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ANDRADE, H. | O SAGRADO E A TCNICA: A IGREJA CATLICA E A GENTICA MODERNA | SOCITEC E-PRINTS

O SAGRADO E A TCNICA: A IGREJA CATLICA E A GENTICA MODERNAHiran Silva Andrade Jnior

RESUMO: A crena na sacralidade da vida tem proporcionado um egrgio valor para as exigncias morais referente inviolabilidade da pessoa humana. Sobrevm que, consoante a teologia catlica, com um mundo cada vez mais tecnicizado, essa mesma vida pode ser violada, sobretudo a partir da contingncia da tcnica gentica. No obstante, o que realmente vem a ser o sagrado? Ademais, o que a tcnica e qual sua relao com o homem? Como podemos observar a contingncia da gentica moderna? Afinal, como a teologia catlica entende a vida humana e a prpria tcnica? Em face destes questionamentos, tecemos algumas ponderaes sobre o sagrado, a tcnica, a contingncia, a gentica moderna, bem como as consideraes da prpria Igreja Catlica sobre a tcnica e sua ambivalncia. Palavras-chave: Sagrado, Tcnica, Contingncia, Gentica moderna, Teologia catlica.

1. O Sagrado e a Vida Humana

Os pensamentos postos em papel no passam, em geral, de um vestgio deixado na areia por um passante: v-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho preciso usar os prprios olhos. (SCHOPENHAUER In: A Arte de Escrever)

Tratar do sagrado constitui algo semelhante a ponderar sobre aquelas coisas que, uma vez ou outra, ouvimos ou fazemos meno de forma corriqueira. No inslito, por exemplo, j termos ouvido em reunies familiares que devemos nos portar reverentemente mesa no momento de nossas refeies, pois, estar mesa neste insigne momento constitui algo sagrado. Do mesmo modo, no seria excepcional que j tenhamos escutado da boca de

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algum defensor dos direitos humanos que a vida no apenas inviolvel, mas tambm sagrada. A despeito disso, antes de qualquer conotao, o sagrado uma categoria de interpretao e de avaliao que jaz com proeminncia no domnio religioso, pois neste e deste que passou a existir (Otto, 1992). Contudo, ainda assim, muitas vezes ouvimos ou empregamos o termo sagrado por extenso de sentido. Isto se d porque, a rigor, independentemente de sua denotao religiosa, entendemos por esta palavra um predicado de ordem moral e tica, sinnimo de valor absoluto e inviolvel, isto , algo a ser considerado com distino, cuidado e respeito. Nenhuma civilizao desconheceu qualquer forma de ente ou ser sagrado, assevera Voltaire (2000). Ademais, defende o filsofo, a crena numa divindade at serviu historicamente como um eficaz antdoto contra as insensibilidades dos homens. Para fundamentar essa tese, ele pondera sobre diferentes formas de religio (zoroastrismo, judasmo, cristianismo etc.), expondo que a crena numa divindade que penitencia ou recompensa serviu h tempos como base ontolgica para a coeso e ordem social. A propsito, por apresentar tamanha convico no que afirma, e este seu ponto lhe to acachapante, Voltaire chegou a sugerir que se Deus no existisse seria necessrio invent-lo (Armstrong, 1994). Sucede que na inexistncia de Deus, de um alicerce sagrado, para Voltaire as certezas morais sucumbiriam, pois, fazendo aqui um breve paralelo com a epgrafe famosa de Os Irmos Karamazov de Fidor Dostoivski, Se Deus no existe, tudo permitido. Assim seria, pois, tanto para Voltaire como quem sabe para Dostoivski, a moral no possuiria um valor absoluto. A partir deste raciocnio que abre para a no-existncia de um Criador, de um Ser moral Supremo, perder-se-ia ento a forma absoluta do juzo moral e, de tal modo, como a moral seria uma mera conveno construda socialmente como quaisquer outras no sendo, portanto, um ordenamento institudo pelo prprio Deus, o Totalmente Outro (Otto, 1992), ela no teria um valor a ser considerado com brio e esmero.

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Em linguagem sociolgica como se o respeito ordem das coisas sagradas conferisse-nos uma espcie de barreira que impede ou tenta impedir! o surgimento de uma presumvel anomia. A rigor, a anomia tem sido tratada como sinonmia de desregramento ou desorientao social. No obstante, o que quer que venha ser, o certo que para meditar sobre a anomia faz-se imprescindvel retomar mile Durkheim (2000), o primeiro a trat-la como uma categoria sociolgica. Segundo Michel Lallement (2003), o esquema analtico de Durkheim repleto de preocupaes com a moral e coeso social, bem como, neste mesmo passo, influenciado pela considerao para no dizer reverncia norma. Falando ainda em mile Durkheim, todavia no querendo perder nosso foco, voltemos dimenso sagrada. Durkheim foi, ao lado de seu sobrinho Marcel Mauss (2005), um dos primeiros socilogos a tratar do sagrado. Sobre este tema, sua discusso surge em As formas elementares da vida religiosa, obra em que ele estabelece uma espcie de teoria geral da religio, com base na anlise das instituies religiosas mais simples (Aron, 2002). Ao sistematizar o fenmeno religioso, Durkheim expe-nos a religio como establishment social que administra e viabiliza o sagrado. Consoante Durkheim, a essncia da religio est na diviso do mundo em fenmenos sagrados e profanos. O sagrado e o profano constituem dois planos coexistentes, todavia, heterogneos e incomparveis. O primeiro corresponde esfera do inviolvel, protegido e isolado pela proibio; o segundo, por seu turno, vem a ser a dimenso das coisas abominveis, pois deturpa e viola a consagrao do primeiro. Nestes termos, a coisa sagrada , por excelncia, aquela que o profano no deve e no pode impunemente tocar (Durkheim, 2003, p. 23-24). Digno de nota que a diferena entre sagrado e profano to abissal, a ponto de Durkheim alegar que nunca houve na histria do pensamento humano nenhum outro exemplo de categorias radicalmente to desiguais. O sagrado constitui, nas palavras de Rudolf Otto, uma categoria complexa, compreendendo um componente com uma caracterstica

