Economia solidaria

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A Economia Solidária é vista pelo Governo do Estado da Bahia como uma estratégia e política de desenvolvimento. Tal importância foi evidenciada através da criação, no âmbito da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, da Superintendência de Economia Solidária (SESOL), que tem como foco destacado em seu planejamento: “Potencializar a Economia Solidária como Estratégia de Desenvolvimento, Geração de Trabalho e Renda e Inclusão Social”.

Este direcionamento justifica-se diante do grande potencial emancipador dos Empreendimentos da Economia Solidária (EES), como alternativas de transformação da realidade econômica dos excluídos e demais segmentos da sociedade que buscam uma outra economia, pautada na solidariedade e na valorização do ser humano. Como destaca Paul Singer*, Secretário Nacional de Economia Solidária, a economia solidária é uma economia centrada no humano, em que a solidariedade e a reciprocidade se colocam como elementos definidores do agir econômico. As diferentes concepções que tratam da economia solidária giram em torno da idéia de solidariedade, em contraste com o individualismo competitivo que tem caracterizado o comportamento econômico padrão nas sociedades capitalistas.

Os textos que compõem este módulo tiveram origem na iniciativa da Superintendência de Economia Solidária da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo da Bahia de buscar desenvolver um material consistente acerca da temática da economia solidária que pudesse assumir um caráter público por meio da livre distribuição, circulação e utilização.

Através do conteúdo presente nesta publicação, pretendemos contribuir com a formação dos trabalhadores dos empreendimentos econômicos solidários, educadores e técnicos das instituições de fomento, dos gestores de políticas públicas da área, bem como colaborar para a disseminação e divulgação da temática da economia solidária no nosso estado.

Tal preocupação se justifica frente à importância da formação, envolvendo aspectos técnicos, gerenciais e questões sociopolíticas para o desempenho pleno dos processos autogestionários e para a sustentabilidade das práticas econômicas solidárias.

Para a concretização desta idéia, convidamos autores com conhecimento e experiência nas respectivas temáticas abordadas. Como resultado, o texto apresenta-se dividido em cinco capítulos. O capítulo inicial trata de uma temática sempre relevante que é a questão da viabilidade econômica e sustentabilidade dos empreendimentos da Economia Solidária. No segundo capítulo, a Economia Solidária é apresentada como um projeto de sociedade, partindo de uma perspectiva históricas. No terceiro capítulo são abordados aspectos conceituais sobre a Economia Solidária e Desenvolvimento. No quarto capítulo, são analisados os fundamentos e contexto em que se situa a economia solidária e, por fim, no quinto capítulo, aspectos jurídicos relacionados a empreendimentos econômicos solidários.

Boa leitura!

Nilton Vasconcelos

* SINGER, P.; SOUZA, A. R. (Org.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2003.

Apresentação

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Bahia. Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte. Economia sustentável. Salvador: SETRE, 2011. 164 p.

ISBN 978-85-65947-00-8

1. Desenvolvimento Econômico. 2. Políticas Públicas. 3. Economia Solidária. I. Título.

CDU 330.35

Governador do Estado

Jaques Wagner

Secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte

Nilton Vasconcelos

Superintendente de Economia Solidária

Milton Barbosa de Almeida Filho

Coordenadora de Formação e Divulgação

Tatiana Araújo Reis

Coordenadora do Programa Vida Melhor - SETRE

Lara Matos

Setre – Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e EsporteEndereço: 2ª Avenida, nº 200, Plataforma III – CABSalvador – Bahia – Brasil – CEP 41.745.003http://www.portaldotrabalho.ba.gov.br

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Viabilidade econômica e sustentabilidade dos

empreendimentos da Economia Solidária: conceitos básicos

Gabriel Kraychete

Estudos de viabilidade dos empreendimentos

associativos: uma metodologia apropriada

Gabriel Kraychete

A economia solidária

como projeto de sociedade

Débora Nunes

Economia Solidária e

Desenvolvimento

José Carlos Moraes Souza

Economia Solidária –

Fundamentos e Contexto

Genauto Carvalho de França Filho

Aspectos Jurídicos relacionados

aos empreendimentos solidários

Igor Loureiro de Matos/Gabriela da Luz Dias

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Viabilidade econômica e

sustentabilidade dos empreendimentos da

economia solidária: conceitos básicos

Gabriel Kraychete*

Edição revista do material distribuído por ocasião da O�cina de Formação, organizada pela SETRE, em novembro de 2009, com as equipes técnicas

das Incubadoras de Empreendimentos Solidários apoiadas pelo Edital 007/2008, equipes das

entidades executoras do projeto de Incubadoras Temáticas de Comunidades Tradicionais e parceiros do projeto de Incubadoras de

Empreendimentos Solidários da Bahia.

Edição reda O�ciem nov

das Incuap

entida

* Professor Titular da Universidade Católica do Salvador – UCSAL.

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Processo de trabalho, territórios e sustentabilidade dos empreendimentos associativos populares

Este texto tem por objetivo examinar algumas condições essenciais à

sustentabilidade dos empreendimentos

da economia solidária. O texto está

organizado em torno de três questões.

Qual a relação entre processo de trabalho,

viabilidade econômica e a forma de

gestão dos empreendimentos associativos

denominados de economia solidária? Quais

as condições de sustentabilidade destes

empreendimentos conforme os diferentes

espaços nos quais os mesmos se situam?

Como equacionar a relação entre

economia solidária e desenvolvimento

local? O ponto de partida para o

exame destas questões consiste

numa caracterização dos

empreendimentos da economia

solidária, tal como eles

existem hoje.

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Empreendimentos da economia solidária: traços atuais

Uma primeira informação mais abrangente sobre o “estado da arte” dos empreendimentos da economia solidária foi proporcionada pela pesquisa realizada pela Secretária Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego – SENAES, com a participação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.1

As primeiras tabulações desta pesquisa permitem delinear o seguinte perfil dos empreendimentos associativos:

foram identificados cerca de 17.000 empreendimentos em 2.274 municípios, envolvendo mais de 1,6 milhão de pessoas (possivelmente estes números são maiores, pois o mapeamento não alcançou todos os municípios em vários estados do país);

a maior parte dos empreendimentos está organizada sob a forma de associação (54%), seguida dos grupos informais (33%) e cooperativas (11%). A recuperação por trabalhadores de empresa privada que faliu foi citada por apenas 1% dos empreendimentos;

A maior parte dos grupos se estruturou tendo por principal motivação a busca de uma alternativa de trabalho face ao desemprego, seguida pela busca de uma fonte complementar de renda, pela possibilidade de

obter maiores ganhos através de um empreendimento associativo e pelo desejo de desenvolver uma

atividade em que todos são donos; o trabalho associativo tem sido majoritariamente decorrente do esforço e

dos recursos exclusivos dos próprios trabalhadores. Esta dependência de recursos próprios ou de doações limita a ocorrência e a evolução dos empreendimentos. Diante da ausência de um sistema de financiamento adequado, vários grupos se organizam, mas não conseguem os recursos necessários para o início da atividade. Ou, então, conseguem recursos para os equipamentos, mas não dispõem de capital de giro. A longa demora na obtenção dos recursos necessários ao início da atividade dilui a capacidade do grupo se manter coeso. A distância e os percalços entre os passos iniciais para a organização da atividade e a sua entrada em operação constitui-se numa travessia no deserto, e muitas iniciativas sucumbem durante o percurso;

predominam os empreendimentos que atuam exclusivamente na área rural. Os empreendimentos que atuam exclusivamente na área urbana correspondem a 33% do total. Os empreendimentos associativos no meio rural possuem características peculiares em relação aos tipicamente urbanos, como veremos em seguida;

predominam as atividades de produção e comercialização de produtos da agropecuária, extrativismo e pesca (mais de 40%), seguidas pela produção e serviços de alimentos e bebidas e produção de artesanatos;

apenas 6% dos empreendimentos produzem exclusivamente para o autoconsumo dos sócios. Ou seja, os empreendimentos associativos estão inseridos em pleno mundo do mercado e do cálculo econômico, por mais simples e modestos que sejam estes cálculos;

os produtos e serviços dos empreendimentos destinam-se, predominantemente, aos espaços locais (venda direta para o consumidor no comércio local e municipal). Apenas 7% dos empreendimentos destinam

1. No �nal de 2003, a SENAES constituiu o Grupo de Trabalho de Estudos e Banco de Dados (ou GT do Mapeamento) que estabeleceu um consenso em torno das concepções básicas sobre a economia solidária. O trabalho de campo foi realizado durante o ano de 2005, e os seus resultados foram divulgados no primeiro semestre

de 2006 e encontram-se disponíveis no site www.mte.gov.br.

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seus produtos para o mercado nacional e 2% realizam transações com outros países;

em 64% dos empreendimentos, a matéria-prima provém de empresas privadas e, em 30%, é adquirida dos próprios associados (trata-se, certamente, do beneficiamento de produtos agrícolas). Apenas 6% adquirem de outros empreendimentos solidários. Estamos, portanto, muito longe da construção de redes;

apenas 38% dos empreendimentos conseguem pagar as despesas e ter alguma sobra. Entre os empreendimentos que declararam o ganho dos associados, mais de 50% recebem o equivalente a até meio salário e 26% entre meio e 1 SM. Embora a obtenção de uma fonte complementar de renda apareça como um dos principais motivos para a organização dos empreendimentos, é plausível supor que esta renda seja a complementação de outra igualmente precária;

60% dos empreendimentos têm alguma relação ou participam de movimentos populares, destacando-se os movimentos comunitários, sindical, de luta pela terra e de agricultores familiares;

Estes dados revelam que, apesar dos avanços e da maior visibilidade adquirida pelos empreendimentos da economia solidária, os mesmos apresentam grandes dificuldades e fragilidades ainda pouco analisadas.

Processo de trabalho, viabilidade econômica e formas de gestão.

A produção, fora do seu contexto, é uma abstração. Não existe uma produção em geral. Qualquer processo de trabalho, seja de uma empresa privada, de um agricultor familiar ou de um empreendimento associativo da economia solidária, possui os mesmos elementos constitutivos, ou seja: i) a força de trabalho;

ii) o objeto de trabalho (matérias-primas) sobre o qual o trabalho atua; e iii) os meios de trabalho (instrumentos de trabalho) através dos quais o trabalho atua.

Na realidade, o que existe são formas concretas de produção que supõem uma determinada combinação de relações técnicas e relações sociais de produção. Um indivíduo que trabalha a terra para a produção de cana-de-açúcar estabelece determinadas relações técnicas com a terra e com os meios de trabalho. Esta pessoa, entretanto, pode ser um agricultor familiar, um trabalhador assalariado, um escravo etc.

Ou seja, concretamente, um mesmo conteúdo técnico toma diferentes formas sociais de produção, que expressam diferentes relações de propriedade dos meios de produção e de apropriação do resultado do trabalho.

A produção de mercadorias não é uma invenção do capitalismo. Nem todo produto é mercadoria e nem todo dinheiro é capital. A mercadoria resulta do trabalho humano e se destina ao mercado.

O que caracteriza o capital não é o uso de máquinas e equipamentos, mas a transformação da força de trabalho em mercadoria. O capital é uma relação social caracterizada pelo uso do trabalho assalariado. Não existe capital sem trabalho assalariado.

Em outras formas sociais de produção, a força de trabalho não se constitui numa mercadoria. É o caso, por exemplo, do trabalho realizado de modo individual ou familiar, ou dos empreendimentos associativos. Nestes casos, os trabalhadores vendem as mercadorias que produzem, mas não vendem a sua força de trabalho.

Para a transformação do dinheiro em capital, o dono do dinheiro terá que encontrar no mercado o trabalhador livre, em duplo sentido:

livre para dispor de sua força de trabalho; e livre no sentido de despossuído, ou seja, não possuir

outra mercadoria a não ser a sua própria capacidade de

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trabalho, que vende em troca de um salário.

Na empresa capitalista o processo de trabalho manifesta-se como um meio do processo de valorização do capital. É o lugar no qual o capital produz e é produzido e, por isso mesmo, requer o controle imposto, abusivo ou refinado, sobre os trabalhadores. O processo de trabalho ocorre entre coisas que pertencem ao capitalista. Ele compra os meios de produção (matérias-primas, máquinas, equipamentos) e contrata os trabalhadores. A força de trabalho é uma mercadoria, cujo uso o empresário compra em troca de um salário. O empresário decide sobre as técnicas de produção, os mecanismos de controle e de gestão que vai utilizar. As decisões são tomadas visando o maior lucro. As grandes empresas possuem departamentos e gerentes que decidem e prestam contas aos acionistas.

Para os empreendimentos associativos, conceitos típicos da economia capitalista, como salário e lucro, tornam-se inapropriados e perdem o seu significado, pois não expressam as relações sociais de produção que caracterizam aqueles empreendimentos. A racionalidade da economia dos setores populares2 está ancorada na geração de recursos (monetários ou não) destinados a prover e repor os meios de vida e na utilização dos recursos humanos próprios, englobando unidades de trabalho e não de inversão de capital.3

Em um empreendimento associativo, instalações, máquinas e equipamentos pertencem ao conjunto dos associados, bem como os resultados do trabalho. Os ganhos econômicos são distribuídos ou utilizados conforme as regras definidas pelos seus participantes. As relações que os trabalhadores estabelecem entre si são diferentes daquelas existentes numa empresa. Para que a atividade funcione é preciso que cada um dos trabalhadores assuma, de comum acordo, compromissos e responsabilidades. São estas regras de convivência estabelecidas pelos próprios associados que determinam a forma e a qualidade da gestão do empreendimento.

As condições de viabilidade de um empreendimento associativo, portanto, têm por substrato a reprodução de uma determinada relação social de produção,

marcada pela condição de não mercadoria da força de trabalho e pela apropriação do resultado do trabalho pelos trabalhadores associados, conforme as regras por eles definidas. Esta forma social de produção suscita e requer mecanismos democráticos de controle e de gestão.

Disso resulta que um grande desafio enfrentado pelos empreendimentos da economia popular solidária é o desenvolvimento de relações de trabalho que sejam economicamente viáveis e emancipadoras. Em termos práticos, isto requer políticas e estratégias de formação que promovam, simultaneamente, a viabilidade

Uma coisa é certa: a natureza

não produz, de um lado, donos de dinheiro ou

de mercadorias e, de outro,

homens que só possuem a sua

própria força de trabalho, esta

relação não tem qualquer base

natural, mas é o resultado de um

desenvolvimento histórico...

Marx, O Capital

2. No âmbito dessa economia dos setores populares convivem tanto as atividades realizadas de forma individual ou familiar como as diferentes modalidades de trabalho associativo. Essa designação pretende expressar um conjunto heterogêneo de atividades, tal como elas existem, sem idealizar os diferentes valores e práticas que lhe são concernentes. Não se trata, portanto, de adjetivar esta economia, mas de reconhecer que os atores que a compõem e que a movem são essencialmente populares. Sobre o conceito de economia dos setores populares ver Kraychete (2000).3. O capital aqui entendido não como a existência de máquina e equipamentos, mas como uma relação social, caracterizada pelas relações de trabalho assalariado.

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econômica e a gestão democrática do empreendimento. A eficiência econômica e o modo gestão não podem ser pensados separadamente, como se existisse uma formação para o associativismo e outra para a eficiência econômica. Se isto é verdade, seriam pouco eficazes as estratégias de formação que realizam os cursos de associativismo e, em seguida, tratam as questões econômicas seguindo o modelo de um “plano de negócios”, como se o empreendimento associativo fosse uma pequena ou média empresa.

Em geral, as atividades de formação para o associativismo atêm-se aos princípios do cooperativismo e do trabalho associativo. Estes princípios são uma declaração do dever ser. Expressam uma meta, um ponto de chegada, um enunciado que todos concordam, mas que vale tanto para as primeiras cooperativas na Europa do século XIX, para um empreendimento associativo de grande porte, como para um pequeno grupo de mulheres que se organiza numa associação de costureiras. As condições concretas do processo de trabalho e das circunstâncias em que ele ocorre são muito diferentes em cada um destes empreendimentos, com evidentes implicações para a gestão cotidiana dos mesmos.

As atividades de formação descoladas da organização e dos processos de trabalho concretos peculiares a cada empreendimento constituem-se numa abstração. Se nos atemos apenas aos princípios e não nos deixamos interpelar pela realidade podemos enfrentar problemas incontornáveis. Por exemplo: o primeiro princípio do cooperativismo é a associação livre e voluntária. Mas sabemos que, numa realidade como a brasileira, a busca de uma alternativa de trabalho face ao desemprego se constitui na principal motivação para a organização dos empreendimentos associativos.

Deve-se considerar também que, geralmente, os empreendimentos são formados por pessoas que já se

conhecem. Em princípio, ninguém manda em ninguém – todos são iguais. Produzir quase todos sabem, mas é comum uns saberem mais do que outros. Se há diferença de saberes, há diferença de poderes. Mas se todos são iguais, como lidar com isso?

É insuficiente, portanto, afirmar que a gestão democrática se caracteriza pela ausência de separação entre os que decidem e os que executam. Há decisões que podem resultar de uma discussão coletiva. Mas existem outras que precisam ser tomadas na hora, sob o risco de um prejuízo maior. Um exemplo ilustra o que quero dizer: um empreendimento associativo do setor mecânico produzia peças que, antes de serem entregues ao cliente, necessitavam passar por um controle de qualidade para ter a garantia de que não estavam com defeito. Como fazer este controle de qualidade? Todos são responsáveis? Haverá uma pessoa responsável? Uma equipe? Este grupo decidiu que haveria uma pessoa responsável. Ora, a função desta pessoa no processo de trabalho expressa um ato de poder sobre os demais associados encarregados da produção. E, ao vetar uma peça, poderia gerar tensões ou conflitos com os outros trabalhadores. A decisão do grupo foi que o encarregado de controle teria o poder de vetar ou liberar a peça, mas a sua decisão estaria sujeita à avaliação nas reuniões semanais do conjunto dos trabalhadores.

Esta foi a “regra do jogo” do trabalho associativo estabelecida por aquele grupo. O que quero acentuar é exatamente o fato de que não existem receitas e de que é inócua uma declaração de princípios descolada do processo de trabalho peculiar a cada grupo.

Os empreendimentos, entretanto, não levitam num espaço vazio, mas localizam-se em determinados territórios. Em que medida estes territórios, como palcos de determinadas relações sociais, restringem ou potencializam as condições necessárias à sustentabilidade dos empreendimentos que neles se situam?

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Os empreendimentos solidários em seus espaços

Ainda está por ser feita uma análise dos empreendimentos econômicos solidários conforme os espaços nos quais se situam. O mapeamento em economia solidária revela que a maior parte dos empreendimentos envolve atividades localizadas no meio rural. Em todo o Brasil, o número de trabalhadores dos empreendimentos econômicos solidários corresponde a cerca de 1,2 milhão de pessoas. Deve-se observar, entretanto, que este total é inferior ao número de desempregados apenas da Região Metropolitana de São Paulo.

Na Região Metropolitana de Salvador – RMS, por exemplo, a População Economicamente Ativa – PEA corresponde a cerca de 1,6 milhão de pessoas. Deste total, 330 mil estão desempregadas. Considerando como trabalho precário os trabalhadores por conta própria que não recolhem para a Previdência Social, os assalariados sem carteira e os empregados não remunerados, tem-se um contingente de aproximadamente 1 milhão de pessoas. Conforme os dados do mapeamento, a RMS possui 100 empreendimentos econômicos solidários (7% do total da BA), reunindo cerca de 4.000 pessoas. Isto corresponde a pouco mais de 1% apenas dos desempregados na RMS e a 0,003% do conjunto dos trabalhadores com trabalho precário.

Mesmo admitindo-se que o número de empreendimentos solidários seja maior do que os identificados no mapeamento, as características destes empreendimentos, tal como eles existem hoje, sugerem conclusões cautelosas sobre as expectativas de representarem

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superior” da economia, mas da presença de um futuro a ser recriado em escala ampliada.

As condições de sustentabilidade dos empreendimentos associativos nos espaços urbano e rural são bem diferentes. A diferença espacial é a mais imediatamente visível, mas esconde uma diferença maior e mais fundamental, ou seja, a relação entre o trabalho e os meios de produção. Os mecanismos de gestão e as condições de sustentabilidade dos empreendimentos são determinados pela relação de propriedade pré-existente dos trabalhadores com os meios de produção.

Os agricultores familiares, antes de iniciarem uma atividade associativa, já exercem um trabalho na condição de proprietários dos meios de produção. Eles já possuem a terra e os instrumentos de trabalho. Ou seja, não existe uma separação prévia entre força de trabalho e meios de produção. Os objetos de trabalho (matéria-prima) e os meios de trabalho (ferramentas, equipamentos) pertencem ao agricultor familiar. Nesta situação não se encontram apenas os agricultores familiares, mas também algumas modalidades de produção de artesanato.

Quando os agricultores familiares organizam um empreendimento para a venda coletiva ou para beneficiamento da sua produção, estas novas atividades diferem daquelas que já realizavam com os seus meios de produção individuais. A atividade coletiva constitui-se numa via natural para obterem um ganho maior. A venda para um mercado mais amplo (e não para o atravessador), pressupõe a prática associativa como um meio para viabilizar tanto um maior volume como a regularidade do fornecimento. O mesmo ocorre com o beneficiamento da sua produção. Sozinho, o agricultor familiar não teria nem os recursos nem o volume de produção que justificassem este investimento. A

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uma alternativa em larga escala para o desemprego e para o trabalho precário. Sobretudo quando se considera a dimensão e o perfil da PEA localizada nos espaços urbanos.

Num país como o Brasil, é preciso indagar sobre a situação de milhões de pessoas que vivem de ocupações precárias e, sobretudo, do trabalho realizado de forma individual ou familiar. Aqui, o emprego regular assalariado nunca foi uma perspectiva realista para um grande número de trabalhadores. Em 1980, após cinquenta anos de industrialização e urbanização aceleradas, o emprego regular assalariado, somado aos autônomos contribuintes para Previdência Social, aos funcionários públicos e aos empregadores não atingia 56% da PEA (Delgado 2004).

Até os anos 1970, predominava a visão que explicava a pobreza, sobretudo a pobreza urbana, como algo residual ou transitório a ser superado pelo desenvolvimento da economia capitalista. Desse ponto de vista, não haveria razão para se perder tempo discutindo-se a situação das pessoas não-integradas ao mercado capitalista de trabalho. Três décadas depois, cresceu o número de trabalhadores imersos num “circuito inferior” da economia do qual já nos falava Milton Santos (2004), abrangendo modalidades de trabalho que tendem a se reproduzir com a própria expansão dos setores modernos4. Por sua magnitude e caráter estrutural, a reprodução dessas formas de trabalho já não pode ser explicada como um fenômeno residual, transitório ou conjuntural. A sua continuidade expressaria uma matriz de desigualdade e pobreza que se mantém ao longo da história5. Em outras palavras, parece que não se trata de um contingente que, algum dia, será engatado ao processo de crescimento proporcionado pelos investimentos no “circuito

4. Este circuito inferior da economia possui raízes históricas e foi ampli�cado, como um fenômeno urbano massivo, pelas políticas econômicas implementadas a partir da década de 90.5. Ver a respeito, a instigante análise de Delgado (2004) sobre a reprodução e con�guração contemporânea do setor de subsistência na economia brasileira.

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compra de uma máquina só se viabiliza se for através de uma atividade associativa. E mais: às vezes tanto a venda coletiva como o beneficiamento precisam da participação de outros trabalhadores, mesmo que não sejam associados.

Nestas circunstâncias, o empreendimento associativo constitui-se numa possibilidade real de melhoria do nível de renda dos agricultores familiares. Ou seja, eles encontram motivos para a cooperação mesmo quando buscam o autointeresse.6 Se nada mais funcionar, eles têm a opção de retomarem a forma tradicional em que se inseriam no mercado, nem que seja vendendo para o atravessador local.

Esta situação é bem diferente daquela que caracteriza a organização de empreendimentos associativos nos espaços urbanos. Neste caso, a obtenção de resultados positivos adquire uma urgência bem mais intensa para os associados, sobretudo quando os mesmos não possuem outra fonte de renda.

Diferentemente dos agricultores familiares, os trabalhadores urbanos quando se propõem a organizar um empreendimento associativo não possuem nenhum meio de produção anterior. Contam apenas com a sua força de trabalho. E, normalmente, a referência de trabalho que possuem não é a de uma atividade associativa, mas a do emprego assalariado ou do trabalho por conta própria.

Em geral, para os empreendimentos associativos de agricultores familiares (e modalidades de artesanato),

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Emagricult

6. Com o risco de rea�rmar o óbvio, convém insistir que não se trata de idealizar os empreendimentos da economia popular solidária como se fossem regidos por valores e práticas assentados exclusivamente em relações de solidariedade, e que estas se constituiriam na motivação determinante dos seus integrantes para a organização e gestão destes empreendimentos. Os seres humanos não são movidos apenas por necessidades, mas também por desejos. E podem encontrar motivos para a cooperação, mesmo quando buscam o autointeresse. A suposição restrita e simpli�cadora de que os empreendimentos da economia popular solidária assentam-se num único princípio motivador e organizador gera a ilusão sedutora de aparentes soluções perfeitas, mas frustrantes, transformando paisagens socialmente vivas e factíveis em miragens. Além disso, como observam ASSMANN e SUNG (2000, p.158) “Quando se busca a ‘solidariedade perfeita’, ou ‘soluções de�nitivas’, impõe-se sobre as pessoas e grupos sociais um fardo pesado demais para se carregar”.

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o aumento do número de sócios é uma condição para a sustentabilidade da atividade. No caso dos empreendimentos urbanos é mais fácil ocorrer o inverso, ou seja, eles tendem a se viabilizar apenas com um número reduzido de sócios.

Vamos considerar, por exemplo, uma cooperativa de produção de alimentos, com 20 associadas, localizada na cidade. Para cada associada receber R$400,00/mês, a atividade teria que gerar um valor de R$8.000,00/mês, apenas para remunerar as associadas. Se produzem salgados vendidos a um R$1,00, e supondo uma margem (otimista) de R$ 0,50 por unidade vendida, a cooperativa terá que produzir e vender 16.000 salgados/mês apenas para remunerar as 20 associadas. Isto, entre outros fatores, explica a razão pela qual muitos empreendimentos urbanos, em seus momentos iniciais, começam um treinamento com um grande número de pessoas e, quando entram em operação, contam, efetivamente, com um reduzido número de participantes.

Desenvolvimento local e economia solidária: problematizando a relação

Aos empreendimentos da economia solidária faltam condições mínimas das quais usufruem as grandes empresas capitalistas: condições apropriadas de financiamento, tecnologia adequada, pesquisa, formação e qualificação dos trabalhadores, infraestrutura (saneamento, urbanização, segurança, vias de acesso etc). Uma empresa só se instala numa região se existem determinadas condições prévias. É comum a construção de infraestruturas com o objetivo deliberado de atrair investimentos de grandes empresas.

Como indica Braudel (1996), o entendimento entre capital e Estado atravessa os séculos da modernidade. O capital vive sem constrangimentos da complacência,

isenções, auxílios e liberalidades proporcionadas pelo Estado. Para o capital, o Estado é uma fonte ressurgente de recursos da qual nunca se mantém muito longe. Mas, no “andar inferior da economia”, os empreendimentos populares, em sua maior parte, estão reduzidos aos seus próprios recursos, à exceção do apoio pontual e localizado das instituições de assessoria e fomento, com alcance reconhecidamente limitado.

Neste passo, podemos formular a seguinte questão: como equacionar a relação entre desenvolvimento local e economia solidária? Em geral, esta relação é colocada nos seguintes termos: como os empreendimentos da economia solidária podem promover o desenvolvimento local?

Os empreendimentos da economia solidária apresentam uma escala de produção reduzida e concentrada em poucas atividades (agropecuária, extrativismo, pesca, alimentos e bebidas e produção de artesanato). As condições de investimento e produção são bastante adversas. Os empreendimentos não dispõem de crédito, os recursos para iniciar a atividade provêm, sobretudo, dos próprios associados e de doações. Boa parte dos empreendimentos funciona em locais emprestados. São problemas que não se resolvem apenas a partir do desejo dos trabalhadores em produzirem de forma associada. O nível de remuneração é muito baixo e muitos trabalhadores não ingressam no empreendimento por opção, mas constrangidos pelo desemprego. Nestas circunstâncias, quais as condições destes empreendimentos promoverem um processo de desenvolvimento local?

Nas condições atuais, parece que seria mais apropriado inverter os termos da relação entre desenvolvimento local e empreendimentos econômicos solidários, ou seja: não são os empreendimentos econômicos solidários que promovem o desenvolvimento local, mas o crescimento da economia solidária pressupõe uma ambiência e um processo de desenvolvimento que promova este tipo de economia.

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A sustentabilidade dos empreendimentos da economia popular solidária envolve tanto questões internas como externas aos grupos. Certamente, nada substitui a necessidade dos trabalhadores associados saberem tocar e gerir os seus empreendimentos. Mas a sustentabilidade dos mesmos, entendida como a capacidade de ampliarem continuamente o alcance de suas práticas , depende de condições culturais, econômicas, tecnológicas, sociais etc, impossíveis de serem alcançadas apenas através do empenho dos trabalhadores associados e de suas articulações em redes e fóruns. A emergência destas condiçoes requer ações

convergentes e complementares de múltiplas instituições, a exemplo das organizações não governamentas, sindicatos, igrejas, instituições de ensino e pesquisa, órgãos governamentais etc.

Entendida desta forma, a sustentabilidade dos empreendimentos associativos não é uma questão técnica ou estritamente econômica, mas essencialmente política. O que está em jogo não são iniciativas pontuais, localizadas, compensatórias, dependentes de recursos residuais ou da benevolência empresarial tida como socialmente responsável, mas ações políticas comprometidas com um processo de transformação social.

ASSMANN, H. e SUNG, J. M. Competência e sensibilidade solidária. Educar para a esperança. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000

BRAUDEL, F. O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

CORAGGIO, J. Sobre la sostenibilidad de los emprendimientos mercantiles de la economía social y solidaria. Disponível no site <http://www.coraggioeconomia.org.> Acesso em 20/05/2006.

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KRAYCHETE, G. Economia dos setores populares: sustentabilidade e estratégias de formação. São Leopoldo: Oikos; Rio de Janeiro: Capina, 2007. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal

Economia popular solidária: paisagens e miragens. In Cadernos do CEAS, n 228, out/dez 2007. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal

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Estudos de viabilidade dos empreendimentos associativos: uma metodologia apropriadaGabriel Kraychete

As organizações econômicas populares possuem uma lógica peculiar1. Não podem ser avaliadas ou projetadas copiando ou tomando-se por referência os critérios de eficiência e planejamento típicos à empresa capitalista. Tradicionalmente, os instrumentos de gestão, planos de negócio, análise de mercado e estudos de viabilidade reportam-se às características das empresas de médio ou grande porte, distanciando-se das realidades encontradas nos empreendimentos associativos.2

Em geral, os empreendimentos não são precedidos do estudo de viabilidade, mas apenas de uma “lista de compras” referente ao valor dos investimentos. Ou, então, quando realizados, estes estudos nem sempre consideram a lógica peculiar de funcionamento dos empreendimentos associativos. Exemplo disso é o tratamento das questões econômicas e do processo de gestão como coisas separadas e diferentes, como se existisse uma formação para a eficiência econômica e outra para a gestão democrática.

Se o que buscamos são formas de trabalho economicamente viáveis e emancipadoras, a eficiência econômica e o modo gestão não podem ser pensados separadamente. Se isto é verdade, seriam pouco eficazes as estratégias de formação que realizam os cursos de associativismo e, em seguida, tratam as questões

econômicas seguindo o modelo de um “plano de negócios”, como se o empreendimento associativo fosse uma pequena ou média empresa.

O estudo de viabilidade não é algo que é feito num lugar para ser aplicado em outro. Quando realizado exclusivamente por um técnico, sem a participação do grupo, o estudo de viabilidade tem grandes chances de ter pouca utilidade prática, mesmo porque quem vai tocar o projeto é o grupo e não o técnico. Desta forma, o estudo transforma-se em mais um documento a ser muito bem guardado e esquecido em alguma prateleira.

Na perspectiva aqui apresentada, a realização do estudo de viabilidade envolve, necessariamente, a participação dos integrantes dos empreendimentos associativos. Ou seja, não se trata de um trabalho tecnocrático, realizado por especialistas externos ao grupo, mas de um processo de construção coletiva de conhecimentos, no qual os integrantes dos grupos e assessores descobrem juntos as condições necessárias à sustentabilidade do empreendimento.

Nestes termos, a realização do estudo de viabilidade assume uma perspectiva totalmente distinta de um trabalho exclusivamente técnico, hierarquicamente superior, realizado por terceiros e que desconsidera o contexto cultural e a lógica peculiar de funcionamento dos empreendimentos populares.

1. Sobre esta lógica peculiar, ver Kraychete, G. Economia dos setores populares: uma abordagem conceitual. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

2. Sobre as estratégias de formação direcionadas para os empreendimentos da economia dos setores populares ver Kraychete, G. Economia dos setores populares: sustentabilidade e estratégias de formação. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal

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Procedimentos necessários ao estudo de viabilidade econômica de empreendimentos associativos*

Objetivos do estudo de viabilidade

O que se busca com o estudo de viabilidade é:

desenvolver relações de trabalho economicamente viáveis e emancipadoras;

fortalecer as relações de autonomia e não de dependência do grupo.

Autonomia entendida como capacidade do grupo

decidir, com segurança e conhecimento de causa, sobre o trabalho a ser realizado de forma associativa, sobre a organização da produção, as relações que os associados vão estabelecer entre si, os mecanismos de gestão e controle etc.

O estudo de viabilidade permite:

Identificar e fortalecer as condições necessárias para que o projeto tenha êxito.

Que todos os participantes conheçam bem o projeto, comprometendo-se com suas exigências e implicações.

O que se pretende com o estudo de viabilidade é aumentar a capacidade do grupo de intervir e influir na realidade em que se situa.

Manutenção de hierarquias saber-poder.

Desconsidera o contexto cultural e a lógica de funcionamento dos empreendimentos populares.

Tem por referência os critérios de e&ciência e planejamento típicos à empresa capitalista.

O grupo &ca na dependência do saber do técnico, considerado hierarquicamente superior. O técnico se apropria do saber do grupo e pretende transferir o seu saber para o grupo.

Trabalho tecnocrático, com soluções meramente técnicas, indicadas por especialistas externos ao grupo.

Assessor técnicoAssessor educador

Construção coletiva de conhecimentos. Os integrantes do grupo e os assessores constroem juntos o conhecimento sobre as condições necessárias à sustentabilidade do empreendimento.

Processo de aprendizado de todos os participantes do empreendimento direcionado para o conhecimento de todos os aspectos da atividade que realizam.

Tem por referência o processo de trabalho e as características peculiares dos empreendimentos associativos populares.

A lógica de funcionamento dos empreendimentos populares é componente relevante do estudo.

Modi&cação na qualidade das relações.

* Adaptação do material didático utilizado no curso de extensão em Viabilidade econômica e gestão democrática de empreendimentos associativos, organizado pela Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa – CAPINA e pela Universidade Católica do Salvador – UCSal.

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O estudo de viabilidade de um empreendimento associativo é um instrumento que instiga a reflexão dos trabalhadores sobre as questões internas ao grupo (a organização e o processo de trabalho, o que cabe a cada um fazer e por quê, as relações de cada um com os outros), e externas (as relações com a comunidade local, com o mercado, com as entidades de apoio e fomento, com o Estado e com as diferentes esferas do governo), contribuindo para gerar demandas por políticas (crédito, educação etc.) adequadas à sustentabilidade dos empreendimentos da economia popular solidária.

O estudo de viabilidade não se restringe, portanto, aos aspectos estritamente econômicos. A eficiência econômica não é um fim em si mesmo. Entendido desta forma, o estudo de viabilidade não é uma questão técnica, mas essencialmente educativa e política.

No que consiste o estudo de viabilidade de projetos associativos

O estudo de viabilidade é um processo de aprendizado de todos os participantes do empreendimento direcionado para o conhecimento de todos os aspectos da atividade que realizam.

O estudo de viabilidade dos empreendimentos associativos engloba, simultaneamente, as questões técnicas, econômicas e gestionárias (as relações que as pessoas envolvidas no projeto vão estabelecer entre si, as tarefas, compromissos e responsabilidades a serem conjuntamente assumidos.)

Ponto de partida: o conhecimento da atividade

Para fazermos um estudo de viabilidade, precisamos conhecer muito bem a atividade que queremos implantar.

O ideal é que seja feito antes de iniciar a atividade. Mas também deve ser feito pelos empreendimentos que já estão operando, na medida em que o estudo contribui para fortalecer o que está funcionando bem, identificar as dificuldades e promover os ajustes que se fizerem necessários.

Uma maneira de sistematizar o conhecimento sobre a atividade é o grupo formular, para si mesmo, uma série de perguntas referentes a todos os aspectos da atividade: os investimentos, o processo de trabalho, a comercialização e as formas de gestão do empreendimento.

Da resposta a estas perguntas é que surgirão os números a serem utilizados nas contas a serem feitas.

Cada grupo deve formular as perguntas mais adequadas ao tipo do seu empreendimento.

O que precisamos é saber escolher bem as perguntas. Sugestão: classificar as perguntas considerando os

vários aspectos do projeto.

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Sistematizando o conhecimento da atividade

O roteiro que segue é apenas uma sugestão. Cada grupo deve formular as perguntas mais adequadas ao tipo de atividade que realiza.

É da maior importância que todas as pessoas diretamente envolvidas no projeto participem de todo o processo: formulando as perguntas e buscando as respostas.

Perguntas preliminares:

O que vamos produzir?Que quantidade pretendemos produzir?

Perguntas sobre os investimentos:

Listar tudo o que é preciso comprar e gastar para instalar o projeto (máquinas, equipamentos, construção, móveis etc.)

Para conseguir a produção planejada, quais são as máquinas e equipamentos que precisamos comprar?

Qual o preço dessas máquinas e equipamentos?Vai ser preciso construir algum galpão, sala etc?

Quanto vai custar?No caso do estudo de viabilidade de um

empreendimento que já está operando, as perguntas poderiam ser:

Que equipamentos o grupo tem? Qual a capacidade de produção?

Qual a produção que se pretendia atingir quando o grupo iniciou o empreendimento?

Como foi decidida a compra dos equipamentos? Quem/quantos participaram da discussão? De que

instalações se dispõe?

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Perguntas sobre o processo de produção:

Para realizar a produção, quais as matérias-primas que teremos que comprar?

Em que quantidade? Quanto custa? Qual a quantidade de matéria-prima para produzir uma unidade do produto?

Que tipo de energia vai ser utilizada (elétrica, óleo, lenha)?

A energia a ser utilizada já está disponível ou teremos que obtê-la? Quanto custa para conseguir?

Quantas pessoas são necessárias para atingir a produção programada?

A atividade vai empregar mão-de-obra remunerada? Como será a forma de pagamento dessas pessoas? (salário fixo, por hora de trabalho etc).

Observação: neste momento, cabe uma primeira reflexão do grupo. Se projetarmos o nosso empreendimento grande demais, ele certamente vai exigir um gasto maior, e as máquinas e equipamentos podem ficar subutilizados. Máquina parada custa dinheiro e vai se estragando.

É comum os grupos comprarem máquinas com capacidade muito maior que a produção planejada. Isto é um erro perigoso, porque quanto maior a máquina, maior será o custo para fazê-la funcionar.

Perguntas sobre a comercialização:

Quais são os preços atuais de um produto semelhante ao nosso nas praças em que pretendemos vendê-lo?

Qual será o nosso preço de venda? (com base nos preços praticados no mercado).

Para quem vamos vender? Para o consumidor final?

Comerciantes?Outras associações ou cooperativas?Onde vamos vender o produto?Na própria comunidade?Na cidade mais próxima?Em outras cidades?Em mais de um desses lugares?Como vamos vender?Cada um vende um pouco? Uma só pessoa ficará encarregada pelas vendas?O trabalho de quem fizer as vendas será remunerado?

Como? (salário fixo, comissão, parte fixo mais comissão).A venda será feita a granel ou em embalagens

menores? Qual o preço da embalagem?Qual o preço do frete para cada uma das localidades

pesquisadas?

Perguntas sobre questões "nanceiras:

Vamos ter que fazer algum empréstimo? Caso afirmativo, qual será o valor?

Qual o valor dos juros? Qual o prazo de pagamento?

Perguntas sobre impostos e legislação:

Teremos que pagar algum imposto? Qual (is)?

Perguntas sobre as questões associativas:

Quem vai participar do projeto? Participam sócios e não sócios? Em que condições?

Quais as implicações, compromissos e responsabilidades do empreendimento para cada um dos envolvidos?

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O que é preciso fazer e quem vai fazer o quê? Como será a divisão de tarefas?

Qual será a forma de remuneração dos associados?No caso de beneficiamento de produtos agrícolas,

a matéria-prima vai ser fornecida pelos próprios sócios? Como será o pagamento: somente após o beneficiamento e a venda do produto final, ou antecipadamente?

Que anotações e registros físicos (controle de estoque) e financeiros (compras, produção, vendas) são necessários?

Como serão feitas estas anotações? Quem vai ser o responsável pelas anotações?

Como será realizada a prestação de contas aos associados?

Como vai ser dividida a renda gerada? Será totalmente distribuída entre os sócios? Parte será destinada à formação de algum fundo? Com que objetivo?

E no caso de haver prejuízo?

Sobre a assessoria:

Vamos precisar de alguma assessoria? Quem pode nos ajudar?

Qual a expectativa do grupo em relação aos assessores?

Qual o papel que o assessor deve desempenhar?

Atenção

Não temos obrigação de saber tudo. Quando tivermos dúvidas, devemos procurar quem nos possa ajudar.

Nesta fase é muito importante visitar e conhecer a experiência de outros grupos que já estejam trabalhando com um empreendimento semelhante ao que pretendemos iniciar.

Conclusões

A elaboração do estudo de viabilidade estimula o levantamento e a sistematização de informações importantes para a gestão e a sustentabilidade dos empreendimentos econômicos associativos.

Essas informações são relevantes, mesmo para iniciativas que, não tendo feito o estudo antecipadamente, já estejam operando.

Para encontrar os números que compõem as contas do estudo de viabilidade é preciso que os trabalhadores conheçam bem as atividades do empreendimento e definam o processo de gestão a ser implementado.

Os números que entram nas contas dependem das “regras do jogo”, definidas pelo grupo. Por exemplo: o número que entra na conta será diferente conforme a decisão do grupo sobre a forma de remuneração dos associados, se será uma retirada fixa, por produção, por hora trabalhada, se a sobra será dividida igualmente entre todos etc.

A realização do estudo de viabilidade consiste num processo de reflexão feito pelos integrantes do empreendimento para identificar, uma a uma, as tarefas relacionadas ao processo de trabalho e de gestão do empreendimento.

Este processo permite identificar os números que vão entrar nas contas. Ou seja, ao encontrar os números para fazer as contas, o grupo também estará discutindo a forma da gestão do empreendimento.

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Estudo de viabilidade

As contas necessárias:Conceitos básicos*

A estrutura de cálculo do estudo de viabilidade econômica é a mesma para todas as atividades. O que faz a complexidade das contas é a complexidade da atividade.

Para facilitar o entendimento, vamos considerar uma atividade bem simples que:

trabalha um só produto; vende, imediatamente e à vista, o que produz; tem um processo de produção de ciclo curto; trabalha regularmente, durante todo o ano;

Para melhor compreensão, vamos ilustrar as contas utilizando o exemplo de um grupo que produz bermudas.

Vamos admitir que o grupo tenha pesquisado, nos locais onde pretende vender a bermuda, qual é o preço

médio pelo qual um produto semelhante está sendo vendido e que, com base nesta pesquisa, tenha decidido vender cada bermuda por R$ 10,00.

Preço de venda da bermuda: R$10,00

Frisamos que os números aqui apresentados servem apenas para ilustrar os cálculos. Ou seja, são propositadamente simplificados e não têm nenhuma correspondência com os preços verdadeiros. O mais

importante é a compreensão da lógica das contas necessárias.

C

econcomp

ativ

contberm

loca

servprco

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* Adaptação do material didático utilizado no curso de extensão em Viabilidade econômica e gestão democrática de empreendimentos associativos, organizado pela Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa – CAPINA e pela Universidade Católica do Salvador – UCSal.

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Cálculo dos investimentos:

Listar tudo o que é preciso comprar e gastar para instalar o projeto (máquinas, equipamentos, móveis etc.)

Vamos admitir que sejam necessários os seguintes investimentos:

Cada um dos itens que compõe o quadro de investimentos deve indicar as respectivas quantidades e valores unitários. O item “diversos” corresponde a uma quantia para pequenas compras que não tenham sido listadas.

Cálculo dos Custos

a) Custos variáveis (calculados por unidade do produto)

Os custos variáveis aumentam ou diminuem na mesma proporção da variação da quantidade produzida e vendida. Exemplos de custos variáveis: matéria-prima, embalagem, tinta, rótulos, combustível etc. A comissão sobre a venda paga a um vendedor e os impostos que incidem sobre a produção e a venda do produto também estão incluídos nos custos variáveis.

Para calcular os custos variáveis o grupo precisa:

Conhecer o modo como se faz o produto; Decidir como fará a venda; Saber se terá que pagar algum imposto.

Vamos supor que o grupo decidiu ter um vendedor que receberá uma comissão de 5% sobre o valor de cada peça vendida, e que os impostos correspondem a 5% do valor das vendas.

Dica para calcular os custos variáveis: analisar detalhadamente como é feita a produção, anotando tudo o que é gasto.

O Quadro abaixo mostra estes cálculos para o nosso exemplo hipotético de produção de bermudas.

Lembrando que o preço de venda da bermuda = R$ 10,00, temos:

Atenção: a conta a ser feita para calcular o custo com matéria-prima é muito simples. Em geral, a dificuldade não está na conta, mas em encontrar o número certo para

Quadro 1 - Investimentos

Preço unit. (R$)

1.500,00

400,00

Unid.

Unid.

Unid.

Quant.

1

1

Item

Máquina

Outros equipamentos

Total do investimento

Diversos

Valor Total (R$)

1.500,00

400,00

2.000,00

100,00

Quadro 2 - Custo Variável (unitário)

Item

5% Comissão do vendedor

5% de impostos

Outros itens

Total

Tecido

Custo por bermuda

R$ 0,50

R$ 0,50

R$ 2,00

R$ 7,00

R$ 4,00

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se fazer a conta. Esta dificuldade será tanto menor quanto maior for a experiência e o conhecimento do grupo sobre o processo de trabalho específico de cada produto.

b) Os Custos Fixos (calculados por mês)

São os custos relativos à existência da atividade. Exemplos: aluguel, salários, retiradas fixas mensais, manutenção, depreciação etc.

Características: ocorrem independentemente de haver venda ou mesmo produção.

Como são fixos, não adianta calculá-los por unidade produzida, conforme fizemos com os custos variáveis. Sendo fixos, eles permanecem iguais todos os meses. Dessa forma, fica mais fácil calculá-los pelos seus valores mensais.

Unidade de medida: R$/mêsVamos supor que, feitas as contas, chegou-se à

conclusão que os custos fixos do empreendimento somam R$ 300,00 por mês.

O que é e como calcular a Depreciação

Máquinas têm um tempo de vida útil, após o qual apresentam problemas ou não mais funcionam. A depreciação é a reserva que precisamos fazer para que, após um determinado período de uso, tenhamos dinheiro para trocar a máquina, que já está muito usada, por outra mais nova.

Para calcular a depreciação, precisamos saber:

O preço de compra da máquina; A sua vida útil, ou seja, a quantidade de anos durante

os quais ela consegue operar bem; O seu valor residual, ou seja, por quanto pode ser

vendida essa máquina quando a sua vida útil chegar ao fim.

Observação: para estimar a vida útil de uma máquina, podemos pedir informações ao fabricante e

Quadro 3 - Custo !xo (mensal)

Item

Aluguel

Água

Luz

Manutenção

Telefone

Total do custo %xo

Depreciação

Custo mensal R$

100,00

35,00

40,00

20,00

80,00

300,00

25,00

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também visitar outras atividades que já utilizem um equipamento semelhante.

Vamos admitir que a máquina de costura tenha uma vida útil de 5 anos. Para determinar o seu valor residual, basta saber o preço, hoje, de uma máquina igual à nossa com dez anos de uso. Vamos admitir que esse valor seja de R$ 500,00.

O que é e como calcular os custos com manutenção

Os gastos com manutenção são aqueles a serem feitos com a manutenção das máquinas e equipamentos (lubrificantes, consertos etc.). O cálculo do valor mensal desses custos depende de certa experiência com o tipo de

produção. O valor da manutenção das máquinas vai depender do tipo de máquina, da quantidade de horas trabalhadas, das condições locais de instalação e do manuseio.

O próprio fabricante pode informar o custo de manutenção das máquinas e equipamentos. Na falta total de informações, o valor de 0,5% a 1% do valor das máquinas e equipamentos deve cobrir esses gastos. No nosso exemplo, vamos destinar 1% desse valor para as despesas de manutenção.

Atenção: alguns itens dos custos fixos não implicam num pagamento regular, que ocorra todos os meses. É o caso, por exemplo, da manutenção de máquinas e equipamentos. O mesmo ocorre com a reserva para depreciação.

É comum considerar qualquer sobra como sendo lucro, desconhecendo-se a necessidade de fazer essa reserva. Assim, cria-se a ilusão de uma rentabilidade aparente, na medida em que se distribui como “sobras” um valor que deveria ser usado para a manutenção ou reposição das máquinas e equipamentos. Com o correr do tempo, a ausência desta reserva pode inviabilizar o projeto e comprometer a própria existência do grupo.

Remuneração do pessoal é custo fixo ou variável?

