Eça de Queirós - Crítica e Polémica, Idealismo e Realismo

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50 CRÍTICA E POLÉMICA IDEALISMO E REALISMO (A PROPÓSITO DA 2ª EDIÇÃO DE «O CRIME DO PADRE AMARO») Considerar-se-á talvez que esta reconstrução paciente é uma puerilidade, uma lamentável dissipação de esforço; que, num romance eivado originariamente de defeitos indestrutíveis, não é com adjectivos intercalados, entrelinhas e tiras coladas ao lado, que se melhoram os caracteres mal observados, que se dá luz e cor a paisagens mortas e que se rectificam os desenvolvimentos de uma paixão, erradamente seguidos... Isto creio que é exacto quando se trata de um trabalho puramente imaginativo, conto de fadas ou novela ideal. Se eu criei um príncipe encantado ou um galã à Antony, e lhes dei, na minha edição original, cabelos louros e sonhos místicos – não é realmente útil refazer, numa nova edição, o meu trabalho, para dar ao herói cabelos negros e pesadelos carnais. É uma fantasia substituindo outra fantasia. Melhor seria escrever um livro novo, e apresentar o mesmo galã com outro nome, outra barba e outras paixões. É porém diferente, penso eu, tratando-se de um romance de observação e de realidade, fundado em experiências, trabalhado sobre documentos vivos. Se eu quiser apresentar o tipo de um jogador, e o improvisar com reminiscências de leituras meio esquecidas, e sem mais notas do que aquelas que tenha acolhido uma noite, numa soirée honesta de praia de banhos, vendo primos joviais talharem uma batota doméstica a feijões – arrisco-me a fazer um jogador falso, pueril, vago e convencional. Mas se, depois, eu frequentei a roleta bem instalada que o Estado patrocina, ou as baixas espeluncas da população do vício, se analisei, observei, colhi em flagrante a paixão, as expressões vivas em plena acção, estou habilitado talvez a pintar um jogador mais real e mais humano; e se, pela graça de um Deus favorável, o meu livro tiver uma segunda edição, eu devo claramente reconstruir o meu tipo com as observações e os documentos que acumulei – exactamente como, num tratado de medicina, um prático introduz, numa segunda edição, os últimos resultados das experiências recentes. Quando publiquei pela primeira vez O Crime do Padre Amaro, eu tinha um conhecimento incompleto da província portuguesa, da vida devota, dos motivos e dos modos eclesiásticos. Depois, por uma frequência demorada e metódica, tendo talvez observado melhor, eu refiz simplesmente o meu livro sobre estas novas bases de análise. Quer isto significar que O Crime do Padre Amaro, publicado agora, dá em absoluto, na sua realidade complexa, o padre e a beata, a intriga canónica, a província em Portugal nesse ano da graça de 1879? Oh! certamente que não! O quadro tem infelizmente lacunas, lados de natureza mal estudados, recantos de alma explorados incompletamente, amplificações, exageros de traço... É, no entanto, toda a soma de observação e de experiência que eu possuo sobre este elemento parcial da sociedade portuguesa. A outros, mais penetrantes e mais hábeis, compete recomeçar este estudo, e decerto com realidade superior. É por meio desta laboriosa observação da realidade, desta investigação paciente da matéria viva, desta acumulação beneditina de notas e documentos, que se constroem as obras duradouras e fortes. Se as minhas são fracas e efémeras, é que eu não soube surpreender a verdade com suficiente penetração, e não provém decerto de que o método não seja eficaz. Aqui está pois um livro que eu escrevo pela segunda vez! Habent sua lata libelli!

