É Possível Fazer Televisão No Brasil?

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 NOVOS ESTUDOS 88 ❙❙  NOVEMBRO 2010 5 Comecemos por um lugar comum (lembrando que essa expressão, lugar comum, não por acaso, pode designar também lugar de todos , ou mesmo “espaço público”), subdivido em duas metades indissociáveis, imprescindíveis uma à outra. Primeira metade: Quando subordinada à orientação da autoridade estatal, a emissora pública não é pública de fato; sua linha editorial, sua programação e sua visão de mundo tendem a ser capturadas pela óp- tica estatal ou governamental, o que a distancia irreversivelmente dos pontos de vista próprios da sociedade civil. A subserviência ao poder público, nesse caso, mais do que nociva, é mortal. Impede a emissora de transmitir um olhar crítico em relação ao poder. Não custa partir do óbvio. Por que a sociedade sustenta uma entida - de prestadora de serviço público? Porque a atividade que essa entidade desenvolve corresponde a um direito da cidadania. Universidades ou escolas públicas justicam-se porque atendem o direito à educação. Hospitais públicos, por garantir o acesso do cidadão à saúde e aos trata- mentos e cuidados a que tem direito. Uma emissora pública existe por- que as pessoas têm direito (como autoras, agentes ou espectadoras) à informação jornalística, ao conhecimento e às manifestações culturais. Quanto à informação jornalística, a emissora pública é um posto avançado daquilo que o cidadão tem direito a perguntar e demandar, não daquilo que o poder gostaria de difundir. O vetor que orienta a existência das emissoras públicas nasce na sociedade, nos direitos de homens e mulheres que são a fonte do poder, e aponta para o Estado e para o governo como quem lhes dirige perguntas. Nessa fórmula, as autoridades são polos passivos, entram em cena quando inquiridos.  As emissoras públicas, em suma, existem para ajudar a sociedade a rea- lizar o ideal da imprensa — que é instituição social, independente do Estado, em que vige a liberdade de ex pressão, incum bida de scalizar o poder. Elas só têm sentido social e histórico se estiverem a ser viço da sociedade e dos direitos dos cidadãos. Quando servem ao governo e às suas necessidades de propaganda, são uma deform ação que nega a razão de sua origem. [*] Para a nalização deste texto, f oi providencial a revisão atenta de Felipe Marques, quem também apoiou o au- tor na pesquisa. OPINIÃO É POSSÍVEL FAZER TELEVISÃO PÚBLICA NO BRASIL? * Eugênio Bucci

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Artigo-2010-BUCCI

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  • NOVOS ESTUDOS 88 NOVEMBRO 2010 5

    Comecemos por um lugar comum (lembrando que essa expresso, lugar comum, no por acaso, pode designar tambm lugar de todos, ou mesmo espao pblico), subdivido em duas metades indissociveis, imprescindveis uma outra.

    Primeira metade: Quando subordinada orientao da autoridade estatal, a emissora pblica no pblica de fato; sua linha editorial, sua programao e sua viso de mundo tendem a ser capturadas pela ptica estatal ou governamental, o que a distancia irreversivelmente dos pontos de vista prprios da sociedade civil. A subservincia ao poder pblico, nesse caso, mais do que nociva, mortal. Impede a emissora de transmitir um olhar crtico em relao ao poder.

    No custa partir do bvio. Por que a sociedade sustenta uma entidade prestadora de servio pblico? Porque a atividade que essa entidade desenvolve corresponde a um direito da cidadania. Universidades ou escolas pblicas justificamse porque atendem o direito educao. Hospitais pblicos, por garantir o acesso do cidado sade e aos tratamentos e cuidados a que tem direito. Uma emissora pblica existe porque as pessoas tm direito (como autoras, agentes ou espectadoras) informao jornalstica, ao conhecimento e s manifestaes culturais.

    Quanto informao jornalstica, a emissora pblica um posto avanado daquilo que o cidado tem direito a perguntar e demandar, no daquilo que o poder gostaria de difundir. O vetor que orienta a existncia das emissoras pblicas nasce na sociedade, nos direitos de homens e mulheres que so a fonte do poder, e aponta para o Estado e para o governo como quem lhes dirige perguntas. Nessa frmula, as autoridades so polos passivos, entram em cena quando inquiridos. As emissoras pblicas, em suma, existem para ajudar a sociedade a realizar o ideal da imprensa que instituio social, independente do Estado, em que vige a liberdade de expresso, incumbida de fiscalizar o poder. Elas s tm sentido social e histrico se estiverem a servio da sociedade e dos direitos dos cidados. Quando servem ao governo e s suas necessidades de propaganda, so uma deformao que nega a razo de sua origem.

    [*] Para a finalizao deste texto, foi providencial a reviso atenta de Felipe Marques, quem tambm apoiou o autor na pesquisa.

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    possvel fazer televiso pblica no brasil?*

    Eugnio Bucci

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    [1] Vale a pena consultar a Lei 19.132, promulgada no Chile em 30 de maro de 1992, que criou a TVN (ver ). Segundo o artigo 25, a TVN fica impedida de receber qualquer aporte de dinheiro pblico. Tudo em seu funcionamento decorrente das regras de mercado, inclusive a veiculao de publicidade comercial. Na prtica, tratase de uma emissora comercial. No obstante, todas as suas contas esto disponveis no site da emissora, incluindo a remunerao dos dirigentes (ver ). Nesse caso, o procedimento um timo exemplo para emissoras que se pretendam pblicas em qualquer parte do mundo.

