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    Domenico Scarlatti e a

    Cultura Portuguesa

    Humberto d vila

    No podia dar-me mais satisfao e conforto ler, na Abertu-

    ra desta revista, a posio expendida por Franois Lesure, o

    abalisado diretor de estudos da cole des Hautes tudes, da

    Sorbonne (Paris), de que a prioridade da musicologia, em cada

    pas, deve ser dada s raizes e caminhos da prpria msica, de

    preferncia a tentar descobrir a verdadeira ideologia do Rug ou,

    ento, a tratar uma vez mais da origem da forma-sonata . E

    acrescenta o antigo chefe do Departamento de Msica da Biblio-

    teca Nacional francesa, exortando diretamente o Brasil, que se

    espera um recen seamento exaustivo das obras que subsistem

    desde a poca colonial, situando a natureza da sua escrita; dispor

    de estudos aprofundados concernentes as atividades dos concertos

    no sculo XIX; verificar as influncias que foram exercidas no

    desenvolvimento do ensino, formao de um pblico e as premis-

    sas duma crtica musical especfica (...) As questes so numero-

    sas, necessitando mais acentuadamente de pesquisas em arquivos

    locais, correspondncia existente e informaes da imprensa da

    poca .

    Estas palavras s no so profticas em

    relao

    a Portugal por

    virem a posteriori. So de 1990 e exprimem lima orientao que,

    embora traduza uma idia geral em curso na musicologia contem-

    pornea, j estava a ser aplicada institucionalmente, em Portugal.

    desde 1976. Outro no foi o esprito que levou criao, pelo

    signatrio, dum servio de musicologia no organismo estatal com-

    petente na rea do patrimnio cultural.

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    Preenchendo um vazio na Administrao pblica, que possi-

    bilitara a disperso, o extravio e a perda de inumerveis e valiosos

    manuscritos, instrumentos e toda a classe de documentos auxiliares

    da histria, o novo servio guiou-se logo de incio por uma idia

    principal: rastrear, recuperar e classificar o mais possvel tudo o

    que representasse qualquer contribuio para o enriquecimento do

    acervo repertorial, ou para o melhor conhecimento da histria da

    msica em Portugal, e se encontrasse ainda fora do circuito orga-

    nizado dos arquivos, bibliotecas e museus nacionais. A sua tarefa

    consistiu numa espcie de trabalho arqueolgico: tal como para

    este tudo importa - uma esqurola ssea, um caco de barro, um

    fragmento de metal ou as pedras dum antigo castrejo -, tambm na

    misso que o referido departamento a si prprio imps todo o

    vestgio do novo passado musical era encarado com igual interesse,

    desde a pgina solta duma partitura original, testemunho da cria-

    tividade artstica dum ignoto annimo, a um carto de visita, a um

    anncio de lies, com a indicao do preo, ou a cartas avulsas,

    que conservam simples dados cronolgicos ou impresses colhi-

    das ao vivo, sem deixar, no mesmo lote, programas de concertos

    idos, desenhos e velhas fotografias, utenslios de uso pessoal, etc.

    Mas enquanto, no caso do arquelogo, o material reunido o seu

    objeto de estudo, ali o que se visava era, com a humildade que

    compete a um servio pblico, salvar o que estava em risco de

    desaparecer, inventariar, para encorpor-Io no

    patrimnio

    da na-

    o, e criar as condies para que esse repositrio fosse colocado,

    da melhor maneira, ao dispor de todos. A safra foi copiosa e

    reveladora de quanto sobreviveu

    devastao dos tempos, num

    terreno que, comprovando a existncia duma profusa atividade e

    duma extensa tradio, se encontrava praticamente inexplorado,

    bastardo de qualquer ao sistemtica de prospeco sob chancela

    oficial. Em alfarrabistas, lojas de livros antigos, ferro-velhos,

    armazns de papel, casas de antigidades e residncias particulares

    ou na posse de artistas ou dos seus herdeiros, comeou-se a

    descobrir um esplio vastssimo e percentualmente significativo.