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Eça de Queirós - Crítica e Polémica, Idealismo e Realismo

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50CRTICA E POLMICAIDEALISMO E REALISMO(A PROPSITO DA 2 EDIO DE O CRIME DO PADRE AMARO)Considerar-se-talvezqueestareconstruopacienteumapuerilidade,umalamentvel dissipao de esforo; que, num romance eivado originariamente de defeitosindestrutveis, no com adjectivos intercalados, entrelinhas e tiras coladas ao lado, quese melhoram os caracteres mal observados, que se d luz e cor a paisagens mortas e quese rectificam os desenvolvimentos de uma paixo, erradamente seguidos...Istocreioqueexactoquandosetratadeumtrabalhopuramenteimaginativo,conto de fadas ou novela ideal.SeeucrieiumprncipeencantadoouumgalAntony,elhesdei,naminhaediooriginal,cabeloslourosesonhosmsticosnorealmentetilrefazer,numanovaedio,omeutrabalho,paradaraohericabelosnegrosepesadeloscarnais.umafantasiasubstituindooutrafantasia.Melhorseriaescreverumlivronovo,eapresentar o mesmo gal com outro nome, outra barba e outras paixes.pormdiferente,pensoeu,tratando-sedeumromancedeobservaoederealidade,fundadoemexperincias,trabalhadosobredocumentosvivos.Seeuquiserapresentarotipodeumjogador,eoimprovisarcomreminiscnciasdeleiturasmeioesquecidas, e sem mais notas do que aquelas que tenha acolhido uma noite, numa soirehonestadepraiadebanhos,vendoprimosjoviaistalharemumabatotadomsticaafeijes arrisco-me a fazer um jogador falso, pueril, vago e convencional.Mas se, depois, eu frequentei a roleta bem instalada que o Estado patrocina, ou asbaixasespeluncasdapopulaodovcio,seanalisei,observei,colhiemflagranteapaixo, as expresses vivas em plena aco, estou habilitado talvez a pintar um jogadormais real e mais humano; e se, pela graa de um Deus favorvel, o meu livro tiver umasegundaedio,eudevoclaramentereconstruiromeutipocomasobservaeseosdocumentosqueacumuleiexactamentecomo,numtratadodemedicina,umprticointroduz, numa segunda edio, os ltimos resultados das experincias recentes.QuandopubliqueipelaprimeiravezOCrimedoPadreAmaro,eutinhaumconhecimentoincompletodaprovnciaportuguesa,davidadevota,dosmotivosedosmodoseclesisticos.Depois,porumafrequnciademoradaemetdica,tendotalvezobservado melhor, eu refiz simplesmente o meu livro sobre estas novas bases de anlise.QueristosignificarqueOCrimedoPadreAmaro,publicadoagora,demabsoluto,nasuarealidadecomplexa,opadreeabeata,aintrigacannica,aprovnciaemPortugalnesseanodagraade1879?Oh!certamentequeno!Oquadroteminfelizmentelacunas,ladosdenaturezamalestudados,recantosdealmaexploradosincompletamente,amplificaes,exagerosdetrao...,noentanto,todaasomadeobservaoedeexperinciaqueeupossuosobreesteelementoparcialdasociedadeportuguesa. A outros, mais penetrantes e mais hbeis, compete recomear este estudo, edecerto com realidade superior.pormeiodestalaboriosaobservaodarealidade,destainvestigaopacienteda matria viva, desta acumulao beneditina de notas e documentos, que se constroemasobrasduradourasefortes.Seasminhassofracaseefmeras,queeunosoubesurpreenderaverdadecomsuficientepenetrao,enoprovmdecertodequeomtodo