    [2] A grade e os programas esto disponveis em . So atraes de auditrio, jornadas esportivas comerciais, programas de humor etc. voltados fundamentalmente a disputar os maiores nacos de audincia e, com isso, ser capaz de competir com as emissoras comerciais. Isso no quer dizer que emissoras pblicas no disputem audincia. Elas disputam, mas com um propsito essencialmente crtico.

    Segunda metade: Nenhuma emissora pblica pode ser assim chamada se est subordinada ao mercado. Esse foi o modelo adotado no Chile. Administrativamente pode dar certo, as contas fecham. No que mais interessa, porm, no d certo. A TVN (Televisin Nacional de Chile) pblica apenas por ser patrimnio pblico, mas opera como se fosse uma emissora comercial qualquer. Por isso assume a fisionomia de uma televiso comercial como as demais. No faz exatamente radiodifuso pblica; oferece um cardpio de programas que misturam humor, notcias, esportes, como uma rede privada1.

    Uma estao de rdio ou TV que no seja propriedade particular certamente no propriedade privada, como outras tantas. Portanto, tratase de uma propriedade mais ou menos pblica. Mas, se sua receita ordinria vem de anncios, ela funciona como uma emissora comercial. Sua nica distino em relao s demais ser apenas sua natureza jurdica. Na prtica, porm, adotar um comportamento tpico de emissora comercial. Nesse sentido, a programao da TVN, de Santiago do Chile, sintomtica2.

    Quando depende de verbas publicitrias, um canal de TV ou de rdio no tem como escapar de estruturar sua grade de programao segundo a lgica e o ritmo dos intervalos comerciais. Isso acarreta efeitos estticos e ticos. Sua cadncia, por assim dizer, igualase aos canais comerciais; o andamento fica idntico, assim como a linguagem e os cdigos audiovisuais.

    Quando se sustenta por meio de publicidade, a emissora passa a prestar contas aos anunciantes, aos quais oferece retorno em forma do consumo incentivado pelas campanhas que veicula. Assim, ain da que no se subordine ao poder poltico ou estatal, ela se desequilibra na direo oposta: subordinase ao mercado, s suas predilees, modulaes, e perde a capacidade de levar ao ar um olhar crtico em relao ao consumo e s crenas prprias do mercado. Em suma, deixa de ser pblica.

    IndependncIa sem arrogncIa

    Seja no plano poltico (relaes com o governo e o Estado), seja no plano econmico (relaes com o mercado), a independncia indispensvel para a realizao de qualquer projeto de radiodifuso pblica. Independncia no deve ser entendido, no entanto, como arrogncia. Em tempos de valorizao da noo de interdependncia, envolta em fetiches, incensada pelo presente contexto global, preciso uma certa cautela ao se pregar a independncia. Atualmente, o desafio tico aprender a conviver em um ambiente onde no existe mais a possibilidade do isolamento absoluto de nenhum ator, pas ou comunidade.

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    Independncia, portanto, no isolamento, mas autonomia de critrios de deciso e de procedimentos. o distanciamento crtico em relao ao poder poltico ou estatal e em relao ao mercado. De modo algum implica uma postura de autossuficincia tica, cultural e jornalstica. A emissora pblica no deve prestar contas ao governo nem ao capital, mas isso justamente porque as presta, recorrentemente, ao pblico e sociedade. A independncia em relao ao poder (governamental ou econmico) prrequisito para a interdependncia da emissora pblica em suas relaes com a sociedade.

    Mesmo para os entusiastas da interdependncia como valor universal entusiasmo de que o presente artigo no compartilha , indispensvel a premissa da independncia, pois s so interdependentes aqueles que sabem preservar sua prpria independncia. O termo independncia, enfim, no se contrape ao termo interdependncia, mas antnimo de dependncia e dependncia do poder.

    Quanto a isso, sejamos cuidadosos. Em nome da interdependncia, essa expresso palatvel e muito em voga, todo tipo de sujeio tem sido imposta a emissoras pblicas no Brasil e, de modo geral, em toda a Amrica Latina. Se o canal que se diz pblico gerido por gente escolhida direta ou indiretamente pelo governador ou pelo presidente da Repblica, o que resulta no interdependncia, mas dependncia explcita. Um canal como esse no corresponde aos ideais da comunicao pblica. Do mesmo modo, quando sua sobrevivncia depende de recursos vindos dos anunciantes, a emissora que se diz pblica tambm no independente e, nesse sentido, no realiza a razo de ser da comunicao pblica.

    o carter pblIco na tradIo europeIa

    As emissoras pblicas foram criadas para proteger a vitalidade dos debates e das manifestaes culturais que a sociedade deve pautar, produzir e entabular em seu domnio civil prprio, independentemente do Estado e tambm do mercado. H variaes de pas para pas, mas o fundamento poltico o mesmo. E com razo.

    A Europa de meados do sculo XX, onde ganhou concretude o projeto das emissoras pblicas, ainda hoje nos serve de referncia. Quando a socialdemocracia europeia decidiu prover o servio de radiodifuso (definido como servio pblico em quase todos os pases democrticos) por meio das redes pblicas (no comerciais, portanto), o seu propsito era assegurar a proteo do debate pblico. Em termos habermasianos, que consolidam em forma de teoria essa viso, o projeto era assegu rar que os atores convidados a atuar dialogicamente na esfera pblica no estivessem (to) expostos colonizao pelo capital ou mesmo pelo Estado. Com isso, o fluxo das notcias e os dilogos teriam como pressuposto a igualdade de condies de acesso informao.