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completamente distinta, que foge ao que nos racional. Para Otto, o mago do sagrado irracional, o que faz dele, inclusive, dificilmente explicvel. Em virtude do elemento irracional do sagrado, Otto acaba tratando no deste em si, mas dos sentimentos que o mesmo provoca no homem. Um dos principais sentimentos gerados o de dependncia, ou melhor, de insignificncia do homem perante a coisa sagrada. O que caracteriza esse sentimento de dependncia religiosa o sentimento de estado de criatura, a saber, o sentimento da criatura que se abisma no seu prprio nada e desaparece perante o que est acima de toda a criatura (Otto, 1992, p. 19). O majestas, a absoluta superioridade do poder arrogado ao sagrado, leva o religioso a uma conscincia de seu prprio apagamento, aniquilamento, p e cinza. Superado esse bosquejo acerca do sagrado, passemos agora para a compreenso da teologia catlica sobre a vida humana. Como sabido, o cristianismo confere ao homem uma natureza sui generis, sendo ele a apoteose de toda a criao. A vida humana possui um indelvel valor sagrado, pois surge como uma ddiva preciosa de Iahweh, o Deus judaico-cristo. Iahweh, a propsito, descrito como um Deus Vivente (Jeremias 10: 10), Deus que criou todas as coisas (Apocalipse 4: 11) e que possui a fonte da vida (Salmo 36: 9). Neste aspecto, o respeito e o cuidado com a vida humana tornam-se um compromisso sagrado. Consoante a exegese bblica e a teologia catlica, a fonte da vida est no prprio Deus (Salmos 35: 10), o que faz da vida humana sagrada e inviolvel, j sendo pensada assim desde a fase inicial que precede o nascimento (Evangelium vitae, n. 61). assim que provocar a morte de um feto por nascer torna-se abominvel, pois at mesmo a vida desse feto a nascer preciosa para Iahweh (xodo 21: 22, 23). Fazendo ainda meno Bblia, vejamos o que foi dito pelo salmista Davi:

(...) tu formaste os meus rins, tu me teceste no seio materno. Eu te celebro por tanto prodgio, e me maravilho com as tuas maravilhas! Conhecias at o fundo do meu ser: meus ossos no te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na terra mais profunda. Teus olhos viam o meu embrio. No teu

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livro esto todos inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura (SALMOS 139: 13-16).

A pessoa humana na perspectiva crist corpore et anima unus, ou seja, unidade do corpo e da alma, pois imagem e semelhana do Ser Espiritual Supremo, apresentando assim, uma dimenso corporal e espiritual (Catecismo da Igreja Catlica, 1997). Por conseguinte, na teologia catlica, a vida humana constitui algo de uma grandeza e valor inestimveis. Alm do mais, o homem surge como coroao da criao (Genesis 1: 26-30), a pea mais importante do gnio divino, pois senhor legtimo das outras criaturas tambm projetadas pelo grande arquiteto. Esta perspectiva faz da vida humana algo sagrado, porque alm de sua origem apresentar uma ao criadora de Deus, manter-se- para sempre numa relao especial com o Criador, seu nico fim. Nesta esteira, Deus proclama-se Senhor absoluto da vida do homem, formado sua imagem e semelhana (Evangelium vitae, n. 53). O apstolo Paulo nos oferece uma das alegorias mais apropriadas para asseverar a sacralidade da vida humana sob o prisma cristo. Trata-se de uma passagem de sua primeira carta aos corntios. Nela, ele compara o corpo do homem a um templo, dizendo que aqueles que destrurem o templo de Deus, sero destrudos, pois este sagrado. (I Cor 3: 1618; 6:19-20) Esta passagem da carta nada traria de novo, caso no se referisse pessoa humana enquanto templo sagrado. Nesse fragmento contido na primeira carta de Paulo aos Corntios, o apstolo assevera:

No sabeis que sois templo de Deus e que o Esprito de Deus habita em vs? Se algum destri o templo de Deus, Deus o destruir, porque o templo de Deus, que sois vs, sagrado (I CORNTIOS 3: 16-18).

