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30 A MORTE E OS RITOS DA MORTE NA RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA Fr. Amaral Bernardo Amaral, OFM É nos pedido para falar de “Ritual dos Enterros na Religião Tradicional Africana. O luto e seus ritos na Religião Tradicional Africana” no quadro dos estudos desta Semana Teológica submetida ao tema geral: “A morte: aspectos pastorais”. É para mim uma alegria especial participar pela segunda vez consecutiva, com uma contribuição específica neste trabalho de investigação e reflexão teológica e pastoral, que já conta com uma longa tradição. Antes de mais nada, porém, é pertinente perguntar se é possível falar-se do “Ritual dos Enterros na Religião Tradicional Africana?” Será que existe um Ritual de enterros unificado para a Religião T. africana? Será que se pode falar da Religião Tradicional Africana como um sistema coerente e unificado, com um ordenamento litúrgico e ritual comum para toda a África? Se existe, quais são os valores fundamentais que lhe dão consistência e unidade? Qual é o sentido global que lhe serve de fonte de inspiração? Qual é o pensamento filosófico e teológico que está por trás de cada rito? Estas são algumas das muitas perguntas que se coloca quem queira iniciar a aventura da reflexão sobre a Religião Tradicional Africana. A religiosidade é, sem dúvida, um fenómeno com que nos deparamos a cada passo e em todos os aspectos da vida dos Bantu em particular e dos povos Africanos em geral. A religião penetra tão intimamente em todas as dimensões da existência e da vida do Africano que se torna muito difícil perceber os limites que separam o sagrado do secular; o religioso do profano; o espiritual do material, porque o Africano tem uma visão unitária e global da realidade, do universo e da existência. Há uma única realidade que é, ao mesmo tempo, espiritual e material, na qual todas as

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A MORTE E OS RITOS DA MORTE NA RELIGIÃOTRADICIONAL AFRICANA

Fr. Amaral Bernardo Amaral, OFM

É nos pedido para falar de “Ritual dos Enterros naReligião Tradicional Africana. O luto e seus ritos na ReligiãoTradicional Africana” no quadro dos estudos desta SemanaTeológica submetida ao tema geral: “A morte: aspectospastorais”. É para mim uma alegria especial participar pelasegunda vez consecutiva, com uma contribuição específica nestetrabalho de investigação e reflexão teológica e pastoral, que jáconta com uma longa tradição.

Antes de mais nada, porém, é pertinente perguntar se épossível falar-se do “Ritual dos Enterros na Religião TradicionalAfricana?” Será que existe um Ritual de enterros unificado para aReligião T. africana? Será que se pode falar da ReligiãoTradicional Africana como um sistema coerente e unificado, comum ordenamento litúrgico e ritual comum para toda a África? Seexiste, quais são os valores fundamentais que lhe dão consistênciae unidade? Qual é o sentido global que lhe serve de fonte deinspiração? Qual é o pensamento filosófico e teológico que estápor trás de cada rito? Estas são algumas das muitas perguntas quese coloca quem queira iniciar a aventura da reflexão sobre aReligião Tradicional Africana.

A religiosidade é, sem dúvida, um fenómeno com que nosdeparamos a cada passo e em todos os aspectos da vida dos Bantuem particular e dos povos Africanos em geral. A religião penetratão intimamente em todas as dimensões da existência e da vida doAfricano que se torna muito difícil perceber os limites queseparam o sagrado do secular; o religioso do profano; o espiritualdo material, porque o Africano tem uma visão unitária e global darealidade, do universo e da existência. Há uma única realidade queé, ao mesmo tempo, espiritual e material, na qual todas as

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categorias de seres: animais, plantas, seres inanimados, osespíritos e os fenómenos naturais estão intimamente unidos poruma ordem sagrada que os mantém em solidariedade,interdependência e harmonia universal, tendo a pessoa humanacomo centro vital e Deus como a Fonte única e controlador dessaharmonia universal. Portanto, na mundividência africana tudo éimerso e informado de um clima religioso.

O Africano é um ser naturalmente religioso, envolvidonum mundo de participação religiosa, que começa antes mesmo doseu nascimento e se prolonga para além da sua morte. Onde estáum Bantu ali está a sua religião tradicional. Ele carrega-a consigopara toda a parte: para a machamba, para a sala de aulas ou para oexame da Universidade; para o campo de jogos e para a cervejaria;para o gabinete do trabalho e para a Assembleia da República etambém para a vida religiosa consagrada e para o ministériosacerdotal. Esta religiosidade difusa manifesta-se e se exprimeatravés de crenças, gestos, símbolos, ritos, cerimónias,celebrações, atitudes e práticas tradicionais1.

A Religião Tradicional Africana é ligada à comunidadeclânica. A participação nas práticas e rituais tradicionais exprime ereforça a consciência de pertença ao clã e ao património histórico-cultural do seu povo.

Devido a esta íntima ligação com a experiênciacomunitária do clã, a Religião Tradicional Africana apresenta-secomo uma pluralidade dinâmica de tradições religiosas, resultadoda imensa riqueza e diversidade de povos e culturas que partilhamo seio fecundo da Mãe África.

Existe, portanto, a Religião Tradicional Africana, mas nãocomo um sistema teológico-dogmático, unificado com um códigodoutrinal, moral e litúrgico-cultural que obrigue todos os povos daÁfrica. Há uma unidade de fundo na concepção antropológica e

1 Cf. J. MBITI, African Religions and Philosophy, Nairobi (1967), 1-2

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teológica da realidade, mas também, uma extrema diversidade deexpressões e práticas.

No vasto horizonte da RTA encontramos vários e, muitasvezes, complicados ritos e cerimónias ligadas à morte, enterros,funerais, purificação, herança, parentais, mundo dos mortos, visitade defuntos a familiares, sobrevivência da alma, etc2.

Seria pretensão demais imaginar que possa tratarexaustivamente, neste espaço, tudo o que se refere aos ritos ecerimónias da morte em todos os quadrantes da RTA. Para situar efocalizar melhor o estudo, basear-me-ei no trabalho de pesquisapessoalmente realizado numa região delimitada de Moçambique,concretamente, entre as etnias Tonga, Tshwa e Txopi deInhambane que têm muitos elementos comuns com os Tsonga-Changana e os Ronga das Províncias de Gaza e Maputo. Leituras eoutras investigações ajudarão a completar a informação sobreoutras etnias do País e do Continente Africano.

O nosso trabalho desenvolve-se, seguindo o esquemaseguinte:

I- A concepção de pessoa e de existência humana naReligião Tradicional Africana.

II- A concepção de morte, como a grande passagem paraa vida.

III- Os ritos da morte como celebração da vida.IV- Os ritos de luto e de purificação como celebração da

regeneraçãoV- Conclusão: Um desafio à pastoral.

2 cf. J. MBITI, African Religions and philosophy, Nairobi (1969)p.149

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I- A concepção de pessoa e de existência humana naReligião Tradicional Africana

Para melhor compreender os ritos da morte na ReligiãoTradicional Africana, temos que conhecer as linhas mestras dopensamento antropológico; a concepção que se tem de pessoahumana, sua origem e destino, seu lugar e papel no conjunto douniverso e o seu destino último; temos de saber também qual é osentido e significado religioso que se dá à morte e que solução asabedoria tradicional africana dá ao mistério morte e seus efeitosno equilíbrio da existência humana e no horizonte das suasesperanças.

A pessoa humana como centro consciente da harmoniauniversalNo sistema africano de pensamento e de crenças, a pessoa

humana “muthu” ocupa o centro de toda a realidade. Asprincipais categorias de seres que povoam o universo ontológicodo Africano: Deus, os espíritos, os homens, os fenómenos danatureza, todos os seres vivos e não-vivos, visíveis e invisíveis sãovistos em função da sua relação com a pessoa humana.

Deus é concebido como a última explicação da origem esustentação da pessoa humana e de tudo o que constitui o “Ecos”da pessoa humana. Os espíritos são vistos como o destino finalpara o qual todo o ser humano se orienta; os animais, as plantas, osseres inanimados, os fenómenos naturais formam o ambiente vitalda pessoa humana. Assim, todas as categorias de seres existentesestão intimamente integradas por uma solidariedade einterdependência que não se podem romper. É esta a cosmologiaantropocêntrica que caracteriza o pensamento africano.

É clara também a crença na existência de uma força, umpoder, uma energia vital que penetra o universo inteiro e garante o

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equilíbrio e a harmonia entre os diferentes níveis da existência. Apessoa humana como tomada de consciência, constitui o centro e oponto de equilíbrio desta harmonia universal, cuja fonte econtrolador último é Deus.3

Em consequência desta solidariedade, tudo o que acontecena pessoa humana afecta o universo. Deste equilíbrio e harmoniauniversal depende tudo: o tenor de vida, a fecundidade, afelicidade, a prosperidade, a paz, o bem-estar, a saúde, os bens, atranquilidade e a segurança da pessoa humana como indivíduo ecomo comunidade-família.

A vida é também concebida como uma energia universalparticipada, cuja vibração se repercute no centro do equilíbrio queé a pessoa humana.

II- Concepção e significado de morte na ReligiãoTradicional Africana

Morte, um mistério incompreensívelA morte, situada entre o mundo dos seres humanos e o

mundo dos espíritos, entre o visível e o invisível4, foi sempre econtinua a ser um mistério incompreensível para o africano. Osafricanos têm tentado domesticar a morte, inventando formas defamiliarizar-se com ela, ou de aceitá-la como integrando o ritmonatural da vida, como uma realidade da qual todo o ser vivo nãopode escapar. Mas quando se passa para o plano pessoal, elapermanece sempre um paradoxo sem explicação. Na verdade elaaparece como frustração daquele desejo de imortalidade que pulsateimosamente no mais íntimo da pessoa humana. Ela traz consigoo signo de desgraça, de dor e de fracasso sem apelação.

