Edição 405 - de 2 a 8 de dezembro de 2010

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 2 a 8 de dezembro de 2010 Ano 8 • Número 405 ISSN 1978-5134 White House/Pete Souza Pastoral da Terra denuncia ilegalidades em porto da Cargill O Ministério Público investiga possíveis irre- gularidades no Estudo de Impacto Ambiental elabo- rado pela Cargill durante o licenciamento de um terminal de grãos em San- tarém (PA). Para membro da Pastoral da Terra, a empresa omitiu infor- mações e apresentou nos laudos apenas dados con- venientes a ela. Pág. 6 A 11ª Feira de Artes Santa Tereza, realizada no dia 21 de novembro, reuniu deze- nas de milhares de pessoas em Embu das Artes (SP). O evento já faz parte do ca- lendário cultural da cidade e é marcado pela diversi- dade de estilos. Neste ano, mais de 300 músicos se apresentaram. Pág. 12 V inte anos sem o comunista Caio Prado Jr. Em Embu (SP), a cultura na periferia Há 20 anos, morria o his- toriador Caio Prado Jr. Ele foi o principal intelectual do Partido Comunista Brasilei- ro (PCB), no qual militou de 1937 até o fim de sua vida em 1990. Apesar da fideli- dade ao partidão, Prado Jr. não deixou de discordar de teses do PCB. Pág. 8 Alipio Freire O americano tranquilo Em 28 de novembro, VP e sua gangue desaparecem do Complexo do Alemão. No mesmo dia, a presidenta eleita anunciou o nome do doutor Nelson para o Ministério da Defesa. Como diria o italiano Luigi Pirandello, “Assim é, se lhes parece”. Pág. 3 Altamiro Borges A agressão dos EUA Para os que acham que não existe mais imperialismo, a revelação do sítio Wikileaks de mais de 250 mil novos documentos sobre espionagem dos Estados Unidos em todo o planeta representa o fim das ilusões de classe. Pág. 3 Anita Leocádia Prestes O historiador comprometido Não existe História neutra ou História que seja uma mera reprodução dos fatos ocorridos em determinado momento histórico. O fato histórico é sempre uma escolha do historiador, um recorte feito por ele e que reflete sua sub- jetividade. Pág. 7 A violência contra a mulher no Brasil e no México Págs. 7 e 10 Guerra do bem contra o mal? A cobertura da mídia comercial sobre os recentes conflitos no Rio de Janeiro passou uma mensagem clara: trata-se de uma guerra entre o bem (Estado policial) e o mal (traficantes). Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, no entanto, fogem do maniqueísmo hollywoodiano e traçam um quadro complexo. Um violento jogo de poder envolve facções, milícias e agentes públicos, os quais operam “uma reconfiguração geopolítica do crime” na qual se confundem mocinhos e bandidos. Págs. 2, 4 e 5 Wikileaks Os diplomatas-espiões Vazamento dos documentos sigilosos do Departamento de Estado dos EUA mostra duplo papel de seus embaixadores no mundo Pág. 9 Jadson Marques/Folhapress Reprodução

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 2 a 8 de dezembro de 2010Ano 8 • Número 405

ISSN 1978-5134

White House/Pete Souza

Pastoral daTerra denunciailegalidades emporto da Cargill

O Ministério Público investiga possíveis irre-gularidades no Estudo de Impacto Ambiental elabo-rado pela Cargill durante o licenciamento de um terminal de grãos em San-tarém (PA). Para membro da Pastoral da Terra, a empresa omitiu infor-mações e apresentou nos laudos apenas dados con-venientes a ela. Pág. 6

A 11ª Feira de Artes Santa Tereza, realizada no dia 21 de novembro, reuniu deze-nas de milhares de pessoas em Embu das Artes (SP). O evento já faz parte do ca-lendário cultural da cidade e é marcado pela diversi-dade de estilos. Neste ano, mais de 300 músicos se apresentaram. Pág. 12

Vinte anos sem o comunista Caio Prado Jr.

Em Embu (SP), a cultura na periferia

Há 20 anos, morria o his-toriador Caio Prado Jr. Ele foi o principal intelectual do Partido Comunista Brasilei-ro (PCB), no qual militou de 1937 até o fim de sua vida em 1990. Apesar da fideli-dade ao partidão, Prado Jr. não deixou de discordar de teses do PCB. Pág. 8

Alipio Freire

O americano tranquiloEm 28 de novembro, VP e sua gangue desaparecem do Complexo do Alemão. No mesmo dia, a presidenta eleita anunciou o nome do doutor Nelson para o Ministério da Defesa. Como diria o italiano Luigi Pirandello, “Assim é, se lhes parece”. Pág. 3

Altamiro Borges

A agressão dos EUAPara os que acham que não existe mais imperialismo, a revelação do sítio Wikileaks de mais de 250 mil novos documentos sobre espionagem dos Estados Unidos em todo o planeta representa o fi m das ilusões de classe. Pág. 3

Anita Leocádia Prestes

O historiador comprometidoNão existe História neutra ou História que seja uma mera reprodução dos fatos ocorridos em determinado momento histórico. O fato histórico é sempre uma escolha do historiador, um recorte feito por ele e que refl ete sua sub-jetividade. Pág. 7

A violência contra a mulher no Brasil e no México Págs. 7 e 10

Guerra do bemcontra o mal?

A cobertura da mídia comercial sobre os recentes conflitos no Rio de Janeiro

passou uma mensagem clara: trata-se de uma guerra entre o bem (Estado policial)

e o mal (traficantes). Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, no entanto, fogem do

maniqueísmo hollywoodiano e traçam um quadro complexo. Um violento jogo

de poder envolve facções, milícias e agentes públicos, os quais operam “uma reconfiguração geopolítica do crime” na

qual se confundem mocinhos e bandidos. Págs. 2, 4 e 5

Wikileaks

Os diplomatas-espiões Vazamento dos documentos sigilosos do Departamento de Estado dos EUA mostra duplo papel de seus embaixadores no mundo Pág. 9

Jadson Marques/Folhapress

Reprodução

Hastear a bandeira brasileira na favela

A CAMPANHA ELEITORAL de 2010 foi um bom retrato do que o capital projeta sobre as mulheres da classe tra-balhadora: um tipo particular de escra-vidão econômica e de dominação polí-tica institucional.

O que nos interessa aqui é o papel co-locado pelo capital para este sujeito, a partir da construção política de certas imagens.

Dilma é guerrilheiraO tema da guerrilha nos exige fa-

zer uma profunda e necessária discus-são sobre o processo histórico da luta de classes no Brasil e na América Lati-na. Exige que revelemos, com base no momento particular de nossa história, o processo da ditadura militar susten-tada no Estado de exceção, que fomen-tava a disputa via luta armada. Mas es-te fato deslocado do seu contexto ga-nha uma dimensão de loucura, perigo, temor quando deveria evidenciar a to-mada de posição na guerra aberta en-tre capital e trabalho, dentro do territó-rio brasileiro.

Dilma é homossexualEsta frase tomou a forma de desca-

racterização do sujeito a partir de uma opção cuja orientação traz amarras com a ética e a moral religiosa tradicio-nalista. Na verdade, a orientação sexual dos sujeitos não tem implicação direta na política pública, ainda que seja uma atitude política.

Uma vez mais, esta produção de va-lor moral, não revelou o perverso con-teúdo de classe, cuja intenção é a de di-minuir o sujeito a partir da manifesta-ção preconceituosa de certas opções.

É mais uma forma encontrada pe-lo poder burguês para realçar o ponto de vista masculino dos produtores de imagem a partir da construção da ideia de que as qualifi cações técnicas passa-vam por esta escolha, baseada em um desvio de conduta. Uma discriminação aberta que precisa negar o sujeito femi-nino, ao mesmo tempo em que o colo-ca em uma posição diminuída frente ao sujeito masculino.

Dilma é favorável ao abortoEste foi o mais ressaltado de todos os

temas, em especial pela abertura polí-tica de visibilidade do poder das religi-ões de formarem juízos de valores so-bre certos assuntos.

Em nenhum momento as posições de evangélicos e católicos foram acirradas para questionar o peso de uma decisão política baseada na tomada de partido nesta seara.

Aproveitou-se o tema para produzir um juízo de valor que reduz o debate à capacidade da mulher de ser capaz de decidir pela vida do outro ser, incluin-do a opção de matá-lo.

O debate passou longe de dar visibi-lidade às reais condições concretas de

sobrevivência das mulheres e do atu-al caráter de criminalização das mu-lheres.

Estas ausências explicitam o quanto este debate é bem mais profundo. Re-quer disputar politicamente o papel do Estado e das políticas públicas, em um momento histórico em que o número de mortes entre mulheres é muito al-to, caracterizando um importante fa-to social.

Juntos, estes slogans revelam ao me-nos três violentas expressões do poder burguês.

1. A personifi cação do debateInfelizmente 2010 não será a última

campanha eleitoral em que presencia-mos o tom pessoal e preconceituoso na disputa do poder institucional.

Uma das características da constru-ção da disputa da direita é o de apelar para a conquista do apoio do outro a partir da ajuda, da caridade, no senti-do dado ao voto.

Isto em lugar de se discutir projetos e a consolidação de programas cuja afi r-mação é a dos interesses da classe.

2. A construção da mulher Nas eleições de 2010 vivenciamos as

históricas amarras sobre a função da mulher na sociedade, cujo papel é re-legado, pelos mandatários, a um ser de bastidores. Isto em meio às mudanças vividas cotidianamente por nós mulhe-

res a partir de nossa inserção, sem vol-ta, no mercado de trabalho e nos es-paços políticos de representação e de-cisão.

Mudanças que provocaram uma in-tensifi cação de atividades em um tem-po encurtado para dar conta de todas as demais tarefas historicamente rele-gadas a nós.

Vivemos uma explícita contradição entre o discurso masculino do poder e a prática múltipla das relações de gêne-ro nas relações sociais.

3. O bem-mal, o certo-erradoEstes slogans estão ancorados em

uma ética cuja moral é a de produzir um jeito único de se comportar frente aos múltiplos processos vividos em so-ciedade. É fundamental para a ordem capitalista dominante que não seja per-mitido ao outro liberdade no pensar e no agir.

A moral burguesa exige para o fun-cionamento em ordem do progresso que a ética manifeste a indução do li-vre arbítrio. Isto é uma produção polí-tica da ação dos sujeitos como especta-dores em seu protagonismo restringido ao voto caridoso.

O que está por trás?O centro do debate é a relação de

opressão e exploração de um sexo so-bre o outro que reforça o domínio de uma classe sobre a outra e culmina na criminalização da mulher. Estas for-mas evidenciam o processo de forma-ção da consciência da classe dominan-te, em que o objetivo é padronizar para manter sua hegemonia no poder.

É hora de projetar o direito de igual-dade de condições na liberdade de pro-duzir o que nos interessa como mulhe-res da classe trabalhadora. É hora de nos refazermos enquanto mulheres da classe.

É hora de exercermos o direito de disputar, construir e lutar pelo poder popular. Um novo poder que ao socia-lizar os fatores e meios de produção ga-rante para toda a classe o real sentido democrático da fraterna liberdade.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular, integrante da

Consulta Popular/ES.

debate Roberta Traspadini crônica Frei Betto

A REPORTAGEM de nosso corres-pondente no Rio de Janeiro, Leandro Uchoas (págs. 4 e 5). retratam o dra-ma e a violência a que está submetida a população pobre carioca. Ela é víti-ma tanto do crime organizado – es-truturado sobre a rentável economia do narcotráfi co – quanto das forças policiais, pagas com recursos públi-cos, que deveriam combatê-lo.

As forças policiais, na sociedade burguesa, reproduzem as mesmas práticas e raciocínios dos que mono-polizam o poder e a riqueza em nos-so país. Há e haverá sempre elogio-sas, heroicas e saudáveis exceções em todas as áreas, inclusive em se-tores policiais. Mas a lógica é a mes-ma: a população pobre é vista sem-pre como um problema e não há li-mites éticos ou legais para se apro-priar das riquezas.

A mercadoria manuseada pelo nar-cotráfi co vicia pessoas, mas também contamina as instituições do Esta-do burguês. As cenas de violência no Complexo do Alemão e na Vila Cru-zeiro, na Zona Norte do Rio de Janei-ro – farsa mostrada insistentemente pelas redes de televisão, rádios, jor-nais e revistas dos grandes grupos de comunicação como sendo uma guer-ra do bem contra o mal – retratam uma classe dominante que sempre cultivou um desprezo visceral à po-pulação pobre.

A mídia burguesa, de um lado, tra-ta o público como um simples idiota, totalmente desprovido de senso crí-tico. Manipula a realidade editando os fatos, ocultando as causas da cri-minalidade e deixando no anonima-to seus verdadeiros benefi ciados e promotores. Do outro lado, especia-lizou sua capacidade de divulgar as notícias como um processo de imbe-cilizar o povo. É grotesco o nível de informações levadas às telas da tele-visão brasileira.

No entanto, há também o papel pedagógico na forma e no conteú-do das notícias veiculadas e repe-tidas. A luta de classes jamais es-tá ausente da telinha. As imagens do grupo de pessoas que deixavam a Vila Cruzeiro, em fuga desespera-da, foram coroadas com um dispa-ro criminoso de um fuzil – prova-velmente dado por um policial, que atingiu um ser humano pelas costas –, que foi comemorado como êxito pelo noticiário.

O recado foi dado. Não interes-sava saber quem era aquela pessoa fria e covardemente atingida pe-lo tiro de fuzil. Muito menos saber que cabia à polícia a tarefa de pren-der os criminosos e levá-los a jul-gamento. Era preciso mostrar que mesmo em fuga eles poderiam ser abatidos impune e facilmente. Po-diam ser caçados de forma anima-

lesca, como protestou Maria Lúcia Pontes, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

O Estado que hoje faz uso dos mes-mos métodos dos grupos criminosos que diz combater é o mesmo que de cuja banda podre mantém uma his-tória de corrupção e de estreitas co-nexões com várias modalidades do crime organizado. Se ontem era o jo-go do bicho, hoje há a estreita vincu-lação com as diferentes facções e mi-lícias criminosas, que lucram com a

miséria e a total ausência de políticas públicas que benefi ciem a população das favelas.

Junto com os fabulosos lucros do tráfi co de armas e drogas, somam-se os lucrativos negócios do transportes coletivos clandestinos, os gatos da energia elétrica e de água, distribui-ção de terras, venda de botijões de gás e até mesmo do voto. Esses negó-cios, que irrigam o crime organizado, não prosperariam sem o binômio, aparentemente contraditório, de au-sência e conivência do Estado.

Uma conivência que exige do Es-tado uma completa inoperância no combate à máfi a internacional que lucra com a venda de armas e com o tráfi co de drogas. Tanto aquelas como estas entram facilmente pe-las fronteiras nacionais e são distri-buídas e armazenadas com a maior facilidade. Portos, aeroportos e ro-dovias tornaram-se rotas seguras e confi áveis. O governo e as Forças Ar-madas devem à sociedade brasileira uma política efi ciente de combate a essas máfi as e seu comércio crimino-so. Assim como é também cada vez mais necessário combater a corrup-ção e a violência estruturada em se-tores das forças policiais.

Combater e desarticular as milícias criminosas signifi ca também mudar a mentalidade e preparação dos apa-ratos policiais, estruturados nos go-

vernos da ditadura militar, que veem a população como um perigo. Falta vontade e decisão política de enfren-tar o crime onde ele se organiza, co-mo alerta o deputado estadual Mar-celo Freixo (Psol/RJ). O consumo de drogas nos grandes condomínios de luxos e os grandes trafi cantes jamais são incomodados pelas polícias e não recebem nenhum espaço nos notici-ários. O perigo, para as classes do-minantes, e sua polícia, reside sem-pre nos aglomerados das populações pobres.

Hasteada a bandeira brasileira, de-pois de expulsos os trafi cantes, os noticiários e a polícia comemora-ram vitória. Empenharam-se em di-fundir a sensação de que o território foi conquistado e a população liber-tada. Imagem que contradiz as notí-cias de que muitas famílias estão dei-xando suas moradias naquela favela. E crescem os indícios de que o terri-tório foi conquistado e logo será ocu-pado pelo mercado fi nanceiro, em-preiteiras e grupos imobiliários. Es-peram, assim, obter a paz, sem ne-cessariamente acabar com o tráfi co de drogas.

Políticas públicas e benefícios so-ciais, econômicos e culturais paraos pobres, somente quando eles ti-verem forças e voz para exigi-los.Eles também vão hastear a bandei-ra brasileira.

de 2 a 8 de dezembro de 20102editorial

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Quem tem poderTEM PODER TODA pessoa ou instituição capaz de decidir os rumos de nos-sas vidas. Toca-me o poder do presidente dos EUA, tamanha a infl uência econômica, ideológica e militar deste país no planeta. Vale adicionar à lis-ta seu peso no meio ambiente, no avanço da ciência e no aprimoramento da tecnologia. Poderoso é aquele que me salva ou condena, insere ou exclui, gratifi ca ou pune.

Posso prescindir do poder do chefe de uma empresa, desde que não traba-lhe nela. Mas não posso prescindir de quem detém o poder político. Ainda que ele não tenha sido eleito pelo meu voto. Toda decisão política infl ui no conjunto da sociedade. Para o bem ou para o mal, depende do ponto de vis-ta de quem é benefi ciado ou prejudicado.