O salário é uma das formas de remuneração do trabalho. As empresas privadas normalmente contratam os trabalhadores em troca de um salário. As empresas consideram o salário do pessoal que trabalha na produção como sendo um custo variável

Quadro 4 - Depreciação

Máquina Valores em R$

Preço de compra

Menos valor residual

Vida útil

Perda de valor mensal (R$ 200,00/12 meses)

Outros equipamentos

Igual perda de valor

1.500,00

500,00

5 anos

16,67

200,00

1.000,00

Menos valor residual

Preço de compra

Igual perda de valor

Vida útil

Depreciação

Outros equipamentos

Máquina

Total por mês

Perda de valor mensal (R$ 100,00/12 meses)

200,00

500,00

300,00

3 anos

R$ por mês

8,33

16,67

25,00

8,33

Perda do valor anual (R$ 1.000,00/5 anos)

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(se a produção aumenta, empregam mais pessoas; se diminui, mandam embora uma parte do pessoal). Para as empresas, a capacidade de trabalho do trabalhador é uma simples mercadoria. O salário é o preço que o empresário paga por esta mercadoria.

Num empreendimento associativo, diferentemente das empresas privadas, não existe um patrão, que fica com o lucro e paga um salário aos trabalhadores. Quando o empreendimento é associativo, as formas de remuneração do trabalho devem ser decididas pelo conjunto dos associados, conforme os critérios por eles definidos.

O grupo, por exemplo, pode decidir que: i) a remuneração será de acordo com as sobras, que serão divididas segundo os critérios estabelecidos pelos associados; ii) haverá uma remuneração fixa mensal para todos os associados; iii) apenas algumas pessoas receberão uma remuneração fixa; iv) os associados receberão por hora trabalhada ou por unidade produzida; v) o grupo contratará uma ou mais pessoas pagando um salário etc. Ou, então, pode haver uma combinação entre estas diferentes formas de remuneração.

O estudo de viabilidade vai refletir a forma de remuneração decidida pelo grupo. O importante é que o grupo combine previamente a forma de remuneração a ser adotada, com critérios bem claros e entendidos por todos. Ou seja, esta não é uma definição estritamente econômica, mas está relacionada com os aspectos associativos do empreendimento.

Observação: se o grupo decidir que os associados vão receber uma remuneração mensal previamente estabelecida, o valor desta remuneração deve ser incluída

no cálculo do custo fixo. Se o grupo decidir que a remuneração dos associados

depende das sobras, neste caso não haverá custo fixo mensal com remuneração de pessoal.

Se o grupo decidir que a remuneração será um valor por unidade produzida, esta remuneração deve ser incluída no cálculo do custo variável.

Ao incluir a remuneração do pessoal no custo fixo, é importante que o grupo reflita com antecedência como vai agir no caso de uma grande diminuição das vendas, quando o dinheiro disponível para pagamentos também diminui.

c) Custo total mensal

O custo total mensal é igual ao custo fixo mensal mais o custo variável mensal.

Os custo fixo mensal já foi calculado no Quadro 3. Falta transformar os custos variáveis por unidade produzida (encontrado no Quadro 2), em custo variável mensal.

O custo variável mensal vai depender da quantidade produzida mensalmente. Já vimos que, como resultado da pesquisa de mercado realizada na primeira parte do nosso estudo, o grupo decidiu produzir 110 bermudas.

Já calculamos anteriormente o custo variável por unidade produzida (Quadro 1). Para encontrarmos o custo variável mensal, basta multiplicar o custo variável por unidade produzida pela quantidade mensal a ser produzida. Produzindo 110 bermudas por mês, o custo variável mensal será de:

Quadro 5 - Custo variável mensal

Custo variável por unidade produzida (a)

R$ 7,00

Quantidade mensal a ser produzida (b)

Custo variável mensal (c = a x b)

110 R$ 770,00

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Agora, já podemos montar um quadro resumindo o custo total mensal.

Cálculo da receita

A receita é o valor que o grupo vai receber em pagamento pela venda da produção.

Receita = preço x quantidade vendidaComo já vimos, o grupo pretende produzir 110

bermudas por mês.Então, a receita prevista será de:

O Resultado da atividade

O resultado da atividade é a diferença entre receita total e o custo total mensal.

Resultado da Atividade = Receita - CustosSe a diferença for negativa, a atividade apresentará

prejuízo e o grupo deve rever todos os pontos do projeto para verificar em quais condições a atividade pode apresentar um resultado positivo. Por outro lado, se a diferença for positiva, isso indica que, considerando as condições estabelecidas de custos, preço de venda, e quantidade vendida, a atividade apresentará uma sobra.

No nosso exemplo, é o valor desta sobra que vai permitir a remuneração dos associados. Deve-se observar que essa sobra será obtida apenas se forem cumpridas todas as condições até aqui consideradas, ou seja:

Produzir 110 bermudas por mês; Vender toda essa produção ao preço de R$ 10,00; Conseguir receber o pagamento dessas vendas; Manter os custos dentro dos limites considerados

nesse estudo.

Atenção: esse é o momento de outra reflexão essencial: somos capazes de produzir e vender toda a produção que planejamos? Vamos rever o projeto para metas mais modestas? Ou, pelo contrário, vamos ampliar o nosso projeto?

Observação: todos esses cálculos são aproximados. Não há necessidade de grande precisão. Mas não devemos usar números otimistas no cálculo dos custos. É melhor fazer o estudo de viabilidade com números mais pessimistas do que enfrentar prejuízos futuros.

Ponto de equilíbrio: um conceito importante

Ponto de equilíbrio é a quantidade mínima que precisa ser produzida e vendida para que o empreendimento consiga pagar todos os seus custos. Ou seja, produzindo no Ponto de equilíbrio a atividade não apresenta prejuízo, mas também não obtém sobra.

O Ponto de equilíbrio corresponde ao nível de produção em que a receita total se iguala ao custo total (custos fixos mais custos variáveis).

Quadro 6 - Custo total mensal

Custos variáveis

Custos "xos

Custo total

770,00R$

R$ 300,00

R$ 1.070,00

Quadro 7 - Cálculo da receita

Produto

Bermuda

Quantidade mensal (A)

110

Preço de venda (B)

R$ 10,00

Receita mensal (AxB)

R$ 1.100,00

Quadro 8 - Resultado da atividade

Receita mensal

R$ 1.100,00

Custo mensal

R$ 1.070,00

Sobra mensal

R$ 30,00

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O cálculo do Ponto de equilíbrio permite que todos os integrantes do empreendimento avaliem se o empreendimento será capaz de produzir e vender esta quantidade mínima.

d) Ponto de equilíbrio expresso

em quantidade/mês

Para calcularmos o Ponto de equilíbrio temos que conhecer:

o preço de venda os custos variáveis e os custos fixos

Qual é a lógica do cálculo do Ponto de equilíbrio? Para entendê-la, basta decompormos o preço de venda. Vamos retomar o exemplo da produção de bermudas.

O preço de venda da bermuda é de R$ 10,00.

Deste preço, R$ 7,00 destinam-se ao pagamento dos custos variáveis.

Do preço de venda, depois de abatido o custo variável, sobra uma margem de R$3,00. É o que se denomina de margem de contribuição. E tem este nome porque é com esta margem que vamos pagar os custos fixos.

O preço de venda de cada produto deve ser suficiente para pagar o custo variável unitário. Entretanto, o preço de venda de uma unidade do produto não é suficiente para cobrir o total dos custos fixos. Cada unidade vendida contribui para “pagar” apenas uma parte dos custos fixos. Assim, o pagamento dos custos fixos depende de se conseguir vender outras unidades. É a soma das margens de contribuição obtidas pela venda dessas outras unidades que vai totalizar o montante necessário para cobrir os custos fixos do empreendimento.

Em nosso exemplo, a venda de cada bermuda deixa

R$ 3,00 de margem de contribuição para ajudar a pagar os custos fixos mensais.

Margem de contribuição: valor que sobra do preço de venda, depois de abatido os custos proporcionais ao preço e os custos variáveis.

Se o custo fixo é R$300,00 e se, da venda de cada bermuda, sobram R$3,00 para pagar o custo fixo, para calcular a quantidade de peças a serem vendidas no Ponto de equilíbrio, basta dividir o valor total dos custos fixos mensais pela margem de contribuição de cada bermuda.

No Ponto de equilíbrio, a soma das margens de contribuição é igual ao valor dos custos fixos.

Isto significa que as primeiras 100 bermudas que forem produzidas e vendidas se destinam apenas a pagar os custos do empreendimento. As sobras começarão a surgir das vendas que ultrapassarem esta quantidade mínima.

Se o custo fixo é R$ 300,00/mês e se cada bermuda deixa uma margem de R$ 3,00, temos que:

A venda de 80 bermudas/mês totaliza margem de R$ 240,00. Resultado ( prejuízo de R$ 60,00/mês

A venda de 110 bermudas/mês totaliza margem de R$ 330,00. Resultado ( sobra de R$ 30,00/mês

A venda de 100 bermudas/mês totaliza margem de R$ 300,00. Resultado: ( Receita = custos totais = 0 x 0

Quadro 9 - Cálculo da margem de contribuição

Preço de vendaR$ 10,00

Custo variável por unidade

R$ 7,00

Margem de contribuição

R$ 3,00

Quadro 10 - Cálculo do Ponto de equilíbrio

Custo %xo mensal

R$ 300,00

Margem de contribuição

R$ 3,00

Ponto de equilíbrio

100 bermudas

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Conclusão importante: a cobertura dos custos totais de uma atividade econômica não depende apenas do preço de venda e dos custos, mas depende, também, da quantidade vendida.

Atenção: se a margem de contribuição de um produto for negativa, isto significa que o preço de venda não é suficiente para pagar os custos variáveis. E ainda restam os custos fixos para serem pagos. Sendo assim, o resultado sempre será deficitário, o empreendimento sempre terá prejuízo ao produzir e comercializar este produto.

Observação: se qualquer componente dos custos for maior do que o planejado, isto significa que o Ponto de equilíbrio será mais alto; ou seja, vai aumentar a quantidade mínima que deve ser produzida para que os custos mensais sejam cobertos.

Uma variação no preço de venda também vai modificar o Ponto de equilíbrio, para mais ou para menos.

Esta fórmula apresenta o Ponto de equilíbrio em unidades, ou seja, uma quantidade mínima a ser produzida e vendida. Mas o Ponto de equilíbrio também pode ser calculado em R$/mês. É o que veremos em seguida.

e) Ponto de equilíbrio expresso em R$/mês

Se o Ponto de equilíbrio é uma quantidade mínima a ser vendida por mês, ele também pode ser expresso como um valor mínimo de venda mensal, ou seja, uma receita mensal mínima. Basta multiplicar esta quantidade mínima pelo preço de venda do produto. Isso nos permite criar uma nova forma de expressar o Ponto de equilíbrio: é o nível da venda mensal (em R$ por mês) cujo valor é igual ao valor dos custos totais da atividade. Para este valor de venda mensal, não há perdas nem ganhos. Ou seja, a receita total mensal menos o custo total mensal será igual a zero.

O Ponto de equilíbrio expresso em R$ por mês, ou seja, como uma receita mínima mensal, é um conceito que vai nos ser muito útil mais adiante, quando calcularmos o Ponto de equilíbrio para atividades que trabalham com mais de um produto.

f) A margem de contribuição expressa como um % do preço de venda

Conforme já definimos, a margem de contribuição de um produto é a parcela que sobra do seu preço de venda,

Resumo das contas para calcular o resultado da atividade

Receita mensal

Custos variáveis mensais

Custo total

mensal

Resultado mensal

Quantidade vendida

Quantidade vendida

Custos &xos

Receita mensal

Preço de venda

Custo variável por

unidade

Custos variáveis mensais

Custo total mensal

Resumo das contas para calcular o Ponto de equilíbrio

Preço de venda

Ponto de equilíbrio

(unid./mês)

Custos variáveis

Custo &xo mensal

(R$/mês)

Margem de contribuição

Margem de contribuição

(R$/unid.)

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depois de abatidos os custos proporcionais ao preço e os custos variáveis.

Sendo assim, podemos dizer que a margem de contribuição de um produto corresponde a um percentual fixo em relação ao seu preço de venda. Tomemos o exemplo da nossa produção de bermudas como referência:

O preço de venda é R$ 10,00/unidade. A margem de contribuição é de R$ 3,00 por unidade

(calculada no Quadro 9 – página 31).

R$ 3,00/unidade corresponde a 30% do preço de venda. Ou seja: (R$3,00/R$10,00) x 100 = 30%.

A noção de margem de contribuição como um percentual do preço de venda vai nos ser útil para o cálculo do Ponto de equilíbrio para atividades que trabalham com mais de um produto.

Considerações �nais sobre o estudo de viabilidade

O estudo engloba, simultaneamente, as questões técnicas, econômicas e gestionárias.

Não se trata de uma formação para a eficiência econômica e outra para a gestão democrática. Os números que entram nas contas dependem das formas de gestão definidas pelo grupo.

Para que o empreendimento tenha sucesso, é essencial a participação consciente de todos os envolvidos. Eles precisam ter todas as informações necessárias para que possam avaliar e decidir, com conhecimento de causa, sobre as implicações do projeto e sobre a responsabilidade de cada um em relação às várias atividades previstas. Este é o maior desafio para o sucesso do empreendimento.

CORAGGIO, J. L. Sobre la sostenibilidad de los emprendimientos mercantiles de la economía social y solidaria. Disponível em www.coraggioeconomia.org.

KRAYCHETE, G. Como fazer um estudo de viabilidade econômica. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

. Processo de trabalho, territórios e sustentabilidade dos empreendimentos da economia solidária. Exposição realizada no seminário Tecnologia social e economia

Referências bibliográ�cas

solidária: estratégias de formação e desenvolvimento local, promovido pela FASE e RTS. Salvador, abril/2008. Texto publicado no livro Tecnologia social, economia solidária e políticas públicas. Bocayuva, Pedro Cunca e Varanda, Ana Paula (Orgs, Rio de Janeiro, FASE; IPPUR; UFRJ, 2009. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

Economia dos setores populares: sustentabilidade e estratégias de formação. Rio de Janeiro, CAPINA,

OIKOS, 2007. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

KRAYCHETE, G e COSTA, R. Puxando o fio da meada: viabilidade econômica de empreendimentos associativos I. RJ, CAPINA, 1998. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

, Retomando o fio da meada: viabilidade econômica de empreendimentos associativos II. RJ, CAPINA, 1998. Disponível em www.ucsal.br/itcpucsal.

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Anexos

Anexo 1 Dicionário de conceitos utilizados

Investimentos: tudo que é preciso comprar e gastar para instalar o projeto (máquinas, equipamentos, construção, móveis etc.).

Custos variáveis: correspondem aos gastos que aumentam ou diminuem conforme a quantidade produzida. Por exemplo: a matéria-prima que entra na produção da mercadoria. Quanto maior a produção, maior será o gasto com matéria-prima. A fruta é a principal matéria-prima para a produção de polpas. O combustível é o principal custo variável de um caminhão. Quanto maior for a produção, maior será o gasto com os custos variáveis. Se a produção diminuir, os custos variáveis também diminuem.

Custo variável por unidade: é o custo com matéria-prima, combustível etc. para produzir uma unidade de um determinado bem ou serviço.

Custo variável mensal: depende da quantidade que planejamos produzir mensalmente. Para encontrarmos o custo variável mensal, basta multiplicar o custo variável por unidade pela quantidade mensal a ser produzida.

Custos !xos: são aqueles que permanecem constantes, independentemente da quantidade produzida. É mais fácil calcular os custos fixos pelos

seus valores mensais porque são geralmente os mesmos a cada mês que passa, qualquer que seja a produção. Exemplo: gastos com aluguel ou com salário.

Depreciação: é a reserva que precisa ser feita para que, após um determinado período de uso, tenhamos dinheiro em caixa para trocar uma máquina ou equipamento que já está muito usado por outro mais novo. As reservas para depreciação devem ser incluídas no cálculo dos custos fixos.

Receita mensal: é o valor efetivamente recebido pela venda da produção. Para calcular a receita, basta multiplicar o preço de venda líquido de uma unidade do produto pela quantidade mensal vendida e recebida. Não confundir receita com o valor da quantidade vendida que muitos chamam de venda ou faturamento. Receita é o valor do que se recebeu pela venda da produção. Venda ou faturamento é o valor de tudo que foi vendido, independentemente de ter sido recebido ou não.

Sobra (lucro) mensal: é a diferença entre a receita e o custo mensais. É o que sobra da receita, depois de descontar todos os custos que envolvem a atividade.

Ponto de equilíbrio: indica a quantidade mínima que deve ser produzida por mês para que o empreendimento consiga pagar todos os seus custos. Neste ponto, a atividade não apresenta nem lucro nem prejuízo. A receita obtida será igual aos custos. Qualquer produção abaixo do Ponto de equilíbrio resultará em prejuízo. Visualizar com antecedência a quantidade mínima a ser produzida e vendida – isto é, o Ponto de equilíbrio – é importante para que cada grupo avalie, de forma também antecipada, se tem condições de produzir e vender pelo menos esse mínimo, acima do qual poderá obter resultados econômicos positivos.

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Margem de contribuição: corresponde à diferença entre o preço de venda e o custo variável por unidade. O resultado dessa diferença é que vai contribuir para pagar os custos fixos (por isso essa sobra é chamada de margem de contribuição). A margem de contribuição é usada no cálculo do Ponto de equilíbrio. Quando a produção mensal é superior à do Ponto de equilíbrio, a margem de contribuição interfere para aumentar o valor das sobras (lucro).

Anexo 2 Exercício: revisão de conceitos

Uma associação tem um caminhão para serviços de frete. A associação cobra pelo frete o preço de R$0,60 por km.

O caminhão roda, transportando carga, 500 km por mês.

Com isso, a associação obtém uma receita mensal de R$0,60 x 500 km = R$300,00.

O preço do combustível é de R$0,40 e o caminhão roda 4 km com um litro de combustível. Portanto, o preço do combustível por km rodado é de R$0,40/4 = R$0,10.

Rodando 500 km por mês, o gasto mensal do caminhão com combustível será de 500 km x R$0,10 = R$50,00

O salário do motorista é de R$ 300,00 por mês.Dessa forma, a associação tem uma receita

mensal de R$ 300,00 e um gasto mensal de R$350,00 (combustível mais salário do motorista), tendo um prejuízo de R$50,00.

O que é preciso fazer para este caminhão não apresentar prejuízo?

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A economia solidária como projeto de sociedade

Débora Nunes

A história da humanidade é uma aventura que possibilita múltiplas compreensões e este texto visa a refletir acerca de ensinamentos históricos oriundos da busca da humanidade por uma sociedade mais justa e respeitosa dos direitos humanos, a partir de escolhas pessoais da autora. Serão relembradas experiências e projetos emancipatórios1 baseados em valores semelhantes aos que estão

implícitos na idéia de economia solidária: igualdade, cooperação, liberdade e autogestão. Para que esta abordagem seja mais acessível para aqueles que não puderam estudar mais profundamente a história da humanidade, que já dura pelo menos seis mil anos, será feito um esforço de resgatar de modo simplificado sucessivos fatos e personagens históricos que apontavam na direção de sociedades mais

justas. Com o mesmo objetivo, há no final da seção um glossário de termos importantes e um gráfico que pretende ilustrar os diferentes períodos históricos.

Embora pertinentes, não serão tratados aqui os grandes projetos religiosos, liderados por personagens de grande prestígio entre as diversas culturas humanas, como Confúcio (551 a 479 a.C.) ou Buda (563 a 483 a.C.), inspiradores do confucionismo e do budismo, ou Jesus Cristo (0 a 33 d.C.), precursor do cristianismo e Maomé (570 d.C a 632 d.C.),

criador do islamismo. Ainda que todos eles falassem de igualdade e de cooperação entre as pessoas como ideais de vida em sociedade, os projetos aos quais estavam ligados têm caráter

religioso cuja dimensão espiritual exigiria reflexões que não têm como ser abordadas neste texto, mesmo sabendo-se da sua importância.

Serão tratados brevemente a Antiguidade Clássica (abrangendo a civilização grega e romana), a Idade Média (os mil anos de domínio civilizatório da Igreja Católica) e a Idade Moderna, que compreende o Renascimento (período de transição entre o Feudalismo e o Capitalismo) e o Iluminismo (com seu auge na Revolução Francesa). Do mesmo modo, serão destacados fatos, personagens e mudanças culturais da Idade Contemporânea, ressaltando a Revolução Industrial, o século XIX e as lutas dos trabalhadores contra o capitalismo nascente e pela independência das colônias

1. Estão grafados em itálico os termos que designam conceitos que serão explorados mais detalhadamente no glossário.

A história da a refletir acercamais justa e rrelembradas

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1. Estão grafados em itálico os termos que designam

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europeias, assim como o século XX e suas revoluções e vivência do socialismo real. Esta abordagem histórica é evidentemente vinculada à visão de mundo da autora e, por isto mesmo, não pretende ser neutra, mas tenta evitar as armadilhas das interpretações excessivamente ideologizadas dos fatos, buscando levantar de maneira acessível ensinamentos concretos para os tempos atuais.

1.1 Antes de começar, um porém...

Antes de passar à periodização tradicional da história, buscando encontrar o desenvolvimento dos ideais e das práticas de igualdade, liberdade, cooperação e autogestão, é importante destacar que a vivência desses princípios pode ser encontrada em experiências sociais de tribos sul-americanas pré-colombianas, particularmente brasileiras. Estudos mostram que, nessas sociedades, antes da chegada dos europeus – e em alguns casos até hoje – vivia-se um tipo de comunismo primitivo (MARX, ENGELS, 2002; CLASTRES, 1974), em cooperação, para a produção dos bens necessários à vida, sem divisão de classes sociais, portanto, sem desigualdade, nem Estado organizado, ou seja, em liberdade e autodeterminação e, portanto, sem nenhum tipo de poder coercitivo que ditasse regras a serem respeitadas à força. Para os europeus, que os descreviam no século XVI, eles eram gente “sem fé, sem lei e sem rei”.

Pierre Clastres (1974) descreve agrupamentos humanos, geralmente em torno de duzentas pessoas, mas podendo chegar a muito mais, vivendo numa organização em que o chefe não tinha poder coercitivo, apenas prestígio. Os yanomamis são citados como exemplo de inúmeras tribos indígenas nas quais os chefes deveriam ter três características que explicam como era exercida a liderança: deveriam saber falar bem, ter grande capacidade de negociação e ser naturalmente generosos. As duas primeiras qualidades podem ser atribuídas ao papel de “juiz de paz”, aquele que consegue

pacificar os membros da tribo, em momentos de conflito, pelo uso da palavra. A terceira característica refere-se ao fato de que se espera do chefe que partilhe tudo o que tem com os membros de sua tribo.

Este chefe, negociador, pacificador e desprendido, não manda. Ele consulta sempre sua comunidade e pode até ceder o lugar de chefe para um guerreiro mais qualificado em momentos de guerra, se a tribo assim o quiser. Este chefe, reconhecido e legitimado pelo seu grupo, só se mantém como tal se cumpre seu papel, sem querer exercer um poder que não lhe é dado, de dirigir os destinos da tribo. Sua única prerrogativa, seu privilégio, é poder ser poligâmico em tribos não generalizadamente poligâmicas. Suas esposas, por sua vez, ajudam-no a produzir os bens que os membros da tribo irão certamente lhe pedir, e que ele não poderá lhes negar (CLASTRES, 1974).

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Se existe um exemplo tão próximo, de uma sociedade vivendo segundo princípios propostos pela economia solidária, por que ir tão longe, à Grécia, à França e a tantos outros lugares, neste passeio histórico que é proposto a seguir, para aprender sobre igualdade, liberdade, cooperação e autogestão? Se focalizássemos apenas as sociedades de centenas de indivíduos, característica dessas tribos brasileiras, não se iria acompanhar as mudanças na sociedade humana devido ao crescimento demográfico, a invenção do poder coercitivo, ao estabelecimento da propriedade privada e da acumulação de bens, ao desenvolvimento tecnológico ou a tudo isto junto. A maior parte da humanidade é herdeira do estabelecimento da desigualdade e da opressão de forma muito precoce, mas também, neste processo, adquiriu a escrita, as cidades, a superação do canibalismo e dos

sacrifícios humanos, leis e instituições sociais e políticas que buscam reger grupos humanos de milhares e até de milhões de seres humanos, uma ciência que explica o mundo e dissipa os medos, confortos inimagináveis trazidos pela tecnologia... Nesta abordagem histórica, busca-se acompanhar brevemente esta trajetória.

Pagou-se um preço muito alto, desenvolvendo-se a desigualdade e a competição em níveis tão elevados que hoje é necessário aprender a viver de outra forma. Face às ameaças que podem atingir a vida humana na Terra, oriundas dos problemas climáticos derivados de uma lógica econômica predatória e do consumo desenfreado, felizmente existem exemplos inspiradores para os que querem construir um outro mundo, mais justo e solidário. Seja o daqueles que, ao longo da história, desafiaram a opressão, a desigualdade e a injustiça, seja o dos yanomamis, os nambiquaras, os tupinambás, os bororós e o de tantos outros que se mantiveram longe destes “progressos” – que se revelaram tão encantadores quanto destrutivos. Este outro mundo será uma construção coletiva, inspirada na diversidade da história e nos diferentes erros e acertos do passado, que, por sua vez, precisa ser conhecido.

1.2 Ensinamentos gregos

Muito da formatação do que hoje entendemos como vivência democrática – o valor primordial da opinião da maioria, a organização de assembléias e eleições, os discursos em defesa de pontos de vista diferentes antes de cada votação etc. – nasceu na civilização grega antiga, cujo auge se deu quatro séculos antes de Cristo. Nas ágoras, como eram chamadas as praças centrais das cidades-estado gregas, principalmente em Atenas, praticavam-se frequentemente consultas aos cidadãos que opinavam sobre questões que diziam respeito ao cotidiano e ao destino da cidade. A população das cidades gregas não chegava a cinquenta mil habitantes

muito precoce, mas também, neste processo, adquia escrita, as cidades, a superação do canibalismo e

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e desta, apenas uma pequena parte podia votar nas assembleias, das quais estavam excluídos as mulheres, os escravos e os estrangeiros.

Nesse contexto, a igualdade entre cidadãos quanto ao direito de participação nas decisões coletivas era permeada pela existência – “natural”, no período – da desigualdade entre diferentes categorias de pessoas. Pode-se destacar como aprendizado histórico o fato de que experiências inovadoras, mesmo sem a radicalidade necessária e desejada, têm muito a ensinar, e que a influência que a Grécia teve para a história da democracia – tanto direta quanto representativa – na humanidade é decisiva, mesmo tratando-se de uma sociedade escravagista, machista e xenófoba (que odeia os estrangeiros).

Outra importante herança grega era um aspecto do que se entendia por cooperação, que não se restringia à esfera da produção de bens e à solidariedade cotidiana entre as pessoas, mas tinha um sentido concreto na produção do conhecimento. Na Academia de Platão, filósofos davam aulas ao ar livre, na observação direta

da natureza e tinham como metodologia de ensino o diálogo, além da preocupação concreta com o bem-estar físico dos envolvidos durante esses diálogos: a sombra das árvores, as belas paisagens etc., nas horas cálidas da manhã ou do final da tarde. O diálogo, situação de troca que não é contraditória com a existência de mestres mais experientes, é uma forma não óbvia mas bastante expressiva de cooperação e um ensinamento indispensável para o funcionamento dos processos de incubação.

1.3 Dos gregos à Idade Média

Em seguida à civilização grega, o mundo ocidental experimentou o domínio político e cultural do Império Romano (entre I a.C. e V d.C.) que, embora tenha sofrido grande influência grega e tenha mantido órgãos representativos de poder, como o Senado romano, conheceu, no tempo de sua maior influência, formas muito concentradas de mando nas mãos dos seus dirigentes supremos. O Império Romano, no seu auge, pouco depois da época em que Jesus Cristo viveu, cobria praticamente todas as terras em torno do mar Mediterrâneo, ao norte, na Europa, ao sul, na África, e no Oriente Médio. A língua hegemônica, o latim, um

grande exército conquistador e um sistema de leis unificado submeteram povos que equivalem hoje a

cerca de 30 países diferentes. O aparato legal do Direito romano

foi a principal contribuição de Roma em termos de organização social, visando a uma sociedade justa, mesmo mantendo o sistema

escravagista. A construção de um conjunto de regras de convivência escritas em forma de lei e vigente para todos os

cidadãos foi a inovação necessária para a existência de um império de

grandes proporções espaciais. Parte significativa da legislação atual do

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mundo ocidental é baseada no Direito romano que, portanto, definiu em grande medida a ideia geral de justiça. Face à organização social grega, a romana incluiu um número muito maior de pessoas na categoria de cidadãos, pois os estrangeiros, e mesmo os ex-escravos, podiam adquirir cidadania romana.

Após o declínio do Império Romano, instaura-se a chamada Idade Média, entre V d.C. e XV d.C., cuja sociedade se baseava no Feudalismo. Nesse sistema, um pequeno número de grandes proprietários de terra tinha como servos a massa de pobres que ali trabalhava. Os senhores, apoiados pelos vassalos (guerreiros), moravam nos castelos fortes feudais e davam proteção aos servos em caso de guerras, que eram frequentes. Este conjunto social era regido pelos dogmas – interpretações imutáveis sobre a religião e o mundo – da Igreja Católica, que concentrava o poder na mão do papa e da cúpula da Igreja – o clero (cardeais, bispos e padres). A concentração de poder na Idade Média manifestava-se através dessa aliança entre senhores da Igreja e senhores feudais, que se apoiavam mutuamente e, em muitos casos, eram da mesma família.

Durante a Idade Média, começaram a constituir-se, aos poucos, os Estados nacionais que se conhecem hoje, liderados na época pelos reis e pela nobreza (duques, marqueses, condes e toda a “corte” constituída com base nos laços de sangue, na propriedade da terra e na força bruta da guerra). Esses poderes nacionais autocráticos permitiram a unificação de áreas que se desestruturaram após o fim do Império Romano e foram alvo de invasões estrangeiras. A organização do espaço em torno dos castelos feudais foi dando lugar, pouco a pouco, à organização de Estados que tinham como centro de poder as cidades, local de comércio e sede das administrações nacionais.

Nesse período, surgiram também, em grande número, congregações religiosas inspiradas nas ideias de pessoas como Bento de Núrcia (Itália, 490 a 547), os beneditinos;

Domingos de Gusmão (Espanha, 1170 a 1221), os dominicanos ou em Francisco de Assis (1181 a 1226), os franciscanos. Essas ordens religiosas relacionavam-se com a Igreja Católica, pois pertenciam a ela, mas mantinham práticas que se diferenciavam daquelas vigentes no mundo exterior aos conventos. Do ponto de vista da reconstrução democrática, nas práticas conventuais, pode ser vista uma evolução, por exemplo, na consulta e eleição direta, esquecidas durante a Idade Média.

Desde os primeiros regulamentos conventuais, como o da Regra de São Bento, do século VI, que organizava a vida nos mosteiros beneditinos, mostra-se, nesses ambientes monásticos, uma lógica de vida em comum bastante democrática, principalmente se for comparada com o contexto histórico do entorno. Apesar de começar quase sempre pela regra de respeito ao superior, este respeito se dava pela capacidade do eleito (sim, eleito! com código eleitoral, vitória da maioria, mandato temporário e, em muitos casos, voto secreto) de interpretar a vontade do conjunto dos monges. Segundo Debray (2003), em muitos casos, a democracia interna dos monastérios era superior à grega, que elegia por sorteio os magistrados que coordenavam o funcionamento democrático, enquanto os monges os elegiam diretamente por mérito. Segundo esse autor, a construção de ideia de democracia representativa deve muito aos monastérios.

A Idade Média é, portanto, um longo período da história humana, pleno de autoritarismo e de desigualdade, mas que trouxe em si mesmo elementos de construção do futuro, como acontece com todos os períodos históricos. O princípio da infalibilidade do papa, por exemplo, um dos dogmas da Igreja, é inteiramente contraditório com a natureza da democracia, assim como o era o poder absoluto dos reis. Foi necessária uma grande indignação contra a tirania dos dogmas e da autocracia (governo de um só) e um grande progresso filosófico para superar este contexto histórico, retomando princípios da democracia grega, atualizando-a com a

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lógica de mérito dos monastérios para se chegar a uma outra organização social, política e econômica.

1.4 O Renascimento e o Iluminismo

A Idade Moderna (1453 a 1789) abrange dois momentos-chave de evolução de mentalidades: o primeiro, chamou-se Renascimento (século XIV a XVII) e o seguinte, chamou-se Iluminismo (século XVIII). O Renascimento é considerado um período de retorno da tradição greco-romana nas artes, na ciência, na cultura e também na política. O começo da decadência do poder da Igreja Católica se desenvolve através de lutas internas, que redundaram numa cisão que separou católicos e protestantes. Para esta imensa mudança política e cultural muito influenciou a invenção da imprensa, que popularizou, em outras línguas que não o latim – lido apenas pela elite – a Bíblia e outros textos importantes, inclusive de filósofos gregos e sábios romanos. Do mesmo modo, a ampliação do número de universidades, surgidas ainda na Idade Média, criou um ambiente mais propício à discussão livre de ideias.

Nesse momento da história da humanidade, o sistema feudal, no qual a riqueza se baseava na propriedade da terra, estava sendo profundamente modificado pelo crescimento do poder da burguesia, cuja riqueza provinha do dinheiro obtido no comércio. O Feudalismo é substituído paulatinamente pelo Mercantilismo, sistema em que a riqueza se baseia principalmente no comércio, particularmente aquele que advinha dos grandes descobrimentos, das grandes navegações, dos novos produtos e dos novos mercados que se estabeleciam.

Quando, nesse período, &omas Morus escreveu o romance Utopia (1516), ele idealizou a vivência da igualdade e da cooperação como parte da vida dos

cidadãos de uma ilha hipotética, inventada. Na cidade de Amaurota, capital de Utopia, todos eram iguais e todos cooperavam entre si em todas as esferas da vida. Na sociedade renascentista, ainda que houvesse progressos filosóficos, discussões sobre contratos sociais que permitissem bons governos que fossem movidos pelo interesse público, a desigualdade e a exploração eram a norma. Não é por acaso que o título do livro de Morus tenha passado a ser uma referência com a qual se intitula, de modo geral negativamente, tudo o que se relaciona com o projeto de uma sociedade justa, que parece para muitos como inatingível.

No século XVIII, observa-se o pleno desenvolvimento de todo um conjunto de ideias contra o autoritarismo e pela organização racional e científica da sociedade, que veio a se chamar Iluminismo. Os filósofos iluministas pretendiam tornar a humanidade consciente de sua realidade e responsável pelo seu destino e, portanto, liberá-la de todo poder não legítimo, ou seja, não baseado na vontade do povo. Para os iluministas, a racionalidade precisa ser a fonte de toda autoridade.

1.5 A Revolução Francesa e a luta

dos povos pela emancipação

Em 1789, a Revolução Francesa, com seu lema de “liberdade, igualdade e fraternidade”, traz o projeto de uma sociedade mais justa para o campo político, da disputa de poder, e destrona o rei da França, proclamando a República. Diferentemente de &omas Morus, os revolucionários franceses – que tinham sido influenciados pela filosofia iluminista, mas também pela história do povo da ilha de Utopia e de outros textos parecidos2 –, tinham, no projeto de uma sociedade livre, justa e fraterna, uma causa pela qual lutavam e não apenas um sonho, ou um romance.

2 Como a Cidade do Sol, de Tomaso de Campanella (1623), ou outro, posterior, Viagem a Icária, de Etiene Cabet (1840).

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Esta relação entre as ideias e os fatos pode mostrar que, no processo entre um projeto e sua realização, é importante que haja a descrição da utopia, a imaginação do que se busca, como num treinamento mental prévio, pessoal e coletivo, para que os contornos da realidade desejada vá se construindo aos poucos, assim como a determinação de buscar sua concretização. A relação entre a teoria e a prática tem, na experiência da Revolução Francesa, um exemplo, mesmo sabendo-se que esta foi uma revolução burguesa e que os maiores ganhadores com o processo foram comerciantes enriquecidos com o Mercantilismo e não todo o povo, como suas palavras de ordem faziam entender.

Mais uma vez, experiências imperfeitas, que não cumprem tudo o que prometem e que carregam contradições em seu interior, conseguem ser vitais para a história humana. Mesmo que o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não tenha sido colocado em prática, toda uma lógica social e econômica foi mudada. Conta-se um exemplo concreto de mudança no cotidiano dos franceses um dia depois da tomada da prisão chamada Bastilha (14/07/1789), que é o dia de vitória da Revolução Francesa: o jardim de Luxemburgo, situado no coração de Paris e que era um jardim privado da nobreza, abre-se ao povo pela primeira vez, quase duzentos anos após ter sido construído.

Depois desse evento histórico que acabou tendo repercussões em toda a Europa, os antigos donos do poder, o clero e os senhores feudais, que pertenciam à nobreza, foram afastados ou tiveram seu poder diminuído. A partir desse período, os poderes vitalícios – que duram toda a vida e são baseados na hereditariedade, na propriedade da terra e na direção da Igreja Católica – deixaram de ser “naturais”. Uma nova forma de poder estava se constituindo: o poder do dinheiro, do capital. Os comerciantes, que eram uma classe social mais ou menos submissa no período feudal, tornaram-se os capitalistas do período seguinte,

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impondo outras regras e exercendo o poder de outra forma. A desigualdade continuaria, mas a possibilidade de organização e luta dos trabalhadores contra esta situação estava se desenvolvendo. Esse processo trouxe mudanças sociais expressivas e marca a entrada na história contemporânea da humanidade

A vitória da Revolução Francesa, que retomou ideias como a do governo do povo para o povo, que nasceram na Grécia antiga, assim como a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que também foi influenciada pelo Iluminismo, tiveram grande repercussão nas lutas independentistas latino-americanas e em seus desfechos vitoriosos. Uma a uma, as antigas colônias foram se libertando, como a Venezuela e a Colômbia em 1910, a Argentina em 1816, o Peru em 1921 e finalmente o Brasil, em 1822. Nesse contexto, destaca-se também a luta vitoriosa dos escravos do Haiti por uma república negra na América (1804). A busca de igualdade, do livre pensamento e da cooperação passou, a partir daí, a estar no centro da luta política em grande parte do mundo. Mesmo que pouco tempo depois tenha havido o retorno da monarquia na França, o panorama político ocidental nunca mais foi o mesmo, abrindo perspectivas para novas conquistas de direitos. Mais uma vez, observam-se avanços extraordinários

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seguidos de retrocessos, e o encadeamento posterior mostra o efeito que eventos inspiradores como os que estão sendo citados têm na trajetória da humanidade.

1.6 O mundo industrial e a reação a suas misérias

O capitalismo foi o modo de organização da sociedade que se consolidou com o desenvolvimento tecnológico construído durante a chamada Revolução Industrial, que começou no final do século XVIII e que foi consequência do desenvolvimento da ciência, iniciado no Renascimento. No século XIX, o capitalismo foi capaz de proporcionar à humanidade um imenso progresso tecnológico, mas, por ser baseado na desigualdade e na competição, trouxe como consequência grande miséria para o povo. Diante da produção coletiva dos bens realizada pelos operários assalariados e da apropriação privada dos lucros oriundos dessa produção, acumulados pelos capitalistas, surgem os primeiros projetos ditos socialistas.

Chamados posteriormente de “socialistas utópicos” por Marx, e cada um a seu modo, Saint Simon e Charles Fourrier na França e Robert Owen na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre outros tantos pelo mundo, tentaram construir uma sociedade à parte, fora da organização capitalista, em que não houvesse miséria e injustiça, como os falanstérios de Fourrier e as aldeias cooperativas de Owen. Essas organizações de caráter socialista foram chamadas de utópicas por não proporem mudanças na organização da sociedade como um todo e, sim, a construção de um mundo paralelo. Essas experiências eram baseadas na influência marcante de seus idealizadores – geralmente intelectuais progressistas – mas não, de modo geral, na organização autônoma dos próprios trabalhadores.

Outra tentativa, de outra natureza, de construção do socialismo foi a Comuna de Paris (1871), considerada a

primeira revolução comunista da história. Por um curto período, trabalhadores e intelectuais tomaram o poder e governaram a cidade, trazendo reformas que só seriam postas em prática séculos mais tarde, como a jornada de oito horas e a igualdade entre os sexos. Semanas depois da sua vitória, os comunards foram duramente derrotados e assassinados aos milhares em seguida. Quando esta e outras manifestações reais de projetos de caráter socialista, como a cidade de New Harmony, criada por Robert Owen nos Estados Unidos no século XIX, fracassaram, alguns pensadores (como Marx e Engels) buscaram demonstrar que a igualdade e a cooperação não poderiam ser construídas espontaneamente, pois as forças que reagiam contrariamente a seu sucesso eram por demais poderosas.

1.7 Sindicatos e partidos: a necessidade

histórica da união dos trabalhadores

Dessas experiências, surge a ideia de que uma forte organização que unisse o povo em busca do ideal socialista seria necessária para enfrentar os interesses do capital. A união dos trabalhadores, que já existia há séculos através das guildas de ofícios, que reuniam trabalhadores de uma mesma profissão (marinheiros, ferreiros, padeiros etc.), foram um modelo para os sindicatos. Já os partidos, que também existiam anteriormente, mas só para membros das classes dirigentes, foram formados nesse período para defender os interesses dos trabalhadores. Partidos comunistas e socialistas foram criados para tentar realizar a máxima de Marx e Engels – “proletários de todo o mundo, uni-vos”3 – e para buscar, de diferentes formas, chegar ao poder. A organização dos operários em sindicatos e partidos permeia a história da segunda metade do século XIX nos países da Europa do Oeste, mas também em outros lugares do mundo, como Rússia e Estados Unidos.

3 Frase emblemática citada no livreto Manifesto do partido comunista, publicado por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, que conclama os trabalhadores a lutarem contra o capitalismo e a construírem o “socialismo cientí$co”.

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Nesse contexto, o caso inglês é muito especial, pois, além da organização dos trabalhadores em sindicatos e partidos, eles criaram também contra-exemplos ao modo de funcionamento da economia capitalista, dentre os quais a cooperativa de Rochdale foi a pioneira (1843). A organização dessas cooperativas, criadas pelos operários ingleses e de modo geral vinculada aos sindicatos, objetivava o apoio mútuo e a melhoria das condições de vida. Essas experiências, consideradas por muitos autores como precursoras da economia solidária, abraçavam tanto a ideia de construção de um mundo à parte quanto a da tomada do poder político pelos trabalhadores. Elas tiveram, como não poderia deixar de ser, a influência de Robert Owen e, durante algum tempo, relativo sucesso econômico, mas também foram vencidas pela força econômica e estratégias dos capitalistas (SINGER, 2002).

Nos primeiros anos do século XX, a Revolução Russa (1917) despertou otimismo e esperança em milhares de mentes e corações em todos os cantos do planeta. As notícias já eram transmitidas pelo rádio e pensava-se que, pela primeira vez na história, um povo e uma nação conseguiram criar uma estrutura que garantisse a sociedade justa e humana tão buscada, baseada nos valores da igualdade e da cooperação. Um novo tipo de Estado, discutido, implantado e dirigido por Vladimir Ilitch Lênin, pretendia representar o povo da Rússia, unido, e realizar as transformações necessárias para que esta sociedade socialista se construísse, enfrentando corajosamente as forças contrárias a essa intenção. Este projeto nacional expandiu-se em 1922 para além das fronteiras russas, criando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.

Destaca-se, na Rússia, nos primeiros anos pós-revolução, a consolidação dos Soviets, parlamento que congregava deputados operários, soldados e camponeses. Diferentemente de outros parlamentos que surgiram no mundo, era o tipo de profissão do trabalhador que definia que tipo de deputado ele poderia ser (LÊNIN, 1978).

Logicamente, os Soviets eram bastante representativos do povo russo, pois estas três atribuições profissionais eram, provavelmente, as mais populares da época.

1.7.1 O �m justi�ca os meios?

Desde os primeiros tempos de existência deste Estado socialista na Rússia, muitas ações coercitivas foram implementadas em nome do projeto socialista, impondo modos de vida e de pensamento restritos dentro da sociedade justa e humana que se buscava construir. Os enfrentamentos dos revolucionários com os interesses contrariados do capital eram imensos e muitas concessões foram feitas, em nome da realização de um projeto tão profundamente buscado na história humana. Pensava-se que era a hora de construir um novo mundo e isto não se conseguiria sem um poder forte, dirigido pelo Partido Comunista, que esmagasse o que se chamava na época de “contra-revolução”.

Depois da morte de Lênin, em 1924, Stálin, seu sucessor, aprofundou, de maneira drástica, as restrições à liberdade, em nome da construção socialista que nacionalizou riquezas e aboliu a propriedade privada. Seus seguidores, milhões de homens e mulheres em todo o mundo, apoiavam a experiência russa e tinham a esperança de que as conquistas do socialismo, em termos de qualidade de vida do povo (acesso ao emprego, à habitação, à saúde, à educação, à cultura etc. garantidos para todos), se espalhassem pelo planeta.

Esse apoio popular à URSS foi importante na construção das mudanças políticas que se processaram posteriormente na Europa, de construção de um Estado de bem-estar social. De certa forma, os capitalistas europeus cederam os anéis para não perderem os dedos e fizeram profundas reformas sociais e econômicas que consagraram o modo de vida europeu, por algumas décadas, como aquele que mais avançou em termos de liberdades e direitos.

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Durante a Segunda grande Guerra Mundial (1939 a 1945), o povo russo pagou, com milhões de vidas, o preço pelo que entendia ser a defesa do socialismo na luta contra a invasão nazista. No seu esforço de guerra, os russos contribuíram decisivamente para a liberação de muitos povos da opressão totalitária alemã e para a vitória dos Aliados (França, Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética, entre outros). O imenso prestígio alcançado pelos russos pode ser entrevisto na belíssima poesia de Carlos Drummond de Andrade, chamada Carta a Stalingrado (ANDRADE, 1987), que enaltece a coragem dos russos para enfrentar Hitler na batalha atroz que se travou nesta cidade. Esses feitos levaram ao temporário esquecimento, pela maioria dos apoiadores da União Soviética, das concessões aos ideais socialistas, da existência de burocracias privilegiadas e da falta de democracia interna. Anos depois, foi a experiência chinesa (iniciada em 1927 e concluída em 1949), liderada por Mao Tse Tung (pronuncia-se Mao Zedong), que angariou adeptos apaixonados e dispostos a concessões políticas.

1.7.2 Liberdade x igualdade?

Depois da guerra, durante o período denominado da Guerra Fria, de 1945 a 1989, uma discussão que contrapunha “liberdade” e “igualdade” tornou-se comum. Enquanto os defensores do capitalismo diziam que os socialistas eram totalitários e que só o capitalismo defendia a “livre iniciativa”, os socialistas afirmavam que a liberdade que existia no capitalismo era a liberdade de explorar e denunciavam as desigualdades. Entre os avanços sociais no campo socialista e a consolidação da democracia na Europa e nos Estados Unidos, os dois conceitos e as duas vivências pareciam, ou eram, contraditórias. Não se podia viver a liberdade e a igualdade ao mesmo tempo, num

mesmo modo de produção e, portanto, num mesmo modo de organização da sociedade.

Desenvolve-se com força, na segunda metade do século XX, algo que, desde os anos 1930, Antônio Gramsci, intelectual e comunista italiano, já havia destacado como muito importante na definição recente da história do mundo ocidental: a sociedade civil (GRAMSCI, 1966). Em decorrência do desenvolvimento industrial, constituiu-se uma massa, intermediária entre proletários e capitalistas, formando a chamada classe média, que englobava um número cada vez maior de intelectuais e interagia largamente com os sindicatos. Esta aliança de todos aqueles/as que se comprometem com os problemas públicos de forma organizada interferiu largamente nas mudanças que ocorreram no século. Um exemplo de relevo é o caso europeu, em que a pressão desta sociedade civil, aliada dos partidos progressistas, conseguiu avanços sociais consideráveis, na vigência da social-democracia. É importante destacar que, na sua definição mais ampla, a sociedade civil engloba a todos (proletários, capitalistas e setores intermediários, em suas organizações), particularmente na lógica civil face ao Estado ou à lógica militar, de guerra.

1.7.3 Sociedade civil e autonomia,

ou capacidade de decidir o próprio destino

O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, principalmente da TV, ajudou a formatar e a ampliar a influência da chamada “opinião pública”, assim como a manipular sua ação4. Essa opinião pública, nos anos 1960, teve, ao menos, quatro fatos destacados para debater um novo valor, hoje tão caro à economia solidária, e que viria a se juntar aos três outros princípios que estão sendo

4. A idéia de “opinião pública” certamente se relaciona com a de sociedade civil, mas esta é organizada em entidades coletivas, pressupõe uma discussão mais aprofundada dos problemas e, muitas vezes, uma ação em face destes. A opinião pública, por sua vez, seria mais pulverizada, algo como a soma de opiniões individuais, repercutindo de modo ampliado e certamente in'uenciada pelas organizações da sociedade civil, além de outros inúmeros fatores.

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tratados neste texto: a idéia de autonomia, junto às ideias de igualdade, liberdade e cooperação. O primeiro motivo de discussão foi a revolução cubana (1959) e a reação americana de invasão militar e depois de bloqueio econômico a esse país. A luta contra o tirano Batista unificou toda a sociedade cubana em torno de Fidel Castro e seus guerrilheiros da Sierra Maestra e expulsou da ilha aquela pequena parcela da população que se beneficiava com um regime cruel. Da revolução à opção pela construção do socialismo foi um passo. A revolução cubana e sua luta contra o imperialismo americano mobilizaram apoiadores em todo o mundo e obtiveram vitórias sociais e econômicas históricas, de construção de um contexto de igualdade nunca visto antes na história latino-americana, que só conhecia exploração e desigualdade.

