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1 É O JURISTA UM INTELECTUAL? UM OLHAR PARA O CASO DO BRASIL NOS ANOS 1930 E 1940 Mariana de Moraes Silveira * Em 2 de abril de 1938, o então presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, J. M. Azevedo Marques, assinava um parecer, posteriormente publicado em diversos periódicos jurídicos, a que deu o significativo título “'Chômage' dos intelectuais”. Respondendo a uma solicitação que lhe fora feita pelo governo do estado, buscando enviar subsídios para uma comissão organizada pela Liga das Nações para tratar do tema, o autor se preocupou em definir o que seria a categoria social evocada no início de seu texto. Em um primeiro momento, diz ele, já esboçando certa hierarquia entre o trabalho manual e aquele desenvolvido no uso das faculdades especulativas: “Pode-se definir [o intelectual] como sendo a criatura humana que se caracteriza pelos dotes da inteligência, do entendimento, do intelecto, em oposição à que só dispõe dos dotes manuais da força, ou da perícia, ou do esforço físico”. Logo em seguida, Azevedo Marques propõe outra definição: Mais restritamente e mais adequado ao nosso ponto de vista, chamar- se-á intelectual o ente humano que vive somente dos seus trabalhos da inteligência. Exemplos são numerosos: o professor, o sábio, o publicista, o advogado, o médico, o cirurgião, o engenheiro, o jornalista, o poeta, o artista, o filósofo, o sacerdote, os chefes de * Mestranda em História pela UFMG Bolsista do CNPq [email protected]

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É O JURISTA UM INTELECTUAL? UM OLHAR PARA O CASO DO

BRASIL NOS ANOS 1930 E 1940

Mariana de Moraes Silveira*

Em 2 de abril de 1938, o então presidente da Ordem dos Advogados de São

Paulo, J. M. Azevedo Marques, assinava um parecer, posteriormente publicado em

diversos periódicos jurídicos, a que deu o significativo título “'Chômage' dos

intelectuais”. Respondendo a uma solicitação que lhe fora feita pelo governo do estado,

buscando enviar subsídios para uma comissão organizada pela Liga das Nações para

tratar do tema, o autor se preocupou em definir o que seria a categoria social evocada no

início de seu texto. Em um primeiro momento, diz ele, já esboçando certa hierarquia

entre o trabalho manual e aquele desenvolvido no uso das faculdades especulativas:

“Pode-se definir [o intelectual] como sendo a criatura humana que se caracteriza pelos

dotes da inteligência, do entendimento, do intelecto, em oposição à que só dispõe dos

dotes manuais da força, ou da perícia, ou do esforço físico”. Logo em seguida, Azevedo

Marques propõe outra definição:

Mais restritamente e mais adequado ao nosso ponto de vista, chamar-

se-á intelectual o ente humano que vive somente dos seus trabalhos da

inteligência. Exemplos são numerosos: o professor, o sábio, o

publicista, o advogado, o médico, o cirurgião, o engenheiro, o

jornalista, o poeta, o artista, o filósofo, o sacerdote, os chefes de

* Mestranda em História pela UFMG – Bolsista do CNPq [email protected]

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exércitos, os chefes de Estado, os funcionários públicos dirigentes,

etc., etc., enfim todos os que, analogamente, usam,

indispensavelmente, da inteligência e dos conhecimentos espirituais

auridos nas ciências, na história, na literatura, na sociologia, na

religião, nos livros e nas letras em geral1.