Por isso convém estar atento: quem tem nojo de política é governado por quem não tem. E tudo que os maus políticos querem é a maioria da popula-ção indiferente ao fato de fazerem na vida pública o que fazem na privada.

Como me relaciono com a pessoa que, próxima a mim, detém poder so-bre meu destino? Eis uma questão que, infelizmente, Freud e seus sucesso-res não aprofundaram tanto como o fi zeram os dramaturgos gregos na An-tiguidade, Shakespeare e nosso Machado de Assis.

A tendência é o subalterno, quando mais apegado à função que a seu es-pírito crítico, se infantilizar frente ao superior: ri do que não tem a menor graça, elogia o que não merece consideração, procura adivinhar-lhe gostos e preferências. Trata-se de um jogo típico de criança que se esforça por sedu-zir o adulto para, em troca, obter carinho e realização de suas aspirações.

Muitos que detêm o poder nutrem seus egos graças à corte de bajulado-res. E tendem a não aceitar que o critiquem. Se alguém se atreve a fazer-lhes crítica, há que, primeiro, escolher cuidadosamente as palavras, de modo a não ferir-lhes a sensibilidade, assim como uma agulha é capaz de fazer es-tourar um balão.

A maioria se cala diante do poderoso, ainda que lhe conheça contradições e defeitos. Raras as pessoas que, em cargos de chefi a, ousam repetir a inicia-tiva de um gerente de empresa que, uma vez ao mês, reservava uma hora pa-ra ouvir críticas de seus subordinados. E ainda mantinha uma caixa de cor-respondência para quem preferisse fazê-lo anonimamente.

Segundo ele, a opinião que temos de nós mesmos e de nosso desempenho quase nunca confere com a de quem conosco convive. Saber ouvir críticas é um ato de humildade e tolerância. Humildade deriva de húmus, terra; hu-milde não é o bobo e sim quem mantém os pés no chão, sem voos egolátri-cos nem se deixar atolar na baixa autoestima.

Muitos defeitos poderiam ser corrigidos em instituições e empresas se os funcionários e subalternos tivessem canais para expressar críticas e suges-tões. Em que hospital os pacientes avaliam os médicos? Em que escola os alunos dão notas aos professores? Em que igreja os fi éis questionam seus bispos e pastores?

Há pessoas, em especial na esfera da política, que só se sentem bem iman-tadas pela aura do poder. Quando estão próximas, demitem-se de qualquer consciência crítica e agem ridiculamente como papagaios de pirata, sempre se empenhando para se dependurarem no ombro do poderoso.

Porém, se as circunstâncias as distanciam do poder, sentem-se humilha-das, desprezadas, e deixam-se entupir de mágoas e iras. O poderoso ontem bajulado passa a ser objeto de críticas mordazes. É a síndrome da expulsão do Paraíso...

O melhor antídoto à sedução do poder é a espiritualidade. Não apenas no sentido religioso, mas sobretudo no que concerne ao aprofundamento sub-jetivo de valores éticos. Quem gosta de si mesmo não precisa mendigar o olhar alheio. Nem sempre prestamos atenção no preceito de Jesus: “Amar o próximo como a si mesmo.” Se não tenho boa autoestima, difi cilmente sa-berei encarar o próximo com benevolência e compaixão.

Muitos caminhos conduzem a essa conquista interior. Para mim, a mais pedagógica é a meditação, esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir portas do coração e janelas da mente aos se-melhantes e à natureza.

Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – refl exão sobre o poder (Rocco), entre outros livros.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Políticas públicas e benefícios sociais, econômicos e culturais para os pobres, somente quando eles tiverem forças e voz para exigi-los

Em que hospital os pacientes avaliam os médicos? Em que escola os alunos dão notas aos professores?

É hora de projetar o direito de igualdade de condições na liberdade de produzir o que nos interessa como mulheres da classe trabalhadora

O ser e o poder

de 2 a 8 de dezembro de 2010

devia lealdade ao governador de São Paulo, candidato à Presidência. Às vésperas do segundo turno, ainda nos EUA, doutor Nelson declara que poderia ser “ministro da Defesa de qualquer dos candidatos que vencesse”.4. Dias depois da eleição de Dilma Rousseff, o crime organizado sai espalhando terror no Rio de Janeiro, en-castelando-se em seguida no Complexo do Alemão, on-de permaneceu cercado por efetivos da polícia e das Forças Armadas. A grande mídia comercial transforma o episódio em “o maior espetáculo da terra”, semeando o pânico Brasil afora.3. Marcinho VP, Fernandinho Beira-Mar, etc. são ape-nas reis das favelas. Os verdadeiros donos do “negócio”, nunca aparecem e investem seus bilhões nas bolsas. Tornam-se sócios das maiores empresas internacio-nais. Os donos do “negócio” têm toda ascendência so-bre os VP e os Beira-Mar, bem como sobre diversos po-líticos que os representam.2. Quadrilhas, instâncias repressivas do Estado, forças políticas da ultradireita e grupos paramilitares mantêm sempre uma relação promíscua. 1. Em 28 de novembro, VP e sua gangue desaparecem do Complexo do Alemão.

No mesmo dia, a presidenta eleita anunciou o nome do doutor Nelson para o Ministério da Defesa.

Como diria o italiano Luigi Pirandello, “Assim é, se lhes parece”.

O americano tranquilo10. O americano tranquilo (1955) é uma curta nove-la, do escritor Graham Greene (Globo Editora, 256 pá-gs.), que teve duas versões no cinema. Em 1957, dirigida por Joseph Mankiewcz; e, em 2002, por Philip Noyce. Os fi lmes não fazem jus ao livro. Mas vale a pena assis-tir o fi lme e, sobretudo, ler o livro. O cenário da ação é a guerra na Indochina, sob dominação francesa, e os primeiros passos (conspiração e sabotagens) dos EUA-CIA, que os levariam à guerra no Vietnã. 9. O trabalho de Greene nos faz pensar sobre o papel da conspiração na História. 8. Em 1988, doutor Nelson Jobim (PMDB-RS), mem-bro titular da Comissão de Sistematização da Constitui-ção, fraudou o texto da nova Carta. 7. Em 17 de julho de 2007, depois de sabotagens articu-ladas nos aeroportos brasileiros, com a participação da grande mídia comercial, cai em Congonhas (SP) o air-bus da Tam (vôo 3054). Todos mortos. Em 25 de julho toma posse o novo ministro da Defesa, Nelson Jobim.6. Depois do Natal de 2009 e antes do Ano Novo, com o país desmobilizado, apresentando documento supos-tamente assinado pelos três comandos militares, Jobim tenta um golpe contra o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos e contra o ministro Paulo Vannuchi.5. Durante as eleições, Jobim se retirou para os EUA “para não intervir na disputa”: estava no governo, mas

AlmeidaRocha/Folhapress

instantâneo frases soltas

Alipio Freire

go Chávez, também aparece em vários textos confi den-ciais. A base de dados a que o jornal britânico The Guar-dian teve acesso revela a atividade de espionagem das embaixadas dos EUA em busca de informação que pos-sa ser usada em chantagem contra dezenas de países, alguns deles aliados. Índia, Afeganistão, Paquistão, paí-ses árabes e africanos, assim como Honduras, Colôm-bia, Paraguai, Brasil e Venezuela, na América Latina, fo-ram objeto de espionagem. No caso de Honduras, tele-gramas de diplomatas confi rmam que houve um golpe militar no país – que os EUA e a mídia colonizada ten-taram esconder.

No caso brasileiro, conversas confi rmam o descon-forto dos EUA com a política externa soberana pratica-da pelo Itamaraty. O ministro Celso Amorim e o ex-se-cretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães são encara-dos como inimigos do império. Já o ministro da Defe-sa, Nelson Jobim – que infelizmente a presidente Dilma Rousseff manteve no posto – é tratado como um “alia-do” dos EUA.

A documentação tornada pública pela ONG Wikile-aks confi rma que a luta contra a agressão imperialista é a principal batalha dos povos contra a opressão e a ex-ploração.

Wikileaks e os EUA Para os que acham que não existe mais imperialismo,

a revelação do sítio Wikileaks de mais de 250 mil no-vos documentos sobre espionagem dos EUA em todo o planeta representa o fi m das ilusões de classe. Os textos “confi denciais” mostram a face verdadeira da diploma-cia ianque, que trabalha para prolongar o domínio dos EUA sobre mundo.

Para manter a sua hegemonia econômica, política, militar e ideológica, os EUA não vacilam em espionar dezenas de nações, orquestram planos de derrubadas de governos eleitos democraticamente, fi nanciam or-ganizações e operações “terroristas” e vigiam até mes-mo o secretário-geral da ONU. O império não tem qual-quer escrúpulo para manter o seu domínio.

Os documentos revelados pelo Wikileaks contêm in-formações levantadas por centenas de diplomatas sobre temas-chave da política externa dos EUA, como as ocu-pações do Afeganistão e Iraque, Irã e o Paquistão. Além disso, estão incluídas avaliações sobre negociações bi-laterais, conversas privadas e avaliações sobre líderes de vários países. Fica evidente a investida imperialis-ta contra o Irã para “cortar a cabeça da cobra”, numa das referências ao presidente Mahmud Ahmadinejad. O esforço para derrubar o presidente da Venezuela, Hu-

Altamiro Borges

Debaixo d´água – Agarrados à grade, pedestres tentam escapar de alagamento na rua Turiassu, Zona Oeste da capital paulista

comentários do leitor

Ocupação das comunidadesEm 2005, houve grande invasão e

ocupação no Complexo do Alemão com dezenas de mortos e centenas de feridos. O narcotráfi co não aca-bou e provavelmente não vai acabar. É um fenômeno mundial inserido na economia capitalista. Tudo o que tem sido feito até agora tem funcio-nado de uma forma espetacular, pro-vocando análises superfi ciais, tipo o “bem contra o mal”. As UPPs funcio-nam como uma máquina publicitária em função da Copa do Mundo, Olim-píadas e outros eventos turísticos. Enquanto isso, desemprego em mas-sa, a saúde caótica, rede de transpor-tes péssima e a educação é a segunda pior do Brasil.

Alcyr Cavalcanti – por correio eletrônico

Ponta do icebergÉ lamentável o que acontece não

só no Rio de Janeiro, mas em todas as comunidades empobrecidas des-se país. A cooptação da juventude pe-la criminalidade revela a faceta mais cruel do capitalismo em nosso país. Só que, sabemos, esta é apenas a pon-ta do iceberg. Concordo com o depu-tado (Marcelo Freixo) de que é preci-so ir mais a fundo no combate ao cri-me. E isso passa pelo combate à cor-rupção em todas as instituições, pois esse câncer alimenta o tráfi co de dro-gas e de armas. Os chefes do crime or-ganizado estão de gravata, nós sabe-mos. Estes não estão sendo caçados pela polícia, pois vivem bem longe dos morros.

Alessandra Faria – por correio eletrônico

Combate a violênciaO crime, o tráfi co de armas e drogas

foi crescendo nas barbas da ditadura que muito preocupada em reprimir “subversivos” deixou de lado o pla-nejamento de uma polícia inteligente que olhasse o crescimento da crimi-nalidade. Tornamo-nos reféns de um punhado de criminosos, sem nenhum ideário. O quadro de hoje é refl exo do descaso do Estado com o menos favo-recido. E o caso das drogas não é um caso de polícia. É principalmente um caso de saúde.

Iracema de souza – por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrômico [email protected]

3

O capitão afi rmou inicialmente que bandidos poderiam estar se escondendo na rede de esgotos, mas a Cedae, companhia do ramo no Rio de Janeiro, informou que não há esse serviço no Complexo do Alemão

Matéria do UOL sobre a operação do Bope no Rio de Janeiro.

Vamos punir rigorosamente qualquer policial que se afaste da prática correta, que a população está tanto louvando, que é do respeito ao próximo. Aquele infeliz que não proceder assim, não vai manchar os heróis que estão trabalhando com tanta dedicação

Fala do governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, durante cerimônia de

inauguração da UPP do Morro dos Macacos, na Zona Norte da capital.

O presidente Lula deve ter um papel decisivo entre um ministro de Defesa atipicamente ativista, interessado em desenvolver relações mais próximas com os Estados Unidos, e um Ministério das Relações Exteriores fi rmemente comprometido em manter controle sobre todos os aspectos da política externa e manter a distância entre o Brasil e os EUA

Documento da embaixada estadunidense publicado pelo site Wikileaks que fala, respectivamente, do ministro Nelson Jobim e do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Eles tentaram em 2005, mas não sabiam que esse presidente era a encarnação do povo na rua. Esse país teve presidente que se matou, que foi cassado. Conversei com o Sarney na época e disse que eles vão saber que não é o Lula que está na Presidência. É a classe trabalhadora brasileira

Lula , durante visita às obras da Hidrelétrica de Estreito no Maranhão.

Nada mais tenho a fazer na Câmara dos Deputados, já que para exercer o cargo tenho que ser um cidadão elegível

Ofício de renúncia do deputado federal Jader Barbalho (PMDB-PA), que foi considerado inelegível pelo TSE com base na Lei da Ficha Limpa.

U.S.Embassy/Brasília

O ministro Nelson Jobim ao lado do embaixador Clifford Sobel e sua esposa

brasilde 2 a 8 de dezembro de 20104

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

MAIS DE 100 veículos incendiados, gra-nadas e tiros contra delegacias, pelo me-nos 52 mortos, assaltos em profusão, pe-quenos arrastões, tiroteios em comuni-dades pobres. Na penúltima semana de novembro, o Rio de Janeiro esteve entre-gue à barbárie. Em pânico, parte da po-pulação deixou de ir ao trabalho, de fre-quentar bares, de transitar livremente pelas ruas. E comunidades inteiras, espe-cialmente na Zona Norte, fi caram reféns dos “soldados” do narcotráfi co e da insa-nidade de setores da polícia. Como tem sido comum nesses períodos, a opinião pública assumiu posições conservadoras. Exigia-se punição dura, resultados ime-diatos. Para os setores sociais de espírito crítico mais desenvolvido, porém, fi cou a sensação de que se assistia pela TV, ou lia pelos jornais, a uma farsa.

A onda de violência começou no dia 21 de novembro. Carros e ônibus foram queimados pela cidade por jovens liga-dos ao Comando Vermelho (CV), aliados a setores da Amigo dos Amigos (ADA). Os narcotrafi cantes teriam se unido con-tra a instalação de Unidades de Polícia Pacifi cadora (UPPs) nos territórios an-teriormente controlados por eles, segun-do o discurso ofi cial. Estudiosos de Segu-rança Pública consideram essa uma ex-plicação incompleta – além de oportu-na ao governo estadual, por supor que a ação criminosa seria a resistência a um bom trabalho. Verdade é que a outra fac-ção expressiva, o Terceiro Comando Pu-ro (TCP), tem se aliado informalmente às milícias, em regiões da cidade, contra as outras duas. Até o aluguel de duas favelas aos grupos paramilitares teria ocorrido. De fato, TCP e milícias têm sido menos afetadas pelas UPPs. A pergunta não res-pondida, e sequer midiatizada, permane-ce: por que o Estado evita instalar UPPs nessas áreas?

Correu boato pela cidade, em fase de investigação, de que as ações seriam de-correntes da insatisfação com o aumen-to no valor da propina a policiais. Por en-quanto, a explicação mais lúcida para a onda de violência é a perda de espaço do CV na geopolítica do crime. As milícias, ameaças maiores, avançam território, e o setor nobre da cidade, altamente mi-litarizado, segue protegido pelas UPPs. “Aqui no Rio, há uma reconfi guração ge-opolítica do crime”, interpreta José Cláu-dio Alves, vice-reitor da UFFRJ. Ele ex-plica que existe uma redefi nição das re-lações de hegemonia, envolvendo dispu-ta de território. O mapa de instalação das UPPs, somado à expansão das milícias, estaria levando à periferização do CV. A facção tende a se deslocar para as regi-ões da Leopoldina, da Central do Brasil e da Baixada Fluminense. “Isso leva, inclu-sive, à introdução veloz do crack no Rio de Janeiro. Ele é baratíssimo. A reconfi -guração do crime também leva à reconfi -guração do consumo da droga”, explica. Até 2009, o crack praticamente não en-trava na cidade.

Tráfi co em decadênciaHá ainda a interpretação de que o mo-

delo de negócios que se forjou no Bra-sil, do narcotráfi co, estaria em declínio. A milícia, por modernizar o crime, apro-priando-se de serviços públicos e dispu-tando a política institucional, teria torna-do a economia da droga obsoleta. O ex-secretário nacional de Segurança Públi-ca, Luiz Eduardo Soares, que se negou a atender jornalistas, divulgou artigo de-fendendo a tese. “O tráfi co tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionali-dade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais pre-dominantes em nosso horizonte históri-co. O modelo do tráfi co armado, susten-tado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico: custa muito ca-ro manter um exército, recrutar neófi tos, armá-los, mantê-los unidos e disciplina-dos”, diz.