    Ofertas, propostas, pistas e avisos choviam e, a breve trecho,

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    tinha-se acumulado uma enorme massa de muitos milhares de

    documentos, ou afins, de diversa ordem. S partituras manuscritas

    dos sculos XVIII e XIX, principalmente, ascendem a mais de

    20.000. Por vezes, partes soltas permitiam completar obras que

    jazem truncadas nos arquivos. Alguns instrumentos preciosos de

    feitura portuguesa foram entretanto resgatados, um deles na Ale-

    manha, e iniciou-se, paralelamente, uma campanha de restauro de

    rgos histricos pilhados ou em degradao na maioria das igre-

    jas. Os resultados favorveis obtidos chegaram a fazer pensar na

    criao dum organismo autnomo que proporcionasse tanto ao

    ivestigador como ao pblico interessado a apreciao em conjunto,

    num mesmo local, dum determinado problema

    musicolgico,

    quer

    pela consulta de livros e documentos, quer pela observao das

    peas organolgicas concernentes a uma poca dada, quer, ainda,

    pela ilustrao iconogrfica, quer, finalmente, pela experimenta-

    o ao piano de composies do seu interesse ou pela sua escuta

    fonogrfica, caso houvesse as gravaes respectivas. Esta gama de

    possibilidades constituiria, igualmente, para o

    artista

    intrprete

    desejoso de renovar o seu

    repertrio,

    uma fonte de sugestes

    permanente. Por motivos polticos, por incompreenso do seu

    alcance, por ignorncia, no final de contas, o projeto, apenas

    encetado, no foi por diante. Ficou uma grande frustrao, mas

    tambm o conforto de se ter colocado sob abrigo e recuperado para

    a cincia e para a arte colees que, na situao de abandono em

    que estavam, corriam o risco de, mais tarde ou mais cedo, acabarem

    por desaparecer como, anteriormente, tantas outras.

    Ora, entre os muitos esplios recolhidos, acha-se o histrico

    arquivo musical do conde de Redondo, D. Fernando de Sousa

    Coutinho sc, XIX), esclarecido melrnano e amador, que man-

    tinha em casa, com a famlia, os amigos e at os criados uma

    pequena orquestra e, mesmo eventualmente, um coro para a exe-

    cuo de obras tanto religiosas, na sua capela, como profanas, nos

    seus sales. Quis o acaso, talvez para confirmar o acerto da ao

    empreendida, que do numeroso acervo constasse um livro, mag-

    nificamente encadernado e de primorosa ca ligrafia,

    COI11

    este ttulo:

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    Li bro di Tocare / Per Cem balo e / Tutti / D eI Sig

    re

    Cavaliero / D

    Domenico Scarlatti

    Era, obviamente, uma seleo de peas de

    cravo da autoria do compositor napolitano, que, como se sabe,

    viveu alguns anos em Lisboa no reinado de D. Joo V, indo morrer

    em Madrid aonde acompanhou a sua real e talentosa discpula D.

    Maria Brbara de Bragana, quando do casamento desta com

    Fernando

    VI

    de Espanha. A coletnea, por razes deduzi veis, deve

    ter sido elaborada para fornecer msica nova corte lisboeta, onde

    o autor continuava a ser muito apreciado, e enviada de Madrid. O

    conde de Redondo, pela sua fortuna e relaes com o meio musical,

    pde dar-se ao gosto de reunir uma notvel coleo de partituras,

    grande palie autografas; a sua posio na corte ter-lhe- propor-

    cionado um dia o acesso preciosa coletnea scarlattiana, uma jia

    a valorizar o conjunto. Mas estava ele longe, nesse tempo, de

    avaliar todo o significado do volume.

    O

    meu imediato cuidado, ao deparar-se-me o exemplar, foi o

    de providenciar no sentido de que se procedesse ao cotejo do

    incipit de cada pea com o das Sonatas reconhecidas do mestre

    napolitano, tarefa em que contei com dois creditados colaborado-

    res: o sbio professor Santiago Kastner e o jovem musiclogo Joo

    Azevedo, hoje bibliotecrio do Teatro Nacional de S. CarIos, a

    pera de Lisboa. O primeiro, consultando os inventrios existentes

    (Longo, Kirkpatrick, etc.) e valendo-se dos seus contactos junto

    de arquivos italianos, espanhis e outros, chegou a esta concluso

    surpreendente: de todas as sonatas compiladas, uma havia, a nO25

    da srie, que no coincidia com qualquer outra, era desconhecida

    e podia, pois, considerar-se indita. O segundo, que fazia ento em

    Kassel (RFA) um estgio na Redao do

    RISM

    (Rpertoire Inter-

    national des Sources Musicales), confirmou no computador central

    da organizao que nenhum

    incipit

    de peas scarlattianas conser-

    vadas em qualquer palie do Mundo correspondia ao fornecido. O

    achado era de festejar, pois se verificava no prprio ano de 1985,

    o dos centenrios do nascimento de Bach, Hndel e Scarlatti.