O segundo fato que mobilizou pessoas vinculadas à ideia de construção de sociedade mais justa foi a invasão russa na Tchecoslováquia (1968). Este país estava construindo de modo particular “seu” socialismo, chamado por eles de “socialismo com face humana”, e assim se afastou da liderança soviética em um

movimento denominado Primavera de Praga. A invasão à capital do país, Praga, e a consequente

opressão aos avanços que ali se construíam, foram um golpe para os socialistas históricos que

apoiavam a URSS e levaram um número muito expressivo de militantes e intelectuais de esquerda a questionar a contradição entre o socialismo real

e a autonomia dos povos. O terceiro acontecimento que deu

o que falar e o que pensar, foi a tomada das ruas de Paris (e de muitas outras

cidades pelo mundo) pelos jovens, em maio de 1968. Eles buscavam outra forma

de ver a igualdade e a cooperação, falando em paz e amor, mas também em liberdade de expressão, não

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apenas política, mas sexual, familiar e individual. Os autoritarismos, todos, foram questionados: aquele do capital ou do mercado, mas também o do Partido, ou do Estado. Praga e Paris trouxeram muito desprestígio para os dois maiores centros de poder do mundo, Washington e Moscou. Queriam paz e amor, igualdade e cooperação, mas também liberdade e respeito ao indivíduo. A direção firme e única, seja do Partido, ou do Capital, era questionada, fazendo eco a muitos que já eram dissidentes do socialismo “real” há muito tempo e impulsionando outros tipos de movimentos sociais nas sociedades capitalistas, para além daqueles que contrapunham o capital e o trabalho.

Um quarto tema foi a Guerra do Vietnã, onde americanos intervieram para evitar que o Vietnã do Sul, um país pobre e subdesenvolvido da Ásia, se tornasse comunista – com uso de armas químicas, inclusive contra a população civil. Essa guerra, que durou entre 1964 e 1975

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e foi perdida pelos Estados Unidos, causou mais de 50 mil mortes entre os americanos e estimulou um movimento de contracultura nos EUA, o movimento hippie.

Para todos os acontecimentos citados acima, a pressão da opinião pública, com maior ou menor sucesso, influenciou o desenrolar do processo, mostrando o desenvolvimento de uma força de peso político que vem se constituindo a partir daí de forma cada vez mais mundial.

1.7.4 O socialismo autogestionário

No mesmo período, a segunda metade do século XX, uma experiência particular de socialismo se desenvolvia na antiga Iugoslávia da época de Tito: a autogestão das empresas que, embora estatizadas, tinham gestão direta e relativamente autônoma pelos trabalhadores. A autogestão não surge ali, claro:

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muitos socialistas históricos, contemporâneos de Marx e Engels, particularmente Proudhon e depois outros, contemporâneos de Lênin e Trotski, como Rosa Luxemburgo, já discutiam a autogestão e a democracia direta. Entretanto era a primeira vez que uma experiência histórica de grande envergadura colocava em prática, e com muitas contradições e ingerências da Federação Comunista Iugoslava, um socialismo autogestionário, participativo. A história da autogestão na Iugoslávia afundou, como todos sabem, numa guerra fratricida nos anos 80 e hoje este país nem existe mais. Mais uma experiência histórica abortada, mas que trouxe um aprendizado significativo sobre práticas autogestionárias ao projeto de sociedade autônoma e justa.

1.7.5 Experiências latino-americanas

Dentre as experiências do socialismo real, vale a pena destacar as que ocorreram em contexto cultural mais próximo do brasileiro do que todas as demais experiências citadas,: é incontornável falar de Cuba e da Nicarágua5. Na Nicarágua, uma guerra que ensanguentou o país por anos foi necessária para manter a vitória sobre Somoza, mais um cruel ditador, como tantos outros na América Latina. O povo se uniu em torno da Frente Sandinista (1979) e, durante anos, militantes do mundo todo sustentaram a sua proposta e muitos foram a campo para construí-la com os nicaraguenses. Como em Cuba, foram construídas vitórias contra a fome e o analfabetismo, contra a mortalidade infantil e contra a concentração da propriedade das terras em mãos de latifundiários. Entretanto, o esforço excessivo de guerra, os excessos nas desapropriações, que atingiram também microproprietários, e os erros cometidos no poder

fizeram os sandinistas perderem as eleições em 1990. Em 2006, Daniel Ortega, líder da revolução sandinista

e que foi presidente do país por onze anos, volta ao poder pelo voto, mas sem o élan da esperança da primeira vez e com o apoio de apenas 28% dos nicaraguenses. Os erros cometidos durante a revolução sandinista – os benefícios pessoais a muitos dirigentes, a ausência de liberdade de crítica, a arrogância do poder e a inexperiência de gestão – enfraqueceram, ou melhor, desmoralizaram, a ideia da revolução sandinista, mesmo que o sonho de igualdade, de cooperação e de liberdade continuem inteiros.

Em Cuba, a situação é preocupante não só pelo desaparecimento inevitável de Fidel Castro ou pela ameaça americana, mas porque, neste país, o trabalho humano tem pouco valor e porque o povo aprendeu a viver sendo emulado por um personagem fascinante, mas mortal. Numa sociedade que foi construída para que o trabalho fosse mais importante que o capital – como toda proposta socialista – vive-se a situação de que os trabalhadores ganham tão pouco que vivem no limite da sobrevivência. A concentração da riqueza num único setor da economia, o turismo, cria novas diferenças sociais e obriga aqueles que não estão neste setor a “inventar”, como dizem os cubanos, significando fazer pequenos delitos, para poder sobreviver. Esses delitos cotidianos, principalmente contra os bens do Estado, são amplamente cometidos, contradizendo a ética socialista e colocando a sociedade cubana em risco face às máfias cuja proliferação depende da cumplicidade, conquistada ou imposta, da sociedade.

Mesmo a democracia participativa do cotidiano cubano, quando cada bairro discute suas prioridades e a defesa da revolução, é extremamente restrita e não está conectada com a discussão do projeto de país. Se o povo cubano está defendendo as conquistas sociais da revolução, essas discussões não alcançam muito mais do que o horizonte estreito dos bairros, talvez dos

5. A experiência chilena, do governo do presidente Salvador Allende (1970/73), da “via chilena para o socialismo” foi precocemente interrompida por um golpe militar. Sua curta duração, rica em ensinamentos, não será abordada aqui para não alongar demais o texto.

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municípios. As discussões sobre as opções econômicas e políticas do país, sobre os dados comparados da sua economia, do funcionamento do Parlamento não aparecem nos informativos cotidianos da TV, nem no Granma – jornal do Partido Comunista, de grande circulação. Essas discussões acontecem em círculos muito estreitos do poder e isto fragiliza enormemente o povo face à definição do seu destino.

1.7.6 Re�exão sobre os erros vividos: privilegiar o fator humano

A ideia de que seria necessário fazer modificações profundas no socialismo realmente experimentado, para que ele se aproximasse mais do projeto sonhado pela humanidade, fez com que se identificasse a existência de muitos caminhos para se construir o socialismo. Nesses caminhos, a diversidade dos povos seria respeitada, o estabelecimento de controle social para evitar a cristalização de burocracias privilegiadas no Estado seria uma premissa, o desenvolvimento da autogestão na economia e na política se afirmaria. Começa-se a falar cada vez mais em igualdade e cooperação juntamente com liberdade e autonomia, de um modo em que não exista contradição entre estas palavras.

Vê-se que a transformação dos modos de vida não poderá ser feita depois das mudanças políticas, mas internamente a este processo político de mudança. Os projetos de emancipação humana precisam criar condições para que as pessoas exercitem, na vida de hoje, os seus sonhos de futuro e não que elas sacrifiquem a vida de hoje por um projeto de amanhã. Se o que se quer é igualdade e cooperação, elas só entrarão na cultura realmente se forem vivenciadas hoje, nos campos em que se tem possibilidade de exercê-las: na vida pessoal (afetiva, familiar, profissional, de amizades) e na vida pública (partidária, sindical, nos movimentos sociais etc.). Se o que se

quer é autonomia e liberdade, jamais se poderá abrir mão delas, nem para cada um, nem para os demais, nem mesmo para os inimigos, como diria Rosa Luxemburgo. A história já mostrou que, muitas vezes, os “inimigos” são apenas pessoas que veem mais longe, ou sob outro ângulo, um momento histórico.

Na procura de novos caminhos na busca por sociedades mais justas, pode ser interessante retomar o ponto de partida e fazer a pergunta básica e simples: “O que seria necessário na estruturação da sociedade para favorecer uma existência mais feliz para todos?” Contrariamente à pergunta, sabe-se que a resposta não é simples, nem única, nem constante. Elas variam com o tempo e com o contexto, mas provavelmente o conjunto de respostas estaria vinculado à ideia de favorecer o exercício integral das capacidades humanas. Errou-se no passado por se querer prescrever formas restritas de viver que fariam a felicidade de todos no mundo socialista, um mundo de iguais. Provavelmente seja o momento de ampliação de horizontes, quando a ideia de igualdade seja cada vez mais substituída pela de equidade, em que os princípios de justiça e igualdade ajustam-se a cada cultura, a cada contexto, respeitando-se as diferenças e não buscando uma homogeneidade que não é humana.

Cada pessoa, para além de ser reconhecida – que é o desejo maior do ser humano – quer realizar suas capacidades em muitos campos da existência. Provavelmente quer realizar suas capacidades também para ser reconhecida, ou amada – que é a maior forma de reconhecimento. Para ser feliz, a pessoa busca o exercício de sua capacidade de viver plenamente o corpo físico, de ter uma profissão e ser respeitada em seu exercício, de ser amada por uma extensa e variada teia de relações afetivas, de ser atriz da história – individual, coletiva etc. Esses prazeres afetivos, físicos, intelectuais, estéticos e espirituais, com tantas origens e implicações, materiais e de contexto vivencial, se

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não são considerados em termos de capacidades a se realizar numa sociedade melhor que se queira construir, vão implicar sempre em projetos parciais.

A idéia de “desenvolvimento como liberdade”, título do livro de Amartya Sen (SEN, 2000), remete a sociedades em que as capacidades humanas possam ser vividas plenamente, nas quais desenvolvimento e liberdade sejam intrínsecos, como uma só coisa. Outro indiano, Gandhi, mais uma vez expressa com clareza, para a dimensão individual, o que Sen discute para a dimensão coletiva: “Felicidade é quando o que se quer, o que se diz e o que se faz estão em harmonia”. Paul Singer, em muitas de suas falas públicas de velho socialista6 que já viu e viveu tanta coisa, diz que a sociedade pela qual ele luta é aquela que tenha muitas opções de vida, de forma que cada qual possa se realizar. No campo do trabalho, por exemplo, ele afirma que aqueles que querem ser proprietários de um empreendimento coletivo de economia solidária e geri-lo com seus/suas companheiros/as, que o façam, mas que aqueles que querem ser assalariados e não levar para casa nos finais de semana as preocupações com sua atividade profissional, também o possam fazer.

A vinculação entre um projeto de sociedade justa e o exercício cotidiano daqueles ideais aos quais esta sociedade se vincula – não num futuro distante, mas no aqui e agora – significa a consideração da dimensão verdadeiramente humana deste projeto. Quando se projeta uma sociedade para o futuro, tem-se muitas chances de cometer erros terríveis em nome deste, quando não se “testemunha” este sonho como cidadãos, como consumidores, como indivíduos, como líderes. Para evitar que se cometa o mesmo erro de considerar que os fins justificam os meios, mais uma vez o Mahatma Gandhi tem uma frase simples e completa: “Nós precisamos ser a mudança que queremos ver”.

1.7.7 Novos questionamentos

ao capitalismo e ao socialismo real

Mas as críticas não se restringem apenas ao socialismo real. O capitalismo também passou a ser cada vez mais questionado a partir dos anos 60 e 70, não apenas pelo seu caráter de exploração do homem pelo homem, por produzir e perpetuar desigualdades entre pessoas, povos e regiões do mundo, mas também pelo seu caráter guerreiro, pelo desrespeito à natureza e pela homogeneização cultural que ele imprime à humanidade. Os hippies, em sua luta por paz e amor, sua sociedade alternativa, que renuncia ao consumo e protesta contra a moral da família e da propriedade, foram um exemplo desse período, num movimento de revolta que atingiu culturalmente o capitalismo, sem ameaçá-lo politicamente. Ao mesmo tempo, existia o medo universal da guerra nuclear se houvesse o “aquecimento” da Guerra Fria (“tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, como diz a música Tempo Rei de Gilberto Gil, da época). Esta terceira guerra mundial, opondo americanos e europeus capitalistas de um lado, aos soviéticos ditos socialistas de outro, poderia acabar com a sociedade humana e esta perspectiva uniu parte da sociedade civil mundial, fazendo nascer uma consciência e um movimento pacifista planetário.

Em 1989, com a queda do muro de Berlim, que foi o símbolo da desestruturação do mundo soviético e do socialismo real, o risco de guerra nuclear foi afastado. Por alguns momentos, o campo capitalista comemorou, espalhando aos quatro ventos que o capitalismo tinha vindo pra ficar e que não seria substituído por outro modo de produção e de vida. O livro de Francis Fukuyama, que defendia esta tese, intitulado O fim da história e o último homem (FUKUYAMA, 1999) fez sucesso no período. Mas “o tempo não para”, como diz a

6. Paul Singer, Secretário Nacional da Economia Solidária do Governo Lula, e,uma de suas falas públicas em que tratou deste tema foi no lançamento da Superintendência de Economia Solidária, da Secretaria do Trabalho, Emprego e Renda do Estado da Bahia, em 06/06/2006, em Salvador.

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música de Cazuza, também da época, e não parou, pois o capitalismo continua a ser largamente questionado, já que a humanidade não desiste tão facilmente dos seus sonhos, nem de suas utopias, como nos mostra a história.

O socialismo, que continua um sonho, um projeto para tantos, precisou ser revisto e a discussão sobre “em que erramos?”, “como refazer a trajetória?” se impunha. Para aqueles que já se tinham distanciado politicamente do chamado “socialismo real” há décadas, ou aos que “caíram na real” apenas em 1989, a angústia era a mesma e a afirmação íntima era parecida: há que se construir caminhos novos, a humanidade não irá se contentar com uma organização do mundo tão contrária à idéia da justiça social, como a do capitalismo.

Desse caldo cultural e político de questionamento ao capitalismo e ao socialismo real, surgiram outros movimentos sociais contestatórios, irmãos do movimento hippie e do pacifismo: o movimento ecologista, o movimento feminista, as lutas urbanas, o movimento gay, as lutas antirracistas e outros tantos que se desenvolveram no final do século XX. Sua mobilização em busca do respeito à dignidade humana e aos direitos civis, às escolhas individuais e à natureza é a base para um inovador movimento da sociedade civil planetária que iria se revelar já no começo do terceiro milênio e que será abordado adiante.

1.8 A proposta da economia solidária

Após tantas experiências, no final do século XX, quando a globalização acelerada do capital retirou empregos e podia parecer inevitável que a sociedade fosse conviver com a indignidade do desemprego sempre crescente e com a desilusão com a experiência

socialista, uma nova proposta se propôs a resgatar, de modo novo, este projeto: a economia solidária. Este conjunto de práticas autogestionárias de produção, de comercialização, de consumo, de trocas, de serviços, ainda esparso pelo mundo, mas interligando-se pouco a pouco em redes, tem-se mostrado uma das contestações mais interessantes ao modelo econômico capitalista. Elas questionam, na sua própria existência cotidiana, as bases do modelo que deu origem à pobreza e à exclusão.

A principal força dessas experiências talvez seja o exemplo “subversivo” de atuar na economia sem submeter-se aos princípios capitalistas de competitividade exacerbada e lucro privado, dentro de uma lógica de cooperação, de igualdade, de liberdade e autonomia e de respeito ao meio ambiente. Na economia solidária, pode-se cuidar do futuro na prática de hoje, priorizando-se o fator humano, percebendo que, para evitar os desvios de conduta, a estrutura social precisa favorecer que cada pessoa seja respeitada e encontre seu lugar no processo coletivo, para que a luta pelo poder não se torne um fim em si mesmo.

O ressurgimento, na atualidade, dessa ideia antiga de uma economia solidária parece estar vinculado também ao processo de hiperdesenvolvimento dos valores capitalistas: a propriedade, o individualismo e a competitividade. Ao chegar-se ao paroxismo do consumo e do reino da propaganda, da mercantilização de todos os aspectos da vida humana, da competição exacerbada, da corrida contra o relógio, a sociedade demonstra que esses valores são vazios como fundadores das personalidades através das doenças ditas “contemporâneas”: stress, depressão, síndrome do pânico, anorexias etc. Para muitos, este sentimento de inadequação se manifesta sob a forma de um vazio existencial angustiante7.

7. É interessante perceber que, quando conseguimos pensar de forma mais humanizada sobre projetos de sociedade justa, em que as pessoas tenham mais apoio social e familiar, papéis reconhecidos pela sociedade, podemos ver que as comunidades consideradas por muitos como “primitivas”, não modernas, são muito desenvolvidas do ponto de vista humano. O exemplo das comunidades das pequenas aldeias da África, das tribos brasileiras ou dos povos andinos na América Latina, que ainda vivem de modo parecido ao de antes da chegada dos europeus, são instigantes. Esses povos, explorados secularmente e muito pobres em capital, são ricos na teia dos laços humanos que se estabelecem no seio da sua cultura e conseguem manter uma relação de respeito humano e à natureza que a sociedade moderna contemporânea busca (re) estabelecer.

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A reação social a esse estado de coisas vem ocorrendo pelo ressurgimento do ideal de solidariedade, retomando-se bandeiras históricas citadas anteriormente e construídas em largo período. Resgatam-se valores da democracia direta grega, da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – e do ideário socialista, segundo o qual o homem seria o capital mais precioso, mas com uma compreensão nova, menos totalitária. Incorpora-se a tudo isto a ideia de livre iniciativa – pessoal e dos grupos – pois esta expressão não pode ser monopolizada pela ideologia capitalista. Liberdade de iniciativa significa autonomia numa nova organização social em que o Estado e o mercado apenas servem à sociedade civil, e não o contrário.

1.9 A economia solidária e questão ambiental

Os EES não funcionam buscando o lucro máximo e a qualquer custo e assim mais naturalmente poderão desenvolver-se de forma respeitosa e colaborativa com a natureza. Diferentemente dos acionistas de grandes empresas, que pressionam por lucros rápidos e vultosos, os membros dos EES têm outros indicadores de sucesso do empreendimento, mais próximos da ideia de que desenvolvimento significa não maiores lucros, mas maior bem-estar (VIVERET, 2006). A economia solidária encontra-se assim na vanguarda das discussões sobre outras possibilidades humanas, outros mundos possíveis, que não inviabilizem o planeta.

Para compreender os desafios atuais de modo mais profundo, e assim enriquecer as possibilidades de ação também como consumidores, é importante refletir sobre o que levou a esta pressão tão profunda sobre os recursos naturais, que chega a ameaçar a vida humana. Consumir é um dos atos mais naturais e mais antigos dos seres humanos, se entendermos o verbo consumir como o ato de incorporar ao

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corpo ou a vida cotidiana, objetos e serviços que vêm do exterior. Assim, vestir-se, por exemplo, é um ato de consumo de objeto usado desde os mais remotos tempos do homo sapiens. Utilizar-se dos serviços de sábios, como os sacerdotes egípcios ou os pajés de tribos indígenas brasileiras, por exemplo, também é um hábito de consumo remotíssimo.

Nem sempre o ato de consumir esteve ligado ao pagamento monetário, mas, ao longo da história, o consumo foi se diferenciando por categorias de poder e de riqueza dos indivíduos e grupos humanos. Enquanto o conjunto dos membros dos povos mesopotâmicos ou pré-colombianos, por exemplo, vestiam-se mais ou menos do mesmo modo, os dirigentes tinham roupas e adereços diferenciados, o que os distinguia em posses e de forma simbólica. Essa distinção de alguns pelos objetos consumidos estava de modo geral vinculada à função a eles atribuídas.

Por longo período histórico, cada família fabricava ou trocava, com vizinhos ou em feiras, a maior parte de seus utensílios domésticos que, por serem artesanais, eram mais ou menos personalizados. Com a Revolução Industrial, surgem os objetos de consumo de massa, porque surge a produção em massa. Ao permitir o barateamento dos custos dos objetos, a industrialização possibilitou o aumento da oferta e da acessibilidade desses objetos a um número cada vez maior de famílias e indivíduos. A indústria, ao permitir a produção em larga escala, fez com que idênticos copos de vidro ou alumínio, por exemplo, passassem

a ser vistos em todas as casas de pessoas de um mesmo padrão de renda.

O desenvolvimento tecnológico, que se acelerou depois da Revolução Industrial, renovou a diferenciação de consumidores a partir da sofisticação técnica dos objetos de consumo. Se, antes, essa diferenciação, reveladora de status, estava vinculada principalmente aos materiais de confecção do objeto (algodão cru para a roupa dos pobres e seda para aquelas dos ricos, por exemplo), a possibilidade de pagamento da inovação tecnológica inerente ao objeto também passou a ser uma possibilidade a mais de diferenciação do consumo. Um relógio, realizado de forma artesanal, mas com a mais alta tecnologia da época da sua invenção, era uma possibilidade de consumo para poucos.

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O que se viu, ao longo do século XX, foi um consumo cada vez maior de objetos por um número cada vez maior de pessoas, o que foi aos poucos constituindo o que veio a se chamar de “sociedade de consumo”. Isto coincide com a consolidação de uma classe média, formada principalmente por trabalhadores especializados, com salários maiores do que os dos operários, capaz de consumir uma quantidade crescente de objetos, situação que antes pertencia a uma categoria muito pequena de pessoas, os nobres ou burgueses, proprietários de meios de produção – industriais ou comerciantes. Nesta expressão, “sociedade de consumo”, relativamente recente, está embutido também o simbolismo exacerbado que o tipo de objeto consumido passou a ter, principalmente a partir do século XX. O que era uma atividade principalmente vinculada à necessidade, passou a ter cada vez mais uma conotação simbólica, sendo que, em muitos casos, hoje, o simbolismo é maior que a função utilitária original. Este fato tem determinado um poder cada vez maior à área de marketing, que estabelece essas ligações simbólicas propulsoras do consumo.

Uma particularidade do modo de produção dominante da época atual é a chamada “obsolescência programada”, que consiste em fazer com que um produto tenha uma durabilidade reduzida para implicar na sua substituição programada para um curto espaço de tempo – e os computadores e telefones celulares são exemplos bem visíveis. A obsolescência programada e o desemprego estrutural, que são inerentes ao modo de produção capitalista, são exemplos destacados de uma perversidade inata do sistema econômico-social que modela a sociedade em que vivemos. Do mesmo modo, existe a obsolescência simbólica, quando algo está em boas condições de uso mas com aparência “ultrapassada”. O cidadão, ao consumir acriticamente, ajuda a sustentar esses conceitos injustificáveis e precisa estar ciente disto.

O barateamento dos produtos, a obsolescência programada e a função simbólica do consumo, bases da

“sociedade de consumo”, transformaram-se atualmente num grande problema para a humanidade: desperdiça-se demais matéria-prima e energia para criar objetos de consumo, rapidamente descartados e, com isto, polui-se em demasia o planeta, ameaçando-se a já precária estabilidade do meio ambiente. Sabe-se, hoje, que desde 1984 (WWF Brasil, 2006), o planeta já não tem mais a capacidade de se autorregenerar e manter regulado o clima da terra, e os acontecimentos climáticos dos últimos anos mostram os efeitos desse fato. Observa-se que as devastadoras mudanças climáticas em curso são, em última instância, decorrentes do modo de produção e consumo vigente no planeta.

1.10 Novas perspectivas: uma sociedade civil global que decide seu destino?

Neste novo milênio, surge uma forma de organização da sociedade civil completamente inovadora, que mobiliza os variados movimentos e organizações sociais do final do século XX e aproveita as fantásticas possibilidades de comunicação humana trazidas pela popularização da internet: o Fórum Social Mundial (FSM). A organização do primeiro Fórum, em Porto Alegre, em 2001, é fruto de um movimento internacional que tomou a democracia participativa vivida neste município brasileiro como um símbolo e reuniu milhares de pessoas de vários países, num processo que só faz crescer e realmente mundializar-se desde então. Neste ambiente, os conceitos e as práticas de igualdade, cooperação, liberdade e autonomia têm terreno fértil e são o desafio de todos, com diferentes interpretações e práticas.

Um exemplo vivo das inovações do fórum é aquela descrita por Francisco Whitaker, um dos fundadores do FSM, no seu blog, Procurando entender: estantes do Chico Whitaker. Ele considera a forma utilizada pela coordenação internacional do Fórum, para seu processo decisório, como uma “prática utópica das mais importantes entre as

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que inventamos no processo”. A regra é simples: verifica-se quais são as posições dos membros da coordenação a respeito de uma determinada decisão proposta (faz-se uma consulta que funciona como uma votação, sem ser decisória). Se alguém discorda (uma pessoa que seja), consulta-se quem discorda a respeito de se esta pessoa iria embora se a decisão fosse tomada. Se ela discorda, mas aceita a decisão para que se possa continuar a trabalhar junto (numa espécie de “consentimento construtivo”), a decisão está tomada por consenso. Se ela considera que não pode de forma alguma aceitar, continua-se a discutir, para que ela não vá embora, até que se chegue a um consenso.

Segundo Whitaker esta regra – que não se confunde com unanimidade – não desmerece o sistema de apuração da vontade da maioria pelo voto, que é uma grande conquista democrática. O problema é que, na relação entre organizações da sociedade civil, ou mesmo entre partidos de mesma orientação ideológica, o voto leva à divisão. Por trás dessa regra há uma mudança de atitude nas discussões: se é necessário ganhar “no voto”, ouve-se quem diverge de si, procurando descobrir no que esta pessoa erra, para poder mostrar isso aos outros. Se, nesta nova forma decisória, não se pode ganhar no voto, mas sim pelo consenso, busca-se ouvir o outro, procurando identificar o que existe de verdade no que é dito, para ver se é possível juntar com a verdade de quem está se colocando. Isto pode tornar fecundas as divergências, que passam até a ser bem-vindas...

É interessante registrar que também estão no FSM, junto a organizações não governamentais de todos os tipos e origens, de sindicatos, de partidos, de empreendimentos solidários, de intelectuais, de comunidades tradicionais, também movimentos de caráter espiritual. A idéia de uma nova espiritualidade, que implica na busca de uma harmonização pessoal com o universo e com os outros, talvez possa ser considerada como uma novidade política. Todos os rebeldes de antes precisaram romper com a espiritualidade porque ela era manipulada pela

religião como instrumento de poder. Num momento em que em grande parte dos países do mundo já se completou a desvinculação Igreja-poder, via Estado laico, a espiritualidade toma um aspecto de escolha pessoal, que não precisa mais ser deixada de lado quando se questiona o status quo. Dessa forma, ela pode revelar todo seu potencial político de busca de uma existência plena, já que não é fácil haver harmonização pessoal junto com miséria, violência, desigualdade e injustiça.

Além dos movimento sociais e do desenvolvimento de uma nova espiritualidade não religiosa, o agravamento da crise ambiental vem se constituindo também como importante fator de reflexão para a humanidade. As evidências de que o planeta se exaure com o modo de vida estabelecido mundialmente pelo capitalismo, baseado no consumo desenfreado e no desperdício, de um lado, e com a escassez, de outro, não podem mais ser escondidas. Esta é uma discussão constante no Fórum Social Mundial, que vem impulsionando práticas de consumo consciente, de comércio justo, e de moedas sociais com preocupação de sustentabilidade. Para as pessoas e redes que se interligam neste encontro anual, possibilita-se que o desejo de uma sociedade mais justa e sustentável se alie a comportamentos de consumo mais consequentes, a práticas de auto-organização e autonomia na própria estruturação do fórum, que tem no movimento mundial pela economia solidária uma de suas forças.

Toda esta mobilização da sociedade civil planetária progressista pode soar romântica e como um grão de poeira diante da força do capital, dos titânicos interesses financeiros, da política manipulada pelos meios de comunicação, da corrupção, da ignorância e da miséria que se perpetua para grande parte dos seres humanos. Talvez, diante da magnitude da tarefa de transformação social, apareça a consciência de que, para os que se opõem a este estado de coisas, resta a velha guerra de guerrilhas: pequenas ações – locais e globais – que

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vão minando o grande exército. A diferença é que esta imagem “guerreira” vem também incorporando, pouco a pouco, um linguajar e práticas mais femininas. A busca da vivência da amorosidade, da vinculação dos ideais globais de solidariedade à prática cotidiana de compartilhar e de novas lógicas que vão além da racionalidade instrumental (WEBER, 2002)9 vão se desenvolvendo. Nesta luta, ou neste desafio, melhor dizendo, ao mesmo tempo em que cada desafiante se contrapõe a um estado de coisas de forma firme, racional e inteligente, se propõe também a mudar a sociedade de forma doce, relacional e espiritual.

GLOSSÁRIO

Academia de Platão – escola fundada pelo filósofo Platão no século IV a.C., em bosque próximo de Atenas, que é considerada a primeira escola de filosofia. Para a formação dos cidadãos interessados, esta escola utilizava o método dialético – relacionado ao diálogo – para a produção do saber. No método dialético, é a contraposição e contradição entre ideias que levam a novas ideias e não apenas a repetição do que já é sabido pelos mestres.

Aldeias cooperativas – propostas por Robert Owen na Inglaterra do século XIX, as aldeias cooperativas deveriam instalar-se ao redor de indústrias e prover moradia, educação e saúde aos trabalhadores. Nessas aldeias, a vida cotidiana seria organizada de modo solidário, sem propriedade privada e seus moradores produziriam e consumiriam seus próprios produtos e trocariam os excedentes com outras aldeias.

Capitalismo – sistema de organização de sociedade, surgido em torno do século XVIII, na Europa, e baseado na propriedade privada dos meios

de produção, na liberdade de contrato sobre esses bens (livre-mercado) e no trabalho assalariado. Esta estruturação da sociedade, que espalhou-se pelo mundo, tem na busca do lucro seu principal objetivo.

Comércio justo – práticas comerciais que buscam o estabelecimento de preços justos para produtores e consumidores e que levam em consideração questões sociais – como condições dignas de trabalho – e ambientais, como a rejeição aos agrotóxicos. Estas práticas começaram nos anos 1960 quando consumidores de países ricos buscavam favorecer produtores de países pobres e hoje espalham-se rapidamente também no interior dos países.

Consumo consciente – é aquele que leva em consideração os efeitos da compra, ou uso do serviço, para a humanidade e para o meio ambiente. Assim, busca-se consumir mais próximo ao produtor, boicota-se empresas que exploram os trabalhadores, elimina-se desperdícios etc., entre outras ações.

Equidade – aproxima-se da idéia de igualdade, mas adaptando-se a busca de justiça à situação concreta. Assim, dentro da lógica da equidade, é justo tratar desigualmente casos desiguais, privilegiando aquele que é mais frágil para obter-se maior igualdade. Na equidade, adapta-se a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa, como nas cotas raciais e sociais para acesso a Universidade.

Falanstérios – propostos por Charles Fourrier na França do século XIX, os falanstérios são edifícios-cidade onde as pessoas trabalham no que gostam, estudam e convivem de forma solidária. Na proposta de Fourrier, os rendimentos produzidos pelo coletivo seriam repartidos entre o trabalho, o talento e o capital.

Feudalismo – modo de organização social e político que predominou na Europa durante a Idade

8. A racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva são conceitos de Max Weber em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, lançado em 1920, e muito utilizados hoje para falar sobre a diferença entre uma lógica capitalista vinculada à capacidade de ganhar dinheiro e de buscar o lucro a qualquer preço, e uma lógica vinculada a valores e a afetividade e, portanto, mais solidária.

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Média e que baseava as relações sociais a partir dos contratos de servidão entre proprietários de terra, chamadas “feudos” e os camponeses que ali moravam. Os camponeses cuidavam da agricultura e da pecuária para o senhor feudal e em troca podiam viver na terra e ter proteção em caso de guerra.

Frente Sandinista – agrupamento de movimentos guerrilheiros nicaraguenses de várias tendências políticas, que se juntaram nos anos 1970 contra o domínio da rica família Somoza, proprietária de quase metade dos bens do país e o regime ditatorial imposto por Anastasio Somoza, apoiado pelos Estados Unidos. Em 1979, a Frente Sandinista toma o poder e, pouco depois, este país pobre da América Central inicia uma guerra contra milícias financiadas pela CIA, os “contras”.

Guerra Fria – foi a designação atribuída ao conflito político-ideológico entre duas superpotências que mantinham grande arsenal de armas nucleares: os Estados Unidos (EUA), defensores do capitalismo, e a União Soviética (URSS), defensora do socialismo. Este conflito não armado dura entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991).

Guildas ou corporações de ofícios – eram associações de pessoas que desenvolviam a mesma atividade profissional em uma cidade, geralmente artesanal, e que buscavam proteger-se mutuamente. As guildas foram as precursoras dos sindicatos e existiram principalmente na Idade Média.

Interpretações ideologizadas – explicações sobre o mundo que partem de um ponto de vista fixo, uma idéia de mundo, de um grupo ou de uma pessoa, sem buscar entender outros pontos de vista, considerados errôneos.

Mercantilismo – momento de grande intensidade de comércio mundial, entre o século XV e o final do século XVIII, entre os países europeus e suas colônias e entre si. Os Estados monárquicos europeus acreditavam que a riqueza de uma nação residia na acumulação de

metais preciosos, como o ouro e a prata, e assim um conjunto de medidas econômicas ia sendo tomada para controlar o comércio. Quando a frágil aliança entre burgueses comerciantes e nobres dirigentes se rompe, pelo descontentamento dos primeiros face ao controle dos reinos, inicia-se o capitalismo.

Moeda social – são moedas de circulação local e restrita, que se propõem a favorecer o desenvolvimento local sustentável, na medida em que favorecem a manutenção dos recursos da comunidade na localidade em que vivem, beneficiam produtores locais e favorecem as trocas de bens usados. A moeda social fornece uma experiência de autonomia face ao poder centralizador da economia capitalista globalizada.

Projetos emancipatórios – propostas de transformação do mundo, visando a construir a autonomia das pessoas e do coletivo, proporcionando possibilidade de condução do próprio destino.

Queda da Bastilha – evento histórico acontecido em 14/07/1789 e que simbolizou a vitória dos jacobinos na Revolução Francesa, quando estes tomaram e incendiaram a Torre da Bastilha, uma antiga prisão que, na verdade, naquele dia, só tinha um prisioneiro.

Queda do muro de Berlim – O muro de 65 quilômetros que dividia Berlim Oeste, capitalista, de Berlim Leste, comunista, foi levantado em 1961, no auge da Guerra Fria. Sua derrubada, em 09/11/89, foi o ato inicial de reunificação das duas Alemanhas, Oriental e Ocidental, é um símbolo da queda dos regimes de “socialismo real” e é apontado como o momento do fim da Guerra Fria.

Renascimento – (ou Renascença) foi um movimento cultural e ao mesmo tempo um período da história europeia, marcando o fim da Idade Média. Começa no século XIV na Itália e difunde-se pela Europa durante os séculos XV e XVI. Coincide com a divisão da Igreja Católica pelo surgimento do protestantismo, com as grandes navegações e descoberta do continente americano, e com a invenção da imprensa,

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entre outras mudanças na filosofia, nas artes e nas ciências. O Renascimento fez parte de uma ampla gama de transformações culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas que caracterizam a transição do Feudalismo para o Capitalismo.

Revolução Francesa – foi um conjunto de acontecimentos que alteraram o quadro político e social da França, em 1789, influenciados pelo Iluminismo e pela independência americana (1776). Este país era dominado por uma monarquia absoluta, regime em que o clero e a nobreza dividiam o poder de fato e ainda mantinham os direitos feudais. É considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea, tendo proclamado os princípios universais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e feito a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Rosa Luxemburgo – filósofa marxista e militante comunista polonesa, nascida em 1871 e assassinada pela polícia alemã em 1919. Fundadora do Partido Comunista Alemão, Rosa sempre defendeu o socialismo democrático e é dela a frase premonitória “Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e uma liberdade de reunião ilimitadas, sem uma luta de opiniões livres, a vida vegeta e murcha em todas as instituições públicas, e a burocracia torna-se o único elemento ativo”.

Status quo – Expressão latina (in statu quo ante) que designa o estado atual das coisas, seja em que momento for. Emprega-se esta expressão, geralmente, para definir um estado de coisas ou situações. Na maior parte das vezes em que é utilizada, a expressão aparece como “manter o status quo”, “defender o statu quo” ou, ao contrário, “mudar o statu quo”.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1987.

CAPINA. Puxando o fio da meada: viabilidade econômica dos empreendimentos associativos, v. I. Rio de Janeiro, 1998.

CAPINA. Puxando o fio da meada: viabilidade econômica dos empreendimentos associativos, v. II. Rio de Janeiro, 1999.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação/uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Referências

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LÊNIN, Vladimir I. Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. São Paulo: Editora Símbolo. 4ª. Edição, 1978 (1ª edição, 1920).

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 2002; Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2002.

PINTO, João Roberto Lopes. Indicadores para autogestão. In Autogestão e economia solidária: uma nova metodologia. São Paulo: Anteag, (2001). Disponível em: <http://www.anteag.org.br>.

PINTO, João Roberto Lopes. Economia solidária: de volta à arte da associação. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006.

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Economia Solidária e Desenvolvimento

José Carlos Moraes Souza

Introdução

As práticas de Economia Solidária vêm ganhando força nos últimos anos. O mapeamento iniciado em 2005 identificou a existência de quase 15 mil desses empreendimentos, onde mais de um milhão e duzentos mil homens e mulheres realizam uma extensa e expressiva variedade de atividades econômicas. Na Bahia foram cerca de 1.700 empreendimentos distribuídos em todas as regiões do estado.

Tem crescido também os estudos e a compreensão sobre a importância dessas iniciativas para a construção de uma outra lógica de desenvolvimento que incorpora de maneira efetiva as dimensões social, cultural, ecológica e política.

O desenvolvimento entendido como decorrência unicamente do “crescimento econômico” e da acumulação de riquezas tem gerado riscos para a sustentabilidade do planeta. Observamos promessas a cada dia mais distantes de serem efetivadas através das estratégias proposta por esta corrente de pensamento. Percebemos claramente a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica disseminadas, violação de direitos

fundamentais e ameaças cada vez mais graves ao meio ambiente, colocando em risco a vida no planeta.

A superação desta situação é o problema central a ser enfrentado nos debates a nas ações de desenvolvimento, entendido não mais como efeito direto do crescimento econômico e sim como um processo participativo e dinâmico, onde as pessoas, agora na condição de agentes protagonistas de mudança e não como recebedores passivos de benefícios, participam de forma ativa e solidária da construção do melhor viver. O que procuramos demonstrar é que a Economia Solidária está perfeitamente afinada com esta outra concepção de desenvolvimento e precisa ser reconhecida e fortalecida como tal, a fim de galgar o espaço político necessário para superar as velhas e ultrapassadas estruturas de poder.

É fundamental que as condições objetivas para o fortalecimento destas iniciativas sejam construídas. As fragilidades e os desafios enfrentados ainda são enormes. Dentre eles, a formação apresenta-se como uma grande demanda.

Neste sentido, a formação de formadores em economia solidária assume uma dimensão estratégica na medida em que estas pessoas passam a assumir o papel de multiplicadores de conteúdos e metodologias de formação

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junto ao conjunto de empreendimentos distribuídos pelas diferentes regiões do país – e da Bahia em particular, atendendo assim a esta demanda tão fundamental para o fortalecimento da Economia Solidária.

Sendo assim, este módulo tem como principal objetivo contribuir com o processo formativo de formadores no estado da Bahia. Apresenta um conjunto de referências do universo da Economia Solidária que afirmam e reconhecem esta “outra Economia” enquanto estratégia de desenvolvimento.

Nele também são destacadas as contradições provocadas pelo sistema capitalista como fontes de mobilização da classe trabalhadora na busca de alternativas de inserção no mundo do trabalho de forma digna e autônoma.

São apresentadas também as múltiplas dimensões destas iniciativas fundamentais para a construção desta outra racionalidade que integra as esferas política, econômica, social e ecológica na construção do desenvolvimento.

Por fim, são discutidos alguns dos desafios que precisam ser enfrentados e superados para a afirmação destas iniciativas como um modo de reprodução – certamente – superior ao sistema capitalista.

Nas considerações finais, apresentamos um apanhado dos objetivos superiores, das estratégias e dos fundamentos da Economia Solidária no processo de organização e luta dos trabalhadores e trabalhadoras para construir esta “outra Economia”.

Conceitos de Desenvolvimento e Crescimento

Econômico: aproximações, con�itos e

implicações político-sociais Economia Solidária, Economia Popular Solidária,

Socioeconomia Solidária – são diferentes denominações para práticas e significados semelhantes e que neste texto podem ser entendidas como um processo participativo e

de resistência de trabalhadores empobrecidos e excluídos do mundo do emprego formal, que cria e persegue uma visão multidimensional, integrando os componentes social, econômico, cultural, político e ecológico para a construção do desenvolvimento sustentável, solidário e inclusivo.

Observa-se que as diferentes denominações apontam para o mesmo conjunto de práticas e de elementos estruturais que as diferenciam do sistema hegemônico e apresentam como objetivo a transformação das relações políticas, sociais, culturais, econômicas e ambientais nas sociedades.

O conceito de desenvolvimento sustentável, solidário e inclusivo implica no equilíbrio dinâmico entre estas diferentes dimensões, num processo participativo, em que os recursos naturais são utilizados em prol do melhor viver das populações humanas e com respeito ao patrimônio cultural das diferentes populações e comunidades.

Ignacy Sachs sugere dispensar os adjetivos, redefinindo o desenvolvimento por seu objetivo: promulgar o bem estar de todos pelo princípio ético da justiça social, com a condicionalidade ecológica baseada no principio ético da solidariedade com as gerações futuras. Significa que não se pode pensar em desenvolvimento sem a articulação e complementaridade das dimensões, econômica, social, ecológica e cultural. Finalmente, afirma que a palavra desenvolvimento deve ser utilizada para um crescimento social razoável, ecologicamente prudente e economicamente eficiente, que deve promover e possibilitar alternativas de sobrevivência para as populações em sintonia com a sua cultura. Cultura como um elemento mediador entre sociedade e natureza, como modo de vida.

Ressaltamos que este processo deve ser (re)construído socialmente, levando-se em conta a pluralidade e a diversidade de povos e lugares. Ao incorporar à

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discussão sobre desenvolvimento sustentável a idéia de economia solidária, busca-se sugerir uma “ponte analítica” que evidencie a relação entre oportunidades de desenvolvimento e a capacidade da sociedade de construir alternativas participativas e democráticas como condição fundamental para se atingir este tipo de desenvolvimento que produz como resultado a expansão das liberdades substantivas da pessoa humana. Desta forma, a riqueza produzida através do trabalho humano passa a ser distribuída de forma equitativa, superando-se as diferenças entre ricos e pobres.

Ao enfocar as liberdades humanas, evidenciam-se os contrastes com visões mais restritas de desenvolvimento, como as que tentam reduzi-lo ao crescimento do PIB – Produto Interno Bruto, o aumento da renda pessoal, acumulação de bens, incremento da industrialização ou avanço tecnológico e domínio sobre a natureza. A exploração desordenada dos recursos naturais e a acumulação das riquezas têm como consequências a perda do equilíbrio ambiental com o esgotamento de recursos naturais no presente, colocando em risco o futuro da vida no planeta Terra, além de promover o crescimento da exclusão de um número crescente – na ordem de bilhões – de seres humanos, muitos deles condenados à morte prematura, outros a viver em condições sub-humanas.

Mas este não é o único desenvolvimento possível. Existem outras concepções de desenvolvimento que consideram a centralidade da pessoa humana, a sustentabilidade ambiental, a justiça social, a cidadania e a valorização da diversidade cultural, articuladas às atividades econômicas. A Economia Solidária considera o desenvolvimento econômico e tecnológico não como fins, mas como meios de promover o desenvolvimento humano e social em todas as suas dimensões, buscando a ampliação das capacidades e liberdades humanas.

Ver o desenvolvimento como o aumento e fortalecimento das liberdades humanas substantivas faz

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com que se volte a atenção para os fins que o tornam importante ao invés de restringi-lo a alguns dos meios. O verdadeiro desenvolvimento exige que sejam removidas as fontes de privações das liberdades, como a pobreza, a falta de condições para a manifestação livre das capacidades criativas, econômicas e culturais, superando assim a intolerância, o preconceito e todas as formas de opressão e negação de direitos.

Este entendimento é substancialmente distinto do Crescimento Econômico onde apenas a dimensão econômica é levada em consideração, deixando as demais (sociais, culturais, políticas e ecológicas) esquecidas ou relegadas ao segundo plano.

Outro elemento que torna inadequado à utilização exclusiva do parâmetro do crescimento econômico como medida do bem estar das pessoas é o grau de concentração da riqueza, que esta medida nem sempre deixa revelar.

De acordo com o intelectual português Boaventura Souza Santos, o parâmetro do crescimento econômico, construído a partir das propostas da modernidade, tem produzido o que ele chama de “excessos”: tanto o excesso de riqueza para uma minoria da população mundial, como o excesso de pobreza para uma grande maioria desta população. Neste sentido, na medida em que a legitimidade ideológica deste parâmetro permanece ou até mesmo se amplia, é preciso que novos processos sejam (re)inventados, o que só será possível no âmbito de um outro paradigma, cujos sinais de emergência já começam a ser percebidos.

Podemos chamar também este outro desenvolvimento de comunitário ou solidário, porque dele participam todos, e seus resultados econômicos, políticos e culturais são compartilhados com respeito à diversidade de raça, gênero, geração e opção religiosa. É nesse sentido que a Economia Solidária apresenta-se como uma estratégia para um novo padrão civilizatório já em construção.

Desta forma, o conceito e as práticas de Economia Solidária tentam abrir uma perspectiva inclusiva da sociedade civil na construção de alternativas de desenvolvimento autônomas e democráticas. E não se trata de reconhecer simplesmente um papel maior para a sociedade civil no processo de desenvolvimento, como se houvesse possibilidade de desobrigar o Estado de enfrentar problemas sociais graves. O papel do Estado como agente de promoção econômica e regulador de demandas sociais continua a ser bastante relevante; porém, é preciso fortalecer a dimensão pública (sociopolítica) e não meramente estatal ou privatista (administrativo-empresarial) do processo de desenvolvimento.

A Economia Solidária como Política e

Estratégia de Desenvolvimento

Este item é conduzido com a preocupação de oferecer referências do universo de abordagens existentes sobre o tema e, principalmente, de fornecer elementos para diferenciação das verdadeiras práticas econômicas e solidárias daquelas que buscam tão somente a convivência com os processos hegemônicos. Toma-se, portanto, como tarefa específica, demarcar pontes teóricas possíveis de serem construídas a partir do balanço crítico da ideia de economia solidária. Tal tarefa faz-se relevante pela urgência que se deve ter em, além de saber-dizer, também saber-fazer acerca do tema desenvolvimento sustentável. Neste sentido, o conceito e principalmente as práticas de economia solidária podem ser uma chave para tal intento.

É importante demarcar o espaço de abordagem do tema economia solidária. Alguns dos pontos centrais aqui destacados são as contradições provocadas pelo sistema capitalista, que têm levado um crescente número de trabalhadores do mundo inteiro a buscar alternativas de inserção no mundo do trabalho que lhes garantam

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sobrevivência com dignidade e autonomia. Estas iniciativas, gestadas na luta pela sobrevivência

de trabalhadores que estão ou temem ficar desempregados, são apontadas como uma possível (re)invenção de um outro modo de produzir e distribuir os bens socialmente demandados.

Por fim, são demonstradas as várias dimensões destas iniciativas, as tentativas e necessidades de articulação entre elas para a construção de outra racionalidade política, econômica, social, cultural e ecológica.

Percebe-se que o mundo vem passando por profundas transformações na sua estrutura econômica, política, cultural, social e ambiental. As sociedades modernas se deparam com grandes desafios no que se refere à necessidade de garantir condições de vida digna para uma grande parcela da população mundial. Surgem também fortes preocupações com a sustentabilidade, o que leva a uma série de questionamentos, preocupações e busca de alternativas que promovam o desenvolvimento das populações humanas (do presente e do futuro) nas diferentes regiões do planeta, ao mesmo tempo em que a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais seja observada.

Desta forma, o exercício de pensar e fazer a partir do tema economia requer um aprofundamento da visão dos fenômenos econômicos, buscando enxergar para além do modo de produção capitalista, que já apresenta de forma explícita sinais de decadência, ainda mais visíveis com a crise sistêmica e estrutural revelada recentemente.

Vêm sendo construídas e consolidadas, ao longo do tempo, práticas econômicas, políticas, sociais, culturais e ecológicas pautadas em valores e princípios que, diferentemente do sistema capitalista, fazem da solidariedade e da cooperação uma forma de resistência de trabalhadores vitimados pelos efeitos perversos causados pela ordem econômica mundial, cada vez mais globalizada e excludente.

As iniciativas de economia solidária surgem num

contexto de crítica a um modelo de desenvolvimento que produz riquezas ao mesmo tempo em que aumenta a exclusão de um número significativo da população mundial.

São observados claramente avanços na construção de uma visão integrada sobre a relação entre o meio ambiente e os seus habitantes, superando a visão antropocêntrica, que tenta justificar a exploração ilimitada dos recursos naturais e a consequente degradação do meio ambiente. Neste sentido, a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento dotado de sustentabilidade já é inquestionável.

A interligação entre desenvolvimento socioeconômico e os impactos no meio ambiente e na qualidade de vida das pessoas entrou na agenda política internacional desde a 1ª Conferência Mundial sobre este tema, que ocorreu em Estocolmo, em 1972. Desde então, tem sido delineada uma compreensão do desenvolvimento que combina três elementos essenciais: justiça social, prudência ecológica e eficiência econômica.

A justiça social diz respeito à realização do bem comum. Assim, o desenvolvimento deve gerar diretamente o bem comum e, indiretamente, o bem deste ou daquele particular. Neste fundamento, ser humano é considerado “em comum”, como diz Tomás de Aquino. Em uma sociedade de iguais – o que não quer dizer reprimir ou massificar as diferenças individuais –, isto significa que o outro é considerado, simplesmente por sua condição de pessoa humana, membro da comunidade. Desta forma, o que é devido a um é devido a todos, e o benefício de um recai sobre todos. A justiça social regula uma prática social mais complexa: a prática do “reconhecimento”. Por reconhecimento entende-se aqui a prática de considerar o outro como sujeito de direito ou pessoa, isto é, como um ser que é fim em si mesmo e que possui uma dignidade que é o fundamento de direitos e deveres. Um sujeito de direito ou pessoa só se constitui como tal se for reconhecido por outro

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sujeito de direito ou pessoa. A justiça social diz respeito precisamente a esta prática de mútuo reconhecimento no interior de uma comunidade.