As ações das facções na cidade, em ge-ral, objetivaram sobretudo gerar pânico. Em meio aos veículos queimados, hou-ve poucos feridos. A reação policial foi de potência inédita. Foram mobilizadas todas as polícias, ofi ciais de outros Es-tados, todo o efetivo em férias e refor-

Por trás dos confl itos no Rio, o complexo jogo do poder

ços da Marinha, Exército e Aeronáuti-ca. Os blindados, emprestados pela Ma-rinha, eram de forte poderio bélico. Um deles, o M-113, é usado pelos Estados Unidos no Iraque. Cerca de 60% dos ofi -ciais em operação estiveram com a Mis-são das Nações Unidas para a estabiliza-ção no Haiti (Minustah). O general Fer-nando Sardenberg declarou ao O Globo que há similaridade nas ações do Rio e do Haiti. Sandra Quintela, da Rede Ju-bileu Sul, que acompanha a ocupação do Haiti, considerou o dado grave. “Há mui-to tempo estamos avisando que isso iria acontecer. Eles treinam lá para praticar aqui”, disse.

As autoridades não explicaram por que o TCP e as milícias não perdem território com as UPPs. Desconfi a-se que haja pac-tos tácitos. “Há o controle eleitoral des-sas áreas de milícias por grupos políti-cos. O Estado não vai jamais debelar is-so, porque ele já faz parte, e disso depen-de sua reprodução em termos políticos e eleitorais. Ele está mergulhado até a me-dula”, diz José Cláudio. As UPPs têm si-do instaladas num corredor nobre do Rio de Janeiro – bairros ricos da Zona Sul, região do entorno do Maracanã e arre-dores da Barra da Tijuca. Os narcotrafi -

cantes já vinham se refugiando, há tem-pos, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão. “Era um tanto quanto previsível que essa barbárie pudesse acontecer”, acusa o deputado estadual Marcelo Frei-xo (Psol-RJ), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj.

Combate seletivoO professor Ignácio Cano, do Labora-

tório de Análise de Violência da UERJ, também desconfi a do privilégio da atua-ção do Estado contra o CV. “Há um trata-mento seletivo da polícia, aparentemen-te. A milícia tende a não entrar em con-fronto armado com o Estado e vice-ver-sa”, diz. Embora veja avanços, o soció-logo se diz preocupado com a ação poli-cial, que pode representar um recuo do Estado a posições mais recuadas do pas-sado. O Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltra-

do combate ao tráfi co. Ao vivo, pela TV,via-se a longa fuga dos bandidos pelomorro, em direção ao Complexo da Ma-ré, principal refúgio do Comando Ver-melho. Pelo Twitter, o Bope protestoucontra as emissoras de TV. A exibiçãoao vivo das imagens de fuga foi clas-sifi cada como “um desserviço presta-do pelas aeronaves da Record e da Glo-bo”. Porém, desconfi a-se que, caso nãohouvesse transmissão, os bandidos se-riam fuzilados, como em outras açõesdo batalhão.

Após a fuga, a polícia ocupou a Vi-la Cruzeiro. A reação da maior parte dapopulação local foi de aprovação. Poli-ciais foram aplaudidos, e pessoas se dis-seram aliviadas. “Infelizmente a popula-ção não está percebendo a ação policial como violação de direitos. Essas pesso-as têm que ser julgadas e não caçadas deforma animalesca”, protesta Maria Lú-cia Pontes, da Defensoria Pública do Riode Janeiro. Parte dos moradores, entre-tanto, acusou a polícia de truculênciae furtos, vozes não veiculadas pela co-bertura ofi cial. A partir de então, a polí-cia cercou o Complexo do Alemão, com um volume de força bélica jamais vis-to. Os milhares de ofi ciais ocuparam, no dia 28, o conjunto de 17 favelas, com400 mil moradores. Hastearam as ban-deiras do Brasil e do Rio no alto de umdos morros. A operação foi considerada de baixa letalidade, mas há denúncias de corpos escondidos. Até o fechamen-to desta edição, poucos narcotrafi cantes haviam sido presos. (LU)

GUERRA DO BEM? Prejudicadas na geopolítica do crime, facções levam terror às ruas do Rio. Nos meandros da ação do tráfi co, e da reação policial, um cenário mais complexo do que faz supor o discurso ofi cial

do Rio de Janeiro (RJ)

A escalada de terror, no Rio de Janei-ro, começou com o incêndio em três car-ros na Linha Vermelha, no domingo, dia 21 de novembro, junto a um arrastão. A ordem teria saído de líderes do Coman-do Vermelho, como Márcio Santos Ne-pomuceno, o Marcinho VP, e Marcos An-tônio Firmino, o My Thor. Presos em Ca-tanduvas, no Paraná, eles teriam enviado recado através de seus advogados, após visita. Outros incidentes de incêndio em veículos e arrastões já vinham aconte-cendo há pelo menos um mês. Entre-tanto, durante a semana que se seguiu, chegou a um pico de mais de 30 veículos queimados em um dia.

Ao longo da semana, contava-se pe-lo menos 108 veículos queimados – en-tre carros, ônibus, vans, kombis e mo-tos. No caso dos coletivos, em geral, os criminosos esperavam a população des-cer para atear fogo. Entretanto, hou-

ve episódios com feridos graves. Aos incêndios somaram-se tiros em cabi-nes da Polícia Militar, granadas dispa-radas, pequenos assaltos e arrastões. O pico das ações ocorreu entre terça (23) e quinta-feira (25). Neste dia, a maio-ria dos narcotrafi cantes foram acuados na Vila Cruzeiro, favela de aproximada-mente 50 mil moradores no Complexo da Penha, e cerca de 30 entradas distin-tas. Contava-se entre 100 e 200 bandi-dos, armados de fuzis AR-15 ou 7,62.

Por pânico ou seguindo orientações dos meios de comunicação, boa parte da população da região metropolitana recolheu-se em casa durante o dia 25. Estima-se que o movimento dos bares tenha caído 15% – na zona boêmia da Lapa, circulavam boatos de queda pe-la metade. A avenida Nossa Senhora de Copacabana teve, pela primeira vez em anos, uma tarde sem engarrafamento. O policiamento passou a ocupar boa par-te das esquinas da cidade, especialmen-te na Zona Sul, região nobre do Rio. A ativista sulafricana Sono, em visita à ci-dade para falar sobre a ausência de lega-do social no país durante a realização da Copa de 2010, surpreendeu-se. “Andan-do nas ruas, percebi a grande presença da polícia, o que me lembrou a época do apartheid e da Copa do Mundo no meu país”, comparou.

A quinta-feira foi um dia chave. A po-lícia passou a preparar a entrada na Vi-la Cruzeiro, com o objetivo de acuar os bandidos. Então, assistiu-se a uma das cenas mais impressionantes da história

me, afi rmou em entrevista coletiva que a ADA é uma facção mais “pacífi ca”, mais preocupada com o comércio de drogas. O CV seria mais “ideológico”, estaria mais disposto à guerra.

Para Antônio Pedro Soares, do Projeto Legal, o modelo de Segurança Pública do governo teria ajudado a gerar esse confl i-to. As áreas “pacifi cadas” seriam plane-jadas de acordo com os interesses da es-peculação imobiliária. “O que está acon-tecendo tem a ver com a política de se-gurança, que precisa ser melhor discuti-da. Continua a lógica de uma polícia con-trolando uma população considerada pe-rigosa”, afi rma. Em sua maioria, os ati-vistas de direitos humanos não negam a necessidade de se prender os narcotrafi -cantes. Entretanto, combatem a execu-ção sumária,e acusam o Estado de perse-guir apenas os bandidos da base da pirâ-mide do crime. “É uma guerra em que só morre um lado, uma cor, uma classe so-cial. É simbólico que tenha acontecido na Semana da Consciência Negra e dos 100 anos da Revolta da Chibata”, afi rma Mar-celo Edmundo, da Central de Movimen-tos Populares (CMP). Desconfi a-se que o número de mortos seja muito maior do que o divulgado.

O pânico quadro a quadroA barbárie atingiu pico no meio da semana. Ao menos 108 veículos foram queimados. Ações policiais, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, tiveram cenas históricas

“Andando nas ruas, percebi a grande presença da polícia, o que me lembrou a época do apartheid e da Copa do Mundo no meu país”, comparou a ativista sulafricana Sono

“Era um tanto quanto previsível que essa barbárie pudesse acontecer”, acusa o deputado estadual Marcelo Freixo

Políciais da Coordenação de Recursos Especiais do Rio de Janeiro (CORE) durante operação no Complexo do Alemão

Marcello Casal Jr./ABr

de 2 a 8 de dezembro de 2010 5brasil

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

ENTRE TANTOS protagonistas na crise da Segurança Pública fl uminense, um se destacou: a mídia comercial. As emisso-ras de TV e rádio e os jornais de grande circulação conseguiram criar uma rea-lidade à parte. Nela, os ofi ciais da polí-cia que mais mata e que mais morre, no mundo, tornaram-se heróis. A popula-ção acuada nas comunidades, com ris-co de ser atingida por balas perdidas, foi retratada como um conjunto de cidadãos grato à chegada “das forças do bem”. O pânico ganhou contornos de lucrativo espetáculo, transmitido ao longo de tar-des inteiras. A cobertura televisiva asse-melhou-se à transmissão de confl itos co-mo o do Iraque. E a linguagem escolhi-da também foi a da guerra. Poucas vezes o jornalismo brasileiro esteve tão próxi-mo da fi cção.

A barbárie dos trafi cantes e a reação policial foram chamados pelos veículos de “Guerra do Rio”. Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação, cri-tica a opção linguística. “Guerra de quem contra quem? Uma guerra na qual os ini-migos são os trafi cantes das favelas, não por coincidência pobres, negros e can-didatos a uma vida curtíssima. Não se lê nenhuma linha sobre os grandes che-fes do tráfi co: banqueiros, juízes, chefões políticos e militares, advogados”, acusa. Todo o linguajar midiático emprestou expressões da guerra. Inocentes assas-sinados pela polícia viraram “baixas ci-vis”. A Vila Cruzeiro se transformou no “bunker do tráfi co”. A data em que a po-lícia invadiu a favela tornou-se o “Dia D” – referência à chegada dos aliados à Nor-mandia, na Segunda Guerra, decisiva pa-ra a derrota da Alemanha nazista.

A tomada do Complexo do Alemão foi retratada como uma vitória inédita, pon-to de virada na história da cidade. E com cenas cinematográfi cas. As bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro, levantadas no alto do conjunto de favelas, lembra-ram a chegada do homem à lua. “O triste é que este espetáculo midiático faz com que muita gente de bem torça pelo ex-termínio destes jovens, como torcem pe-lo Rambo nos fi lmes de Hollywood. O fa-to é transformado em um grande espe-táculo para ganhar a adesão das pesso-as. E ganha”, lamenta Cláudia. O apoio à ação policial, considerada de sucesso pelos jornalistas e por boa parte dos co-mentaristas ouvidos pelos grandes veícu-

los, aparentemente, encontrou eco junto à população do Rio.

Militarização legitimada“A cobertura da TV privilegia a dra-

matização. E afi rma-se que esse vai ser o ponto de infl exão daqui para frente. Um equívoco. Lamento que esses gran-des veículos adotem essa posição”, cri-ticou Ignácio Cano. Sociólogo vinculado

do Rio de Janeiro (RJ)

Segundo o discurso ofi cial, a causa da barbárie teria sido a perda de territó-rio, devido à instalação das UPPs. Tam-bém existem boatos de que o tráfi co te-ria se rebelado contra o aumento do valor da propina à polícia. Há ainda a explica-ção mais lúcida, de que a geopolítica do crime estaria se reconfi gurando. Entre-tanto, outros elementos somam-se a es-ses. Um deles é o tráfi co de armas na ci-dade. Material bélico de altíssimo poder de fogo seria vendido aos narcotrafi can-tes pelos setores corruptos das polícias e do Exército. Carregamentos ilegais de armas chegariam ao Rio de Janeiro, em embarcações, provavelmente na Baía de Guanabara, sem iniciativa repressora do Poder Público.

A falta de qualidade dos serviços de in-teligência da polícia também seria um elemento causador do fortalecimento do crime e dos acontecimentos da semana. Os setores de detecção e prevenção de ações criminosas seriam pouco valoriza-dos, com profi ssionais mal pagos e estru-

do Rio de Janeiro (RJ)

A despeito da sequência de decisões questionáveis da polícia, sua atuação na crise atual revela diferenças em relação a comportamentos anteriores. Das distin-ções a serem apontadas, algumas podem ser interpretadas como positivas, outras como negativas. Aparentemente, houve maior transparência da polícia. O secre-tário de Segurança Pública, José Maria-no Beltrame, e os comandantes das polí-cias não exitaram em vir a público reve-lar posicionamentos e estratégias. Porém já há denúncias de ações letais omitidas e de abuso de poder de algumas tropas. “O policial preparado para a guerra não po-de ser um bom policial, porque a popula-ção não pode ser vista como inimiga”, de-fende a antropóloga Alba Zaluar.

Algumas técnicas de desarticulação do tráfi co evoluíram. Os advogados dos tra-fi cantes Marcinho VP e Elias Maluco fo-ram presos, por determinação do juiz da

A barbárie como espetáculo

ao Laboratório de Análise de Violência da UERJ, Ignácio é um dos estudiosos de Segurança Pública mais frequentemen-te ouvido em períodos de crise. Para Jo-sé Cláudio Alves, vice-reitor da UFFRJ, “amplia-se muito a lógica militar quan-do a execução sumária, elevada à catego-ria de política pública, é legitimada pe-la mídia.”

Outra fonte histórica dos grandes ve-ículos é Luiz Eduardo Soares, ex-secre-tário, nacional e estadual, de Seguran-ça Pública. Pela primeira vez, o intelec-tual desligou o celular, para não atender a jornalistas. “Não posso mais compac-tuar com o ciclo sempre repetido na mí-dia: atenção à segurança nas crises agu-das e nenhum investimento refl exivo e informativo realmente denso nos inter-valos entre as crises”, escreveu, em arti-go. E em outro trecho: “todo pensamen-to analítico é editado, truncado, espremi-do – em uma palavra, banido –, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação pas-sional das emergências, as imagens espe-taculares, os dramas individuais e a retó-rica paradoxalmente triunfalista do dis-curso ofi cial”.

Por fi m, no mesmo artigo, o sociólogo critica a falsa dualidade criada pela mí-dia, entre policiais e trafi cantes. “Não existe a polaridade. Construí-la – isto é, separar bandido e polícia – teria de ser a meta mais importante e urgente de qual-quer política de Segurança digna desse nome”. Segundo Soares, não há ação de criminosos, no Rio de Janeiro, da qual estejam ausentes segmentos corruptos da polícia. Seria justamente essa inter-penetração entre tráfi co – ou milícia – e polícia que faz com que a ilegalidade per-maneça viável. Além disso, o abismo de força bélica entre as duas forças em con-fl ito, polícia e tráfi co, também é atenua-

CONTRA O MAL? Mídia trata como guerra a crise na Segurança Pública, lucra com a espetacularização dos atos do tráfi co e da polícia e cria falsa dualidade

do quando se usa o termo “guerra”. O po-der de fogo dos policiais é muito maior.

Saques e diásporaUm bom exemplo da cobertura fi ccio-

nal do confl ito foi a invasão policial da Vila Cruzeiro. O chamado “Dia D” foi ce-lebrado pelos veículos. A polícia teria ob-tido grande vitória ao ocupar uma fave-la onde o Poder Público não entrava há três anos. Segundo os jornalistas, a po-pulação estaria aliviada, recebendo os soldados com louvor. E a polícia estaria fazendo uma varredura na comunida-de, atrás de drogas e armas. Isabel Cris-tina Jennerjahn esteve na comunidade e trouxe um relato bastante distinto – em-bora reconheça que a sensação local, em grande parte, era mesmo de alívio. Inte-grante da Rede de Movimentos e Comu-nidades contra a Violência, ela relata que boa parte dos moradores está indo em-bora da favela.

Segundo Isabel, algumas casas teriam sido saqueadas pela Polícia Militar (PM), e o Bope estaria impedindo familiares de trafi cantes mortos de buscarem seus cor-pos na mata – assassinatos esses não vei-culados pela TV. Os jornais de domin-go, dia 28, preferiram divulgar um pro-jeto do prefeito, Eduardo Paes (PMDB), anunciando o desejo de urbanizar a fave-la. Movimentos e ONGs desconfi am que no Complexo do Alemão esteja havendo casos semelhantes. A diáspora foi ainda maior ali do que na Vila Cruzeiro. Teme-se que bandidos desarmados tenham saí-do normalmente, passando pela barreira policial, como os outros moradores. “Vão haver novamente assassinatos, e não vai haver investigação”, suspeita José Cláu-dio. Também há críticas contra a decisão dos veículos de não citar nomes de fac-ções do tráfi co.

tura precária. A Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco), institui-ção de competência por vezes elogiável, está sucateada. Entretanto, é sabido que em governos anteriores, em que secretá-rios de segurança eram quadros partidá-rios, que setores de inteligência eram de intervenção mais comprometida, por se submeterem a interesses políticos.

