessadas em estabelecer termos de parceria com o Estado para promover aes gratuitas na rea de assistncia, cultura, educao e sade entre outros, por meio do financiamento pblico.

    Embora as tradicionais entidades tambm pudessem se enquadrar nesse novo formato jurdico, as OSCIPs representam um novo grupo de prestadoras de servios. Sua forma organizativa se diferencia do primeiro: possuem uma entidade coordenadora de nvel nacional, a Associaao Brasileira de Organizaes No Governamentais (ABONG), que intergrou o primeiro Conselho Nacional de Assistncia Social em 1994 e, a partir de ento, iniciou seu paulatino engajamento no setor.

    Aps 1988, os usurios da assistncia social comearam a surgir organizados na arena setorial, de maneira tmida ainda, agrupando-se por faixa etria, situao de precarieade ou vnculos identitrios. Sobressai-se o importante Movimento da Defesa dos Direitos da Criana e Adolescente, que apoiou as aes pr-LOAS, embora tivesse constitudo seu prprio marco legal e espaos institucionais de participao separados da assistncia.

    Destaca-se tambm a organizao do Movimento Nacional de Moradores de Rua, o Movimento dos Catadores de Materiais Reciclveis e o Movimento Nacional de

    Meninos e Meninas de Rua.

    Apesar do adensamento da ao coletiva e maior mobilizao por meio de alianas, os atores supramencionados no tiveram participao direta na elaborao das macias

    linhas de combate pobreza propostas pelo governo federal e, mais especificamente, pela Presidncia da Repblica, a partir da segunda metade de 1990. Tampouco sua implementao foi encaminhada pelas agncias da assistncia social, e a enxurrada de

    crticas de diversos grupos envolvidos com a assistncia no impediu sua realizao. As mudanas institucionais contidas na Medida Provisria N 1.226 de 1995, emitida pelo

    11 O Programa Comunidade Solidria ser apresentado a seguir.

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    ento presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso, j denotaram a falta de dilogo e negociao entre o governo e os atores societrios pr-LOAS. A medida que

    extinguiu o Ministrio do Bem-Estar Social apagou do mapa institucional a Fundao Centro Brasileiro para Infncia e Adolescncia e a LBA promoveu mudana condizente

    com o princpio do comando nico da LOAS, que foi criticada, no entanto, pelas militantes do setor pela forma abruta com a qual foi introduzida. s pressas, o patrimnio e os profissionais do LBA foram distribudos em diversos ministrios, e aes e programas dos nveis estadual e municipal direcionados para os rgos pblicos

    correspondentes. A direo mxima do setor foi atribuda nova Secretaria de Assistncia Social (SAS), inserida no Ministrio da Previdncia e Assistncia Social, incumbida da tarefa de coordenar a Poltica Nacional de Assistncia Social e de implementar a LOAS.

    O prximo passo da Presidncia, contido na mesma Medida Provisria, - a constituio do Programa da Comunidade Solidria (PCS) como estratgia bsica de combate fome e pobreza - tornou-se um importante ponto de discrdia (RAICHELIS, 2000: 107). Ancorado no gabinete da Presidncia da Repblica e presidido pela primeira-dama, o programa era operacionalizado por um grupo de tcnicos do Instituto de Pesquisa

    Econmica Aplicada (IPEA). Isto , no havia nenhum envolvimento direto institucional do setor de assistncia social. O PCS foi concebido de forma a articular e gerenciar programas sociais dos cinco ministrios - Agricultura, Educao, Planejamento, Sade e Trabalho - e outros rgos governamentais dirigidos ao atendimento dos segmentos

    sociais sem meios de garantir sua subsistncia12. Para compor o Conselho Consultivo do Programa foram chamadas personalidades de saber notrio de diferentes segmentos

    sociais e indicados pelo Presidente da Repblica, sem prever representantes formais da assistncia social13.