O jurista prossegue com uma eloquente defesa da “classe dos intelectuais”,

sustentando ser ela “extremamente numerosa, mais exigente, mais necessitada de meios

financeiros, mais cara, porque, justamente, dispende mais, produz maiores benefícios à

humanidade; sustenta enfim o outro grupo, embora não o possa dispensar. Alma num

corpo”. Mais à frente, conclui o esforço de definição com um elogio aberto a esses

homens, aludindo uma outra vez a visões acerca do trabalho que relegam a um plano

inferior o labor manual:

Em suma: os intelectuais geram, criam, o que há de mais sublime, de

mais vital, independentemente do subsídio posterior, embora

indispensável, do outro grupo social, o qual, dirigido, dá corpo e

consistência a um grande número de produtos da inteligência. Assim,

não se dirá que o fabricante de papel, ou o tipógrafo, impressor ou o

serralheiro, ou o carpinteiro, que fazem a impressão e divulgação das

obras primas de Beethoven, Mozart, Dante e mil outros gênios, ou os

que fabricaram os aviões de Santos Dumont para descobrir a

navegação aérea, sejam iguais ou sequer aproximados dos criadores2.

Esse conjunto de citações – verdadeiro esforço de “auto-representação” de um

intelectual, no sentido empregado por Edward Said na célebre série de conferências que

proferiu na BBC em 19933 – constitui, a nosso ver, uma instigante provocação inicial

para o tema que pretendemos desenvolver neste trabalho: um possível diálogo entre a

história dos intelectuais e a história do pensamento jurídico, a partir do caso brasileiro.

O papel político, social e cultural desempenhado pelos bacharéis em direito é

um assunto que muito ocupou (e muito inquietou) os cientistas sociais no Brasil. Em

geral, contudo, a visão que os estudiosos das humanidades têm a respeito do universo

jurídico é profundamente negativa: ele é percebido frequentemente como mero

1 MARQUES, J. M. Azevedo. “Chômage dos Intelectuais”. Ordem dos Advogados do Brasil – Boletim

Oficial da Seção de São Paulo. São Paulo, ano V, n. 16, abril de 1938. p. 6.

2 MARQUES, J. M. Azevedo. “Chômage dos Intelectuais”. Ordem dos Advogados do Brasil – Boletim

Oficial da Seção de São Paulo. São Paulo, ano V, n. 16, abril de 1938. p. 6-7. Grifos do autor.

3 SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Ver, em

especial, o comentário sobre representações e auto-representações dos intelectuais feito na p. 14.

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instrumento de dominação ou, ao menos, como uma esfera da vida social inexorável e

maleficamente ligada ao conservadorismo. A defesa da ordem, inerente à função de

estabilização das relações sociais de que se reveste o direito, e, mais, a cooperação

direta na construção de aparatos estatais autoritários, o que se observa, no caso

brasileiro, tanto no Estado Novo quanto na ditadura militar instaurada em 1964,

reforçam esse ponto de vista. Os juristas foram também, entretanto, vozes que clamaram

pela consagração de garantias fundamentais, militaram a favor dos direitos humanos e

denunciaram alguns excessos do poder estatal. Percebe-se, assim, que a atuação dos

profissionais ligados ao direito, ao menos no que tange aos aspectos que produzem

efeitos para além de seu ofício propriamente dito, é ambígua. Pode-se dizer, de maneira

genérica, que eles transitam entre as culturas políticas tradicionalista, pelo relevo que

dão à autoridade, e liberal, na medida em que defendem a necessidade do respeito à lei4.

A primeira dessas facetas aponta no sentido de um afastamento da figura do

intelectual, ao menos nas definições que enfatizam seu papel de crítico e sua autonomia

face ao Estado. A segunda sinaliza, contudo, na direção exatamente contrária, podendo

até mesmo ser identificada com a função de “dizer a verdade ao poder” que Gerard

Noiriel tanto valoriza5. Passemos, então, a analisar alguns aspectos da complexa atuação

desses homens que, embora sejam inegavelmente letrados, detenham, no Brasil, alguns

dos mais antigos diplomas superiores e desempenhem atividades profissionais em que

os atos de leitura e de escrita ocupam lugar central, raramente são considerados

intelectuais – ou que, quando o são, costumam ser tomados como tais não em função de

sua produção jurídica, mas de suas contribuições para o pensamento social, a teoria

política, a historiografia etc.