no seja eficaz.Aqui est pois um livro que eu escrevo pela segunda vez! Habent sua lata libelli!51Aartemodernatodadeanlise,deexperincia,decomparao.Aantigainspiraoqueemquinzenoitesdefebrecriavaumromance,hojeummeiodetrabalhoobsoletoefalso.Infelizmentejnohmusasqueinsuflemnumbeijoosegredo da natureza! A nova musa a cincia experimental dos fenmenos e a antiga,quetinhaumaestrelanatestaevestesalvas,devemosdiz-locomlgrimas,lestarmazenada a um canto, sob o p dos anos, entre as couraas dos cavaleiros andantes, asasasdeElo,aalmadeAntony,ossuspirosdeGraziela,eosoutrosacessrios,tosimpticos mas to arcaicos, do velho cenrio romntico!OCrimedoPadreAmarorecebeunoBrasileemPortugalalgumaatenodacritica,sobretudoquandofoipublicado,ulteriormente,umromanceintituladoOPrimoBaslio.EnoBrasileemPortugalescreveu-se(semtodaviaseaduzirnenhumaprova efectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitao do romance do Sr. Zola La Faute de l'Abb Mouret ouqueestelivrodoautordoAssommoiredeoutrosmagistraisestudossociais,sugeriraaideia,ospersonagens,aintenodeOCrimedoPadre Amaro.Eutenhoalgumasrazesparacrerqueistonocorrecto.OCrimedoPadreAmarofoiescritoem1871,lidoaalgunsamigosem1872,eJpublicadoem1874.Olivro do Sr. Zola, La Faute de lAbb Mouret (que o quinto volume da srie Rougon-Macquart), foi escrito e publicado em 1874.Mas(aindaqueistopareasobrenatural)consideroestarazoapenascomosubalternaeinsuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no crebro,nopensamentodoSr.Zola,eteravistado,entreasformasaindaindecisasdassuascriaesfuturas,afigura do abade Mouret exactamente como o venervel Anquises, no vale dos Elsios,podiaver,entreassombrasdasraasvindouras,flutuandonanvoaluminosadoLete,aquele que um dia devia ser Marcelo! Tais coisas so possveis. Nem o homem prudenteas deve julgar mais extraordinrias do que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Cus e do que outros prodgios provados.Oque,segundopenso,mostramelhorqueaacusaocarecedeexactido,asimples comparao dos dois romances. LaFautedel'AbbMouret,noseuepisdiocentral,oquadroalegricodainiciaodoprimeirohomemedaprimeiramulhernoamor.OabadeMouret(Srgio),tendosidoatacadodeumafebrecerebral,derivadaprincipalmentedasuaexaltaomsticanocultodaVirgem,nasolidodeumvaleabrasadodaProvena(primeiraparte do livro), levado para convalescer aoParadou,antigo parque do sculo XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que arepresentaoalegricadoParaso.A,tendoperdidonafebreaconscinciadesimesmoapontodeseesquecerdoseusacerdcioedaexistnciadaaldeia,eacons-cinciadouniversoapontodetermedodosoledasrvoresdoParadoucomodemonstrosestranhoserradurantemeses,pelasprofundidadesdobosqueinculto,comAlbina que o gnio, a Eva desse lugar de legenda.Albina e Srgio, seminus como no Paraso, procuram sem cessar, por um instintoqueosimpele,umarvoremisteriosa,daramadaqualcaiainflunciaafrodisacadamatriaprocriadora;sobestesmbolodarvoredacinciasepossuem,depoisdediasangustiososemquetentamdescobrir,nasuainocnciaparadisaca,omeiofsicoderealizar o amor. Depois, numa mtua vergonha sbita, notando a sua nudez, cobrem-sedefolhagens;edaosexpulsa,osarrancaopadreArcngias,queapersonificaoteocrtica do antigo