Consoante Mircea Eliade (2001), o templo, lugar sagrado onde o divino habita, o espao que assegura a comunicao com o mundo dos deuses. O templo um recinto consagrado onde a comunicao com o supra-sensvel

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sucede e no qual o homem pode subir simbolicamente ao cu e os deuses descerem terra (Eliade, 2001). Interpretando essa construo de Eliade luz da perspectiva crist, o templo constitui o espao onde jaz a glria de Iahweh. Ora, se para o cristianismo o corpo humano, a pessoa humana, enfim, a vida humana, Templo do Esprito Santo, sendo assim um verdadeiro santurio, ento no pode sob hiptese alguma ser profanado. Digno de nota o episdio bblico em que Jesus Cristo expulsa alguns indivduos por estarem profanando o trio do templo de Jerusalm. Estes, em verdade, comercializavam objetos no templo. Faziam do templo um lugar propcio para ganhar dinheiro (Joo 2: 1617). A pessoa humana possui para o catolicismo uma dignidade que transcendente. O homem, Imago Dei, recebeu do prprio Deus uma incomparvel e inalienvel dignidade. A noo de pessoa ligada idia de dignidade, s surge no campo da filosofia e da teologia com o cristianismo (Moura, 2002). Antes, a exemplo do que acontecia na Roma antiga, a noo de pessoa estava fortemente ligada ao teatro. A mscara utilizada pelo ator era chamada persona (pessoa). Ela era usada a fim de que a voz do artista reboasse melhor pelo espao aberto em que representava. Ainda na Roma, o direito tambm empregava a noo de pessoa, todavia, pessoa era apenas o sujeito romano que possua plenos direitos, o que exclua os escravos, por exemplo, que eram considerados coisas com algumas caractersticas humanas. (idem, 2002). Tal como hoje empregamos, o conceito de pessoa apresenta grande influncia da teologia crist e, sobretudo, da teologia de Toms de Aquino (ibidem, 2002). Pessoa, diz este telogo, significa o que h de mais perfeito de toda a natureza, isto , o que subsiste em a natureza racional (apud Moura, 2002, p. 31). Na prpria Declarao dos Direitos do Homem, ainda que no exista a referncia explcita ao conceito de pessoa, percebemos que o mesmo est ligado idia de razo e dignidade: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, so dotados de razo e conscincia e devem

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agir em relao uns aos outros com esprito de fraternidade. (Artigo I apud Moura, 2002, p. 31). Esta tnica do respeito ao ser humano acha ressonncia no corao da mensagem crist (Palma, 2006). Com esta mensagem, o respeito pessoa humana levado s ltimas consequncias. At mesmo os escravos, durante muito tempo considerados coisas e no pessoas, a partir dessa boa nova passam a ser portadores de uma qualidade moral que infunde respeito, pois tambm foram criados imagem e semelhana de Deus. Ademais, o numen da teologia crist no faz distino de pessoas, pois todos os homens possuem a mesma dignidade de criaturas. Por fim, o certo que na mensagem crist o respeito vida passa a ser um dever irretorquvel, pois, acima de tudo, a vida constitui algo inviolvel e sagrado.

2. Uma breve incurso na contingncia da tcnica gentica Consoante Martin Heidegger (2006a), a essncia da tcnica jaz no desocultamento. Na compreenso heideggeriana, desocultar significa desencobrir algo que ainda no havia sido explorado pelo homem, mas que a partir de ento, por tornar-se desvelado, passa a ser disponvel e funcional para o mesmo. Com efeito, num mundo cada vez mais tecnicizado, a disponibilidade e a funcionalidade tm se desenvolvido num ritmo de enorme e espantoso aceleramento. H algumas dcadas, o homem passou a desvelar no apenas os segredos da natureza exterior do reino vegetal e animal, do fundo do oceano, dos astros, etc. mas tambm os segredos intrnsecos a si mesmo. Com as novas e cada vez mais intensas tecnologias da gentica moderna, os cientistas acham-se agora investigando sua prpria natureza sob novas formas, escavando com mais profundidade uma regio em que a compreenso apresenta-se como complexa e inacabada. O sujeito desvelador de segredos agora tambm, de forma mais acentuada com o advento da engenharia gentica, um objeto do prprio

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desvelamento, um objeto prestes a ser, em sua integralidade, cientificamente decifrvel e acessvel s novas tcnicas genticas. No tocante s descobertas e invenes tecnolgicas, cada vez mais o homem tambm se acha includo (...), no podendo mais esconder seu carter de matria-prima mais importante. (Heidegger, 2006c, p. 80). Deste modo, o homem aparece, radicalmente agora, como um ser distinto, que tanto o sujeito quanto o objeto de seu prprio saber (Rabinow, 1999). Com a tcnica gentica moderna, algumas concepes firmadas sobre a natureza, abarcando a nossa prpria, esto sendo repensadas (Rifkin, 1999). A contingncia est abrindo seu leque tentador para as manipulaes feitas em laboratrios. Ao tratarmos de transgnicos, clones, fabricao de rgos humanos, intervenes no gene humano, medicina personalizada e