A justiça social suprime toda sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os outros, ou seja, cada um é sujeito de direito na mesma medida em que reconhece o outro como sujeito de direito. A recusa no reconhecimento destrói a comunidade dos sujeitos de direito.

A prudência ecológica expressa a compreensão de que a presente crise ecológica articula fenômenos naturais e sociais e, mais que isso, privilegia as razões político-sociais da crise relativamente aos motivos biológicos e/ou técnicos. Entende que a degradação ambiental é, na verdade, consequência de um modelo de organização político-social e de desenvolvimento econômico, que estabelece prioridades e define o que a sociedade deve produzir, como deve produzir e como será distribuído o produto social. Isto implica no estabelecimento de um determinado padrão tecnológico e de uso dos recursos naturais, associados a uma forma específica de organização do trabalho e de apropriação das riquezas socialmente produzidas.

Essa consciência, que se manifesta, principalmente, como compreensão intelectual de uma realidade, desencadeia e materializa ações e sentimentos que atingem, em última instância, as relações sociais e as relações dos homens com a natureza abrangente. Isso quer dizer que a consciência ecológica não se esgota enquanto ideia ou teoria, dada sua capacidade de elaborar comportamentos e inspirar valores e sentimentos relacionados com o tema. Significa, também, uma nova forma de ver e compreender as relações entre os homens e destes com seu ambiente, de constatar a indivisibilidade entre sociedade e natureza e de perceber a indispensabilidade desta para a vida humana. Aponta, ainda, para a busca de um novo relacionamento com os ecossistemas naturais que

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ultrapasse a perspectiva individualista, antropocêntrica e utilitária que, historicamente, tem caracterizado a cultura e civilização modernas ocidentais.

A eficiência econômica está relacionada à capacidade de proporcionar sintonia entre economia e democracia, não sendo, portanto, resultado da atuação da “mão invisível” do mercado, conhecida apenas por alguns economistas clássicos. Enquanto medida de transformação social, deve ser observada pelo grau de satisfação das necessidades humanas fundamentais, garantia de direitos, respeito e uso racional dos recursos naturais.

A economia solidária adiciona e incorpora o paradigma da solidariedade, que se baseia no compartilhamento dos dons da natureza e dos bens socialmente produzidos com vistas à realização de todas as pessoas. Neste sentido, desenvolve-se a cultura da corresponsabilidade, onde todos são responsáveis pelo cuidado dos bens fornecidos pela natureza, para que beneficiem a todos em iguais condições, considerando as especificidades de cada um. Isso exige uma nova relação humana em que o individual não sufoque o coletivo e ambas as dimensões se fortaleçam mutuamente.

Na esfera política, este paradigma significa uma nova relação de poder, fundamentada na orientação ética de servir e defender os interesses da coletividade, respeitando as diversidades e ampliando as formas e os mecanismos de participação.

A Cooperação que se fundamenta no reconhecimento mútuo, no respeito e na reciprocidade não pode ser confundida ou reduzida a ações combinadas para realização de objetivos da esfera apenas econômica.

Através da cooperação, os trabalhadores buscam fortalecer sua identidade de classe e, desta forma, sustentam a luta pela realização de objetivos superiores, como igualdade de condições para uma vida digna e feliz.

Entendida neste sentido amplo e emancipatório, a cooperação não pode se destinar a servir de instrumento para corrigir defeitos e suavizar as mazelas do sistema capitalista.

A autogestão é compreendida como a propriedade coletiva dos meios de produção e sua administração democrática, com a participação por igual de todos os que trabalham no empreendimento, cada pessoa tendo direito a um voto na tomada de decisões. Este aspecto representa uma substancial diferença entre as iniciativas econômicas solidárias e as desenvolvidas no marco do capitalismo. Enquanto na economia solidária prevalece princípio democrático em que todos participam da tomada de decisão, na empresa capitalista prevalece o princípio hierárquico onde os trabalhadores assalariados apenas cumprem ordens e tarefas definidas pelos dirigentes, ou seja, a heterogestão. Estão submetidos, pois alienam, vendem a única mercadoria que possuem diante deste sistema: sua força de trabalho.

Pelos efeitos e características amplamente visíveis, percebe-se a impossibilidade de que esses postulados sejam plenamente atendidos na ótica capitalista.

Desta forma, as iniciativas de economia solidária buscam a construção de uma alternativa superior ao capitalismo1, construída no dia-a-dia de trabalhadores e trabalhadoras de diversas partes do mundo que, com a teimosia de não aceitarem um destino de miséria dado como certo e inalterável, constroem sua história ensejando, nesta mesma dinâmica, a própria transformação da história.

As práticas, princípios e valores que fundamentam a economia solidária têm contribuído para a ampliação do espectro do possível através da construção de alternativas que representam formas mais justas de distribuição das riquezas nas sociedades.

Observa-se claramente que o objetivo superior do

1. Expressão utilizada por Singer (2002, p. 114) para quali�car o movimento de Economia Solidária.

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processo organizativo dentro da lógica da economia solidária é a emancipação do ser humano do trabalho repetitivo e alienado e a construção de outro sistema que integre as dimensões econômica, política, social, ecológica e cultural, que garantam sobrevivência com dignidade a todas as pessoas.

Para Paul Singer, a Economia Solidária foi concebida para ser uma alternativa superior ao capitalismo por proporcionar às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras, uma vida melhor. Não apenas no sentido de que possam consumir mais com menor dispêndio de esforço produtivo, mas, também, melhor no relacionamento com as famílias, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e de estudo; melhor face à liberdade de cada um de escolher o trabalho que lhe dá mais satisfação, ao direito à autonomia na atividade produtiva, de não ter que se submeter às ordens alheias, de participar plenamente das decisões que o afetam e na segurança de saber que a sua comunidade jamais o deixará desamparado ou abandonado.

Deve-se, entretanto, ter atenção para identificar e denunciar práticas que procuram mascarar as contradições e a alienação do trabalho sob o disfarce de falsas cooperativas, que ao invés de promover a participação dos trabalhadores, acabam por torná-los ainda mais vulneráveis e desprotegidos frente a exploração capitalista. Estas iniciativas fraudulentas, geridas dentro da ilegalidade, visam tão somente burlar as leis trabalhistas, não garantindo os direitos conquistados pela classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que preservam a submissão hierárquica das empresas capitalistas tradicionais.

Assim sendo, todo esforço empreendido para a demarcação conceitual precisa das verdadeiras práticas de economia solidária propiciará maior segurança para a necessária construção de políticas públicas adequadas ao fortalecimento destas iniciativas, evitando assim que os recursos públicos sejam gastos em iniciativas

equivocadas, que reproduzem a dominação, ao mesmo tempo em que se disfarçam com o perfume cativante das empresas cidadãs – o que se conceitua como empresa cidadã é aquela que pratica a “responsabilidade social”, sem alterar o sistema e as relações de trabalho – e as cooperativas de fachada.

Este debate deve permear tanto a esfera do Estado quanto a da sociedade, para que tais iniciativas possam galgar poder político e econômico, garantindo, desta forma, recursos do Estado através de políticas públicas adequadas; ao mesmo tempo em que mantenham a autonomia necessária para continuar formulando alternativas autênticas ao modo de reprodução do sistema capitalista.

O papel do Estado

Ao Estado cabe o papel de reconhecer e fomentar a Economia Solidária. Reconhecer implica em respeitar sua forma de organização. Ao fomentar, é necessário que as políticas públicas de Economia Solidária alcancem a dimensão de política de estado, ampliando sua institucionalização e articulando as diferentes esferas públicas. É indispensável também a garantia do caráter participativo e do controle social dessas políticas, gerando condições para construção e gestão conjunta, entre estado e sociedade civil.

O papel da sociedade civil

Avançar na construção do Desenvolvimento como um processo de ampliação das liberdades substantivas para os seres humanos implica no fortalecimento político da sociedade civil e na ampliação da prática da cidadania. Sem negar a importância da participação do Estado nesse processo, a contribuição dos movimentos civis se revela como decisiva na reorganização de uma sociedade voltada

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aos interesses da maioria dos cidadãos e pautada em princípios democráticos, participativos, de justiça social, prudência ecológica e viabilidade econômica. As opções lideradas pelo Estado e pelo mercado, pela própria natureza dos interesses que encarnam, privilegiam, respectivamente, a intervenção normativa e controladora do sistema social – orientada por interesses fortemente contraditórios – e a eficiência alocativa a serviço de interesses privados. Ademais, a realidade tem demonstrado que são as próprias iniciativas estatais e privadas as principais responsáveis pela devastação socioambiental. Ao mesmo tempo, assistimos à perda progressiva, por parte do Estado, de sua importância e autonomia na relação com os conglomerados transnacionais, no contexto da globalização e do neoliberalismo. Portanto, embora a via da sociedade civil e da cidadania se apresente, ainda, como uma alternativa frágil diante das forças do mercado e do Estado – dada a composição de poder presente no neoliberalismo e da consequente desorganização, perplexidade e desmobilização da sociedade civil nesse quadro, em especial em países periféricos como o Brasil – é a que representa a resposta mais legítima, promissora e sintonizada com os interesses e necessidades da maioria dos trabalhadores.

As dimensões da Economia Solidária

Dimensão Econômica

Revela-se através da construção de estratégias coletivas de produção, beneficiamento, comercialização e consumo dos bens produzidos e demandados pelas populações, mediante a organização/estruturação de redes e cadeias.

Pode ser identificada também através da diversificação da produção voltada para atender ao consumo interno, do trabalho coletivo e da partilha equitativa das sobras, não gerando grandes desigualdades na remuneração do trabalho dos diferentes participantes dos empreendimentos.

Dimensão Social

Representa a melhoria das condições de vida das pessoas, através do acesso ao trabalho, aumento da renda, melhoria na alimentação, saúde, educação, moradia. Parte do atendimento às necessidades básicas, como a segurança e a soberania alimentar.

Está presente também na construção da igualdade de gênero, raça, etnia e geração.

Por fim, esta dimensão revela a contribuição das iniciativas de Economia Solidária para a recriação das relações humanas, muito importante no atual contexto de apatia social e de fechamento do indivíduo em si mesmo.

Dimensão Política

Manifesta-se no aumento da capacidade organizativa dos sujeitos, na conquista da cidadania na perspectiva da democratização do estado, na gestão coletiva dos

empreendimentos, no fortalecimento e articulação de movimentos e organizações sociais, na ampliação da participação comunitária e fortalecimento da solidariedade.

Nesta dimensão reside também a capacidade de acessar recursos e políticas públicas, a luta pela reforma

Os desa!os, quaisquer que

sejam eles, nascem sempre

de perplexidades produtivas .

Boaventura S. Santos

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agrária e urbana, pela segurança alimentar e nutricional.Desta forma, ao enfrentar certas problemáticas

através da criação, produção ou realização de serviços, a economia solidária interroga o poder público quanto à sua ação e/ou omissão.

Enfim, esta dimensão política afirma-se ainda no sentido de que os projetos desenvolvidos conjuntamente (de forma associativa ou cooperativa) visam a uma mudança institucional (e não simplesmente à produção ou prestação de serviços) na perspectiva de um melhor viver.

Dimensão Cultural

Verifica-se essa dimensão através do resgate da história das comunidades, da valorização do saber popular, da cultura e das potencialidades locais. Outros aspectos são os relacionados à construção de valores de solidariedade, fortalecendo laços de convivência comunitária, propiciando práticas como a partilha e a colaboração mútua.

Dimensão Ecológica

Representa o cuidado com a sustentabilidade ambiental e o uso de tecnologias apropriadas às iniciativas produtivas. Incorpora a necessidade da utilização racional dos recursos naturais e o manejo adequado dos resíduos. No campo do desenvolvimento rural e da produção agrícola, a dimensão ecológica está expressa na valorização da agroecologia, que implica no manejo dos recursos naturais respeitando a teia da vida, na diversificação da produção de alimentos saudáveis, livres de venenos, e na manutenção da biodiversidade. Isso requer o entendimento dos sistemas naturais de cada lugar, envolvendo o solo, o clima, os seres vivos e a inter-relação entre eles.

A abordagem agroecológica implica ainda na valorização da sabedoria de cada agricultor desenvolvida

a partir de suas experiências e observações locais. Esta dimensão também manifesta o cuidado com o consumo, denunciando e combatendo o consumismo e promovendo a defesa e o cuidado com o planeta Terra.

Desa"os atuais para a consolidação

da Economia Solidária enquanto Política

e Estratégia de Desenvolvimento

Observam-se claramente três grandes desafios. O primeiro diz respeito à retomada do significado do trabalho. A literatura tem tratado a questão do trabalho entre os pólos de centralidade e perda da centralidade.

O debate contemporâneo se divide entre uma posição que considera que o trabalho continua sendo fundante da própria sociabilidade capitalista e a posição no outro extremo que nega tal centralidade, embora reconheça que o trabalho continua a existir, apenas tendo perdido a virtualidade heurística2 de chave para a compreensão e transformação da sociedade.

Neste sentido, o desafio que se coloca para “a outra economia” é reafirmar a importância fundamental do trabalho para os indivíduos e para a sociedade. Não basta existir orçamento participativo, empoderamento da associação de bairro, uma intensa vida cultural emancipatória e continuar submetido ao trabalho repetitivo, desprovido de sentido, alienado, explorado, seja ele executado na empresa capitalista padrão ou nas formas institucionais alternativas. Da mesma forma, o fato das cooperativas e das empresas autogestionárias não constituírem um universo apartado da economia capitalista pode levar à internalização dos mesmos princípios de concorrências, à intensificação do trabalho executado sob regras hierárquicas e autoritárias, enfim, à autoexploração.

Neste sentido, Marcos Arruda afirma que é preciso reconceituar o trabalho, desligando-o das meras tarefas

2. Procedimento pedagógico pelo qual se leva a descobrir por si mesma a verdade que lhe querem imputar – conjunto de métodos que conduzem à descoberta, a invenção e a resolução de problemas.

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da sobrevivência. O ser humano está na Terra não apenas para sobreviver, mas para realizar seus potenciais superiores de prazer, bem-estar, comunhão e felicidade. É capaz de transformar o mundo e criar o novo através da ação consciente sobre si próprio, sobre a natureza e sobre todo o grupamento humano.

O segundo desafio a ser enfrentado pela economia solidária é a demarcação precisa entre as verdadeiras alternativas de construção social, econômica e política e as práticas conservadoras gestadas dentro do chamado terceiro setor. Práticas estas sustentadas pelo charme cativante do trabalho voluntário, das parcerias cidadãs, das empresas sociais, em que se observa uma tentativa do capital de preservar privilégios, assegurando a legitimidade elitista na condução dos processos sociais.

Há exemplos de que, ao longo da história ocidental, para frear ameaças, parte das elites política, econômica e também intelectual valeu-se ora da piedade, ora da força. Atualmente, a ofensiva caritativa conservadora disputa terreno com as verdadeiras iniciativas solidárias e emancipatórias, mas, se não obtiver resultados, sua estratégia certamente poderá ser outra.

Neste sentido, vale chamar a atenção também para as falsas cooperativas, que atualmente proliferam em várias partes do mundo, em especial nos países periféricos. Estas cooperativas de fachada, criadas muitas vezes como departamentos de produção disfarçados, funcionam como verdadeiros postos avançados, coordenadas e controladas por uma empresa capitalista.

Outro grande desafio decorre do fato de que o Estado Brasileiro ainda está fundamentado na concepção capitalista, e os mecanismos de promoção do desenvolvimento ainda perseguem e priorizam o crescimento econômico. Desta forma, constitui um grande desafio para a Economia Solidária ser tratada como ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO e não como ação residual ou compensatória dos efeitos danosos do capitalismo.

Neste sentido, as políticas de apoio e fomento à economia solidária não podem reproduzir esta visão, pois dessa forma impedem a necessária ruptura com as estruturas que sustentam e reproduzem as desigualdades e as más condições de vida de grande parte da população.

Apesar de todos os avanços implementados nos últimos anos, a exemplo do SENAES, do SESOL e de programas como o Bahia Solidária, ainda é um grande desafio transformar programas de governo em políticas públicas perenes e de estado, com orçamentos definidos, metas claras e objetivos concretos que independam da vontade dos governos que se sucedem.

O Documento Final da 1ª Conferência de Economia Solidária, realizada no período de 26 a 29 de junho de 2006 na cidade de Brasília – DF, com a participação de 1.073 delegados de todos os estados brasileiros, representando o conjunto dos atores da Economia Solidária (empreendimentos, entidades de assessoria e apoio e gestores públicos), expressa os objetivos, as diretrizes e prioridades para a formulação de uma política pública com esse caráter.

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Objetivos

Contribuir para a concretização dos direitos constitucionais que garantem aos cidadãos e cidadãs o direito a uma vida digna.

Fortalecer e estimular a participação social e política da Economia Solidária com ações que ampliem sua visibilidade e legitimidade social, em articulação com movimentos sociais que dialogam, reivindicam e contribuem na construção de políticas públicas pautadas em seus princípios e valores.

Reconhecer e fomentar as diferentes formas organizativas da Economia Solidária.

Contribuir para a geração de riqueza, melhoria da qualidade de vida e consequente erradicação da fome e das causas da pobreza.

Contribuir para a equidade de gênero, de raça, de etnia e de geração, proporcionando condições concretas para a participação de todos.

Democratizar e promover o acesso da Economia Solidária aos fundos públicos e aos instrumentos de fomento (crédito, formação, pesquisa, assistência técnica, assessoria, mecanismos de certificação e comercialização etc.) aos meios de produção e às tecnologias sociais necessárias ao seu desenvolvimento;

Promover a integração e a intersetorialidade das várias políticas que possam fomentar a Economia Solidária, tanto no seio dos entes federados quanto entre os mesmos.

Apoiar e fortalecer as iniciativas artísticas, artesanais e culturais organizadas na Economia Solidária que valorizam a diversidade cultural e regional.

Promover programas de educação e formação de interesse geral e específico da Economia Solidária, fortalecendo a troca de saberes e práticas, garantindo a democratização da comunicação, incentivando as redes de intercâmbio e acesso a informação e ao conhecimento, articulados com outras políticas setoriais afins.

Apoiar ações que aproximem consumidores e produtores, impulsionando na sociedade reflexões e práticas relacionadas ao consumo consciente.

Contribuir para a inclusão social e a participação das pessoas com deficiências, transtorno mental, dependência química, egressos do sistema prisional, entre outros.

Contribuir para a redução das desigualdades regionais com políticas de desenvolvimento sustentável.

Promover práticas produtivas ambientalmente sustentáveis, respeitando as particularidades dos diferentes biomas e ecossistemas e utilizando suas potencialidades de forma racional.

Para avançar na superação dos desafios e na realização de seus objetivos, a Conferência aponta as seguintes prioridades para a política pública de Economia Solidária:

Educação contextualizada;

Acesso à infraestrutura de produção;

Canais justos e solidários de comercialização e distribuição da produção e consumo;

Acesso à organização dos serviços de crédito;

Reconhecimento jurídico de suas organizações e atividades desenvolvidas;

Divulgação, formação, assistência técnica e desenvolvimento tecnológico.

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Considerações Finais

As idéias apoiadas nas práticas de economia solidária, que estão em curso há muito tempo e em diversas partes do mundo, apontam para a construção de novas racionalidades econômica, política, social e cultural que, mesmo inacabadas e trazendo uma série de desafios, já não podem mais passar despercebidas dentro do quadro de escolhas, no momento de se formular políticas de desenvolvimento.

A Economia Solidária busca reverter a lógica capitalista que promove a crescente exploração do trabalho e dos recursos naturais, gerando desigualdades social, cultural, econômica, territorial, degradação ambiental e prejuízo à saúde dos seres vivos. Ela afirma a emergência de um novo ator social composto de trabalhadores associados e consumidores conscientes e

solidários, portadores de possibilidades de superação das contradições próprias do capitalismo, caracterizando-se, portando, como um processo revolucionário que faz surgirem novos agentes participativos e ativamente envolvidos na construção do seu próprio destino, em contraposição ao cidadão paciente que aguarda ser beneficiário passivo de programas concebidos sem a sua participação.

Estas iniciativas, construídas em uma ação articulada da sociedade civil, fundamentam-se no rompimento com as tradições da exploração e dependência em relação às ultrapassadas estruturas de poder. Essa autonomia significa um agir social alicerçado no interesse comum da coletividade, que valoriza sua identidade e sua capacidade de interação na busca de alternativas coletivas, ao mesmo tempo em que promove a ampliação das Liberdades Substantivas.

Anais da 1ª Conferência Nacional de Economia Solidária: Economia Solidária como estratégia e política de desenvolvimento.

BERTUCCI, Ademar, SILVA, Roberto Marinho(2003). 20 Anos de Economia popular Solidária. Brasília: Cáritas Brasileira.

BOFF, Leonardo. (1995). Princípio - Terra: A volta à terra como pátria comum. São Paulo: Ática.

Bibliogra!as consultadas

MORIN, Edgar & KERN, Brigitte. (1995). Terra - pátria. Porto Alegre: Sulina.

RECH, Daniel. (2000) Cooperativas: uma alternativa de organização popular. Rio de Janeiro: DP&A.

SACHS, Ignacy. (1986). Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice.

SEN, Amartya. (2000) Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras.

SINGER, Paul, (2002) Introdução à economia solidária. São Paulo: Perseu Abramo.

SANTOS, Boaventura Souza, (2008) Pela mão de Alice – O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez.

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Economia Solidária:Fundamentos e Contexto

Genauto Carvalho de França Filho

Fundamentos

Desconstruindo um conceito:

a advertência necessária

A compreensão da natureza singular das práticas de economia solidária supõe a desconstrução da concepção habitual do que vem a ser um fato econômico, comumente associado à noção de mercado ou troca mercantil.

Esta visão da economia como sinônimo de mercado encontra respaldo numa chamada definição formalista de economia, conforme os termos de Polanyi (1975). Segundo esta definição, a economia é entendida como “toda forma de alocação de recursos raros para fins alternativos” (ROBBINS apud CAILLÉ, 2003). Esta, aliás, é a definição encontrada na maioria dos manuais de economia. Trata-se, neste sentido, de uma definição de economia que a assimila ao fato de economizar recursos raros.

De modo mais sintético, conforme sugere Caillé (2003), esta definição formalista compreende por economia “todo comportamento visando economizar recursos raros, procedendo sistematicamente a um cálculo de custos e benefícios envolvidos numa decisão pensada como uma questão de escolha racional”.

Ao menos duas implicações problemáticas podem ser constatadas em decorrência dessa definição, indicando seu caráter reducionista. A primeira diz respeito ao pressuposto de escassez caracterizando a realidade e meio ambiente econômico a priori, através da ênfase sobre a noção de recursos raros. A segunda é relativa à visão de natureza humana, cujo comportamento reduz-se a uma questão de escolha racional, como se o próprio da ação e conduta humana fosse de proceder sempre a um “cálculo utilitário de consequências”, segundo a expressão de Guerreiro Ramos (1981). Em suma, uma tal definição formalista de economia baseia-se na axiomática do interesse (Caillé, 2002).

A definição substantiva, por outro lado, especialmente em seu sentido polanyiano, compreende

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a economia como “um processo institucionalizado de interação entre o homem e a natureza que permite um aprovisionamento regular de meios materiais para satisfação de necessidades” (Caillé, 2003). Este sentido substantivo relaciona-se à concepção aristotélica de economia e à própria etimologia da palavra economia, remetendo a noção de ciência da boa gestão da casa (oikós), ou das condições materiais de existência.

Inspirados numa concepção muito próxima desta, os economistas clássicos ingleses (incluindo Marx) vão enxergar a economia política como o estudo científico da produção, da troca e da distribuição da riqueza material, ou ainda, conforme resume Caillé (2003), “a ciência dos sistemas econômicos, entendidos como sistemas de produção e de intercâmbio de meios para satisfazer necessidades materiais”.

Entre o conceito e a prática: a vocação da economia solidária como fundamento de uma outra economia

Combinando lógicas econômicas diversas

A compreensão em síntese sobre uma perspectiva substantiva de leitura da economia pode, em resumo, identificar-se à ideia de economia como toda forma de produção e de distribuição de riqueza – o que significa assumir o pressuposto básico de uma definição de economia como economia plural. Como as formas de “fazer economia” variaram historicamente, já que encontram-se distintas formas de produzir e distribuir riqueza nas diferentes culturas humanas ao longo dos tempos, pode-se então, a partir dessa concepção, reconhecer diferentes economias, o que Polanyi (1983) chama de diferentes princípios do comportamento econômico, que seriam:

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Mercado autorregulado;

Redistribuição;Reciprocidade e domesticidade.

Estes diferentes princípios históricos do comportamento econômico podem resumir-se a três formas de economia (Laville, 1994) com o rearranjo de tais princípios na modernidade. Assim, economia entendida como toda forma de produzir e distribuir riquezas admite:

uma economia mercantil – fundada no princípio do mercado autorregulado. Trata-se de

um tipo de troca marcado pela impessoalidade e pela equivalência monetária, limitando a relação a um registro puramente utilitário. Neste tipo de troca/relação o valor do bem (que se mede pelo seu preço) funda a lógica do sistema, ao contrário do primado do valor do laço ou da relação social que se busca numa lógica recíproca;

uma economia não mercantil – fundada no princípio da redistribuição. Ou seja, marcada

pela verticalização da relação de troca e pelo seu caráter obrigatório, pois aparece a figura de uma instância superior (o Estado) que se apropria dos recursos a fim de distribuí-los;

uma economia não monetária – fundada no princípio da reciprocidade. Ou seja, um tipo de

relação de troca orientada principalmente segundo a lógica da dádiva, tal como descrita por Mauss (1978). A dádiva compreende três momentos: o dar, o receber e o retribuir. Neste tipo de sistema, os bens circulam de modo horizontal e o objetivo da circulação destes bens e/ou serviços vai muito além da satisfação utilitária das necessidades. Trata-se, sobretudo, de perenizar os laços sociais. A lógica da dádiva obedece assim a um tipo de

determinação social específica, pois, ao mesmo tempo livre e obrigada, a dádiva é essencialmente paradoxal (FRANÇA FILHO e DZIMIRA, 1999).

Em resumo, a noção de economia plural, que aqui adotamos como desdobramento da opção por uma definição substantiva de economia, corresponde a ideia de uma economia que admite uma pluralidade de formas de produzir e distribuir riquezas. Esse modo de conceber (ou entender) o funcionamento da economia real, além de ampliar o olhar sobre o econômico, para além de uma visão dominante que reduz seu significado à ideia de economia de mercado, permite ainda perceber certas singularidades próprias às práticas de economia solidária.

A primeira dessas singularidades diz respeito

à possibilidade de pensar as práticas de economia solidária como uma projeção no nível micro ou mesossocial desse conceito macrossocial de economia plural.

A segunda concerne a possibilidade de enxergar a economia solidária como uma articulação inédita dessas três formas de economia, inventando assim um outro modo de instituir o ato econômico, ao invés de ser concebida como uma “nova economia” que viria simplesmente somar-se às formas dominantes de economia, num espécie de complemento, servindo de ajuste às disfunções do sistema econômico vigente (como se a economia solidária tivesse a função de ocupar-se dos pobres e excluídos do sistema econômico, ocupando assim uma espécie de setor à parte num papel funcionalmente bem definido em relação ao conjunto).

A terceira singularidade remete à possibilidade de pensar as práticas de economia solidária como modos de gestão de diferentes lógicas em tensão nas

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dinâmicas organizativas. Neste sentido, enfatiza-se o desafio fundamental da busca do equilíbrio necessário à sustentabilidade de tais práticas em meio a esta tensão de lógicas.

Contudo, além dessa combinação de diferentes lógicas econômicas – traço que singulariza as práticas de economia solidária como fundamento de uma outra economia –, é importante salientar uma segunda vocação de tal forma de economia que aqui definimos como construção conjunta da oferta e da demanda.

Construindo conjuntamente a oferta e a demanda

Tal vocação deve ser compreendida assumindo-se o pressuposto de entendimento da economia solidária como iniciativas de natureza associativa ou cooperativista envolvendo moradores num determinado contexto territorial que buscam a resolução de problemas públicos concretos relacionados à sua condição de vida no cotidiano, através do fomento à criação de atividades socioeconômicas.

Neste sentido, a criação das atividades (socioprodutivas) ou a oferta de serviços são construídas (ou constituídas) em função de demandas reais (genuínas) expressas pelos moradores em seu local. Tal economia estimula um circuito integrado de relações socioeconômicas envolvendo produtores e/ou prestadores de serviço em articulação com consumidores e/ou usuários de serviços, numa lógica de rede de economia solidária.

Diante disso percebe-se que ...

Neste tipo de economia, a consideração sobre oferta e demanda como entidades abstratas perde sentido.

Do mesmo modo, a competição também deixa de ter importância nesta lógica.

O objetivo da rede é a ruptura com a dicotomia habitual (em regimes de mercado supostamente autorregulado) entre a produção e o consumo (pelos seus efeitos danosos muitas vezes em termos sociais...) e o estímulo à livre associação entre produtores e consumidores (ou prestadores de serviços e usuários), permitindo-se, assim, a afirmação do conceito de prossumidores.

Então, como se regula a economia

na lógica solidária?

Nesta economia de prossumidores, a regulação ocorre através de debates públicos concretos no espaço associativo, num exercício de democracia local em que os próprios moradores planejam e decidem sobre a oferta de produtos e/ou serviços em função das demandas efetivas identificadas precedentemente por eles próprios.

Finalmente, a construção conjunta da oferta e da demanda como característica-chave dessa outra economia estimulada supõe ainda, no nível da ação, uma articulação fina entre dimensões socioeconômica e sociopolítica. Isto porque a elaboração das atividades socioprodutivas conjuga-se a uma forma de ação pública: trata-se de moradores num determinado território debatendo politicamente seus problemas comuns e decidindo seu destino.

Superando alguns reducionismos de visão

Em resumo, os termos debatidos acima sobre a compreensão da temática da economia solidária apresentam, ainda, o mérito de permitir ultrapassar quatro tipos de reducionismo amplamente praticados

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na análise teórica e que dificulta sobremaneira um entendimento mais arejado deste assunto. Saibamos quais são eles:

    A tendência a identificar a ideia de empresa produtiva como sinônimo necessário de

empreendimento lucrativo e fins utilitários. Tal modo de pensar anula as possibilidades de ações coletivas organizadas de natureza produtiva e elaborando atividades econômicas sem fins de acumulação privada e em benefício de grupos e comunidades territoriais. Isto implica ampliar o conceito de empresa produtiva, para além da norma capitalista, assim como, redefinir-se os parâmetros de gestão comumente utilizados na direção de um maior desenvolvimento e institucionalização de formas autogestionárias.

Identificar a ideia de economia exclusivamente à lógica utilitarista da economia de mercado ou da

troca mercantil. Tal reducionismo impede as possibilidades de uma ampliação da compreensão sobre o que seja o ato econômico e seu sentido para a vida em sociedade, na direção de sua ressignificação enquanto forma de produzir e distribuir riquezas. A superação de tal reducionismo permite enxergar as singularidades das formas muito diferentes de instituir a economia, entre as quais aquela que coloca a solidariedade no centro da elaboração de atividades produtivas.

Separar a política da sociedade, ou seja, das práticas cotidianas dos cidadãos em seus

respectivos territórios. A visão da economia solidária aqui trabalhada insiste na ideia de uma economia não como um fim em si mesmo (como na lógica de mercado), mas como um meio a serviço de outras finalidades (sociais, políticas, culturais, ambientais etc.). Isto significa conceber a elaboração de atividades econômicas

através de iniciativas organizadas como também formas de resolução de problemas públicos concretos num determinado território.

Associar a ação humana à ação interessada. Ao contrário das abordagens da ação social em

termos de escolha racional, como se o próprio da ação humana fosse proceder sempre e, exclusivamente, segundo um cálculo utilitário de consequências, numa visão que enfatiza a dimensão estratégica dos comportamentos individuais, a perspectiva da economia solidária abre-se muito mais para uma visão complexa do humano. Este é pensado, antes de tudo, como um ser simbólico, dotado de valores, e cujo comportamento não pode ser entendido em termos de previsibilidade, mas, ao contrário, é marcado pela incerteza.

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Contexto

Sobre a realidade do fenômeno em si mesmo, importa apresentar neste momento algumas considerações permitindo compreender a economia solidária como um campo de práticas em construção. Nossa hipótese é de que a dinâmica desse campo parece evoluir de formas de auto-organização socioeconômica em direção às formas de auto-organização sociopolíticas, o que nos leva a pensar tal campo também como um tipo de movimento social de natureza singular. Isto precisamente em função da característica dos atores que o compõem.

Consideraremos, a seguir, quatro categorias de atores ou instâncias organizativas compondo o campo da economia solidária no Brasil. A primeira representa o que poderíamos definir como organizações de primeiro nível, que são os Empreendimentos Econômicos Solidários – EES. Uma segunda categoria de atores inclui as chamadas organizações de segundo nível, ou as Entidades de Apoio e Fomento – EAF. Em seguida, uma terceira categoria, com diferenças marcantes em relação às duas outras pelo fato de constituírem-se quase que exclusivamente como formas de auto-organização política, podem ser ilustradas através dos exemplos das redes e dos fóruns de economia solidária. Por fim, um quarto ator pode ser representado através de uma espécie de nova institucionalidade pública de Estado, conforme ilustram os exemplos de uma rede de gestores de políticas públicas de economia solidária, ou da própria Secretaria Nacional para a Economia Solidária – SENAES – vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, ou ainda, através de uma série de outras instâncias políticas de Estado, na maioria das vezes em forma de secretarias ou mesmo diretorias ou departamentos, que estão tentando construir políticas públicas de economia solidária em governos municipais ou estaduais.

As formas de auto-organização socioeconômicas

As organizações de primeiro nível ou Empreendimentos Econômicos Solidários – EES – representam o núcleo fundamental de constituição do campo. Trata-se das formas, por excelência, de auto-organização socioeconômica. Neste âmbito podem-se alinhar diferentes experiências (podendo ser vistas como categorias de EES), permitindo distinguir variadas práticas de Economia Solidária. Por exemplo, as finanças solidárias (ver anexo 1) envolvem experiências de bancos populares, cooperativas de crédito e mais recentemente ganha força a noção de bancos comunitários. Existem ainda iniciativas que participam de uma categoria mais conhecida como comércio justo (ver anexo 2), assim como existe o segmento do chamado cooperativismo popular, como expressão talvez majoritária em termos de quantidade no campo mais geral. Deve-se incluir ainda iniciativas como os clubes de troca, participando de uma categoria que poderíamos definir como “economia sem dinheiro”, que são formas muito específicas de práticas de economia solidária. Em seguida, deve-se salientar as associações, que constroem redes de práticas. Um caso muito conhecido no Brasil, e talvez emblemático, é a associação de moradores do conjunto Palmeiras, em Fortaleza (CE), conhecido como o Banco Palmas. Ele consegue promover uma articulação entre diversas categorias de práticas de economia solidária, porque ali reúnem, ao mesmo tempo, finanças solidárias, comércio justo e cooperativismo popular. (ver França Filho, 2006; França Filho e Laville, 2004, França Filho e Silva Junior, 2006).

Um primeiro traço marcante sobressaindo-se de um olhar inicial sobre este primeiro nível de auto-organização concerne o caráter heterogêneo do campo

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da economia solidária. Uma heterogeneidade refletida na presença ao mesmo tempo de cooperativas populares ou cooperativas de trabalho e produção, bancos comunitários, organizações que recuperam a massa falimentar pelos trabalhadores da antiga empresa e tentam criar um sistema de autogestão, clubes de troca,

associações de serviços etc. Neste sentido, o grau de heterogeneidade do campo deve ser considerado em relação a vários níveis de análise. O primeiro deles diz respeito ao âmbito de atuação das práticas, permitindo distinguir a economia solidária em subcampos como as finanças solidárias, o comércio justo, as formas de

As formas de auto-organização econômica: a centralidade dos EES

Um desenho do campo da economia popular e solidária no Brasil

SENAES

Fundação Unitrabalho

Rede Brasileira de Socioeconomia

Solidária

Fórum brasileiro

de ES

Fóruns Estaduais

de ES

Fóruns

Secretariasde Governo

Outras

Caritas

ADS/CUT

Clube de Trocas

Outros casos relevantes

Instânciasgovernamentais

CooperativismoPopular

Associações/empreendimentos

EAFEntidades de Apoio e Fomento

Redes

Bancos comunitários de desenvolvimento

Rede de Gestores

Públicos de Fomento à ES

EESEmpreendimentos

EconômicosSolidários

ITCPsMST

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economia sem dinheiro, o cooperativismo popular ou as empresas autogeridas. Um segundo nível de análise compreende as diferenças relativas ao grau de institucionalidade das próprias iniciativas, o que permite distinguir práticas mais consolidadas, envolvendo número significativo de pessoas e mobilizando recursos importantes, com outras iniciativas de menor porte, beirando a informalidade muitas vezes e enfrentando grandes dificuldades no plano da sua sustentabilidade e nível de renda gerado. Um terceiro elemento importante relativo à heterogeneidade dentro do campo da economia solidária diz respeito aos propósitos mesmos das iniciativas, o que distingue particularmente um Empreendimento Econômico Solidário – EES – de uma Entidade de Apoio e Fomento – EAF.

Sobre as EAFs

Descrevendo o papel das Entidades de Apoio

e Fomento – EAF: uma condição singular

As entidades de apoio e fomento, como o próprio nome sugere, são estruturas organizativas voltadas para assessoria dos próprios empreendimentos econômicos solidários. Tais entidades de apoio e fomento podem ser organizações não governamentais com tradição no trabalho de organização popular ou assessoria aos movimentos sociais; podem ser também ONGs sem tal tipo de tradição, porém detentora de expertise no trabalho e organização de base social ou num determinado segmento específico das práticas de economia solidária; podem ser ainda estruturas organizativas criadas no seio de universidades, em geral ligadas a centros de pesquisa ou programas de extensão (ver anexo 3 sobre o caso das ITCPs no Brasil); ou, finalmente, podem ser estruturas de coordenação de redes.

As entidades de apoio e fomento contam em geral com

uma base socioprofissional de composição institucional altamente qualificada. Elas representam, de certo modo, a porção da sociedade civil mais organizada e altamente institucionalizada atuando no campo da economia solidária. Seu papel é fortemente marcado pelo caráter de mediação social. Uma mediação entre o mundo dos empreendimentos (EES) com suas lógicas próprias e as injunções relativas ao marco institucional mais amplo no qual inscrevem-se os empreendimentos.

Para tanto, além de atuarem muitas vezes no próprio fomento à criação de empreendimentos, o apoio fornecido pelas EAF costuma situá-las como corresponsáveis (ao menos temporariamente) do processo de gestão dos empreendimentos com vistas à consolidação do seu processo de sustentabilidade.

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Anexo 1 – sobre �nanças para item de contexto ligado aos EES

Quadro resumo da análise

a.1. Introdução: Qual relação entre micro�nanças,

microcrédito e comércio justo?

Representam diferentes tendências de democratização da economia, podendo variar da simples exploração de um novo nicho mercadológico para muitas instituições financeiras convencionais até a institucionalização de novos padrões de trocas econômicas e de relação com o dinheiro.

a.2. Existe distinção entre micro�nanças e

microcrédito?

As microfinanças constituem um universo multifacetado e complexo de experiências envolvendo operações financeiras de pequena monta, cujo microcrédito representa apenas um instrumento ou mecanismo para realização de tais operações.

O fato de grande parte das microfinanças estarem baseadas em operações de microcrédito, leva a uma identificação simplista entre estas duas noções. E ainda, o fato de grande parte desse microcrédito a ser realizado hoje por instituições financeiras convencionais leva também a assimilação de tal tipo de prática exclusivamente como uma nova modalidade de ação mercantil (um modismo do mercado).

a.3. Sobre a origem e desenvolvimento das

micro�nanças como temática – um diagnóstico

crítico

As microfinanças aparecem na agenda do debate público em diferentes sociedades especialmente nos anos 80, num contexto bastante específico da

dinâmica do capitalismo contemporâneo. Ou seja, com o recrudescimento do desemprego em muitos países, especialmente a partir do início dos anos 80, as sociedades contemporâneas conhecem um fenômeno novo, batizados por muitos analistas através da expressão “crise do trabalho”.

Esta crise do trabalho, indicando escassez de emprego formal e falta de oportunidade de acesso à renda para grande parte da população em diferentes países, interroga o modo mesmo de organização e regulação da sociedade na modernidade, que tem sido baseado em dois pilares em interação dinâmica ou sinérgica: a economia de mercado (supridora de empregos), de um lado, e o Estado social (responsável pela proteção social), do outro.

A crise do trabalho, refletida num processo de “desassalariamento da economia”, vem portanto questionar este paradigma da sinergia estado-mercado enquanto modelo de organização e regulação da vida em sociedade, fundado no trabalho assalariado.

Esta situação indica que vivemos um contexto de mutação de sociedade. Porém, os caminhos da mudança não estão claros para todos e, ainda, oferecem diferentes perspectivas ou avenidas de solução, algumas dentro dos limites do atual paradigma de mercado, outras em ruptura com este paradigma.

Num tal contexto de incertezas quanto ao futuro das sociedades modernas, uma série de contradições, dilemas e paradoxos se apresentam na agenda do debate público. Por exemplo, constata-se uma perda progressiva da centralidade do emprego formal, muito embora ele permaneça sendo considerado como principal vetor de integração social. Ou seja, a crise do trabalho carrega consigo uma problemática de sociedade mais ampla, traduzida na ideia de “exclusão social”. Afinal de contas, numa sociedade moderna, o acesso ao trabalho não é apenas garantidor de renda, ele representa o mecanismo através do qual os sujeitos sociais constroem suas identidades individuais e coletivas, isto é, se reconhecem

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enquanto pessoas e atribuem sentido à sua própria existência. Em outras palavras, numa “sociedade do trabalho”, o indivíduo sem trabalho dificilmente consegue sobreviver socialmente e vivencia grande sofrimento psíquico.

Portanto, num contexto de crise do trabalho associado à problemática de exclusão social, algumas possibilidades se colocam enquanto soluções (de combate à pobreza e promoção do desenvolvimento).

Alguns advogam uma mudança paradigmática, valorizando o potencial de novas formas de trabalho com acesso a direitos contidas em experiências de reorganização de economias locais, a exemplo da ideia de rede de economia solidária. Tal tipo de caminho questiona a centralidade da economia de mercado e sua lógica, propondo a constituição de novos arranjos institucionais e permitindo a convivência de diferentes formas de economia enquanto modalidades de regulação da vida em sociedade.

Contudo, as soluções mais conhecidas e predominantes continuam apostando nas velhas estruturas. A ênfase dos discursos tem sido posta sobre a ideia de inserção pelo econômico, que aposta na capacidade da economia de mercado de absorver a demanda de trabalho.

Esta crença no paradigma do mercado como solução exclusiva para a falta de trabalho estruturou-se nestas três últimas décadas de duas formas:

inicialmente, a aposta fora posta na questão da qualificação da força de trabalho, segundo o diagnóstico de que o desemprego no capitalismo devia-se exclusivamente ao fenômeno do baixo grau de qualificação da mão de obra;

com o fracasso dessa via, pela própria incapacidade do mercado em absorver o conjunto da demanda por trabalho, surge uma segunda solução: aposta-se

na “magia” do empreendedorismo privado, isto é, na crença em poder transformar-se o conjunto dos antigos empregados assalariados em novos detentores de micro e pequenos negócios.

Como num regime de competição de mercado não há espaço para todos, a solução do empreendedorismo conduz a alguns êxitos (os chamados casos de sucesso) e muitos fracassos. Ratificando esse argumento, os dados do Sebrae sobre longevidade de micro e pequenos negócios são eloquentes: 90% não sobrevivem mais de 2 anos.

micro e pequenosbrevivem mais de 2 anos.

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é acrescido da preocupação em ser “orientado”, ou seja, acompanhado de assistência técnica.

Assim, a associação entre as ideias de empreendedorismo e microcrédito relaciona-se ao próprio fato de grandes instituições financeiras internacionais (como FMI ou BID, entre outras), já nos anos 80, passarem a difundir a importância do empreendedorismo e do microcrédito como grande solução para a crise do trabalho pela possibilidade de incluir os mais pobres. É assim que a imagem da economia informal no terceiro mundo salta da condição de vilã do sistema (como era comum até o final dos anos 70) para uma valorização acrítica das supostas virtudes a ela associadas, como inventividade ou flexibilidade adaptativa, numa espécie de apologia a um “capitalismo de pés-descalços”.

Esse contexto de popularização do microcrédito por grandes instituições financeiras internacionais é motivado também pela visibilidade de algumas experiências de grande impacto, como o caso da Grameen Bank em Bangladesh, e atrai o interesse do setor financeiro privado.

A entrada de grandes bancos privados no campo do microcrédito, através de um processo mais conhecido como “bancarização dos mais pobres”, representou a descoberta de um novo nicho mercadológico para as instituições financeiras convencionais, sacramentando assim a aparição de um novo fenômeno na dinâmica do capitalismo contemporâneo: “a indústria da microfinança”.

Contudo, essa “bancarização dos mais pobres” fomentada por uma “indústria do microcrédito”, embora passe a exercer forte influência no campo das microfinanças, não encerra a totalidade de tais práticas, e ainda, obscurece a visão sobre uma série de outras experiências de finanças de proximidade ou de finanças solidárias que ampliam o universo das microfinanças.

Assim, para além do microcrédito fomentado

Muito embora essas evidências empíricas, a aposta em soluções ou saídas individuais para o problema do desemprego não perdeu fôlego. A força do discurso do empreendedorismo parece residir em dois grandes aspectos: de um lado, as qualidades inerentes à ação de empreender (inovação, criatividade, flexibilidade, disposição, espírito de iniciativa etc.), do outro, sua associação com as chamadas “virtudes do microcrédito”. Microcrédito este que, num primeiro momento, é valorizado apenas enquanto forma de democratização do crédito para os excluídos do sistema financeiro e depois

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por organizações de mercado (bancos privados), ou instituições públicas de governo (“bancos do povo”), ou ainda, organizações não governamentais no seio da sociedade civil (Oscips de microcrédito) e outras formas de organizações (cooperativas de crédito). Existe um mar de experiências informais oriundas das formas de organização popular (tais como os fundos rotativos e fundos solidários) que ampliam e complexificam a compreensão do que seja este universo das microfinanças.

O exemplo dos fundos rotativos e fundos solidários representam práticas muito antigas e tradicionais

(portanto muito anteriores à onda do microcrédito dos anos 80) inscritas na tradição e modo solidário de organização da economia em certas comunidades.

Convém sublinhar mais recentemente a experiência dos bancos comunitários que articulam de modo muito original o passado com o presente. Ou seja, estas iniciativas combinam a base de organização comunitária típica das formas de finanças de proximidade (tal como os fundos rotativos e fundos solidários) com o exercício do microcrédito, representando uma forma muito emblemática de manifestação da economia solidária no Brasil.

a.4. A micro�nança como universo complexo de experiências no Brasil

Bancos do Povo

Fundos rotativos

OSCIPs de microcrédito

Bancos comunitários de desenvolvimento

Cooperativasde crédito

Editais públicos e linhas de

$nanciamento

Sociedade civil e meio

popularEstado

Bancos privados

OSCIPs de microcrédito

Cooperativasde crédito

Sociedade civil MercadoEstado

Finanças solidárias

Microcrédito

Micro$nanças

Fonte: Elaboração Própria

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Anexo 2 – Sobre comércio justo no item de contexto ligado a EES

O Comércio justo – de mercado paralelo à

participação na economia de mercado

O que é?

Redes de organizações envolvendo consumidores e produtores em diferentes partes do mundo que interagem

no desenvolvimento de um outro padrão de trocas econômicas, este parece ser o sentido de um comércio justo. Sua ambição é de construir uma solidariedade internacional, refletindo certas preocupações em torno das possibilidades de instauração de uma regulação internacional fundada sobre novas relações econômicas e comerciais. O seu objetivo é o estabelecimento de relações comerciais mais justas entre países do Norte (consumidores em particular) e certos produtores organizados em países do Sul. A esta finalidade poderíamos dizer socioeconômica, se acrescenta uma outra – relevando mais do registro de uma pedagogia política: aquela de constituição de uma rede

Quadro A – os princípios do comércio justo segundo a Network of European World Shops – NEWS

 O respeito e a preocupação pelas pessoas e pelo ambiente, colocando as pessoas acima do lucro;

 O estabelecimento de boas condições de trabalho e o pagamento de um preço justo aos produtores (um

preço que cubra os custos de um rendimento digno, da proteção ambiental e da segurança econômica);

 A abertura e transparência quanto à estrutura das organizações e todos os aspectos da sua atividade,

e a informação mútua entre todos os intervenientes na cadeia comercial sobre os seus produtos e métodos de comercialização;

 O envolvimento dos produtores, voluntários e empregados nas tomadas de decisão que os afetam;

 A proteção e a promoção dos direitos humanos, nomeadamente o das mulheres, crianças e povos

indígenas;

 A consciencialização para a situação das mulheres e dos homens enquanto

produtores e comerciantes, e a promoção da igualdade de oportunidades entre os sexos;

 A proteção do ambiente e de um desenvolvimento sustentável está

subjacente a todas as atividades;

 A promoção de um desenvolvimento sustentável, através do estabelecimento

de relações comerciais estáveis e de longo prazo;

 A promoção de atividades de informação, educação e campanhas;

 A produção tão completa quanto possível dos produtos comercializados

no país de origem.

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de consumidores capaz de sensibilizar a opinião pública acerca das condições de injustiça das regras do comércio internacional, que tem implicado o empreendimento de ações (sob a forma de campanhas, manifestações etc.)1 junto a grandes instâncias institucionais de decisão em matéria política e econômica.