Também há os que atribuem, como causa da corrupção policial, e por conse-quência da crise atual, os baixos salários dos ofi ciais. Eles seriam obrigados a re-correr ao chamado “gato orçamentário”. Grande número de policiais, para refor-çar seus baixos salários, fazem “bicos” fora do expediente, atuando como segu-ranças. Ilegal, a prática é tolerada na po-lícia. Alguns estudiosos têm defendido, como solução, a aprovação da PEC 300 pelo Congresso Nacional. O projeto igua-la o piso salarial de agentes de segurança no país. A aprovação da proposta é consi-derada difícil, porque elevaria o compro-misso orçamentário dos Estados, e por isso enfrenta a oposição de boa parte dos governadores eleitos. (LU)

1ª Vara Criminal de Bangu, Alexandre Abrahão Teixeira. Luiz Fernando Cos-ta e Flávia Fróes foram acusados de, em visita aos clientes, levar informação pa-ra seus comparsas. Namoradas e paren-tes também foram presos, ou tiveram bens apreendidos, acusados de lavagem de dinheiro, por apresentarem posse in-compatível com sua renda. Os narcotra-fi cantes foram transferidos para presídio em Porto Velho (RO). Embora o comba-te aos líderes de facções tenha evoluído, os banqueiros, empresários e parlamen-tares com vinculações ao narcotráfi co as-sistiram à crise pela TV.

A ocupação do Complexo do Alemão tem especial simbolismo. Em 2007, uma megaoperação do governo estadual no conjunto de favelas deixou um saldo de 19 mortos. A ação recebeu muitas críticas dos movimentos sociais à época, gerando inclusive um manifesto de repúdio. “Se tivesse dado algum resultado, não esta-ríamos lá de novo”, simplifi ca a defenso-ra pública Maria Lúcia Pontes. Por outro lado, o saldo atual parece ser de menor letalidade. “Eles aparentemente foram mais cuidadosos no Alemão dessa vez. Mas me preocupa essa ação. Pode repre-sentar um recuo na política do Estado”, defende Ignácio Cano. O sociólogo tam-bém considerou negativa a retomada da parceria com as Forças Armadas. (LU)

Grande número de policiais, para reforçar seus baixos salários, fazem “bicos” fora do expediente, atuando como seguranças

Tragédia de muitos culpadosDo tráfi co de armas à inteligência sucateada, as causas do confl ito não se reduzem à reconfi guração geopolítica do crime

A mesma política, com distinçõesCriticada por organizações de direitos humanos, a ação policial apresentou algumas diferenças, positivas e negativas

“Eles aparentemente foram mais cuidadosos

no Alemão dessa vez”, defende Ignácio Cano

O abismo de força bélica entre as duas forças em confl ito, polícia e tráfi co, também é atenuado quando se usa o termo “guerra”

Mãe e fi lhos buscam abrigo durante troca de tiros entre policiais e trafi cantes

Reprodução da capa do O Globo de 26 de novembro

Rafael Andrade/Folhapress

Reprodução

brasilde 2 a 8 de dezembro de 20106

Massacre midiáticoA imprensa burguesa utilizou todos

os seus recursos técnicos e editoriais para apoiar as ações das polícias e das forças armadas nas invasões das favelas do Rio de Janeiro. Em nome da perseguição aos trafi cantes foram praticadas inúmeras violações dos direitos civis e constitucionais. A mí-dia chapa-branca omitiu o apoio do governo federal à barbarização dos pobres. Mais uma vez a autonomia jornalística e o senso crítico foram jogados no lixo.

Crimes protegidosTodo mundo sabe que existem

mais criminosos (sonegadores, es-telionatários, ladrões, corruptos etc.) nos apartamentos luxuosos de Copacabana do que nas favelas do Rio. No entanto, as forças policiais nunca realizaram uma mega-opera-ção para acabar com esses crimes do colarinho-branco, nunca cercaram os bairros ricos, revistaram pessoas e residências ou deram buscas nas con-tas bancárias para punir quem ganha dinheiro ilegalmente.

Mais regaliasOrçada em R$ 34 bilhões, a me-

ga-obra do trem-bala Campinas-São Paulo-Rio de Janeiro está mais en-crencada do que parece: primeiro, o Ministério Público do Distrito Federal recomendou a suspensão da licitação por falhas no estudo técni-co da obra e no edital da concessão; segundo, as empresas estrangeiras especializadas nesse tipo de transpor-te desistiram de participar do leilão. Começou o jogo para o aumento das regalias.

Direitos humanosCom artigos de militantes dos

movimentos sociais populares e de entidades de defesa dos direitos hu-manos, será lançada no dia 7 de de-zembro, às 19 horas, na Câmara Mu-nicipal de São Paulo, a 11ª edição do Relatório Direitos Humanos no Brasil 2010, organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. O evento prestará homenagem especial ao geó-grafo e professor da Universidade de São Paulo, Aziz Ab’Saber.

Povo famintoApesar de todo oba-oba em cima

do Bolsa Família e dos programas sociais do governo, o próprio IBGE divulgou, no dia 26 de outubro, que 30% dos domicílios brasileiros “não tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quanti-dade sufi ciente”. Pesquisa recente do órgão comprovou que 65,4 milhões de pessoas apresentam algum grau de insegurança alimentar (leve, mo-derada e grave). Em linguagem clara, passam fome mesmo!

Heroismo tardioNessa fase de transição do governo

Lula para o governo Dilma, alguns ministros que não vão continuar nos seus respectivos cargos estão agora falando coisas – críticas, propostas etc. – que não disseram nos anos anteriores. Está na cara que a tática é mais um jogo de cena para que dei-xem o governo como heróis e de bem com suas respectivas galeras. Por que só agora falam em combater mono-pólios e re-fundar ministérios?

Mudança vaziaFinalmente o banqueiro Henrique

Meirelles foi retirado do Banco Cen-tral, depois de defender os interesses do capital fi nanceiro nos oito anos do governo Lula. Seu sucessor, no en-tanto, o funcionário do BC Alexandre Tombini, chega ao cargo com o apoio do próprio Meirelles e do presidente da Febraban e do Banco Santander, Fábio Barbosa. Bradesco e Itaú tam-bém manifestaram apoio ao futuro presidente do BC.

Corrosão salarialOs vários índices que medem a in-

fl ação registram alta nos preços de 4,9% a 11%, dependendo do tipo de amostragem. Eles indicam a explosão nos preços dos alimentos – entre os quais trigo, feijão e carne –, o que pesa mais no custo de vida dos traba-lhadores de menor renda. O IGP-M, que serve de referência para reajuste dos aluguéis, está próximo de 11%, nos últimos 12 meses. Quem não ti-ver reajuste salarial imediatamente vai pagar caro!

Luta operáriaOrganizado pelo IIEP (Intercâmbio,

Informações, Estudos e Pesquisas), acontece no dia 4 de dezembro, às 14h45, no Sindicato dos Químicos de São Paulo, mais um evento do Pro-jeto Memória da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo: a abertura da campanha “Contemos Nossa His-tória” e o lançamento do livro Con-fronto operário, de Maria Rosângela Batistoni. Para quem quer conhecer mais sobre a luta operária no Brasil.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Marcio Zontade Santarém (PA)

ENQUANTO O inquérito policial, ins-taurado pelo Ministério Público Estadu-al do Pará (MPE), investiga a veracida-de dos dados do estudo de impacto am-biental e relatório de impacto ambiental (EIA-Rima), sob fortes suspeitas de in-verdades contidas nos laudos para apres-sar a licença do terminal de grãos da Car-gill, em Santarém (PA), Gilson Rego, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) acusa: “a Cargill sempre funcionou. Tanto a jus-tiça como os órgãos licenciados do esta-do do Pará nunca tomaram uma decisão para fechar o porto até ser apresentado de fato o resultado das investigações so-bre o EIA-Rima”.

A investigação foi proposta pelo MPE ao Ministério Público Federal (MPF) em julho. Segundo informações da assesso-ria de imprensa de ambos os órgãos, na-da foi concluído até o momento.

Rego, porém, informa que a empresa contratada para fazer os estudos de im-pactos ambiental agiu premeditadamen-te ao burlar uma série de dados. “Técni-cos do MPE identifi caram erros nas in-formações do EIA/Rima da Cargill. Estes erros indicam má fé da empresa contra-tada para fazer a documentação”, expli-ca. Já o MPE diz ter consultado os auto-res citados pela empresa que fez o estu-do e os mesmos negaram algumas afi r-mações existentes nos laudos, “o que de-nota contradição”, para Rego.

Para o membro da CPT, algo é claro: mesmo antes do término do inquérito policial, a empresa omitiu informações dadas pelos movimentos sociais e popu-lação local e, apresentou nos laudos, ape-nas elementos convenientes a ela.

CooptaçãoMesmo com as evidências de que o por-

to da Cargill funciona sem licença e apre-senta seus laudos de acordo com seus in-teresses, Rego desabafa: “não existe a menor vontade dos governos em barrar o funcionamento da Cargill, seja ele do partido A ou Z”.

Pelo poderio econômico da transnacio-nal, políticos, funcionários públicos e até

Porto da Cargill funciona ilegalmente em SantarémDENÚNCIA CPT acusa transnacional de operar seu porto de grãos mesmo sem licença de funcionamento

lideranças locais acabam disseminando a ideia e apoiam a liberação do novo por-to. “Cooptam ou compram mesmo algu-mas lideranças na tentativa clara de neu-tralizar a resistência, além daqueles que ocupam cargos públicos beberem da mi-galha para se manter no poder”, ressal-ta Rego.

Outra vertente, apontada por ele, na tentativa de incutir na população lo-cal um parecer favorável a Cargill, vem sendo feito através da compra de farda-mentos escolares, patrocínio de eventos e contratação de pessoas para fazer pa-lestras aos alunos do ensino fundamen-tal das escolas do município.

Assim, a desarticulação da população local é inevitável, dando mais força pa-ra as investidas da transnacional. “Ho-je apenas a CPT, parte do movimento es-tudantil, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e umas outras organizações con-tinuam fi rmes em sua postura contra a Cargill. Nosso único objetivo é a retirada da transnacional da região”, afi rma.

No entanto, na própria visão de Re-go, será difícil, pois, “as audiências foram mero momento simbólico de um proces-so legal. O governo do estado do Pará foi um dos primeiros a permitir, mesmo ile-galmente, que a Cargill iniciasse a cons-trução do porto”.

E ainda, quando a justiça paraense ace-nou contra a Cargill, foi por pouco tem-po. “Houve um momento que a justiça decidiu fechar o porto, mas logo em se-guida voltou atrás sem explicação ne-nhuma”, lamenta Rego.

Modo de agirNa esteira do funcionamento da trans-

nacional, uma série de danos ambientais e sociais para a população local são cita-dos por Rego: “diminuição da agricultu-ra familiar, substituição do uso do solo

por monocultivos que usam quantidades enormes de agrotóxicos, concentração de terra pelos sojeiros e incentivo ao crime ambiental na medida em que a multina-cional se mantém operando sem licença e grilando terras”.

No entanto, seus interesses prevale-cem e o estabelecimento formal deste porto possibilitaria duplicar o escoamen-to de soja por navios para os países com-pradores. “A Cargill age ignorando as leis dos países e se instala para atender um único interesse: lucrar”, aponta Rego.

Nesse sentido, o modo como a empre-sa executa seus negócios modifi cou to-das as relações econômicas antes exis-tentes, na cidade, pois, com o funciona-mento do porto graneleiro no centro de Santarém e a utilização do novo empre-endimento, ocupando parte das mar-gens do rio Tapajós, “a multinacional motiva apenas o plantio de soja na re-gião”, alerta Rego.

Assim, todos os municípios vizinhos sofrem com a pressão da soja, “pois au-mentou a disputa desleal pela terra onde o agricultor familiar é desapropriado pa-ra virar empregado do fazendeiro ou mi-grar para a cidade”, atenta Rego.

de Santarém (PA)

Instalada em 34 países com a missão de defender o meio ambiente, segundo diz em sua página na internet, a ONG estadunidense The Nature Conservancy (TNC) não evitou a extinção da única praia urbana da cidade de Santarém, Ve-ra Cruz, tampouco, a devassa de um sítio arqueológico, a poluição do rio Tapajós e o aumento de desmatamento na região, fomentado pela ação da Cargill.

Criada em 1951, a TNC, com seu escri-tório central nos Estados Unidos, che-gou ao Brasil na década de 1980 e des-de o princípio teve suas ações voltadas para a região amazônica. Em Santarém, conforme consta em sua homepage, “trabalhamos em parceria com a Car-

gill para apoiar mais de 150 produtores de soja”. Para Gilson Rego, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Santarém, não há dúvida: “essas (ONGs) que tra-balham explicitamente para a Cargill es-tão trabalhando com os sojeiros no sen-tido de fortalecer cada vez mais a soja na região”.

E, ainda, acusa: “a TNC recebe dinhei-ro da Cargill para fazer a limpeza do ‘san-gue derramado’, ou seja, maquiar e re-percutir de modo positivo todas as ações da empresa, tanto em nível nacional, quanto internacional”. Deste modo, no site da TNC, também consta suas ações benéfi cas em prol da comunidade, “ca-pacitando jovens líderes: fornecendo as ferramentas e técnicas necessárias para a gestão de terras indígenas”.

Em nota, a CPT de Santarém, classifi ca tais ações “como um excelente serviço à empresa, pois à medida que ganha a con-fi ança dos movimentos, se defi nem co-mo protagonista da luta e desarticulam as possíveis ações consistentes dos movi-mentos populares locais”.

Desmistifi candoPara o professor de agronomia da Uni-

versidade Federal do Pará (UFPA), Fer-nando Micheloti, há de ser desmistifi -cada a atuação dessas ONGs, na região, que dizem agir preocupadas com o meio ambiente, pelo simples motivo de ser in-

compatível a forma de atuação da Cargill e a questão ambiental. “Os monocultivos são contraditórios à preservação da na-tureza, do solo e dos rios, justamente pe-la quantidade de veneno que se utiliza nesse tipo de plantação”.

O fator econômico, para o professor, é outro elemento que transforma o discur-so de ONGs, como a TNC, em mera falá-cia. “Não existe trabalho com a comuni-dade que resista a uma das maiores plan-tadoras de grãos do mundo. Ou a popula-ção local passa a ser submissa ao poderio econômico implantado pela grande em-presa, abandonando seu modo campo-nês de produção, diversifi cado e respei-tando a natureza, ou vai embora para a cidade”, conclui. (MZ)

ONG tenta camufl ar ação predadoraPara o agrônomo Fernando Michelotti, ações de ONGs que dizem defender meio ambiente se esvaecem diante do monocultivo da soja

“A Cargill sempre funcionou. Tanto a justiça como os órgãos licenciados do estado do Pará nunca tomaram uma decisão para fechar o porto”

“A TNC recebe dinheiro da Cargill para fazer a limpeza do ‘sangue derramado’, ou seja, maquiar e repercutir de modo positivo todas as ações da empresa”

A empresa omitiu informações dadas pelos movimentos sociais e população local e apresentou nos laudos apenas elementos convenientes a ela

Porto da Cargill, em Santarém, que está sob investigação pelo Ministério Público

Keith Rock/CC

brasil de 2 a 8 de dezembro de 2010 7

A HISTÓRIA É uma construção, construção esta que pode ter maior ou menor compromisso com a evidência, mas na qual existe sempre uma carga indiscutível de subjetividade.

Numa sociedade atravessada e mo-vida por confl itos sociais, ou seja, nu-ma sociedade onde há explorados e exploradores, onde há, portanto, classes antagônicas, a História é sem-pre uma construção que refl ete os in-teresses dos grupos sociais dominan-tes que controlam os meios de comu-nicação. Em outras palavras, a Histó-ria é uma construção das classes so-ciais que detêm o poder e os meios de comunicação. E isso é verdade, mes-mo quando tal situação é mascarada, não estando explicitada, quando não é evidente.

Por isso mesmo, o historiador, aquele que se propõe a compreender e explicar os fenômenos que têm lu-gar nas sociedades humanas, preci-sa ser um questionador, uma vez que ele, sendo um personagem do seu tempo, inserido em determinada so-ciedade de uma determinada época, não é nem pode ser neutro. No máxi-mo, conseguirá manter uma neutrali-dade aparente.

Nos dias de hoje, a luta ideológica é a principal forma da luta de classes, que não deixará de existir enquanto perdurarem o capitalismo e a explora-ção do homem pelo homem. As clas-ses dominantes buscam a hegemonia

através do consenso. Mas, quando ne-cessário, apelam para a coerção.

Eis a razão por que a elaboração da História ofi cial adquire uma impor-tância crescente nas sociedades con-temporâneas. Trata-se de proclamar e difundir as vitórias e os sucessos al-cançados pelos donos do poder, de hoje e do passado, nos permanentes confl itos sociais presentes na história mundial. Trata-se de consagrar o ca-pitalismo. Em contrapartida, os ide-ais e as lutas dos setores, que não ob-tiveram êxito em seus propósitos re-volucionários e transformadores; e, muitas vezes, sofreram duras derro-tas, são, segundo a lógica da Histó-ria ofi cial, esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos. Em nos-sas sociedades contemporâneas, são os intelectuais comprometidos com a burguesia que cumprem a função de produzir tal História ofi cial. Des-sa forma, são consagradas inúme-ras deformações históricas, inúme-ras inverdades, e silenciados nume-rosos acontecimentos que não são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da gran-de maioria das pessoas e, em particu-lar, das novas gerações.