Para melhor situar e delimitar as discussões que desenvolveremos a seguir,

procederemos à definição de quatro figuras: o bacharel, o “operador do direito”6, o

4 Apropriamo-nos das reflexões de Jacques Prévotat e Nicolas Roussellier sobre a França, que, claro,

mereceriam correções para serem aplicados à realidade brasileira, por isso destacamos apenas dois

elementos, mais genéricos. Ver PRÉVOTAT, Jacques. La culture politique traditionaliste, pp. 33-67; e

ROUSSELLIER, Nicolas. La culture politique libérale, pp. 69-112, ambos em BERSTEIN, Serge

(dir.). Les cultures politiques em France. Paris: Éditions du Seuil, 1999.

5 NOIRIEL, Gérard. Dire la vérité au pouvoir: les intellectuels en question. Marseille: Agone, 2010.

6 Utilizamos apenas este termo entre aspas em função das frequentes críticas que são feitas ao

mecanicismo a ele implícito. Para os fins aqui propostos, entretanto, pareceu-nos ser a terminologia

mais adequada.

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jurisconsulto e o jurista. A primeira delas não apresenta grandes dificuldades de

conceituação, bastando para que se configure como tal que o indivíduo complete os

estudos que constam do programa de uma faculdade de direito e, com isso, obtenha o

diploma correspondente. A ela podemos agregar o “operador do direito”, aquele que

efetivamente se dedica à prática cotidiana do foro, em uma dimensão mais pragmática,

atuando em processos e diligências correlatas. Nem todo bacharel em direito vem a se

tornar um “operador do direito”, e já houve “operadores” que não eram bacharéis, como

os “rábulas”, homens que, mesmo sem formação jurídica formal, eram autorizados a

advogar.

Os jurisconsultos, como se depreende da própria terminologia empregada para

os designar, são aqueles chamados a opinar a respeito de questões polêmicas do

universo jurídico. Assim como o “operador”, o jurisconsulto desempenha uma função

prática mais imediata, uma vez que fornece pareceres frequentemente invocados pelas

partes durante processos e mesmo utilizados como fundamentos de decisões judiciais. O

jurista, por sua vez, insere-se em uma dimensão mais especulativa, ligada ao

pensamento teórico e à escrita de textos a respeito do direito, que assumem, muitas

vezes, forte teor crítico. Nesse sentido, eles buscam apontar possíveis falhas na

legislação ou nas práticas forenses e, com isso, engajam-se em debates públicos os mais

diversos. Centraremos nossa atenção na figura do jurista, que, acreditamos, é a que pode

ser mais frutiferamente aproximada da história intelectual.

Diversos dos traços por Cristophe Charle ao longo de sua “genealogia histórica

e social dos intelectuais” podem ser associados aos juristas, como o relevo dado à

instrução para definir uma identidade social7, o que se observa claramente no

“bacharelismo” brasileiro, a questão de um “dever-ser” que é assinalado à atuação dos

intelectuais, o que se liga facilmente à questão da justiça, tão cara (ao menos em tese)

aos diplomados em direito, bem como o certo caráter elitista de que se reveste esse

grupo social, na medida em que seus membros se consideram legitimados a falar em

nome da sociedade – ou, no caso dos juristas, a elaborar construções discursivas que

exercerão efeitos decisivos sobre ela.

7 CHARLE, Christophe. Naissance des “intellectuels”. 1880-1900. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990,

p. 60.

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Carlos Altamirano, também preocupado com a genealogia dessa categoria nova

de letrado, que ele qualifica como eminentemente moderna, em estreita relação com a

urbanização e com o desenvolvimento da imprensa de massas, esboça uma definição:

O intelectual não é apenas o homem que pensa o mundo, mas também

o que transmite a outros homens o que pensa do mundo [...]. Ainda

que o intelectual dependa da relação com seus pares e do

reconhecimento que estes podem lhe proporcionar, sua palavra

interpela também (e às vezes diretamente) a essa audiência imprecisa

que chamamos de opinião pública8.