Percebe-se assim que além da questão da comercialização de produtos, dois outros aspectos aparecem também como elementos importantes para o entendimento acerca desse fenômeno: a vertente da informação e/ou consciencialização do público consumidor em geral e a participação em campanhas. Uma das definições comumente empregadas na identificação deste fenômeno é aquela sugerida pela NEWS – a rede europeia de lojas de comércio justo: “uma parceria entre produtores e consumidores que trabalham para ultrapassar as dificuldades enfrentadas pelos primeiros, para aumentar o seu acesso ao mercado e para promover o processo de desenvolvimento sustentado. O comércio justo procura criar os meios e oportunidades para melhorar as condições de vida e de trabalho dos produtores, especialmente os pequenos produtores desfavorecidos. A sua missão é a de promover a equidade social, a proteção do ambiente e a segurança econômica através do comércio e da promoção de campanhas de consciencialização”.

Como funciona e em relação a que tipo de problemática se posiciona?

As organizações do comércio justo estabelecem contratos com organizações de pequenos produtores (em geral instituídas sob a forma de cooperativas) para a compra e venda de produtos2. Estes variam, em geral, do café e do chá ao papel reciclado, do caju ao artesanato, do cacau ao vestuário e da música étnica

aos jogos didádicos. Tal iniciativa se deve à situação de vulnerabilidade desses pequenos produtores (cujo essencial de suas rendas é oriundo da comercialização de matérias-primas) diante da flutuação de preços do mercado internacional. A ideia é de encontrar canais de distribuição para o escoamento daquela produção a um preço considerado justo para o pequeno produtor. Busca-se, assim, eliminar ao máximo o número de intermediários entre o produtor e o consumidor. Para tanto, alguns critérios tem sido respeitados na definição dos contratos, modelizando desta forma as práticas do comércio justo em geral segundo quatro eixos:

a compra direta nas cooperativas de produtores inscritas num registro europeu;

um preço justo, fixado segundo um cálculo dos custos das matérias-primas e da produção em função do tempo e da energia investidos – devendo permitir ao produtor o alcance de um nível de vida decente;

o pré-financiamento;

uma relação comercial durável com o produtor.

Qual sua origem, como evoluiu e que desa!os enfrenta?

Herdeiro do antigo comércio alternativo, que funcionava como uma espécie de rede paralela de solidariedade para a distribuição de produtos terceiro-mundistas na Europa, o comércio justo evoluiu através de um processo de patenteamento de certos produtos. Na sua origem portanto, aproximadamente no início dos anos 70, encontra-se uma convergência entre ONGs

1. Dentre estas as mais conhecidas são aquelas que denunciam a exploração do trabalho infantil por parte de grandes empresas multinacionais agindo em países do terceiro mundo.2. O fenômeno envolve hoje quase uma centena de organizações importadoras situadas em países do Norte (que são ONGs, fundações ou associações) e mais de cinco centenas de produtores no hemisfério sul, além de cerca de 2.500 World Shops (lojas de comercialização de produtos solidários). Apenas entre estes armazéns do mundo (World Shops) europeus o comércio justo movimen-tou cerca de 15 milhões de dólares em volume de negócios em 1996.

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implicadas em iniciativas de organização popular em países do Sul e associações ecológicas ou de defesa dos direitos humanos em países do Norte – tudo isto num contexto de queda dos preços das matérias-primas no comércio internacional.

De fato, desde o final dos anos 50, uma associação católica holandesa especializou-se na importação de produtos provenientes de países em desenvolvimento. Ela os vendia por correspondência através das igrejas e das redes terceiro mundistas. Este país conhecera o primeiro armazém do mundo (ou associação desse gênero) em 1969. Dois anos mais tarde eles já eram mais de 120. Tais tipos de associações rapidamente espalharam-se por outros países europeus (Alemanha, Áustria, Suíça, Bélgica, Suécia, Grã-Bretanha e França), atestando o êxito do comércio alternativo. Comprar num armazém do mundo torna-se então um ato de convicção política, levantando assim a famosa oposição entre «consumo consciente», de um lado e, «consumismo capitalista», do outro.

A passagem do comércio alternativo ao comércio justo acontece nos anos 80, num contexto de queda livre dos preços das matérias-primas que vem acompanhada da alta pressão das cooperativas de produção em função das suas necessidades de aumento das vendas. Paralelamente, assiste-se neste momento uma maior sensibilização dos consumidores em geral acerca dos problemas ambientais e das condições de produção nos países em desenvolvimento. Contudo, esta passagem se caracteriza ainda, e fundamentalmente, por um processo de patenteamento de certos produtos. O comércio justo é assim assimilado a um verdadeiro nicho mercadológico. A introdução de marcas é considerado como meio privilegiado de acesso às grandes cadeias de distribuição, assim como de diferenciação e de garantia de produtos

junto aos consumidores. Primeiro Max Havelaar na Holanda em 1988, seguido de Transfair na Alemanha em 1993 e de Fairtrade na Grã-Bretanha em 1994. Estas três marcas são unificadas em 1997 através da criação de um organismo de patenteamento do comércio justo no plano europeu, chamado Fair Trade Labelling Organization.

Podemos observar assim que, de uma condição inicial de mercado paralelo, o comércio justo admite mais tarde sua participação numa economia de mercado. A compreensão do desenvolvimento deste campo hoje implica portanto a necessidade de distinguir-se entre as experiências que limitam o seu universo de distribuição às redes das assim chamadas “boutiques associativas” ou “armazéns do mundo” (World Shops em inglês) – que são lojas (associativas) de venda desses produtos – e aquelas que se abrem sobre os grandes canais de distribuição, ou seja, as grandes cadeias de supermercados3.

3. Dentro destes dois gêneros de experiências, muitas são as redes de iniciativas que conformam o comércio justo, como nos casos da NEWS (já citada anteriormente), uma estrutura coordenadora de 15 associações nacionais e regionais de World Shops oriunda de 13 países europeus; da IFTA – International Federation for Alternative Trade –, que agrupa 120 organizações (2/3 das quais de produtores do Sul) de 47 países da Europa, América do Norte, Ásia e América Latina; e, da EFTA – European Fair Trade Association – uma associação de importadores europeus.

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Quadro B – Condições para concessão da marca Max Havelaar

Compra direta do café nas cooperativas dos pequenos produtores �liadas a Max Havelaar, a �m de evitar os intermediários;

Pagamento do café acima do preço mínimo, �xando-o a 125$ a saca (aproximadamente 61 kg). Levando-se em consideração que o preço mundial da saca varia entre 70 e 250$, o preço de compra Max Havelaar é às vezes inferior ao preço mundial, mas tal preço permite a preservação dos produtores em caso de baixa excessiva da sua cotação na bolsa mundial;

Pré-�nanciamento em torno de 60% nas compras de café, a �m de evitar que os produtores sejam obrigados a endividar-se com taxas de juros excessivas como forma de sobrevivência nos períodos entre colheitas. Um fundo de garantia foi criado para cobrir os riscos �nanceiros dos torrefadores;

Assinatura de contratos de longo prazo, a �m de permitir segurança no escoamento da produção dos pequenos produtores.

Possuir plantações de café de 1 a 2 hectares, no máximo, cultivadas diretamente e serem organizados em cooperativas ou agrupamento de produtores;

Respeitar as normas de qualidade relativas aos grãos de café, sua triagem, sua lavagem etc. Além disso, um quarto da produção encorajada por Max Havelaar é sob a etiqueta “bio”;

A cooperativa deve funcionar democraticamente e favorecer o desenvolvimento local, devendo ainda investir uma parte do excedente obtido em material ou infraestrutura.

Para os Torrefadores

Para os Produtores

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Dois exemplos expressivos

Um caso emblemático do primeiro tipo de iniciativa neste campo do comércio justo, conforme mencionado no parágrafo acima, é o da federação associativa Artesãos do Mundo (Artisans du Monde) na França, especializada na revenda ou distribuição de produtos artesanais. Oriunda da atuação de um grupo militante, esta associação nasce de uma constatação, conforme sublinhada por Trouvelot (1997): “mais do que aportar uma ajuda financeira aos países em desenvolvimento, vale mais a pena oferecer-lhes os meios para o seu próprio desenvolvimento, segundo o princípio Traid not aid, lançado pela primeira vez em 1964 pela Cnuced, a Confederação das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento”. A primeira loja Artisans du Monde nasce assim em Paris em 1974. De um objetivo inicial de compra do excedente de juta junto a pequenos produtores locais a fim de escoá-la no mercado francês, vêm acrescentar-se mais tarde uma preocupação em torno da informação a ser dirigida ao público consumidor em geral sobre as condições do comércio Norte-Sul. Afirma-se desse modo uma perspectiva de educação para o desenvolvimento. Esta federação reagrupa hoje mais de setenta associações/lojas (armazéns do mundo), distribuídas pelo conjunto do território francês, o que tem representado mais de dois mil membros voluntários implicados na iniciativa.

Já em relação ao segundo gênero de iniciativas neste âmbito do comércio justo, o exemplo do café Max Havelaar iniciado na Holanda parece bastante emblemático4. Sua originalidade reside no fato de ir além da rede paralela constituída pelas lojas associativas (conforme fora exclusivamente concebido este tipo de comércio). A associação (que leva o mesmo nome do produto) busca também implantá-lo nos pontos de

venda de grande distribuição. Rapidamente este produto se difunde em outros países europeus e estende suas aparições até as grandes cadeias de supermercados holandeses já em 1990. Tal modelo é então seguido através de outros produtos agrícolas (banana, cacau, mel, açúcar, chá etc.). A ideia é simples, conforme sublinha Parlange (1996): pretendendo tornar sobre este produto o comércio mais justo, porém sem comprar o café, a associação Max Havelaar coloca em relação direta, suprimindo intermediários, os pequenos produtores organizados em cooperativas dos países do Sul com os importadores/torrefadores europeus. As condições, portanto, de realização de um comércio justo neste caso definem-se de acordo com os termos de um contrato bilateral, conforme apresenta o Quadro B.

Concluindo...

É interessante notar, no processo de desenvolvimento deste campo de iniciativas, que o processo de patenteamento de produtos e sua consequente entrada no âmbito da distribuição de massa muito influenciou o aumento das vendas dos chamados produtos equitáveis. Contudo trouxe para este universo de experiências certas lógicas funcionais que passam também a interagir na dinâmica dessas formas de organização. É como se este conceito de comércio justo ora vigente viesse complexificar aquela ideia anterior de comércio alternativo, que entretanto continua a existir.

Observa-se assim que, entre dimensão socioeconômica e política, a prioridade do comércio justo implica tanto atividades de trocas comerciais (mais ou menos abertas sobre a grande distribuição, e mais ou menos importantes segundo o volume de transações) quanto uma pedagogia política. Este campo

4. O termo Max Havelaar faz referência a um personagem importante da história holandesa. Considerado herói num romance do mesmo nome escrito por Multatuli no século XIX, ele simboliza a revolta de um cidadão contra a injustiça do sistema colonial vigente na época na Indonésia (Trouvelot, 1997).

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de experiências aparece assim marcado (segundo nossa leitura) por uma tensão entre lógicas distintas levando, na realidade dessas experiências, ao conflito opondo certos imperativos funcionais (impostos pela necessidade de aumento das vendas dos produtos como consequência da sua abertura sobre a grande distribuição) e a necessidade de afirmação do sentido do projeto pela sua contribuição com a mudança das condições de injustiça da realidade do comércio mundial – numa perspectiva de conscientização do consumo. Esta tensão pode ser mais ou menos aguda em diferentes iniciativas neste âmbito.

Interrogando assim o padrão injusto das relações de trocas econômicas no contexto do mercado internacional, especialmente no que tange à relação Norte-Sul, e sugerindo através de iniciativas concretas um outro padrão de conduta econômica, marcado pela afirmação de um conteúdo ético na sua ação, onde destacam-se valores como solidariedade, justiça, igualdade e democracia, estas experiências de comércio justo vêm sinalizar ao seu modo a existência de uma outra maneira de fazer economia, constituindo-se de maneira ilustrativa como uma forma possível, entre outras, de economia solidária.

Anexo 3 – O caso das ITCPs no Brasil

Origens e características da incubação em economia solidária: a ênfase nas cooperativas populares

A incubação no âmbito da Economia Solidária apresenta diferenças significativas em relação à incubação empresarial. Em primeiro lugar, ela está voltada geralmente para um público de baixa renda que se organiza na maior parte dos casos em pequenas

cooperativas. Em segundo lugar, nesse processo normalmente não incidem taxas como um componente importante dos subsídios sobre os empreendimentos incubados. Em terceiro lugar, as iniciativas incubadas também não são abrigadas pelas instalações das incubadoras, a exceção de alguns casos de incubadoras públicas. Uma quarta diferença muito próxima da primeira, e de fundamental importância, é justamente o recorte, que faz com que a incubação em economia solidária lide principalmente com empreendimentos solidários, preferencialmente no formato de cooperativas, incitando a constituição de processos de autogestão nos empreendimentos criados.

Apesar de algumas referências apontarem para o fato da primeira cooperativa “incubada” ter surgido na Universidade Federal de Santa Maria (RS), a iniciativa pioneira deste tipo de prática é a da COPPE/UFRJ. Esta foi uma experiência pontual e se deu com a criação da Cooperativa de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Assim, a incubação em economia solidária veio desenvolvendo-se, sobretudo, como incubação de cooperativas populares. Em que pese a importância e os avanços dessa abordagem, ela apresenta uma série de limites.

A incubação de cooperativas individuais e, mais especificamente, as ITCPs, cumprem papéis de extrema importância dentro do campo da economia solidária. Um deles é o de capacitar os empreendimentos, tirando muitos deles da informalidade e da precariedade, permitindo uma renda digna para os seus participantes. Um segundo é a articulação de novas políticas públicas no campo da geração de trabalho e renda. Já um terceiro, estaria ligado ao processo de organização das próprias ITCPs, que vêm se congregando em torno de redes nacionais, o que dá consistência à proposta e ajuda no próprio processo de organização política das práticas de economia solidária.

A abordagem de incubação de empreendimentos individuais, entretanto, pode apresentar algumas

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limitações que a incubação de redes pretende, em parte, dirimir. A principal delas é precisamente seu caráter pontual. Ou seja, ao incubar um único empreendimento todo o esforço está depositado nas capacidades desse empreendimento sobreviver na maioria dos casos em um ambiente de competição de mercado. Como as dificuldades dos grupos incubados são de inúmeras ordens (déficits de formação das pessoas, condições de infraestrutura e tecnologias inadequadas ou insuficientes nos locais de implantação de muitos empreendimentos, marco regulatório de funcionamento dos empreendimentos insatisfatório para sua realidade, entre outros) as possibilidades de sobrevivência de tais empreendimentos nas condições do mercado tornam-se menores. Ou seja, os empreendimentos de economia solidária nestes casos em que estão agindo isoladamente enfrentam as mesmas dificuldades das micro e pequenas empresas em se manter, somadas ainda com as dificuldades acima mencionadas. Dois efeitos negativos podem advir dessa situação: de um lado, um certo prolongamento do tempo de incubação em razão dos subsídios aportados; e, do outro, a constatação de casos em que o êxito do empreendimento passa pela incorporação de lógicas de funcionamento privado que comprometem o propósito e finalidade original da iniciativa. Além disso, como a lógica da incubação é de cooperativa apenas, os benefícios do empreendimento podem limitar-se ao grupo que compõe a organização e não necessariamente ao público mais amplo do território no qual a iniciativa fora gestada.

Sobre as formas de auto-organização política

A necessidade de superar este desafio de sustentabilidade tem conduzido as práticas de economia solidária na direção de um maior investimento no plano

do seu processo de estruturação política como campo. Neste sentido, mais do que iniciativas inovadoras e singulares em termos da abordagem econômica, o campo de uma economia popular e solidária no Brasil se impõe também, cada vez mais, enquanto um movimento de atores em busca de reconhecimento institucional. Este movimento reivindica direitos, interroga as políticas públicas e propõe outras. O objetivo é de propor uma mudança institucional na direção do reconhecimento de um outro modo de instituir a prática econômica. A expressão concreta desse movimento são seus modos de auto-organização política. Estes assumem duas formas principais: as redes e os fóruns. Porém, sendo os fóruns também formas de redes, trata-se então de dois modos de expressão de difícil distinção e que apresentam ainda a tendência a se articularem, o que remete a um debate político sobre o lugar de cada modo de auto-organização e suas relações tanto entre si quanto em relação aos poderes públicos.

Em primeiro lugar, as redes são formas de auto-organização mais evidentes e mais antigas. Elas consistem num associacionismo mais amplo, compreendendo um certo número de experiências concretas, assim como de organizações de fomento e apoio que compartilham valores e regras comuns. As redes se estendem em diferentes escalas, entre o local, o regional, o nacional e o internacional. Elas são as formas por excelência de organização dos movimentos associativos hoje. Tal característica comporta inovações importantes em relação à tradição de organização dos movimentos sociais e políticos, com implicações consideráveis no plano da tomada de poder nestas instituições, o que representa uma mudança grande em relação às estruturas anteriores que eram muito hierárquicas. Neste sentido, parece instituir-se novas modalidades de estabelecimento do ato político.

As redes guardam um traço político forte ao constituírem-se a partir exclusivamente das próprias

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experiências oriundas da sociedade. Elas situam-se assim de modo muito independente em relação aos poderes públicos. Entretanto, levando-se em consideração o lugar cada vez mais importante assumido pelo tema da economia solidária no interior de certas estruturas de governo, que decidem pela criação de políticas públicas para economia solidária, uma relação de interdependência tende a estabelecer-se com os poderes públicos em temos da instauração de novos espaços de intercâmbio e troca de experiências comuns. É assim que fora criada recentemente a rede nacional de gestores de políticas públicas de economia solidária, cuja dinâmica vem testemunhar a complexidade deste campo.

Os fóruns, por sua vez, são também espaços de reunião de atores, entretanto num sentido um pouco mais ampliado, pois supondo também a participação de representantes de instituições públicas de Estado. Ao mesmo tempo em que reinvidicam sua autonomia enquanto espaço de atores da sociedade civil, os fóruns abrem-se para uma relação de interdependência em relação aos poderes públicos.

Da mesma forma que as redes, os fóruns representam espaços de aglutinação de atores para discussão dos seus problemas comuns. O objetivo é de tornar mais legítimo o campo da economia solidária ao tentar fortalecer seu desenvolvimento. Para tanto, a relação com os poderes públicos torna-se importante. É assim que os fóruns se impõem como interlocutores privilegiados do movimento de economia solidária junto ao Estado e, especialmente, a Secretaria Nacional para Economia Solidária – SENAES. Para além de ações pontuais relativas à organização de um movimento de atores com origens bastante diversificadas, a tarefa principal atribuída aos fóruns parece ser aquela de poder intervir com mais força na construção de políticas públicas através do encaminhamento de proposições. Neste nível, os fóruns encontram um espaço razoável

para poder desempenhar um papel decisivo na mudança institucional indispensável para a consolidação deste campo, que diz respeito justamente à instituição de um quadro de regulação jurídico-político (marco legal), permitindo legitimar e fortalecer a especificidade das práticas de economia solidária.

Em resumo, os fóruns, como as redes, apresentam um caráter ao mesmo tempo militante e de assistência técnica. Os fóruns são também espaços de reunião dos atores, porém num sentido mais abrangente em relação às redes, pela presença e participação de representantes dos poderes públicos governamentais. Ao mesmo tempo em que reivindica sua autonomia enquanto espaço de atores da sociedade civil, os fóruns constituem-se como espaços de intermediação em relação ao Estado. Tais espaços reagrupam, desse modo, o conjunto das diversas partes que participam de um movimento de economia solidária (entre pesquisadores, entidades de apoio e fomento, gestores públicos e os próprios atores) cujo engajamento nos fóruns ocorre de maneira fundamentalmente voluntária.

Portanto, no nível das redes e dos fóruns, de algum modo, esse campo da economia solidária, que é um campo em construção, conseguiu dar sinais de um certo progresso significativo no sentido de uma institucionalização necessária para essas práticas. Isto porque, a mudança da realidade e a promoção do desenvolvimento supõe um salto da sobrevivência para a sustentabilidade das iniciativas criadas. Isto quer dizer sair da condição de precariedade e conseguir impactar no contexto mais geral da realidade onde atua, para além dos benefícios apenas daqueles mais diretamente envolvidos (o pequeno grupo pilotando uma iniciativa ou empreendimento). Para tanto, o fortalecimento de um marco institucional é de grande importância, em complemento à espontaneidade das iniciativas.

Os fóruns, de certo modo, dão um pouco a mostra de um maior grau de institucionalização do campo, pois

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já conseguem promover um processo de interlocução política. Mas, ao mesmo tempo, eles têm um papel difícil, porque tentam unificar algo que não é unificado por natureza, já que as práticas são heterogêneas. Isto porque a Economia Solidária reúne atores com características e origens distintas, práticas também diferentes, sob alguns ângulos, e que tentam, de algum modo, unificar-se. Trata-se de um processo muito difícil, doloroso às vezes. A história ainda muito recente dos fóruns estaduais revela níveis de conflito e de desgaste importantes, porém tal dinâmica é parte constitutiva do processo de organização social e política de um movimento, acabando por funcionar como um processo de aprendizado da democracia para os diversos atores.

Em suma, as formas de auto-organização política da economia solidária sugerem que existem, nesse campo, atores em movimento. É nesse nível que parece podermos pensar a economia solidária como uma forma específica de movimento social (França Filho, 2006c). Um movimento social, ao que parece, de tipo radicalmente novo, pois operando por dentro da economia.

Sobre a participação dos poderes públicos

Se o campo da economia solidária no Brasil tem evoluído de formas de auto-organização socioeconômica inovadoras para modos de auto-organização políticos também inéditos no âmbito da sociedade civil, hoje tal dinâmica parece complexificar-se e enriquecer-se ainda mais com uma participação cada vez maior dos próprios poderes públicos. A expressão mais acabada dessa relação tem sido o aparecimento e multiplicação recente das políticas públicas dedicadas ao assunto, sobretudo no nível de prefeituras municipais.

O crescimento progressivo de tais políticas no Brasil levou ao surgimento de um novo ator neste campo, com importante papel a desempenhar: trata-se da rede brasileira de gestores de políticas públicas de economia solidária. De pouco mais de duas dezenas de representações quando do seu surgimento em 2004, esta rede reúne hoje mais de uma centena de representações, refletindo o número em franco crescimento de experiências de políticas públicas de economia solidária em curso no país atualmente.

Este crescimento súbito não acontece sem problemas: o tema da economia solidária é muitas vezes capturado no interior de certas estruturas de governo como mais um modismo, apoiando-se em alguns casos em bases muito frágeis de tratamento da questão da geração de trabalho e renda (França Filho, 2006b). Porém, um dos papéis mais importantes da rede brasileira de gestores

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em parceria com a SENAES e outros atores como a Fundação Josué de Castro é exatamente esse nivelamento necessário na compreensão do tema, que passa por um intenso programa de formação dos gestores públicos em seus diferentes níveis.

De todo modo, há de se ressaltar, com base em algumas experiências em curso, a vocação importante de tais políticas em redefinir as relações entre sociedade civil e poder político no caminho de sua maior democratização, ampliando efetivamente nossa forma de conceber e realizar ação pública. Isto precisamente em função de um aspecto característico basilar na concepção e implementação de tais políticas, aparecendo de modo mais evidente naquelas experiências mais exitosas até aqui, que diz respeito a necessidade de interações recíprocas entre o poder público e outros atores. Tais interações ou parcerias e articulações tendem a ocorrer em dois níveis. O primeiro deles concerne às articulações com os próprios atores da sociedade civil, compondo o campo da economia solidária e seus espaços públicos constituídos, como os fóruns, que se tornam interlocutores diretos na concepção, implementação e avaliação da política. O segundo aspecto diz respeito à vocação de tais políticas em suscitar interações dentro da própria estrutura de governo e máquina pública, incitando ao diálogo e à ação conjunta de secretarias, por exemplo. Isto se deve precisamente à natureza dos problemas mobilizados em matéria de economia solidária, implicando transversalidade de tratamento. Conforme sublinha Schwengber (2006), “essa política demanda ações transversais que articulem instrumentos de várias áreas (educação, saúde, trabalho, habitação, desenvolvimento econômico, saúde e tecnologia, crédito e financiamento, entre outras) para criar um contexto efetivamente propulsor da emancipação e sustentabilidade”. Evidentemente que tais características muitas vezes permanecem uma grande intenção, sem efetiva realização prática, pelas dificuldades próprias à

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natureza da relação política profundamente conflitual, seja no interior de uma máquina de governo, seja entre o poder público e os atores da sociedade civil. Contudo, trata-se aqui de um horizonte começando a desenhar-se como prática e aprendizado para muitos atores em algumas experiências que já caminham nesta direção, por isso deve aqui ser salientado como uma vocação para o conjunto de tais políticas.

Importa salientar ainda que este caráter de transversalidade no modo de intervenção de tais políticas acima mencionado decorre de uma segunda vocação forte delas que é sua propensão a constituir-se como políticas de desenvolvimento. Ao dirigir-se a um público historicamente excluído, tais políticas respondem a demandas efetivas do campo mais estruturado da economia solidária, mas também induzem processos de auto-organização coletiva e solidária. Neste sentido, a dimensão de política de geração de trabalho e renda numa perspectiva sustentável-solidária (França Filho, 2006b) próprio a tais políticas associa-se diretamente a uma concepção de desenvolvimento pelo enfoque territorial e de visão e regulação da economia consubstanciado a essa idéia de geração de trabalho e renda.

Em resumo, as práticas de economia popular e solidária no Brasil ganharam em complexidade nos últimos anos, afirmando-se como um campo de atores inventando soluções muito inovadoras entre o econômico e o político para a resolução dos problemas cotidianos enfrentados em seus respectivos territórios como decorrência dos processos de exclusão social. De iniciativas originais no plano socioeconômico; em que se afirma também uma dimensão política forte, seja através da democratização das relações de produção na direção de processos autogestionários, seja com a afirmação de um tipo novo de espaço público de proximidade naquelas experiências em que se vivencia um outro modo de instituir a economia nos territórios

através de processos de construção conjunta da oferta e da demanda; surgem em seguida formas de auto-organização política indicando a constituição de espaços públicos de um segundo nível (França Filho, 2006a) em relação àqueles de proximidade; e, finalmente, conhecemos mais recentemente a multiplicação crescente de políticas públicas de economia solidária, inaugurando-se mais um fato novo na dinâmica deste campo, uma vez que tais políticas interveem no seio de espaços públicos em diferentes níveis, redefinindo as relações entre sociedade civil e poder político, numa abordagem ampliada da ação pública.

Da economia popular à economia popular e solidária

Reside precisamente neste aspecto, nos parece, o maior desafio para a consolidação desse campo de práticas. Ou seja, como tornar sustentável iniciativas socioprodutivas de base coletiva, democrática e solidária num marco institucional dominado pela norma da competição e da heterogestão? Como tornar perene o exercício prático de uma outra economia no contexto de um sistema à predominância de economia de mercado? O que significa ser viável em matéria de economia solidária? Que estratégia deve guiar o caminho das práticas de economia solidária neste contexto: radicalizar a disputa com o capital investindo na competitividade dos EES ou construindo modos próprios de institucionalização de um outro agir econômico com base em regulações territoriais centradas no papel das associações locais entre produtores e consumidores (ou redes de economia solidária)?

Para uma compreensão mais fina desse desafio é preciso ressituar o contexto de uma economia solidária brasileira, especialmente na sua relação com uma tradição mais antiga de economia popular que parece exercer forte influência na constituição de grande parte

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das práticas neste campo. Os limites e fronteira entre as duas noções deve esclarecer o sentido da expressão economia popular e solidária.

A economia popular diz respeito a um conjunto de atividades de produção, comercialização ou prestação de serviços efetuadas coletivamente (e sob diferentes modalidades do trabalho associado) pelos grupos populares, principalmente no interior de bairros pobres e marginais das grandes cidades latino-americanas. Tais grupos se estruturam, em geral, de modo bastante informal e encontram nas relações de reciprocidade tecidas no cotidiano de suas formas de vida (ou seja, nos próprios laços comunitários) os fundamentos para tais práticas.

Esta economia popular permite a geração de trabalho para aqueles que estão às margens dos circuitos formais da economia, constituídos principalmente pelas esferas do Estado e do mercado. Entretanto os níveis de renda que se obtém são bastante frágeis, garantindo, na maioria dos casos, apenas a sobrevivência dos grupos implicados em tais projetos. O desafio desta economia popular consiste, então, na possibilidade de ultrapassar este plano de uma chamada “reprodução simples” das condições de vida, na direção de uma chamada “reprodução ampliada”. O que ocorre quando as atividades empreendidas impactam sobre as próprias condições de vida mais gerais das pessoas, isto é, seu plano socioterritorial maior, como a melhoria da infraestrutura urbana, por exemplo. Este desafio é próprio ao projeto de uma economia popular e solidária e deve ser aqui assinalado em razão precisamente de certas qualidades (ou características) próprias a esta economia popular.

Tais qualidades compreendem um conjunto de aspectos que encontram-se absolutamente indissociáveis uns dos outros. Um primeiro desses aspectos concerne a questão da participação ou engajamento das pessoas nos projetos, o que remete ao grau de mobilização popular inerente a tais projetos. Uma segunda qualidade

diz respeito ao modo de organização do trabalho, que encontra-se essencialmente baseado na solidariedade. Este registro da solidariedade, que é próprio ao trabalho comunitário, vem acompanhado, na maioria dos casos, de uma série de outros princípios ou valores, servindo de guia para a condução das práticas, como a cooperação e a gestão democrática dos projetos.

Neste sentido, de afirmação da solidariedade no interior mesmo da elaboração das práticas econômicas, a economia popular representa uma espécie de prolongamento das solidariedades ordinárias que são tecidas no interior dos grupos primários. Algumas dessas manifestações são bastante visíveis nos meios populares, conforme revelam as práticas mais conhecidas sob o título de mutirão. O mutirão é uma forma de auto-organização popular e comunitária (coletiva e solidária) para a concretização de projetos ou para a resolução de problemas públicos concretos vividos pelas pessoas no seu cotidiano. Ele consiste em associar o conjunto dos moradores de uma comunidade na realização dos seus próprios projetos coletivos. Os exemplos concernem à construção de equipamentos públicos ou às próprias casas, além de muitos outros. Trata-se, efetivamente, da implantação de atividades que são completamente indissociáveis da vida social do bairro. O final de um dia de trabalho em mutirão costuma sempre terminar numa grande festa coletiva popular, marcada em geral pela feijoada.

Percebe-se ainda nestas práticas a força da dimensão não monetária. Porém, importa salientar que esta economia popular não recobre o conjunto das atividades desenvolvidas nos meios populares. Neste sentido, importa sublinhar a diferença dessa economia popular em relação a outros modos de atividades econômicas oriundos dos setores populares, como por exemplo o que representa a economia informal. Esta compreende, sobretudo, iniciativas individuais, sem relação com tradições locais nem

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com laços comunitários. Ela representa uma espécie de simulacro das práticas mercantis oficiais, pois trata-se de reproduzir tais práticas e a lógica que as acompanha, porém sem adoção do registro legal – o que permitiria o acesso a direitos.

De uma certa maneira, a economia popular constitui um dos componentes dessa imensa economia dos setores populares, que além da economia informal e da própria economia popular, compreende ainda outras modalidades muito variadas de comércio subterrâneo ou ilícito repousando sob o registro de solidariedades despóticas. Neste sentido, um dos exemplos mais emblemáticos é sem dúvida aquele da organização do tráfico de drogas em certas favelas na periferia de grandes cidades brasileiras. Esta economia do tráfico, baseada em formas de violência extrema, permite, em grande parte dos casos, a garantia de níveis de renda bastante significativos para aqueles ali envolvidos – o que explica

em parte todo o seu poder de sedução em relação a certas categorias da população de excluídos, em especial o público jovem.

Assim, buscar as vias de superação de uma lógica de economia popular apenas, parece constituir precisamente o projeto de uma economia popular e solidária atualmente. O desafio, portanto, desta economia popular e solidária consiste na aquisição de um certo nível de institucionalização de tais práticas, a fim de impactar de modo mais decisivo sobre o meio ambiente social e político dos locais onde se inscreve, ao mesmo tempo em que se preserva suas qualidades de base como a solidariedade, o trabalho comunitário, a cooperação e a gestão democrática dos projetos.

Considerações Finais: religando fundamentos, contexto e casos

Em relação a que contexto se situa uma plataforma sustentável-solidária?

A busca de alternativas ou caminhos para a promoção do desenvolvimento tem se tornado uma preocupação constante nos últimos anos em razão do contexto bastante específico da dinâmica do capitalismo contemporâneo. Ou seja, com o recrudescimento do desemprego em muitos países, especialmente a partir do início dos anos 80, as sociedades contemporâneas conhecem um fenômeno novo, batizado por muitos analistas pela expressão “crise do trabalho”.

Existem muitas formulações para este problema (Guy Aznar, 1993; J. Rifikin, 1995; A. Gorz, 1988 e 1997; R. Castels, 1995; De Masi, 1999; Laville, 1994 e

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1997). A título de ilustração importa sublinhar dois aspectos relativos à realidade brasileira e europeia respectivamente:

P. Singer, pensando no caso da economia brasileira, constata ao final dos anos 90 uma dinâmica que ele chama de “desassalariamento da economia”: de cada 10 postos de trabalho gerados naquele momento no Brasil, apenas 3 eram de carteira assinada. Nos últimos anos, o Brasil conhece um processo de recuperação do chamado emprego formal que é significativo, modificando o dado anterior. Contudo, o tamanho do défict de trabalho formal no Brasil continua extremamente elevado, refletido no tamanho da informalidade aqui existente, o que aponta um horizonte de superação deste déficit quase impossível, pois supõe taxas de crescimento econômico acima de 10% ao ano durante pelo menos duas décadas;

Na Europa discute-se um paradoxo: o emprego vai perdendo pouco a pouco sua centralidade, muito embora persista sendo considerado e tratado como principal vetor de integração social, isto é, referência fundamental e principal elemento de constituição das identidades individuais e coletivas. Ou seja, de garantia de reconhecimento social das pessoas. É precisamente esta situação que traz para o centro do debate público nestes países um problema definido em termos de crise na construção dos vínculos sociais, ou seja, uma crise relativa à construção da sociabilidade das pessoas, ensejando graves problemas relativos à exclusão social.

Assim, nos países de capitalismo avançado, onde as economias de mercado revelam fortes graus de saturação, esta questão se transforma num grande drama social, conforme explicitado por R. Sennet (1999) pensando na realidade norte-americana, ou ainda, R. Castels (1995) refletindo sobre o caso francês.

Já nos países das chamadas “economias emergentes”,

ação,

na 5)

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dado o grau inferior de saturação de suas economias de mercado, aposta-se ainda firmemente na capacidade destas (via crescimento econômico) em responder a tal problemática. A via encontrada neste caso passa pela afirmação da ideia de inserção pelo econômico, apoiada nas noções de empreendedorismo e microcrédito.

Face a esta crise do trabalho, consideramos portanto que duas grandes avenidas de resposta se apresentam. Tais caminhos, que aqui chamaremos respectivamente de “via insercional-competitiva”, de um lado, e de “via sustentável-solidária”, do outro, refletem duas grandes éticas orientando soluções de combate ao desemprego ou de promoção do desenvolvimento local: uma ética da competição em oposição a uma ética da cooperação.

A primeira, herdeira da filosofia moral utilitarista nascida no século XVIII na Grã-Bretanha, acabou por influenciar fortemente grande parte do pensamento econômico clássico, especialmente aquele de matriz Smithiana. Segundo o princípio utilitarista, considera-se ser justo, bom e mesmo desejável que cada indivíduo busque satisfazer suas necessidades egoísticas, pois assim a sociedade encontraria seu bem estar social e a felicidade.

Trata-se aqui do fundamento da ideia de individualismo moderno que tanta influência causa nas mentalidades de hoje. Não parece desnecessário lembrar que este tipo de fundamento encontra-se na base das soluções mais comumente encontradas hoje como caminho para o combate à pobreza e promoção do desenvolvimento que se articulam em torno do que chamaremos aqui de uma concepção insercional-competitiva.

Em relação a que tipo de abordagem se opõe:

a via insercional-competitiva

O que estamos aqui definindo como uma concepção insercional-competitiva diz respeito às soluções construídas em torno da ideia de inserção pelo econômico.

O que isto signi!ca?

Buscar inserir a população desempregada nos chamados circuitos formais da economia, constituídos, sobretudo, pelos postos de trabalho gerados nas empresas privadas, e subsidiariamente, nas instituições públicas de Estado em seus mais variados níveis, via concurso público quando acontece.

Esta visão de inserção pelo econômico apoia-se num diagnóstico bastante específico sobre as razões do desemprego: trata-se de pensar que este é devido fundamentalmente a um problema de desqualificação da mão de obra ou força de trabalho. Neste intuito, a inserção pelo econômico compreende uma questão de melhoria das condições de empregabilidade da população para assumir os postos de trabalho supostamente disponíveis na chamada economia de mercado.

Esta visão revela-se muito congruente com a própria tradição mais antiga de tratamento do desemprego no país, quando as políticas de trabalho praticamente resumiam-se a uma questão de oferta de cursos de qualificação profissionalizantes em massa, contando neste caso com forte apoio do chamado setor patronal através do papel ativo das instituições do “sistema S” na oferta de tais cursos.

Em que pese a influência importante do problema da baixa qualificação profissional afetando a dinâmica do desemprego, o fato, por outro lado, de negligenciar-se em tal diagnóstico as causas estruturantes do desemprego como fazendo parte da própria dinâmica mais geral de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, revela os limites da solução insercional-competitiva. Isto porque, ao “depositar todas as fichas” na capacidade da economia de mercado em absorver o contingente muito elevado de desempregados existentes, a lógica da inserção pelo econômico não cessa de acumular sucessivos fracassos no tratamento do desemprego, haja vista o problema crônico de reprodução da pobreza via falta de trabalho para todos.

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Em outras palavras...

Trata-se de uma via que não reconhece o caráter intrinsecamente excludente na dinâmica da própria economia de mercado via acumulação capitalista, e assim não consegue enxergar soluções para além de um paradigma de mercado cujo corolário é o crescimento econômico.

A cegueira de visão neste caso impede a percepção de que mesmo imaginando a hipótese de um incremento súbito de qualificação da massa trabalhadora no Brasil, a economia de mercado não seria capaz de suportar ou abrigar estes novos trabalhadores qualificados.

Diante das evidências deste tipo de argumento crítico, somadas as próprias constatações relativas aos limites da economia de mercado na absorção e geração de empregos, a concepção insercional-competitiva se renova e reatualiza sua interpretação da realidade. E assim, coloca-se uma indagação fundamental expressa nos seguintes termos:

Quando a economia de mercado não supre ocupação para todos, pois a oferta de trabalho acaba sendo inferior a sua demanda, o que fazer?

Assim, a reatualização de uma concepção insercional-competitiva passa pela construção de um novo discurso enfatizando o que chamaríamos de “a magia do empreendedorismo” associado às “virtudes do microcrédito”.

Ou seja...

Quando se reconhece a incapacidade do mercado em gerar emprego formal para todos, a solução dentro dos limites de paradigma econômico atual se concentra, então, na chamada geração do auto-emprego ou criação do próprio negócio. A ideia, dito de maneira simplificada, consiste em buscar transformar ex-assalariados em situação de desemprego em novos detentores de micro e

pequenos negócios ou empreendedores.O discurso sobre as virtudes do empreendedorismo

passa, então, por uma valorização tão elevada que acaba por induzir uma certa banalização dessa ideia. É assim que em nome das qualidades da prática empreendedora (relativas a inovação, inventividade, flexibilidade, entre outros adjetivos) esquece-se os riscos inerentes ao ato de empreender de forma privada. Entre estes destaca-se seu caráter antropofágico, isto é, não há espaço para todos que empreendem numa economia de mercado em razão da própria natureza competitiva de tal iniciativa.

Os dados do Sebrae relativos à longevidade de micro e pequenos negócios revelam-se eloquentes: 90% de tais iniciativas não resistem aos primeiros cinco anos de vida.

É precisamente este tipo de característica que nos leva a interrogar o caráter sustentável de tal tipo de solução.

Apesar dessas evidências empíricas, a aposta em soluções ou saídas individuais para o problema do desemprego não perdeu fôlego. A força do discurso do empreendedorismo parece residir em dois grandes aspectos:

As qualidades inerentes à ação de empreender (inovação, criatividade, flexibilidade, disposição, espírito de iniciativa etc.);

Sua associação com as chamadas “virtudes do microcrédito”. Microcrédito este que, num primeiro momento, é valorizado apenas enquanto forma de democratização do crédito para os excluídos do sistema financeiro e depois é acrescido da preocupação em ser “orientado”, ou seja, acompanhado de assistência técnica.

Assim, a associação entre as ideias de empreendedorismo e microcrédito relaciona-se ao próprio fato de grandes instituições financeiras internacionais (como FMI ou BID, entre outras), já nos anos 80, passarem a difundir a importância do

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emprendedorismo e do microcrédito como grande solução para a crise do trabalho pela possibilidade de incluir os mais pobres.

É assim que a imagem da economia informal no terceiro mundo salta da condição de vilã do sistema (como era comum até o final dos anos 70) para uma valorização acrítica das supostas virtudes a ela associadas, como inventividade ou flexibilidade adaptativa, numa espécie de apologia a um “capitalismo de pés-descalços”.

Esse contexto de popularização do microcrédito por grandes instituições financeiras internacionais é motivado também pela visibilidade de algumas experiências de grande impacto, como o caso da Grameen Bank em Bangladesh, e atrai o interesse do setor financeiro privado. A entrada de grandes bancos privados no campo do microcrédito, através de um processo mais conhecido como “bancarização dos mais pobres”, representou a descoberta de um novo nicho mercadológico para as instituições financeiras convencionais, sacramentando assim a aparição de um novo fenômeno na dinâmica do capitalismo contemporâneo: “a indústria da microfinança”.

Contudo, essa “bancarização dos mais pobres” fomentada por uma “indústria do microcrédito”, embora passe a exercer forte influência no campo das microfinanças, não encerra a totalidade de tais práticas, e ainda, obscurece a visão sobre uma série de outras experiências de finanças de proximidade ou de finanças solidárias que ampliam o universo das microfinanças. Porém, neste caso já estaríamos entrando em exemplos de soluções que aqui denominamos de sustentável-solidárias.

Em que consiste a via sustentável-solidária?

Tal concepção parte da premissa segundo a qual em termos de combate à pobreza ou promoção do desenvolvimento local as saídas ou soluções não

podem ser individuais, ou seja, baseadas numa suposta capacidade empreendedora individual. Mas, ao contrário, considera-se que se as razões para o problema da falta de trabalho encontram motivos, sobretudo, de natureza estrutural, logo, suas soluções de enfrentamento devem ser coletivas, isto é, baseadas em novas formas de regulação das relações econômico-sociais.

E assim, tal concepção enfatiza a importância dos territórios. Ou seja, aposta-se na capacidade dos territórios em serem sustentáveis, mesmo aqueles aparentemente mais carentes. Considera-se como premissa fundamental nesta visão a valorização de soluções endógenas a partir da ideia de que todo local, bairro ou comunidade, por mais pobre que seja, pode ser portador de soluções para os seus próprios problemas. Afinal de contas, qual solução pode ser considerada sustentável se não estiver assentada nas próprias raízes locais?

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Em outras palavras...

Uma tal solução questiona as formas de desenvolvimento baseadas exclusivamente na atração de investimentos externos.

O modo de realização desta concepção sustentável-solidária passa pela ideia de reorganização das chamadas economias locais, com base na afirmação do conceito de rede de economia solidária enquanto estratégia complexa e inovadora de cooperação para promoção do desenvolvimento local.

Uma rede de economia solidária significa uma associação ou articulação de vários empreendimentos e/ou iniciativas de economia solidária com vistas a constituição de um circuito próprio de relações econômicas e intercâmbio de experiências e saberes formativos. São dois os principais objetivos de uma rede de tal natureza:

Permitir a sustentabilidade dos empreendimentos e/ou iniciativas de economia solidária em particular;

Fortalecer o potencial endógeno de um território na sua capacidade de promoção do seu próprio processo de desenvolvimento.

Em termos tipológicos, as formas de manifestação de uma rede de economia solidária podem se dar de três maneiras:

Transterritorial: uma rede desse tipo pode envolver uma articulação de vários empreendimentos atuando na cadeia produtiva de determinado produto, a exemplo do que ocorre na cadeia do algodão através da rede constituída em torno dos bens de vestuário produzidos pela marca “justa trama”. Ela pode envolver também acordos e contratos bilaterais (ou multilaterais) entre iniciativas ou organizações em diferentes áreas ou níveis de atuação, a exemplo do comércio justo. Este tipo de rede

pode envolver, ainda, empreendimentos de um mesmo tipo que compartilham princípios, saberes e um modo de funcionamento próprio, muito embora preservem sua autonomia enquanto organização individual fruto de um contexto particular, a exemplo da rede brasileira de bancos comunitários.

Territorial: uma rede de economia solidária envolve, numa mesma base territorial, a articulação de empreendimentos e/ou iniciativas de economia solidária em diferentes âmbitos de atuação: consumo ético, finanças solidárias, tecnologias livres, comércio justo, produção autogestionária e serviços locais, entre outros. Neste sentido, este tipo de rede supõe articulação entre iniciativas de distintas naturezas: socioeconômicas, sociopolíticas, socioculturais e socioambientais. Além disso, ela admite diferentes níveis de articulação com a economia local preexistente ou já estabelecida.

Mista: já que esta supõe uma dimensão terrritorial, porém envolvendo parcerias e articulações transterritoriais. Na prática, as redes locais de economia solidária tendem ao caráter misto, pelo fato de que raramente se encontra alguma experiência limitada a um âmbito geográfico específico, por razões inclusive de sustentabilidade da própria rede, que tende a conectar-se com outras redes através da expansão de suas atividades.

Fundamentos da via sustentável-solidária: na direção de uma visão de economia plural

As redes de economia solidária podem ser vistas como uma estratégia para um outro tipo de desenvolvimento. Além disso, elas representam a expressão concreta

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de uma via sustentável-solidária na promoção do desenvolvimento local. A compreensão dos fundamentos de uma tal concepção, bem como este tipo de estratégia, só parece possível através da adoção de uma outra visão ou paradigma de entendimento do fato econômico e seu funcionamento real, ensejando a necessidade de redefinição ou ressignificação acerca do sentido do agir econômico em sociedade.

Para tanto, dois conceitos em torno da ideia renovada de economia plural parecem de fundamental importância nesta construção de uma outra visão de economia. Trata-se das noções de hibridação de economias, supondo a combinação de lógicas econômicas diversas, de um lado, e a noção de construção conjunta da oferta e da demanda, do outro, conforme visto antes. Importa destacar como essa discussão encontra o debate Polanyiano (1975) acerca das definições formalista e substantiva de economia.

De fato, a compreensão da natureza singular das práticas de rede de economia solidária supõe uma desconstrução da concepção habitual sobre o fato econômico que identifica a noção de mercado ou troca mercantil. Ao menos duas implicações problemáticas podem ser constatadas em decorrência dessa definição, indicando seu caráter reducionista:

A primeira diz respeito ao pressuposto de escassez, caracterizando a realidade e meio ambiente econômico a priori, através da ênfase sobre a noção de recursos raros;

A segunda é relativa à visão de natureza humana, cujo comportamento reduz-se a uma questão de escolha racional, como se o próprio da ação e conduta humana fosse de proceder sempre a um “cálculo utilitário de consequências”, segundo a expressão de Guerreiro Ramos (1981). Em suma, tal definição formalista de economia baseia-se na axiomática do interesse (Caillé, 2002).

A definição substantiva, por outro lado, ainda neste sentido Polanyiano, compreende a economia como “um processo institucionalizado de interação entre o homem e a natureza, que permite um aprovisionamento regular de meios materiais para satisfação de necessidades” (Caillé, 2003). Este sentido substantivo relaciona-se à concepção aristotélica de economia e à própria etimologia da palavra economia, remetendo a noção de ciência da boa gestão da casa (Oikós), ou das condições materiais de existência.

Inspirados numa concepção muito próxima desta, os economistas clássicos ingleses (incluindo Marx) vão enxergar a economia política como o estudo científico da produção, da troca e da distribuição da riqueza material, ou ainda, conforme resume Caillé (2003), “a ciência dos sistemas econômicos, entendidos como sistemas de produção e de intercâmbio de meios para satisfazer necessidades materiais”.

Conclusão: como construir uma tal via e quais os seus principais desa�os

Vimos há pouco que a concepção sustentável-solidária de combate à falta de trabalho requer um foco de visão territorial com ênfase na reorganização das economias locais a partir da centralidade do conceito de rede de economia solidária. Contudo, a construção deste tipo de solução não supõe tarefa fácil e implica a superação de alguns desafios fundamentais.

De todo modo, passos ou ações significativas podem ser vislumbradas a partir de algumas experiências acumuladas no âmbito da incubação tecnológica de economia solidária.

O êxito em tais processos parece diretamente proporcional à conjunção de múltiplos fatores

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envolvendo a construção de arranjos institucionais de tipo novo, tais como:

Apoio institucional, especialmente no nível governamental, na direção de criação e fortalecimento de uma política pública para a economia solidária suportando iniciativas de construção de tais redes;

Metodologias apropriadas de formação e constituição de tais iniciativas em rede através da parceria com instituições especializadas neste âmbito, como incubadoras universitárias ou organizações não governamentais com notório saber neste campo;

Participação ativa de pessoas, grupos e entidades locais diretamente envolvidas no processo de reconstrução do seu próprio território.

No nível mais operacional, portanto, a implantação de uma rede local de economia solidária requer alguns processos fundamentais. Tais processos podem ser visualizados ainda como fazendo parte, metodologicamente, de uma dinâmica de incubação tecnológica.

A incubação de economia solidária supõe um processo de fortalecimento das capacidades locais na alavancagem do seu próprio processo de desenvolvimento. Trata-se de um arranjo institucional novo, supondo uma interação dinâmica entre atores sociais distintos (universidade-comunidade-sociedade), com base num princípio de reciprocidade na produção, transferência e difusão do conhecimento.