Entretanto, a hegemonia das clas-ses dominantes nunca é absoluta, pois a exploração capitalista e o agra-vamento dos confl itos sociais levam ao surgimento de intelectuais com-prometidos com os interesses dos

trabalhadores, dos explorados e dos oprimidos. Observação fundamental para quem, como nós, quer contri-buir para a construção de uma outra História, uma História comprometi-da com a evidência; uma História que possa, portanto, ajudar na elaboração de propostas libertadoras e de eman-cipação da grande maioria dos ho-mens e mulheres explorados, oprimi-dos e subordinados na sociedade ca-pitalista em que vivemos. O historia-dor comprometido com tal proposta – e também o professor de História, responsável pela formação das no-vas gerações – poderá transformar-se num intelectual a serviço dos in-teresses populares, dos interesses da maioria do povo brasileiro, se es-tiver atento para a postura militante que deve assumir diante da História ofi cial, produzida pelos intelectuais comprometidos com a burguesia.

Nesse esforço, parece-me impor-tante resgatar a memória daqueles que lutaram por justiça social, mas não conseguiram alcançar a vitó-ria, deixando, entretanto um lega-do importante para as gerações sub-sequentes. A respeito, gostaria de ci-tar dois autores – o poeta francês e resistente durante a ocupação nazis-ta da França, Paul Eluard, e o inte-lectual inglês do fi nal do século 19, William Morris.

Paul Eluard: “Ainda que não tives-se tido, em toda minha vida, mais do

que um único momento de esperan-ça, teria travado este combate. Inclu-sive, se hei de perdê-lo, outros o ga-nharão. Todos os outros.”

William Morris: “A Comuna de Pa-ris não é senão um elo da luta que te-ve lugar ao longo da história dos opri-midos contra os opressores; e, sem todas as derrotas do passado, não te-ríamos a esperança de uma vitória fi -nal.”

Finalmente, gostaria de destacar o papel dos intelectuais – e, em parti-cular, dos historiadores e professores de História – junto aos movimentos populares, mas principalmente nas escolas, nas salas de aula e no traba-lho de pesquisa histórica, no sentido de formar jovens questionadores, ci-dadãos que não aceitem o consen-so dominante, que estejam dispos-tos a se contrapor à hegemonia dos setores dominantes. Aos intelectuais comprometidos com as lutas popula-res cabe a missão de contribuir para a formação tanto de militantes com-bativos quanto de lideranças orienta-das para uma perspectiva de elabora-ção de uma alternativa de emancipa-ção social para nosso povo, perspec-tiva que, a meu ver, só poderá ser so-cialista. Mas um socialismo que não seja “nem cópia nem decalque, mas sim criação heroica” do nosso povo, nas palavras de um grande revolucio-nário latino-americano – José Carlos Mariátegui.

Historiador comprometido com as lutas populares Anita Leocádia Prestes

Aos intelectuais comprometidos com as lutas populares cabe a missão de contribuir para a formação tanto de militantes combativos quanto de lideranças orientadas para uma perspectiva de emancipação social para nosso povo

Dafne Meloda Redação

O ANO DE 2010, no Brasil, foi cheio de casos midiáticos – como o de Mércia Nakashima e de Eliza Samúdio – que mostraram o quanto a violência contra a mulher está tão presente na sociedade brasileira e o quanto se deve caminhar para coibir a violência contra a mulher. “As políticas públicas existentes hoje de-vem ser intensifi cadas, implementadas e, além disso, nós queremos ter o controle social dessas políticas”, explica Sônia Co-elho, da Sempreviva Organização Femi-nista (SOF) e da Marcha Mundial de Mu-lheres, durante um ato no centro de São Paulo que reuniu, no dia 25 de novem-bro, dezenas de mulheres em frente à Se-cretaria de Justiça. “Estamos aqui no dia latino-americano de luta pela não violên-cia contra as mulheres para exigir do go-verno do Estado de São Paulo que im-plemente o Pacto Nacional de Enfrenta-mento à Violência contra a Mulher”, afi r-mou Sônia.

O Pacto foi elaborado em âmbito fede-ral pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e lançado em agosto de 2007, pouco mais de um ano após a Lei Maria da Penha. É um acordo federativo entre o governo federal, os governos dos Estados e dos municípios brasileiros pa-ra o planejamento de ações que visem à consolidação da Política Nacional de En-frentamento à Violência contra as Mu-lheres por meio da implantação de polí-ticas públicas integradas em todo territó-rio nacional. Na prática, crias as condi-ções para que a Lei Maria da Penha pos-sa ser posta em prática.

ReivindicaçõesO Pacto tem que ser assinado por ca-

da Estado. Roraima e Santa Catarina são os únicos Estados que ainda não assina-ram. São Paulo assinou apenas no fi nal de 2008, após muita pressão dos movi-mentos feministas. Entretanto, até hoje, o Estado não defi niu um orçamento pa-ra implementar o Pacto. “Se só uma par-te pactua, então não há pacto. São Pau-lo ainda não possui um órgão responsá-vel pelas políticas contra a violência [se-xista]”, afi rma Sônia, que explica que no início do ano que vem será feita uma au-diência pública na Assembleia Legislati-va de São Paulo (Alesp) para exigir que no orçamento de 2011 seja reservado um recurso específi co para o Pacto. “Infeliz-mente, este ano já não há como exigir na-da, mas queremos garantir que no ano que vem haja recursos”, conta Sônia.

A luta contra a violência domésticaSEXISMO No dia latino-americano e caribenho de luta contra a violência contra a mulher, feministas exigem intensifi cação de políticas públicas

Os números de São Paulo mostram o quanto o problema necessita de esforços. De janeiro a setembro, 27 mulheres fo-ram assassinadas no Estado. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –, que recebe queixas de violência contra a mulher, registrou alta de 112% de janeiro a julho em comparação com o mesmo pe-ríodo de 2009.

Dados fornecidos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidên-cia da República apontam 343.063 aten-dimentos nos sete primeiros meses de 2010 – pelo disque denúncia (180). São Paulo foi o estado com maior número de denúncias.

Segundo o Mapa da Violência 2010, organizado pelo Instituto Sangari, uma mulher é assassinada a cada duas ho-ras no Brasil, o que faz do país o 12° no ranking mundial de assassinatos de mu-lheres. 40% dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos, e a maioria é morta por pa-rentes, maridos, namorados, ex-compa-nheiros ou homens que foram rejeitados por elas.

AvançarPara Sônia, somente será possível

avançar no Estado de São Paulo se hou-ver investimento em diversas áreas, co-mo Saúde, Habitação e Justiça, crian-do mais delegacias de mulheres e jui-zados especiais, conforme defi nido pela Lei Maria da Penha, e com pessoal qua-lifi cado para atender casos de violência doméstica. O estado possui 645 muni-cípios e apenas 129 delegacias entre ca-pital e interior, sendo que a maioria de-las não funciona nos fi ns de semana ou

Por que 25 de novembro?O dia internacional de luta latino ameri-cano e caribenho contra a violência con-tra as mulheres foi defi nido no Primei-ro Encontro Feminista da América Lati-na e Caribe, em Bogotá (Colômbia), em 1981. A data foi escolhida por ser o dia em que foram assassinadas Patria, Mi-nerva e María Teresa Mirabal, ativis-tas da resistência popular contra o regi-me ditatorial na República Dominicana, a mando de Rafael Trujillo. Seus assassi-natos se converteram em um símbolo de luta e memória. Foram apelidadas de “as mariposas”.

•Hoje, em todo os 5.564 municípios do Brasil, há apenas 68 casas-abrigo e 146 centros de re-ferência, que entram na categoria de centros de assistência social. O ideal seria que houvesse cerca de três mil desses estabelecimentos.

•No aspecto jurídico, há 56 núcleos de atendimentos especializados em defensorias públicas e 475 delegacias da mulher ou postos especializados. Há, ainda, 147 juizados ou varas especiali-zadas em violência contra a mulher; o ideal seria ter, pelo menos, uma vara em cada uma das cerca de 2.600 comarcas do país.

•Nos últimos quatro anos, o serviço telefônico de atendimento a mulheres vítimas de violên-cia, o 180, teve um aumento de acesso de 1.700%. O Estado de São Paulo lidera o ranking de ligações.

•Dentre as mulheres que acessam o serviço, 69% são agredidas diariamente. A maioria das mu-lheres que liga é negra, com 43%. A idade de 56% das mulheres fi ca entre 20 e 40 anos, e 52% estão casadas ou em união estável.

•Mais da metade da população, 55%, conhece pelo menos uma mulher vítima de agressão.•A Lei Maria da Penha é conhecida por 78% da população. Movimentos feministas e de mulhe-

res afi rmam que esse número não refl ete um conhecimento qualitativo da lei.•A Delegacia da Mulher é citada como o primeiro lugar que a mulher deve ir em caso de agres-

são por 78% das pessoas.•A maioria das pessoas, 56%, não confi a nos serviços de proteção jurídica e policial para mu-

lheres agredidas. Desses, 25% afi rmam que as leis não são sufi cientes, 13% dizem que a polí-cia considera outros crimes mais importantes, 11% criticam os policiais por não levar as de-núncias a sério e 7% acreditam que juízes e policiais são machistas e até concordam com o agressor.

•Um balanço do Conselho Nacional de Justiça mostrou que apenas 2% dos processos concluí-dos contra agressores, enquadrados na Lei Maria da Penha, resultaram em punição.

Fontes: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e pesquisa Ibope/Avon – 2009.

Números da violência

Umamulher é assassinada a cada duas

horas no Brasil

de noite, momentos em que mais ocor-rem casos de violência. Há também ape-nas 107 serviços de saúde especializados para receber e orientar as mulheres víti-mas de violência.

Um dos casos mais urgentes é a criação de juizados especiais com equipes mul-tiprofi ssionais, visto como uma das con-dições para a efetivação da Lei Maria da Penha. Hoje, a maioria dos casos vai pa-ra as varas criminais comuns, que muitas vezes não têm o preparo necessário pa-ra atender a especifi cidade da violência contra a mulher. No Estado de São Pau-lo, até agora, foi criado apenas um Juiza-do de Violência Doméstica, vinculado à 8ª Vara Criminal. Segundo pesquisa re-alizada pelo Instituto Brasileiro de Ciên-cias Criminais (Ibccrim), essas varas não apresentam a estrutura adequada para atender os casos de violência e acolher conforme exige a lei Maria da Penha.

“São Paulo ainda não possui um órgão responsável pelas políticas contra a violência [sexista]”

Mulheres realizam ato na praça do Buriti (DF) em defesa da Lei Maria da Penha

Marcello Casal Jr/ABr

brasilde 2 a 8 de dezembro de 20108

Milton Pinheiro

DIA 23 DE NOVEMBRO fez 20 anos da morte daquele que é considerado o nos-so maior historiador, Caio Prado Jr. Es-se pensador e homem de ação marcou o debate intelectual e político brasileiro, ao tempo em que agia sobre a realidade social, como militante do Partido Co-munista Brasileiro, onde ingressou em 1931, permanecendo em seus quadros, até sua morte em 1990. Foram 59 anos de militância constante.

Caio Prado Jr. nasceu no dia 11 de fe-vereiro de 1907, na cidade de São Paulo e sua vida pode ser sintetizada por uma frase que ele citara no seu discurso co-mo deputado estadual do PCB, na pri-meira sessão da primeira legislatura de 1947, da Assembleia Legislativa de São Paulo: “É por ação que os homens se defi nem”. Portanto, para conhecimento da história do Brasil, da luta pelo socia-lismo e da memória do PCB, é impor-tante registrar a vida do camarada Caio Prado Jr., sem dúvida, o nosso maior intelectual.

Em 1924, Caio Prado Jr. ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1926 participou do primeiro congres-so dos estudantes de direito, em Minas Gerais, e, em 1927, publicou o seu pri-meiro artigo no periódico A Chave, in-titulado “A crise da democracia brasi-leira”. Em 1928, tornou-se bacharel em Direito. Nessa mesma ocasião foi preso em São Paulo por fazer uma saudação à candidatura de Getúlio Vargas, ao se di-rigir ao então candidato Júlio Prestes. Em 1930, participou da Revolução co-mo membro de um comitê de apuração dos crimes do governo anterior.

Em 1932, começou a publicar artigos, já com conteúdo marxista, examinan-do, naquele período, a economia brasi-leira. Nesse mesmo ano, fundou o Clu-be dos Artistas Modernos (CAM) e, em 1933, viajou para a URSS e, no retorno, publicou o livro Evolução política do Brasil – ensaio de interpretação ma-terialista do Brasil. Logo depois, em 1934, publicou URSS: um mundo no-vo e, nesse mesmo ano concluiu a tra-dução do livro de Bukhárin, Tratado de materialismo histórico, fato de grande relevância histórica para a luta ideoló-gica no Brasil, pois passávamos a ter li-teratura marxista entre nós. Ainda em 1934, enquanto participava de vários cursos na USP, que havia sido recente-mente fundada, juntamente com vários intelectuais europeus e brasileiros, fun-dou a Associação dos Geógrafos Brasi-leiros (AGB).

Prisão e exílioO ano de 1935 se reveste de grande

ebulição. São as lutas contra o governo autoritário de Getúlio Vargas e a cons-trução de um instrumento de frente úni-ca chamado de Aliança Libertadora Na-cional (ALN ). Caio Prado Jr. foi eleito o vice-presidente da ALN em São Paulo e, nesse mesmo ano, passou a ser o di-retor do jornal A Platea, onde escreveu e publicou o programa da ALN. O ano prossegue com grandes agitações polí-ticas, em novembro, ocorreram o levan-te comunista e o governo popular e pro-visório de três dias na cidade vermelha de Natal, logo sufocado pelas tropas de Vargas a serviço da burguesia. A par-tir daí, desenvolveu-se uma gigantes-ca repressão aos comunistas e aliancis-tas por todo o país. Nessa onda repres-siva ocorreu a prisão de Caio Prado Jr. no Rio Grande do Sul, depois foi trazi-do para São Paulo, onde fi cou preso até 1937. Quando foi solto, ainda no ano de 1937, viajou para o exílio na França, on-de desenvolveu intensa atividade inte-lectual e política. Fez cursos na Sorbon-

20 anos da morte de Caio Prado Jr.

MEMÓRIA COMUNISTA Considerado o nosso maior historiador, suas ações e suas formulações pautaram a luta e o pensamento sobre a revolução em nosso país

ne, viajou pelo Norte e Noroeste da Eu-ropa e exerceu forte ação de solidarie-dade aos refugiados da Guerra Civil Es-panhola. De 1937 a 1939, enquanto es-teve na França, militou no Partido Co-munista Francês e nele exerceu muitas atividades políticas. Durante esse pe-ríodo, escreveu muitos textos, em es-pecial, pesquisa historiográfi ca, rela-tos de viagens, debates sobre cultura e uma discussão sobre a gênese e a evolu-ção do socialismo.

No seu retorno ao Brasil, empreendeu várias viagens pelo interior do país, fi -cando mais tempo no Estado de Minas Gerais e escrevendo textos sobre essas viagens, bem como um estudo sobre a questão urbana da cidade de São Paulo, publicado em 1941.

Grande obraEm 1942, foi lançada sua grande obra

Formação do Brasil contemporâneo, que tem como eixo central o estudo da formação social brasileira e a sua trans-formação. Assim como Marx, n’O ca-pital, para Caio Prado Jr., o estudo da realidade brasileira e sua formação so-cial e histórica contém os elementos de suas característica atuais e os elemen-tos para sua transformação. Apesar de ser uma obra respeitada e elogiada por historiadores de todos os tempos, mais do que uma grande pesquisa historio-gráfi ca, o objetivo subjacente é o conhe-cimento da realidade para sua transfor-mação revolucionária.

Durante o ano de 1943, Caio Prado Jr. fundou a editora Brasiliense e es-creveu diversos artigos sobre histo-riografi a, em especial o Roteiro pa-

ra historiografi a do Segundo Reina-do (1840-1889). No ano seguinte, o in-telectual comunista resolveu fazer arti-culações políticas para derrubar o go-verno Vargas, viajando para a Argenti-na e o Uruguai, onde manteve contato com intelectuais, todavia, mesmo com essa intensa movimentação política, continuou escrevendo textos historio-gráfi cos sobre algumas regiões do Bra-sil, sobre índios, povoamento e limites geográfi cos.

No ano de 1945, com o processo de de-mocratização do Brasil e a legalidade do PCB, Caio Prado Jr. disputou a eleição para deputado federal na lista do Par-tido em São Paulo, mas fi cou na tercei-ra suplência. Ainda naquele ano, foi pu-blicado o livro História econômica do Brasil, e, logo em seguida, ele foi eleito para a Comissão Política do I Congresso Brasileiro de Escritores. Pouco depois, lançou a coleção Problemas brasileiros pela editora Brasiliense.

ParlamentarEm 1946, Caio Prado Jr. aprofundou

seus escritos nos diários políticos que fazia e participou, no PCB, dos debates sobre as candidaturas a deputado esta-dual que ocorreria no ano seguinte. Nas eleições de 1947, elegeu-se deputado estadual pelo PCB e participou intensa-mente dos debates no parlamento, on-de apresentou emendas e projetos pa-ra a constituição paulista de 1947. Du-rante sua legislatura, dentre vários pro-jetos, vale ressaltar que apresentou o projeto de criação da Fapesp (Funda-ção de amparo à pesquisa do estado de São Paulo), que se transformou em um dos mais importantes instrumentos de apoio à pesquisa no Brasil. Nesse mes-mo ano, Caio Prado Jr. publicou no jor-nal do PCB, A Classe Operária, o arti-go “Fundamentos econômicos da revo-lução brasileira” onde criticou algumas avaliações e teses do partido.