3 cf. Idem, p.164 cf. J. MBITI, African Religion and Philosophy, 149

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Na batalha da morte cada qual encontra-secompletamente só, sem poder contar com a ajuda de ninguém. Éum ajuste de contas absolutamente pessoal, no qual ninguém podeinterferir nem intervir. As pessoas mais chegadas, os filhos, ocônjuge, os amigos mais íntimos, os familiares de quem se poderiaesperar um gesto de solidariedade, de comunhão e ajuda, limitam-se simplesmente a assistir, impotentes o desenrolar do dramaderradeiro da agonia, esperando que se consumam os factos. Ésignificativo o quadro daquele moribundo que agarravadesesperadamente o braço de seu grande amigo, a quem ele tinhasalvo a vida em várias ocasiões, e gritava com o olhar suplicante:“Amigo socorro!… é agora a tua vez de fazeres também algumacoisa por mim…ajuda-me!…” E o amigo limitava-se a pousar-lhea mão na face e chorar.

Morte, uma ruptura radical do equilíbrio universalNo seu trabalho sobre “a terra africana e suas religiões”,

Thomas e Luneau encontraram este conceito de morte comoruptura e separação. Eles escreveram: “A morte poder-se-á definircomo separação (como ruptura do equilíbrio) dos elementosconstitutivos seguida de uma destruição imediata ou progressiva,total ou parcial, de certos elementos, enquanto os outros sãopromovidos a um outro destino. Apresenta-se como a ‘destruiçãodo todo’ (a pessoa), da sua unidade e harmonia, mas nunca é“destruição de tudo”5

Morte, separação mas não aniquilamento da pessoaDe várias expressões e termos usados pelos bantu, que são

comuns em quase todos os outros povos em África, parasignificar que alguém morreu, podemos concluir claramente que oconceito dominante que se tem da morte é o de partida e separaçãoda pessoa que morre, deixando para trás as pessoas que até ali

5V. THOMAS. – R. LUNEAU, La terre africaine et ses religions,Larousse, Paris (1975), p.246

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mantinham um relacionamento físico com ela. Parte da pessoa ficairrecuperavelmente destruída, o corpo, e toda a rede de relaçõesligadas à corporizasse. Mas a pessoa continua viva e entra numnovo tipo de relações e noutra dimensão de existência, a dimensãoespiritual. Com a morte e separação física não acabou tudo. Adimensão interior e invisível da pessoa, o princípio vital quefundamenta e informa toda a sua personalidade continua viva eprossegue a sua trajectória até atingir a sua plenitude no descansodos espíritos ancestrais.

Morte como nascimento para a nova existênciaespiritualA morte é também concebida como mutação, ou

transformação radical do modo de ser e de estar presente dapessoa, como bem o afirma P. Altuna: “A morte seguida dos ‘ritosde trânsito’, ocasiona uma mutação ôntica e social operada pelosritos fúnebres (óbito) realizados pela comunidade dos vivos e peloreconhecimento e aceitação da comunidade dos antepassados.”6

Esta opinião é confirmada por um ancião Tonga, BernardoMahubane de 82 anos que afirma ser a morte apenas uma etapa dolongo processo de vida que se desenvolve segundo o ritmo binárionascimento –morte –nascimento -morte. Segundo ele, o processoda vida da pessoa começou no seio de Deus, e chegada a sua hora,morreu para nascer no seio do pai (progenitor), em seguida morreuali para nascer no seio materno, onde morreu para nascer no seioda Mãe Terra, agora espera chegar a sua hora de morrer pararenascer no outro mundo onde o esperam os seus antepassados.Segundo este sábio ancião, cada uma destas etapas é caracterizadapor uma ruptura radical em relação a tudo o que se passou nasfases anteriores, uma identificação profunda com a nova situação euma ignorância e medo em relação à fase seguinte. Esta ignorância

6 P. R. ALTUNA, Cultura Tradicional Banto, Luanda (1985), 440

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é a principal responsável pela angústia e sofrimento queacompanha sempre a morte como passagem compulsória de ummundo para o outro. Na verdade, em nenhuma das passagens apessoa é voluntária, pelo contrário, resiste até ao último instante etem de ser violentamente arrancada (pela morte) e projectada paraa fase seguinte pelo nascimento.

Morte, um processo gradual e progressivo de passagemOlhando com atenção para o calendário de ritos e

celebrações relacionados com a morte na Religião TradicionalAfricana, somos levados a pensar que a morte é concebida nãocomo um acontecimento que se desencadeia e se consuma de umasó vez. A morte não se limita ao momento em que param os sinaise funções biológicos, como a respiração e a circulação.

Assim como o nascimento, a morte é entendida como umlongo processo que inicia antes da paragem biológica e seprolonga depois do enterro e do desaparecimento de sinaissensíveis.

Depois da morte física, o desaparecimento do corpoengolido pela terra, a cessação do relacionamento e comunicaçãodirecta a nível dos sentidos marcam o distanciamento irreversívelentre o morto e os vivos. O cântico normalmente entoado comemoção nos enterros, “o nosso ente querido partiu para junto dosseus, nunca mais o veremos com os nossos olhos” revelaclaramente a consciência que se tem do fim irreversível de umarealidade a que as pessoas estavam acostumadas.

Na verdade, porém, todo o conjunto de cerimónias e ritosque se seguem ao enterro, revelam que a presença da pessoafalecida é ainda muito fortemente percebida no coração e namemória da família, dos amigos e daqueles que tiveram umrelacionamento com ela. Ela aparece em sonhos, em imaginação eé reconhecida ainda pelo nome, pela voz; como que ainda a vêem

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na cadeira que costumava ocupar, nos utensílios e roupas quecostumava usar, nas coisas que fazia, nas palavras e nas instruçõesque deixou. Passa a ocupar o primeiro plano na memória daspessoas e o centro das conversas na povoação. Talvez se prestemais atenção agora às suas palavras aos seus actos e pormenoresde sua vida do que quando estava fisicamente no meio deles.

Está realmente morto, mas está bem vivo. John Mbitichama-o de “morto – vivente”, pessoa que morreu fisicamente,mas continua viva na memória daqueles que a conheceram.Portanto, enquanto houver alguém que tenha conhecidopessoalmente o morto, que ainda se lembre dele e o reconhecepelo nome, o morto permanece no estado de morto-vivente, ou de“imortalidade pessoal”. Somente com a morte deste último que opodia nomear, é que se encerra a memória vivente, e o falecido écompletamente “removido do estado de imortalidade pessoal.”Neste momento dissolvem-se no esquecimento o nome e apersonalidade humana. O morto removido da “imortalidadepessoal”, mergulha na “imortalidade colectiva”, na comunhão dosespíritos. Só então ele morre verdadeiramente. Com a dissoluçãoda sua humanidade pessoal ele alcança a sua plena espiritualidade.A alma atinge finalmente o seu destino último: transformar-se emespírito puro7.

Causas da morte:Para o africano em geral e o bantu em particular, a morte

nunca é algo natural. A pessoa humana nasceu para viver. Não hádoenças naturais nem morte natural. Tudo o que diminui atonalidade da participação vital (a doença) ou interrompe a vida (amorte) é um acidente causado por um agente estranho.

Acredita-se que a primeira grande causa da morte são os“feiticeiros”, pessoas dotadas de poderes especiais, por vezes

7 cf. J. MBITI, African religions …. pp.,162-163

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inconscientes, capazes de manipular mortiferamente a interacçãovital e perturbar o equilíbrio e a harmonia universal. O feiticeiro éa personificação do mal que actua na calada das trevas, “fulmina avítima e permanece oculto.” Somente o “homem de olharpenetrante” que é capaz de penetrar e desvendar os mistériosocultos, lendo os ossos (dzisolo), ou entrando em transe, poderevelar as verdadeiras causas da morte e as medidas a seremtomadas. Por isso, durante a doença e depois da morte, osfamiliares consultam o “homem de olhar penetrante” paradescobrir o feiticeiro e revelar as verdadeiras causas da doença eda morte.

São também apontadas como causas da morte ofensas emaldade praticadas pela própria pessoa contra outras; dívidas nãopagas e a revolta dos antepassados quando não se observam asnormas e as tradições. É importante saber que para os africanos, osantepassados não matam os seus familiares, mas podem retirar-lhes a sua protecção e deixá-los ao saque dos feiticeiros.8

Classificação da morte:O africano bantu destingue a boa morte e a morte infeliz.

É boa e feliz morte a que se dá serenamente junto à família, naprópria aldeia rodeado dos filhos, familiares e amigos. Tem acerteza que será honrado com ritos e cerimónias funeraisrealizados fielmente de acordo com as tradições dos seusantepassados. Considera-se morte infeliz e desgraçada, quandoalguém morre sem deixar descendência, porque ninguém ficará alembrá-lo, e será privado da imortalidade pessoal; os que morremfora da terra e da própria família, porque são privados dos ritos ecerimónias funerais segundo as tradições dos seus antepassados;os que tiveram mortes anormais (enforcamento, suicídio,devorados por animais, fulminados por raios), ou por doençastidas como especiais (leprosos, ascite, etc.). Neste tipo de mortes

8 ..P. R. ALTUNA, Cultura Tradicional Banto, Luanda (1985), pp. 141-143)

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anormais, a comunidade familiar (clã) entra em estado deimpureza sagrada. Os ritos fúnebres normais podem sersuprimidos, ou profundamente alterados de modo a adaptar-se àscerimónias de purificação tendentes a evitar que a desgraça serepita na comunidade.

Morte como iniciação suprema para a nova iaespiritualDentro do modo de pensar bantu, revelado por este ancião,

a morte aparece como uma porta que se abre para o triunfo da vidaque brotou no nascimento e deve atingir a sua plenitude no estadode antepassado.

Pela morte, o banto sabe que nasce de novo, vai existirdoutra forma. Esta mudança exige “uma iniciação, um rito depassagem.” De facto, a morte, na medida em que implica prova ecaminhada, purificação e sublimação, deve ser considerada comouma iniciação”9.