Essa dimensão pública do intelectual coloca, ao menos inicialmente, uma

dificuldade para se pensar o jurista como tal, tendo em vista a linguagem muito peculiar,

quase impenetrável para o cidadão comum, que é empregada no direito. Não se trata,

contudo, de uma barreira intransponível, sendo comum a prestação de esclarecimentos a

respeito de suas atividades na imprensa por esses homens, como se observa, por

exemplo, no recente interesse pela decisão de causas polêmicas no Supremo Tribunal

Federal. É inegável, por outro lado, que, talvez mais que outras áreas do conhecimento,

o direito se reveste de uma dimensão pública muito concreta, uma vez que age

diretamente sobre as relações sociais.

A linguagem própria do direito remete, ainda, a outro traço essencial para

pensar o surgimento da figura do intelectual: as aspirações à autonomia. Nesse sentido,

a busca por uma “pureza metodológica”, que se fortalece ao longo do século XIX, ao

passo em que avançam os movimentos de codificação e começa a tomar forma o que

viria a ser conhecido como “positivismo jurídico”, cuja expressão mais acabada talvez

seja a “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen, é emblemática. Em especial, a relação

peculiar com o tempo que as reivindicações pela autonomia dos intelectuais engendram,

na medida em que eles passam, na expressão de Christophe Charle, a “se pensar como

diferentes do resto da sociedade”9, pode ser detectada com força entre os juristas. O

momento de elaboração de leis ou, principalmente, de códigos, diplomas legais

sistemáticos que nascem sob a dupla pretensão da completude e da perenidade,

8 ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales: notas de investigación. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2006.

p. 17-102.

9 CHARLE, Christophe. Les intellectuels em Europe au XIX

e siècle. Essai d’histoire comparée. Paris:

Éditions du Seuil, 2001. p. 20.

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surpreende os juristas representando a si mesmos como verdadeiros demiurgos de uma

temporalidade ainda por vir e de uma estabilização futura dos conflitos. No universo

jurídico, trata-se, contudo, de um traço paradoxal, na medida em que as funções nele

exercidas, ainda que revestidas das fortes reivindicações pela técnica na formulação e na

aplicação do direito, estão umbilicalmente ligadas à atividade estatal, jamais podendo

dela se dissociar por completo.

Longe de invalidá-lo, isso torna o estudo da atuação intelectual dos juristas

especialmente instigante em alguns contextos. Não se pode perder de vista, por

exemplo, que, na América Latina, a autonomização do trabalho intelectual, embora

reivindicada, deu-se de maneira muito incompleta. Os intelectuais mantiveram estreitos

e complexos laços com o poder estatal, o que causa estranheza a certos olhares europeus

(mas, poder-se-ia argumentar, nem mesmo na Europa essa autonomia alcançou a

plenitude, muito embora tenham sido fortes as reivindicações por ela)10.

Especificamente quanto aos juristas, Carlos Altamirano destaca as ocasiões em que eles

colocaram suas competências a favor dos debates políticos. Notadamente no pós-

independência da Hispano-América, eles desempenharam papel decisivo na construção

institucional do novo Estado, na medida em que a elaboração de novos códigos legais

foi um mecanismo importante no processo de construção de identidades nacionais11.

Nesse sentido, sustenta Rogelio Pérez Perdomo, também preocupado em pensar o

jurista como um intelectual e em aberta crítica à tendência a estudar o direito

unicamente pelo viés da profissão:

A independência não apenas significou a separação da Espanha mas

também a busca de um novo tipo de legitimidade, jurídico-

democrática. Daí a enorme importância da instrumentação jurídica da

independência, dos congressos, das constituições e das leis que

acompanharam o processo. Isso é o que confere importância aos

juristas no processo da independência. Foram os grandes ideólogos do

novo regime e também os organizadores dos novos estados12

.