A luta política e ideológica se acirrouno Brasil, o registro do PCB foi cassadoem 1948 e Caio Prado Jr. teve seu man-dato cassado juntamente com outrosdeputados comunistas pelo país. Ficoupreso durante três meses e, quando foisolto, viajou para a Polônia, Tchecoslo-váquia e França. Durante esse período,trabalhou em textos fi losófi cos e pros-seguiu em viagens pelos países da Eu-ropa, quando participou do Congressoda Paz em 1949, realizado em Paris peloPartido Comunista Francês.

Realidade brasileiraNos anos de 1950 e 1951, Caio Pra-

do Jr. se dedicou ao estudo da fi losofi ae publicou, em 1952, o livro, em dois to-mos, Dialética do conhecimento.

Um dado importante para a memóriada luta ideológica no Brasil é que, em1954, foi fundada, por Caio Prado Jr. agráfi ca Urupês, que foi responsável pelapublicação de farto debate sobre a rea-lidade brasileira. Ainda nesse mesmoano, Caio Prado Jr. concorreu à cátedrade Economia Política na USP, todavia,mesmo tendo sido aprovado no concur-so de Livre-docência, não recebeu a cá-tedra na faculdade de direito.

Em 1955, foi lançado o primeiro nú-mero da histórica revista Brasiliense e,já no número 2, Caio Prado Jr. escreveuo artigo “Nacionalismo brasileiro e ca-pitais estrangeiros”. Nos anos seguin-tes continuou seu trabalho intelectuale, em 1957, publicou o livro Esboço dosfundamentos da teoria econômica.

Entre 1960 e 1962, Caio Prado Jr. via-jou pelos países socialistas, URSS, Chi-na e, em Cuba, participou das comemo-rações do III aniversário da revolução,integrando a delegação brasileira. Em1962, no seu retorno, publicou o livro Omundo do socialismo.

Ditadura e nova prisãoCom o golpe civil-militar de 1964,

saiu o último número da revista Brasi-liense (51). Caio Prado Jr. foi preso no-vamente e passou uma semana encar-cerado no DOPS. Essa nova conjuntu-ra brasileira e suas preocupações com atransformação da realidade encontra-ram em Caio Prado Jr. um esforço in-telectual intenso, pois em 1966 ele lan-çou o clássico A revolução brasileira.Esse livro produziu um grande impactona esquerda em nosso país e a persegui-ção política da ditadura avançou. CaioPrado Jr. fugiu do Brasil em 1970 parao Chile, mas foi preso ao retornar nes-se mesmo ano e assim permaneceu porquase dois anos. Foi indiciado em in-quérito policial-militar (IPM) e conde-nado. Ficou preso, primeiro na casa dedetenção Tiradentes e depois no quartelde Quitaúna, quando foi solto em agos-to de 1971.

Embora esse ano de 1971 tenha sidoum ano em que fi cou preso, mesmo as-sim, publicou o livro O estruturalismode Lévi-Strauss – o marxismo de Lou-is Althusser.

A partir daí, começou o processo derecolhimento de Caio Prado Jr., po-rém continuou em articulºação com asações do partido e produzindo intelec-tualmente, publicando ainda, textos elivros; todavia, em 1979, ele fi cou doen-te e passou por um período muito difícilaté 1982, com o mal de Alzheimer. Con-tinuou trabalhando muito, desenvol-vendo suas refl exões intelectuais e, em23 de novembro de 1990, morreu aos83 anos em São Paulo. Seu corpo foi ve-lado na biblioteca Municipal Mário deAndrade e foi sepultado no Cemitérioda Consolação na capital paulista.

Calava-se a voz, paralisava-se a ca-neta do maior intelectual da históriado PCB e do maior historiador do Bra-sil. Mas suas ações e suas formulaçõespautaram a luta e o pensamento sobrea revolução em nosso país. Serve comomarca indelével para o futuro socialistapelo qual todos nós lutamos.

Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia

(Uneb), editor da revista Novos Temas e membro do Comitê Central do PCB.

Esse pensador e homem de ação marcou o debate intelectual e político brasileiro, ao tempo em que agia sobre a realidade social, como militante do Partido Comunista Brasileiro

“É por ação que os homens se defi nem”

Suas ações e suas formulações pautaram a luta e o pensamento sobre a revolução em nosso país. Serve como marca indelével para o futuro socialista pelo qual todos nós lutamos

Reprodução

de 2 a 8 de dezembro de 2010 9internacional

Iñigo Sáenz de Ugartede Londres (Inglaterra)

Os EUA converteram seus represen-tantes diplomáticos em todo o mundo em parte de uma rede de espionagem global, segundo fi ca claro nos documen-tos tornados públicos no dia 28 de no-vembro pelo site Wikileaks. O vazamen-to confi rma os temores de Washington sobre o dano irreparável que sua política externa pode sofrer.

Os diplomatas receberam a tarefa do Departamento de Estado de recopilar in-formação pessoal sobre os políticos es-trangeiros com os quais estabeleciam contatos. As ordens foram enviadas tan-to na gestão George Bush quanto na de Barack Obama.

A espionagem é especialmente intensa no caso da Organização das Nações Uni-das (ONU) e afeta seu secretário-geral, Bank Ki-moon, os chefes dos principais departamentos da organização e os em-baixadores dos membros permanentes do Conselho de Segurança (Rússia, Chi-na, França e Reino Unido).

Em uma diretiva de julho de 2009 assi-nada pela secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, solicita-se que os diplo-matas entreguem informação sobre o sistema de comunicações dos altos car-gos da ONU, incluídas senhas e chaves encriptadas empregadas nas comunica-ções internas e externas.

A ordem afeta também a informação pessoal com dados biométricos sobre “os subsecretários, chefes das agências espe-cializadas e seus assessores, os principais assessores do secretário-geral, chefes das missões de paz e das missões políticas, incluídos os chefes das forças militares (dos capacetes azuis)”.

Todo dado pessoal é bem recebido. Pede-se a entrega dos números de car-tões de crédito, números de telefone e fax ou endereços de e-mail. O alcance dos dados demandados supera as ne-

Washington converte seusdiplomatas em espiõesEUA Os novos documentos vazados pelo Wikileaks demonstram que as embaixadas recebem ordens de recolher informação útil para a CIA. A ONU é um de seus principais objetivos

cessidades habituais do Departamen-to de Estado. Por isso, a informação de-veria chegar também à CIA, ao FBI e ao serviço secreto.

Gíria de espionagemAs embaixadas dos EUA sempre facili-

taram à CIA informação biográfi ca sobre líderes estrangeiros a que obviamente têm acesso. No entanto, as ordens se re-ferem à humint, “inteligência humana”, o termo que os serviços de inteligência utilizam para se referir à informação que não é recolhida por meios eletrônicos.

O vazamento pode converter os diplo-matas em espiões em potencial aos olhos de outros Estados e prejudicar seus tra-balhos em países estrangeiros. Nos casos mais graves, poderia ser utilizado por go-vernos hostis aos EUA como uma descul-pa para limitar o trabalho de seus diplo-matas ou, inclusive, para expulsá-los.

Ronald Neumann, ex-embaixador es-tadunidense no Afeganistão, Argélia e Bahrein, explicou ao The New York Ti-mes que essas novas funções não corres-pondem à responsabilidade habitual de um diplomata. Ele não sabe como con-seguir as informações que passaria para a CIA, pois não tem nenhuma prepara-ção técnica que lhe permita assumir es-sa tarefa.

“Além de tudo, minha preocupação é se alguém pode se dedicar a isso sem nos meter em problemas. E, além disso, quanto tempo dedicará a isso sem desa-tender seu trabalho normal”, desse o di-plomata.

A ONU deixou claro, em várias ocasi-ões, que espiar o secretário-geral é ilegal. A Convenção da ONU de 1946 sobre pri-vilégios dos representantes dos Estados membros estabelece que as instalações da ONU são “invioláveis”.

Todos os altos cargos das Nações Uni-das eram suscetíveis de ser vigiados pe-los diplomatas estadunidenses, que tam-bém tinham como missão achar “infor-mação biométrica” sobre a diretora-ge-ral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan.

ONU Washington pediu a seus diploma-

tas informação que só poderia obter por meio de espionagem. Demandou dados sobre “a relação ou fi nanciamento entre funcionários da ONU e as organizações terroristas”. O interesse era ainda maior no caso da UNRWA (a agência da ONU dedicada a ajudar os refugiados palesti-nos) e sua suposta relação com o Hamás e o Hizbollah (grupos muçulmanos da Palestina e do Líbano, respectivamente).

O Oriente Médio é uma região sobre a qual as petições de informação são mui-to concretas. Para as representações di-plomáticas no Cairo (Egito), Tel Aviv (Is-rael), Jerusalém (Palestina e Israel), Da-masco (Síria), Amã (Jordânia) e Riad (Arábia Saudita), foram pedidos dados sobre negociações entre o Fatah (partido laico palestino) e o Hamás.

Isso incluía “os planos de viagem, co-mo as rotas e os veículos usados pelos lí-deres da Autoridade Palestina e os mem-bros do Hamás”, uma informação muito útil para a CIA em sua tentativa de espio-nar os movimentos dos dirigentes pales-tinos. (Público)

Tradução: Igor Ojeda

Norman Solomon

Comparadas com o tipo de telegra-mas secretos que o Wikileaks acabou de compartilhar com o mundo, as declara-ções públicas diárias de autoridades go-vernamentais dos EUA são exercícios de faz de conta.

Em uma democracia, o povo tem o di-reito de saber o que seu governo está fa-zendo de verdade. Em uma pseudode-mocracia, um monte de contos de fada vindos de cima fazem o truque.

Fachadas diplomáticas rotineiramen-te mascaradas como realidades. Mas, de vez em quando, a máscara cai – pa-ra o mundo ver –, e foi isso justamente o que aconteceu com o monstruoso va-zamento de telegramas do Departamen-to de Estado.

“Todos os governos são conduzidos por mentirosos”, observa o jornalista in-dependente I. F. Stone, “e não devemos acreditar em nada do que eles dizem”. A extensão e a gravidade da mentira va-riam de um governo para o outro, mas

Desmistifi cando a “diplomacia”nenhum pronunciamento das capitais do mundo deve ser levado a sério.

Por conta própria, o governo dos Esta-dos Unidos está em guerra por mais de nove anos e não há um fi m no horizonte. Como o Pentágono, o Departamento de Estado está a serviço das prioridades glo-bais do estado de guerra. As Forças Ar-madas e a diplomacia do país estão mo-vendo peças da mesma vasta maquinaria de guerra.

Mentiras deslavadasUma engenhoca dessas requer um for-

te guarda-costas de meias-verdades, en-ganos e mentiras deslavadas. Com os atuais esforços de guerra dos Estados Unidos a todo vapor, as contradições en-tre as razões públicas e os objetivos es-condidos – ou entre a retórica grandilo-quente e as terríveis consequências hu-manas – não sobrevivem à luz do dia.

Detalhes das alianças de Washington com ditadores assassinos, tiranos cor-ruptos, senhores de guerra e trafi cantes de drogas estão entre os mais bem guar-

dados quase-segredos. A maioria das re-portagens da mídia pode ser abafada pe-lo ofi cialismo, mas os incontestáveis tele-gramas diplomáticos são mais difíceis de serem ignorados.

Com sua massiva e interminável de-pendência da força militar – o que resul-ta em mais e mais carnifi cina, deixando para trás um imenso rastro de luto e rai-va no Afeganistão, Paquistão e outros lu-gares –, o governo dos Estados Unidos tem que fechar lacunas colossais entre os enredos de seu departamento de relações públicas e suas realidades de guerra.

Relações públicasO mesmo governo que aplica imen-

sos recursos para infl igir violência mi-litar no exterior deve convencer sua po-pulação de suas boas intenções huma-nas e louváveis prioridades. Mas esse essencial trabalho de relações públicas se torna mais difícil quando documen-tos ofi ciais que dizem o contrário conti-nuam a vazar.

Nenhum governo quer encarar vaza-mentos de documentações sobre suas verdadeiras políticas, metas e priorida-des que diretamente contradizem suas reivindicações públicas de virtude. Em sociedades com liberdades democráti-cas, os governos que mais têm o que te-mer esses vazamentos são os que mais vêm mentindo para seu próprio povo.

Os megavazamentos são especialmen-te chocantes por causa do extremo con-traste entre as pretensões públicas do governo estadunidense e suas ações da vida real. Mas a resposta-padrão ofi cial é culpar os “vazadores”. “Condenamos

fortemente a divulgação não autoriza-da de documentos confi denciais e reser-vadas informações de segurança nacio-nal”, disse a Casa Branca no dia 28 denovembro.

Enquanto isso, o senador Joseph Lie-berman denunciou a ação “escandalo-sa, irresponsável e desprezível que mi-nará a capacidade de nosso governo e parceiros de manter nosso povo segu-ro e de trabalhar conjuntamente para defender nossos interesses vitais”. Pa-ra completar, ele escreveu em seu twit-ter: “a divulgação deliberada, pelo Wi-kileaks, desses telegramas diplomáticos não é nada menos do que um ataque ànossa segurança nacional”.

Mas, que tipo de “segurança nacional” pode ser construída com a hipocrisia de um governo que é desacreditado e des-mentido por seus próprios documentos? (Common Dreams)

Norman Solomon é jornalista,historiador e ativista.

Tradução: Igor Ojeda

ANÁLISE Como o Pentágono, o Departamento de Estado dos EUA está a serviço das prioridades globais do estado de guerra em que vive o país

A maioria das reportagens da mídia pode ser abafada pelo ofi cialismo, mas os incontestáveis telegramas diplomáticos são mais difíceis de serem ignorados

O mesmo governo que aplica recursos para infl igir violência militar no

exterior deve convencer sua população de suas boas intenções humanas e

louváveis prioridades

O alcance dos dados demandados supera as necessidades habituais do Departamento de Estado. Por isso, a informação deveria chegar também à CIA, ao FBI e ao serviço secreto

Washington demandou dados sobre “a relação ou fi nanciamento entre funcionários da ONU e as organizações terroristas”

Diplomatas receberam ordens de espionar políticos estrangeiros tanto na gestão de Bush quanto na de Obama

Reprodução

américa latinade 2 a 8 de dezembro de 201010

Daniela Pastrana Cidade do México

ELAS NÃO PEDIRAM uma guerra, mas foram afetadas: Griselda e Yosmireli, de quatro e dois anos, morreram com o crâ-nio perfurado pelas balas dos soldados. A morte também levou sua mãe, a tia e um irmão de sete anos, em uma estrada rural do noroeste do México.

Griselda Galaviz, a mãe, e Gloria Alicia Esparza, a tia, eram professoras em uma afastada aldeia do Estado de Sinaloa, na costa do Pacífi co, e se deslocavam em um veículo rústico familiar quando este foi alvo de disparos feitos por um regimento militar. Apenas sobreviveram outras du-as professoras e Adán Esparza, marido, irmão e pai das cinco vítimas.

Era 1º de julho de 2007, e a chacina se converteu no primeiro caso de civis as-sassinados por soldados dentro da “guer-ra” empreendida pelo governo do con-servador Felipe Calderón contra os car-téis da droga, que empurrou o país para uma espiral incontida de violência.

Ofi cialmente, são 30 mil vítimas fatais em quase quatro anos de militarização do combate aos trafi cantes. Contudo, fal-ta somar uma quantidade não conhecida de pessoas órfãs, viúvas, mutiladas, exi-ladas e deslocadas.

A estratégia governamental inclui a participação ativa das forças militares e causou diferentes efeitos na população mexicana, de 108 milhões de habitan-tes. Um, muito claro, é a “invisibilidade da violência contra as mulheres”, disse à IPS David Peña, da Associação Nacio-nal de Advogados Democráticos, que le-vou ao Tribunal Interamericano de Direi-tos Humanos o caso do Campo Algodoei-ro pelo assassinato de três mulheres em Ciudad Juárez, em que o Estado mexica-no foi considerado responsável.

Sem distinção“É tamanha a quantidade de mortos

que não há uma diferenciação entre ho-mens e mulheres. E, pior, não há dis-tinção entre os motivos dos assassina-tos”, explicou. “Se uma moça é encontra-da morta na rua com sinais de violência, mas recebeu um tiro, está amarrada ou ao seu lado tem um homem morto, en-tra na lista do crime organizado”, dis-se o advogado. Um exemplo desse fenô-

Outra guerra que torna invisível a violência sexistaMÉXICO Por trás do combate ao tráfi co de drogas promovido pelo governo do país, esconde-se o assassinato de milhares de mulheres

meno é Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos, conhecida mundial-mente pela onda de feminicídios inicia-da em 1993.

O número de mulheres assassinadas nos últimos três anos já superou o total de feminicídios dos 13 anos anteriores: 575. Este ano, já somam 288 os assassi-natos por violência. “Ao entrar na lista da criminalidade organizada, as famílias já não têm acesso ao prontuário, nem po-dem pressionar as autoridades para que esclareçam o crime”, explicou David, as-segurando, ainda, que nestes quatro anos “diminuíram” os avanços que a so-ciedade civil havia conseguido em maté-ria de direitos humanos.