De acordo com Eliade: “A morte vem a ser consideradacomo a suprema iniciação, como o começo de uma novaexistência espiritual. Melhor ainda, geração, morte e regeneração(re-nascimento) concebem-se como vários momentos dum mesmomistério….”10

III- Os ritos de morte, celebração da vida

Um aspecto muito importante na Religião TradicionalAfricana consiste na crença de que, para o morto atingir o seu

9 V. THOMAS – B. LUNEAU, Les religions de l’Afrique Noir, Paris(1969), p.214

10 M. ELIADE, Lo sagrado y lo profano, Madrid (1967) pp. 145, 190-191 citado por Raul Ruiz de Asúa ALTUNA em Cultura TradicionalBantu, p.440:

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destino feliz e ser acolhido na comunhão dos antepassados,depende muito da seriedade e cuidado com que os vivosrealizarem os rituais e as honras fúnebres segundo a tradição doclã.

A ideia de fundo que fundamenta a necessidade dos ritosde morte é inspirada pelo próprio conceito que se tem da morte.Esta é vista como um acontecimento que abala todo o equilíbrio daparticipação vital e introduz uma desordem e um caos em todo osistema. É como se uma potente bomba explodisse e desintegrasseo universo e tudo ficasse obscurecido e descontrolado. Énecessário restaurar o equilíbrio abalado, recriando miticamente omundo através de ritos apropriados.

Uma reflexão sobre a celebração dos rituais, as atitudes ecomportamentos das pessoas e sobretudo as palavras queacompanham essas celebrações, permite concluir que o bantoespera destes ritos algumas funções importantes: a) significar egarantir a sobrevivência do defunto pela sua apresentação ritualaos antepassados e a sua aceitação e integração na comunidadedestes; b) garantir o sossego e a paz na comunidade dos vivospela purificação; c) reforçar a consciência da unidade esolidariedade na origem, no presente e no destino comum dacomunidade – clã11; d) celebrar na presença do defunto e anteciparritualmente a vivência comunitária no mundo invisível.

Função e importância dos ritos fúnebresNo universo ritual da Religião Tradicional Africana, os

ritos e cerimónias fúnebres, juntamente com os ritos da puberdade,

11 cf. A. B. AMARAL, Celebração da Mhamba entre os Vatonga,Maputo (1996), p. 1: “a celebração das parentais aparece como umaocasião privilegiada do reencontro da grande família clânica: os vivos eos mortos, para celebrarem a sua unidade como família; paracomemorarem a sua origem e passado comum; para renovarem as suasesperanças.”

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são os mais bem observados e solenizados. São uma recapitulação,uma celebração e revivência mítica das origens, dos ideais, dahistória, da solidariedade e das esperanças do clã. Quanto possível,todos os membros da família ampla devem estar presentes12.

Os ritos de morte, na verdade constituem a mais excelentecelebração do culto à vida. A realização fiel destes ritos assegura apassagem do defunto deste mundo para a vida plena na comunhãocom os antepassados. Os ritos fúnebres são a ponte de passagemobrigatória entre o mundo dos que vivem nesta condição corporale o mundo dos antepassados, onde é garantida a sobrevivênciafeliz e a plena realização no estado de antepassado.

O Africano acredita que a não realização destes ritoscondenaria o defunto à frustração total. Não seria acolhido pelosantepassados, transformar-se-ia em “Jini” ou “xipoko” ,“fantasma”, isto é, em alma errante a vaguear no mundo semdestino nem paz. Aquele que deveria ser um antepassado defensorda família, acabaria se tornando num espírito revoltado evingativo, aterrorizando a aldeia e as famílias do clã.

Sem os ritos fúnebres não há sobrevivência feliz para odefunto. A ideia central das orações que acompanham e explicitamestes ritos, acentua a apresentação do defunto aos antepassados e opedido para que eles acolham o novo membro da família e ointegrem na sua comunidade. Ele é portador de notícias frescasdos seus familiares vivos e conhecedor das suas necessidades eesperanças.

12 P. R. ALTUNA, Cultura Tradicional Banto, p. 445: “Nos ritosfúnebres, nos quais sem desculpas devem participar todos os familiares eaos quais se junta a comunidade, os bantu patenteiam as suas raízesculturais, os fundamentos filosóficos, dogmas religiosos e celebram comsolenidade o mistério da vida participada”

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O mais importante em todo o ritual de morte é expressar asolidariedade da família ampla, e a celebração comunitária da féna imortalidade. Isto constitui o culto medular da RTA. Comobem observa Altuna “não há outras manifestações religiosas maisnotórias além da vivência mística do amor comunitário celebradocom o ágape.”13

Quanto à importância que estes ritos têm para os bantutradicionais, testemunham-no claramente os sacrifícios que aspessoas consentem para percorrer enormes distâncias, mesmo comrisco da própria vida, em plena guerra, para irem à aldeia deorigem realizar as cerimónias. Muitas vezes estas cerimónias sãomuito exigentes e caras e levam muito tempo. Mas as pessoasestão dispostas a tudo fazer para assegurar que os rituais sejamfeitos como manda a tradição.

Ritos fundamentais imediatamente antes e depois damorte: Os últimos momentos do moribundoComo dissemos, o processo da morte começou bem antes

da cessação das funções biológicas. Intensas movimentaçõesfamiliares começam já durante a doença, principalmente quandose nota que a pessoa está gravemente doente, e exige cuidados etratamento especiais. Enviam-se recados a solicitar urgentemente apresença das pessoas mais chegadas, segundo a ordem deprecedência: pais, avós, tios, irmãos, sogros, etc.

Durante a gravidade da doença, sobretudo tratando-se depessoa que ocupa posição proeminente na hierarquia do clã,declara-se a abstinência sexual na povoação, porque o contactocom “pessoas quentes” pode precipitar a morte do doente. O lugaronde se encontra o moribundo é assinalado com uma marca quepode ser duas estacas cruzadas no vão da entrada. Pessoas quevêm de fora da povoação serão delicadamente perguntadas quanto

13 P. R. ALTUNA, Cultura Tradicional Banto, p. 446

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a esta norma, e um tempo será dado para arrefecerem aqueles quenão a observaram. Na região de Ricathla, Província de Maputo, ébem conhecida a lei do “mathlulana” que interdita duramente aaproximação de um homem que andou com a mesma mulher que omoribundo frequentava”.14

A reunião dos familiares mais chegados, irmãos, filhosjunto ao moribundo para as útlimas recomendações é um momentoimportante que terá influência no ritmo das cerimónias fúnebres.Os responsáveis do cerimonial farão o máximo para respeitar avontade expressa do moribundo quanto ao modo de realizar ofuneral. Em algumas etnias, como entre os Ndebele, nestesderradeiros momentos, sacrifica-se um animal, conhecido como“animal dos antepassados”. O moribundo é assim preparado para agrande viagem com o presente que ele se há-de apresentar aosantepassados, quando lá chegar.15

Ainda antes de se apagar completamente, as pessoas queestão a assisti-lo, começam a preparar o corpo. Endireitam osmembros para dispô-lo na posição em que o cadáver deve serenterrado segundo as normas do clã, com o medo que o corpoenrijeça e se veja forçado a quebrá-lo. Dependendo das tribos etambém da função social da pessoa, o corpo poderia ser dobradosobre si mesmo como um feto, com os joelhos sobre o ventre e asmãos junto ao queixo16; ou em posição de sentado de cócoras,como o homem costuma sentar-se na sua palhota; ou endireitadoem forma longitudinal, com os braços ao longo do corpo, as mãosendireitadas para evitar que morra de punhos fechados, porque

14 Cf. H. JUNOD, Usos e costumes dos Bantos, LourençoMarques(1944), pp.140-141.15 Cf. J. MBITI, African religions… p.149-15016 Aqui gostaria de chamar a atenção do leitor para o pensamento doancião Bernardo Mahubane, que considera a morte como um novonascimento. Isso reforça a “teoria embrionária” adoptada por algunsetnógrafos. Cf. H. JUNOD, Usos e Costumes….p142.

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isso traria conflitos e brigas entre os membros da família. Oschefes de terras eram sentados sobre o “trono” segurando o bastãoda chefia na mão. Em algumas tribos, se este momento de lutaentre a vida e a morte se prolongava para além do consideradonormal, era imolado o chamado “animal dos antepassados”. Assimsentado em lugar de presidência, com os seus irmãos (os anciãosdo clã) e pelo menos o seu filho mais velho, à sua volta, tomam aúltima refeição com ele.17

Imediatamente após a morteQuando o moribundo expira, fecham-lhe os olhos e lhe

retiram a roupa que trazia, cobrindo-o depois com uma capulanaou lençol. Um ancião dos que estavam assistindo o moribundo, saipara fora, onde os familiares esperam. Com gestos ou sinaisapropriados anuncia o passamento. Uma anciã emite em voz altaum grito de dor e consternação, dando, assim a abertura oficial daslamentações. Imediatamente começam a retirar todas as mobílias ecoisas para fora da casa. Desde este momento começa o períodode luto pesado. As mulheres tomam conta do interior da casa,acompanhando a viúva, em estado de isolamento quase total. Alificarão até ao fim do luto pesado, no sétimo dia.

Entretanto, algumas pessoas idosas, homens ou mulheresconforme a pessoa morta, se era de sexo masculino ou feminino,são indicadas para preparar o corpo e o lugar onde vai ser deitadoaté à hora do enterro. Enquanto isso, mensageiros são enviados acomunicar a morte a todos os familiares de perto e de longe.

Reúne-se o conselho do clã para decidir todos ospormenores sobre o calendário e a natureza das cerimóniasfúnebres. O fogo que ardia na palhota do falecido é levado parafora e conservado aceso até ao dia da dispersão dos familiares,quando o curandeiro o extinguirá, usando água e areia. Este é ofogo da comunhão familiar. Durante a semana que se segue ao

17 Cf. J. MBITI, African religions and traditions, p.150.

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enterro todos deverão servir-se desse fogo para acender asfogueiras onde as pessoas se aquecem durante o funeral. O anciãotem a sua esteira junto a esse fogo e daí não se afasta até ao fimdas cerimónias. Dentro da casa, agora ocupada pelas senhoras, ofogo é substituído por um candeeiro aceso que é colocado emlugar de destaque mas com a chama baixa.