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    [3] A Radio Televisin Espaola (RTVE) alcanou, ao final de 2005, uma dvida de 7,5 bilhes de euros (ver ). Em setembro de 2006, a dvida chegou a 7,8 bilhes de euros e foi noticiado que o Tesouro Pblico assumiria o dbito (ver < http://terranoticias.terra.es/articulo/html/av21111055.htm>). Em 2010, a dvida ultrapassou a casa dos 16 bilhes de euros, e o debate em torno das formas de quitla no se concluiu. Em Portugal, a RTP vive um desgaste que passa pelo questionamento, h vrios anos, dos custos da emissoroa e de altos salrios pagos aos executivos da instituio. Ver, por exemplo, S com a RTP o Estado gasta 400 milhes de euros, em . Outro fato marcante foi o corte, anunciado pelo governo britnico no financiamento dos servios da BBC Internacional. Tradicionalmente custeados pelo Estado, esses servios passaro a ser debitados prpria BBC. Ver Governo corta recursos da BBC World, em .

    Naqueles tempos, meados do sculo XX, tomava corpo a utopia da comunicao pblica: as emissoras no comerciais e no governamentais protegeriam a esfera pblica. A radiodifuso comercial, se tomasse conta do espectro, era vista por esse projeto como um fator de risco. Dessa concepo brotaram as redes pblicas nacionais de televiso e rdio nas diversas democracias europeias, que perduraram por um longo ciclo sem maiores abalos. Pelo menos at meados da dcada de 1980, a fatia mais importante da radiodifuso nesses pases ainda era controlada pelas instituies pblicas. Mais tarde, alguns canais foram privatizados e, estabeleceuse a partir de ento um novo equilbrio entre emissoras pblicas e comerciais. At hoje, as primeiras ocupam lugar de destaque e, no raro, de liderana, nos rankings de audincia.Mas, de qualquer maneira, a mentalidade nesses pases sofreu um deslocamento, incorporando a ideia de que a comunicao comercial tambm no poderia faltar na ordem democrtica; a convivncia entre os sistemas pblico e comercial seria bem mais saudvel do que o monoplio do primeiro.

    As privatizaes, contudo, no afetaram as bases da convico, ainda hoje dominante entre intelectuais de diferentes tendncias, de que s se pode falar genuinamente de esfera pblica se esta for mediada, ainda que no exclusivamente, pelas redes pblicas, com regras que protejam as simetrias dialgicas e as culturas nacionais contra as distores do mercado. Essa convico baseiase no princpio de que os bens culturais e a informao de interesse pblico no se esgotam em sua dimenso de mercadoria. No so apenas mercadoria.

    Na Frana, a reserva de mercado para o cinema nacional tem sido praticamente uma unanimidade entre as foras polticas, da direita esquerda. Ou os bens culturais so relativamente preservados por medidas de ordem pblica, ou a prpria cultura seria devastada por presses dos mercados. Com as emissoras pblicas, o raciocnio tem sido mais ou menos o mesmo. Se os meios pblicos de comunicao (estatais ou no, mas fundamentalmente no comerciais) do o quadro da comunicao social, o espao pblico menos vulnervel a presses do poder (econmico ou governamental) e , portanto, mais democrtico e inclusivo.

    Por isso, at hoje as redes pblicas tm forte presena nos pases europeus, ainda que seu prestgio venha declinando. Esse declnio se deve, em primeiro lugar, s barbeiragens reincidentes da m gesto, o que gerou estruturas perdulrias e ineficientes em boa parte dessas emissoras, e, em segundo lugar, s controvrsias sobre a pertinncia (ou no) de vultosos investimentos em emissoras cuja eficincia e necessidade vm sendo postas em questo3.

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    [4] Conferir a declarao de objetivos da FCC para 20092014 em .

    a tradIo amerIcana

    Tambm nos Estados Unidos, embora a matriz da radiodifuso tenha se baseado muito mais no modelo comercial, deuse a adoo de regras pblicas bem assertivas, com o objetivo de proteger os mesmos valores. Esse dado normalmente no percebido por quem se interessa pela histria das emissoras pblicas, mas tambm nos Estados Unidos, ainda que o modelo tenha sido privado e comercial, o Estado implantou regras e regulaes de ordem pblica para impedir, no linguajar do liberalismo, a captura na semntica da socialdemocracia o termo seria colonizao da agenda pblica de debates por interesses privilegiados.

    Foi assim que surgiu a agncia reguladora FCC (Federal Communications Commission), em 1934, para impedir formas sutis ou ostensivas de monoplio nos meios de comunicao. Os objetivos centrais da FCC so garantir, no plano poltico, a pluralidade de vozes e, no plano econmico, a concorrncia saudvel entre as diversas empresas do setor. As pessoas se perguntam por que, por exemplo, nos Estados Unidos, se firmaram trs redes nacionais de televiso aberta (NBC, CBS e ABC). A resposta muito simples: elas so trs porque a lei, por meio da FCC, assim obrigou. O mercado realizava, pois, um projeto pblico. Com base nesses e outros propsitos, a FCC vem inibindo oligoplios e monoplios, com as adaptaes que os tempos requerem, conforme as mudanas de padro tecnolgico4.