regenerativa etc., estamos tratando de prticas provenientes da gentica moderna. Esta modalidade biotecnolgica representa, segundo Jeremy Rifkin (1999), nossas mais inquietantes expectativas e pretenses, uma vez que toca em nossa natureza e pode adentrar de forma transformadora em nossa prpria auto-definio. A engenharia gentica, a exemplo, tem proporcionado, diria Rifkin, algumas caractersticas da mais nova matriz operacional econmica de nosso tempo. A ttulo de informao, estas seriam: a manipulao e explorao de recursos genticos para fins econmicos especficos; a concesso de patentes de genes; o comrcio global de material biolgico; o nascimento de uma civilizao comercialmente eugnica etc. Assim como qualquer outra modalidade da tcnica moderna, a tcnica gentica tambm apresenta sua dualidade. Ela tanto pode acenar para uma espcie de idade de ouro, quando um leque de doenas poderia ser previamente catalogado e removido, como tambm convida-nos a pensar num admirvel mundo novo (Huxley, 2003), mundo vastamente tecnicizado e ameaado em sua essncia. Afinal, o certo que em virtude do progressivo avano da gentica moderna e da possibilidade de investigar e mapear cada gene e sua funo, assim tambm como de manipul-lo, as cincias biolgicas

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e biomdicas deixam de ter um papel secundrio na evoluo das cincias em geral. (Garcia, 1996, p. 105). Com o processo de DNA recombinante, surgiu a possibilidade real de juntar, recombinar, moldar, inserir e costurar o material vivo; construindo, por conseguinte, utilidades econmicas com rendimentos satisfatrios. A eficincia e a velocidade esto no bojo dessa nova revoluo, constituindo seu carro-chefe. Com as cleres transformaes no campo da tcnica gentica, a humanidade dispe de uma srie de conhecimentos acerca dos antigos mistrios da vida, bem como de um poder de influncia sobre eles, como jamais vistos outrora. Presentemente, somos capazes, porque no, de montar, desmontar e remontar o cdigo da vida, a linguagem de Deus (Collins, 2007). Ademais, como afirmado por Bill Clinton, ex-presidente dos EUA, com a tcnica gentica estamos aprendendo a linguagem com a qual Deus criou a vida. (apud Collins, idem, p. 10). A biologia, diga-se de passagem, tem revelado uma elegncia matemtica, assevera o geneticista Francis Collins (2007), diretor do Projeto Genoma Humano. Sobrevm que assim Collins raciocina, pois no perde de vista a noo do clculo, elemento mais que presente na tcnica moderna. Sem sombra de dvidas, com este aspecto de destaque do dispositivo tcnico (Brseke, 2006b) vem tona a instrumentalidade racional, ou melhor, a manipulao. Esta, a propsito, tem sido um dos traos mais caractersticos no decurso da civilizao tecnolgica. Com este trao, alis, a gentica tem revelado toda sua fora enrgica, toda sua potncia. A palavra manipulao nos remete a alguns sinnimos comuns como moldar; manejar; dar forma etc. e alguns sinnimos por analogia ou extenso de sentido, tais como influenciar; adulterar; preparar; controlar etc. (Houaiss, 2001). Em outras palavras, subjacente idia de manipulao podemos encontrar a de dominao, at porque, quem manipula, dirige algo consoante sua vontade e segundo seu desgnio. O que dizer da chamada reproduo assistida, tcnica viabilizada para mulheres com dificuldades de engravidar? A chamada fertilizao in

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vitro (FIV), por exemplo, um dos tipos mais famosos dessa modalidade reprodutiva, consiste na manipulao dos gametas em laboratrios, onde o vulo e o esperma so unidos fora do tero, num processo cujo embrio resultante em seguida implantado no ventre. Na tcnica gentica, como se pode observar a partir da reproduo assistida, na envergadura da FIV, a manipulao constitui o cone maior do desocultamento, proporcionando, dentre outras coisas, uma ampla capacidade de mergulhar nos segredos mais profundos da vida humana. Mais que isso, ela ajusta, desajusta e reajusta os aspectos que naturalmente, ou melhor, no plano dos acontecimentos naturais se fazem infactveis. Passados alguns anos da clonagem da ovelha Dolly, presenciamos um gradual aperfeioamento da tcnica gentica numa velocidade

surpreendente. De l para c, muitas clonagens e algumas criaes em laboratrios j sobrevieram. No ano de 2001, por exemplo, cientistas norteamericanos da empresa Advanced Cell Technology conseguiram desenvolver uma tecnologia para clonar embries humanos. Mais recentemente, cientistas britnicos noticiaram a criao em laboratrio de um embrio humano com cargas genticas de duas mes e um pai. At mesmo o nascimento de um beb, a partir de manipulao e seleo gentica, j adveio. Enfim, estes so alguns dos numerosos acontecimentos que podem ser observados no domnio da tcnica gentica. Parece que a causa movens da manipulao o princpio da conscincia da contingncia (Brseke, 2006c). como se brotasse uma indagao inquietante: Por que deixar algo assim, j que pode ser diferente? Por que deixar ser como , o que pode ser de outra maneira? Em verdade, da clonagem de Dolly para c, a tcnica gentica vem andando a passos largos e cada vez mais velozes. A tcnica gentica contingente. Assim como qualquer outra tcnica, obviamente ela pode tomar direes diversas. Buscar a origem gentica de muitos males que se desenvolvem a partir de explicaes congnitas e tentar obter meios precisos para preveni-los ou remov-los, por exemplo, pode tambm tomar um rumo diferente. Apesar de com o Projeto Genoma Humano e as