Rito de pedido de sepultura e a forma e orientação dacovaQuanto ao procedimento e destino que se dá ao corpo do

morto, sabemos que se podem encontrar formas muito variadas emdiferentes povos e etnias, tais como: abandonar o corpo na florestapara ser comido pelos animais; deixar o corpo numa palhotadurante meses e anos até decompor-se e depois enterrar os ossos;ou colocá-lo no rio; ou cortar-lhe um membro para ser conservadona família como lembrança e lembrete de que a pessoa está viva epresente no meio dos seus18. Mas o procedimento mais comum detratar o corpo morto na RTA é enterrá-lo ou depositá-lo no seio damãe terra. Podem variar as formas de enterrar, os lugares e outrospormenores, como por exemplo: enterrar na casa (palhota) onde odefunto viveu os últimos dias; ou na palhota da primeira mulher,isto é da mulher do lobolo; no centro da povoação; fora ou atrás dapovoação; no lugar onde nasceu, etc. Na cultura das etnias que nósestudamos, o enterro é feito debaixo de uma árvore em cemitériofamiliar dentro da propriedade da família.

Antes deve fazer-se o rito de pedir a sepultura aosantepassados. Sai o pai do clã ou uma tia para o local onde se vaiabrir a cova, levando consigo sementes várias, acompanhados poralguns familiares e pelos coveiros. No lugar indicado, ajoelham-separa uma oração dirigida aos antepassados. O ancião, pede apermissão para abrir no local a sepultura para o seu morto etambém que acolham bem o novo membro da família. Segundo a

18 Cf. J. MBITI, African religions and philosophy, p. 158

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explicação do velho Mahubana, parece que este rito e a oração queo acompanha podem ter dois destinatários distintos. Em primeirolugar o pedido é dirigido aos antepassados do clã reinante naquelaterra para pedir um lugar para sepultar o seu morto e, depois,dirige-se aos antepassados do clã do defunto para o acolherem.Acompanha as suas palavras com o gesto de lançar as sementes,no espaço da cova a ser aberta. Feito isto, marca com a enxada asextremidades da cova e entrega os trabalhos aos coveiros.

A forma e a orientação da cova também depende dasetnias, dos clãs e das tradições familiares e pode variar tambémcom as funções sociais e mágico-religiosas que o indivíduoexercia antes de morrer. A forma normal da cova na região denosso estudo é rectangular com cerca de 1,50 m de profundidade.Em muitas etnias do Centro e do Sul do Pais, no fundo da cova eraescavada uma extensão lateral, onde o corpo era deitado, como sefosse um quarto separado do resto da cova por ramos e folhas.Agora, com a vulgarização do uso de caixão, vai desaparecendoeste tipo de sepultura. Mas em outras etnias da África podemosencontrar outras formas diferentes, como: covas redondas,enormes panelas de barro enterradas, etc. Os chefes de algumasetnias são enterrados no lodo das margens do rio19.

Normalmente, a orientação da cova corresponde aosentido do movimento da migração do clã, que é geralmentemencionado na narração da saga. A cabeça do morto deve estarorientada para a direcção da terra de origem dos antepassadosfundadores do clã. Os nyasengo, por exemplo, na narração da suasaga, dizem ser originários do norte, “gaya gwathu khu Wuronga”que se pode traduzir: “a nossa Casa é o Norte”. Em virtude dissoas suas sepulturas são orientadas no sentido Sul Norte, a faceligeiramente inclinada para a esquerda, isto é a olhar para o ladodonde nasce o sol. Desta maneira, os africanos expressam

19 cf. J. MBITI, African religions and philosophy, p. 158

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simbolicamente a profunda convicção de que a morte é um retornoàs origens. Na preparação e no enterro do corpo todos os cuidadossão feitos para facilitar ao morto este regresso às suas origenstradicionais, como veremos ao falarmos das coisas queacompanham o corpo na sepultura.

Despedida da casa e procissão para o cemitérioAntes do enterro, o corpo deve despedir-se da casa que lhe

deu abrigo e protecção durante a sua vida aqui na terra. Esta casafoi testemunha de acontecimentos importantes da sua vida eguarda os seus segredos pessoais. É como se fizesse parte de simesmo. O corpo é retirado pela porta principal e levado à volta dacasa. Depois é colocado à entrada da porta para as últimascerimónias de despedida dos familiares e amigos. Entre osVatxopi e os Vatonga está desaparecendo o rito de dar volta àcasa.

Depois segue a procissão para o lugar da sepultura,obedecendo uma certa ordem. À frente vai o ancião com ocandeeiro aceso, aquele candeeiro que foi aceso quando se apagoua chama da vida no corpo do defunto e que se conservou aceso atéà hora do enterro. O candeeiro aceso durante todo este tempo ésinal da presença visível do defunto. Com o sepultamento, apaga-se definitivamente a visão directa do morto aos nossos olhos.Nunca mais o veremos fisicamente. Por isso o candeeiro éapagado nesse momento. Em algumas etnias, como entre osVatonga, apaga-se o candeeiro logo que a urna sai da casa para ocemitério.

Segundo a tradição, as mulheres ainda férteis e sobretudoas mulheres grávidas e as que amamentam não devem ver ocadáver. Quando a urna passa, elas devem afastar-se e, não sendopossível evitar, devem amarrar um nó na ponta da capulana.

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Junto à cova, o enterro propriamente dito e as coisas queentram na covaA esteira sobre a qual foi deitado o corpo na casa do

defunto foi trazida ao cemitério. É estendida junto à sepultura parase colocar a urna antes das últimas encomendações20. Um parente,geralmente, o genro mais velho da casa dá ordem para se procederao enterramento. Quatro homens entram na cova nos quatro cantosdesta, para receberem o corpo e colocá-lo conforme manda atradição dos antepassados. A esteira é cortada ao meio e com asduas metades cobre-se a urna na cova. Dois juncos da esteira sãoretirados para fora, para significar o cônjuge e os familiares quecontinuam vivos.

A anciã conhecedora das tradições tira da sacola que foitrazida, pertences do morto e outros utensílios que devem serenterrados com ele. Algumas etnias, como os Vatshwa enterramnos quatro cantos da cova plantas aquáticas, como nenúfar(xitsekele) e juncos (titsulu), arrancadas com as próprias raízes eo lodo do fundo do rio. Existem entre estes povos a crença de queos espíritos dos ancestrais vivem no fundo das águas e sealimentam do matope e destas plantas. Assim, prepara-se esta“comida dos espíritos” para o morto levar como merenda para asua longa viagem, e também como presente que deverá levar aosantepassados. O caniço com que mediram o corpo para saber ocomprimento da cova é estendido ao lado do corpo; depois roupas,cobertores, e outros objectos são sucessivamente entregues aosquatro que estão dentro da cova para as colocarem junto ao corpo.

20 Ultimamente tem se dado lugar neste momento a testemunhos einformações sobre a vida, a doença e a causa da morte do defunto. Istopor causa daqueles que vêm de longe e regressam logo sem possibilidadede estar no sétimo dia. Este porém não é o costume tradicional. Entrenós, o dia do enterro é de tal maneira pesado, as pessoas estão tãoprofundamente abatidas pelo sofrimento, que não aguentariam a emoçãode escutar a narração da doença e dos sofrimentos do falecido e da suafamília.

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Normalmente, coloca-se também prato, copo, colher de pau eoutros utensílios da vida diária da pessoa; instrumentos do seutrabalho, brasões e insígnias da sua dignidade política, social ereligiosa na comunidade. Todas as coisas antes de serem lançadasà cova devem ser rasgadas ou quebradas, porque tudo o que entrano túmulo deve respirar, “gu hefemula”.

O significado de enterrar as pessoas com os seusobjectos pessoaisMuitos, sem analisarem as coisas do ponto de vista

antropológico e cultural, têm tomado atitudes de desprezo,ridicularizando e humilhando as pessoas quando fazem estesenterros, obrigando-as a ter vergonha e a ter de fazê-los àsescondidas. Olhando, porém, para quanto dissemos acima aofalarmos do conceito de pessoa e de morte na RTA, encontramosluzes fortes para explicar o significado e sentido profundos deenterrar os mortos juntamente com os seus haveres. Na verdade,isto é expressão simbólica da crença que o povo tem de que apessoa continua viva no outro mundo, levando uma vida normal.A seguir apresentamos algumas razões que explicam o significadopara os africanos de enterrar os mortos com os seus objectospessoais:

1. Segundo a mentalidade africana tradicional, osdefuntos, na realidade, não perdem nada no momento do enterro.Conservam o seu “status social” no outro mundo. A personalidadedo indivíduo prolonga-se não somente até à última extremidade doseu corpo, mas também a tudo o que possuiu ou que lhe tinha sidoatribuído em vida, mesmo que disso nunca tivesse tomado possereal.

2. O conceito de morte como a grande viagem para a vidano outro mundo, onde o indivíduo continuará a desenvolver comperfeição a sua vida e funções normais, torna necessário preparar-lhe a viagem de modo a não esquecer nada do que vai precisar nodesempenho das suas funções. Em algumas tribos, o chefe era

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enterrado juntamente com uma das suas esposas ou com servos ousoldados.

3. A ideia de que a personalidade do indivíduo se prolonganos seus haveres impõe que as suas coisas sejam enterradas comele para evitar que feiticeiros e mágicos se apoderem e usem parao mal a força vital da sua personalidade nelas contida.

Este conceito de prolongamento da personalidade nospertences da pessoa é confirmada por várias práticas. Por exemplo,se alguém morre longe e não foi possível recuperar o corpo para sefazer o ritual fúnebre tradicional, como aconteceu com muitaspessoas que morreram durante a guerra, procura-se roupa dele ouna falta desta, qualquer coisa que tenha entrado em contacto com oseu corpo. São essas coisas que são colocadas no caixão e seprocede de igual modo como se ali estivesse verdadeiramente ocorpo. Da mesma maneira, curandeiros podem fazer tratamento deum paciente que está muito longe, bastando para isso que osfamiliares lhe tragam alguma peça de roupa ou objecto que lhepertença (que ele tenha tocado). Também feiticeiros e mágicospedem qualquer objecto da pessoa sobre quem querem actuar. Apersonalidade está presente em graus diferentes de intensidade nascoisas. Quanto mais íntima a relação mais intensa a presença dapersonalidade.