    O princpio geral, no entanto, tem sido preservado. Se um s grupo econmico se move para aambarcar o controle das principais estaes de rdio e TV numa determinada regio, alm de veculos impressos importantes, ele deve encontrar limites s suas pretenses, em nome do interesse pblico. A razo simples. Caso alcance seu objetivo, o grupo poder adquirir um predomnio indesejvel sobre a conduo do debate pblico, o que conspira contra a diversidade de vozes e tambm contra a concorrncia comercial. por isso que se costuma dizer que as legislaes antitruste, aplicadas s comunicaes, protegem a boa prtica da concorrncia e a livre formao da opinio pblica.

    Dessa forma, tambm nos Estados Unidos, a despeito da tradio comercial do setor, as regras pblicas estiveram postas desde o incio, ajudando a proteger o espao pblico dos riscos da concentrao de audincia e de mercado, o que contribuiu para preservar, tambm, em alguma medida, o princpio do carter pblico dos debates e das manifestaes culturais que tm lugar na esfera pblica.

    Ao mesmo tempo, a sociedade norteamericana reservou para as emissoras pblicas alguns espaos cativos e de grande valor. As estaes da PBS (Public Broadasting System) esto presentes em vrias cidades, com programao e gesto tipicamente no comerciais e no

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    [5] H vrios registros desse crescimento. Entre eles, ver Downie Jr., Leonard e Schudson, Michael. The reconstruction of American Journalism. Columbia: Universidade de Columbia, 2009, pp. 33ss, em .

    governamentais. O grande destaque da temporada, porm, a NPR (National Public Radio), cuja audincia, numa rede colaborativa que se aproxima de mil emissoras de rdio espalhadas por todo o pas, cada qual com sua prpria grade autnoma, j atinge a marca superior a 30 milhes de ouvintes. Mesmo com a crise que se abateu sobre as redaes dos Estados Unidos nos ltimos anos, a NPR ampliou sua influn cia, com jornalismo independente sobre temas de interesse geral5.

    mercado e democracIa: por que a regulao refora a lIberdade

    Os casos europeu e norteamericano demonstram de modo cristalino que, no mundo da comunicao social, os riscos potenciais de contradio entre mercado e democracia so um cenrio conhecido de longa data, o que requer a presena de regras pblicas. Tais riscos s podem ser contidos por marcos legais, que devem ao mesmo tempo regular o mercado e impedir a possibilidade de interferncia estatal ou governamental nos contedos culturais e jornalsticos da programao.

    A regulao democrtica, nesse sentido, fortalece a liberdade; afasta a possibilidade de censura, no o contrrio. Nos mercados de radiodifuso onde no h marcos regulatrios democrticos, a liberdade se fragiliza e as chances de interferncia governamental ou estatal nos contedos da radiodifuso aumentam consideravelmente. Prova disso o que se passa no Brasil, onde praticamente todas as emissoras pblicas, durante todo o tempo, ficam expostas aos interesses e, mais ainda, aos caprichos de autoridades pblicas. Com o perdo da expresso, as autoridades aqui deitam e rolam, em cima das emissoras pblicas porque a lei no as impede.

    Os marcos legais que restringem, em pases democrticos, os monoplios e a extenso da propriedade cruzada dos meios de comunicao fazem parte de um sistema lgico. Esse sistema costuma incluir, tambm, o veto fuso entre radiodifuso e igrejas se o Estado laico, os servios pblicos concedidos pelo Estado a particulares (como as emissoras de rdio e TV) tambm devem primar pela laicidade, de sorte que as religies podem aparecer na programao, mas no podem ser proprietrias de emissoras ou de redes e a regulamenta o de um espao bem demarcado para a radiodifuso pblica, definindo em termos prticos e verificveis os marcos da independncia perante o governo, o Estado e o mercado. A legislao democrtica que cobe os oligoplios a mesma que protege a radiodifuso pblica dos tentculos do poder. No se trata de fenmenos separados.

    Tambm por isso marcos legais inspirados nos valores que regem esse campo na Europa e nos Estados Unidos so imprescindveis democracia brasileira. Eis aqui uma fatura que ainda no foi quitada pelos governos e legislaturas at hoje. Assim como ocorre na Europa, e

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    [6] A Constituio Federal, no artigo 223, determina que a radiodifuso observar a complementaridade dos sistemas pblico, estatal e privado, mas at hoje, como reiterado constantemente nas discusses a respeito, esse e outros dispositivos da Carta Magna no foram regulamentados. Em geral, na cultura dos legisladores e dos gestores pblicos, no h clareza sobre o que diferenciaria o sistema estatal do sistema pblico, no sendo difcil prever que a regulamentao desse dispositivo ser no mnimo rdua, assim como a regulamentao do pargrafo 5 do artigo 220, que estabelece: Os meios de comunicao social no podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monoplio ou oligoplio.

    mesmo nos Estados Unidos, a legislao nos ajudaria a demarcar com mais clareza o lugar e a funo complementar da radiodifuso pblica (em relao comercial) em nosso pas6.

    natureza, dInheIro e gesto

    Em sntese, o conceito de emissora pblica constituise a partir de trs prrequisitos que devem ser observados.