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pesquisas com clulas-tronco os cientistas terem aberto um vasto leque de possibilidades com as quais muitas doenas possam ser prevenidas e curadas antecipadamente, a tcnica gentica abriu esse mesmo leque da

contingncia para o mundo dos grandes negcios, pois acabou atraindo muitas empresas que queriam obter lucros com a reserva de patentes (Moser, 2004). Destarte, a corrida tecnolgica para localizar e patentear genes comercialmente valiosos tornou-se to intensa que ofertas em dinheiro tm sido feitas aos pesquisadores, para que eles auxiliem na investigao gentica. (Rifkin, 1999, p. 62). Muito provavelmente, o maior problema da concesso de patentes a formas de vida, esteja naquela idia presente na filosofia de Francis Bacon, qual seja: expandir as fronteiras do poderoso imprio do saber humano para realizar tudo o que for possvel, pois saber poder. Saber e poder, alis, que fazem do geneticista um indivduo distinto, arquiteto soberano da vida; numa lgica em que vida dado um valor meramente utilitrio, uma vez que ela passa a ser objeto de pesquisas e de lucros. Em face da tcnica moderna e de seus respectivos efeitos inquietantes, o filsofo Hans Jonas (2006) prope, em O princpio responsabilidade, uma tica iminente para a civilizao tecnolgica. Jonas sugere um novo imperativo tico no ciclo da ao pautado no agir responsvel, isto , num agir que no deve fechar os olhos para a perpetuao salutar da vida. O imperativo tico propugnado por Jonas sugere que venhamos agir de modo que nossa ao seja compatvel com a permanncia de uma vida humana autntica, ou seja, que no venhamos por em perigo a continuidade da vida humana (Jonas, 2006). Assim, ele nos recomenda sua tica da responsabilidade, uma vez que

O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a cincia confere foras antes inimaginveis e a economia o impulso infatigvel, clama por uma tica que, por meio de freios voluntrios, impea o poder dos homens de se transformar em uma desgraa para eles mesmos [...] a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaa, ou esta se associou quela de forma indissolvel. Ela vai alm da constatao da ameaa

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fsica [...] conduziu ao maior desafio j posto ao ser humano pela sua prpria ao (idem, 2006, p. 21).

Hans Jonas, alis, dedica uma breve discusso manipulao gentica, advogando que o homem almeja controlar a sua prpria evoluo, a fim no s de manter a espcie em sua integridade, mas, sobretudo, de aperfeio-la e transform-la consoante seu prprio projeto. Diante de fenmenos como estes, Jonas prope o seu tractatus technologico-ethicus dentro de uma reflexo baseada no que chama heurstica do medo. Jonas acredita que a previso do perigo pode nos servir como bssola num tempo de penria. Mesmo a despeito de propor o princpio responsabilidade e no o princpio medo, o presente filsofo declara que, decisivamente, o medo constitui o melhor substituto para a verdadeira virtude e sabedoria que em tempos anteriores tinham parte de seu fundamento na categoria do sagrado (Jonas, 2006, p. 65). Em verdade, consoante Jonas, estamos diante de um vcuo tico. Sendo assim, o medo pode ser o grande baluarte de um agir responsvel que visa conter as presumveis intempries do futuro. Alm disso, o presente filsofo parece at querer reformular o imperativo tico exposto por Jesus Cristo (Mateus 19: 19; Lucas 10: 27). Se Cristo dissera que devemos amar ao prximo como a ns mesmos, Jonas parece substituir o verbo amar por respeitar e o substantivo prximo por semelhante, pois sua tica da responsabilidade no deixa de ser um imperativo que considera o respeito ao semelhante. A propsito, Jonas parece dialogar com a teologia apocalptica, visto que trabalha o medo e sua ligao com o porvir. No entanto, sua abordagem no trata de um simples medo, mas de um receio, por assim dizer, que nos impulsiona ou nos aconselha a agir de forma responsvel, pensando na integridade do semelhante e nas possibilidades fatdicas do futuro.

Assim como no saberamos sobre a sacralidade da vida caso no houvesse assassinatos e o mandamento no matars no revelasse essa sacralidade, e no saberamos o valor da verdade se no houvesse a mentira, nem o da liberdade sem a sua ausncia, e assim por diante assim tambm, em nosso

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caso, na busca de um tica da responsabilidade a longo prazo, cuja presena ainda no se detecta no plano real, nos auxilia antes de tudo a previso de uma deformao do homem, que nos revela aquilo que queremos preservar no conceito de homem. Precisamos da ameaa imagem humana e de tipos de ameaas bem determinados para, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana autntica. Enquanto o perigo for desconhecido no se saber o que h para se proteger e por que devemos faz-lo: por isso, contrariando toda lgica e mtodo, o saber se origina daquilo contra o que devemos nos proteger (JONAS, 2006, p. 70-71).