Arcanjo.Naltimapartedolivro,oabadeMouretrecuperaaconscinciadesimesmo,subtrai-seinflunciadissolventedaadoraoVirgem,obtmporumesforodaoraoeumprivilgiodagraaaextinodasuavirilidade,etorna-seumascetasemnadadehumano,umasombracadaaospsdacruz;esemquelhemudeacordo52rostoqueeleaspergeeresponsaoesquifedeAlbina,queseasfixiounoParadou,sobum monto de flores de perfumes fortes.Editoisto,pareceficaremindicadosesuficientementelcidos,osmotivosquetenhoparanosuporOCrimedoPadreAmaroumatraduomalfeitadaFautedelAbbMouret.Enoinsistonadiferenadasdatas,apesardelaconstituiroquesechamava, creio eu, em lgica, uma impossibilidade metafsica, porque sou bom cidado,e o art. 6 da Carta impe implicitamente o dever de no descrer dos milagres. SomentedevodizerqueoscrticosinteligentesqueacusaramOCrimedoPadreAmarodeserapenasumaimitaodaFautedelAbbMouret,notinham,infelizmente,lidooromancemaravilhosodoSr.Zolaquefoi,talvez,aorigemdetodaasuaglria.Asemelhana casual dos dois ttulos induziu-os em erro.Comconhecimentodosdoislivros,sumaobtusidadecrneaoumfcnicapoderiam assemelhar esta bela alegoria idlica, a que est misturado o pattico drama deumaalmamstica, aO Crime do Padre Amaro, simples intriga de clrigos e de beatas,tramada e murmurada sombra de uma velha S de provncia portuguesa.Mas,dir-me-oindignadamentepessoasbemintencionadas,comosepodemproduzirtaisacusaes?MeuDeus,bemsimplesmente.Dosdoislivros,acrticadecertoconheceuprimeiroOCrimedoPadreAmaro,equandoumdia,poracaso,descobriu,anunciadonumjornalfrancs,ouviunumavitrinadelivreiro,aFautedelAbb Mouret, estabeleceu imediatamente uma regra de trs, concluindo que a Faute del'AbbMouretdeviaestarparaOCrimedoPadreAmarocomoaFranaestparaPortugal. Assim achou sem esforo esta incgnita: PLAGIATO! Ou ainda, o que maisprovvel, e mais grato ao Sr. Zola, conhecendo j a Faute de lAbb Mouret, apenas viuanunciadoOCrimedoPadreAmaro,estabeleceulogoamesmaregradetrs,comostermos invertidos e achou a mesma incgnita: PLAGIATO! Sic itur ad abyssum!Mas parece que esta Faute de lAbb Mouret, tem sido para mim uma vasta e ricaminadearte,deondeeuvou,todasasmanhs,desenterraraminhaprovisodecaracteres,depaisagens,deimagensedeadjectivos.Assimfuiamargamenteacusadode ter copiado o Paraso do Primo Baslio, do Paradou, da Faute de lAbb Mouret.OParaso,seporacasolerameselembramdaquelemeulivro,umterceiroandarbarato,paraosladosdaBemposta,alugadoaoms,ondeumasenhoraeumcavalheiro se vo amar duas vezes por semana, do meio-dia s trs. O Paradou, como jdisse,aquelavastaemaravilhosafloresta,ondeerram,quasenus,SrgioeAlbina,procurando, num instinto amoroso, a rvore iniciadora da cincia! Mas ento dir-me-o ainda onde est a imitao?Poisnovem?Paradou,Parasohevidentementeplagiatonasduasprimeiras slabas!Que isto no parea provir de um esprito rebelde e irreverente para com a crtica.Ningum a respeita mais do que aqueles que fazem obras de observao e de realidade.Os romnticos (como confessa SainteBeuve) odiavam a crtica, e com razo, pelomesmomotivoporqueosmonarcasabsolutosdetestavamaopiniopblica.Paraosromnticos, a poesia ou a prosa desciam directamente da inspirao, como o direito dosreisdesciadirectamentedeDeus.Ocrtico,simplesraciocinador,notinhadireitoaachar defeitos ou mesmo a examinar de perto o que a inspirao, a musa, mandavam ldecimaaumMussetouaumaGeorgeSand.Apoesiaeraumpresentedivino.Ocrtico, no iniciado, no podia avaliar pelas regras triviais do senso comum aquilo