Então, quais os principais passos ao se implantar uma rede local de economia solidária?

Mobilização: primeiramente, é preciso que os atores se mobilizem no seu território para uma

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discussão pública dos seus problemas comuns. É importante estimular e fortalecer as iniciativas socio-organizativas enquanto suporte fundamental para as ações socioprodutivas que acontecerão na sequência. Isto porque, deve-se valorizar as mais diferentes manifestações em termos de constituição de espaços públicos locais, seja através de estímulo ao associativismo, seja através de constituição de fóruns locais, que representarão a base para o salto que o território poderá dar. Este momento de mobilização deve estar baseado na formação e capacitação das pessoas, com especial atenção para o aspecto pedagógico desta mobilização.

Diagnóstico: além da mobilização, este processo deve contar ainda com a realização de diagnósticos sobre a situação socioeconômica do território. Estes diagnósticos, baseados em estudos especificamente elaborados para tal finalidade, a exemplo da chamada pesquisa de mapeamento da produção e consumo local, permitem um levantamento de informações detalhadas sobre o modo de vida e a socioeconomia do lugar, indicando aspectos relevantes como hábitos de consumo e necessidades locais, além da capacidade produtiva e potencial de serviços, entre outros.

Ou seja...

Se o horizonte da transformação implica uma reorganização das economias locais, logo tais estudos constituem a base para a elaboração de planejamento localmente, no sentido de orientar a criação de atividades (as ofertas) em função de demandas genuínas expressas localmente. O planejamento aqui constitui a espinha dorsal de um processo de construção de redes locais, fortalecendo na sequência o próprio processo de sua implantação com ênfase na sustentabilidade territorial.

Como uma rede desse tipo se constrói não apenas a partir das novas iniciativas ou empreendimentos criados, mas também a partir do que já existe como economia local, um amplo esforço de mobilização do conjunto de tais atores faz-se necessário numa espécie de pacto territorial novo.

Nesse sentido, algumas práticas no campo das finanças solidárias ou de proximidade, tais como bancos comunitários de desenvolvimento, tem-se revelado particularmente expressivos na capacidade de fomentar e estimular tais redes e pactos a exemplo da necessidade de institucionalização de um sistema de microcrédito solidário, envolvendo circulação de moeda social e que dispõe de regras institucionais próprias sendo compartilhadas por todos que comercializam numa determinada área. Neste tipo de situação, a criação de fóruns econômicos locais representam um bom exemplo de novos pactos e arranjos sustentável-solidários de desenvolvimento.

Em resumo, pode-se considerar que o processo de concretização da via sustentável-solidária de desenvolvimento local requer ao menos quatro processos fundamentais em interação dinâmica: a) a mobilização e formação; b) a pesquisa; c) o planejamento; e, d) a própria montagem dos empreendimentos e implantação da rede. Tal processo na prática envolve alguns desafios fundamentais.

Quanto aos desa!os nesse processo...

Um dos desafios diz respeito à questão do marco legal ou marco regulatório das práticas de economia solidária. O fato de não haver uma legislação apropriada à realidade da Economia Solidária, tanto em termos de forma de organização, quanto de legislação trabalhista, obriga uma série de ajustes na construção das redes locais que acabam constrangendo e restringindo o potencial de mudança de tais propostas.

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Além disso, um outro desafio concerne à construção prática da Economia Solidária em termos de gestão das suas diferentes formas de manifestação. O obstáculo neste caso diz respeito à necessidade de elaboração e desenvolvimento de ferramentas apropriadas à gestão tanto das iniciativas em particular, quanto das redes locais. Na falta de um conhecimento de natureza aplicada sobre a lógica de funcionamento e gestão em economia solidária, importa-se metodologias e ferramentas de gestão oriundas do setor privado-mercantil (ou de uma tecnologia socialmente apropriada neste campo) cujo efeito é o forte risco de isomorfismo institucional, no sentido das organizações de economia solidária incorporarem a racionalidade do mercado e, assim, não atingirem os objetivos a que se propõem.

Aliada a esse problema, coloca-se a questão da formação e capacitação das pessoas envolvidas em iniciativas de Economia Solidária. Isto porque, como a maioria dos empreendimentos são de base popular, os déficits de escolaridade e capacitação das pessoas é grande. Isto quer dizer que a formação em Economia Solidária requer ainda uma restauração de conteúdos de formação básica e supõe aportes metodológicos muito específicos para a capacitação em gestão, pois envolve aspectos pedagógicos especiais ao tentar combinar uma formação técnica e política com saberes locais que devem ser respeitados.

Um outro desafio se coloca em relação ao modo específico de construção da sustentabilidade em rede de economia solidária. Neste, devem ser reafirmadas lógicas de hibridação de princípios econômicos distintos, conforme discutido antes, o que implica uma multiplicidade de fontes de captação e geração de recursos. Neste sentido, um forte potencial de desenvolvimento de redes reside na articulação entre princípios redistributivos e reciprocitários, ou seja, na linha de contratos públicos. Entretanto, a ausência de um marco legal específico neste âmbito impõe dificuldades muito grandes.

Finalmente, talvez o grande desafio se apresenta de

maneira indireta. Trata-se da mudança de mentalidade necessária em relação ao paradigma econômico convencional que considera o desenvolvimento exclusivamente associado à ideia de crescimento econômico centrado no mercado.

Muito embora os desafios acima que se impõem, importa salientar o potencial desta via sustentável-solidária enquanto avenida renovada de soluções para o problema da falta de trabalho. Neste intuito, destacamos a seguir três argumentos nesta direção:

a) Não se trata de uma lógica exclusivista. Ou seja, a dinâmica e lógica do mercado continua a ter seu espaço nessa agenda de desenvolvimento: é preciso pensar economia como economia plural e imaginar diferentes enclaves e institucionalidades na regulação da vida econômica e social;

b) Trata-se de uma abordagem que privilegia uma

intervenção territorial, baseada na ideia de reorganização das economias locais. Neste sentido, o conceito de rede de economia solidária e os circuitos próprios de relações de comercialização e consumo interrogam o imperativo da competitividade como motor do desenvolvimento, em prol de uma outra visão da sustentabilidade;

c) Atinge muito diretamente a questão das relações de sociabilidade nos territórios (com vistas ao seu fortalecimento e/ou reconstrução), além de considerar o conjunto das dimensões que compõe a vida das pessoas num território para além do aspecto econômico como: as formas de auto-organização político-associativo (dimensão sociopolítica); o resgate e afirmação de sentimentos de pertença e identidade local (dimensão sociocultural); e, a preservação ambiental e busca de soluções tecnológicas adequadas ao seu meio ambiente, além de socialmente apropriadas por todos (dimensão socioambiental).

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Aspectos jurídicos dos empreendimentos de

economia solidáriaIgor Loureiro de Matos

Gabriela da Luz Dias

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Apresentação

O presente trabalho consiste em módulo jurídico para formação técnica destinada a atores da Economia Solidária.

O ambiente econômico solidário demanda políticas públicas1 para promoção de seu desenvolvimento. O Estado da Bahia, através do Programa Bahia Solidária, empreende conjunto de ações públicas destinadas a auxiliar a criação, a consolidação, a sustentabilidade, o desenvolvimento e a expansão de Empreendimentos de Economia Solidária.

O domínio de conteúdo jurídico necessário ao funcionamento de Empreendimentos de Economia Solidária é essencial para o empoderamento da tecnologia pelos atores sociais.

Dessa forma, estamos certos de que os temas a seguir tratados serão de grande valia para o desenvolvimento das Organizações e das Comunidades Econômico Solidárias.

O desenvolvimento do módulo será feito em três fases, cada uma correspondente a um “Livro”. A primeira, denominada de “Primeiros Conceitos”, contém informações básicas introdutórias e foi redigida conjuntamente pelos autores.

A segunda fase, denominada “Notas de Direito Cooperativo”, veicula conteúdo sobre a disciplina jurídico-societária daquela que reputamos ser o modelo formal mais adequado aos princípios e práticas da Economia Solidária. A redação nasceu da lavra do Dr. Igor Loureiro de Matos e contou com acuidosa revisão pela segunda autora.

1. Sobre o conceito jurídico de políticas públicas, vide BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de Política pública em direito. in BUCCI, Maria Paula Dallari (org). Políticas Públicas: re�exões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006

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A terceira e última fase do módulo, denominada “Notas de Direito Associativo”, veicula a normas para constituição e funcionamento do modelo mais utilizado pelos Empreendimentos de Economia Solidária. A construção resultou da escrita da Dra. Gabriela da Luz Dias e contou com revisão pelo primeiro autor.

O escopo deste trabalho é elucidar dúvidas de natureza jurídica, corriqueiramente apresentadas por trabalhadores e trabalhadoras em Economia Solidária. Esperamos atender às expectativas do leitor e, informamos que sugestões e críticas podem ser remetidas aos endereços eletrônicos dos autores ([email protected] e [email protected]).

Livro I - Primeiros Conceitos

Empreendimento de Economia Solidária

Empreendimento de Economia Solidária é todo ente privado que atenda a princípios e práticas da Economia Solidária e tenha por objeto o desenvolvimento de atividade de trabalho, produção, consumo, poupança e/ou crédito.

No momento em que escrevemos o presente módulo, o Movimento Econômico Solidário confere maior relevância à substância que à formalidade. Em face disso, recepciona como ator toda sorte de organização, independentemente de sua natureza jurídica. Importante para ele é que atenda aos princípios e práticas da Economia Solidária.

Tais princípios e práticas são objeto de outros módulos da presente coleção, motivo pelo qual não haveremos de desenvolver o tema.

A questão a ser tratada neste volume é o delineamento jurídico dos Empreendimentos de Economia Solidária – EES.

Segundo o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária – SIES2, os Empreendimentos de Economia Solidária têm natureza heterogênea, de modo a se apresentarem como associações, cooperativas, sociedades em comum (antigas sociedades informais e de fato) ou outras formas societárias3.

Delineamento jurídico das organizações no direito brasileiro

Pessoa jurídica é organização a que a lei confere personalidade, permitindo ser sujeito de direitos e obrigações. Para constituição de uma pessoa jurídica, em geral, é necessário o preenchimento de três requisitos básicos: (1) vontade humana criadora, (2) observância das condições legais de sua formação e (3) liceidade dos seus propósitos.

No que se refere à sua atuação, as pessoas jurídicas podem ser classificadas como de direito público ou de direito privado. As primeiras se subdividem em pessoas de direito público interno ou externo.

As pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público (Organização das Nações Unidas, Cruz Vermelha...). Elas encontram-se tipificadas no art. 42, do Código Civil.

Entendem-se como pessoas jurídicas de direito público interno: a administração direta, nela compreendida a União, os Estados, Distrito Federal, Territórios e os Municípios; a administração indireta, entendendo-se como tais as entidades de caráter público legalmente constituídas, criadas propriamente para exercício de atividades de interesse público, tais como: as autarquias (ex. INSS, conselhos profissionais, Banco Central, Instituto Mauá, Ingá) e as associações públicas.

2. Instituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego, mediante Portaria nº. 30, de 20 de março de 2006, sob responsabilidade da Secretaria Nacional de Economia Solidária.3. Dados capturados no site http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies.asp

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São também pessoas jurídicas de direito público interno outras entidades de caráter público criadas por meio de lei.

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito

público interno:

I – a União;

II – os Estados, o Distrito Federal e os

Territórios;

III – os Municípios;

IV – as autarquias, inclusive as associações

públicas (Redação dada pela Lei nº. 11.107, de

2005);

V – as demais entidades de caráter público

criadas por lei.

Parágrafo único. Salvo disposição em

contrário, as pessoas jurídicas de direito

público, a que se tenha dado estrutura de

direito privado, regem-se, no que couber,

quanto ao seu funcionamento, pelas normas

deste Código.

Pessoas jurídicas de direito privado são aquelas regidas pelo direito civil. O artigo 44 do Código Civil descreve quais são as pessoas jurídicas de direito privado:

I - as associações;

II - as sociedades;

III - as fundações;

IV - as organizações religiosas (Incluído

pela Lei nº. 10.825, de 22.12.2003);

V - os partidos políticos. (Incluído pela

Lei nº 10.825, de 22.12.2003).

Nas lições do ilustre professor Caio Mário, podemos denominar como pessoa jurídica de direito privado:

Entidades que se originam do poder criador

da vontade individual, em conformidade com

o direito positivo e se propõem a realizar

objetivos de natureza particular, para benefício

dos próprios instituidores ou projetados no

interesse de uma parcela determinada ou

indeterminada da coletividade.

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São essas as organizações regulares no direito brasileiro.Entretanto, é necessário verificar o tratamento

dispensado pelo ordenamento jurídico às Organizações Informais, posto que fração relevante dos hoje mapeados Empreendimentos de Economia Solidária não possui sequer registro de ato constitutivo (ou seja, estatuto ou contrato social).

Organizações Informais

Organizações Informais são agrupamentos de sujeitos que não constituem pessoa jurídica para o exercício de atividade comum. Elas são organizações irregulares: existem de fato, mas não de direito.

O Código Comercial de 1850 e o antigo Código Civil Brasileiro, de 1916, não dispunham sobre Organizações Informais. Por isso, coube à doutrina jurídica o trato da matéria. Antigamente, classificavam-se as organizações informais em “sociedade de fato” e “sociedade irregular”.

Recentemente, entretanto, o Novo Código Civil dedicou os artigos 986 a 990 ao assunto. A lei civil agora chama as Organizações Informais de “Sociedade em Comum”, da qual passaremos a tratar.

Sociedades em comum

Nos termos do Novo Código Civil, a pessoa jurídica regular surge com o registro de seu ato constitutivo.

Art. 985. A sociedade adquire personalidade

jurídica com a inscrição, no registro próprio

e na forma da lei, dos seus atos constitutivos

(arts. 45 e 1.150).

Levando isso em conta, do ponto de vista jurídico, uma cooperativa, por exemplo, apenas surge quando seu

estatuto social é registrado em Junta Comercial.Ainda assim, a nova legislação reconhece que, de fato, há

um interregno entre a decisão de criar uma organização e o registro do ato constitutivo da pessoa jurídica. Por isso, cuidou a lei civil de regular essa organização informal, agora chamada de “Sociedade em Comum”.

Segundo Celso Marcelo de Oliveira, a sociedade em comum é qualquer sociedade que explora uma atividade econômica e que ainda não está registrada4.

O Novo Código Civil prevê, portanto, a existência de uma sociedade despersonificada enquanto não inscritos os atos constitutivos no registro próprio5.

Disciplina jurídica das Sociedades em Comum

O reconhecimento da existência de fato da Sociedade em Comum foi construída, sobretudo, como uma maneira de proteger possíveis credores.

A disciplina jurídica das Sociedades em Comum foi engendrada mais para defender os interesses de terceiros do que dos integrantes da Organização Informal. Trocando em miúdos, verifica-se que apenas três pontos foram disciplinados pelo capítulo do Novo Código Civil dedicado às Sociedades em Comum: (1) prova da existência da organização, (2) natureza jurídica dos bens e das dívidas sociais, e (3) responsabilidade dos sócios.

Prova da existência da organização

A primeira preocupação do legislador foi indicar como deve ser comprovada a existência de uma sociedade em comum.

Conforme expressamente disposto na lei, os membros da Organização Informal apenas podem comprovar sua existência através de documento escrito. Por outro

4. OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de Direito Empresarial: volume I – Campinas: LZN, 2004, p. 129.5. Vide CATEB, Alexandre Bueno. A Sociedade em Comum. In RODRIGUES, Frederico Viana (coord). Direito de Empresa no Novo Código Civil – RJ: Forense, 2004, pág. 152.

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lado, o terceiro (ou seja, o sujeito que não for membro da Organização Informal) poderá fazer uso de todo meio de prova existente, inclusive testemunhas:

Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou

com terceiros, somente por escrito podem

provar a existência da sociedade, mas os

terceiros podem prová-la de qualquer modo.

Em vista disso, sempre que um integrante de Organização Informal quiser provar um crédito ou um direito, deverá fazê-lo mediante documento escrito. Todavia, sempre que um terceiro quiser demonstrar um débito ou uma obrigação da Organização Informal, poderá fazê-lo por qualquer meio de prova.

Natureza jurídica dos bens e das dívidas sociais

Os bens e as dívidas da Organização Informal são considerados patrimônio especial:

Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem

patrimônio especial, do qual os sócios são

titulares em comum.

À vista do fato de não ser dotada de personalidade jurídica, entende-se que o acervo patrimonial da Organização Informal é titularizado pelos integrantes da planejada instituição6. Por isso, em se desfazendo a mesma, ainda que antes de registrado seu ato constitutivo, o remanescente há de ser partilhado entre os seus membros.

Em face da insegurança que uma Sociedade em Comum representa para a ordem jurídica, entende-se que todos os bens desse patrimônio especial respondem por atos de gestão praticados por qualquer de seus membros,

ressalvados os casos em que forem expressamente limitados os poderes de cada integrante. Ainda assim, quando o ato de gestão tiver constituído crédito em favor de terceiro, a este apenas poderá ser exigido o respeito à limitação de poderes quando for de seu conhecimento a limitação.

Art. 989. Os bens sociais respondem pelos

atos de gestão praticados por qualquer dos

sócios, salvo pacto expresso limitativo de

poderes, que somente terá e$cácia contra o

terceiro que o conheça ou deva conhecer.

Trocando em miúdos, isso quer dizer que numa sociedade em comum, o ato de um sócio pode prejudicar todos os demais. Tal situação se agrava quando verificamos que a responsabilidade dos membros de uma Organização Informal é total: ilimitada e solidária.

Responsabilidade dos sócios

Numa sociedade em comum, todos os membros respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais.

Art. 990. Todos os sócios respondem solidária

e ilimitadamente pelas obrigações sociais (...).

Quer isso dizer que, enquanto não houver registro regular do estatuto ou do contrato social, todos os membros respondem com seu patrimônio pessoal pelos débitos da organização.

Tal circunstância reflete o desejo do legislador de proteger terceiros que, por não comporem a organização, normalmente não têm ciência da sua irregularidade ou, mesmo quando sabem da realidade, não dispõem de meios adequados para provarem seus direitos.

6. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil – 4ª edição – RJ: Renovar, 2004, p. 81.

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O impacto da informalidade das Organizações

A informalidade jurídica ocasiona reflexos danosos aos Empreendimentos Solidários.

A Sociedade em Comum não tem possibilidade de, por exemplo, contratar, submeter-se a procedimento licitatório, nem exercer o direito de ajuizar uma ação de cobrança contra um devedor, pois não existe enquanto sujeito de direito.

A despeito disso, qualquer terceiro que se sentir prejudicado poderá exigir que o patrimônio da organização suporte a responsabilização por atos de gestão praticados por qualquer dos sócios (Código Civil de 2002, artigo 989).

Segundo Pochmann e Amorim7 (2003), a exclusão social pode ser definida como a indisponibilidade de direitos sociais básicos, o que leva os indivíduos à condição de “subcidadãos”, ao perderem seus direitos, a capacidade de consumo e a posse de ferramentas que poderiam contribuir para superar essa condição.

A economia solidária luta pela preservação dos direitos sociais e também pela sua ampliação. Mas como se hão de garantir direitos sem o necessário reconhecimento de atores da economia solidária como sujeitos? Os Empreendimentos de Economia Solidária não devem ser vistos como suborganizações, mas como organizações plenas.

A informalidade de Empreendimentos corresponde à limitação de seus horizontes. Dito isso, assevera-se a certeza de que é necessária a constituição formal das Organizações Solidárias, a fim de promover seu desejado desenvolvimento.

Livro II - Notas sobre Direito Cooperativo

Organização cooperativa. Histórico

A evolução de doutrinas e práticas de cooperação configurou um modelo organizacional de caráter peculiar, hoje chamado de cooperativa, o qual demanda o desenvolvimento de tecnologia jurídica adequada.

Embora a origem da palavra “cooperativa” remonte, etimologicamente, há mais de dois mil anos, seu emprego para designar tais organizações apenas se fez por volta da última década do séc. XIX, por William King8.

Por isso, as hoje consideradas primeiras cooperativas não se designavam por tal vocábulo. A Rochdale Society of Equitable Pioneer, primeira cooperativa de consumo, não empregava em seu estatuto original tal denominação. No mesmo sentido, as primeiras cooperativas de trabalho francesas eram conhecidas como “associações de produtores”, enquanto as cooperativas de crédito alemãs, “caixas rurais” (Raiffaisen) ou “bancos populares” (Schulze-Delitzsche)9.

Inicialmente, a expressão “cooperativa” tinha significado filosófico e econômico, mas não alcançava relevância jurídica. Na Inglaterra, por exemplo, as cooperativas eram constituídas na forma de sociedades de socorros mútuos, equiparadas a associações de caridade e impedidas de realizar atos de comércio10.

Isto ocorreu até 1852, quando, ainda na Inglaterra, foi promulgada lei previdenciária que reconhecia a natureza jurídica das organizações cooperativas.

Nos anos seguintes, França, Prússia, Alemanha e Suíça, dentre outros países europeus, editaram normas

7. POCHMANN, Márcio & AMORIM, Ricador. Atlas da Exclusão Social no Brasil – SP: Cortez, 2003.8. Esta informação é controversa. Há autores que defendem que a expressão foi criada por Charles Gide, ao passo que, outros, informam sua utilização pelo próprio Owen.9. GUIMARÃES, Mário Kruel. Cooperativismo: história e doutrina; módulos 01, 02 e 05 – 3ª ed – Brasília: CONFEBRAS, 2001.10. BULGARELLI, Waldirio. Regime Jurídico das Sociedades Cooperativas – SP: Pioneira, 1965, pág. 32.

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aplicáveis a tais instituições. Atualmente, praticamente todos os países do ocidente possuem disciplina jurídica cooperativista.

Na América Latina, o cooperativismo tem disciplina definida em praticamente todas as nações11. Cada país, no exercício da soberania, possui suas leis e, por isso, as cooperativas assumem contornos diferentes em cada um deles. Tratemos de como o Brasil regula suas cooperativas.

Sociedade cooperativa no Brasil. Histórico

No Brasil, em 1903, o Decreto 979 ofereceu a primeira norma geral e abstrata a tratar do tema.

Art. 10. A funcção dos syndicatos nos casos

de organisação de caixas ruraes de credito

agrícola e de cooperativa de producção

ou de consumo, de sociedade de seguros,

assistência etc., não implica responsabilidade

directa dos mesmos nas transacções, nem

os bens nella empregados &cam sujeitos ao

disposto no nº 8, sendo a liquidação de taes

organizações regida pela lei commum das

sociedades civis.

Àquela época, era facultado aos sindicatos agrícolas organizar cooperativas, que podiam ser de produção, de consumo ou de crédito12.

O dispositivo acusa a existência de cooperativas, sem, contudo, delinear elementos básicos de seu conceito, embora fossem na prática equiparadas às sociedades civis13. Afirma a existência da organização, sem, contudo, indicar o que seja.

Quatro anos mais tarde, o Decreto 1.637 de 1907 oferece contornos mais nítidos:

Art. 10. As Sociedades Cooperativas, que

poderão ser: anônimas, em nome coletivo

ou em comandita, são regidas pelas leis

que regulam cada uma dessas formas de

sociedade, com as modi&cações estatuídas na

presente lei.

Em artigos seguintes, o Decreto delineia caracteres especiais, tais como variabilidade do capital social, não limitação do número máximo de sócios, inacessibilidade das quotas a terceiros, quantidade mínima de sócios para constituição, constituição de fundo de reserva indivisível, singularidade de voto, faculdade de agregação de cooperativas mediante federalização, dentre outros14.

11. Argentina: Lei 20.337/1973, Uruguai: Lei 15.645/1984, Honduras: Decreto Legislativo 65/1987, Colômbia: Lei 79/1988, Porto Rico: Lei 50/1994, Paraguai: Lei 438/1994, Panamá: Lei 17/1997, dentre outros.12. PERIUS, Vergílio Frederico. Cooperativismo e Lei. São Leoplodo: Ed. Unisinos, 2001, p. 1513. Idem.14. Vide artigos 11, 14, 15, 19, 21, 24 e 25 do Decreto 1.637 de 1907.

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Em 1932, o direito brasileiro estabelece novo marco legal às cooperativas, empregando a estas instituições um modelo societário próprio, distinto de todos os demais. O Decreto 22.239/32 definia assim o conceito de sociedade cooperativa:

Art. 2º. As Sociedades Cooperativas, qualquer

que seja sua natureza, civil ou comercial, são

sociedades de pessoas e não de capitais, de

forma jurídica “sui generis”, que se distinguem

das demais sociedades pelos pontos

característicos que se seguem, não podendo

os estatutos consignar disposições que os

infrinjam.

Em 1933 este decreto foi revogado, sendo revigorado em 1938, quando se estabeleceram novos dispositivos, tais como a fiscalização estatal.

Em 1966, o Decreto-Lei nº 59 criou uma política nacional para o setor, instituiu o Conselho Nacional do Cooperativismo e alterou a disciplina da sociedade cooperativa. Esse diploma é de extrema importância para o direito brasileiro, especialmente pelo fato de ter informado o legislador pátrio quando da elaboração do anteprojeto de código civil, que entrou em vigor no ano de 2003.

Em 1971, surgiu a lei 5.764, que redefine a Política Nacional de Cooperativismo e modifica o regime jurídico das sociedades cooperativas. Esta é a lei que permanece em vigor e determina, juntamente com a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, a disciplina para funcionamento de sociedades cooperativas no Brasil.

Em 1988 foi promulgada uma nova Constituição Federal, a qual apresenta dispositivos sobre o cooperativismo15 e interfere na interpretação de dispositivos da Lei 5.764/71. O impacto da Constituição Federal de 1988 na disciplina de funcionamento das cooperativas será tratado de maneira difusa neste trabalho, mas aproveitamos o momento para observar que, pela primeira vez, uma Constituição deste país determinou que o Estado deve apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de associativismo16.

Em 2002, foi publicada a Lei nº 10.406, também conhecida como Novo Código Civil Brasileiro. Esta lei levantou algumas dúvidas no mundo jurídico, das quais trataremos em momento oportuno.

Sociedade Cooperativa no Brasil. Conceito. Elementos

Sociedade Cooperativa é uma sociedade simples, de pessoas, que reciprocamente se obrigam a contribuir com

15. Vide artigos, 5º, XVII a XXI; 146, III, c; 174, §§ 2º a 4º; 187, VI; e 192.16. Constituição Federal de 1988, art. 174, §2º.17. O conceito acima apresentado foi construído a partir da junção dos artigos 3º e 4º da Lei 5.764/71, que atualizamos em face da linguagem introduzida pelo Código Civil brasileiro de 2002. Para compreendê-lo, vamos explicar os elementos que compõem o conceito.

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bens (produtos e valores) e serviços (atividades, trabalho) para o exercício de uma atividade econômica de proveito comum, sem fins lucrativos, com forma e natureza jurídica própria, não sujeita a falência e constituída para prestar serviços aos associados17.

Cooperativa é um tipo de sociedade. No Brasil, uma sociedade pode ser simples ou empresária. Nos termos da lei, sociedade simples é toda aquela que tenha por objeto atividade diversa de atividade própria de empresário18. Logo, para compreender o que é sociedade simples, necessário saber o que seja a sociedade empresária.

Empresária é a “pessoa física ou jurídica que exerce profissionalmente (com habitualidade e escopo de lucro) atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços no mercado”19. O que caracteriza uma sociedade empresária é o escopo de obter, para si, lucro resultante da intermediação de bens e serviços. A sociedade empresária, antigamente conhecida como sociedade comercial caracteriza-se pela prática de atos de mercância20. O objetivo da sociedade empresária é obter na venda mais dinheiro do que gastou na compra para, daí, ficar com a diferença. Não é o empresário quem desenvolve o trabalho, o papel dele é organizar a atividade, de maneira rentável.

A sociedade simples, de modo contrário, tem por escopo levar ao mercado os bens e serviços produzidos ou oferecidos pelos próprios sócios, em melhores condições para este. A cooperativa é uma sociedade simples21. Por isso, o objetivo de uma cooperativa não é acumular lucro, mas viabilizar melhores condições econômicas e sociais para que os sócios que a compõem desenvolvam sua atividade.

Uma cooperativa deve ser economicamente eficiente, tanto quanto uma sociedade empresária. A diferença é

que o sucesso da cooperativa não está na apropriação do resultado financeiro positivo, mas na melhor remuneração do sócio trabalhador/produtor ou na melhor fruição pelo sócio consumidor.

Sociedade de pessoas “são aquelas em que as qualidades pessoais dos sócios são imprescindíveis para a existência da sociedade22”. O contrário de uma sociedade de pessoas é uma sociedade de capital. Numa sociedade de capital, o que torna alguém sócio não é o que ele sabe fazer, mas o dinheiro que possui e oferece para a formação do capital da empresa. A cooperativa é uma sociedade de pessoas. Logo, o sócio é escolhido pelo papel que desempenha, enquanto sujeito. Numa cooperativa de reciclagem, os sócios hão de ser agentes ambientais; numa cooperativa agrícola, os sócios hão de ser produtores agrícolas; e assim sucessivamente.

Obrigação de contribuir com bens e serviços é uma consequência do princípio de participação econômica do cooperado. O sócio mantém a cooperativa para que esta possa servi-lo. Quando se filiam a uma cooperativa, os sócios se obrigam a contribuir com bens para a formação do capital social. Os sócios se propõem também à participação efetiva na atividade, ou seja, prestar serviço através da cooperativa de trabalho, ou adquirir bens nos casos da cooperativa de consumo.

Numa cooperativa agrícola, os sócios se organizam para adquirir máquinas, utensílios, adubo, sementes em conjunto, pois, em volume maior, através da cooperativa, eles compram diretamente das fábricas, a fim de obter preços menores. Essa compra coletiva é custeada pelos próprios sócios. Realizada a colheita, os sócios entregam os frutos à cooperativa, para que esta venda a produção de todos coletivamente. A venda

18. Nos termos do Novo Código Civil: “art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.”.19. CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à Luz do Novo Código Civil – 4ª edição – RJ: Renovar, 2004, p. 14.20. STJ, Resp. nº 3.664, 2ª T., rel. Min. Vicente Cernicchiario, ac. 3.09.1990, DJU 9.10.1990.21. Nos termos do Novo Código Civil: “art. 982. (...). Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”22. OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de Direito Empresarial Brasileiro: 2º Volume. Campinas: LZN, 2004, p. 13.

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coletiva permite alcançar maiores preços no mercado. A manutenção da cooperativa se dá através de cobrança de taxa de administração sobre as vendas. Se os sócios não venderem através da cooperativa, ela não será economicamente viável e, com isso, estará sempre a pedir auxílios e favores.

Exercício de atividade econômica de proveito comum, sem fins lucrativos é um elemento que afirma a prática de cooperação na economia. Os sócios se reúnem na cooperativa para operar trabalho, produção, consumo ou crédito porque entendem que a sinergia resultante da união entre eles trará benefícios a todos.

Diz-se que a cooperativa tem forma e natureza jurídica própria porque a disciplina de constituição e funcionamento é diferente de qualquer outro modelo jurídico vigente. Mesmo depois de o Novo Código Civil ter classificado a cooperativa como sociedade simples, ela guarda tantas especificidades que merece estudo destacado23.

Outro traço das cooperativas no Brasil é que elas não estão sujeitas à falência. Falência é o estado no qual o empresário deixa de cumprir obrigações perante credores por razões injustificadas e, ademais, torna-se insolvente por não possuir patrimônio suficiente para saldar todos os débitos24. Apenas o empresário pode falir. Falido, o empresário torna-se proibido de viver profissionalmente da intermediação de bens e serviços. A cooperativa não é sociedade empresária, consequentemente não enfrenta processo falimentar.

Isso não quer dizer que a cooperativa deixe de ser responsável pelas obrigações que assume. A diferença é que, ao invés de decretação de falência, há decretação de insolvência civil, prevista nos artigos 748 e seguintes do Código de Processo Civil em vigor25. Uma cooperativa

responde pelas obrigações que assume e pode ser condenada a fechar as portas no caso de não honrar com seus compromissos.

A cooperativa é constituída para prestar serviços aos sócios. Isto quer dizer que, quando uma cooperativa entra em operação, sua finalidade é promover o exercício da atividade econômica de interesse do sócio.

Sociedade Cooperativa no Brasil. Características

A sociedade cooperativa possui características definidas pela legislação. Dentre elas, há algumas que são comuns a outros tipos societários, ao passo que outras lhe são próprias. Dentre as características de uma cooperativa, incluem-se as abaixo indicadas.

Número máximo ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços.

A lei não estabelece limite máximo do número de sócios em uma cooperativa. Em princípio, uma cooperativa pode ter quantos sócios quiser. Na prática, entretanto, cada organização possui uma capacidade de atendimento aos sócios. Nesses casos, é permitido que elas estabeleçam um teto, um limite máximo de membros do quadro social.

Variabilidade do capital social, limitada a sua concentração

Capital social é o volume de recursos financeiros que os cooperados aportam na cooperativa, para que esta possa funcionar. A entrada e a saída de sócios, assim como a subscrição, a integralização e o levantamento

23. ANDRIGHI, Fátima Nancy. A Autonomia do Direito Cooperativo in KRUEGER, Guilherme (coord). Cooperativismo e o Novo Código Civil. BH: Mandamentos, 2003, p. 50.24. Vide FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial – 9ª ed. – SP: Atlas, 2008, p. 579; e OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de Direito Empresarial Brasileiro: 1º Volume. Campinas: LZN, 2004, p. 16-1725. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário: regime vigente e inovações do novo Código Civil – 2ª ed. – SP: Ed. Juarez de Oliveira, 2004, p. 158

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de cotas partes do capital social, ocorre na cooperativa sem que haja obrigatoriedade de registro público. Com isso, há uma flutuação do valor do capital social, o qual varia livremente, independentemente de registro de informações na Junta Comercial.

A despeito de tamanha liberdade, é proibido que algum sócio concentre fração exagerada do capital social. Atualmente, nenhum cooperado pode ser proprietário de mais do que 1/3 das cotas partes do capital social de uma cooperativa.

Inalienabilidade de cotas partes de capital a não-sócios

Cotas partes do capital social são frações mínimas do capital da cooperativa. Sempre que ingressa numa cooperativa, o sócio é convidado a entregar determinada quantia em dinheiro (ou, em certos casos, algum equipamento em valor equivalente) correspondente ao valor, ao menos, do número mínimo de cotas partes exigido.

O cooperado é titular, é dono, de cotas partes do capital social. Ele pode alienar (ou seja, vender, doar, transferir para outrem) essas cotas que possui. Entretanto, essa transferência, essa alienação, não pode ser feita para qualquer pessoa.

Apenas sócios podem ser proprietários de cotas partes e, em cooperativa, o primeiro passo para tornar-se sócio é apresentar proposta de admissão. Alguém que não tenha sido admitido como sócio não deve ser titular de cotas.

Por via de consequência, é proibido que terceiros, não-sócios, adquiram cotas partes. Daí dizer-se que, em cooperativas, as cotas partes são inalienáveis a não-sócios26.

Singularidade de voto, facultada a proporcionalidade para centrais, federações e confederações cooperativas, exceto as de crédito

Em cooperativas singulares, cada sócio possui um único voto.

Sempre que se reúne a Assembléia Geral, os sócios analisam e deliberam sobre temas de interesse. As deliberações são feitas por votação entre os presentes. No caso das cooperativas, cada sócio dispõe de um único voto. Não importa se o sócio é mais antigo, possui mais cotas partes do que os outros ou tem maior participação nas atividades da organização: ele sempre terá um único voto.

Por outro lado, nas cooperativas de cooperativas – ou seja, federações, centrais ou confederações – pode-se adotar a proporcionalidade. Assim, na hipótese de uma federação dispor de três cooperativas associadas, ela poderá estabelecer que o voto de cada cooperativa é proporcional ao número de sócios que cada uma possua. Observe-se, de todo modo, que as centrais de cooperativas de crédito jamais poderão adotar a proporcionalidade.

Quóruns sociais baseados no número de sócios

Quórum é o número de sujeitos presentes numa reunião. Em outros modelos societários, o quórum é medido em função do volume de capital que cada sócio possui. De modo contrário, nas cooperativas, o quórum é aferido em razão do número de sócios presentes. O que importa é o sujeito, não o volume de recursos que ele aportou na sociedade.

26. SIQUEIRA, Paulo César Andrade. Direito Cooperativo Brasileiro: comentários à lei 5.764/71 – SP: Dialética, 2004, p. 42.

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Retorno das sobras líquidas do exercício social, ressalvada deliberação contrária pela Assembleia Geral

Sobra líquida é o dinheiro que restou na cooperativa, em consequência de os sócios terem contribuído com mais do que era necessário. É característica das cooperativas o retorno das sobras aos seus verdadeiros donos, ou seja, aos cooperados que contribuíram em excesso.

A Assembleia Geral da cooperativa, entretanto, pode decidir de maneira diversa. Pode o órgão superior da cooperativa, por decisão de maioria, decidir dar outro destino às sobras do exercício social findo. Ainda assim, observe-se que quem decide na assembleia são os próprios sócios, destinatários do numerário.

Indivisibilidade dos fundos legais

Fundos são parcelas de patrimônio afetadas para determinado fim. Infinitas são as possibilidades para a criação de fundos. A lei, todavia, exige das sociedades cooperativas a criação de pelo menos dois: o Fundo de Reserva e o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES). São os chamados fundos legais.

A indivisibilidade dos fundos legais consiste na característica de que os recursos neles alocados não devem ser partilhados entre os sócios da cooperativa. A única maneira de consumir o dinheiro existente nos fundos legais é aplicando-os em suas finalidades específicas, as quais serão estudadas no momento oportuno.

Neutralidade política e indiscriminação

Uma cooperativa deve adotar neutralidade política. Isso quer dizer que ela deve manter sua autonomia em relação a todo e qualquer grupo político-partidário. Qualquer interação que possa haver entre uma cooperativa e agentes políticos deve ser conduzida de modo a preservar tal característica.

Ademais, é próprio da atividade cooperativa a reunião de sujeitos de diferentes origens e opiniões, sem discriminação. Devem as organizações respeitar os indivíduos para bem ordenar a coletividade27.

Impactos do Novo Direito Civil sobre a Política Nacional do Cooperativismo (Lei 5.764/71)

O estudo do Direito Cooperativo não mais se resume ao conhecimento do texto da Lei 5.764/71. A compreensão da matéria exige o cotejamento de outras fontes, tais quais a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002.

A lei 5.764/71 é marco de extrema relevância no direito cooperativo, posto que criou a Política Nacional do Cooperativismo. Política Pública, de modo bastante simplório, pode ser conceituada como um conjunto de programas, projetos e ações desenvolvidos pelo Estado, de modo articulado, com vistas a alcançar determinado objetivo28.

Na definição da Política Nacional do Cooperativismo, a Lei tratou, dentre outros aspectos comuns ao esquadrinhamento de uma política pública, de definir seus beneficiários. Feito isso, conformou um modelo societário específico para as cooperativas.

27. GEHLEN, Bianor Luiz. A Neutralidade Política Partidária das Cooperativas. In FRANKE, Walmor. A Interferência Estatal nas Cooperativas: aspectos constitucionais, tributários, administrativos e societários – Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 115.28. Uma boa referência de estudo é BUCCI, Maria Paula Dallari (org). Políticas Públicas: re$exões sobre o conceito jurídico – SP: Saraiva, 2006.

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A caracterização da sociedade cooperativa definiu uma série de predicados que configuram norma cogente e são objeto da próxima fase deste módulo.

Todavia, como dito, o estudo desta disciplina não mais se resume ao texto da Lei 5.764/71, posto que a dinâmica do Direito Civil brasileiro, nas últimas décadas, promoveu alterações significativas no conteúdo.

A Constituição Federal e a PNC

A Constituição Federal alterou elementos relevantes da matéria jurídica cooperativista.

O princípio civil-constitucional de liberdade de associação provocou a não recepção de alguns artigos da lei cooperativista. Os dispositivos da 5.764/71 não recepcionados pela CF/88 são os que estabelecem o intervencionismo estatal (art. 93 e 94) e a obrigatoriedade de autorização de registro para o funcionamento de cooperativa (art. 17 a 20).

Com isso, para a constituição de cooperativas, não mais se há de falar em autorização para funcionamento. Ademais, o Estado não mais ostenta o poder de intervir nas sociedades.

O Novo Código Civil e a PNC

A Lei 10.406/2002, em parte por consequência de uma particularidade histórica, provocou estremecimento na PNC. Foram levantadas dúvidas atinentes (1) ao limite responsabilidade dos sócios, (2) ao número mínimo para a constituição da sociedade e (3) à exigência de capital para sua criação.

Há muita resistência na doutrina sobre a aplicabilidade dos dispositivos do Novo Código em substituição à Lei 5.764/71, posto que há expressa ressalva para aplicação desta em detrimento daquele29.

Por outro lado, exsurgem interpretações de matiz constitucional, sugerindo que a exegese aplicável deve levar em consideração a promoção do desenvolvimento do cooperativismo30.

Elaboração do Novo Código Civil

O projeto do novo Código Civil, apresentado à casa legislativa em 1972, começou a ser redigido em 1969.

Conforme assinalou Miguel Reale, Coordenador do Anteprojeto de Código Civil, a Coordenação Revisora e Elaboradora do Código Civil teve por diretriz:

Firmar a orientação de somente inserir

no Código matéria já consolidada ou com

relevante grau de experiência crítica,

transferindo-se para a legislação especial

aditiva o regramento de questões ainda em

processo de estudo, ou, que, por sua natureza

complexa, envolvem problemas e soluções que

extrapolam o Código Civil31.

A intenção do legislador foi confirmar no código aquilo que já estava assentado no direito e, ao mesmo tempo, permitir que o novo código pudesse conviver com as novidades que surgissem da evolução da ciência jurídica.

Àquela época, quando do início da redação do Projeto, estavam em vigor o Decreto Lei nº. 59, de 1966, e sua regulamentação, através do Decreto nº.b 60.597, de 1967.

Em dezembro de 1971 entrou em vigor a Lei 5.764, que

29. Vide Lei 10.406, art. 1.093.30. FARIAS, Thiago Santana de. A Composição da Sociedade Cooperativa Segundo o Código Civil – Monogra'a (graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2006.31. REALE, Miguel. O Novo Código Civil Brasileiro in Revista da Academia Paulista de Magistrados, V. I, Ano I.

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criou modelo societário específico denominado sociedade cooperativa e estabeleceu novas regras para a constituição e o funcionamento dessas organizações.

Os termos em que foram escritos os dispositivos cooperativistas do Novo Código Civil brasileiro são condizentes com o disposto no diploma de 1966, mas por vezes dissonantes com o quanto presente no texto de 1971.

Em verdade, comparando-se os três diplomas, verifica-se que tanto a 5.764/71 quanto a 10.406/2002 foram construídas sob os paradigmas do Decreto-Lei 59/66. Todavia, não há diálogo direto entre a lei cooperativista de 1971 e o Novo Código Civil. A organização do sistema jurídico normativo demanda acuidosa interpretação pelo operador do direito.

Nos trinta anos de tramitação do Projeto de Código Civil, a redação dos dispositivos especificamente dedicados às cooperativas quase não sofreu alterações. Excetuadas uma renumeração e uma reordenação de orações em um dado período composto, inserto no atual artigo 109331, operada pela comissão final de revisão ortográfica, os dispositivos atravessaram incólumes o longo processo legislativo. Os preceitos normativos permaneceram inalterados.

O resultado foi que, após 30 (trinta) anos de vigência da 5764/71, retornaram ao ordenamento jurídico comandos normativos inspirados no antigo Decreto Lei nº 59/66 há muito revogado32.

Contradições entre o Novo Código Civil e a PNC

A coexistência de normas dissonantes é causa de antinomias. A natureza real ou aparente dessas antinomias,

assim como o modo de solucioná-las é tarefa do intérprete.

A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do signi"cado dos

seus textos e intenções, tendo em vista a

decidibilidade de con#itos constitui a tarefa

da dogmática hermenêutica33.

Não pretendemos exaurir o modo de solucionar as questões, mas gostaríamos de enumerar algumas variáveis nessa equação.

Quando se fala em antinomia jurídica, as escolas clássicas do direito brasileiro logo se remetem ao art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Esta é a primeira variável da equação.

No caso em tela, observamos que há dois aspectos relevantes a serem observados: um de matéria legal, outro, em sede constitucional.

É especialmente dedicado à sociedade cooperativa o Capítulo VII do Título II (da Sociedade) do Livro II (Do Direito de Empresa) do Novo Código Civil.

No início do referido capítulo, o legislador estabeleceu que “a sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no presente Capítulo, ressalvada a legislação especial34”. Ou seja: estabeleceu comandos, mas ressalvou a aplicabilidade de normas constantes em lei especial.

A interpretação literal do código tem levado boa parte da doutrina35 a defender a tese de que a norma geral mais recente cede lugar à norma especial mais antiga, por expressa disposição daquela.

Todavia, vozes distoantes exsurgem no cenário e apontam para a validade do conteúdo codificado36.

31. Quando da apresentação do Projeto, o atual art. 1093 era numerado como 1092 e possuía a seguinte redação: “Ressalvada a legislação especial sobre sociedade cooperativa, reger-se-á esta pelo disposto no presente Capítulo”. Todavia, após renumeração do texto e revisão ortográ"ca, o novo art. 1093 foi publicado com o seguinte texto: “A sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no presente Capítulo, ressalvada a legislação especial”.32. JUVÊNCIO, Fernanda de Castro. As Áreas de Ação e de Admissão de Associados nas Sociedades Cooperativas, in KRUEGER, Guilherme (coord) Cooperativismo e o Novo Código Civil – BH: Mandamentos, 2003.33. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. SP: Atlas, 2001, p. 282.34. Lei 10.406, art. 1093.35. KRUEGER, Guilherme (coord) Cooperativismo e o Novo Código Civil – BH: Mandamentos, 2003; ALMEIDA, Marcus Elídius Michelli de Almeida; & BRAGA, Ricardo Peake (coord). Cooperativas à luz do código Civil – SP: Quartier Latin, 2006.36. BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo – SP: Dialética, 2002.

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No transcorrer do módulo, indicaremos e analisaremos os pontos em que há contradição entre o Novo Código Civil e a Lei 5.764/71, especialmente: (1) Responsabilidade Limitada do sócio em cooperativa; (2) Órgão competente para arquivamento e registro dos atos constitutivos da sociedade cooperativa; (3) Número mínimo para constituição de cooperativa; e (4) Dispensa de Capital Social para constituição de cooperativa.

Sociedade Cooperativa. Classi�cações

Sociedades cooperativas podem ser classificadas de diversos modos. Aqui trataremos das classificações quanto à forma de constituição, ao objeto social, e à responsabilidade dos sócios37. Estas formas de classificação são também chamadas de classificações legais, em consequência de terem sido criadas pela Lei 5.764/71, nos artigos 6º a 13.

Quanto à forma de constituição

A cooperativa pode ser singular, federação ou central, ou confederação.

Cooperativa singular, também chamada de cooperativa de primeiro grau, é a constituída majoritariamente por pessoas físicas, embora também possa ter pessoas jurídicas como cooperadas.

Federação, também chamada de cooperativa de segundo grau ou Central, é uma cooperativa de cooperativas. Para ser constituída, exige-se que pelo

menos 03 (três) cooperativas singulares se reúnam para criá-la. Esta seria, por exemplo, uma possibilidade de institucionalizar uma rede de Empreendimentos constituídos na forma de cooperativas.

A confederação, também chamada de cooperativa de terceiro grau, é uma cooperativa criada por pelo menos 03 (três) federações.

Tanto as federações quanto as confederações são exemplos de métodos de integração sistêmica38. A intenção é unir esforços para alargar as fronteiras de cooperação e atingir maior escala de atividade econômica.

Observe-se que, em certas ocasiões, as palavras federação e confederação não designam cooperativas, mas entes associativos. Para saber se a federação ou a confederação é um ente cooperativo ou um ente associativo, necessário examinar o estatuto social.

Quanto ao objeto

Objeto social é aquilo a que se dedica a sociedade. O objeto social de uma cooperativa é aquilo a que ela se presta. A bem da verdade, a Lei 5.764/71 não delimitou quais os gêneros de atividades em que se emprega a cooperativa, até mesmo porque, nos termos do art. 5º da lei, há liberdade para constituição de cooperativa em qualquer área da economia39.

A Organização das Cooperativas do Brasil classifica as cooperativas em 13 (treze) ramos: agropecuário, consumo, crédito, educacional, especial, habitacional, infra-estrutura, mineral, produção, saúde, trabalho, turismo e lazer e transportes40. Embora pareça

37. Vide POLÔNIO, Wilson Alves. Manual das Sociedades Cooperativas – 2ª ed – SP: Atlas, 1999.38. PERIUS Vergílio Frederico. Cooperativismo e Lei – RS: Unisinos, 2001, p 158.39. Art. 5º - As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade (...).40. GAWLAK, Albino. Cooperativismo: primeiras lições. Brasília: Sescoop, 2004, pp. 33-40.

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desnecessária, essa classificação é útil para facilitar a organização de ações adequadas a cada segmento.

O prof. Fábio Luz, maior especialista brasileiro em Direito Cooperativo da primeira metade do Século XX, entendia que os tipos fundamentais de cooperativa são as de produção, consumo e crédito41.

Fala-se também em cooperativas mistas, que agregam diferentes gêneros de objetos42.

Seja qual for o entendimento do leitor, haveremos de convir que, ao menos do ponto de vista jurídico, não há imperatividade alguma na definição por qualquer método de classificação de cooperativas por objeto.

Quanto à responsabilidade do sócio

Responsabilidade civil é a obrigatoriedade de ressarcimento de danos. O sócio de uma cooperativa pode ser chamado a responder por esta. A classificação de que ora tratamos é quanto à extensão da responsabilidade do cooperado em face da cooperativa, que pode ser limitada ou ilimitada.

As sociedades cooperativas são de responsabilidade ilimitada quando o sócio responde pessoal, solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais43.

As sociedades cooperativas são de responsabilidade limitada quando o sócio responde somente pelo valor das cotas-partes de capital que subscreveu na cooperativa44 e pelo prejuízo verificado nas operações sociais45.