O fenômeno se estende a todo país. Um informe de abril da Comissão Especial de Feminicídios da Câmara dos Deputados indica que, desde 2007, foram registra-dos 1.756 homicídios dolosos contra mu-lheres em 18 Estados, dos quais em ape-nas 3% há sentença, sem que exista re-gistro sobre condenados ou não. “Não há registros e os que existem são insufi cien-tes”, resumiu a presidente da comissão,

Segundo ele, “foi por isso que se colo-cou a questão da guerra interna. Ou, pelo menos, era isso que diziam. A guerra in-terna foi decretada mediante uma série de medidas que o Parlamento democrá-tico da época aprovou para tentar solu-cionar a situação em que se vivia. Eu fui convocado para restabelecer a democra-cia. Sou um democrata”.

A jornalista que o entrevistou lem-brou-lhe que, por causa desse “estado de guerra interna”, “houve torturas, se-questros, assassinatos e desaparecidos”. “O senhor esteve no mais alto cargo. Co-mo pode não ter informações sobre is-so”, perguntou-lhe. A resposta de Alva-rez foi breve. “Quem disse que houve de-saparecidos?”. E acrescentou: “Ouvi di-zer. Li alguma coisa na imprensa”.

O ex-ditador se queixou de que lhe te-nham imputado 37 mortos e afi rmou que pediu provas e testemunhas por “quatro ou cinco vezes”, mas não obteve respos-tas. “Além disso, quando esses 37 desa-pareceram, eu não estava em Montevi-déu nem tinha cargo de mando. Estava em Minas, à frente da Divisão do Exérci-to IV e, mesmo assim, me imputaram es-ses crimes”, disse, defendendo-se.

A jornalista destacou, no dia 29, em de-clarações radiais, que nessa reposta Alva-rez reconhece tacitamente a existência de desaparecidos. Ela o descreveu como um idoso lúcido, embora “por momentos, fu-gia do tema principal” para dar a ideia de que divagava. (Página/12)

Tradução: Igor Ojeda

Ex-ditador nega desaparecimentosDa cadeia, Gregorio “Goyo” Alvarez, acusado de 37 assassinatos, diz não se arrepender de nada do que fez durante a última ditadura uruguaia

deputada Teresa Incháustegui, do opo-sitor Partido Revolucionário Democrá-tico (PRD).

“As mulheres mortas ou o aumento de seu número não são o único problema”, disse à IPS Sara Lovera, pioneira, no Mé-xico, do jornalismo com enfoque de gê-nero. “Está constatado historicamente: sempre que há uma guerra, as mulhe-res são as vítimas”, afi rmou. “A presen-ça dos militares nas ruas aumenta a vul-nerabilidade das mulheres, as coloca em risco, gera medo e, sobretudo, [os milita-res] não prestam contas de seus abusos”, acrescentou.

Troféu de guerraSara deu como exemplo o caso de Cas-

taños, localidade do Estado de Coahuila, onde, em julho de 2006, foram violenta-das 13 bailarinas em um centro notur-no por um grupo de soldados. Dos acu-sados, 80% estão livres, recordou. O Mé-xico é a mais recente expressão na Amé-rica Latina da ligação entre militarismo e violência de gênero, tema central dos 16 dias de ativismo contra maus-tratos se-xistas que começaram em 25 de novem-

bro, Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher.

“Em qualquer circunstância em que o Exército participe ativamente, as mu-lheres se convertem em troféu de guerra e são as mais vulneráveis às agressões”, disse Blanca Rico, diretora-executiva da Organização Não Governamental Se-mentes, promotora dos direitos da mu-lher. O problema, disse, é que da parte do Estado não há mecanismo algum de con-tenção ou reparação do dano. E mesmo as próprias organizações estão tendo de rever suas metas para fazer o diagnóstico que o governo não quer aceitar.

“É um fenômeno de excesso total. A Se-mentes nunca teve como tema central a defesa de direitos humanos porque não acontecia o que acontece hoje: um bru-tal aumento de ameaças, que é constan-te. Todas estão sendo acossadas, amea-çadas”, contou Blanca. Os “danos cola-terais” da violência generalizada no país ainda não podem ser quantifi cados, mas são um poliedro de muitas faces, afi r-mam os especialistas. Incluem-se, por exemplo, os casos de presas sob acusação de “serem mulheres de narcotrafi cantes”, sem que haja provas de sua participação em algum delito. Ou o aumento da pros-tituição em lugares onde há acampamen-tos militares.

Justiça militar“É o uso e abuso das mulheres. Era al-

go que acontecia em regiões muito espe-cífi cas onde havia presença militar, mas, agora, espalhou-se”, disse Sara. A organi-zação Human Rights Watch (HRW) criti-cou o governo por sua proposta de refor-ma do sistema de justiça militar e de seu foro especial. No dia 23, a entidade pediu a exclusão da jurisdição militar de crimes de agressão sexual e violação dos direitos humanos, entre outros.

O Código de Justiça Militar, de 1933, atua para crimes cometidos por militares da ativa no desempenho de suas funções, e não inclui crimes cometidos por mili-tares contra civis, por ter sido elaborado para uma situação de guerra. O caso da família Esparza é um exemplo. Quando aconteceram os fatos, as mulheres da al-deia de Sinaloa de Leyva, onde as profes-soras mortas davam aula, aproveitaram a chegada de jornalistas para cobrir o caso e se reuniram e cobraram do presidente Calderón o esclarecimento do massacre.

Mais de três anos depois, a família nãorecebeu desculpa pública, nem mesmouma nota de condolências. Não há in-formação ofi cial do julgamento militarcontra os 19 soldados envolvidos. “As provas existentes indicam que os solda-dos dispararam sem justifi cativa” contrao carro onde viajavam as cinco pessoas mortas e os três sobreviventes, afi rma oinforme “Impunidade Uniformizada”,divulgado no ano passado pela HRW.(Envolverde/IPS)

de Buenos Aires (Argentina)

O EX-DITADOR URUGUAIO Gregorio Alvarez (1981-1985), atualmente preso e processado por assassinatos e tortu-ras, disse que não se arrepende de nada do que fez durante sua atividade política e continua negando a existência de desa-parecidos.

“Deixe-me pensar do que eu pos-so me arrepender. Que eu me lembre, de nada”, declarou, em uma entrevis-ta ao diário montevideano Últimas No-ticias, o homem que governou o Uru-guai durante quatro anos na última eta-pa da ditadura instaurada em 1973 por um golpe de Estado. Alvarez era quem deveria conduzir o processo de retor-no paulatino à democracia depois que os militares perderam o plebiscito, há 30 anos.

As polêmicas declarações de Goyo Al-varez coincidiram com a comemoração de uma data histórica no país: quando uma maioria de uruguaios disse “não” à ditadura no plebiscito de 30 de novem-bro de 1980.

ResignadoAlvarez, de 85 anos, acusado de 37 ho-

micídios, está detido na prisão de Do-mingo Arena juntamente com um grupo de ofi ciais que a Justiça considerou res-ponsáveis pela tortura, sequestro e de-saparecimento forçado de dezenas de uruguaios.

O ex-ditador disse que está “bem” na prisão, mas que sofre “a síndrome do ataúde, porque, se eu cumprir todos os anos que me sentenciaram, vou sair com 107 anos; portanto, já me resig-nei em morrer aqui”. No entanto, ele mostrou alguma esperança de reconci-liação ao comentar os pronunciamen-tos que o atual presidente do país, Jo-sé Mujica, fez nesse sentido. “Eu quero colaborar com a paz deste país e, por isso, mantenho-me calado. O que me importa é colaborar com a paz e a con-córdia”, acrescentou Alvarez, que, an-tes de ser presidente de fato, foi chefe do Exército.

Ele assegurou que não tem nenhuma informação sobre os casos de desapare-cimento forçado ocorridos durante a di-tadura (1973-1985), quando foi um in-fl uente chefe militar até chegar à presi-dência. “Nunca protegi delitos vulgares. Aqui, houve um estado de guerra inter-no, não foi estado de guerra. A diferen-ça é que a guerra supõe a oposição entre dois países, e na guerra interna não se reconhece nos oponentes a condição de Estado”, disse.

“Democrata”Alvarez insistiu na teoria dos “dois de-

mônios”, esgrimida por alguns políticos e historiadores para justifi car as nume-rosas violações aos direitos humanos que se produziram nesses anos, quan-do a guerrilha já havia sido desarticula-da em 1972.

“Em qualquer circunstância em que o Exército participa ativamente, as mulheres se convertem em troféu de guerra e são as mais vulneráveis às agressões”

575mulheres foram assassinadas nos

últimos três anos no México

Uruguai

Mulheres e crianças da vila onde a família Esperanza foi assassinada pedem justiça

O ex-ditador uruguaio Gregorio Alvarez, o Goyo

Reprodução

Mónica González/IPS

internacional de 2 a 8 de dezembro de 2010 11

O ESPÍRITO da Revolução dos Cra-vos, ou do 25 de Abril, como os por-tugueses preferem lembrar, não só continua vivo na memória des-se povo, como também já faz par-te de uma identidade de resistência. O conservadorismo em terras lusita-nas ainda persiste, mas sofre, a cada dia, derrotas severas.

Portugal hoje, mesmo possuin-do mais de 90% da população cató-lica, é um país onde o aborto é des-criminalizado, o casamento homos-sexual é legalizado e tem uma das le-gislações antidrogas mais fl exíveis, que efetivamente conseguiu reduzir o consumo e a criminalidade, pro-vando que tal questão não se resol-ve unicamente sobre o ponto de vis-ta penal.

Na área da política econômica, em 24 de novembro, as duas centrais sindicais mais importantes do país, a CGTP e UGT, mobilizaram, com o apoio do PCP (Partido Comunista Português), BE (Bloco de Esquerda) e Verdes, a maior greve geral da his-tória portuguesa. Essa greve foi pla-nejada como resposta à crise econô-mica que assola a Europa, principal-mente Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha.

Ao contrário do Brasil, alguns países da União Europeia convi-vem com efeitos diretos da crise, como aumento da taxa de desem-

prego de 10 para 18%, cortes drás-ticos no orçamento, intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. É como se a Europa, agora, estivesse viven-do uma situação econômica pareci-da com a da América Latina na dé-cada de 1990, auge do neoliberalis-mo ortodoxo. Segundo Boaventura de Sousa Santos, isso se refl ete na emergência de um tipo específi co de fascismo, o fi nanceiro, que “co-manda os mercados fi nanceiros de valores e de moedas, a especulação fi nanceira global, um conjunto ho-je designado por economia de cas-sino”. Ou seja, não importa mais se nas eleições os governantes prome-tem ao povo geração de empregos, crescimento econômico e não priva-tizações, pois se as agências de ra-ting, o Banco Mundial e o FMI de-cidirem abaixar a nota da economia do país, aos governos são impostos diretamente o inverso das promes-sas de campanha: cortes drásticos no orçamento, privatizações, de-missões, recessão e todo o resto da cartilha neoliberal.

Em uma coluna para a revista lu-sa Visão, entretanto, o sociólogo português complementa: “escrevia isto a pensar nos países do chama-do Terceiro Mundo. Não podia ima-ginar que o fosse recuperar a pen-sar em países da União Europeia”.

Se na América Latina, os movimen-tos sociais e partidos de esquerda conseguiram frear o neoliberalis-mo, pelo menos em sua escala mais direta, na Europa isso é um proces-so que ocorre agora.

O governo português, comandado pelo primeiro-ministro José Sócra-tes, do Partido Socialista (PS) e pelo presidente Cavaco Silva, do Partido Social Democrata (PSD), propôs um orçamento de Estado recheado de medidas neoliberais. Os cortes no orçamento irão se refl etir em todas as áreas das políticas sociais. Alme-jam-se cortes salariais que chegam a 10% dos salários dos funcioná-rios públicos, cortes de bolsas estu-dantis e aumento do pagamento das anuidades nas universidades, cortes nas áreas do meio ambiente, saúde, de transportes públicos e no trata-mento de dependentes de drogas. Os ajustes sugeridos às empresas estatais chegam a 15% e, além dis-so, retoma-se o debate da privatiza-ção da CTT (Correios de Portugal) e da TAP. Tudo para “equilibrar” o or-çamento do Estado, utilizando-se de uma receita bastante conhecida por nós brasileiros nos tempos de FHC, cortar gastos sociais ao extremo, pa-ralelamente ao aumento dos incen-tivos fi scais aos empresários e ao mercado fi nanceiro. Segundo o de-putado do BE José Manuel Pureza,

o Estado português poderia poupar cerca de oito bilhões se atendo a me-didas como renegociação das parce-rias público-privadas e a adoção de software livre.

O preço da crise, entretanto, é co-brado aos mais necessitados. “Não é quem trabalha, não são os pensio-nistas, não são os jovens, não são os desempregados que têm que pagar a crise de qual não foram responsá-veis”, diz o eurodeputado do BE Mi-guel Portas. E foi em resposta a es-sa conjuntura que cerca de três mi-lhões de portugueses pararam o país dia 24 de novembro.

De acordo com as lideranças sindi-cais Carvalho da Silva e João Proen-ça, a paralisação foi quase total nos aeroportos, portos, trens e metrôs de Lisboa e do Porto. Houve 95% de adesão nas universidades, escolas e hospitais (este último funcionando a serviços mínimos). O apoio à greve geral também repercutiu em super-mercados e em outros ramos do se-tor privado.

O recado da sociedade portuguesa foi dado em alto e bom tom as véspe-ras de se votar o orçamento de aus-teridade do Estado. Se o governo de José Sócrates preferir ouvir o FMI e o Banco Mundial em detrimento de seu próprio povo, que fi que avisado de que os cravos sempre estarão a postos à espera de novas revoluções.

Os Cravos e a greve geral em Portugal Caetano De Carli

O governo português, comandado pelo primeiro-ministro José Sócrates, do Partido Socialista (PS) e pelo presidente Cavaco Silva, do Partido Social Democrata (PSD), propôs um orçamento de Estado recheado de medidas neoliberais

Giorgio TrucchiManágua (Nicarágua)

HONDURAS CONTINUA se debatendo sob uma grave crise econômica, política e social originada pelo golpe de Estado que derrubou o presidente Manuel Ze-laya em junho de 2009. Apesar da ima-gem de “país pacifi cado e normalizado” que o atual governo de Porfi rio Lobo ten-ta projetar internacionalmente, as enti-dades que integram a Plataforma de Di-reitos Humanos de Honduras continu-am denunciando a constante violação de direitos humanos e instalaram uma “co-missão da verdade” (órgão que investiga crimes de ditaduras, comum na América Latina) para esclarecer os abusos cometi-dos desde o golpe.

François Houtart, sacerdote, soció-logo, principal referência do Fórum So-cial Mundial e membro da Comissão da Verdade, conversou com o Opera Mun-di e analisou a delicada situação vivida por Honduras. O sociólogo belga está convencido de que uma consolidação do projeto de refundação da FNRP (Frente Nacional de Resistência Popular) pode-ria implicar um aumento da repressão e de que o governo dos Estados Unidos não está alheio ao que ocorre no país. Na verdade, segundo ele, os EUA continu-am promovendo seu projeto para se re-posicionar na região latino-americana, e o golpe de Estado em Honduras foi uma peça importante dessa estratégia.

Passaram-se 17 meses desde o golpe de Estado em Honduras. Como o senhor vê a situação dos direitos humanos no país?François Houtart – Não melhorou. Pelo contrário, a delicada situação polí-tica e social vivida pelo país contribuiu para um agravamento do panorama. Sa-

AMÉRICA LATINA

bemos que o golpe foi levado a cabo pe-la oligarquia tradicional, que não acei-ta processos de mudança no país e não quer perder seus privilégios. Agora que eles detêm novamente o poder e o con-trole da política e da economia, não per-mitirão avanços sociais. Todos os que tentam lutar para conseguir mais direi-tos para o povo são vistos como inimigos que precisam ser eliminados. Nesse sen-tido, não se passa uma semana sem no-vas vítimas. Ainda estamos em uma situ-ação muito tensa.

Que importância terá a Comissão da Verdade em um contexto tão complicado?

Os objetivos da Comissão da Verda-de são investigar as violações dos direi-tos humanos a partir do golpe, investi-gar a história do golpe, suas consequên-cias e quem esteve por trás desse aconte-cimento. E, fi nalmente, investigar o con-texto geral do país, pois não se pode en-tender esses fatos sem conhecer a estru-tura social, política e econômica de Hon-duras. Tudo isso vai esclarecer o que re-almente aconteceu em Honduras e apon-tar os verdadeiros responsáveis.

Recentemente, o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Philip J. Crowley, declarou que “o tema dos direitos humanos não é condição prévia para o retorno de Honduras à OEA”. Que leitura podemos dar a essa declaração?

É parte da lógica política dos Estados Unidos. Eles condenaram o golpe, mas não pela essência de seu signifi cado – a detenção dos processos de mudança que ocorriam no país –, e sim pelo mé-

todo utilizado. Agora, querem legitimar o atual governo para continuar com su-as políticas e aparentar uma normaliza-ção na região.

Que papel o golpe em Honduras teve para a região latino-americana?

Honduras era o elemento mais frá-gil do conjunto de países que promove-ram ensaios de transformação na Améri-ca Latina. É uma advertência para todo o continente, e já vimos isso em vários paí-ses. Por não nos alinharmos às políticas norte-americanas e oligarquias locais, sofreremos intervenções – não mais mi-litares, como no passado, e sim por meio de novos métodos e instrumentos.