quecantavaoudeclamavaumhomemqueviviaemcomunicaopermanentecomoideal.Opoeta,oartista,oromancista,eramassimseresexcepcionais,foradaleiedaregrahumana,eleitos,formandoumalegiodeseresentreohomemeoanjo!Asuavida53mesmo no participava das condies humanas:Aimer, prier, chanter, voil toute ma vie...dizLamartine!Podecompreender-seasuairritaoquandoumCuvillier-Fleury,umPontmartin, um Planche,pretendiamjulg-lopelasleisrazoveiscomquejulgavamosoutros homens.Nssomoscristos!exclamavaNovalis.EumCristosuportamalumfolhetim hostil...Ns,porm,burguesesquenovivemosemcomunicaopermanentecomoideal, que nunca recebemos o beijo da musa, a quem a forma area jamais disse:Pote, prends ton luth et me donne un baiser...ns, homens, consentimos em ser julgados por homens. Estudando a realidade humana esocial?aceitamoscomoumfavorumconselho,umapratica,todasasadmoestaesdaquelesque,vivendonahumanidadeenasociedade,tmumaexperinciaprpriadessas realidades.Eistonosrespeitopeloscrticos,pelosprncipesdacrtica,pelosseusgrosbonnets,osditadoresdaopinio,osespecialistasedequalquerhomem,omaisobscuro, ainda que nunca escrevesse uma linha, podemos aceitar indicaes preciosas.Quando se trata de eloquncia ou de retrica, decerto s se pode admitir o criticoque conhea estas artes ilustres. Mas quando escrevemos de paixes ou de vcios, todoaquelequeossentiu,aindaqueosnosaibaexprimir,podejulgar-noseapontar-nosoerro.SumpoetasabeapreciarGraziela,obradeeloquncialrica,masumsimplescarpinteiro pode discutir o Assommoir, obra de realidade social.Eu, por mim, adoro a crtica: leio-a com uno, noto as suas observaes, corrijo-me quando as suas indicaes me parecem justas, desejo fazer minha a sua experinciadas coisas humanas.Foi por ocasio do aparecimento destes meus livros, OCrimedoPadreAmaroeOPrimoBaslio,quesecomeouafalaremPortugalnoRealismoenumaoutrainstituio que me dizem chamar-se a ideia nova. Ora o meu nome tem sido geralmente,em Portugal e no Brasil, associado a este realismoeaestanovainstituio.Designo-apelo nome genrico de instituio, porque ignoro se uma nova arte, uma nova poltica,uma nova religio ou uma nova filosofia; no sei mesmo se no ser um novo clube ouuma companhia de seguros! No creio que tivesse nascido em Frana, em Inglaterra ouna Alemanha, as trs grandes naes pensantes. Suponho que de origem portuguesa einteiramentelocal.Ignoroosseusfins,oseuprograma,osseusmtodos,sejlanou,comodoestilo,asuacartaaosCorntiosesenostrazalgumanovaconcepodoUniverso!Contudo,eusou,nosdocumentosquetenhopresentes,designadocomoumdosseus chefes. Deduzo pois que h outros talvez sete, como diante de Tebas! Num livrodeversosquereceboagora,comentadoporummestredoutoeamado,leio,apg.2,que Lisboa recebeu com Hossanas os pregoeiros da ideia nova. Concluo que tivemos,como outros quaisquer, a nossa entrada triunfal em Jerusalm, e vejo daqui a nossa esti-mvel estao dos Caminhos de Ferro, sonora de cantos e verde de palmas!... Em todo ocaso,parecequefoibreveodiadasalegriasedosrisos,porqueumjornalrecentemediz: A esto, pois, aos golpes desse prodigioso atleta, prostrados por terra e mordendoop,osdaideianova!Concluoquefomosderrotadosporummonstrosolitrio,um54serdisformenognerodePolifemooudoamantedeOnfale,eque,dosdaideianova,comodaaladoscavaleirossaxniosdepoisdajornadadeHastings,norestamais do que um estendal de cadveres, sobre que pairam os corvos de Usk!...Tal foi a