Neste ponto, verifica-se que o Novo Código Civil estendeu a responsabilidade limitada do cooperado. Isto porque, antes da Lei 10.406/2002, o sócio respondia

apenas até o limite das quotas de capital por ele subscritas, mas, com a nova lei, passou também a ser responsável pelos prejuízos que causar à sociedade, guardada a proporção de sua participação nas operações46.

Sociedade Cooperativa. Denominação

A nomeação de uma pessoa jurídica pode se dar por diversas formas. A cooperativa é identificada pelo gênero conhecido como “denominação”.

A denominação de sociedades cooperativas, por determinação da parte final do caput do art. 5º da Lei Cooperativa, deve empregar a expressão “cooperativa”47. Ademais, proíbe-se a utilização da palavra “banco”.

Art. 5°. As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, assegurando-se-lhes o direito exclusivo e exigindo-se-lhes a obrigação do uso da expressão “cooperativa” em sua denominação.Parágrafo único. É vedado às cooperativas o uso da expressão “Banco”.

Além da denominação com o emprego da expressão “cooperativa”, pode a cooperativa optar por adotar uma sigla ou um nome fantasia. Em qualquer dos casos, o elemento deverá constar do estatuto social.

Sugere-se, por derradeiro, que, anteriormente ao registro do ato constitutivo da sociedade, sejam os elementos identificadores (denominação, sigla e nome

41. LUZ FILHO, Fábio apud JUVÊNCIO, Fernanda de Castro. Comentários in KRUEGER, Guilherme (coord). Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas, Tomo I – BH: Mandamentos, 2007.42. ALVES, Francisco de Assis; & MILANI, Imaculada Abenante. Sociedades Cooperativas – SP: Juarez de Oliveira, 2006, p. 30.43. Nesse sentido, Lei 5.764/71, art. 12 e Lei 10.406/2002, art. 1.095, §2º.44. Vide Lei 5.764/71, art. 11.45. Vide Lei 10.406/2002, art. 1.095, §1º.46. Nesse sentido, leiam-se: JUVÊNCIO, Fernanda de Castro. Comentários in KRUEGER, Guilherme (coord). Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas, Tomo I – BH: Mandamentos, 2007, p. 74-76; BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo – SP: Dialética, 2002, pp. 196-200; e BULGARELLI, Waldírio. As Sociedades Cooperativas e a sua Disciplina Jurídica – 2ª ed – Renovar, 2000, pp. 87.47. ROCHA FILHO, José Maria. Nome Empresarial e Registro de Empresas in RODRIGUES, Frederico Viana (coord). Direito de Empresa no Novo Código Civil – RJ: Forense, 2004, p. 132.

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fantasia) objeto de pesquisa na Junta Comercial e no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), a fim de evitar a criação de cooperativas com identificação já empregada por outras organizações.

Órgão para registro de atos no Novo Código Civil

Até a entrada em vigor do novo Código Civil brasileiro, não havia dúvida quanto ao órgão competente para proceder ao arquivamento e registro dos atos constitutivos, modificativos e extintivos da sociedade cooperativa. Tanto a Lei 5.764/7148 quanto a lei 8.934/9449, que regula o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, determinam que o registro da sociedade cooperativa deve ser feito em junta comercial.

O advento do CC/2002, todavia, suscitou dúvidas quanto à adequação de registro da cooperativa em Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. A lei civil estabelece que a cooperativa é espécie de sociedade simples50 e, mais adiante, indica que as sociedades simples devem proceder a registro de atos constitutivos em Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas51.

Parte da doutrina52 entende que (1) se a cooperativa é sociedade simples, e (2) se sociedade simples deve obter registro em Cartório, então (3) a cooperativa deve proceder ao registro em Cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídica.

Todavia, em face da expressa disposição legal em que o NCC ressalva a aplicação de norma especial em matéria jurídica cooperativa53, alguns defendem que o registro de

cooperativas continua a ser feito em Junta Comercial54.No exercício da atividade profissional como advogado,

temos nos deparado com as duas hipóteses. Na Bahia, a Junta Comercial procede ao registro de ato constitutivo de cooperativa. No mesmo sentido, alguns Cartórios de Registro Civil de Pessoa Jurídica também o fazem.

Esta situação é grave e gera insegurança jurídica.A rigor, conforme preceitua o próprio Código Civil, é

ressalvada a aplicação da norma especial – ou seja, a Lei 5.764/71 – quando a norma geral com ela colidir. Sempre que houver contradição entre o Código Civil e a Lei 5.764/71, esta prevalecerá sobre aquela.

Esse entendimento é confirmado pelas conclusões da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no Superior Tribunal da Justiça, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, cujo enunciado de nº. 69 transcrevemos in verbis: as sociedades cooperativas são sociedades simples sujeitas a inscrição nas juntas comerciais55.

Dito isso, corrobora-se a certeza de que os registros de atos constitutivos de sociedades cooperativas devem ser realizados em Junta Comercial.

Sócios. Admissão. Vedações. Quantidade: número máximo e número mínimo

Sócio é o sujeito que compõe uma sociedade. Na sociedade cooperativa, é possível denominar-se o sócio de cooperado, cooperante, ou mesmo associado (ainda que esta nomeação seja estranha à natureza jurídica que a

48. Cf. art. 18, §6º.49. Cf. art. 32, I.50. Cf. art. 982, parágrafo único.51. Cf. art. 1.15052. DOMINGUES, Jane Aparecida Stefanes. Da pessoa Jurídica da Cooperativa in MEINEN, Ênio; DOMINGUES, Jefferson Nercolini; e DOMINGUES, Jane Aparecida Stefanes (org). Aspectos Jurídicos do Cooperativismo – Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002, p. 55. SIQUEIRA, Paulo César Andrade. Direito Cooperativo Brasileiro – comentários à Lei 5.764/71 – SP: Dialética, 2004, p. 72.53. Cf. art. 1.093.54. REIS JÚNIOR, Nilson. Aspectos Societários das Cooperativas – BH: Mandamentos, 2006, pp. 69-71. ALMEIDA, Marcus Elídius Michelli de Almeida; & BRAGA, Ricardo Peake (coord). Cooperativas à luz do código Civil – SP: Quartier Latin, 2006.55. FIUZA, Ricardo in FIUZA, Ricardo (coord). Novo Código Civil comentado. 5ª ed. SP: Saraiva, 2006, p. 902.

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organização cooperativa alcançou no direito brasileiro).A admissão como sócio em cooperativas é possibilitada

aos que desejarem e puderem utilizar serviços prestados pela organização, ressalvados os casos em que (1) não houver possibilidade técnica de atendimento ao pretendente pela cooperativa; e (2) o candidato a sócio seja concorrente da cooperativa.

Art. 4º, I. (...) número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de

serviços;

Art. 29, §4°. Não poderão ingressar no quadro

das cooperativas os agentes de comércio e

empresários que operem no mesmo campo

econômico da sociedade.

Dito isso, assevera-se a certeza de que, do ponto de vista legislativo, não há imposição de número máximo de sócios em uma cooperativa. Ainda assim, poderá cada organização avaliar seu limite máximo para operação, de modo a estabelecer marcos infralegais de quantificação.

Nos termos da Lei 5.764/71, uma cooperativa singular deve ser constituída por, no mínimo, 20 (vinte) sócios pessoas físicas; as federações ou centrais devem contar com, pelo menos, 03 (três) cooperativas. E as confederações com não menos que 03 (três) federações ou centrais agregadas.

Art. 6º. As sociedades cooperativas são

consideradas:

I. singulares, as constituídas pelo número

mínimo de 20 (vinte) pessoas físicas, sendo

excepcionalmente permitida a admissão de

pessoas jurídicas que tenham por objeto as

mesmas ou correlatas atividades econômicas

das pessoas físicas ou, ainda, aquelas sem "ns

lucrativos;

II. Cooperativas centrais ou federações de

cooperativas, as constituídas de, no mínimo, 3

(três) singulares, podendo, excepcionalmente,

admitir associados individuais;

III. Confederações de cooperativas, as

constituídas, pelo menos, de 3 (três) federações

de cooperativas ou cooperativas centrais, da

mesma ou de diferentes modalidades.

Número mínimo de sócios no Novo Código Civil

A entrada em vigor do novo Código Civil despertou controvérsia quanto ao número mínimo de sócios exigidos para a constituição de uma sociedade cooperativa.

Segundo a Lei 5.764/71, o número mínimo de sócios para constituir uma cooperativa é 20 (vinte).

Por outro lado, o inciso II do art. 1.094 da Lei 10.406/2002 definiu como característica da cooperativa o “concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade”, sem indicar, contudo, de modo objetivo, o número de componentes para administrar a sociedade.

A determinação do número mínimo de sócios para constituição de cooperativas sempre foi arbitrária, como bem observa Waldírio Bulgareli56. Em Portugal, no número mínimo é cinco, na Itália, nove, na Argentina, dez, na Espanha, três. No Brasil, antes da vigente lei cooperativista, era possível constituir tal natureza de organização com pelo menos sete sócios.

Desde 2002 surgiram diferentes doutrinas acerca do tema. Há quem defenda que o número mínimo de sócios continua a ser vinte57, mas há teses arguindo que o

56. BULGARELLI, Waldírio. Regime jurídico das sociedades cooperativas – SP: Pioneira, 1965.57. KRUEGER, Guilherme. O Número Mínimo de Associados e os Juros Pagos ao Capital nas Sociedades Cooperativas, in KRUEGER, Guilherme (coord). Cooperativismo e o Novo Código Civil – BH: Mandamentos, 2003.

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número passou a ser quatorze58 ou mesmo dois59 sócios.Nos termos da Lei 10.406/2002, sempre que houver

contradição entre o Código Civil e a Lei 5.764/71, esta prevalecerá sobre aquela. À vista do exposto, é evidente que, juridicamente o número mínimo de sócios para criação e funcionamento de uma cooperativa singular continua a ser 20 (vinte).

Reconheço que este número é alto, especialmente para início de atividades em meio urbano. O volume de trabalho necessário para remunerar vinte sócios é enorme e, em verdade, é difícil para uma cooperativa recém nascida dispor de tantos contratos. Todavia, enquanto esta norma estiver vigente, deverá ser aplicada.

Desligamento. Espécies: demissão, eliminação e exclusão.

Desligamento é o ato jurídico que extingue o vínculo entre o sócio e a sociedade. A partir do desligamento, deixa o sujeito de ostentar a qualidade de sócio de uma cooperativa.

Há três espécies de desligamento: demissão, eliminação e exclusão.

Demissão é a espécie de desligamento que ocorre por ato de vontade do sócio. Ocorre quando o sócio pede para sair.

Art. 32. A demissão do associado será

unicamente a seu pedido.

A demissão deve ser ato formal, por escrito, com aposição de assinatura do demissionário, destinado ao órgão gestor da cooperativa. O termo final do vínculo societário é determinado pelo demissionário e sua concretização é ato de pura vontade, não subordinado a análise pela cooperativa. Por isso, não se há de falar em requerimento, mas em notificação ou carta de demissão.

Eliminação é espécie de desligamento que se opera por decisão da sociedade. Ocorre quando a cooperativa expulsa um sócio. Isto se dá à guisa de apenação decorrente de infração perpetrada pelo eliminado.

A infração pode ser por descumprimento de obrigação legal ou estatutária, assim como por incurso em tipo previsto no documento constitutivo da cooperativa.

Art. 33. A eliminação do associado é

aplicada em virtude de infração legal

ou estatutária, ou por fato especial

previsto no estatuto (...).

Observe-se que, por força do constitucional princípio do devido processo legal, o procedimento de eliminação envolve: (1) investigação imparcial do ato/fato; (2) notificação do investigado, a fim de que este tenha amplo direito à defesa e ao contraditório; (3) decisão fundamentada pelo julgador; (4) remetimento da decisão ao condenado; (5) oferecimento de prazo de recurso da decisão de eliminação à Assembléia Geral. O princípio do devido processo legal é de origem constitucional e se aplica, inclusive, em matéria societária. O direito cooperativo não se sobrepõe à Constituição, motivo

58. FARIAS, Thiago Santana de. A Composição da Sociedade Cooperativa Segundo o Código Civil – Monogra#a (graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2006.59. BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo – SP: Dialética, 2002.

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pelo qual deve se subordinar à Carta Magna e aos seus preceitos normativos.

Exclusão é espécie de desligamento que se opera por circunstância alheia à vontade do sócio e da sociedade. Ela se dá por motivação objetiva. Pode ocorrer por dissolução da cooperativa, pela morte ou pela incapacidade do sócio, assim como pela impossibilidade de o sócio operar com a cooperativa.

Art. 35. A exclusão do associado será feita:

I. Por dissolução da pessoa jurídica;

II. Por morte da pessoa física;

III. Por incapacidade civil não suprida;

IV. Por deixar de atender aos requisitos

estatutários de ingresso ou permanência

na cooperativa.

Sugere-se que, sempre que a exclusão se der em face de o sócio deixar de atender aos requisitos estatutários de ingresso ou permanência na cooperativa, seja adotado procedimento semelhante ao empregado nos casos de eliminação, ou seja, com todo aquele cuidado procedimental acima descrito60.

Direitos e Deveres

Direito subjetivo é prerrogativa ou faculdade conferida a alguém, para que possa agir ou se omitir, nos termos do preceito normativo que criou este direito.

Na qualidade de sócio, o cooperado tem assegurado um rol de prerrogativas e faculdades, tais quais: votar e ser votado, participar de operações da cooperativa, opinar e defender suas idéias, dentre outros.

Dever é imposição estabelecida por norma jurídica.

Na qualidade de sócio, o cooperado está submetido a um conjunto de deveres e obrigações, dentre as quais destacamos a obrigação de acatar a decisão da maioria e a de cumprir os compromissos assumidos junto à cooperativa, dentre outros.

Responsabilidade dos Sócios

O sócio de uma cooperativa pode ser chamado a responder por esta. A extensão da responsabilidade do cooperado em face da cooperativa pode ser limitada ou ilimitada.

A responsabilidade dos cooperados será de natureza ilimitada quando o sócio responde pessoal, solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais61.

A responsabilidade dos cooperados será de natureza limitada quando o sócio responde somente pelo valor das quotas de capital que integralizou na cooperativa62 e pelo prejuízo verificado nas operações sociais63.

Perante Terceiros

Ordinariamente, apenas ao final do exercício social é possível certificar se as operações do sócio com a cooperativa foram adequadamente custeadas por aquele. Somente quando do fechamento do Balanço será possível analisar se houver perdas e se, desse modo, será necessário rateá-las, e em que medida.

Por isso, a fim de salvaguardar o atendimento de créditos de terceiros de boa-fé, bem como para resguardar a solvência e a liquidez das cooperativas, cuidou a legislação de manter a responsabilidade do sócio desligado sobre suas operações perante terceiros até que

60. RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de Sócios nas Sociedades Cooperativas, in ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de & BRAGA, Ricardo Peake (coord). Cooperativismo à luz do Código Civil – SP: Quartier Latin, 2006.61. Nesse sentido, Lei 5.764/71, art. 12 e Lei 10.406/2002, art. 1.095, §2º.62. Vide Lei 5.764/71, art. 11.63. Vide Lei 10.406/2002, art. 1.095, §1º.

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sejam aprovadas as contas do exercício social em que se concluíram os negócios jurídicos.

Art. 36. A responsabilidade do associado

perante terceiros, por compromissos da

sociedade, perdura para os demitidos,

eliminados ou excluídos até quando aprovadas

as contas do exercício em que se deu o

desligamento.

Transmissão a Herdeiros

No direito brasileiro, sempre que um indivíduo vai a óbito seu patrimônio é transmitido aos herdeiros sucessores.

O patrimônio é composto por direitos e obrigações, haveres e deveres, consubstanciadores de ativo e passivo. A rigor, quando da abertura do processo sucessório, devem os créditos ser consumidos para adimplir os débitos, de modo a proceder à partilha apenas dos haveres líquidos.

Dito isso, é certo afirmar que, quando da morte de um cooperado, as obrigações por ele contraídas junto à sociedade são transferidas para os sucessores.

Art. 36, Parágrafo único. As obrigações

dos associados falecidos, contraídas

com a sociedade, e as oriundas de sua

responsabilidade como associado em

face de terceiros, passam aos herdeiros,

prescrevendo, porém, após um ano

contado do dia da abertura da sucessão,

ressalvados os aspectos peculiares das

cooperativas de eletri&cação rural e

habitacionais.

Isto não quer dizer, por outro lado, que o patrimônio dos herdeiros deve servir para saldar débitos do falecido. Em verdade, a liquidação de débitos do falecido deve ser feita à conta dos ativos deixados. A pessoalidade das obrigações protege o patrimônio jurídico dos herdeiros contra investidas de credores do de cujus.

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Responsabilidade de gestores e �scais

Os integrantes de órgão de administração e de Conselho Fiscal respondem civil e/ou criminalmente pela antijuridicidade de ações e omissões perpetradas no exercício do cargo.

Todo sujeito de direito é passível de responsabilização. No caso dos gestores, levam-se em consideração as particularidades de os mesmos “presentarem” as pessoas jurídicas que dirigem. A medida da responsabilidade, todavia, depende da disciplina vigente ao tempo do ato/fato. O direito cooperativo não possui dispositivos próprios sobre o tema, mas toma emprestado de outros ramos jurídicos as normas aplicáveis.

O Conselho Fiscal é os olhos da Assembléia Geral sobre o órgão gestor. Ele tem dever de cuidado. Suspeitas de equívoco devem ser registradas e averiguadas pelos fiscais, sob pena de, em ocorrência de falha da administração, ser corresponsabilizados por omissão.

Capital Social. Formação. Cota-parte. Titularidade. Limite de valor. Limite de concentração. Variabilidade

Capital social é a soma das contribuições financeiras dos sócios para a constituição e o funcionamento da sociedade64.

O Capital Social de uma cooperativa é formado por frações indivisíveis denominadas cotas-partes. Quando ingressa na sociedade, cada cooperado adquire, pelo menos, a titularidade de quantidade mínima de cotas-partes definida pelo Estatuto Social.

Os sócios são livres para estabelecer o valor unitário da cota-parte, desde que este não ultrapasse o valor de um salário-mínimo.

Há também de se observar que, numa cooperativa, nenhum dos sócios pode concentrar mais de 1/3 (um terço) do capital social.

Em razão do fato de a admissão e o desligamento de sócios em cooperativa se dar por registro privado, interno da cooperativa, diz-se que seu capital social é variável. Este caractere é um diferencial em relação a outros modelos societários, nos quais a alteração de montante capitalizado precisa ser registrado em Junta Comercial. A variabilidade do Capital Social em cooperativa é decorrência da facilidade de modificar o volume total de cotas titularizadas pelos sócios, sem controle por ente externo.

Subscrição e integralização. Remuneração de capital

Já dissemos que capital social é a soma das contribuições financeiras dos sócios para a constituição e o funcionamento da sociedade65. A totalidade do capital social

64. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial – 9ª ed – SP: Atlas, 2008.65. Idem.

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é segmentado em pequenas porções, denominadas cotas-partes. Ao ingressar numa cooperativa, o sócio transfere (integraliza) ou se obriga a transferir (subscreve) recursos em valor correspondente a certo número de cotas-partes. Recursos esses que podem ser transmitidos à organização em dinheiro ou bens com expressão pecuniária.

Observe-se, todavia, que a transferência é de posse, jamais de propriedade do numerário. Os bens ou o dinheiro são entregues para viabilizar o funcionamento da sociedade, mas estes, os bens ou o dinheiro, continuam a ser, em última análise, dos sócios.

E tanto assim o é que, quando da escrituração do balanço de uma cooperativa, na coluna da direita, dedicada ao passivo da sociedade, há uma linha dedicada ao capital social.

Dito isso, verifica-se que a natureza jurídica das quotas-partes integralizadas pelo cooperado é de crédito do sócio perante a sociedade. O dinheiro cuja posse o sócio entregou à sociedade, para que esta funcionasse, quando do desfazimento do vínculo societário, deverá ser restituído ao dono, ressalvadas, obviamente, as hipóteses em que o referido capital tenha sido consumido no adimplemento de créditos perante terceiros.

Em geral, a capitalização própria é a fonte mais barata de recursos para uma sociedade. Ainda assim, compreende-se que o sócio tem interesse de receber remuneração sobre o capital entregue à cooperativa.

A remuneração de capital em cooperativa é permitida,

desde que obedeça ao limite de 12% (doze por cento) de juros ao ano66.

Dispensa de capital no Novo Código Civil

Nos termos da 5764/71, toda cooperativa deve ter capital social67.

Por outro lado, o CC/02 estabelece que cooperativas tenham faculdade de dispensa de capital social68.

A possibilidade de dispensa de capital social em sociedades cooperativas era reconhecida pela alínea b do art. 3º do Decreto-Lei nº. 59, de 21 de novembro de 1966.

A dispensa de capital social em sociedades cooperativas era aplicada no Brasil, em face da importação do modelo Raiffeisen de cooperativismo. Segundo esse modelo, trabalhadores sem recursos financeiros, aos quais era negado crédito por impossibilidade de oferecerem garantias reais, assumiriam financiamento para aquisição de bem comum, normalmente um bem de produção, a partir do qual trabalhariam para desenvolver sua atividade econômica. Segundo esse modelo, em face de os trabalhadores não poderem oferecer garantia real aos credores, ofereceriam responsabilidade solidária ilimitada, de modo que todos responderiam pela totalidade do débito, a fim de reduzir os riscos do negócio e tornar financeiramente viável o empreendimento69.

66. Lei 5.764/71, art. 24, §3º.67. Lei 5.764/71, art. 21, inc. III.68. Lei 10.406, art. 1.094, inc. I.69. MLADENATZ, Gromoslav. História das Doutrinas Cooperativistas – Trad.: José Carlos Castro; Maria da Graça Leal; Carlos Potiara Castro – Brasília: Confebrás, 2003.

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Como seria impossível contratar com centenas de trabalhadores, constituir-se-ia uma cooperativa, a qual figuraria no contrato como devedora e titular do bem adquirido. Os trabalhadores, por seu turno, eram sócios da cooperativa e respondiam solidária e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade.

É dito que esse modelo funcionou com sucesso na Alemanha, mas, no Brasil, não alcançou o êxito esperado69. Por conta disso, a lei de 1971, preocupada com a viabilidade do negócio empreendido pela cooperativa, passou a exigir capital social para sua constituição.

A lei 10.406/2002 pretendeu reintroduzir no ordenamento jurídico brasileiro a faculdade de dispensa de capital social em cooperativas, mas não logrou êxito. Conforme já explicado, a própria lei civil ressalva a aplicação da lei especial cooperativista sobre o Código Civil. Dito isso, é induvidável que, para constituição de cooperativas, é imperiosa a definição de capital social.

Órgãos Sociais

A sociedade cooperativa possui uma estrutura societária mínima composta por três órgãos: a Assembleia Geral, o Conselho Fiscal e um Órgão Gestor.

Esta conformação é um patamar mínimo, de modo que resta facultada a criação de outros órgãos, mas, neste trabalho, trataremos apenas dos componentes essenciais.

Assembleias Gerais. Convocação. Instalação. Classi"cação. Deliberação. Representação

A Assembleia Geral é o órgão superior da sociedade e reúne todos os sócios da cooperativa. Ela tem competência para deliberar sobre temas de interesse geral,

de modo a vincular a todos os associados, ainda que ausentes ou discordantes.

A disciplina de funcionamento deste órgão é bastante solene e formal, de modo a inquinar de nulidade qualquer decisão tomada com inobservância de algum dos preceitos a ela impostos.

A convocação de uma Assembleia Geral apenas pode ser feita por autoridades, órgãos colegiados ou quantidade mínima de sócios. O único que por ato individual pode convocá-la é o dirigente do Órgão Gestor da cooperativa (normalmente chamado de Presidente). Para além dele, apenas o Órgão Gestor, o Conselho Fiscal ou 1/5 (um quinto) dos associados, após requerimento desatendido, podem chamá-la.

O ato convocatório não deve ser expedido de qualquer modo nem a qualquer tempo. Deve-se guardar um interregno mínimo de 10 (dez) dias entre a convocação e a reunião assemblear.

Ademais, exige-se a concorrência de, pelo menos, três veículos de comunicação para publicização do ato: (1) afixação de editais em locais mais frequentados pelos sócios; (2) publicação em jornal; e (3) comunicação aos associados por circulares a eles remetidas.

Convocada validamente a Assembleia, segue-se à tarefa de instalá-la, ou seja, de iniciar seus trabalhos.

A instalação de uma Assembleia Geral exige a presença de quantidade mínima (quórum) de sócios em local, dia e hora aprazados. Na hipótese de não haver, no horário agendado, quantidade adequada para a instalação, pode o órgão ser instalado em segunda ou em terceira convocações, desde que isso esteja permitido pelos documentos constitutivos da cooperativa e seja respeitado lapso temporal mínimo de uma hora entre uma e outra convocação. Na hipótese de poder haver mais de uma convocação de sócios, esta deverá obedecer à gradação estabelecida pelo artigo 40 da Lei 5.764/71:

69. GUIMARÃES, Mário Kruel. Cooperativismo de Crédito – Módulo 05 – 3ª ed. – Brasília: Confebrás, 2001.

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Art. 40. Nas Assembléias Gerais o quórum de instalação será o seguinte:I. 2/3 (dois terços) do número de associados, em primeira convocação;II. Metade mais 1 (um) dos associados em segunda convocação;III. Mínimo de 10 (dez) associados na terceira convocação, ressalvado o caso de cooperativas centrais e federações e confederações de cooperativas, que se instalarão com qualquer número.

A lei cuidou da classificação da Assembleia Geral, que podem ser ordinárias ou extraordinárias. Ordinárias (AGO) são as Assembléias Gerais que devem ocorrer nos três primeiros meses subsequentes ao término de cada exercício social, a fim de tratar sobre: I – prestação de contas dos órgãos de administração acompanhada de parecer do Conselho Fiscal; II – destinação das sobras ou rateio das perdas; III – eleição dos componentes dos órgãos de administração, do Conselho Fiscal e de outros, quando for o caso; IV – quando previsto, a fixação do valor dos honorários, gratificações e cédula de presença dos membros do Conselho de Administração ou da Diretoria e do Conselho Fiscal70, assim como V – quais assuntos de interesse social, excluídos os temas de competência exclusiva da Assembléia Geral Extraordinária (AGE).

Diz-se Extraordinária aquela reunião assemblear que, ou trata de temas especiais71, ou ocorre em momento distinto ao dedicado às AGOs.

A classificação da Assembléia Geral é motivo de muita confusão por parte das cooperativas, de modo que sua extinção pode ser tornar realidade com a aprovação de Projeto de Lei de novo marco normativo do cooperativismo72.

As deliberações deste órgão, normalmente, se dão por maioria simples dos presentes. Basta que mais da metade dos sócios partícipes decidam, para que a tese prevalecente transforme-se em determinação oponível a todo o corpo social, inclusive aos discordantes e aos ausentes.

Todavia, há temas que exigem quórum qualificado de aprovação. Os temas que exigem quantidade superior de concordância (pelo menos 2/3 dos presentes) para aprovação válida são aqueles cuja especialidade reivindicam a instalação de AGE: I – reforma do estatuto; II – fusão, incorporação ou desmembramento; III – mudança do objeto da sociedade; IV – dissolução voluntária da sociedade e nomeação de liquidantes; V – contas do liquidante.

Em regra, é vedada a representação de sócio em assembleia geral de cooperativa singular. Querendo participar, deve o cooperado apresentar-se pessoalmente.

As exceções ocorrem em apenas duas hipóteses: quando a cooperativa tem mais de 3.000 (três mil) sócios, ou quando a sociedade tem sócio que resida a mais de

70. Vide art. 44 da Lei 5.764/71.71. São especiais os temas indicados no Parágrafo Único do art. 46 da Lei 5.764/71: I – reforma do estatuto; II – fusão, incorporação ou desmembramento; III – mudança do objeto da sociedade; IV – dissolução voluntária da sociedade e nomeação de liquidantes; V – contas do liquidante.72. Vide Projeto de Lei do Senado nº 003/2007.

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50 (cinquenta) quilômetros da sede da cooperativa. Nestes casos, é facultado a todo e qualquer sócio fazer-se representar por mandatário73.

Órgão Gestor. Composição. Mandato. Renovação. Inelegibilidades

Órgão gestor é aquele com atribuição de dirigir o dia-a-dia da organização. A sociedade cooperativa haverá de ser administrada por um dos seguintes órgãos: (1) Diretoria; (2) Conselho de Administração; ou (3) Conselho de Administração constituído por uma Diretoria Executiva e por membros vogais74. Seja qual for a opção de cada cooperativa, o órgão de administração deverá ter composição por, no mínimo, 03 (três) cargos, os quais deverão ser ocupados exclusivamente por sócios.

Há cooperativas que optam pela contratação de não-sócios para o exercício de funções executivas, o que é facultado pela legislação.

O mandato, ou seja, tempo de permanência do sócio no cargo é determinado pelo Estatuto Social. A liberdade de definição, entretanto, é limitada, posto que há comando normativo de que o mandato nunca deve ser superior a 04 (quatro) anos75.

Ao final de cada mandato, haverá nova eleição. Quem elege os gestores de uma cooperativa é a Assembleia Geral, sendo obrigatória a renovação dos ocupantes do órgão gestor, à razão mínima de 1/3. Isto quer dizer que, ao final de cada ciclo, mesmo que a Assembleia Geral aprove a gestão finda, ela não poderá manter todos os ocupantes dos cargos. Pelos menos um terço dos membros do órgão gestor deverá ser renovado.

Há hipóteses de inelegibilidade de determinadas pessoas a cargos do órgão de administração. Em que pese a regra ser o direito de qualquer sócio a concorrer

em qualquer eleição, são inelegíveis os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos, assim como os por incursão em crime falimentar, de prevaricação, dentre outros descritos no caput do artigo 51 da Lei 5.764/71. Ademais, não devem compor órgão de administração os parentes entre si até o 2º (segundo) grau, seja em linha reta ou colateral. Também não deve haver esse grau de parentesco entre membros de órgãos gestores e Conselho Fiscal.

Conselho Fiscal. Composição. Mandato. Renovação. Inelegibilidades

Conselho Fiscal é o órgão com atribuição de analisar a regularidade dos atos perpetrados pelo (s) órgão (s) gestor (es) da cooperativa. Sua composição é feita por, no mínimo, 06 (seis) cargos – 03 (três) dedicados aos Conselheiros Titulares, 03 (três) afetos aos Conselheiros Suplentes.

Apenas cooperados podem ocupar esses cargos, por mandato jamais superior a um ano, os quais estão submetidos a renovação mínima, ao final de cada ciclo, à razão de 2/3 (dois terços).

Aplicam-se ao Conselho Fiscal as mesmas hipóteses de inelegibilidade definidas para o órgão gestor. Em que pese a regra ser o direito de qualquer sócio a concorrer em qualquer eleição, são inelegíveis os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos, assim como os por incursão em crime falimentar, de prevaricação, dentre outros descritos no caput do artigo 51 da Lei 5.764/71. Ademais, não devem compor Conselho Fiscal os parentes entre si até o 2º (segundo) grau, sejam em linha reta ou colateral. Também não deve haver esse grau de parentesco entre membros do Conselho Fiscal e os de órgãos gestores76.

73. ALVES, Francisco de Assis & MILANI, Imaculada Abenante. Sociedades Cooperativas: regime jurídico e procedimentos legais para constituição e funcionamento – 2ª ed. – SP: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 70-72.74. Disciplina de"nida através da Resolução nº 12 do Conselho Nacional do Cooperativismo, nos termos do art. 47 da Lei Cooperativista.75. Lei 5.764/71, art. 47.76. Idem, pp. 76

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Outros órgãos

Além desses órgãos, a cooperativa poderá criar outros, conforme disposição estatutária. É usual, por exemplo, a criação de órgãos dedicados à disciplina.

Fundos Sociais. Conceito. Classi!cação: divisíveis e indivisíveis; obrigatórios e facultativos.

Fundos são parcelas de patrimônio afetadas para determinado fim. Infinitas são as possibilidades para a criação de fundos. A lei, todavia, exige das sociedades cooperativas a criação de pelo menos dois: o Fundo de Reserva e o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES). São os chamados fundos legais.

O Fundo de Reserva é destinado a reparar perdas contábeis e a atender ao desenvolvimento da cooperativa.

Por outro lado, o FATES destina-se a prestação de assistência aos cooperados, seus familiares e, quando facultado pelo Estatuto Social, aos empregados da cooperativa.

Os fundos legais, que são indivisíveis, têm fontes mínimas de recursos. Dentre essas fontes, estão as sobras líquidas do exercício social. Nos termos da Lei 5.764/71, pelo menos 10% (dez por cento) das sobras líquidas de cada exercício social devem ser destinados à conta do Fundo de Reserva, bem assim como pelo menos 5% (cinco por cento) das mesmas sobras líquidas de cada exercício devem ser creditados ao FATES.

Pode ainda a Assembleia Geral criar outros fundos – conhecidos como fundos facultativos – os quais podem ser, ou não, divisíveis.

Ato cooperativo. Conceito. Elementos

Dentre as muitas especificidades do estudo sobre o Direito Cooperativo, sobreleva-se a compreensão de uma modalidade especial de ato jurídico: o ato cooperativo.

Na América Latina, o conceito de ato cooperativo foi apresentado em meados do século XX. Um dos primeiros autores latinos a tratar do tema, o professor mexicano Antonio Salinas Puente, em estudo denominado “Teoria do Ato Cooperativo” conclui que ato cooperativo

é o suposto jurídico, ausente de lucro

e de intermediação que a organização

cooperativa realiza em cumprimento de um

!m preponderante econômico e de utilidade social77.

No Brasil, o conceito de ato cooperativo é apresentado pelo professor Waldírio Bulgarelli, no livro Elaboração do Direito Cooperativo. Segundo ele, atos cooperativos são

aqueles realizados pela cooperativa com seus sócios, diferenciando-os dos que realiza com terceiros, ainda que admita que a originalidade dos atos praticados pela cooperativa poderia se manifestar também nos atos celebrados com terceiros78.

A definição do professor brasileiro antecipa um conflito doutrinário que promove efeitos de ordem legislativa e jurisprudencial no Brasil e na América.

A questão é saber se o ato cooperativo apenas pode ser perpetrado entre cooperados e cooperativas, assim como entre estas, desde que associadas – o que consiste no conceito restritivo – ou se, além destes, também se consideram

77. PUENTE, Antonio Salinas. Apud CRACOGNA, Dante. O Ato Cooperativo na América Latina in KRUEGER, Guilherme. Ato Cooperativo – e seu adequado tratamento tributário – Mandamentos: BH, 2004, pág. 50.78. BULGARELLI, Waldirio. Apud CRACOGNA, Dante. O Ato Cooperativo na América Latina in KRUEGER, Guilherme. Ato Cooperativo – e seu adequado tratamento tributário – Mandamentos: BH, 2004, pág. 51.

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cooperativos os atos celebrados entre cooperativas e terceiros – o que consistiria no conceito extensivo.

Comparando-se as leis cooperativas na América Latina, verifica-se que os legisladores assumiram posições variadas.

Na Argentina, o art. 4º da lei 20.337 de 1973 acolhe o conceito extensivo quando dispõe que

Son actos cooperativos los realizados

entre las cooperativas sus asociados y por

aquéllas entre sí en el cumplimiento del

objeto social y la consecución de los �nes

institucionales.

También son, respecto de las cooperativas,

los actos jurídicos que con idéntica �nalidad

realicen con otras personas.

No Brasil, o conceito legal de ato cooperativo está expresso no art. 79 da lei 5.764 de 1971:

Art. 79. Denominam-se atos cooperativos

os praticados entre as cooperativas e seus

associados, entre estes e aquelas e pelas

cooperativas entre si quando associados,

para a consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não

implica operação de mercado, nem

contrato de compra e venda de produto ou

mercadoria.

Do quanto exposto, observa-se que o conceito legal adotado em nosso país assume a linha restritiva.

Analisando a norma brasileira, verificamos que a mesma apresenta, no caput, elementos subjetivos e objetivos, após os quais, no parágrafo único expressamente afasta possíveis interpretações equivocadas.

Elementos subjetivos são os que indicam os sujeitos legitimados para perpetrar o ato cooperativo, ou seja, a cooperativa e o sócio.

Por cooperativa, compreendem-se as singulares, as centrais, as federações e as confederações.

Por sócio, compreendem-se as pessoas físicas ou jurídicas admitidas no quadro social das cooperativas singulares, assim como as cooperativas singulares vinculadas à central ou federação, bem como estas para com uma confederação.

Observemos que não basta a participação de um único sujeito dos gêneros acima indicados. Imperioso se faz que a relação jurídica tenha a participação destes nos dois pólos, ou seja, ativa e passiva. Afinal, partindo do conceito restritivo, a participação de terceiro alheio à sociedade desnatura o ato cooperativo.

O elemento objetivo manifesta-se no final do caput do artigo, quando se compreende que “Denominam-se atos cooperativos os praticados (...) para a consecução dos objetivos sociais”. O ato cooperativo tem por objeto a consecução dos objetivos sociais.

Mas, afinal, quais são os objetivos sociais de uma cooperativa?

Em princípio, as cooperativas têm objetivos sociais distintos, em função dos ramos econômicos em que atuam.

Todavia, pela própria natureza da sociedade, todas elas apresentam um determinado objetivo essencial, que é comum a todas elas. O objetivo essencial, expresso ou subjacente em qualquer real cooperativa é o de prestar serviços aos sócios. Não qualquer serviço, como lavar o carro no fim de semana, mas no sentido de conferir acessibilidade aos bens econômicos desejados. Este é o objetivo essencial de toda e qualquer cooperativa.

Além disso, inclui a cooperativa, no rol de objetivos, aqueles que o sócio almeja atingir em função da atividade econômica desenvolvida. A cooperativa de trabalho objetiva contratar as maiores remunerações para as horas trabalhadas pelo sócio. A de consumo, adquirir bens pelo menor preço. A de transporte, alcançar descontos em preços de combustível e outros insumos.

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N’outro sentido, não se considera ato cooperativo aquele que, mesmo perpetrado entre sócio e cooperativa, não contemple um objetivo social. Afinal, não é objetivo de uma cooperativa de saúde a aquisição de tratores para uso em fazenda de cooperado. Por tudo isso, corrobora-se a certeza de que é muito importante, na fase de elaboração do estatuto, a correta identificação do objeto da cooperativa.

Já indicamos que o parágrafo único do art. 79 da lei 5.764/71 exclui algumas considerações sobre o ato jurídico. Somaremos a elas algumas outras conclusões de origem legal e/ou doutrinária, com vistas a certificar que o ato cooperativo:

Não é operação de mercado;

Não é contrato de compra e venda;

Não estabelece vínculo de emprego;

Não é sujeito a plena tributação79.

Divergências

Tudo o quanto acima dito não dirime as dúvidas sobre o conceito e a extensão do ato cooperativo.

Muitos são os que defendem, no Brasil, a extensão do conceito80.

Para os extensionistas, o ato cooperativo é gênero no qual se inserem quatro espécies: ato-fim, ato-meio, ato-auxiliar e ato-acessório.

O ato-fim é a operação principal da cooperativa, em função da qual ela foi criada. Consiste, por exemplo, na entrega da produção do cooperado à cooperativa a fim de que esta realize operações junto ao mercado, ou

ao repasse de valores monetários pela cooperativa ao cooperado, a título de remuneração do trabalho realizado por este ao contratante. Ocorrem dentro da sociedade. Ou seja, o ato-fim da doutrina extensionista corresponde ao conceito de ato cooperativo oferecido pela corrente restritiva, coincide com o conceito legal brasileiro de ato cooperativo.

Ato-meio é aquele que, embora não seja finalidade da cooperativa, é essencial para o sucesso, para a realização do ato-fim. Ele se manifesta no contato da cooperativa com o ambiente externo desta sociedade, com o mercado. É o que se configura, a título de ilustração, quando a cooperativa de costura vai ao mercado adquirir tecidos, linhas e máquinas para a produção dos sócios, assim como quando aquela vende a produção destes ao mercado consumidor, ou a um varejista.

Ato-auxiliar, por seu turno, realiza-se na operacionalização das atividades. Diz respeito à contratação de empregados e locação de imóveis, por exemplo. É um auxílio ao exercício da atividade fim.

Ato-acessório, por derradeiro, seria todo aquele que, embora não muito frequente nem necessário à operação da mesma, pode oferecer algum resultado material. Isto se observa, por exemplo, na alienação de equipamentos obsoletos.

Esta linha doutrinária é bastante presente nas fileiras cooperativistas. Autores brasileiros especializados em Direito Cooperativo assumem este entendimento81.

Decorre da divergência parcela considerável das contendas políticas e judiciais em que se envolvem as cooperativas.

A discussão é de tal envergadura que, no congresso nacional, já foram apresentados três projetos de lei pretendendo disciplinar o regime jurídico cooperativo, os quais se filiam a correntes diferentes:

79. PERIUS, Vergílio Frederico. Cooperativismo e Lei – RS: Unisinos, 2001.80. LIMA, Reginaldo Ferreira. Direito Cooperativo Tributário – SP: Max Limonad, 1997, pp 54-55.81. BECHO, Renato Lopes. O Conceito Legal de Ato Cooperativo e os Problemas para o seu “Adequado Tratamento Tributário” in BECHO, Renato Lopes (coord). Problemas Atuais do Direito Cooperativo – SP: Dialética, 2002.

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Art. 55. Ato cooperativo é aquele praticado entre

a cooperativa e seu sócio ou entre cooperativas

associadas, na realização de trabalhos, serviços

ou operações que constituam o objeto social.

§ 1º. O ato cooperativo não é operação de

mercado nem contrato de compra e venda de

produto, mercadoria ou prestação de serviços82.

Art. 48. Ato cooperativo é aquele praticado

entre a cooperativa e seu associado, ou entre

cooperativas associadas, na realização do

trabalho, serviço ou operação que constituem o

objetivo social da cooperativa.

§ 1°. O ato cooperativo não é operação de

mercado nem contrato de compra e venda de

produto, mercadoria ou prestação de serviço.

§ 2°. Equiparam-se ao ato cooperativo os

negócios auxiliares ou meios, indispensáveis à

consecução dos objetivos sociais83.

Art. 36. Ato cooperativo é aquele praticado entre

a cooperativa e seu sócio ou entre cooperativas

associadas, na realização de trabalhos, serviços

ou operações que constituam o objeto social.

§ 1º. O ato cooperativo não é operação de

mercado nem contrato de compra e venda de

produto, mercadoria ou prestação de serviços84.

Desses três projetos, continua ativo apenas o apresentado pelo Senador José Fogaça. Atualmente ele se encontra no Senado da República, sob registro de nº. 003/2007.

Do sistema operacional das cooperativas

As especificidades da dinâmica financeira da organização cooperativa levaram os formuladores da Lei 5.764/71 a demonstrarem a distinção entre a sobra da cooperativa e o lucro da então sociedade mercantil85. Posteriormente, já na década de 1990, examinou-se a natureza das entradas e saídas nas operações decorrentes do ato cooperativo, distinguindo-as das receitas e despesas realizadas pelas empresas86.

A edição das Resoluções nº. 920/2001 e 944/2002 pelo Conselho Federal de Contabilidade significaram a recepção das teses cooperativistas. Em face disso, a entrada e a saída de recursos financeiros, por meio da perpetração de ato cooperativo, não gera receita ou despesa, mas ingresso ou dispêndio. Após as novas Resoluções, a Norma Brasileira de Contabilidade nº 10.8 passou a ostentar a seguinte redação:

10.8.1.4 – A movimentação econômico-

%nanceira decorrente do ato cooperativo,

na forma disposta no estatuto social, é

de%nida contabilmente como ingressos

e dispêndios (conforme de%nido em lei).

Aquela originada do ato não-cooperativo é

de%nida como receitas, custos e despesas.

As particularidades do sistema operacional das cooperativas são, todas elas, decorrentes da prática de atos cooperativos. A prática do ato cooperativo faz com que a cooperativa atue como substituto do sócio, ou seja, em nome próprio, mas em benefício do cooperado.

82. Projeto de Lei do Senado apresentado pelo Senador José Fogaça.83. Projeto de Lei do Senado apresentado pelo Senador Osmar Dias, sob o número 171, de 1999.84. Projeto de Lei do Senado apresentado pelo Senador Eduardo Suplicy, sob o número 605, de 1999.85. KRUEGER, Guilherme. Sistema Operacional das Cooperativas – Comentários; in KRUEGER, Guilherme (coord). Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas, Tomo I – BH: Mandamentos, 2007, p. 359.86. Idem.

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Quem assina contrato com um cliente é a cooperativa, mas quem cumpre o dever assumido e se beneficia do resultado auferido é o cooperado.

Sempre que a prática do ato cooperativo ocasionar resultado financeiro positivo, chama-se este de ingresso. O ingresso é a realização de um crédito pago por um terceiro que, embora realizado à conta da cooperativa, em verdade, pertence ao cooperado.

Numa cooperativa de produtores rurais, os produtores colhem os frutos da terra e os entregam à cooperativa para que esta os beneficie e negocie em escala. Quando o terceiro, comprador dos frutos, paga pela compra, deposita o dinheiro na conta da cooperativa. Esse depósito de dinheiro é chamado de ingresso.

Entretanto o dinheiro não é da cooperativa, mas do sócio que colheu os frutos. Por isso, a cooperativa, após reter o valor correspondente (1) às obrigações fiscais e (2) ao custeio da cooperativa, deverá repassar o dinheiro ao sócio produtor. Repasse, portanto, é o ato através do qual a cooperativa transfere ao cooperado o dinheiro que pertence a ele.

Como acima dito, o repasse apenas é feito após a retenção de valor necessário ao custeio da cooperativa. Esse custeio pode ser suportado pela cobrança de um percentual sobre o ingresso, que pode ser chamado de taxa de administração. A taxa de administração é uma contribuição do sócio para a manutenção da cooperativa.

De maneira contrária, sempre que a prática do ato cooperativo ocasionar resultado financeiro negativo chama-se este de dispêndio. O dispêndio é toda sorte de

gasto que, embora realizado pela cooperativa, deve ser suportado pelo cooperado.

Naquela mesma cooperativa de produtores rurais, os integrantes se reúnem para adquirir coletivamente os insumos, através da cooperativa. Quando o vendedor dos insumos cobra pela venda, o pagamento é feito a partir do caixa da cooperativa. Esse gasto de dinheiro é chamado de dispêndio. Quem figurou no contrato de compra e venda foi a cooperativa, mas, na realidade, os insumos adquiridos são dos cooperados e estes deverão suportar o ônus da compra.

Em situações como essas, pode a cooperativa ratear os dispêndios entre os sócios, independentemente de haver ou não cobrança de taxa de administração. Rateio de dispêndios é o ato de dividir, entre os sócios, o ônus de suportar os gastos feitos pela cooperativa.

Durante o ano são praticados inúmeros atos cooperativos em uma sociedade cooperativa. Alguns geram ingressos, outros, dispêndios. A incidência de taxa de administração e prática de rateio de dispêndios promovem a sustentabilidade da organização.

Findo o exercício social, é elaborado o balanço contábil. Neste momento é possível saber se o resultado anual da atividade da cooperativa foi superavitária ou deficitária.

Quando se verifica superávit na atividade da organização, conclui-se que houve sobras. Sobra é o volume de dinheiro que a cooperativa reteve a maior dos cooperados87. Ocorre quando, durante o ano, a cooperativa exigiu dos sócios mais do que precisava para ser mantida. Na hipótese de haver sobras no exercício social, pelo menos 15% (quinze por cento) delas deverão ser destinadas aos fundos legais (5% para o FATES e 10% para o Fundo de Reserva). Os outros 85% terão destino definido pela Assembleia Geral, ressalvados os casos em que o Estatuto Social dispuser de outro modo.

87. FARIA, Guiomar T. Estrella. As Sobras Líquias das Sociedades Cooperativas e a Contribuição Previdenciária Rural; in FRANKE, Walmor (coord). A interferência estatal nas cooperativas: aspectos constitucionais, tributários e societários – Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 27.

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Quando se verifica déficit na atividade da organização, conclui-se que houve perda. Perda é o volume de dinheiro que a cooperativa reteve a menor dos cooperados. Ocorre quando, durante o ano, a cooperativa exigiu dos sócios menos do que precisava para ser mantida. Na hipótese de haver perda no exercício social, deverá a mesma ser coberta pelos recursos alocados no Fundo de Reserva. Entretanto, em sendo o caso de o citado fundo não dispor de meios para cobrir o montante da perda, esta haverá de ser suportada pelos cooperados, mediante rateio.

Livro III – Notas sobre Direito AssociativoIntrodução

O fenômeno associativo se revela pela intenção dos indivíduos de se organizarem de forma coletiva, com objetivo de atingir fim comum, promovendo a participação comunitária e o exercício de sua cidadania. Tal fato se observa nos Empreendimentos de Economia Solidária, uma vez que o seu retorno econômico não é o fim da Organização. Todos estabelecem como pilares basais valores como a cooperação e a solidariedade.

Ao analisar esse direito de coletividade, observa-se a forte intenção de promover o indivíduo como centro da preocupação do ordenamento jurídico. O próprio direito civil hodierno avaliza esta concepção, uma vez que possui forte veia solidária, menos individualista e patrimonializada.

Nesta linha de pensamento exsurge atualmente o fenômeno da repersonalização do direito civil, que

congloba o conceito de solidariedade sob o espectro da solidariedade constitucional.

Tem-se como um dos princípios norteadores do Código Civil de 2002 o Princípio da Socialidade que “surge como contraposição à ideologia individualista e patrimonialista do sistema de 1916. Por ele, busca-se preservar o sentido de coletividade, muitas vezes em detrimento de interesses individuais.88”

Nesta ótica, torna-se indubitável reconhecer a importância das associações para o fortalecimento do tecido organizativo da sociedade civil, uma vez que esta se propõe exatamente a consolidar este senso de coletividade.