    Em primeiro lugar, a natureza jurdica da instituio, que absolutamente no pode ser propriedade particular. Admitese, em virtude das caractersticas do ordenamento jurdico brasileiro, que figuras jurdicas como fundaes (regidas pelo direito privado), Oscips (Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico) e Ongs (Organizaes No Governamentais) supram a funo da natureza jurdica de emissoras pblicas. Mas a instituio no pode ser comercial, no deve ter o lucro por finalidade, nem estar sujeita interferncia governamental. Ela pode at ser estatal como, por exemplo, as universidades , desde que sua gesto esteja inteiramente protegida de ingerncias do poder Executivo. Apesar disso, o modelo de rgo estatal est longe de ser o mais indicado.

    Em segundo lugar, h o prrequisito do financiamento. Este deve ter, tambm, carter pblico. Pode vir de fundos pblicos ou privados, desde que expressamente desvinculados de interesses mediatos ou imediatos governamentais ou comerciais; pode vir de uma taxa cobrada de cada domiclio com TV por fora de lei, como acontece com a BBC; pode vir tambm de donativos ou de outras contribuies voluntrias, como acontece com a PBS (Public Broadcasting Service) ou a NPR nos Estados Unidos; pode vir ainda, no todo ou em parte, at mesmo do errio, desde que esteja livre da possibilidade de contingenciamentos que se traduzem em presso sobre a gesto editorial da instituio e fora do alcance de atos discricionrios dos gestores da mquina estatal. O que mais conta, aqui, que a origem do dinheiro no se reflita, nem mesmo indiretamente, na orientao editorial da emissora, para que interesses particulares (partidrios, familiares, religiosos, empresariais ou de movimentos sociais mais ou menos organizados) no exeram presso sobre a definio da pauta jornalstica e da programao em geral. Para ser pblica, o prrequisito do financiamento de carter pblico precisa ser atendido, desvinculado de presses oriundas do Estado ou do mercado.

    Em terceiro lugar, o que define o carter verdadeiramente pblico de uma emissora de radiodifuso a gesto independente. Ou seja, a gesto administrativa, financeira e editorial deve se dar segundo critrios e parmetros autnomos, no devendo prestar contas vontade poltica das autoridades ou ao apetite por audincia to prprio do mercado.

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    [7] Os eletivos so escolhidos pelo prprio Conselho; os vitalcios so Jorge da Cunha Lima, Lygia Fagundes Telles e Fabio Magalhes; os natos so secretrios de Estado ou municpio, reitores de universidades, entre outros.

    s a partir desses pressupostos que podemos iniciar uma discusso sobre a programao propriamente dita. Eles so, pois, a condio prvia para que a entidade esteja preparada para pensar, conceber, planejar, produzir e pr no ar uma programao de carter verdadeiramente pblico. No caso brasileiro, que mais nos interessa aqui, o problema no est na avaliao da grade ou dos programas exibidos, mas justamente incide sobre tais prrequisitos.

    e no brasIl?

    No Brasil, no h emissora pblica realmente independente. Todas, e elas so muitas e diversas, submetemse, raramente com elegncia, mais raramente ainda com discrio, e no mais das vezes com desfaatez, s idiossincrasias da autoridade.

    Os dois casos emblemticos nesse sentido so a TV Cultura de So Paulo e a TV Brasil, ligada ao governo federal. A primeira , de longe, o nosso melhor exemplo de emissora pblica. a nica que possui um conselho curador que efetivamente elege o presidente executivo da instituio. Em suas quatro dcadas de existncia, a TV Cultura ofereceu sociedade, em vrios momentos, uma programao de alta qualidade e que, por isso, atraiu expressivos contingentes de audincia. Ainda hoje, o que de melhor temos nesse campo.

    De dois anos para c, ela vem sendo seguida de perto pela TV Brasil. As duas, no entanto, direta ou indiretamente, padecem de vulnerabilidades estruturais advindas da existncia de vasos comunicantes que as vinculam ao poder Executivo.

    Na TV Cultura, dos 44 membros do conselho curador, 22 so eletivos, trs, vitalcios, dezoito, membros natos, e um representa os funcionrios da instituio7. Em tese, essa proporo bastaria para impedir que a vontade dos membros natos, que so secretrios de estado e reitores de universidades pblicas e privadas, entre outros alguns deles ligados ao governador ou exercendo cargos para os quais contaram com a nomeao do governador pudesse definir as deliberaes do conselho. Na prtica, porm, embora eles sejam minoritrios, a liderana do governo decisiva. O histrico das principais decises do conselho comprova que, de um modo ou de outro, em momentos agudos, a posio prevalecente aquela patrocinada pelo governo paulista. Assim foi assim com a escolha de todos sem exceo os presidentes da instituio; assim ocorre com a escolha dos membros eletivos. raro e bastante improvvel, embora no impossvel, que um nome que desagrade ao Executivo estadual seja conduzido ao conselho curador da Fundao Padre Anchieta.

    Em termos estritamente formais, o conselho curador autnomo. Seus membros eletivos so majoritrios, e ele elege de fato e de direito

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    o presidente da instituio que no responde ao governador, mas ao prprio conselho. E isso no pouco, tratase de um marco importante em relao ideia de autonomia. A TV Cultura de So Paulo (estado que tambm possui a Univesp TV, alm de emissoras de rdio em AM e FM) sem dvida a mais independente e a mais influente emissora pblica do pas. Mas ainda assim, na prtica, tal independncia apresenta limitaes.