No obstante, o imperativo tico propugnado por Jonas apenas um imperativo, isto , um dever ser. Um dever ser para o qual a tcnica moderna parece subestimar, j que o Prometeu est solto talvez como jamais visto. Mesmo assim, os mais lcidos e serenos talvez questionem: Ora, mas no seria problemtico detectar que um feto no ventre de uma me seja portador de uma doena hereditria? No seria eticamente complexo, igualmente, que essa mesma me, a fim de evitar algum transtorno vindouro, viesse abort-lo e a partir de agora, caso almeje engravidar novamente, encomendasse um beb forte, saudvel e com rarssimas possibilidades de ter alguma doena congnita no futuro? Sendo assim, o fato que nada impede, pelo menos mediante a tcnica cada vez mais espantosa da engenharia gentica, que geneticistas possam manipular embries humanos por tcnicas transgnicas, as quais no processo de manipulao de genes sejam suprimidos genes ruins e implantados genes bons. Diante disso, ser que caminhamos realmente rumo a uma eugenia liberal, tal como indagado por Jrgen Habermas (2004)? Quem sabe ainda seja um pouco cedo para podermos afirmar que sim, ainda que, todavia, possamos antever reflexivamente algumas das possibilidades mais complexas e

inquietantes; at porque, a engenharia gentica

Estende o alcance da humanidade para alm das foras da natureza como nenhuma outra tecnologia na histria, talvez com exceo da bomba nuclear, a ltima expresso da era da

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pirotecnologia. Com a tecnologia gentica assumimos o controle das estruturas hereditrias da prpria vida. Algum em estado razovel de conscincia pode acreditar por um momento que esse poder sem precedentes no oferece risco consubstancial? (RIFKIN, 1999, p. 38).

3. A vida em questo: algumas consideraes de Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger sobre a tcnica moderna J em sua primeira encclica Redemptor Hominis, documento publicado em 14 de maro de 1979, Karol Wojtyla esboa suas primeiras discusses sobre a tcnica moderna. Na terceira parte desta encclica, cujo ttulo O homem remido e a sua situao no mundo contemporneo, Wojtyla afirma que cada vez mais o homem moderno parece estar ameaado pela sua inteligncia, por aquilo que suas mos produzem e pelas tendncias de sua vontade de poder. Nas palavras do telogo, esta ameaa fruto do que ele mesmo arquiteta, resultado do seu trabalho e do uso de suas ferramentas tem mostrado um grande nvel de imprevisibilidade, pois se volta contra o prprio homem de maneira contingente. Em sua encclica, esta ameaa surge como principal tema do drama humano atual. Na compreenso de Wojtyla, estas cominaes mostram seu relevo a partir do manuseio que o homem tem feito com a tcnica moderna. Um manuseio que descontrolado tem trazido consigo ameaas ao homem e ao seu ambiente natural. De tal modo, o homem parece muitas vezes no dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para alm daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediato (Redemptor hominis, cap. 3, n. 15). Diante disso, por outro lado, no apetecemos explanar que Karol Wojtyla concebe a tcnica como uma grande oponente da supervivncia humana, at porque, ao tratar de um imaginvel dever-ser sensato da relao do homem com a natureza, ele nos expe:

O universo tem harmonia em todas as suas partes, e cada desequilbrio ecolgico traz consigo um prejuzo para o homem.

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O sbio no tratar portanto a natureza como escrava mas, inspirando-se talvez no Cntico das criaturas de So Francisco de Assis, consider-la- antes como irm, chamada a cooperar com ele para abrir caminhos novos ao progresso da humanidade. Este caminho no pode contudo ser percorrido sem o concurso da tcnica e da tecnologia, que tornam eficaz a investigao cientfica.1

Ainda assim, admoesta que no devemos observar apenas os avanos, tampouco as conquistas obtidas a partir da tcnica. At porque, o tema do desenvolvimento e do progresso no possuem apenas afirmaes e certezas, mas tambm interrogaes e angustiosas inquietudes. Destarte, o nosso tempo alm de se manifestar como um tempo de notvel progresso, apresenta-se tambm como uma era de grande ameaa ao homem e sua natureza. Ademais, o homem moderno, por ter alargado seu domnios sobre as coisas, torna-se de igual modo objeto deste domnio (Redemptor hominis, 1979). Esta afirmao adquire proeminncia quando levamos em conta a

manipulao mais que presente na engenharia gentica, que, a partir de suas tcnicas pode, no entendimento catlico, violar e profanar o Templo do Esprito Santo de Deus (I Corntios 3: 16-18). Na compreenso de Karol Wojtyla (Evangelium vitae), os progressos incessantes da tcnica gentica, ao mesmo tempo que nos fazem avistar perspectivas promissoras para o conforto da humanidade e a cura de doenas graves e aflitivas, podem pari passu, apresentar srios problemas em relao ao respeito pela vida e pela dignidade da pessoa humana. At porque, assevera Wojtyla, no poderamos negar o crescente domnio da engenharia gentica sobre as possibilidades de procriao humana, bem quanto s mudanas realizadas na gesto teraputica, que, ao lado da difuso de correntes de pensamento de inspirao utilitarista, podem constituir fatores que nos levaro a comportamentos aberrantes, pondo a inviolabilidade da vida inocente em situao de risco. A partir desta perspectiva, ele chega a tratar da prpria ineficcia e violao dos direitos humanos.