Analisando o tema, Léon Duguit89 leciona:

(...) o ser humano nasce integrando uma

coletividade; vive sempre em sociedade e assim

considerando só pode viver em sociedade (...)

o fundamento do direito deve basear-se, sem

dúvida, (...) (no) indivíduo comprometido com os

vínculos da solidariedade social. Não é razoável

a&rmar que os homens nascem livres e iguais

em direitos, mas sim que nascem partícipes de

uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as

obrigações que subentendem a manutenção e

desenvolvimento da vida coletiva. (...) Se uma

doutrina adota como lógica de&nida a igualdade

absoluta e matemática dos homens, ela se opõe

à realidade e por isso deve ser prescindida.

88. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. Vol. I. Editora Saraiva. 9ª Edição. 2007. P. 5189. DUGUIT, Pierre M. N. Léon. Fundamentos do Direito. São Paulo: Ícone, 1996, p. 15/17.

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Daniel Sarmento90, a respeito do tema, complementa:

A solidariedade implica o reconhecimento de

que, embora cada um de nós componha uma

individualidade, irredutível ao todo, estamos

também todos juntos, de alguma forma

irmanados por um destino comum.

E percorre preconizando que:

Ela (a solidariedade) signi!ca que a sociedade não deve ser o locus da concorrência entre

indivíduos isolados, perseguindo projetos

pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais91.Assim, nas linhas preliminares a respeito do tema, resta con!gurada, pois, a importância da organização associativa frente às questões da

sociedade civil.

Das Entidades Associativas

Origem e Personalidade

Caio Mário92, citando Ennecerus, lembra que em todos os povos “a necessidade sugeriu uniões e instituições permanentes para a obtenção de fins comuns, desde as de

raio de ação mais amplo (como Estado, Município, Igreja...) até as mais restritas como as associações particulares”.

Conforme preleciona o insigne José Carlos Moreira Alves, no direito pré-clássico não havia ainda em Roma a intenção de atribuir-se personalidade a pessoa jurídica. Apenas as pessoas físicas eram detentoras de direitos subjetivos e neste período os romanos entendiam que, quando existia patrimônio coletivo, o titular dele eram todas as pessoas que faziam parte daquela coletividade e não uma entidade própria e distinta como nos tempos atuais.

O ilustre professor Caio Mário ensina que no direito clássico já existiam duas categorias de universitates dotadas de personalidade: a universitas personarum (compreendendo os colégios, associações de republicanos, agrupamentos artesanais); e as universitas bonorum, atuais fundações. Nesta época, já se podia distinguir a pessoa física do ente coletivo, uma vez que este último já possui condições de ser titular de direito subjetivo.

No direito pós-clássico os romanos alcançaram uma concepção de uma das espécies de pessoa jurídica: a corporação ou associação. Nesta época, não havia um conceito solidificado e invariável do que hoje denominamos associação. Entretanto, já havia algumas exigências para formalização da constituição deste tipo de entidade coletiva: exigia-se número mínimo de pessoas para se associarem (três), era necessário um estatuto onde fosse possível regular sua estrutura e funcionamento da entidade e sua finalidade obviamente deveria ser lícita.

90. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 338.91. Idem, ibidem.92. PEREIRA, Caio Maio da Silva, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2001, v. 1, p.186.

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A doutrina diverge no que tange a respeito da exigência de autorização prévia estatal para atribuição de personalidade nesta época. O eminente professor José Carlos Moreira Alves avaliza a tese de que prevalece na doutrina apenas a teórica desnecessidade desta exigência. Para ele, em razão da influência estatal, para que a entidade se reputasse lícita, em geral, na prática, era indispensável esta autorização.

Observe-se que, em que pese ser indiscutível a evolução na concepção do conceito da corporação, no direito pós-clássico ainda era limitada sua capacidade jurídica, uma vez que se restringia ao campo dos direitos subjetivos patrimoniais, e mesmo neste âmbito sofria algumas restrições no que concerne a direitos sucessórios.

No Brasil, por volta do século XVII, havia grande quantidade de registro de entidades filantrópicas no país, restritas em sua maioria à lógica da prática assistencialista. Nesse período surgiram as Santas Casas de Misericórdia, os asilos, os orfanatos, entidades que mantém uma forte dependência estatal na gestão e custeio destas organizações.

No ano de 1916 ocorreu a promulgação do Código Civil e esta legislação consolidou o conceito de associação como entidade privada sem fim lucrativo. O Código Civil de 1916 elencava em seu artigo 16 aquelas entidades que poderiam ser consideradas como pessoas jurídicas de direito privado:

I – as sociedades civis, religiosas, pias,

morais, cientí�cas ou literárias, as associações

de utilidade pública e as fundações;

II – as sociedades mercantis;

III – os partidos políticos.

Percebe-se que o antigo Código de 1916 tratava de

maneira genérica as associações civis, na medida em que as incluía no mesmo inciso dedicado às sociedades civis e às fundações93.

Na década de 20 e 30, em razão da industrialização e dos problemas socioeconômicos, era muito comum surgirem entidades que atrelassem o setor privado às práticas de cunho social, que pregavam a ajuda mútua e o fortalecimento das relações coletivas, tais como os sindicatos e as associações profissionais.

Surgiu no ano de 1935 a primeira legislação responsável por regular a relação entre organizações civis sem finalidade lucrativa e o Estado, denominada como lei de Utilidade Pública Federal (até hoje vigente).

Esta lei foi responsável por reconhecer institucionalmente que organizações da sociedade civil prestavam ações sociais, podendo por isso pleitear o título de Utilidade Pública. Através da obtenção deste título, as organizações civis de finalidade não lucrativa têm condição de obter subvenções, isenções e imunidades de impostos, subsidiando, assim, as ações sociais por elas desenvolvidas94.

Nessa mesma época, várias outras leis foram instituídas com objetivos bem próximos dos acima apresentados, de modo que acabaram por se sobrepor umas às outras e por tornar complexa a legislação do setor95.

No período do regime militar e nos anos seguintes (décadas de 1970 e 1980), predominava a repressão e a censura. Assim, não se destacavam mais as instituições assistencialistas, pois começavam a surgir fortes movimentos sociais que precipuamente contestavam o regime em vigor. Como qualquer forma de cooperação estava previamente rejeitada, nesse período, as organizações não-governamentais eram basicamente financiadas por organismos internacionais96.

93. GARCIA, Gilberto. Novo Direito Associativo – SP: Método, 2007, p. 51.94. FERRAREZI. Elisabete. O novo marco legal do Terceiro Setor no Brasil. Disponível em: <http://www.comunidadesolidaria.org.br> Acesso em: 20 de março de 2009.95. Idem.96. FALCONER. Andres Pablo. Um setor ou diversos? Reconhecendo o Terceiro Setor no Brasil. São Paulo: FEA-USP, Anais do 3° Semead, 1998.

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Com a redemocratização do país nas décadas de 80 e 90, houve a reconquista dos direitos civis e políticos e a aquisição dos direitos sociais. Segundo Ferrarezi:

a prática do assistencialismo implica

postura paternalista e tutelar, distribuindo

favores e não reconhecendo direitos. Já

uma política de assistência social provê a

quem necessitar benefícios e serviços para

o acesso à renda mínima e o atendimento

das necessidades humanas básicas, como

direito do cidadão97.

Nos anos seguintes até os dias atuais, há uma redefinição do foco das organizações não lucrativas, uma vez que elas se propõem a tratar de assuntos mais pontuais, em geral conjugando temas específicos e a defesa de minorias, como grupos quilombolas, indígenas, aidéticos, produtores rurais etc.

Conceito e Características

A partir das classificações de pessoas jurídicas estabelecidas no Livro I, podemos qualificar a associação como sendo o ente privado dotado de personalidade jurídica, formado pela reunião voluntária de pessoas para realizar objetivo comum com fim não econômico.

Nas palavras do professor Caio Mário, “numa associação vê-se um conjunto de pessoas, unindo seus esforços e dirigindo suas vontades para consecução de fins comuns.” Nesta entidade, não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.

Observe-se que, a partir desse agrupamento de indivíduos, cria-se uma entidade autônoma e detentora de capacidade jurídica própria. Vale lembrar que esta

organização poderá ou não ter patrimônio, em que pese antigamente não se admitir a existência de uma pessoa jurídica desprovida de bens.

Nesta linha de ideias, preleciona o notável professor Caio Mário que “é preciso que além do fato externo da sua aglomeração (reunião de indivíduos) para que tenha nascimento a personalidade jurídica, se estabeleça uma vinculação jurídica específica, que lhe imprima ‘unidade orgânica’ ”.

Conforme bem explicitado em tópicos anteriores, para concedermos personalidade jurídica a uma entidade associativa, necessário se faz contemplarmos três requisitos fundamentais: vontade humana criadora, respeito aos regramentos legais no momento da sua constituição e estabelecimento de propósitos lícitos.

Ora, estabelecendo uma ilação a partir das premissas acima apresentadas, depreende-se que grande parte dos empreendimentos econômicos solidários atende em geral a apenas dois dos três requisitos acima estabelecidos. Assim, desrespeitada a condição que trata da necessidade de cumprimento das regras legais no momento do registro (ex. necessidade de inscrição do ato constitutivo no registro público), não há o que se falar em aquisição de personalidade jurídica.

A Associação Brasileira de Organizações não Governamentais – Abong, em artigo98 sobre “proposição de princípios que orientem a formulação de um marco regulatório do acesso, uso e prestação de contas de recursos públicos por entidades sem fins lucrativos no Brasil”, apresenta um rol de princípios e propostas com vistas a promover um avanço no marco legal das entidades da sociedade civil sem finalidade econômica no país.

Nesta lista de proposições, merece destaque a Proposta XXVI, que estabelece a necessidade de:

97. FERRAREZI. Elisabete. O novo marco legal do Terceiro Setor no Brasil. Disponível em: <http://www.comunidadesolidaria.org.br> Acesso em: 20 de março de 2009.98. Fonte: http://www.abong.org.br/

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de�nir um modelo jurídico mais adequado

para o desenvolvimento de atividades

produtivas coletivas e solidárias por grupos e

trabalhadores/as, que hoje se situam em um

campo nebuloso entre duas institucionalidades

jurídicas (associações e cooperativas). Esse

debate não pode se dar de forma fragmentada,

tendo em vista que a forma constitutiva desses

empreendimentos econômicos solidários é

basicamente associativa (54%), seguida por

grupos informais (33%) e por cooperativas (11%).

Em pesquisa integrada realizada no ano de 2004 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE99 a respeito de associações sem fins lucrativos e fundações privadas, observa-se grande representatividade destes tipos de entidades na região Nordeste (segundo lugar – o equivalente a 23,7% de concentração destas instituições no Nordeste).

Dentro desse resultado regional, destacam-se as associações de produtores rurais, tendo em vista que compõem 10,3% do total das organizações na região, não incluídas na contabilização aquelas classificadas como “de desenvolvimento e defesa de direitos” (ex. associações que promovem o desenvolvimento rural). O número de associações de produtores rurais na região Nordeste é três vezes superior àquelas localizadas no Sul e Sudeste100.

Imergindo no destaque regional, observamos também a proeminência de constituição deste tipo de entidade no Estado da Bahia, correspondendo a 6,9% da representação nacional e alcançando o primeiro lugar na região Nordeste (23.203 entidades). Em seguida, destaca-se o Estado do Ceará com 14.588 entidades.

Esta pesquisa possui forte carga valorativa, pois dela se

infere a necessidade de atentarmos para as questões que dizem respeito às associações sem finalidades lucrativas. Assim, não há como se eximir da responsabilidade de cuidar das questões atinentes às associações, uma vez que é expressiva sua representatividade no que se refere a Empreendimentos de Economia Solidária no país.

O direito não pode ignorar este fenômeno. Esta necessidade surge da relevância na compreensão desse fato associativo, o que faz com que o direito deva conferir personalidade jurídica ao grupo, “viabilizando sua atuação autônoma e funcional, com personalidade jurídica própria, com vistas à realização de seus objetivos.101”

Após o advento do Novo Código Civil em 2002, a categorização de pessoas jurídicas de direito privado foi remodelada, possuindo como espécies: associações, sociedades e fundações. A partir desta nova disposição, observa-se a clara distinção entre as categorias das pessoas jurídicas, admitindo-se como formato jurídico possível para constituição de instituições sem finalidade lucrativa: as associações civis sem fins lucrativos e as fundações privadas.

Para melhor compreensão do tema, trataremos em breves linhas a respeito desta última espécie de pessoa jurídica de direito privado: as fundações102.

Diferenciação: Fundação x Associação

As fundações atribuem personalidade jurídica a um patrimônio a que o instituidor destina a um fim social103.

Nas palavras de Tarso Violin104, “as fundações privadas refletem, historicamente, a primeira manifestação da consciência de que o patrimônio privado pode contribuir para a satisfação de necessidades supraindividuais”.

As associações e as fundações possuem características

99. Fonte: Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil. Rio de Janeiro, 2004. (www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fas�l/default.shtm)100. Fonte: Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil. Rio de Janeiro, 2004. (www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fas�l/default.shtm - Tabela 8)101. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. Vol. I. Editora Saraiva. 9ª Edição. 2007.102. Trataremos aqui da fundação privada. A fundação pública instituída (na forma da lei) pela Administração Pública reger-se-á pelos preceitos do Direito Administrativo.103. PEREIRA, Caio Maio da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol I – Rio de Janeiro: Forense, 2001.104. VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a administração pública – Uma análise crítica. Belo Horizonte. Editora Fórum, 2006, p. 189.

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comuns: ambas destinam-se a um fim determinado, não econômico e de interesse coletivo. Entretanto, as entidades fundacionais diferenciam-se das associativas precipuamente pelo fato de atribuir personalidade jurídica a um patrimônio (universalidade de bens), não se tratando de universitas personarum (universalidade de pessoas), como no caso das associações.

Observe-se, portanto, que há um verdadeiro desmembramento dos bens da instituição e do instituidor, passando os da instituição a existir em razão do objetivo determinado no momento da sua criação. Não há simplesmente uma transferência de bens, pois para que se adquira personalidade jurídica própria, imprescindível é a intenção de dar-lhe vida.

A esse respeito, o Código Civil, estabelece:

Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor

fará, por escritura pública ou testamento, dotação

especial de bens livres, especi�cando o �m a que

se destina, e declarando, se quiser, a maneira de

administrá-la.

Pelo conceito instituído pelo Novo Código, percebe-se a grande preocupação da legislação com a forma do registro, uma vez que para sua consecução é imprescindível dar-se publicidade ao ato.

Ademais, no que tange à finalidade desta instituição, torna-se importante ressaltar que a fundação apenas pode ser criada para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.

Assim, pelo que se pode observar, a entidade fundacional é criada para realização de determinados fins, reconhecida como sujeito de direito, mas que não consiste numa união de pessoas e sim na personalização de um conjunto de bens. A fundação não possui membros, mas sim a figura do instituidor (responsável pela sua criação) e a dos destinatários.

Em razão deste propósito indicado no momento da

sua criação é que o legislador estabelece a atribuição de o Ministério Público velar por este tipo de instituição. O artigo 66 do Código Civil determina que a atuação do órgão ministerial, em relação às fundações, inicia-se com o parecer de aprovação ou não do seu registro.

A respeito das fundações, preocupou-se ainda o legislador em disciplinar a sua dissolução, determinando que deixará de existir a entidade fundacional pelo decurso do prazo da sua existência ou por extinção judicial, quando se verificar a impraticabilidade de seus fins ou a nocividade destes em relação aos interesses da coletividade.

Outras terminologias

Aproveitando a oportunidade, consideramos relevante tratarmos, mesmo que de uma forma breve, a respeito de determinadas expressões muitas vezes confundida com os modelos jurídicos aqui tratados.

Como vimos, podem ser pessoa jurídica de direito privado sem finalidade econômica as associações e as fundações privadas. Tais instituições são comumente confundidas com outras expressões, tais como ONG, Instituto, OSCIP...

No que tange à classificação, é importante dizer que tais denominações não correspondem a formatos jurídicos. Alguns termos são genéricos e imprecisos, tais como Organização Não-Governamental (ONG), que podem ser utilizados tanto para tratarmos das entidades fundacionais quanto das associativas. Outras expressões, como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), referem-se a títulos e qualificações conferidas pelo poder público às associações e fundações.

A expressão “Instituto”, por não se tratar de terminologia jurídica, não revela qual modelo jurídico está sendo tratado. Qualquer das espécies de pessoa jurídica de direito privado (ou mesmo instituições de direito público) podem utilizar esta expressão. Desta maneira, associações, fundações ou mesmo sociedades podem adotar esta

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denominação sem desfigurar-se, ou seja, sem perder as características atinentes ao seu formato jurídico.

Diferenciação: Cunho social x Cunho associativo

O Novo Código Civil, em seu art. 53, expressamente dispõe a respeito do conceito de associação: Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não-econômicos.

Este agrupamento de pessoas pode se organizar com o propósito de apoiar o próprio grupo, os próprios associados (entidades de benefício mútuo ou de cunho associativo) ou a coletividade (entidades de benefício público ou de cunho social).

As organizações de cunho social (ou de benefício público) algumas vezes se propõem a complementar ou suprir a atuação Estatal. Entretanto, para a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG105 devem ser consideradas como de finalidade pública:

Tanto as instituições que complementam

ação do Estado no desempenho dos seus

deveres sociais como aquelas que promovem

defesa de direitos e construção de novos

direitos – desenvolvimento humano, social

e sustentável, expansão das idéias-valores

(como a ética na política), a universalização

da cidadania, o ecumenismo (lato sensu), a

paz, a experimentação de novos padrões de

relacionamento econômico e de novos modelos

produtivos e a inovação social etc... (Documento

base, segunda versão, 29-09-97, p. 12)

O professor Eduardo Szazi, em sua obra “Terceiro Setor Regulação no Brasil”, distingue as entidades de cunho associativo e de cunho social, conforme se depreende do fragmento a seguir:

Buscando apoio nas ciências exatas, podemos

de'nir as entidades de cunho associativo ou

de benefício mútuo como aquelas de natureza

endógena, ou seja, que dedicam suas ações

ao benefício de seus quadros sociais. Já as

entidades de cunho social ou de benefício

público são aquelas de natureza exógena, que

atuam em favor daqueles que estão fora de

seus quadros sociais.

Na concepção do autor, tese que acolhemos, essa distinção não se aplica às fundações, haja vista que estas têm em sua própria definição um fim público, não podendo de outra forma ser constituída.

Diferenciação: Finalidade não econômica x Finalidade não lucrativa

Divergências foram travadas após advento do Novo Código Civil no momento em que este expressamente definiu serem as associações criadas com objetivo de organizarem-se para fins não econômicos.

De fato, não se coaduna com o modelo associativo a partilha de resultado financeiro obtido. Entretanto, isto não significa dizer que as associações estão impedidas de praticar atividades econômicas. Admite-se a atividade econômica (meio), entretanto, o mesmo não ocorre com a finalidade. Esta, necessariamente precisa ser não econômica (não lucrativa).

A comercialização de produtos garante a sustentabilidade da entidade, sendo necessário para sua mantença auferir rendas. O que modifica é o destino dos recursos e do patrimônio: no modelo cooperativo há o repasse dos ingressos e a partilha das sobras entre os sócios, já no modelo associativo a aplicação dos recursos (do patrimônio) deve ser revestida em benefício da própria entidade.

Desta forma, não desvirtua seu caráter não

105. Fonte: Artigo – Uma regulação de acesso e utilização de recursos públicos para organizações sem 'ns lucrativos no Brasil – Abong. Disponível em: www.abong.org.br

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econômico a formação de patrimônio, a remuneração de determinados serviços, a aquisição de sede ou de bens.

Disposições constitucionais relativas às associações

Temos no ordenamento jurídico brasileiro a liberdade plena das associações. Assim, conforme dispositivo constitucional e segundo o professor José Afonso da Silva106 a liberdade de associar-se abarca quatros direitos:

O de criar associação (e cooperativas), que não

depende de autorização; o de aderir a qualquer

associação, pois ninguém poderá ser obrigado

a associar-se; o de desligar-se da associação,

porque ninguém poderá ser compelido a

permanecer associado; e o de dissolver

espontaneamente a associação, já que não se

pode compelir a associação a existir.

Ademais, a Carta Cidadã ainda garante as associações o direito de representar seus filiados judicialmente ou extrajudicialmente, sempre que autorizadas.

CF/88, art. 5º, XXI – as entidades associativas,

quando expressamente autorizadas, têm

legitimidade para representar seus %liados

judicial ou extrajudicialmente.

Associado. Direito de Autorregulamentação. Admissão, Demissão e Exclusão. Direitos e Deveres. Categorias especiais.

Serão consideradas associadas todas as pessoas que integrarem a entidade associativa. A admissão no quadro

social, em geral, é personalíssima e subordinada a requisitos estatutários.

O Código Civil Brasileiro determina, em seu artigo 54, a necessidade de os estatutos das associações conterem informações relativas à admissão, demissão e exclusão do associado, sob pena de nulidade.

Desta forma, resguardado está o seu direito de autorregulamentação, permitindo-se aos próprios integrantes da entidade estabelecerem no seu estatuto os regramentos a que se submeterão, desde que respeitando os limites constitucionais.

A regra é a intransmissibilidade da qualidade de associado, sendo possível o estatuto dispor de forma contrária.

Art. 56. A qualidade de associado é

intransmissível, se o estatuto não dispuser o

contrário.

A condição de proprietário de quota não confere a condição de sócio. Sendo o associado titular de quota ou fração ideal do patrimônio, tal fato não acarretará condição automática de admissão como associado, sendo permitido o estatuto dispor de maneira diversa.

Parágrafo único. Se o associado for titular

de quota ou fração ideal do patrimônio da

associação, a transferência daquela não

importará, de per si, na atribuição da qualidade

de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo

disposição diversa do estatuto.

O artigo 55 do Código Civil dispõe que os associados devem ter iguais direitos, podendo, entretanto, o estatuto da associação instituir categorias com vantagens especiais. Esta novidade foi trazida pelo novo Código. Entretanto, a

106. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo – 10 ed – São Paulo: Malheiros, 1995, p. 258-259.

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lei é silente a respeito do tipo de vantagem. Nesse contexto, entende-se que respeitados os limites legais, poderão os próprios associados tratar livremente do tema.

A exclusão dos associados apenas será admitida na hipótese de ter ocorrido justa causa, sendo garantido ao associado o direito de defesa e recurso, obedecido o quanto disposto no estatuto.

Art. 57. A exclusão do associado só é admissível

havendo justa causa, assim reconhecida em

procedimento que assegure direito de defesa e

de recurso, nos termos previstos no estatuto.

Estrutura organizacional das entidades associativas.

Cada entidade associativa possuirá uma estrutura organizacional própria, que variará de acordo com o porte da instituição, finalidade etc. Não há limite (mínimo ou máximo) de órgãos, podendo a organização associativa dispor livremente a respeito da sua composição.

Em geral, as associações possuem em sua estrutura: (1) um órgão diretivo (comumente chamado de conselho diretor, conselho de administração, diretoria, presidência...), subordinado à assembléia geral e ao estatuto; (2) um órgão executivo que é responsável por executar as decisões tomadas pelo órgão diretivo e pela assembleia geral; (3) um órgão fiscalizador (em geral, denominado de conselho fiscal) que normalmente é responsável por cuidar das questões financeiras da

entidade e a (4) assembléia geral, instância superior de decisão e controle da instituição.

A associação não precisa necessariamente criar um órgão fiscalizador, uma vez que este não é obrigatório. Contudo, havendo interesse em obter título de OSCIP, torna-se indispensável sua criação.

Pode também vir a ter um órgão consultivo, instância não deliberativa e normalmente competente para auxiliar na gestão da entidade. Assim como no caso do órgão fiscalizador, é facultativa sua constituição.

Outros órgãos podem ser criados e sua constituição se dará de acordo com a conveniência e interesse de cada organização.

A assembleia geral é o órgão máximo da associação e, por se tratar de órgão de deliberação coletiva, garante gestão democrática na tomada de decisões.

O artigo 59 do Código Civil dispõe a respeito da competência privativa da assembleia geral para destituir os administradores e alterar estatuto. Para as deliberações acima descritas, torna-se imprescindível deliberação da assembléia especialmente convocada para esse fim. O quórum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores.

O novo Código Civil inova ao permitir aos associados convocar assembleia geral, sendo necessário, para tanto, o requerimento de pelo menos 1/5 (um quinto) dos associados, respeitadas as regras contidas no estatuto.

Art. 60. A convocação dos órgãos deliberativos

far-se-á na forma do estatuto, garantido a

1/5 (um quinto) dos associados o direito de

promovê-la.

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Como inovação traz também a obrigatoriedade de constar no estatuto o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos e a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.

O Código Civil é silente a respeito do quórum de deliberação para aprovação de contas, sendo imprescindível esta informação constar expressamente no estatuto. Na hipótese de o estatuto nada dizer sobre o assunto, entendemos que basta maioria simples para a aprovação.

Sendo pessoa jurídica de administração coletiva, deverá ter como quórum de deliberação a maioria simples dos presentes, salvo disposição diversa no estatuto.

Art. 48. Se a pessoa jurídica tiver

administração coletiva, as decisões se tomarão

pela maioria de votos dos presentes, salvo se o

ato constitutivo dispuser de modo diverso.

Constituição

Ao tratarmos da constituição das entidades associativas, devemos preliminarmente atentar para as questões que antecedem ao seu registro. A fase de pré-constituição é importantíssima, uma vez que será responsável por disciplinar a forma como será regida a associação.

A fase pré-constitutiva pode ser subdividida em três sub-fases: (1) elaboração do estatuto; (2) realização da assembleia geral constituinte e (3) elaboração da ata de fundação.

O momento da elaboração do estatuto é o mais importante para a vida da instituição. Este documento é responsável por nortear as relações travadas entre os associados e perante terceiros. Serve também para

dirimir dúvidas dos associados a respeito de questões específicas da sua entidade.

Em razão do poder de autorregulamentação conferido pelo legislador, permite-se aos instituidores disciplinarem como maior grau de liberdade a respeito de determinadas questões.

Demais disso, conforme estatui o artigo 54 do Código Civil, sob pena de nulidade deverá conter o estatuto de associações:

I – a denominação, os !ns e a sede da associação;II – os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados;III – os direitos e deveres dos associados;IV – as fontes de recursos para sua manutenção;V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a alteração das

disposições estatutárias e para a dissolução.

VII – a forma de gestão administrativa e de

aprovação das respectivas contas.

Algumas associações, além do estatuto, elaboram também um regimento interno. Esse documento não é essencial, mas tem o condão de complementar e detalhar a organização e o funcionamento da instituição, trazendo informações importantes a serem utilizadas cotidianamente.

Os documentos elaborados na fase de pré-constituição, como estatuto e ata de fundação, são levados a registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, para que desta forma as associações passem a ter existência jurídica regular.

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A existência jurídica regular das organizações associativas inicia-se com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. É indispensável averbarem-se todas as alterações por que passa o ato.

Uma vez atendidos todos os procedimentos, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas expedirá, em nome da associação, a certidão de Personalidade Jurídica, que será a prova da sua existência legal.

É importante lembrar que o ato de registrar a instituição não possui caráter meramente declaratório, mas precipuamente constitutivo pois, além de servir de prova da existência da pessoa jurídica, atribui-lhe capacidade.

Dissolução

A associação poderá extinguir-se por deliberação dos seus associados, conforme houver sido disciplinado no estatuto social, ou por decisão transitada em julgado, conforme disposto em artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

A disciplina a respeito da dissolução das associações é tratada no artigo 61 do Código Civil.

A assembleia que cuidar da extinção da entidade deverá eleger um liquidante, pessoa esta responsável por apurar situação financeira da instituição. A entidade subsistirá até que se conclua a liquidação.

Encerrada a liquidação, promover-se-á o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica. O cancelamento será alcançado com a averbação da dissolução no registro da pessoa jurídica.

No momento da sua dissolução, os instituidores deverão cuidar do remanescente do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais.

O remanescente deverá ser destinado a entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, sendo omisso este, deverão dispor os associados a respeito da questão, sendo livre a escolha de instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes.

Havendo disposição estatutária disciplinando a restituição das contribuições, esta deverá ocorrer antes da

destinação do remanescente. Sendo silente o estatuto, os associados poderão deliberar livremente acerca do tema.

Na hipótese de não existir no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no Território uma entidade com fins idênticos ou semelhantes, o que remanescer do seu patrimônio será devolvido à Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União.

Relações de Trabalho

As entidades associativas podem contar no exercício de suas atividades com mão de obra remunerada ou não remunerada. Trataremos a seguir a respeito de cada uma das espécies.

Trabalho Remunerado

A depender do porte e da natureza da atividade desempenhada pela entidade associativa, pode-se ter o interesse em contratar mão de obra remunerada, figura esta distinta da qualidade de associado.

Este tipo de contratação será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, normatização específica para tratar das relações de emprego.

Segundo artigo 3º desta lei, considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário.

Desta maneira, será celebrado contrato de trabalho sempre que uma pessoa física se obrigar a realizar atos, executar obras ou prestar serviços para outra, durante um período determinado ou indeterminado de tempo, mediante o pagamento de remuneração e sob dependência do contratante.

O contrato de trabalho poderá ser escrito ou verbal, reconhecendo-se os contratos firmados por ajuste tácito. A legislação trabalhista disciplina a respeito de variadas formas de contratação de mão de obra remunerada, sendo as principais delas os contratos estabelecidos por

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prazo determinado, indeterminado, os contratos de experiência e os trabalhos temporários.

Há também os contratos de estágio, utilizados em geral quando há intenção de promover a complementação do ensino e da aprendizagem do aluno. Tais contratos devem respeitar não só a legislação pertinente (lei de estágio), como também as regras estabelecidas pelas instituições de ensino (programa, calendários escolares).

Nas contratações de trabalhadores autônomos não há formação de vínculo empregatício. Esse tipo de contrato geralmente é importante para realizar determinadas atividades em caráter de não exclusividade.

A entidade associativa deve ter extremo cuidado no estabelecimento das relações de trabalho em sua organização, pois, percebido que tenha ocorrido desvirtuamento do tipo de contrato, haverá aplicação no vínculo estabelecido entre as partes do art. 9º da CLT:

Serão nulos de pleno direito os atos praticados

com o objetivo de desvirtuar, impedir ou

fraudar a aplicação dos preceitos contidos na

presente Consolidação.

É que, no sítio do direito do trabalho, dá-se primazia à realidade, que Plá Rodriguez107 soube sintetizar com maestria, assim: “é o primado dos fatos sobre as formas, formalidades ou aparências.”

Segundo Szazi108, não é possível a vigência concomitante de dois contratos distintos, um de trabalho remunerado e outro “nas horas vagas”, de trabalho não remunerado. Para Szazi, “trabalho voluntário é sinônimo de horas extras não pagas e a eventual existência de termo escrito na forma da Lei 9.608/98 deverá ser interpretada como fraude, se submetido à Justiça do Trabalho”.

Embora reconhecendo a lucidez que habita na maioria

das elucidações trazidas por este ilustre professor, a respeito deste tema, discordamos, pois consideramos admissível a possibilidade de pessoa física querer prestar trabalho como voluntário na mesma instituição em que figura como empregado.

Trabalho não remunerado

O trabalho não remunerado é disciplinado pela Lei 9.608/1998, denominada Lei do Voluntariado.

Nos termos da lei, considera-se serviço voluntário:

a atividade não remunerada, prestada por

pessoa física a entidade pública de qualquer

natureza, ou a instituição privada de #ns não

lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais,

educacionais, cientí#cos, recreativos ou de

assistência social, inclusive mutualidade109.

Segundo Szazi110, para que o prestador de serviço voluntário seja enquadrado na lei acima citada, o serviço deverá ter as seguintes características:

ser voluntário, ou seja, não pode ser

imposto ou exigido como contrapartida de

algum benefício concedido pela entidade ao

prestador de serviço ou a sua família;

ser gratuito;

ser prestado por um indivíduo

isoladamente e não por uma organização da

qual o indivíduo faça parte e, portanto, seja por

ela compelido a prestá-lo;

ser prestado para entidade governamental

ou privada, que devem ter #m não lucrativo e

voltado para objetivos públicos.

107. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do Direito do Trabalho – São Paulo: LTR, 1978, pág. 220.108. SZAZI, Eduardo. Terceiro Setor: Regulação no Brasil – 4ª ed – SP: Peirópolis, 2006 p. 80109. Cf. Lei 9.608/98, art. 1º.110. SZAZI, Eduardo. Terceiro Setor: Regulação no Brasil – 4ª ed – SP: Peirópolis, 2006.

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Vale lembrar que o serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim.

Para sua formalização, torna-se necessário que o prestador do serviço voluntário celebre termo de adesão com a entidade associativa, sendo imprescindível constar no documento o objeto da relação e as condições de seu exercício.

Apesar da impossibilidade de remuneração, a lei autoriza o prestador do serviço voluntário ser ressarcido pelas despesas que realizar no desempenho de suas atividades. Tais despesas deverão ser comprovadas e expressamente autorizadas pela entidade a que for prestado o serviço voluntário.

Títulos Quali�cadores. Certi�cações.

A outorga de títulos às organizações do terceiro setor propicia a submissão a regime jurídico diferenciado.

O professor Tarso Violin111, resgatando os ensinamentos do jurista Paulo Modesto sobre a qualificação dessas instituições, traz em seu livro “Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública” as vantagens percebidas no estabelecimento de qualificações para entidades do terceiro setor: (1) diferenciar as entidades qualificadas das comuns, criando um regime jurídico próprio; (2) padronizar a normatização utilizada para essas entidades possuidoras de características similares, evitando o casuísmo; (3) permitir existência de mecanismos de controle.

Violin aponta também as desvantagens trazidas por Paulo Modesto na utilização destas qualificações, sendo elas: risco de certificação conferida sem critério; padronização excessiva, com exigências genéricas; insegurança jurídica, na medida em que a manutenção do título está condicionada ao cumprimento de exigências,

deixando as entidades periodicamente sujeitas a eventual ocorrência de desvios no sistema de controle.

A partir de agora, trataremos dos principais títulos concedidos às pessoas jurídicas de direito privado sem finalidade lucrativa (associações e fundações privadas), os quais permitem a concessão de benefícios às entidades qualificadas, via doações, subvenções, convênios, auxílios, celebração de termos de parceria ou contratos de gestão, dentre outros.

Utilidade Pública

Utilidade Pública é a titulação oferecida pela legislação brasileira capaz de trazer vantagens, como as sobreditas em tópico anterior, àquelas instituições que possuírem finalidade exclusiva de servir à coletividade.

As associações e fundações poderão obter esta qualificação nas três esferas governamentais, sendo, portanto, cumulativas as certificações concedidas pela lei de utilidade pública federal, estadual e municipal.

A lei de utilidade pública federal é regida pela lei nº. 91/35 e regulamentada pelo decreto nº. 50.517/61.

Art. 1º As sociedades civis, as associações

e as fundações constituídas no País, com o

�m exclusivo de servir desinteressadamente

à coletividade, podem ser declaradas de

utilidade pública, provados os seguintes

requisitos:

a) que adquiram personalidade jurídica;

b) que estejam em efetivo funcionamento e

sirvam desinteressadamente à coletividade;

c) que os cargos de sua diretoria, conselhos

�scais, deliberativos ou consultivos não sejam

remunerados (redação dada pela Lei nº. 6.639,

de 8.5.1979).

111. VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: Uma análise crítica – Belo Horizonte: Fórum, 2006.

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Observe-se que, pelo supraexposto, para obtenção deste título, ao menos em âmbito federal, não se pode remunerar dirigentes, sendo necessário fazer constar disposição estatutária neste sentido.

As entidades interessadas em obter certificação junto ao CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social), que será tratada a seguir, deverão necessariamente obter primeiro o título de Utilidade Pública Federal.

O decreto nº. 50.517/1961, que regulamenta a certificação de Utilidade Pública Federal, exige também o atendimento aos seguintes requisitos por aqueles desejosos de obtê-la:

a. Constituição no próprio país;

b. Possuir personalidade jurídica;

c. Estar em efetivo e contínuo funcionamento,

nos três anos imediatamente anteriores, com a

exata observância dos estatutos;

d. Não remunerar dirigentes e não distribuir

lucros, boni#cações ou vantagens a dirigentes,

mantenedores ou associados, sob nenhuma

forma ou pretexto;

e. Apresentar relatórios circunstanciados

dos três anos de exercícios anteriores à

formulação do pedido, comprovando promoção

da educação ou exercício de atividade de

pesquisas cientí#cas, de cultura, inclusive

artísticas, ou #lantrópicas, estas de caráter

geral ou indiscriminado, predominantemente.

f. Provar moralidade dos seus dirigentes;

g. Estabelecimento de compromisso em

publicar, anualmente, a demonstração de

receita e despesa realizadas no período anterior,

desde que contemplada com subvenção por

parte da União (Decreto nº. 60.931, de 4.7.1967).

Estabelece-se como condição para manutenção da certificação a apresentação anual de relatório dos serviços prestados à coletividade, além dos demonstrativos de receitas e despesas do mesmo período.

Art. 4º As sociedades, associações e

fundações declaradas de utilidade pública

#cam obrigadas a apresentar todos os

anos, exceto por motivo de ordem superior

reconhecido, a critério do Ministro de Estado

da Justiça e Negócios Interiores, relação

circunstanciada dos serviços que houverem

prestado à coletividade.

Parágrafo único. Será cassada da declaração

de utilidade pública no caso de infração deste

dispositivo, ou se por qualquer motivo a

declaração exigida não for apresentada em três

anos consecutivos;

Art. 5º Será também cassada a declaração

de utilidade pública, mediante representação

documentada do órgão do Ministério Público

ou de qualquer interessado da sede da

sociedade, associação ou fundação, sempre

que se provar que ela deixou de preencher

qualquer dos requisitos do artigo 1º.

A maioria dos Estados e Municípios possui legislação própria a respeito da declaração de Utilidade Pública e, em geral, possuem leis disciplinadoras (estaduais e municipais) que podem seguir orientação semelhante à delineada pela legislação federal.

Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS

O registro das organizações no CNAS normalmente é utilizado para acesso a determinados fundos públicos, celebração de convênios etc. A inscrição da entidade no

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Conselho Municipal de Assistência Social é condição fundamental para o encaminhamento de pedido de registro e de certificado de entidade beneficente de assistência social junto ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.

Esta certificação é regida pela lei nº. 8.742/93 e regulamentada pela Resolução nº. 31/99. A resolução elenca como entidades aptas à obtenção de registro organizações sem finalidade lucrativa que se destinem a:

I – proteção à família, à infância, à

maternidade, à adolescência e à velhice;

II – amparo às crianças e adolescentes

carentes;

III – ações de prevenção, habilitação,

reabilitação e integração à vida comunitária

de pessoas portadoras de de�ciência;

IV – integração ao mercado de trabalho;

V – assistência educacional ou de saúde;

VI – desenvolvimento da cultura;

VII – atendimento e assessoramento aos

bene�ciários da Lei Orgânica da Assistência

Social e a defesa e garantia de seus direitos.

Somente poderá obter registro à entidade cujo estatuto, em suas disposições, estabeleça que:

 aplica suas rendas, seus recursos e eventual

resultado operacional integralmente

no território nacional e na manutenção e no

desenvolvimento de seus objetivos institucionais;

 não distribui resultados, dividendos,

boni�cações, participações ou parcela do seu

patrimônio, sob nenhuma forma;

 não percebem seus diretores, conselheiros,

sócios, instituidores, benfeitores ou

equivalentes remunerações, vantagens ou benefícios,

direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título,

em razão das competências, funções ou atividades

que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos

constitutivos;

 em caso de dissolução ou extinção, destina o

eventual patrimônio remanescente à entidade

congênere registrada no CNAS ou a entidade pública;

 a entidade presta serviços permanentes e sem

qualquer discriminação de clientela;

Observe-se que, da mesma forma que a lei de Utilidade Pública Federal, a certificação acima mencionada também não admite a possibilidade de remunerar os dirigentes.

Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP

A Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) encontra-se disciplinada pela lei federal 9.790/99. Podem se qualificar como OSCIP as pessoas jurídicas de direito privado sem finalidade lucrativa que atendam aos requisitos instituídos por esta Lei.

Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social.

A concessão deste título possibilita à organização a celebração de Termo de Parceria, assim considerado o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público. O Termo de Parceria discriminará direitos, responsabilidades e obrigações das partes signatárias.

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Diferentemente da maioria das certificações, a outorga desta qualificação é ato vinculado, não podendo o Poder Público atuar com análises de conveniência ou oportunidade no momento da sua concessão. Dessa forma, preenchidos os requisitos estabelecidos em lei e cumpridos todos os ditames, o Poder Público necessariamente deverá conceder este título à organização pleiteante.

Art. 6º, §3º – O pedido de quali�cação

somente será indeferido quando:

I – a requerente enquadrar-se nas hipóteses

previstas no art. 2º desta Lei;

II – a requerente não atender aos requisitos

descritos nos arts. 3º e 4º desta Lei;

III – a documentação apresentada estiver

incompleta.

Conforme estatui artigo 2º da Lei das OSCIPs, não são passíveis de qualificação como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no art. 3º desta Lei:

I – as sociedades comerciais;

II – os sindicatos, as associações de classe ou

de representação de categoria pro�ssional;

III – as instituições religiosas ou voltadas

para a disseminação de credos, cultos,

práticas e visões devocionais e confessionais;

IV – as organizações partidárias e

assemelhadas, inclusive suas fundações;

V – as entidades de benefício mútuo

destinadas a proporcionar bens ou serviços a

um círculo restrito de associados ou sócios;

VI – as entidades e empresas que

comercializam planos de saúde e

assemelhados;

VII – as instituições hospitalares privadas

não gratuitas e suas mantenedoras;

VIII – as escolas privadas dedicadas

ao ensino formal não gratuito e suas

mantenedoras;

IX – as organizações sociais;

X – as cooperativas;

XI – as fundações públicas;

XII – as fundações, sociedades civis ou

associações de direito privado criadas por

órgão público ou por fundações públicas;

XIII – as organizações creditícias que

tenham quaisquer tipo de vinculação com o

sistema �nanceiro nacional a que se refere o

art. 192 da Constituição Federal.

Observe que cooperativas não podem obter esta qualificação.

A organização sem finalidade lucrativa que vier a pleitear esta qualificação deverá ter em seus objetivos sociais pelo menos uma das finalidades dispostas a seguir:

I – promoção da assistência social;

II – promoção da cultura, defesa e

conservação do patrimônio histórico e

artístico;

III – promoção gratuita da educação,

observando-se a forma complementar de

participação das organizações de que trata

esta Lei;

IV – promoção gratuita da saúde, observando-

se a forma complementar de participação das

organizações de que trata esta Lei;

V – promoção da segurança alimentar e

nutricional;

VI – defesa, preservação e conservação

do meio ambiente e promoção do

desenvolvimento sustentável;

VII – promoção do voluntariado;

VIII – promoção do desenvolvimento

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econômico e social e combate à pobreza;

IX – experimentação, não lucrativa, de novos

modelos socioprodutivos e de sistemas

alternativos de produção, comércio, emprego

e crédito;

X – promoção de direitos estabelecidos,

construção de novos direitos e assessoria

jurídica gratuita de interesse suplementar;

XI – promoção da ética, da paz, da cidadania,

dos direitos humanos, da democracia e de

outros valores universais;

XII – estudos e pesquisas, desenvolvimento

de tecnologias alternativas, produção e

divulgação de informações e conhecimentos

técnicos e cientí�cos que digam respeito às

atividades mencionadas neste artigo.

Assim, havendo em seu objetivo social qualquer das finalidades acima dispostas, deverá ainda a entidade interessada reger em estatuto expressamente a respeito de:

 observância dos princípios da legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade,

economicidade e da e�ciência;

 adoção de práticas de gestão administrativa,

necessárias e su�cientes a coibir a obtenção,

de forma individual ou coletiva, de benefícios ou

vantagens pessoais, em decorrência da participação

no respectivo processo decisório;

 constituição de conselho �scal ou órgão

equivalente, dotado de competência para

opinar sobre os relatórios de desempenho �nanceiro

e contábil, e sobre as operações patrimoniais

realizadas, emitindo pareceres para os organismos

superiores da entidade;

 previsão de que, em caso de dissolução da

entidade, o respectivo patrimônio líquido será

transferido a outra pessoa jurídica quali�cada nos

termos desta Lei, preferencialmente que tenha o

mesmo objeto social da extinta;

 previsão de que, na hipótese de a pessoa

jurídica perder a quali�cação instituída por

esta Lei, o respectivo acervo patrimonial disponível,

adquirido com recursos públicos durante o período

em que perdurou aquela quali�cação, será transferido

a outra pessoa jurídica quali�cada nos termos desta

Lei, preferencialmente que tenha o mesmo objeto

social;

 possibilidade de se instituir remuneração

para os dirigentes da entidade que atuem

efetivamente na gestão executiva e para aqueles que

a ela prestam serviços especí�cos, respeitados, em

ambos os casos, os valores praticados pelo mercado,

na região correspondente à sua área de atuação;

 normas de prestação de contas a serem

observadas pela entidade, que determinarão,

no mínimo:

a) a observância dos princípios fundamentais

de contabilidade e das Normas Brasileiras de

Contabilidade;

b) que se dê publicidade por qualquer meio

e�caz, no encerramento do exercício �scal, ao

relatório de atividades e das demonstrações

�nanceiras da entidade, incluindo-se as certidões

negativas de débitos junto ao INSS e ao FGTS,

colocando-os à disposição para exame de

qualquer cidadão;

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c) a realização de auditoria, inclusive por

auditores externos independentes, se for o caso,

da aplicação dos eventuais recursos objeto

do termo de parceria conforme previsto em

regulamento;

d) a prestação de contas de todos os recursos

e bens de origem pública recebidos pelas

Organizações da Sociedade Civil de Interesse

Público será feita conforme determina o parágrafo

único do art. 70 da Constituição Federal.

A entidade interessada em obter a qualificação de OSCIP deverá formular requerimento escrito ao Ministério da Justiça, instruído com cópias autenticadas dos documentos listados em sua norma legal.

A organização titulada poderá perder a qualificação a pedido ou através de decisão proferida em processo administrativo ou judicial, de iniciativa popular ou do Ministério Público, sendo resguardadas a ampla defesa e o contraditório.

Qualquer cidadão pode ser parte legítima para requerer, judicial ou administrativamente, a perda da qualificação instituída pela Lei 9.790/99.

Organizações Sociais – OS

A Lei nº 9.637/1998 criou o título de Organização Social. Esta qualificação geralmente é utilizada como forma de descentralizar atividades executadas pela Administração Pública, mediante celebração de Contrato de Gestão.

Segundo artigo 5º da Lei acima mencionada, entende-se por Contrato de Gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades. Este documento deverá discriminar as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da OS.

O Poder Público poderá qualificar como Organizações Sociais as pessoas jurídicas de direito privado sem finalidade lucrativa cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos em Lei.

Algumas críticas são feitas à qualificação de entidades como Organização Social, pois através dela permite-se que, em alguns casos, entes privados, submetidos às legislações atinentes a sua espécie, recebam e sejam responsáveis pela gestão de recursos e patrimônio público.

Para que as entidades privadas sem fins lucrativos se habilitem à qualificação como OS, devem comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

 natureza social de seus objetivos relativos à

respectiva área de atuação;

 &nalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade

de investimento de seus excedentes &nanceiros

no desenvolvimento das próprias atividades;

 previsão expressa de a entidade ter, como

órgãos de deliberação superior e de direção,

um conselho de administração e uma diretoria

de&nidos nos termos do estatuto, asseguradas àqueles

composição e atribuições normativas e de controle

básicas previstas nesta Lei;

 previsão de participação, no órgão colegiado de

deliberação superior, de representantes do Poder

Público e de membros da comunidade, de notória

capacidade pro&ssional e idoneidade moral;

 composição e atribuições

da diretoria;

 obrigatoriedade de publicação anual, no Diário

O&cial da União, dos relatórios &nanceiros e do

relatório de execução do contrato de gestão;

 no caso de associação civil, a aceitação de novos

associados, na forma do estatuto;

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 proibição de distribuição de bens ou de parcela

do patrimônio líquido em qualquer hipótese,

inclusive em razão de desligamento, retirada ou

falecimento de associado ou membro da entidade;

 previsão de incorporação integral do patrimônio,

dos legados ou das doações que lhe foram

destinados, bem como dos excedentes "nanceiros

decorrentes de suas atividades, em caso de extinção

ou desquali"cação, ao patrimônio de outra organização

social quali"cada no âmbito da União, da mesma área

de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do

Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos

recursos e bens por estes alocados;

Sua concessão não é ato vinculado como nas OSCIP, onde apenas basta atender aos requisitos para receber o título. A certificação em comento exige aprovação e análise de conveniência e oportunidade, tratando-se, portanto, de ato discricionário do Ministro do Estado.

As Organizações Sociais deverão manter em sua gestão representantes do poder público. A execução do contrato de gestão será fiscalizada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada.

Considerações Finais

O Direito é ciência que se propõe a estudar as normas de convivência entre os sujeitos. A normatização das relações humanas, ou seja, a definição de padrões mínimos de conduta, é algo que apenas se alcança após razoável experimentação das infinitas possibilidades que o mundo real apresenta. Experimenta-se antes, cria-se o direito depois.

O modo de produção solidária, a despeito de há muito praticado, apenas recentemente passou a ser estudado no Brasil. Consequentemente, faltam parâmetros jurídicos claros, objetivos e disseminados para acolhimento dos Empreendimentos de Economia Solidária.

Conforme demonstrado pelo Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária, variadas são as formas jurídicas adotadas pelos atores sociais. Neste trabalho, atemo-nos a dissertar sobre os modelos organizacionais regulares mais adotados, ou seja, cooperativas e associações civis, não sem antes alertar para a caracterização e os riscos que representa a manutenção de uma Organização Informal.

A variabilidade de modelos regulares adotados, bem como – principalmente – a alta incidência de organizações informais, demonstra que o Direito precisa progredir no sentido da compreensão para melhor atendimento das demandas jurídicas dos atores sociais solidários.

Esperamos ter contribuído para clarear os horizontes do leitor e, quem sabe, despertar o interesse pelo aprofundamento do estudo em temas jurídicos.

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