    Numa conferncia de imprensa, realizada no Instituto Portugus

    do Patrimnio Cultural, em junho (V. D irio de Noticias Lisboa,

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    de 20 desse ms e ano), coube-me assim o privilgio de anunciar

    ao Mundo a boa nova, como a contribuio de Portugal s come-

    moraes a decorrer. No podia ela ser melhor - e o fato s por si

    justificava a razo de ser do Departamento de Musicologia daquele

    organismo e coroava de xito a sua poltica.

    Esta a histria recente da compilao que o professor

    Gerhard Doderer, do Departamento de Cincias Musicais da Uni-

    versidade Nova de Lisboa, tomou a iniciativa de publicar numa

    excelente edio fac-similada do Instituto Nacional de Investiga-

    o Cientfica (1991), antecedida dum importante estudo daquele

    musiclogo, ornada dalgumas estampas e acompanhada dum disco

    compacto com a interpretao de treze sonatas, entre elas a nO25,

    pela cravista Cremilde Rosado Fernandes num instrumento portu-

    gus do sculo XV

    O estudo importante por, alm da matria de anlise do

    manuscrito, aproveitar ao professor Doderer para revelar o resul-

    tado das suas investigaes numa fonte ainda no.explorada neste

    aspecto (Vaticano, Arquivio Segreto. Secretaria di Stato-Portogal-

    10). A entrada de Scarlatti na capital pot1uguesa estava at agora

    envolta em dvidas e controvrsias. Um dos relatrios peridicos

    de Mons. Vicente Bicchi, nncio apostlico, consigna a data exata

    da chegada do compositor, por via terrestre: 29 de novembro de

    1719. Este , daqui em diante, um dado adquirido, que no se pode

    ignorar e pe cobro a mais conjeturas dos historiadores. A sua

    estada em Lisboa no foi porm contnua, o que alis se sabia, mas

    as duas interrupes efetuadas, ambas por deslocaes a Roma,

    esto delimitadas com mais certeza: uma deu-se de 1724 a 1725,

    localizando-se em 1

    de janeiro de 1726 o recomeo das atividades

    do msico na capela real; a outra, por motivo do seu casamento,

    decorreu entre 28 de janeiro do ano seguinte e 27 de dezembro de

    1729, para logo se seguir a viagem na comitiva de D. Maria

    Brbara, a caminho de Sevilha. O signatrio, que fez parte da

    comisso nacional das comemoraes scarIattianas, s tem que

    congratular-se com a eliminao dum escolho com que ele prprio

    se debateu.

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    As relaes de amizade, admirao e considerao recproca

    entre o napolitano e a sua discpula um dos episdios humanos

    e artsticos mais interessantes que se registram e exemplificam

    quanto uma personalidade espiritualmente influente pode alterar

    por completo o rumo da vida e da obra dum artista. A princesa de

    Bragana no era uma figura vulgar, quer moral quer musicalmen-

    te. Possua grande talento artstico e, a julgar pelo virtuosismo da

    escrita scarlattiana expresso nas tocate, que o nome equivalente

    dado s sonatas, ter chegado a igualar o mestre em dedos e estilo.

    No fora assim, e, a mais dessa referncia tcnica, no se com-

    preenderia, s pela conservao dum emprego, a dedicao dum

    msico de tal envergadura at o fim da vida.