Discute-se intensamente se o presidente Obama teve ou não algo a ver com o golpe em Honduras. Qual é sua opinião?

Quando observamos a política exter-na de Obama, não restam dúvidas de que o presidente norte-americano con-tinua com a mesma política de sempre dos Estados Unidos. Pode haver um es-tilo diferente, mas a substância não mu-

“O governo acredita que as pessoas vãose cansar e a resistência se enfraquecerá”HONDURAS Para o padre belga François Houtart, um dos defensores dos direitos humanos no país, bloco popular de oposição ao golpe de Estado não desaparecerá, o que acarretará em mais repressão

dou e o caso de Honduras é um exemplo claro disso.

Também se afi rma que os Estados Unidos já têm problemas demais no Oriente Médio e, no momento, a América Latina não é sua prioridade.

O continente latino-americano sem-pre terá uma grande importância para os Estados Unidos, que precisam manter o controle. É evidente que os processos de unidade latino-americana promovidos no continente os preocupam muito. As-sim como os preocupa o início de uma ló-gica de organizar e entender a economia e a política que contradiz o sistema capi-talista e a economia de mercado. Os Es-tados Unidos veem isso como um perigo a longo prazo para a lógica do sistema do qual são parte essencial, e que conside-ram fundamental para a continuidade de seus interesses no mundo.

O senhor acredita que, no caso de Honduras, o que preocupava os EUA era o início de uma mudança dessa lógica de sistema?

Por um lado, é justamente isso, mas, por outro, eles temiam que Honduras aderisse à Alba [Alternativa Bolivaria-na para as Américas]. Isso poderia ser uma tentação para outros países da re-gião centro-americana e eles decidiram pôr fi m a essa situação.

O processo de formação da FNRP em Honduras é algo novo para a região. O senhor acredita que ela pode atingir o objetivo de refundar o país?

Trata-se de uma resistência organizada pelos movimentos de base e é algo muito inovador. Acredito que pode atingir seus objetivos sempre que mantiver a unidade de todos os setores que a compõem e, ce-do ou tarde, terá uma tradução no campo político, para promover as reformas fun-damentais do Estado.

Uma maior força da FNRP poderia implicar em mais repressão?

Sem dúvida. O governo atual acredita que as pessoas vão se cansar e que a re-sistência se enfraquecerá aos poucos, até desaparecer. Se isso, como acredito, não ocorrer, será criado um cenário de vio-lência muito preocupante.

Nesse contexto, ganha ainda mais importância a presença de uma Comissão da Verdade...

Os trabalhos já começaram e, nos pró-ximos dias, todos os integrantes percor-rerão o país para recolher testemunhos e analisar os avanços do processo. (Ope-ra Mundi)

“Todos os que tentam lutar para conseguir mais direitos para o povo são vistos como inimigos que precisam ser eliminados”

“O continente latino-americano sempre terá uma grande importância para os Estados Unidos, que precisam manter o controle”

Manifestação de camponeses em Tegucigalpa: golpe faz parte de plano estadunidense para a América Latina

Reprodução

culturade 2 a 8 de dezembro de 201012

Rui Kureda e Celso Limade Embu das Artes (SP)

AS RUAS DO JARDIM Santa Tereza, na periferia de Embu das Artes (SP), fo-ram tomadas por dezenas de milhares de pessoa. Circulando pela rua principal do bairro e ruas adjacentes, entre várias barracas de artesanatos, alimentos e be-bidas, elas puderam assistir às apresen-tações de mais de 300 músicos, cantores e poetas, distribuídos em oito palcos es-palhados pelo bairro. A 11ª Feira de Ar-tes Santa Tereza, realizada no dia 21 de novembro, mais uma vez foi um sucesso, atraindo uma multidão de outras regiões e municípios.

De fato, o evento surpreende o visitan-te por suas dimensões, pela variedade de espetáculos e pelas manifestações cultu-rais. Do palco da MPB ao palco de hip hop, do rock à música eletrônica, a vibra-ção é contagiante.

O fato de a Feira ter chegado ao seu 11º ano é motivo de comemoração pa-ra Anivaldo Laurindo Ferreira, o Anival-do da Cultura. Fundador da Casa de Cul-tura Santa Tereza, entidade que organiza o evento, ele destaca o fato de a Feira ter se consolidado: “Conseguimos realizar a Feira a duras penas, praticamente com as nossas próprias forças. Todos já conside-ram a Feira como parte integrante do ca-lendário cultural de Embu”.

CulturaçõesUma particularidade é que a cada ano

um tema é escolhido para a Feira. O des-te ano foi “Culturações”, uma palavra que não existe no dicionário, mas que conse-gue transmitir uma ideia de ligar cultura à ação. Anivaldo conta que a intenção é apontar a dimensão política da cultura e da arte. “Queremos a arte e a cultura pa-ra a transformação, queremos combater a ideia de que arte e cultura são merca-dorias. A Feira é um exemplo disso. Aqui a maioria dos artistas está à margem do mercado e, ao mesmo tempo, as pesso-as vêm para cá porque sabem que terão oportunidade de conhecer trabalhos ar-tísticos que não encontram espaço nos

A periferia celebra a culturaDIVERSIDADE 11ª Feira de Artes Santa Tereza atrai milhares de pessoas para a cidade de Embu das Artes na Grande São Paulo

canais ofi ciais e da indústria cultural”, revela. Para Anivaldo, é fundamental abrir espaços para que essas produções artísticas alternativas e populares pos-sam se manifestar.

Muitas bandas já possuem um públi-co fi el, ainda que restrito. A Feira lhes proporciona a oportunidade para am-pliar esse público. Por isso, a cada ano, é maior o número de artistas de várias re-giões que desejam se apresentar num dos palcos da Feira.

DiversidadeUm aspecto importante é a diversidade

de estilos e gêneros. Várias tribos presen-ciaram apresentações dos mais diferen-tes estilos musicais, como hip hop, rock, reggae, forró e MPB. A música eletrôni-ca também levou muita cultura e DJs co-nhecidos da noite paulistana. “Sempre que convidamos um DJ, passamos para ele a ideia do tema a ser refl etido e de al-guma forma é transmitido esta informa-ção ao público”, ressalta Tata, coordena-dora do espaço da música eletrônica.

O palco do rock também trouxe nomes de peso da cena alternativa, como a clás-

sica banda punk Cólera e os chilenos do Mundano.

Uma novidade da Feira de Artes des-te ano foi o palco da música brega. No-mes conhecidos, como Ângelo Máximo, Ed Azevedo, Ricardo Braga e Almir Ro-gério, relembraram músicas que alegra-ram o público presente. “Muito bom es-tar aqui, é um dia para nunca se esque-cer”, comenta o cantor Almir Rogério. “Esta feira cultural é democrática, até o brega tem seu devido espaço. Isso tam-bém é cultura!”, diz João Silva, morador do bairro. Anivaldo era um dos mais en-tusiasmados, pois, segundo ele, havia uma demanda por um palco voltado à música brega por parte da população.

Mas não foi só música que o público encontrou. Artistas de rua, como o grupo de cortejo Candearte, grupos de malaba-

res, artesãos e uma rua dedicada a recre-ações para as crianças também chama-ram a atenção.

No palco oito, de sarau, poesia e lite-ratura, coordenado por poetas como Léa Lopes, Josias Patriolino, Toninho Poeta e Tin Tin Alves, foi lançado um livrinho de cordel contando a história da Feira de Artes. Para Tin Tin Alves, autor de cor-del, o palco de poesia é um espaço impor-tante para valorizar e popularizar a poe-sia e a literatura.

Celebrando a vidaVanessa Aderaldo, diretora da Casa de

Cultura, enfatiza o fato de que a Feira é autônoma. O Poder Público contribui com serviços como organização do trân-sito, segurança e ambulância, mas a rea-lização do evento conta basicamente com recursos próprios e o aluguel dos espaços para as barracas. Com isso, o evento ga-nha em autonomia, mas Vanessa reco-nhece que as difi culdades são enormes, exigindo muito sacrifício e trabalho vo-luntário.

Essa também é a opinião de Anivaldo, para quem o sucesso da Feira compensa todas as difi culdades. “Queremos apri-morar cada vez mais, envolvendo ain-da mais a comunidade local e os artis-tas da região. A Feira é uma verdadeira celebração da cultura, um momento em que milhares de artistas e populares se juntam para afi rmar a verdadeira cultu-ra popular, que não é simples mercado-ria. Cultura é um bem que não tem pre-ço. É uma necessidade social e um direito de todos”, conclui. E, para 2011, Anivaldo promete mais novidades. “Queremos que a Feira de Artes Santa Tereza se torne ca-da vez melhor”.

Tudo indica que, em novembro de 2011, teremos outra oportunidade para testemunharmos mais uma grande fes-ta cultural, certamente um dos maiores eventos culturais do gênero na Grande São Paulo.

A Feira de Artes Santa Tereza acontece anualmente em novembro. Para fi car por dentro das próximas edições, acesse o site casadeculturasantatereza.org.br ou entre em contato pelo telefone (11) 4149-5315.

“Todos já consideram a Feira como parte integrante do calendário cultural de Embu”

Mais de 300 artistas se apresentaram nos oito palcos espalhados pelo Jardim Santa Tereza

Celso Lima

Sidnei Schneider

O QUE A ESCRITORA e mestre em literatura Telma Scherer fez na Feira do Livro de Porto Alegre, através da denúncia da casinha de cachorro do escritor e da elegância das bolinhas de sabão da sua performance, foi apontar o dedo na testa dos lançado-res de livros estrangeiros enlatados, que acabam por defi nir toda a cadeia produtiva do livro no Brasil, com re-fl exos nas feiras e bienais, nas edito-ras e livrarias, e na vida de todo es-critor e leitor.

Ao dizer aos policiais e ao público que a truculenta ação daqueles esta-va “mandando as pessoas para casa ler Dan Brown”, ela sabia do que fa-lava. Também, quando declarou nas entrevistas que o protesto não era “contra uma pessoa ou instituição”, mas “contra o sistema literário”, que “se o chapéu serviu em alguém” não podia fazer nada. Perdoem-me al-guns amigos, mas o alcance desse protesto não pode ser reduzido ao espaço geográfi co de uma praça ou cidade. Minimizá-lo assim é ainda nos deixar levar por um sentimento provinciano a ser superado.

Há cerca de um par de décadas, corporações globais com uma prá-tica de arrasa quarteirão passaram a jogar pesado no mercado nacio-nal, um dos maiores do mundo ape-sar do ainda reduzido hábito de lei-tura dos brasileiros. Setor altamen-te monopolizado, os doze maiores grupos editoriais do planeta, segun-do pesquisa da consultoria Euro-monitor, são responsáveis por 52% das vendas em 19 países de grande mercado, incluído o Brasil. Os qua-tro maiores (Bertelsmann, Thomp-son, Pearson e Vivendi) detém 36%. O monopólio francês Vivendi (La-

boratório Roche, Nestlé, Água Per-rier, Pure Life) controla aqui as edi-toras Ática e Scipione, desnaciona-lizando o setor do livro didático. A transnacional Santillana, espanhola como as editoras Planeta e Oceano, é dona da Moderna, também espe-cializada em livros didáticos, e con-trola 75% da Objetiva. O grupo Re-cord (editoras Record, Bertrand, Ci-vilização Brasileira, José Olympio, Best Seller e Verus) seguidamen-te é sondado pelo capital estrangei-ro, para o qual não existem barrei-ras legais, como no Canadá. Desde 2003, das dez maiores editoras lo-cais, sete são estrangeiras. Editando uma enxurrada de publicações de baixa qualidade, esses grupos têm comprado o passe de escritores bra-sileiros importantes, mas nada ga-rante que não os abandonem na pri-meira oportunidade.

Com campanhas milionárias de divulgação, fazem o seu produto, papel encadernado com textos pí-fi os, aparecer nos grandes jornais, revistas semanais ou pseudocultu-rais e programas de tevê. O até en-tão desconhecido autor internacio-nal será objeto de entrevistas e, se possível, comparecerá a feiras e bie-nais do livro. De maneira que até o único jornal de uma cidade peque-na, impotente ante a avalanche, vai tomar espontaneamente esse livro como tema.

Essa ação, pensada globalmente desde fora do nosso país, acaba fa-zendo com que o distribuidor aposte mais nesses títulos (se já não for oli-gopolizado), a megastore os priorize nas suas geralmente péssimas revis-tas e grande parte dos livreiros (os guerreiros da cultura e do saber es-tão minguados, mas ainda existem) os coloque nas vitrines ou nas ban-cas de alguma feira. Ficando prejudi-

cada a literatura brasileira e o que de bom poderia nos chegar de fora.

O leitor, de sua parte, compra um livro do qual pelo menos já ouviu fa-lar. A inocência nos impede de pen-sar que o jabaculê corre solto para que o produto se afi rme e comece a aparecer na lista dos mais vendidos da Veja. A mensagem da lista é cla-ra: se todo mundo está comprando o livro deve ser bom, compre-o tam-bém. Assim, depois de algum tempo, o que era mera sugestão começa a se aproximar da realidade de vendas, mesmo que o leitor depois se frustre ou nem leia o livro, como demons-tram pesquisas em outros países. No dia em que escrevo, sem entrar no mérito de cada obra, dos vinte livros de fi cção mais vendidos, apenas qua-tro são de autores brasileiros.

A tiragem gigantesca dos livros en-latados barateia o custo gráfi co-edi-torial unitário do produto para bem menos do que 10% do preço de ca-pa, sem nenhum refl exo para o con-sumidor. Ao contrário, quanto mais dominam a área, mais livres se sen-tem para colocar o preço que quise-rem, nunca transferindo a isenção de impostos a que o livro faz jus. Na

que enviar os livros para a casa dos pais no interior e, o pior do pior, fi -cou sem local de trabalho para, co-mo no caso de Telma, terminar um romance, deve agradecer aos céus, e não ir para a Feira do Livro com uma performance artística que sen-sibilize o público. Esse é o recado de quem chamou a Brigada Militar.

A nota ofi cial da Câmara Rio-gran-dense do Livro, endossando a versão de que a Brigada Militar foi chama-da por “mãe e fi lho cadeirante que não conseguiram prosseguir em um corredor do evento” não é das mais edifi cantes que essa instituição já emitiu. Os policiais talvez não te-nham entendido o recado de Tel-ma, mas seguramente ele não esta-va fora do alcance dos organizado-res da Feira.

Melhor avaliar bem de que lado se está nesse jogo: do lado das corpo-rações, submetendo-se a elas, e cor-rendo o risco de mais tarde ser en-golido, na medida em que cada vez mais compram empresas brasileiras em difi culdades, ou do lado dos es-critores e produtores, da arte e da li-teratura, e da própria economia na-cional. Em suma, da civilização ou do que leva à barbárie.

Não dá para fazer nada? Dá sim, a grande repercussão do caso e a soli-dariedade que Telma recebeu o de-monstram. E o novo governo fede-ral precisa tratar urgentemente da questão livro. Pode demorar um pouquinho resolver tudo isso, mas já nos livramos de coisas bem piores como sabe o leitor.

Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista. Autor dos livros de poesia

Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer,

1999) e da tradução Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997).

Telma peitou o sistema do livro-enlatadoEscritora gaúcha despejada do apartamento, depois de viver alguns anos do seu trabalho, resolve denunciar em performance artística, na praça da Feira do Livro de Porto Alegre, o sistema literário e a ação dos monopólios globais do livro

Literatura

verdade, encarecem o custo de pro-dução e o preço fi nal de todos os ou-tros livros editados no país. Como? Vejamos: depois do furacão global de alto faturamento, sobra o que pa-ra o “mercado”? Tentar colocar edi-ções de mil a três mil exemplares em todo o país, sem nenhum carro chefe de vendas como uma vez o fo-ram Jorge Amado e Erico Verisimo, e, mais recentemente, um ou outro como Cristóvão Tezza, ao conseguir emplacar uma edição (este pela Re-cord, o maior grupo editorial de lite-ratura do país). Em escala pequena, uma atividade muito mais trabalho-sa, e o que é pior, em condições com-pletamente injustas quanto à publi-cidade.

Edições pequenas saem unitaria-mente mais caras, e para vendê-las, pagar as contas e obter um mínimo de retorno, também não são ofereci-das por um valor menor. Além de tu-do, muitas empresas quebram e são engolidas. O autor brasileiro, que re-cebe apenas 10% do preço do livro vendido, não raro é convidado a es-perar ou a renegociar o pouco que lhe caberia. Quando não, a pagar à editora para ser publicado. O país perde com a menor circulação de ideias e da verdadeira arte literária.

O escritor, o poeta, aquele que tra-balha três, cinco, dez anos para fi na-lizar uma obra, mesmo tendo con-quistado o apreço dos leitores e o seu espaço enquanto autor reconhecido, como é que fi ca? Ou vai trabalhar em outra área ou vai fi car sem condições de vida, semelhante ao que aconte-ceu a Telma. Exceções existem, mas dependem exageradamente da vi-sibilidade do autor na mídia, quase sempre os que nela trabalham.

Assim, se você, depois de alguns anos tentando viver da escrita, per-deu a sua casa, os seus móveis, teve

A inocência nos impede de pensar que o jabaculê corre solto para que o produto se afi rme e comece a aparecer na lista dos mais vendidos da Veja