Pôr terra na covaO rito de pôr terra na cova marca um momento muito

especial em todo o ritual. Todos os que vieram querem pôr umpouco de terra na cova. É um sinal sensível e efectivo departicipação no enterro do falecido. Este rito também tem suaordem e normas próprias. A viúva, se estiver é a primeira a pôrareia na cova. Muitas vezes por estar abatidas e sem forças paraconter a emoção, ás viúvas são aconselhadas a permanecer emcasa. Depois as anciãs que acompanham a viúva, os filhos e osanciãos, depois dá-se a toda a gente.

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Aqueles que põem a terra na cova observam a seguintenorma: se tem o pai e a mãe vivos, faz-se uma inclinação em sinalde respeito e veneração, mas não põe terra; se é órfão dos doisprogenitores, deitará a terra com as duas mãos; os órfãos só de pai,deitarão com a mão direita; os órfãos só de mãe, com a mãoesquerda.

Tradicionalmente, terminada a sepultura, disfarçava-se olugar, de modo a não deixar qualquer sinal. As pessoas ainda hoje,concluído o enterramento, são convidadas para a casa do defunto,onde encontram água para lavar as mãos e apresentamcondolências à família enlutada. Depois é servida uma refeição,conhecida entre os Vatonga pelo nome de “hwadza”, ou pelomenos chá. E assim termina o enterro propriamente dito. Amaioria das pessoas dispersam-se para as suas casas. Inicia operíodo do luto. Fica a família íntima a decidir sobre as normas eexigências familiares para os rituais do sétimo dia, que marcam ofim da primeira parte dos funerais. Os vizinhos e amigos vêmpassar a noite, acompanhando e confortando os familiares.

VI- O luto e seus ritos na Religião TradicionalAfricana

A impureza da morte e sua gravidade: separaçãoOs Africanos tradicionais acreditam que a morte, enquanto

ruptura profunda no sistema integrado da harmonia universal,introduz o caos e a desorientação geral na criação inteira. Esta ficamergulhada na obscuridade e na confusão.

A morte torna a pessoa impura e com ela tudo o que lheestá relacionado: pessoas, bens, casa. A impureza da morte éextensiva e contagiosa; atinge, não somente o indivíduo quemorre, mas também toda a sua família e tudo aquilo que entra emcontacto com estas pessoas; diminui drasticamente o grau de

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comunhão e participação vital e mata se não for tratada. Aimpureza da morte varia com o grau da intimidade com a pessoaque morreu. Assim, o viúvo ou viúva sobreviventes são os maisatingidos pela impureza, a seguir, são os filhos, os irmãos edepois, os restantes membros da família ampla. 21

A impureza da morte paralisa a vida da aldeia:marginalizaçãoA impureza no viúvo e na viúva é tão pesada que se

sentarem na esteira ou na cadeira de uma outra pessoa, põem-naem perigo de morte. Por isso, durante o tempo de luto as pessoas eos bens relacionados com o morto são submetidos a umisolamento rigoroso. Em algumas etnias, antes da purificação osviúvos não podem ser cumprimentados à mão; não podemparticipar nas celebrações religiosas, nem aproximar-se de coisas elugares considerados sagrados; a viúva não pode cozinhar nemtocar em qualquer coisa de uso comum; são interrompidas todas asfunções e actividades sociais e religiosas no seio da família; oancião do clã não pode presidir às cerimónias e rituais familiares;o curandeiro e os seus remédios e objectos ficam tambématingidos, sem poder trabalhar; o polígamo não pode continuar asua vida conjugal com as outras mulheres sobreviventes; nãopodem casar de novo. É como se a vida da comunidade ficassesuspensa durante o período de luto; como se diz em Ronga:“Munti wu chumile”, isto é, “a aldeia está sombria” 22. Estasituação pode prolongar-se por vários dias, meses e até anos,dependendo dos costumes de cada clã.

Mesmo cristãos comprometidos, de quem se poderiaesperar uma compreensão mais profunda da fé cristã, quando seencontram nestas situações procuram tomar distância dos

21 Cf. H. A JUNOD, Usos e costumes dos Bantos, 15122 Cf. H. A JUNOD, Usos e costumes dos Bantos, 151, . fala de círculosconcêntricos” em volta do morto.

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sacramentos e da participação na Comunidade. Muitos suspendematé a comunhão até se realizar a purificação ritual, porque seconsideram em estado de impureza.

Os nomes usados para significar este estado de impurezaque atinge não somente os vivos, como também o próprio morto,são: “gidema” (trevas), “gusivbala” (escuridão); “magufa”(morte); “gulemela” (ser ou estar pesado).

Principais ritos de purificação durante o período de luto:restauraçãoPara a vida voltar ao seu ritmo normal é necessário

realizar ritos de purificação. Estes envolvem vários ritos ecerimónias simbólicas, que Junod distribui em “três fases:

1. O luto pesado, imediatamente depois do enterro e quedura alguns dias, em geral cinco. O modo de purificaçãoempregado é essencialmente medicinal: tem por fim purificar aspessoas e os objectos que entraram directamente em contacto como morto;

2. Os ritos sexuais, que tendem a purificar a vidacolectiva da aldeia pela supressão da impureza;

3. Os ritos familiares, que consistem em reuniões de todosos parentes, acompanhadas de cerimónias religiosas. Tem por fimrestabelecer a vida da família…”

No conjunto de todo o ritual relacionado com a morte naRTA, os ritos de purificação ocupam um espaço de particularimportância. Trata-se da purificação dos cônjuges sobreviventes,da família, das casas e bens. Estes ritos estão presentes em toda aÁfrica, mesmo variando quanto ao modo e ao momento de suarealização. Entre as tribos do Sul do Save: Vatonga, Vatshwa,Txopi, Changane e Ronga estas cerimónias são feitasgradualmente ao longo de um período de, pelo menos, um ou doisanos, podendo até chegar a três ou mais conforme a família e osproblemas particulares que se podem apresentar em volta dacelebração. Este método é confirmado por Raul Altuna quando

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afirma: “em certos grupos, a viúva, antes de se unir a um novomarido, o que pode demorar de um a três anos, deve limpar a suaimpureza, relacionando-se com um parente próximo do maridofalecido”23.

Na impossibilidade de falar exaustivamente de tudo o quese faz nestes dias pesados, vamos escolher apenas alguns ritos quejulgamos muito significativos.

Rito de pedir a chuva e de protecção contra os azares damorteDepois do enterro, anciãs indicadas para o efeito,

queimam palha arrancada da cobertura da palhota do morto emostram os quatro ventos principais. Os meus informadoresconfessaram não saberem quase nada do que se faz e se diz nessacerimónia. Mas sabem que o seu significado fundamental é evitarque a morte cause o fechamento da chuva dos quatro ventos. Esteparece ser um dos ritos mais antigos e mais secretos a todas asetnias do Sul do Save. De clã para clã, foi recebendo diferentesformas e adaptações ao longo de tempo. Estudos feitos entre osVatxopi de Chidenguele, Província de Gaza informaram-me queas anciãs viúvas saiam, todas completamente nuas, no meio danoite, com a nova viúva e a faziam subir até ao vértice do cone dacobertura da palhota, para arrancar a palha dali e descer com elaescorregando até ao chão. Era com esta palha que faziam acerimónia da chuva.

Num outro rito, carvões acesos são atirados na direcçãodos quatro ventos, enquanto se diz: “vós todos familiares queviveis longe e que ainda não tivestes conhecimento directo destesacontecimentos, nós vos comunicamos que fulano nos deixou, não

23 P. ALTUNA, Cultura Tradicional Banto, 454

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temais e que nenhum azar vos atinja”24. Junod também informa-nos deste rito na sua obra sobre “Usos e costumes dos Banto.”25

Depois do enterro tem de se matar um animal para sederramar sangue. Normalmente sacrifica-se uma galinha. O fígadoé retirado e esmagado para com ele se untarem as mãos daspessoas mais chegadas ao morto. O especialista em tratamento deritos prepara folhas verdes de várias plantas, pila-as e mistura comágua para lavagens das pessoas. Prepara também banhos demisturas de remédios fervidos em panelas de barro. A finalidadede todos estes ritos é purificar e proteger a família do mal damorte; acomodar a tradição às exigências do tempo moderno emque muitos membros da família trabalham fora, e o patrão não osdispensaria do serviço durante 7 dias seguidos.; Têm de sair à ruae encontrar pessoas antes de se completarem os dias previstos parao isolamento ritual. Portanto, necessitam de ritos preliminares,enquanto se prepara convenientemente o rito grande do fim doluto pesado, o Sétimo Dia, como é normalmente chamado emnossos dias.

O fim do luto pesado: As cerimónias do Sétimo DiaCinco ou sete dias depois do enterro, toda a família ampla

se reúne para as cerimónias do fim do luto pesado. Nas tribos doSul do Save que nós estudamos mais de perto, por serem deregime patrilinear, os anciãos do clã paterno jogam o papelfundamental na orientação de todo o cerimonial com acolaboração do clã materno (vakokwe) do falecido26. Mastambém estão presentes os outros clãs nos quais o falecido gozava

24 “enu mwatshavbo um vbanyago mayigoni ya hwindzo, um nga wonimasingita, ethu hi tshidwe khu fulunu.”

25 H. A. JUNOD, Usos e costumes dos Bantos, p.143.26 Nos clãs onde vigora o regime matrilinear, como entre os Tonga da

Zâmbia, dá-se o inverso, o clã materno é que assume o papelfundamental com a colaboração directa do grupo paterno.

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de um estatuto próprio e com ligações de influência: o clã damulher, ou sograria (“vasade”) onde ele tinha o estatuto de genro“mwane”; se tinha filhos casados, a rede de sua influênciaampliou-se consideravelmente nos diferentes clãs (“vandroni”),que ele cuidadosamente escolheu para contrair aliançasmatrimoniais dos seus filhos e filhas. Além desta influênciaderivada dos laços consuetudinários, tem também a que eleadquiriu pelo seu prestígio pessoal na vizinhança, no mundo dotrabalho, etc. Todos eles estão presentes. A execução material dostrabalhos é confiada aos genros (“vamwane”), todos os homensdos clãs onde casaram as mulheres pertencentes ao clã da pessoaque morreu, e às noras “vagadzamwane” todas as mulheres dosclãs onde casaram os homens do clã do falecido.