10

Embora trate de um tema mais restrito, a literatura, as reflexões de Julio Ramos são, nesse aspecto,

muito pertinentes. Ver: RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na América Latina. Literatura

e política no século 19. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, em especial o capítulo “Limites da

autonomia – Jornalismo e literatura” (p. 96-129).

11 ALTAMIRANO, Carlos. Introducción general. In: ALTAMIRANO, Carlos (org.). Historia de los

intelectuales en América Latina: La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires:

Katz Editores, 2008. p. 9.

12 PERDOMO, Rogelio Pérez. Los juristas como intelectuales y el nacimiento de los estados naciones

em América Latina. In: ALTAMIRANO, Carlos (org.). Historia de los intelectuales em América

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No Brasil, a intensa atuação intelectual dos bacharéis em direito também se

observa, em estreita ligação com o protagonismo da educação jurídica na formação das

elites políticas. A fundação dos cursos de direito em São Paulo e em Olinda

(posteriormente transferido para o Recife) e todo o predomínio dos bacharéis que se

segue podem ser entendidos sob esse registro. Além disso, deve-se ressaltar que era

comum títulos aparentemente preocupados com a mera técnica jurídica ocultarem forte

conteúdo político, como sugeriu Gabriela Nunes Ferreira, em estudo sobre o Visconde

do Uruguai, a respeito de seu Ensaio sobre o direito administrativo13

.

Feita essa breve digressão sobre as especificidades do agir intelectual na

América Latina e estando estabelecido que, em nossa concepção, o jurista é (ou, ao

menos, pode facilmente ser, ainda que com as peculiaridades que discutimos acima) um

intelectual, resta discutir em que tipo de intelectual ele se constitui. Edward Said inicia a

primeira de suas conferências reunidas sob o título “Representações do intelectual”

indagando se o grupo social a que se decidiu dedicar seria extenso ou extremamente

restrito e selecionado. Como exemplo da primeira posição, Said cita Antonio Gramsci e

sua afirmação de que “todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas

nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” e, a partir

dela, retoma as duas espécies definidas pelo autor italiano: os “intelectuais tradicionais”

e os “intelectuais orgânicos”14

.

Os “operadores do direito” – e também a verdadeira miríade de “intelectuais”

invocada por Azevedo Marques – podem ser inseridos na primeira categoria, tendo em

vista a sua atuação em uma profissão liberal, que depende de um alto nível de formação

e cujo exercício se funda, primordialmente, na inteligência15

. Segundo Carlos

Altamirano, os advogados teriam sido uma das categorias que motivaram Gramsci a

Latina: La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. p. 173.

Grifos nossos.

13 FERREIRA, Gabriela Nunes. Visconde do Uruguai: teoria e prática do Estado Brasileiro. In:

BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009. p. 20-31.

14 SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 19-20.

15 Cf. CHARLE, Christophe. Naissance des “intellectuels”. 1880-1900. Paris: Les Éditions de Minuit,

1990. pp. 38-39.

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traçar a figura do “intelectual tradicional”, juntamente com professores, notários e

sacerdotes16

. Também entre os “intelectuais orgânicos” os bacharéis em direito podem

encontrar acolhida, mas preponderantemente com a figura do jurista, uma vez que uma

das funções traçadas por Gramsci para esses membros da intelligentsia é construir (ou

reformar) sistemas legais17

, o que demanda inevitavelmente um esforço de reflexão

teórica. Essa concepção ajuda a compreender a atuação dos juristas em favor de regimes

autoritários, na medida em que os intelectuais podem ser vistos, sobretudo quando

elaboram normas, como “funcionários” da hegemonia18

. Nesse sentido, os juristas se

aproximam dos “intelectuais de governo” tão combatidos por Gérard Noiriel19

.