vida breve e morte trgica de uma ideia nacional que, segundo os jornaisme afirmam, nos custou a vida, a mim e aos outros chefes!...Eusoupoisassociadoaestesdoismovimentos,eseaindaignorooquesejaaideia nova, seipoucomaisoumenosoquechamamaaescola realista. CreioqueemPortugal e no Brasil se chama realismo, termo j velho em 1840, ao movimento artsticoqueemFranaeemInglaterraconhecidopornaturalismoouarteexperimental.Aceitemospormrealismo,comoaalcunhafamiliareamigapelaqualoBrasilePortugal conhecem uma certa fase na evoluo da arte.EstemovimentotemencontradoemPortugalgrandeshostilidades.TambmnoBrasil (no o digo sem algum despeito patritico), se tem combatido o realismo com umtalento superior e com ideias.Aopinio,porm,queosnossosinimigosfazemdestemovimentoliterrio,parece ser a seguinte: Que uma escola e se chama a escola realista. Que foi o Sr.Zola que a inventou, um belo dia, em Paris. Que o seu fim pintar com minuciosidadequadrosobscenos.E,finalmente,quetemumaretricaespecial,abstrusa,torturada,rutilante, sem gramtica e sem vernaculidade!-medesagradvelafectarumtompedaggicoevirdarumdesmentidoautoritrio a estas afirmaes de pessoas estimveis...Mas na realidade o naturalismo nem foi inventado pelo Sr. Zola, nem consiste emdescrevermeticulosamenteobscenidades,nemtemretricaprpria,nemsobretudouma escola!Em Portugal sempre houve uma tendncia tenaz para subdividir a arte em escolas o que prova, de resto, uma literatura de gramticos e retricos. Inventmos assim todaasortedeescolasliterriasmais,certamente,emnmero,doqueasdeinstruoprimria!ChegmosateraescoladeLisboa,aescoladeCoimbra,aescoladeCastilho...coisasquenosparecemhojetoantigascomooraptodeHelenaouasfaanhasdoimpetuosojax.Aindaconservamos,porm,asgrandesescolas:clssica,romntica,satnica,elegaca,etodaasortedeconfrariasdasletras,isoladasemcubculos e celas, separadas por paredes-mestras:ocubculodeBoileau,ocubculodeLamartine, o cubculo de Byron, o cubculo de Petrarca... At o subtil e fino Baudelairetem o seu cubculo! E aqueles grupos inimigos, arreganhando-se o dente, uns usando acabeleiradeRacine,outrosocapacetedePersival,outrososcornosdeSat,outrosafrautapastorildeSemedo,alivivemsepultadosnassuasprosdiasrivais,murando-sedentro delas, como o ano chins dentro do seu vaso de porcelana...Agora, temos a escola realista!Noperdoem-menohescolarealista.Escolaaimitaosistemticadosprocessosdeummestre.Pressupeumaorigemindividual,umaretricaouumamaneira consagrada. Ora o naturalismo no nasceu da esttica peculiar de um artista; ummovimentogeraldaarte,numcertomomentodasuaevoluo.Asuamaneiranoestconsagrada,porquecadatemperamentoindividualtemasuamaneiraprpria:DaudettodiferentedeFlaubert,comoZoladiferentedeDickens.Dizerescolarealistatogrotescocomodizerescolarepublicana.Onaturalismoaformacientfica que toma a arte, como a repblicaaformapolticaquetomaademocracia,como o positivismo a forma experimental que toma a filosofia.Tudoistoseprendeesereduzaestafrmulageral:queforadaobservaodosfactosedaexperinciadosfenmenos,oespritonopodeobternenhumasomadeverdade.55Outrora uma novela romntica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje oromance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-se ojogo das paixes a priori; hoje, analisa-se a posteriori, por processos to exactos comoos da prpria fisiologia. Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos amesma que rege os seres vivos, que a constituio intrnseca de uma pedra obedeceu smesmasleisqueaconstituiodoespritodeumadonzela,quehnomundoumafenomenalidadenica,quealeiqueregeosmovimentosdosmundosnodiferedaleique rege as paixes humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente deobservar. O verdadeiro autor do naturalismo no pois Zola e Claude Bernard. A artetornou-se o estudo dos fenmenos vivos e no a idealizao das imaginaes inatas...fcildeduzirdaquiquenofoioSr.Zolaoinventordonaturalismo.Eledecertoumaforteegrandepersonalidadequedeuaomovimentoumgrandeeforteimpulso.Ningumcomoele,nosseusescritos,otemdefendidoedesprendidomelhordovagodeteoriaesejamquaisforemosseusdefeitos,ohomemqueescreveuoAssommoirficarcomoumdosmaisprodigiososartistasdestesculodeartistas.Masseriatoabsurdodizerqueeleinventouonaturalismo,comodizerqueGambettainventou a democracia!Nestesculo,porm,noperodocientficodonaturalismo,oSr.Zolateveprecursoresilustres:antesdele,estoosGoncourts;antesdosGoncourts,Flaubert,TaineeSainte-Beuve(porqueomtododocrticopenetrantequeestudaumromancista,nodiferedomtododoromancistaqueestudaumpersonagem)eantesdestes, havia ainda Stendhal, e ao lado dele, Balzac, e no sculo passado, Molire... Nome obriguem a remontar at Homero!... E verdadeiramente uma genealogia ilustre!Mas,dir-me-oleitoroverdadeiroleitor,ocidadoquenoletradonemterico, mas simplesmenteumserimpressionvel,umtomodograndepblico,quenofimdetudoquemfazaarteemqueconsistepoisessefamosonaturalismo?Quetenho eu com isso? Que posso eu lucrar com essa descoberta? Em que me interessa ela?Emquemeeduca,mediverte,memostraasuasuperioridadesobreavelhanovelaidealista?PorquemequeremforaracompraroSr.Zola,emvezdelevaromeudinheiro ao Sr. Jlio Sandeau?Ora aqui tens, meu caro concidado: supe que tu queres ter na tua sala a imagemdeNapoleo1passandoosAlpes(estasfantasiasso-tepermitidas:aparedetua,epodescobri-ladeescarrosoudefigurasimperiais;socoisasqueficamcomatuaconscinciaecomoDeusseveroqueteh-dejulgarumdia).Quefazestu?Chamasdois pintores: um que idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo eoseuchapudeabalarga,eoutroquerealista,equevem,comotu,dechapualto,comasuacaixadetintasdebaixodobrao.Ds-lhesoteuassuntoevaisaosteusnegcios.E aqui est o que se passa na tua ausncia sobre a tua parede:O pintor idealista arregaa as mangas e brocha-te imediatamente este quadro: umpncarodemontanha;sobreestepncaro,umcavalocomasproporeshericasdocavalodeFdias,empinado;sobreessecavalo,premindo-lheasilhargas,Napoleo,debraos e pernas nuas, como um Csar romano, com uma coroa de louros na cabea. Emvolta, nuvens; em baixo, a assinatura.Dir-me-o:falso!Como,falso?Estequadrofoi,creioqueainda,umadasjias do Museu do Luxemburgo.Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a histria, consultado as crnicasdo tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da poca, etc., deixou na tuaparedeoseguintequadro:sobumcutriste,umcaminhoescabrosodeserra;porele,56resfolgando e retesando os msculos, sobe uma mula; sobre a mula, Bonaparte, abafadoempeles,comumbarretedelontraeculosazuisporcausadareverberaodaneve,viaja, doente e derreado...Qual destes quadros escolhes tu, caro concidado?Oprimeiro,queteinventouahistria ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificao,onaturalista,umaverificao.Todaadiferenaentreoidealismoeonaturalismoestnisto.Oprimeiro