Um dos trabalhos do Conselho dos Anciãos durante essesdias de preparação é assegurar-se que chegado o dia, tudo estarápronto para que os rituais de purificação da morte se realizemfielmente de acordo com as normas tradicionais da família. Umacomissão é nomeada para consultar adivinhos afim de saber quemdeverá fazer a cerimónia da purificação, “Mufadjungu”, pois não équalquer um que o pode fazer.

Retirada das coisas e bens para fora da casaChegado o dia da purificação, sob a orientação do

“curandeiro”, retiram todos os pertences do defunto e sãocolocados no monturo (“talatunu”) para efeitos de purificação.Todas as coisas do defunto, que em sua vida foram cedidas afamiliares a título de empréstimo, deverão ser devolvidas nesse diapara serem purificadas da morte. Os pertences do morto têm umpoder altamente mortífero se foram utilizadas sem terem sidopurificadas.

Limpeza geral da casa e do pátio e o corte do cabeloProcede-se a uma limpeza geral da casa e varre-se todo o

pátio, extinguem-se os fogos do funeral e as cinzas recolhidas

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juntam-se com todo o lixo que se varreu. A viúva senta-se sobre aesteira à frente da casa e uma anciã rapa-lhe o cabelo todo. Emseguida cortam-se cabelos a todos os familiares directamenteatingidos pelo luto pesado. Junta-se tudo, lixo, cinzas e cabelo dosmembros da família e tudo é enterrado numa cova aberta fora doquintal. A viúva e toda a família mudam o vestuário que traziam eaparecem vestidos de luto. Tudo isto parece simbolizar apassagem de uma realidade de marginalidade que chegou ao fim,para se entrar numa realidade nova de reintegração social.

Cozinhar “Mufadzungu”, o alimento purificadorO curandeiro começa a reunir todo o material necessário

para cozinhar o alimento usado para a purificação. Manda trazerágua directamente do poço, pois para esse efeito não serve a águareservada nos potes em casa. Da mesma maneira, a viúva devetrazer a lenha de fora. Com esta lenha acende-se o fogo novo dapovoação e com esse fogo se cozinha o alimento purificador,obedecendo as seguintes etapas:

Os frangos purificadoresDevem também trazer um casal de frangos. Reunido tudo

isso no lugar designado, o curandeiro começa o trabalho com umaoração, pedindo que o trabalho de purificação corra bem. Emseguida dá remédio aos frangos, introduzindo-lhes bico a dentrouma vareta mergulhada no líquido da cabaça. Este rito é conhecidoentre os Vatonga pelo nome de “gulura dzikhugu”. É como se sepurificasse a matéria do sacrifício para o tornar agradável eaceitável ao destinatário. Depois, um a seguir ao outro, os frangossão cortados pela boca ao mesmo tempo que se pronuncia umaoração pedindo a união, a reconciliação e a paz de todos osfamiliares do defunto. Com o sangue que jorra dos ferimentos dasaves, aspergem-se as mãos das pessoas, os objectos, a farinha quevai ser cozinhada etc. No fim aplica um corte ao pescoço dosfrancos, deixando-os bater-se até morrer. Conforme a posição emque morrem as aves, assim se sabe se a cerimónia está a ser ou não

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aceite. Se as aves morrerem de barriga para baixo é sinal que tudoestá a correr bem. Mas se morrerem de barriga para cima é mausinal, e isto é extremamente preocupante. Se elas morrerem bem éa família que as prepara e são cozinhadas em água.

A papa purificadoraQuando os frangos estão cozidos, são retirados das

panelas. Na mesma água, o curandeiro mistura os remédios depurificação com a farinha de milho para cozinhar uma papamedicinal, conhecida entre os Vatonga pelo nome de “mapete” eentre os Varonga do Maputo, “vuswa bya muri”27. Pronta arefeição cerimonial, os Vatonga retiram uma porção e colocam-naao lado. A viúva ou o viúvo é que começa a comer, depois todoscomem directamente da panela no mesmo lugar onde todas ascoisas foram colocadas. Entre os Vatshwa de Homoíne a papacozinhada é vertida numa peneira, da qual todos comem. O quefica na panela é raspado e distribuído pelas famílias do clã. Faz-se,depois, uma abertura no tronco de uma árvore e lá se depositauma porção desta papa cerimonial. É conservada durante meses,até à última cerimónia, com a qual se “mata a morte” (ku dlayankosi”. Durante esse tempo, todos os familiares que não puderamestar presentes na cerimónia ritual, quando chegarem hão-departicipar desta purificação, bastando para isso tocar ou dar volta àárvore, em cujo tronco está guardada a papa purificadora. Ofamiliar que chega pela primeira vez depois de se realizarem estascerimónias pede que lhe mostrem “a árvore”, para dar volta a ela.Os Vatonga chamam este rito “gu dzuwulugela misimbo”, darvolta às árvores. Hoje, por razões de ordem prática, os familiares,em vez de levar a papa para as suas casas, preferem untar com elauma peça de roupa e levá-la consigo. Ao chegar, ainda à entradada casa, o que traz a peça de roupa, atira-a ao chão. As crianças eos familiares que estiverem em casa são chamados para o lugar.O portador informa-os que participou na comida de purificação,

27 H. JUNOD, Usos e costumes dos Bantos, p.158

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em Gitonga “nyi phorode mapete”, ao que eles respondem, “nyima mane”, isto é, tomei parte. Pegam no pano cerimonial e entramdentro da casa.

As mulheres grávidas não podem comer desta papa porqueestá misturada com remédios. Da mesma maneira não podemparticipar da refeição ritual aqueles que não observaram acontinência sexual.

A principal finalidade deste rito é purificar os alimentos epermitir o intercâmbio e partilha livre de alimentação “guhodzelana”, nas diferentes famílias do clã. A comunhão neste ritoé fundamental para a unidade da família. A ruptura neste ritosignifica clara declaração da divisão do clã. E as duas metadesdesavindas inimigas mortais. Não se pode visitar, porque qualquertipo de encontro e de relacionamento entre os seus membrosproduziriam desgraças e mortes para ambas as partes. Quando seencontram nesta situação, os Vatonga dizem: “kha va hodzelani”,não comem junto, não estão em comunhão.

A mistura purificadoraEntretanto, numa outra panela, ao lado, cozinham-se as

folhas de purificação juntamente com penas dos frangossacrificados. Este cozinhado chama-se “mihenga-henga”. Comesta mistura aspergem-se as pernas e as costas de todas as pessoaspresentes na cerimónia. É com essa mesma água que se faz apurificação de todas as palhotas (casas) e todos os objectos dafamília. Depois de se aspergirem todas as coisas, a água que restarna panela é despejada por todos numa cova aberta, dizendo “relelagwadi” (desça em paz). Noutras partes a água que fica na panela élevada por toda a família para um cruzamento onde todosdespejam a água dizendo “a morte do fulano termina aqui.”“khugo gu vbedza gufa gwago fulani, hari khethu hi nga manwikhu mabango”28.

28 a tradução literal é a seguinte: “ Fulano, com este ritual concluímos atua morte, que nenhuma desgraça nos antinja.”

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Esta cerimónia marca propriamente a conclusão do enterrocerimonial. O enterro da pessoa, “mutua”, não terminou quando sefez a sepultura do corpo. Na verdade, durante estes sete dias apessoa continua dentro da casa. Como dissemos anteriormente, namentalidade africana a personalidade de um indivíduo, prolonga-se nas pessoas e nas coisas, bens e lugares que de alguma formafizeram parte do seu mundo relacional. É necessário purificarritualmente tudo isso, de modo que se possam utilizar sem correr orisco de “comer a morte” (gu hodza givendre). Agora, concluídastodas as prescrições e honras rituais, purificadas todas as coisas,todos os membro da família unidos como se fossem todos um só,fazem o enterro. A profunda comunhão e participação do clã comoum todo nesta cerimónia é fortemente significada pelo gesto detodos pegarem na panela que contém água com que se lavaramtodas as coisas e pessoas relacionadas com o morto, e despejá-lana cova. Ninguém pode ficar fora; aqueles que não conseguemchegar directamente com a mão à panela, pegam nos que estão àfrente.

Depois deste rito, realizam-se ainda algumas cerimóniasconclusiva, não menos ricas em simbolismo e significação.

Devolução da morte ao curandeiro e “blindagem”interiorUm ramo verde da planta de maçala é trazido e colocado

no monturo. Todos os que participam da cerimónia, um por um,tiram as folhas com as duas mãos, e voltando as costas para ocurandeiro entregam-lhe as folhas, dizendo: (“Dzega gufa gwago”= leva a tua morte). O curandeiro responde (“adiri gwago gwani”era tua, porventura?). A este rito chama-se “gu khovbola gufa” =purificar-se da morte ou libertar-se da força da morte. Devo dizerque os vários membros do grupo em que estudamos este rito nãoencontraram unanimidade. Uns fazem e outros não fazem. Pareceque tudo depende mais do curandeiro que orienta as cerimónias.

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Mas parece que o rito revela a ideia de que a morte não pode estarno ar. Tem de pousar em alguém. Quando ela é expulsa dosmembros da família pelos ritos de purificação ela temnecessariamente de passar para alguém, a quem ela não pode fazermal. Neste caso é o curandeiro que a assume e nele ela perde a suaforça mortífera. Em outras cerimónias o lixo da impureza dacontaminação da morte retirado na purificação das pessoas écolocado no cruzamento de caminhos principais, para pegar-se aosque por ali passam. Tudo leva a acreditar que não há maldade ouintenção de prejudicar pessoas inocentes, passando para elas acontaminação da morte da qual eles se quer libertar. Na verdade, aforça da impureza da morte actua dentro da família seguindocírculos concêntrico do grau de intimidade que se tinha com omorto, e não tem nenhum efeito em pessoas de fora da família.Portanto, ela pode pegar-se aos estranhos a quem não faz mal, parase desembaraçar os membros da família nos quais ela émortífera29.