Já a definição mais restrita de intelectuais, que Said toma de empréstimo a

Julien Benda – e em relação à qual demonstra uma simpatia considerável –, amolda-se

de maneira menos imediata à figura do jurista. Entendidos como “um grupo minúsculo

de reis-filósofos superdotados e com grande sentido moral, que constituem a

consciência da humanidade”20

, os intelectuais, ou “clérigos”, para utilizar a

terminologia de Benda, pouco teriam em comum com o caráter moderado ou mesmo

conservador do direito, que visa à pacificação social, à resolução de conflitos, muito

mais que à crítica intransigente do poder. A valorização da estabilidade que se dá nos

meios jurídicos torna muito rara a presença, entre seus membros, de “intelectuais

revolucionários”, marcados por desejos de ruptura, por um caráter rebelde e por uma

radicalidade discursiva, como descritos por Noiriel21

.

16

ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales: notas de investigación. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2006.

p. 62.

17 O construtor de um novo direito como intelectual orgânico é mencionado tanto por Said quanto por

Altamirano. Ver: SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras,

2005. p. 20; ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales: notas de investigación. Bogotá: Grupo Editorial

Norma, 2006. p. 64.

18 Cf. ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales: notas de investigación. Bogotá: Grupo Editorial Norma,

2006. p. 64.

19 Ver NOIRIEL, Gérard. Dire la vérité au pouvoir: les intellectuels en question. Marseille: Agone,

2010, em especial p. 137-207.

20 SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 20.

21 Ver NOIRIEL, Gérard. Dire la vérité au pouvoir: les intellectuels en question. Marseille: Agone,

2010, em especial p. 72-102.

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As definições do próprio Said do intelectual “como um exilado e marginal,

como amador e autor de uma linguagem que tenta falar a verdade ao poder”22

certamente encontram difícil aplicação no âmbito do direito Não se pode perder de

vista, entretanto, que, em decorrência do alto valor que conferem à legalidade (o que,

paradoxalmente, pode também apresentar efeitos profundamente conservadores), os

juristas constituem-se frequentemente como ferozes críticos dos excessos cometidos no

exercício do poder. Muitas vezes, sua inserção nos debates públicos é feita, também, em

nome do valor (ao menos pretensamente) universal da justiça e daquilo que se

convencionou a chamar de direitos humanos. Retornamos, assim, à ambiguidade da

atuação dos juristas, o que explica ou, ao menos, auxilia na compreensão da dificuldade

de enquadrar rigidamente esses intelectuais em tipologias. Para uma melhor apreciação

dessa complexidade da figura do jurista tomado como intelectual, discutiremos de

maneira mais concreta seu papel nas amplas reformas legislativas empreendidas no

Brasil nos anos 1930 e 1940.

Logo após o golpe que inaugurou, em novembro de 1937, a ditadura do Estado

Novo, o jurista mineiro Francisco Campos, que assumira há pouco o Ministério da

Justiça e redigira a nova Constituição, proferiu uma significativa conferência intitulada

“O Estado Nacional e suas diretrizes”. Publicado ainda em 1937 em forma de livro pela

Imprensa Nacional, esse discurso tinha a nítida intenção de legitimar o novo regime.

Nesse processo de justificação e de legitimação, o recurso a argumentos de fundo

jurídico foi notável. Tecendo fortes elogios à obra legislativa do governo provisório,

Campos mobiliza, a todo tempo, o argumento de que as leis deveriam ser elaboradas

pelos detentores do conhecimento técnico para o fazer, tendo em vista os prejudiciais

desvios impostos ao corpo de normas pelos parlamentares, que estariam mais

comprometidos com questões políticas pessoais que com o interesse nacional23.

Alguns anos depois, nos primeiros meses de 1945, Francisco Campos

concederia a O Jornal, órgão de imprensa publicado no Rio de Janeiro, uma entrevista

22

SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 15.

23 Ver CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional e suas diretrizes. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,

1937.