    Limites ainda maiores podem ser observados na Empresa Brasil de Comunicao (EBC), que resultou da fuso da Radiobrs com a TVE do Rio de Janeiro, em 2008. A EBC mais conhecida hoje pela televiso que levou ao ar, a TV Brasil. Se comparada s duas emissoras que lhe deram origem, ela bem mais avanada como entidade de comunicao pblica, embora esteja ainda muito submetida ao poder estatal.

    Criada pela lei 11.652, de 7 de abril de 2008, a EBC conta com a presena de dois conselhos em sua gesto: o conselho de administrao e o conselho curador. H, ainda, o conselho fiscal, que no tem funo ativa na conduo da entidade, cuidando, como de praxe, apenas da verificao e da aprovao das contas e da legalidade dos atos de gesto. O poder de fato reside no conselho administrativo, que elege ou pode destituir os seis diretores da empresa. O diretorpresidente e diretor geral, por sua vez, so escolhidos diretamente pelo presidente da Repblica. No entanto, os cinco membros do conselho de administrao so indicados pelo poder Executivo (ministrios ou pelo prprio presidente da Repblica).

    O conselho curador composto por 22 integrantes, todos eles tambm designados pelo presidente da Repblica. Suas atribuies so mais consultivas do que efetivas. Aprova anualmente o plano de trabalho e a linha editorial da EBC, alm de acompanhar e fiscalizar a veiculao da programao. Mas tem poder para, por deliberao da maioria absoluta de seus membros, emitir voto de desconfiana diretoria ou a um de seus diretores. A segunda advertncia resultar necessariamente em afastamento do diretor em questo ou, se for o caso, de toda a diretoria.

    Apesar de ter uma estrutura muito mais pblica do que suas antecessoras, a EBC ainda est vulnervel s vontades do Planalto. Isso no quer dizer que ela seja cotidianamente instrumentalizada pelo poder, mas sua estrutura confere presidncia da Repblica os meios para constrangla, pressionla e enquadrla em finalidades de propaganda, quando, claro, existe tal inteno. Se o presente governo no se vale desses meios, no tem como garantir que, no futuro, outros ocupantes do Planalto exeram esse tipo de poder.

    A EBC est vinculada Secretaria de Comunicao Social da Presidncia da Repblica (Secom), cujo ministro conserva a prerrogativa de indicar o presidente do conselho de administrao, que, como vimos,

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    o rgo superior de direo da estatal. Esse vnculo institucional com a presidncia da Repblica vai na contramo das melhores prticas da comunicao pblica, conforme a tradio europeia, segundo a qual as emissoras pblicas devem ter afinidade com a rea da cultura e no com os rgos encarregados de promover a imagem do presidente da Repblica. Nos pases em que as emissoras pblicas tiveram xito, elas so consideradas entidades culturais que guardam vnculos indiretos com ministrios ligados cultura.

    A Secom no um organismo com finalidades culturais; tem como objetivo primeiro a gesto da imagem da presidncia da Repblica. Ela gerencia a publicidade do governo compra espao publicitrio nos meios de comunicao privados e cuida da assessoria de imprensa do presidente. Sua meta difundir uma imagem favorvel do chefe de Estado e de governo, o que caracteriza comunicao de governo, no comunicao pblica.

    O vnculo da EBC com a Secom, portanto, no poderia ser mais imprprio, uma vez que este rgo no tem nada a ver com cultura em sentido amplo ou com a atividade jornalstica em sentido estrito. Dedicado assessoria de imprensa, no deveria supervisionar uma empresa pblica encarregada de informar com objetividade e iseno.

    Os propsitos e os mtodos da assessoria de imprensa em rgos pblicos ou privados no so compatveis com os propsitos e os mtodos do jornalismo. Existe uma oposio natural e de fundo entre o papel de difundir verses oficiais e o papel de informar o cidado com objetividade. Tanto que, nesse ambiente, bastante improvvel que um jornalismo independente e crtico possa encontrar terreno frtil.

    Com base no exame do que acontece na TV Cultura e da TV Brasil, a concluso de que no temos radiodifuso pblica entre ns evidente. Isso no significa que no estejamos caminhando nessa direo. Significa apenas que esse um caminho tortuoso, traioeiro, e que h mais por fazer do que normalmente se admite.

    Com efeito, no pas existem outras emissoras que se dizem pblicas, porm, com base nas definies aqui estabelecidas, no podem ser assim consideradas. Numa estimativa preliminar, sujeita s imprecises prprias do setor (como aquelas que caracterizam de modo contumaz o Ministrio das Comunicaes), em 2009, contavamse 147 emissoras educativas no Brasil. A soma, porm, no confivel. H, no conjunto, emissoras realmente educativas e outras que so educativas apenas na fachada. As que importam para a discusso aqui empreendida, contudo, so outras. Num levantamento realizado em 2006 pelo Ministrio da Cultura, por ocasio do I Frum Nacional de TVs Pblicas, a Associao Brasileira de Emissoras Pblicas, Educati

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    [8] Ver Vrios autores. I Frum Na-cional de TVs Pblicas: Diagnstico do Campo Pblico de Televiso. Braslia: Ministrio da Cultura, 2006.

    [9] Ver .