    12 O conjunto de 16 programas federais incluia: reduo da mortalidade na infncia, suplementao alimentar, apoio ao ensino fundamental e pr-escola, apoio agricultura familiar, saneamento e habitao, e gerao de ocupao e renda e qualificao profissional. 13 Para conhecer a sistematizao dos principais argumentos crticos aos PCS no debate nacional, ver Silva et al. (1999). Em linhas gerais, o PCS foi duramente criticado pela comunidade de assistentes sociais pelo seu carter emergencial e assistencialista, por promover a crescente desresponsabilizao do Estado, visto que a execuo dos programas foi atribuda a uma nova personagem jurdica, a saber, s organizaes da sociedade civil de interesse pblico (OSCIP) (SILVA et al., 1999: 115). O segundo elemento criticado foi a falta de interlocuo com a comunidade.

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    Tratava-se de um programa cujos objetivos e pblico-alvo coincidiam em parte com as diretrizes da LOAS, o que repercutiu criticamente na literatura e nas manifestaes

    pblicas dos atores envolvidos no setor de assistncia. Alegavam os opositores que fora criada uma estrutura paralela e superposta s instncias da assistncia previstas pela

    LOAS: nas Conferncias Nacionais de Assistncia Social de 1995 e 1997 foi exigida sua extino. A implementao do PCS, pela quantidade de crticas que recebeu, tornou visveis os grupos e espaos aglutinados em torno da defesa da LOAS, e entre eles estavam intelectuais do setor, entidades assistenciais, personalidades pblicas, Conselho

    Nacional de Assistncia e Conferncias. No entanto, apesar do controverso, o PCS no alterava o modus operandi da execuo das aes presente na assistncia social, ou seja, da parceria entre o Estado e as organizaes civis. Com isto, no s no prejudicava a posio das entidades assistenciais, como criava novo campo para sua atuao.

    Uma segunda onda de importantes programas de perfil de assistncia social na mbito federal, direcionados a famlias em situao de pobreza e implementados fora do mbito institucional da assistncia social, abrangeu programas de transferncia de renda, que

    foram concentrados depois no atual Bolsa Famlia. O maior deles, com a cobertura de 8.600.000 de crianas na idade entre 6 e 15 anos, o Bolsa Escola, de 2001, esteve sob a responsabilidade do Ministrio de Educao. Dois outros programas, o Bolsa Alimentao e o Auxlio Gs, eram de responsabilidades de outras pastas, a do Ministrio da Sade e do Ministrio de Minas e Energia, respectivamente. Seria equivocado alegar que era o perfil dos programas, que consistia na transferncia de

    renda, que os tornava incompativeis com o setor de assistncia: na Secretaria de Assistncia Social estavam presentes programas de carter semelhante: o Benefcio da

    Prestao Continuada (BPC) - garantia constitucional de pagamento de uma salrio mnimo mensal pessoa portadora de deficincia e ao idoso -, o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI), que atribua uma renda mensal para as famlias cujos filhos deixassem de trabalhar e o Programa Agente Jovem que concedia bolsas aos jovens por um determinado perodo. O oramento do BPC (junto com a Renda Vitalcia Mensal, que era seu antecedente) correspondia a 89,57% do oramento do Fundo Nacional de Assistncia Social previsto para 2005, o que mostra a relevncia de programas de transferncia na prpria assistncia14 (BOSCHETTI et al. 2004: 6 e 9).

    14 Uma tendncia semelhante pode ser observada no caso de So Paulo onde o Programa Renda Mnima ocupa 88% do

    oramento da Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento Social (HOUTZAGER, 2008: 57)

  • 24

    Em 2003, Luiz Incio Lula da Silva, eleito presidente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), determinou a unificao de alguns desses programas existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentao, Auxlio Gs e Carto Alimentao) num nico, denominado Programa Bolsa Famlia, cujo oramento, em 2005, era equivalente a 58% dos recursos destinados Fundo Nacional de Assistncia Social (BOSCHETTI et al. 2004: 6). No momento de sua constituio, o Bolsa Famlia ficou sob a responsabilidade de uma secretaria executiva e, com a criao do Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS), em janeiro de 2004, a atribuio foi transferida para Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC) e no Secretaria Nacional de Assistncia Social, ambas inseridas no MDS.