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que seria “considerada um marco do processo de decomposição do Estado Novo”24

.

Nesse depoimento, Campos afirma que os males por que o país passava, num momento

de clara crise do regime instaurado em 1937, não se deviam à Constituição que

elaborara e que, em verdade, ela “não chegou a vigorar”. Prossegue afirmando que, “se

tivesse vigorado, teria certamente constituído uma importante limitação ao exercício do

poder”. Mais adiante, critica abertamente o governo que se desenvolvera a partir dessa

Carta: “O nosso regime, de 1937 até hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal”.

Finalmente, golpeia de maneira direta o Presidente cujo fortalecimento antes defendera

com tanto empenho: “O sr. Getúlio Vargas já pensou demais em si mesmo. É tempo que

pense um pouco no Brasil e no seu povo”.

Essa guinada no posicionamento de Francisco Campos, considerado por muitos

– e com razão – um dos principais ideólogos do Estado Novo, pode ser lida, para muito

além do caráter “adaptável” do pensamento desse jurista que é identificado por Airton

Cerqueira Leite Seelander e Alexander Rodrigues de Castro25

, como um forte sinal da

complexidade e do caráter não raro ambíguo das relações estabelecidas entre os juristas

e o Estado durante todo o governo Vargas. Ela se liga, também, à ambivalência da

atuação política dos juristas, que podem vir a ser tanto construtores de ordens

autoritárias quanto críticos ferozes dos excessos do poder, a que já nos referimos em

mais de um momento deste trabalho. Do início da década de 1930 até meados da década

de 1940, foram muitos os momentos de confronto entre os intelectuais ligados ao direito

e as instâncias de poder. Igualmente numerosas, entretanto, foram as situações em que

se observou uma cooperação entre esses bacharéis e o governo.

Um primeiro momento em que se expressou uma forte divergência política,

não desprovida de conteúdos mais propriamente jurídicos, entre os bacharéis em direito

e o governo getulista pode ser identificado na chamada Revolução Constitucionalista.

Além de ter sido a feitura de uma nova Constituição uma das principais reivindicações

24

Todo este trecho foi elaborado com base nas informações do verbete sobre Francisco Campos em

ABREU, Alzira Alves de et al. (coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio de

Janeiro: Ed. FGV : CPDOC, 2001. Disponível em www.cpdoc.fgv.br. Acesso em 20 de junho de

2012.

25 SEELANDER, Airton Cerqueira Leite; CASTRO, Alexander Rodrigo de. Um jurisconsulto adaptável

– Francisco Campos (1891-1968). In: MOTA, Carlos Guilherme; SALINAS, Natasha S. C. (coords.).

Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 255-291.

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dos grupos que se envolveram nesse movimento, percebe-se que alguns de seus

principais líderes, como Alcântara Machado e Waldemar Ferreira, eram professores da

centenária faculdade instalada no Largo do São Francisco. Ao passo em que perdurou e

se prolongou a ditadura do Estado Novo, os pontos de conflito entre os juristas e o

governo se tornaram mais explícitos e mais profundos. Esses intelectuais passaram a se

opor cada vez mais fortemente ao caráter ditatorial do regime, sobretudo ao

cerceamento da atividade dos magistrados e à censura.

Houve, entretanto, um ponto em que, embora não sem atritos, a cooperação

entre juristas e o governo Vargas foi especialmente forte e prolongada: as reformas

legislativas que, desde a tomada do poder em outubro de 1930, foram empreendidas.