    O aspecto mais saliente da mudana operada no trabalho

    compositivo de Scarlatti reside precisamente naquilo a que dever

    a celebridade: a sua produo cravstica. Podemos imaginar que,

    se se tivesse mantido em Roma, continuaria a ser, predominante-

    mente, um compositor de msica religiosa, de cantatas e de parti-

    turas cnicas, nas quais no logrou especial xito. Com o

    conhecimento de Maria Brbara, e atendendo constante curiosi-

    dade dela por variar de repertrio e, tambm, s menores possibi-

    lidades operacionais noutros gneros que as corte de Lisboa e

    Madrid lhe proporcionavam, a sua veia voltou-se quase exclusiva-

    mente para o teclado: a prova est em que a maior parte do

    espantoso conjunto de qase 600 sonatas que dele resta se pode

    situar entre 1719 e 1757, ou seja, desde a chegada a Lisboa at a

    morte. A sua qualidade de mestre de capela na corte portuguesa,

    onde tinha por substituto o nosso grande Carlos de Seixas (1704-

    1742), implicava que se votasse no s s necessidades do culto,

    mas igualmente s festas palacianas e, da, as cantatas e serenatas

    que comps para celebraes determinadas, que a correspondncia

    de Mons. Bicchi deixa entender, segundo Dederer, em maior

    nmero do que se supunha. Na corte madrilena, no tinha outras

    funes e curioso observar que o famoso Farinelli, que gozava

    do mximo poder nos meios cortesos e bem o conhecia, tendo-lhe

    valido financeiramente em situaes de apuro por dvidas de jogo,

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    nunca se lembrasse dele ao organizar as suas faustosas temporadas

    de pera italiana.

    O

    Libro di Tocate per Cenibalo

    do IPPC (FCR 194.1), onde

    se copiam 60 sonatas, por si mesmo um exemplar nico no

    esplio do compositor e at agora desconhecido; ademais da

    incluso da sonata indita, na tonalidade de l maior, preferida do

    autor, contm outras informaes que acrescentam o seu valor

    documental, no obstante as restantes peas da coletnea serem,

    com variantes em certos casos, as recenseadas noutras partes.

    Naturalmente que a ordem das sonatas aqui diferente da nume-

    rao de Kirkpatrick, mas, confrontando-as, nem sempre conferem

    em alguns elementos, oferecendo as de Lisboa indicaes de

    andamento que permitem corrigir ou completar as verses corren-

    tes. Por exemplo: o Non Presto de K. 118 Allegro em Lisboa,

    como igualmente o a K. 125, marcada Vivo. Acontece haver

    sonatas de Lisboa omissas quanto a andamento, o que se pode

    suprir, por sua vez, graas aos manuscritos de Veneza e Parma,

    como fez Kirkpatrick, mas o contrrio tambm se d e a K. 145,

    sem qualquer indicao, pode agora regular-se pela sua equivalen-

    te Lx. 36, rubricada Alf

    DOU

    Presto. Na maioria dos casos,

    coincidem porm. Relativamente a esta ltima sonata, de cuja

    autoria se duvidava, o manuscrito FCR 194.1 (IPPC) vem confir-

    mar a nica cpia em que aparecia at aqui (Cambridge, Fitzwil-

    liam Museum), como sendo na verdade de Scarlatti. Ressalta ainda

    da observao das peas do manuscrito de Lisboa, como sublinha

    G. Doderer, a estrutura de um s andamento bipartido, e, por vezes,

    o emparelhamento de sonatas que nas demais verses figuram

    independentes. Outros aspectos, como a repetio de compassos,

    duplicao de notas, etc., recomendam por parte do estudioso e do

    executante-intrprete uma consulta atenta desta edio fac-simila-

    da.

    Baseando-se na extenso dos instrumentos ibricos, o prof.

    Doderer entrega-se a seguir a uma anlise das partituras, com

    inteno de averiguar os perodos de criao. A maioria dos

    manuscritos de Veneza e Parma correspondentes s composies

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    do nosso livro est assinalada com os anos 1742 e 1749, muito

    depois da sada do msico de Lisboa, o que natural. Algumas

    podero ser mesmo posteriores. O mbito normal dos cravos

    portugueses na altura da estada do compositor em Portugal era de

    D-r .. ou

    D-rni

    (51 e 53 teclas) e isso caracterizaria

    cronologicamente as sonatas compostas em Lisboa. Absol utizando

    este mtodo, J. H. van der Meer havia proposto uma classificao

    da obra de Scarlatti por perodos organolgicos, que refletem a

    evoluo crescente do nmero de teclas. evidente que uma pea

    com extenso grande (que chega, passado 1750, ao mbito Sol 1

    a sol = 61 teclas) no pode ter sido concebida para instrumento

    mais reduzido. Mas o contrrio possvel: o fato de se ter

    disposio uma orquestra sinfnica no impede que se escreva para

    conjunto de cmara ... D. Maria Brbara possua em Madrid

    instrumentos de vrias dimenses, o que daria plena liberdade de

    inspirao ao seu compositor, e s a circunstncia de a maior parte

    das peas da coletnea do conde de Redondo ser de mbito

    alargado pode, com efeito, autorizar a concluso de que o manus-

    crito Lx. 194.1 no ter sido organizado antes de meados dos anos

    de setecentos , tanto mais que apenas uma palie das peas desse

    manuscrito poder ser executada em instrumentos portugueses

    disponveis no perodo lisboeta de Scarlatti. Quanto me parece,

    somente critrios estilsticos e morfolgicos permitiro destrinar

    o j velho problema da cronologia das sonatas.