Após o rito da devolução cerimonial do “kufa” aocurandeiro, faz-se o rito de beber a espuma purificadora“pupuma”. Esta espuma é preparada pelo curandeiro a partir deraízes de uma planta silvestre”. Estas raízes raspadas e mexidasem água criam uma espuma intensa. As pessoas que participam nacerimónia tiram desta espuma com a concha das duas mãos ecomem-na. Assim ficam protegidas interiormente contra arecontaminação pela impureza da morte.

Durante este tempo das cerimónias, os que tomam partesão obrigados a uma continência ritual, abstendo-se das relaçõesconjugais. Quem transgredir esta norma é obrigado a confessá-loainda que indirectamente. Prevenindo possíveis transgressões, ocurandeiro tem o cuidado de preparar dois “cafuros” de remédios:um para os homens e o outro para as mulheres. Estes remédios têm

29 Cf. H. ª JUNOD, Usos e costume dos Bantos, p.206

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o poder de neutralizar os efeitos negativos de tais transgressõessexuais, que poderiam anular todo o trabalho de purificação.

Com o fim dos rituais do Sétimo dia, a força negativa dacontaminação da morte fica controlada e neutralizada. Agora afamília, pode voltar à vida normal ao menos no que se refere àscoisas essenciais. Mas o luto vai continuar por um período de pelomenos um ano, durante o qual os membros da família se vestem deroupa preta, em sinal de luto. O viúvo ou a viúva não pode casarnem quebrar a continência sexual, porque ainda estão a “chorar” ocônjuge morto. Os bens do morto são intocáveis, podem sercomidos ou utilizados no lugar, mas nunca se deve levar para casa,porque quando entrassem no leito conjugar sofreriam um choquede morte e o marido apanharia tuberculoso ou “tísica” que olevaria a vomitar sangue e à morte certa.

Ritos do fim do lutoDecorrido um ano de luto pode realizar-se a cerimónia

de tirar o luto30. Os Varonga chamam esta cerimónia de “matar oluto” (“ku dlaya nkosi”, os Vatonga dizem que é “acabar com amorte” (“gu vbedza gufa”). Todas estas expressões mostramclaramente a ideia de que com estes ritos se põe um ponto final àmorte. O defunto que até aqui não podia ser invocado, pois estavaenvolto em trevas, “gidema”, vai agora ser purificado e invocadopara receber o primeiro sacrifício (giguma) a ele directamentededicado e logo a seguir será realizada a grande festa (mhamba)aos antepassados, em que ele vai ser, pela primeira vez invocado acabeça da lista dos defuntos da família; será assim integrado nafamília dos antepassados protectores da família. O cônjuge

30 Como dissemos anteriormente, este período varia muito, os Nyanja deLusaka libertam a viúva logo no sétimo dia, jogando-lhe farinha de milhono corpo e dizendo-lhe que está livre, pois não têm homem para lhe darcomo purificador e herdeiro. Esta forma simplificada foi concebida parase evitar a propagação do HIV/SIDA.

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sobrevivente que estava impedido de casar, é agora purificado eliberto para recomeçar a nova vida. Os filhos que andavam empranto, ganham agora nova família. Os bens e as propriedades quenão podiam ser utilizados, são agora purificados e postos àdisposição dos legítimos herdeiros. Os sinais da morte sãocompletamente esquecidos e todos os ritos falam da vitória da vidasobre a morte; da esperança que se abre para o futuro do clã queconta agora com um novo defensor.

Lugares e coisas particularmente visados pelascerimónias e ritos:O lar foi o espaço por excelência onde o defunto

desempenhou um papel particularmente importante e único. Porisso, a maior parte do ritual da morte refere-se especialmente àdesolação a que ficou reduzido o lar com o seu desaparecimentofísico. Alguns elementos são particularmente associados com avida normal do lar tais como: a casa, a porta, a varanda, a cama, ocentro da cobertura, a fogueira. Estes lugares são, real ousimbolicamente destruídos.

É preciso restabelecer ritualmente os laços departicipação vital comunitária, que foram seriamente afectadospela morte. É necessário significar, assumir e realizar através deritos simbólicos a passagem de uma realidade que agora pertenceao passado marcado pela presença física do defunto, para a novarealidade marcada pela sua ausência física e por um novoordenamento no quadro familiar de funções e relacionamentos.

A destruição da casa e seu significado:A casa, como o principal símbolo do lar do morto, é o

primeiro e mais importante lugar visado pelos rituais. A destruiçãoda casa do defunto é um elemento constante em quase todas asetnias africanas, podendo variar quanto ao período em que ela

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ocorre e quanto à extensão da destruição.31 Em algumas tribos acasa é destruída completamente; noutras, parcialmente e em outrasainda, apenas ritualmente. Sempre, porém, para significar que sefechou irreversivelmente uma página da história da família.

Se a casa do defunto não é destruída, é fechada eabandonada a deteriorar-se até desabar. É muito frequenteencontrar boas casas em alvenaria fechadas e abandonadas,enquanto familiares vivem ao lado, em palhotas frágeis e pobres.Quando a palhota não é totalmente destruída, em alguns povos,retira-se-lhe, a porta ou as estacas da porta e da varanda. Entre osTonga da Zâmbia retiram-se as estacas do lado direito da porta eda varanda se foi o marido que morreu, e as de esquerda se foi aesposa, pois para eles o lado esquerdo é associado ao feminino (àmãe) e o direito ao masculino (ao pai). O topo da cobertura dapalhota (xitshungwa ou gikoli” é retirado. A cama em que o casaldormia é também destruída. Todo o material desta destruição équeimado nas fogueiras do funeral. A fogueira é tambémdestruída, removendo e espalhando as pedras do lugar da fogueira.Dentro da casa não mais se acende fogo. Esta cerimónia dadestruição dos elementos simbólicos do lar significa que com amorte do cônjuge o lar terminou. Este ritual, portanto só se realizaquando se trata de pessoa casada, e não com “crianças”, oupessoas que por não terem casado, mesmo sendo grandes na idadecronológica e em estatura, não chegaram a atingir o estado plenode pessoa “muthu”32.

31 H. A JUNOD, Usos e Costumes dos Bantos,p.163, informa que “Adestruição não se faz imediatamente. É preciso que um certo tempodecorra: dois, três, nove meses, antes que Assembleia da família sereuna.32 Elizabeth COLSON, Marriage and the Family among the Plateau

Tonga, Manchester (1958), pp.216-217.

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A purificação da viúva e a cerimónia do LeviratoPara o pensar do africano tradicional, não há maneira de

acabar com a força negativa da morte, sem ser através do ritosexual. Para os povos do Sul do Save o rito sexual é “o remédio damorte” (I muri wa lifo); só ele pode enterrar definitivamente ainfelicidade da morte (“ku lahla khombo”); só ele pode lavar amaldição da morte “gu hamba gufa” ou (“ku hlamba kufa”).Portanto, todos os ritos de purificação que temos vindo a descreveraté aqui, devem conduzir ao seu cume no rito da relação sexual doviúvo ou da viúva com um purificador(a) escolhido(a) pela famíliaa quem cabe essa responsabilidade. Sobre quando é realizado esterito, varia muito. “Nesse caso a purificação deve esperar até àscerimónias que marcam o fim do período de luto, que pode serentre alguns meses e ou um ano mais tarde, quando o espírito domorto é chamado de volta para a sua casa, para se lhe apresentaras primeiras oferendas dedicadas a ele. Cerimónia com a qual ele éassociado à companhia dos espíritos dos antepassados.”33 Vamosrapidamente apresentar os passos mais significativos deste ritualfinal.

Reunião do Conselho do Clã e a consulta à viúvaCom dias de antecedência reúnem os anciãos do Clã para

estudarem com pormenores como deve ser feita a cerimónia detirar o luto. É escolhida uma anciã ou uma tia que se sabe ser bemrelacionada com a viúva para consultá-la e conduzir asnegociações com a viúva sobre quem ela gostaria para seu marido.

Pela tradição a família reunida decidia sobre quem entrana casa do defunto, sem consultar a viúva. As anciãs tinham umgrande poder de decisão neste assunto e a viúva não podia recusar.Agora, porém, existe uma margem de liberdade para escolher,embora não seja tão ampla, porque afinal, ao herdeiro é confiada agrande responsabilidade de velar pela propriedade do clã, pelo

33 E. COLSON, Marriage and Family among the Plateau Tonga, p. 217

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futuro das crianças e pela sobrevivência do lar iniciado pelodefunto. O clã não aceitaria entregar esta responsabilidade a umhomem que não fosse de sua inteira confiança, mesmo que a viúvaa escolhesse.

A anciã, muito prudentemente consulta à viúva quanto àsua disposição, no que se refere à observância da lei do Levirato(gu hambela). A viúva pode aceitar, como também pode pedirmais um tempo para lembrar “chorar” o seu marido falecido. Seela optar por esta segunda via, a cerimónia de tirar o luto far-se-áde modo simples e sem necessidade de reunir a família. Ela tira oluto e entrega-o às anciãs da família do falecido. Fica sem recebero marido até quando ela se decidir. Se entretanto se souber que elaanda metido com algum homem, ai, o problema torna-se gravepara ela e para o homem. Neste caso, devem pagar, não só ocorrespondente ao valor do lobolo, mas ainda a multa da esteira daviúva que ele profanou e ela pode ser expulsa da casa, perdendotodos os seus direitos.

Em caso de ela aceitar, deverá esclarecer se só quer umpurificador para tratar da morte ou se quer viver com ele como seumarido. Os anciãos reunem para decidirem quem entrará na casado defunto para a purificação da viúva. Apresentam-lhe uma listade candidatos para escolher. Não pode ser um irmão mais velho dofalecido, porque é pai dela. Só pode ser um dos irmãos maisnovos, ou primo. No dia combinado, reúne a família. As anciãsretiram-lhe o luto e ela recebe o homem para a purificar.