1

Joo Paulo II In:Discurso European Physical Society.

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Em muitos Estados europeus, eles so ameaados, por exemplo, pela poltica favorvel ao aborto, legalizado quase em toda a parte, pela atitude cada vez mais possibilista em relao eutansia e, ultimamente, por certos projetos de lei em matria de tecnologia gentica no suficientemente respeitadores da qualidade humana do embrio. No suficiente enfatizar com grandes palavras a dignidade da pessoa, se depois ela gravemente violada nas prprias normas do ordenamento jurdico.2

Na carta encclica Evangelium Vitae, publicada em 25 de maro de 1995, Joo Paulo II elabora uma reafirmao bblica do valor da vida humana e de sua respectiva inviolabilidade. Mais que isso, como pensador da modernidade, Karol Wojtyla faz esta mesma reafirmao luz das

circunstncias que rondam nossos tempos. Asseverando que a vida humana faz parte de uma realidade sagrada, revela que esse fato sui generis nos confiado para guardarmos com responsabilidade. O tema da responsabilidade toma nessa encclica um carter especial. Opondo-se a toda espcie de prticas que violam a vida humana, entrando aqui homicdio, genocdio, aborto, eutansia, mutilaes, prises arbitrrias, escravido, prostituio, dentre tantas outras prticas igualmente abominveis, Karol Wojtyla alega que a vida humana est em situao mais delicada com o advento das perspectivas cientficas e tecnolgicas que fizeram surgir outras formas de atentado dignidade da vida humana (Evangelium vitae, n. 4). Ao tratarmos da responsabilidade, retornamos de alguma forma filosofia de Martin Heidegger. Este, ao tratar do Dasein, isto , da particularidade da existncia humana, emprega o termo Sorge cuidado ou preocupao para designar que por ser lanado ao mundo j existente, o ser humano necessita ser responsvel por si mesmo, bem como envolver-se adequadamente com o mundo encontrado (Collinson, 2006). Na reflexo heideggeriana,

[...] cuidado ou adequao caracteriza nossa interao incessante com tudo o que encontramos, utilizamos ou com o que nos envolvemos. Esta a estrutura do modo pelo qual nsJoo Paulo II In: Mensagem por ocasio do 1200 aniversrio da coroao imperial de Carlos Magno.2

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habitamos a vida: o relacionamento ativo, a condio constituinte e indispensvel do dasein. A nfase de Heidegger na elucidao dessa interdependncia entre ser humano e mundo refora sua rejeio da distino tradicional entre o sujeito pensante e o mundo objetivo exterior, e dos problemas decorrentes de demonstrar a existncia e a natureza desse mesmo mundo (COLLINSON, 2006, p. 262).

A figura do genoma humano uma das modalidades da biotecnologia mais preocupantes na viso de Wojtyla e Ratzinger. Num discurso proferido em 24 de fevereiro de 1998 aos participantes na IV assemblia geral da Pontifcia Academia para a Vida, Karol Wojtyla compara o genoma humano a um novo continente a ser explorado, ou seja, um territrio novo e promissor, mas que, entretanto, pode revelar alguns imponderveis ao nos aventurarmos rumo a seu desbravamento. Alm de perceber alguns benefcios oriundos desta tcnica, Wojtyla assevera que, com as descobertas no campo da gentica e da biologia molecular, as modificaes realizadas na gesto teraputica, juntamente com a difuso de correntes de pensamento de inspirao utilitarista, por outro lado, so fatores que podem levar a procedimentos aberrantes. Sucede que assim ele arrazoa, pois com o genoma poderemos intervir na estrutura interna da prpria vida do homem com a expectativa de dominar, selecionar e manipular o corpo e, por conseguinte, a pessoa humana e as geraes futuras. Segundo os telogos, tal procedimento tcnico-cientfico no seria lcito, a no ser que se destine sade e qualidade de vida da pessoa humana. Alm do mais, esta nova lgica pode criar um tipo de discriminao a partir de eventuais defeitos genticos verificados antes ou depois do nascimento. Inclusive, por isso que o Wojtyla garante:Sinto o dever de exprimir aqui a minha preocupao pelo instaurar-se de um clima cultural que favorece o andamento da diagnose pr-natal rumo a uma direo que j no a da terapia, em vista do melhor acolhimento da vida do nascituro, mas antes a da discriminao de todos os que a anlise prnatal demonstra no serem sadios. No momento atual h uma grave desproporo entre as possibilidades diagnsticas, que esto em fase de expanso progressiva, e as escassas possibilidades teraputicas: este fato apresenta graves problemas ticos s famlias, que tm necessidade de ser

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apoiadas no acolhimento da vida nascente, mesmo quando ela atingida por qualquer defeito ou deformao.3