falsifica, o segundo verifica.Dir-me-stalvez:masissosimplesmatriadeacessrio,dedecorao!Equando se trata de pintar a alma, o ser interior... Perfeitamente, aqui tens outro exemplo:Suponho(tudopermitidoaumaalmacomoatua,amantedaarteecuriosadavida),suponho,digo,quesetratadetedescreverumamenina,quemoraalidefronte,num prdio da Baixa.Apresentam-sedoisnovelistasoidealistaeonaturalista.Tuds-lhesoteuassunto: uma menina que se chama Virgnia e que habita ali defronte.Oidealistanoaquervernemouvir;noquersabermaisdetalhes.Tomaimediatamente a sua boa pena de Toledo, recorda durante um momento os seus autores,e,numrelance,cria-teameninaVirgniadestemodo:nafigura,agraadeMargarida;nocorao,apaixograndiosadeJulieta;nosmovimentos,alanguidezdequalquerodalisca(escolha);namente,aprudnciadeSalomo,enoslbios,aeloqunciadeSanto Agostinho...Dir-me-o:mentira!Como,mentira?VejamacriaodaMorgadinhadosCanaviais, um romance, e feito pelo talento delicado e paciente de Jlio Dinis, o artistaqueentrensmaisimportnciadeurealidade.EtodaviaasuaMorgadinhabemextraordinria. Ali est uma burguesinha da serra, vivendo na serra, educada na serra, equerendoserapersonificaodamulherdaclassemdiaemPortugal:amacomasinceridade herica de Cordlia; tem com os sobrinhos o tom de maternidade romnticadaamantedeWerther;pensa,emmatriademoral,comaaltivezdeBossuet;faladanatureza com o coloridomsticodeLamartine;juntaaisto,emintrigassentimentais,afinuradasduquesasdeBalzacequandofaladeamor,julgamosouvirRousseaudeclamar.Semcontarquetudoquantodizdepoesia,dearteoudereligio,deChateaubriand!...MasvoltemosnossaVirgnia,quemoraalidefronte.agoraoescritornaturalista que a vai pintar. Este homem comea por fazer uma coisa extraordinria: vaiv-la!...Noseriam:osimplesfactodeirverVirgniaquandosepretendedescreverVirgnia,umarevoluonaarte!todaafilosofiacartesiana:significaquesaobservaodosfenmenosdacinciadascoisas.EstehomemvaiverVirgnia,estuda-lheafigura,osmodos,avoz;examinaoseupassado,indagadasuaeducao,estuda o meio em que ela vive, as influncias que a envolvem, os livros que l, os gestosquetemedenfimumaVirgniaquenoCordlia,nemOflia,nemSantoAgostinho, nem Clara de Borgonha mas que a burguesa da Baixa, em Lisboa, no anoda graa de 1879.Caroconcidado,aqualdstuapreferncia?Oprimeiromentiu-te.AVirgniaque tens diante de ti um ser vago, feito de frases, que no tem carne nem osso, e que,portanto,nopertencendohumanidadeaquetupertences,notepodeinteressar.uma quimera, no um ser vivo. O que ela diz, pensa ou faz, no te adianta uma linhano conhecimento da paixo e do homem.UmatalVirgnianopodeficarcomodocumentodeumacertasociedade,numdeterminado perodo: um livro intil.57Tens diante de ti uma moeda falsa.O segundo d-te uma lio de vida social: pe diante dos teus olhos, num resumo,o que so as Virgniascontemporneas;faz-teconhecerofundo,anatureza,ocarcterda mulher com quem tens que viver. Se a Virgnia, em concluso, no boa evitarsque tua filha seja assim; podes-te acautelar desde j com a nora que te espera; -te liono presente, e, para o futuro, ficar como um documento histrico. uma verificao da natureza.Eaquitens,caroconcidado,reduzidoafrmulafamiliar,aoalcancedatuacompreensoedespidodenvoasfilosficas,oqueoidealismoeoqueonaturalismo, na pintura, no romance e no drama.Bristol, 1879.