    No que tange a Portugal, a excluso das de maior extenso

    circunscreve o campo de observao, no qual entram, por sua vez,

    as caractersticas especiais de construo do cravo e do piano de

    martelos portugueses, que os distinguem dos seus congneres

    doutros pases europeus (a este propsito, o prof. Doderer no

    deixa de apontar Lisboa como o palco de passagem do cravo para

    o pianoforte ).

    Devem-se a este musiclogo, e a alguns outros estrangeiros,

    como o citado van der Meer, as mais recentes investigaes sobre

    a natureza acstica e factual dos instrumentos portugueses, quer

    no respeitante ao temperamento musical quer s particularidades

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    Rev ista M sica, S o Pau lo , v.3 ,

    n.l05-117

    novo 1992

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    de fabrico, que condicionaram de modo peculiar a criao sonora

    nesta faixa da Pennsula Ibrica. Doderer enumera, em pormenor,

    essas particularidades, denunciativas duma tradicional e autno-

    ma maneira de construir instrumentos de tecla e corda no Portugal

    setecentista e de que temos por relevantes o tipo de madeiras

    nacionais utilizadas nas diversas partes, o corpo mais alongado por

    meio da duplicao do segmento vibratrio das cordas de oitava a

    oitava, a colocao de rguas e ilhargas, a forma do cavalete em

    S, a disposio de dois registros de 8 ps e o emprego do lato no

    encordoamento,

    De tudo isto, o que, no entanto, pode ter mais interesse para

    o artista, para o crtico, e afinal para o pblico, o seu resultado

    esttico, que deve ser tido em conta, modernamente, na concep-

    tualizao

    da linguagem de Scarlatti - aquela que ele havia em

    mente como conseqncia da sua converso auditiva aos novos

    meios. Essa sensao de autenticidade, que tanto domina as pre-

    ocupaes atuais de reconstituio erudita da msica antiga, -nos

    forneci da, com o volume em apreo, no registro sonoro, que o

    acompanha, dum instrumento bem representativo e genuno da arte

    portuguesa: o cravo de Joaquim Jos Antunes

    D-m i ),

    datado

    de Lisboa 1758 (IPPC, MIC 372). Tambm nisto se toma notado

    o mrito do Departamento de Musicologia, que tinha a seu cargo

    a valiosa coleo nacional de instrumentos musicais antigos, ao

    promover em 1986 o seu- restauro, reconhecido o alcance da

    proposta da conceituada Casa Neupert, de Bamberga (RFA), para,

    com todas as garantias, o fazer a troco de autorizao para a sua

    cpia comercial. Tal acordo, susceptvel de proporcionar a difuso

    no Mundo dum produto tpico da cultura portuguesa, possibilita

    hoje a todos os interessados a posse duma rplica dum to famoso

    cravo dessa origem. O mais impressionante na audio que o disco

    nos oferece, no sem a conscincia de que a recebemos filtrada

    pelo requinte das interpretaes de Cremilde Rosado Fernandes,

    artista estilstica e virtuosisticamente afeioada ao gnero e, bem

    assim, ao autor, a comoo de se estar a ouvir velhas sonoridades

    e captar, dum mundo desaparecido e distante, graas conjugao

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    Cravo por+uqus de Joaquim Jos Antunes (Lisboa,1758)

    Gravura do estudo de G.Doderer in

    L i b n o d i T o c a t e

    ~en

    C e . m b a l o . . ,

    de DornenicoScar1atti (Lisboa,

    INIe,

    1991)

  • 7/23/2019 D.scarlatti e a Cultura Portuguesa

    13/13

    Revista Msica So Paulo v.3 n.105117 novo 1992 117

    do esprito scarlattiano e da alma do instrumento, essa i magem

    sonora - a que se refere Doderer - que marca de forma pastosa o

    espectro meldico, num conjunto de linhas opulentas e aromti-

    cas ,

    Humberto d vila Musiclogo e investigador. Fundador da

    Juventude Musical Portuguesa. Antigo diretor do Departamento

    de Musicologia do Instituto Portugus do Patrimnio Cultural.

    Presidente da Assembleia Geral do Conselho Portugus da

    Msica.