    [10] Esses dados so de 2006. O nmero de TVs Universitrias do Brasil pode ser consultado no site da Associao Brasileira de TVs Universitrias (ABTU): . J o levantamento das emissoras comunitrias foi feito pela Frenavatec Frente Nacional pela Valorizao das TVs do Campo Pblico, e pode ser consultado em . O nmero de TVs Legislativas est no site da Associao Brasileira TVs e Rdios Legislativas Astral (). Esto associadas Astral apenas treze emissoras legislativas municipais. Levantamento feito em 2006 por Maria Lourdes dos Santos indicou que esse nmero, na realidade, era de 49 emissoras (Santos. Breve histria da TV legislativa no Brasil: razes e origens. Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao, 2006. Braslia/So Paulo: Anais Eletrnicos/Intercom, 2006.

    [11] Para uma verso mais extensa dese tema, ver A TV Pblica no faz, no deveria dizer que faz e, pensando bem, deveria declarar abertamente que no faz entretenimento, artigo publicado em I Frum Nacional de TVs Pbli-cas Caderno de Debates n. 1. Braslia: Ministrio da Cultura, 2006, pp 1320. As bandeiras que so elencadas nesse tpico se valem de uma transcrio de trechos do artigo citado.

    vas e Culturais (Abepec) informou a existncia de dezenove estaes geradoras, entre elas a TV Cultura de So Paulo, a TV E do Rio Grande do Sul e a Rede Minas8. Ao todo, essas estaes multiplicavamse em 2.880 retransmissoras. Atualmente, a Abepec contabiliza 22 filiados9. H ainda 52 canais universitrios e outros 63 canais comunitrios, transmitidos, em sua grande maioria, por sistemas de televiso por assinatura. Uns e outros declaramse pblicos, mas no atendem, de modo geral, aos prrequisitos da comunicao pblica tal como foram enumerados aqui. Os canais universitrios, muitas vezes, atuam como veculo de promoo das universidades a que pertencem.

    preciso listar, tambm, nesse conjunto, as TVs Legislativas: duas no mbito federal (TV Cmara e TV Senado), que contam com sinais abertos em algumas localidades, mas so vistas em geral nos servios de TV por assinatura; dezessete no mbito estadual e 49 na esfera municipal10. Tanto essas como a TV Justia, pertencente ao Supremo Tribunal Federal, no contam com conselhos independentes, mas se subordinam funcional e diretamente s cpulas dessas casas. A TV Cmara e a TV Senado respondem s mesas da Cmara e do Senado, respectivamente. A TV Justia controlada diretamente pela presidncia do STF. Todas elas esto a servio da divulgao desses rgos, no a servio da fiscalizao deles pela sociedade. No so, por isso, emissoras pblicas.

    algumas palavras sobre programao11

    Se h, na bandeira da independncia, uma plataforma tica a unificar a causa da TV Pblica, possvel listar cinco bandeiras estticas que tambm devem ser observadas. Importa, aqui, ter clareza de que, apenas quando a independncia compreendida, demarcada e praticada, o tema da programao se apresenta ao alcance da televiso pblica. Essas bandeiras estticas sero discutidas a seguir.

    Almejar o invisvel

    O sujeito s v o objeto ao qual sabe dar nome. No olhar, s ganha visibilidade o que tem lugar na linguagem. O objetivo permanente da televiso pblica deve ser o de furar o pano da visibilidade, que embrulha como um invlucro o que chamamos de realidade. Aqui que se inscreve o dever da experimentao de linguagem.

    Almejar o invisvel significa no compactuar com a iluso essencial do entretenimento, que a de apoiar no visvel o critrio da verdade. O visvel no nem contm o critrio da verdade. O visvel algo que nos fala aos sentidos, mas o conhecimento, a razo, o entendimento e a expresso das ideias estendemse para alm das fronteiras do visvel.

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    A televiso pblica no deve se contentar com figuras, cenas, imagens, mas fundamentalmente com ideias em curso, em movimento. Para almejar o invisvel preciso sair da postura de ser bajulador de plateias, que uma das atitudes definidoras da indstria do entretenimento.

    Desmontar a oferta do gozo prfabricado

    A televiso pblica deve problematizar o ciclo do gozo do olhar, a oferta central da indstria de entretenimento. At mesmo ou principalmente as peas publicitrias centrais, mais do que mercadorias distantes, oferecem o gozo prximo, o prazer do consumo subjetivo da imagem que se antecipa ao ato social, material, de consumir. Desmontar essa oferta de gozo oferecer o diferente, deixar de insistir na reincidncia de doses maiores das mesmas sensaes.

    Buscar o contedo que no cabe na TV comercial

    Uma sociedade democrtica precisa dos dois pratos da balana, a televiso comercial e a televiso pblica. O que a televiso comercial faz a televiso pblica no deve pretender fazer. Ao mesmo tempo, o que a televiso pblica faz, se estiver centrada em sua misso, a comercial no consegue fazer. Essa bandeira prega a diferenciao. preciso identificar onde est a forma de comunicao que a televiso comercial no pode fazer, porque justamente a, nesse ponto escuro, invisvel, que deve ser instalado o pequeno farol da TV pblica.

    Quando a TV Pblica insiste em copiar, de modo rebaixado, os modelos privados dominantes, ela ganha aquele ar de atrao requentada, de espetculo de segunda. Tentando fugir do que o senso comum chamaria de chatice, ela se deixa levar pela tentao de ficar parecida com os padres estticos das redes comerciais e, a, sim, acaba ficando insuportavelmente chata. Claro que ela no tem o intuito de construir uma programao enfadonha. Ao contrrio, ela deve pressupor, nesse sentido, o risco necessrio para ser inteiramente distinta dos meios privados.