Essas reformas, em que se alterou ou, ao menos, procurou-se alterar praticamente todo o

aparato normativo brasileiro, em especial os códigos, funcionaram como fonte de apoio

ao governo, na medida em que atendiam a reivindicações que vinham ganhando força

ao longo dos anos 1920 nas páginas de periódicos ligados ao direito e em círculos de

debates como o Instituto dos Advogados Brasileiros. Os juristas vinham, com cada vez

mais empenho, denunciando o atraso das leis brasileiras, a sua inadequação à realidade

nacional, a urgente necessidade de substituí-las. As justificativas invocadas baseavam-

se, via de regra, em argumentos críticos ao sistema liberal vigente sob a Constituição de

1891, notadamente a necessidade de superar o maléfico “mimetismo” em relação a

instituições estrangeiras e o imperativo de submeter os interesses individuais aos da

coletividade – ambas, como já amplamente discutido pela historiografia, questões

prementes dos debates intelectuais mais amplos que se desenvolviam no Brasil desde as

décadas anteriores.

É fundamental atentar para o papel de protagonismo que os periódicos

jurídicos assumiram na discussão das alterações legislativas acima evocadas. Esse

gênero específico de impressos viveu, nos anos aqui discutidos, um momento de grande

vitalidade, com oferta crescente de títulos e consolidação de alguns dos anteriormente

existentes – o que não é casual. Prova disso é a nota de apresentação do fascículo de

janeiro de 1936 da Revista Forense, o primeiro publicado após sua mudança de Belo

Horizonte, onde fora fundada em 1904, para o Rio de Janeiro. Os editores evocam como

justificativa para tal movimento a nacionalização das leis processuais, que havia sido

VI Simpósio Nacional de História Cultural

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar

Universidade Federal do Piauí – UFPI

Teresina-PI

ISBN: 978-85-98711-10-2

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determinada pela Constituição de 1934 e que tornaria necessário o conhecimento de

decisões judiciais de todo o país, levando a revista a se estabelecer na capital da

República e, com isso, a igualmente “nacionalizar-se”26

.

Muitas dessas publicações tomaram a tarefa de influir sobre os rumos das

reformas legislativas como verdadeiros projetos intelectuais, preocupando-se em reunir

impressões e comentários a respeito das tentativas de alterar as leis. Por outro lado, e

apesar do contexto ditatorial e do cerceamento dos debates imposto pelo fechamento do

Congresso, a chancela dos detentores do conhecimento jurídico foi explicitamente

buscada pelo Estado nesse processo: o “reparo crítico dos entendidos e técnicos,

magistrados e advogados” foi erigido pelo próprio Getúlio Vargas, no discurso

comemorativo do primeiro aniversário do Estado Novo,27

em condição necessária para

que os novos códigos fossem postos em vigor.

Pode-se perceber que o governo Vargas de uma maneira geral e, em especial, o

Estado Novo, embora tenham sido, aqui, explorados de maneira muito sumária,

constituem-se em um observatório privilegiado para apreender as duas vertentes

principais (e, em certa medida, contraditórias) da dimensão intelectual da atuação dos

juristas, como “construtores do consenso”, notadamente em torno de regimes

autoritários, e como “críticos dos excessos do poder”, muito em função da importância

crucial que atribuem à legalidade. Para retomar os dizeres de Azevedo Marques com

que iniciamos esta exposição e à guisa de conclusão, consideramos relevante ressaltar

que a postura do jurista paulista, ao redigir suas notas sobre o “chômage” dos

intelectuais, pode também ser vista como uma busca por se inserir nessa categoria, de

que toma explicitamente como representantes os advogados – algo que não é singular

ou incomum entre seus colegas no período (ou mesmo em outras épocas) e que deveria,

portanto, funcionar como um chamado para os historiadores que se interessam pelos

intelectuais. Esperamos, enfim, ter convencido o leitor de que a resposta à questão que

dá título a este trabalho é, ou ao menos pode ser, uma afirmativa – mas, em caso

contrário, ao menos teremos suscitado um debate, o que é sempre válido.

26

Revista Forense, v. LXVI, ano XXXIII, fasc. 391. Rio de Janeiro, janeiro de 1936. p. 3.

27 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. v. VI – Realizações do Estado Novo – 1 de agosto de

1938 a 7 de setembro de 1939. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, s/d. p. 105.