Naquela noite o casal dorme junto e realizam o acto sexual“gu ningana wugulu”. Depois dirigem-se os dois ao monturo onde,na tarde anterior, foram colocadas as coisas da família, levando,água num recipiente. Lavam-se as partes genitais. É com esta águaritual que aspergem todos os pertences do defunto que passam anoite no monturo para “arrefecerem”. O nome “gu hambela ou khuhlambela” (ou gu hambelana) de “gu hamba” = tomar banho ou

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lavar-se, é tomado deste gesto ritual de se lavarem com água.Depois, a água é despejada no lugar.

No dia seguinte, ainda muito cedo, os anciãos veminformar-se se tudo correu bem durante a noite, isto é, se o casalconseguiu ter a relação completa. Em caso afirmativo, o casalconfirma-o, mostrando aos anciãos o lugar onde despejaram aágua ritual. Todos passam por ali para pisar o lugar da humidadeda água despejada (“gu gandra libango”).

Hoje, com a conversão ao evangelho e também com oalastrar da doença da SIDA/HIV tem se encontrado cada vezmaior resistência a este rito. Ninguém porém põe em causa anecessidade da purificação. Se a viúva recusa terminantementepurificar-se pelo rito sexual, são já conhecidas outras alternativas,que penso que poderão abrir novas perspectivas no futuro para ogrande problema de adultério e poligamia gerados por essa práticaentre os cristãos. Entre outros, têm se usado os seguintes métodos:

Por delegaçãoSe a viúva tem filho casado, pede a este que “trate a

morte” do pai com a própria mulher de casamento. Concluído orito os esposos vêm com a água ritual e com ela aspergem34 a mãe.Assim ela fica purificada da morte. Os Ronga chamam a estemétodo “ku trutrumela”, os Vatonga “gutheledzedwa” e osVatshwa, “khu cheletelwa”. Neste caso, a viúva mãe não poderámeter-se com nenhum homem, porque então fulminaria o filhoque tratou a cerimónia.

Os Tonga da Zâmbia, o homem que fez o rito, no diaseguinte vem sentar-se nas coxas da viúva e assim fica purificada.

34 Este rito é conhecido no Sul do Save como aspersão em Xitshwa é “kucheletelwa”, e “gu thedzedwa”

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1. Banhos de vaporHá curandeiros que conhecem raízes e folhas que se

cozinham em água misturada com com outros remédios a viúvadeve fazer sauna com o vapor dessa água e depois tomar banhocom ela.

2. Simulação do rito sexual e farinha de milhoEsta cerimónia hoje é muito usada na Zâmbia e consiste

no seguinte: a viúva senta-se na esteira em frente da palhota. É lhetirada a roupa de luto que trazia, e depois vem sentar-se de pernasestendidas. Uma pessoa indicada vem sentar-se sobre as pernas daviúva e depois levanta-se para o seu lugar. Depois farinha demilho é jogada no corpo, acompanhando o gesto com palavrascomo estas: “Fulano, assim acabamos a morte do nosso fulanopara ti, estás purificada, nós não encontramos um homem para tedar, estás livre do compromisso de casamento nesta casa, de agoraem diante podes casar com quem quiseres.

Seja qual for o método usado, a finalidade principal destacerimónia é levantar todas as restrições impostas pelo luto depoisda morte; o regresso à vida normal; libertar a viúva para contrairnova união matrimonial; a alienação da propriedade do antigodono já falecido a favor do novo dono ou marido.

Declaração da orfandade dos filhos e a atribuição daherançaConcluída esta primeira parte do ritual da purificação da

viúva, são preparados fios de palmas que são amarrados naspernas das crianças, como sinal de serem órfãs (“sigulungu”). Osfilhos são entregues ao pai que assumiu a família e ele secompromete a cuidar do crescimento deles. Segundo aconveniência, os filhos podem ser distribuídos pelos familiares.

Depois de aspergirem as coisas com a água ritual, tornama dormir, porém, abstendo-se da relação conjugal. No dia seguinte,as coisas são introduzidas de novo dentro da casa, atrás da porta e

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o casal volta a juntar-se, lavam-se e com esta água aspergem ascoisas, as mobílias para as purificar também da maldição damorte.

As coisas do defunto, assim purificadas, já podem serutilizadas pelos familiares sem o perigo de serem fulminados pelaforça negativa da morte. Os membros do clã podem visitar-se,partilhar o alimento e conviver sem qualquer tipo de receio. Amorte acabou. A não realização desta cerimónia torna a viúva, osfilhos e todas as coisas e propriedades relacionadas com o defuntoem fontes geradoras de energia mortífera para os outros membrosdo clã. Por isso ficam condenados a serem isolados do resto dafamília.

Devolução do marido à sua esposaConcluídas as cerimónias de purificação, a viúva

acompanha o homem à casa da verdadeira esposa e apresenta-ocom estas palavras: “Dzega mwama wago” (receba de volta o seumarido). Por sua vez, a esposa responde dizendo: “Adiri wagogwani?” (Com que então era teu?). Naquela noite a viúva dormena casa do casal. Este por sua vez, faz a relação ritual e vão lavar-se no monturo, despejando aí a água ritual. Na manhã seguinte, aviúva vai pisar o lugar (“gu gandra libango”) e volta para a suacasa..)***

V- Concluindo

De tudo quanto foi dito, gostaríamos de salientar apenas oseguinte:

O mais importante em todo o ritual de morte é acelebração comunitária da solidariedade da família da fé naimortalidade e, que constitui o culto medular da RTA. Com efeito,como bem observa Altuna “não há outras manifestações religiosasmais notórias além da vivência mística do amor comunitáriocelebrado com o ágape.”

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A sobrevivência do defunto depende dos ritos: O africanoem geral e o banto em particular, acredita que a felicidade ou afrustração total do defunto, a sua imortalidade pessoal ou a suamorte definitiva depende da execução ou não dos rituais fúnebres.Se estes forem realizados conforme manda a tradição do clã e avontade dos antepassados, o defunto chegará ao seu feliz destino eserá acolhido festivamente e integrado na comunidade dos seusantepassados que o precedem. O valor destes ritos está na suafunção principal como “ritos de passagem porque condicionam otrânsito normal deste mundo para o lugar onde o defuntocontinuará a sua existência”.

A frustração do defunto: Também acreditam que se nãoforem observadas as normas e rituais tradicionais, ou se foremdeformadas, dar-se-á a frustração total do defunto. Não seráacolhido pelos antepassados, e transformar-se-á em “fantasma” oualma errante a vaguear no mundo sem destino nem paz. Torna-seum espírito revoltado e vingativo, que aterroriza a aldeia e asfamílias do clã, causando doenças e toda a espécie de desgraças,como forma de pressionar os familiares a cumprirem as suasobrigações tradicionais em relação a ele, no que se refere àscerimónias e ritos de morte. E não haveria maior desconsideraçãopor um morto do que privá-lo das honras fúnebres tradicionais.

Rituais de morte, expressão do amor e veneração pelosantepassados: Todos os povos têm seus procedimentos e rituaispara comemorar e honrar os defuntos familiares; expressar a fé naimortalidade, significar a saudade, a veneração, o reconhecimentoe o amor por eles; para confortar e consolar os sobreviventes; epara exprimirem a unidade e solidariedade com eles na dor pelaperda de entes queridos. O Ocidental visita o cemitério, lava ascampas, depõe flores, acende velas e se são cristãos mandamcelebrar missas e tomam refeição com familiares e amigos. Tudoisso são sinais e símbolos que na sua cultura e tradições, falam esignificam algo profundo que eles não conseguiriam exprimir tão

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eficazmente de outra maneira. O Africano bantu recorre tambémaos elementos rituais e simbólicos que a cultura e tradições dosantepassados lhe oferecem para significar e exprimir os mesmossentimentos de imortalidade, de comunhão e solidariedade dafamília (os vivos e os antepassados), de amor e veneração. Reunir-se, matar e comer juntos em família uma galinha ou outro animal,derramar um pouco de bebida, e colocar comida no local. Tudoisto são sinais e símbolos para expressar a crença na sobrevivênciaalém túmulo e a ideia de participação vital em comunhão esolidariedade familiar.

Um dos erros cometidos muitas vezes pelos missionáriosde todas as Igrejas e religiões foi a proibição pura e simples aoscristãos de realizarem os ritos tradicionais pelos seus defuntos. Háquem diga que os Africanos são supersticiosos e idólatras porqueacreditam que os mortos comem e bebem as libações que os vivosderramam no chão. Poder-se-ia perguntar se o ocidental ao colocarflores e velas na tumba acredita que o morto cheira a fragrância daflor ou se ilumina com a luz da vela. Sendo assim estaria acometer o mesmo erro dos outros. Nesse caso, porque combateruns e aplaudir outros? Na verdade estamos no domínio dalinguagem simbólica que através de sinais, gestos e símbolos queem cada cultura significam algo mais profundo para além dosignificado imediato que as coisas têm.

O problema dos cristãos africanos: De tudo quantoafirmámos até aqui, poderemos imaginar a violência interior emque vivem os cristãos africanos, muitas vezes superficialmenteformados na fé cristã, quando são obrigados sob pena de “pecadograve” a não prestarem as honras e rituais fúnebres aos seusdefuntos. É o mesmo que dizer a um filho que abandone nainfelicidade os seus pais, cuja sobrevivência feliz ele sabe quedepende unicamente dele. Esta é a razão de uma certa duplicidadereligiosa de muitos cristãos africanos. Até que ponto o rito e osacrifício eucarístico assume e substitui total e eficazmente todasas funções que se esperam dos rituais tradicionais? A questão de

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fundo é saber como conciliar na consciência e no coração docristão africano, esta proibição, com a profunda consciência econvicção que ele tem de que somente com a realização dos ritostradicionais depende a sobrevivência feliz dos seus entes queridos,e só assim manifesta-lhes o amor e o reconhecimento que os filhosdevem a seus pais.

Poder-se-á fazer uma reflexão sobre os ritos de morteafricanos dentro da iluminação da fé e do quadro teológico dacomunhão dos santos, da ressurreição e da participação da glóriade Cristo? Poderão tirar-se dessa reflexão linhas de orientaçãopara a práxis pastoral no espírito da Gaudium et Spes e dosrecentes documentos da Igreja que insistem no diálogointercultural?