    Emancipar em lugar de vender

    A TV pblica no pode sucumbir ao impulso de se desejar desejada. Sua vocao problematizar essa modalidade primitiva de seduo ou de mendicncia afetiva. Ela deve, sim, desmontar esse jogo sem sada e desmascarar as armadilhas. Sua proposta de comunicao mais incerta, mais ingrata, mais provocativa indispensvel para a diversificao de linguagens. Ou ser assim ou ela no conseguir deixar de ser linha auxiliar da indstria, s vezes at lhe fornecendo produtos para a comercializao.

    A televiso pblica no quer pblico cativo como a televiso comercial. Ela no funcionar como cativeiro, mas como emancipadora. Seu sentido tornar o sujeito suficientemente autnomo para, no li

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    mite, poder prescindir da televiso. O pesadelo que atormenta a televiso comercial que, um dia, as pessoas no precisem mais dela. A realizao da TV pblica pressupe o contrrio a emancipao. Ela no teme a emancipao e por isso pode se diferenciar. Ela se realiza tal como o professor diante do aluno que ala voo prprio. Com essa proposta de pacto emancipador, ela atrair mais gente, pois saber corresponder a uma necessidade que se encontra em aberto, que a televiso comercial no consegue atender. Ao no querer prender a sua audincia, adotando outra atitude diante dela, a televiso pblica ter, seguramente, mais audincia.

    A televiso comercial pode at ser educativa, se encontrar caminhos para isso. A televiso pblica uma instituio que precisa produzir gente emancipada, liberta, crtica e pode at se tornar um sucesso, se for radical no seu compromisso de emancipar. O negcio da televiso pblica no entretenimento e, indo mais longe, no sequer televiso: cultura, informao, liberdade. Para a televiso comercial, o meio um fim em si. Para a pblica, o meio uma possibilidade em aberto.

    Desvencilharse do medo do chefe

    Os administradores da TV pblica vivem amedrontados com a ideia de que vo perder pblico. Nada poderia ser to alucinado: eles no podem perder o que no tm. Mesmo assim, vivem com medo de perder (ainda mais) audincia e de levar bronca dos chefes, os governantes. Eles no sabem que estes no so chefes de verdade; ao menos, no deveriam ser. Eles no sabem que s perdendo o medo do chefe que deixaro de temer a falta de audincia e a, sem esse medo, que atrairo verdadeiramente o pblico.

    De resto, a falta de pblico no deveria assustlos, pois tem sido a sua rotina. Para a TV pblica, s um caminho possvel: no competir com a televiso privada; no copila. Fora disso, ela at poder prestar bons servios para o entretenimento, mas no ter valor para a democracia, para a cultura e para os olhos que se abrem diante dela. No ter valor.

    para haver tv pblIca, o maIor obstculo no legal, mas cultural

    A gesto o ponto crtico da fase atual da nossa televiso pblica, a qual envolve, mais precisamente, os trs requisitos para a sua independncia natureza jurdica, padro de financiamento e modo de gesto. No h possibilidade de que o esprito da programao e do modo de proceder das equipes no decorra do modo de gesto. Os dados da administrao todos eles devem ser transparentes, publicados diariamente na internet. Os critrios e as mtricas (de qualidade editorial, desempenho etc.) s tm legitimidade quando

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    compartilhados com o pblico. Os cargos no podem estar abertos s indicaes polticas, mas devem ser preenchidos exclusivamente com base em qualifi cao, desempenho e perfi l. Se possvel, deve prevalecer o critrio do concurso pblico, e ainda est por ser feito a esse respeito um programa de ao amplo e detalhado para que as emissoras pblicas possam se reconciliar com a causa pblica e a democracia. No h, enfi m, boa programao que no tenha como alicerce uma gesto de excelncia, pblica, efi ciente e transparente.

    Em suma, possvel fazer televiso pblica no Brasil desde que haja uma mudana cultural sobre as diretrizes e os contornos desse tipo de instituio. A comear pelos polticos, que, sem exceo, entendem as emissoras pblicas como extenso das assessorias de imprensa pessoal de governantes. O aparelhamento das ferramentas da comunicao pblica uma constante em governos esquerda ou direita do espectro poltico, sem variaes. Naturalmente, a independncia das emissoras pblicas deveria estar inscrita em lei, o que s seria vivel a partir de um pacto democrtico no interior das casas legislativas. At l, o caminho ser com certeza acidentado, talvez longo. Muito dinheiro pblico ainda vai escoar nesse rio que um dos veios mais renitentes do patrimonialismo na poltica brasileira: os agentes polticos creem fervorosamente que, quando o patrimnio pblico constitudo de antenas, estdios, cmeras e microfones, pode ser usado sem cerimnia para fi ns partidrios, familiares ou escancaradamente pessoais. Artigos como este aqui no mudam essa cultura.

    Eugnio Bucci, jornalista, professor da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So

    Paulo e do Curso de Psgraduao (lato sensu) em Jornalismo da ESPM. Foi presidente da Radiobrs

    (20032007)

    Rece bido para publi ca o em 25 de outubro de 2010.

    novos estUDoscEBRap

    88, novembro 2010pp. 518

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