Neste mesmo discurso, Karol Wojtyla encerra dizendo, todavia, que faz votos para que a conquista deste novo continente explorado constitua o grmen de novas possibilidades de sucesso sobre inmeras doenas e que jamais seja ratificada uma orientao seletiva dos seres humanos. Contudo, ele no olvida a possibilidade do Projeto Genoma Humano pender para um futuro eugnico de qualquer espcie. Nas palavras de Wojtyla, este possvel futuro eugnico pode provocar a destruio de embries e de fetos portadores de algumas doenas. Alm disso, no se sabe ao certo se todos os seres humanos podero usufruir das grandes conquistas do Projeto Genoma Humano. Em face da eugenia, comenta Wojtyla:Numerosos pases j esto empenhados no caminho de uma seleo dos nascituros, tacitamente encorajada, que constitui um verdadeiro eugenismo e que leva a uma espcie de anestesia das conscincias, ferindo gravemente, entre outras, as pessoas portadoras de anomalias congnitas e as que as acolhem. Uma atitude como esta mais ou menos generalizada tambm leva, como se comea a perceber, ao surgimento de um certo nmero de patologias conjugais e familiares.4

Mesmo que, argumenta, o Projeto Genoma Humano esteja trilhando um caminho para as descobertas de novas formas teraputicas, ainda assim, a seleo presente nas investigaes pr-natais, a diagnose de pr-implantao, bem como o uso ou a produo de embries humanos simplesmente para fins experimentais, constituem graves ultrajes sacralidade e inviolabilidade da vida humana. Concernente eugenia, Joseph Ratzinger aponta que nos grandes plos econmicos, a investigao biotecnolgica no s alargou e tem se

Joo Paulo II In: Discurso do Santo Padre aos participantes na IV assemblia geral da Pontifcia academia para a vida. 4 Joo Paulo II In: Mensagem do Santo Padre ao presidente das semanas sociais da Frana.3

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aprimorado, como tambm tem instaurado sutis e vastas tcnicas de eugenia, uma vez que a busca do filho perfeito e algumas formas de diagnsticos garantem a seleo e a manipulao gentica. Quanto a isso, Ratzinger observa uma nova forma de poder.(...) comeou a se destacar uma outra forma de poder que, inicialmente, parace ser puramente beneficente e digna de aplauso, mas, na verdade, trata-se de um novo tipo de ameaa para o ser humano. O homem passou a ter condies de fazer seres humanos, de produzi-los, por assim dizer, dentro da proveta. Tornando-se um produto, o ser humano modifica substancialmente a relao consigo prprio (RATZINGER, 2007, p. 74).

Diante disso, assevera Joseph Ratzinger, a partir da possibilidade de arquitetar o ser humano perfeito, bem como o impulso de realizar experincias com o ser humano deixaram de ser uma quimera de moralistas retrgados. (idem, 2007, p. 74). justamente em face de situaes como estas que para Wojtyla (Redemptor hominis, 1979) fica claro que o futuro da humanidade est em grande medida ligado sua capacidade de examinar rigorosamente o tecnicismo crescente. Em Spe Salvi, encclica lanada em 30 de novembro de 2007 que trata da esperana crist, Ratzinger no deixa de retomar sua crtica tcnica moderna. Nela, ele pe em questionamento a prpria noo de progresso cientfico e tcnico. Ao falar do progresso, como veremos adiante em uma citao sua, o papa parece estar dialogando com o dispositivo tcnico (Brseke, 2006b) e sua respectiva contingncia. Consoante Joseph Ratzinger,

Antes de mais, devemos perguntar-nos: o que significa verdadeiramente progresso? O que ele promete e o que no promete? No sculo XIX, j existia uma crtica a f no progresso. No sculo XX, Theodor W. Adorno formulou, de modo drstico, a problematicidade da f no progresso: este, visto de perto, seria o progresso da funda megabomba. Certamente, este um lado do progresso que no se deve encobrir. Dito de outro modo: torna-se evidente a ambigidade do progresso. No h dvida de que este oferece novas potencialidades abissais de

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mal possibilidades que antes no existiam. Todos nos tornamos testemunhas de como o progresso em mos erradas pode ser, e foi, realmente um progresso terrvel no mal. Se ao progresso tcnico no corresponde um progresso na formao tica do homem [...] ento aquele no um progresso, mas uma ameaa para o homem e para o mundo. (SPE SALVI, n. 22).

Certamente, parece que o catolicismo tem algo a contribuir no debate em torno da tcnica moderna. Alm do mais, parece-nos que a partir de seus portavozes, seja em pocas passadas ou atuais, tal como fez o prprio monge Gregor Mendel no passado, cones catlicos tm ainda algo a oferecer, sobretudo em termos de contribuio crtica ao debate acerca da tcnica moderna. Como pudemos perceber em alguns momentos, os papas parecem querer nos lembrar, que, na civilizao tecnolgica, a razo tambm tem apresentado alguns surtos irracionais. Sendo assim,

(...) temos de admitir agora que se duvide da confiabilidade da razo. Afinal de contas, a bomba atmica tambm um produto da razo, assim como a criao e seleo de seres humanos foram engenhadas pela razo. (RATZINGER, 2007, p. 74-75).

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