    Confirma-se essa opo institucional tambm no maior municpio brasileiro, onde, sob o

    governo petista (2001-2004) e na presena das mais atuantes intelectuais do setor de assistncia social, a introduo do Programa de Renda Mnima, seguiu a mesma lgica de

    desvinculao do mbito institucional da assistncia social. O programa foi adotado por iniciativa da prefeita de So Paulo e alocado na Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho

    e Solidariedade, responsvel por diversos programas de gerao de trabalho e renda e de transferncia de recursos. Tratava-se de um espao institucional novo, praticamente insulado do setor de assistncia e de sua influncia, e seus quadros dirigentes no provinham desse setor. O Renda Mnima foi levado ao Conselho Municipal de

    Assistncia Social para ser aprovado, mas depois desse ato legitimador, a Secretaria de Desenvolvimento no prestou mais as contas sobre a implementao do Programa15. Sua

    transferncia para a Secretaria de Assistncia e Desenvolvimento Social na gesto seguinte no alterou a relao direta entre o beneficirio e o governo municipal sem a mediao de outros programas ou entidades.

    A implementao dos programas de transferncia de renda se deu num relativo silncio do setor de assistncia (Houtzager, 2008). Se de um lado, os setores acadmicos da assistncia social apontaram a afinidade dos programas de transferncia com o setor, (SPOSATI, 1997: 137) a reivindicao que sua gesto se desse sob a responsabilidade da assistncia no trouxe resultados efetivos 16 . As entidades assistenciais, que foram

    15 Uma pesquisa, que analisou as atas do COMAS e suas resolues nos anos 2001 a 2007, demonstrou que o

    Programa de Renda Mnima s foi discutido no momento da aprovao do programa em 2001 (SERAFIM, 2007). 16 Em um recente documento do MDS (divulgado no site do Ministrio em 2007), sublinha-se a necessidade de articulao entre o programa Bolsa Famlia e as aes socioassistenciais da SNAS em funo das condicionalidades previstas pelo progarama.

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    excludas da implementao em funo do desenho desse tipo de programas no Brasil, que estabelece a relao direta entre o governo e os beneficirios, no se pronunciaram

    coletivamente a respeito. No houve nenhuma organizao de destaque por parte dos 11,1 milhes de famlias beneficiadas com o recurso em 2007 (HEVIA, 2008).

    Concluso

    A abordagem terica de polis parte da premissa de que os atores estatais e societrios se constituem, se tornam politicamente significativos e interagem atravs do divisor de

    guas privado/pblico para produzir uma mudana propositada (HOUTZAGER, 2004:31). A trajetria da assistncia social apresenta uma srie de evidncias dessa mtua constituio de atores sociais e estatais. No primeiro perodo analisado, a execuo de servios pelas entidades assistenciais, na base da concesso de certificado de filantropia, emitido por um rgo do nvel federal, acabou reforando a relao individual entre entidade e agncia do Estado. Vale ressaltar que a heterogeneidade de

    origens e vnculos, que caracterizava as entidades de assistncia, tampouco favorecia a sua organizao: a no ser em momentos pontuais, elas no chegaram a se constituir

    como ator coletivo organizado e permanente sob a gide de uma ou mais entidade de representao. A forma mediada de proviso de aes assistenciais, pois executada por esse vasto contingente de entidades assistenciais, criou a distncia entre os usurios e o

    Estado, dificultando a percepo deste como um dos responsveis pelo setor e portanto plausvel de ser cobrado pela populao beneficiria. At certo ponto isso ilumina as razes da no organizao dos usurios. Os assistentes sociais estavam engajados na legitimao de sua profisso e com isso tardaram em elaborar um projeto poltica para o setor. Em resumo, at o final dos anos 1980, apesar dos investimentos realizados pelo Estado na rea de assistncia social, no houve alianas que pudessem interferir ou

    aproveitar o cambiante mbito institucional da assistncia.

    A Constituio foi o encaixe institucional necessrio para que os assistentes progressistas pudessem pressionar a aprovao da lei, que orientaria a implementao dessa nova poltica social. A partir da aprovao da Lei Orgnica de Assistncia Social, os assistentes sociais se tornaram importantes mentores de novos marcos regulatrios com o

    destaque para o Sistema nico de Assistncia Social. Por meio de espaos

  • 26

    institucionalizados de participao como Conselhos e Conferncias, instalados em trs nveis federativos, ocorreu um adensamento de relaes entre aqueles assistentes sociais

    e entidades assistenciais progressistas que buscavam o fortalecimento da assistncia como poltica pblica. Outro aliado, esta vez inesperado, na desfilantropizao da

    assistncia surgiu da iniciativa da Presidncia da Repblica. O Programa Comunidade Solidria promoveu a participao de uma nova vertente das organizaes civis, corriqueiramente chamadas de organizaes no governamentais, que passaram a participar e disputar o papel de prestadoras de servios no setor de assistncia ao lado das

    tradicionais entidades assistenciais, que continuaram como mais importantes executoras de servios.

    Mais organizados e mais visveis, os atores sociais da assistncia no foram protagonistas da elaborao dos volumosos programas de transferncia de renda voltadas populao mais pobre do pas, implementados no nvel federal, a partir da dcada de 2000. O silncio em que se deu essa implementao merece sem dvida mais pesquisa, mas de antemo vale destacar que a relao direta entre a agncia do Estado e o beneficirio do

    programa exclua a intermediao das entidades assistenciais, o que pode ajudar a explicar sua falta de envolvimento. Em suma, a implementao dos programas de

    transferncia de renda foi encaminhada, no nvel federal, fora do mbito institucional de assistncia social, ocupando uma relevante quantia de recursos: quase 60% do oramento do Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome, de onde saem tambm os recursos federais para as aes da assistncia.

    Afora adensamento de atores sociais, houve avanos na construo de um arcabouo

    institucional nos trs nveis federativos: a imensa maioria dos estados e municpios conta com a secretaria de assistncia, um conselho e fundo financeiro que concentra os recursos dessa poltica. A aprovao do Sistema nico de Assistncia Social indica a busca de um padro burocrtico mais unificado ainda para permitir maior

    institucionalizao e formalizao das relaes entre os atores estatais e sociais. Para exemplificar essa tendncia, pode se citar a ampliao do contato entre o usurio final e o Estado por meio de equipamentos pblicos previstos para atender cada 20 mil pessoas.

    O Centro de Referncia de Assistncia Social - porta de entrada ao SUAS - pode contribuir para a percepo do Estado no s como responsvel, mas tambm a ser

    responsabilizado pela poltica, o que pode fomentar a ao coletiva dos usurios. Trata-se

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    apenas de uma suposio, mas que contm a idia da aliana que nunca chegou a existir na assistncia, a de profissionais reformistas e usurios finais existentes em muitos

    municpios, em busca de assistncia como direito social e dever do Estado.

    Abstract:

    According to the main stream in the national literature, the State has been main actor in social assistance development and implementation. This interpretation has shadowed

    others actors activities like social assistance professionals, philanthropic entities and users. In this article we highlight their role and activities and we argue that until 1988 there was not any kind of alliance capable of influencing politics in the sector towards reforms and its character has still been weak through the two last decades. From the theoretical point of view, the present article follows polity approach that focuses on

    social and state actors interactions and their effects on production and reproduction of social policies.

    Keywords: social assistance, social actors, institutions, interaction, social policy, polity approach

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