Edição 5

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edição 05 | 2015 Por dentro do Contestado A intimidade de um ícone curitibano Capoeira com pinhão Entre livros e leitores: os detalhes da Biblioteca Pública do Paraná Acordes do Músico sírio conta sobre o recomeço da vida em Curi- tiba, após fugir da guerra. Narrativas contemporâneas edição especial literária Os novos hippies silêncio O cotidiano de um dos maiores as- sentamentos do MST no Paraná, na Lapa, cidade da região metropolita- na de Curitiba. O músico Plá abre as portas de sua casa para o Comunicação. Mestre capoeirista avalia o cres- cimento do esporte na “européi- ca” Curitiba. 40 anos depois, movi- mento conquista novas gerações. Pág. 10 Pág. 6 Pág. 3 Pág. 8 Pág. 12 Pág. 7

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Edição especial literária

Transcript of Edição 5

edição 05 | 2015

Por dentro do Contestado

A intimidade de um ícone curitibano

Capoeira com pinhão

Entre livros e leitores: os detalhes da Biblioteca Pública do Paraná

Acordes do

Músico sírio conta sobre o recomeço da vida em Curi-tiba, após fugir da guerra.

Narrativas contemporâneasedição especial literária

Os novos hippies silêncio

O cotidiano de um dos maiores as-sentamentos do MST no Paraná, na Lapa, cidade da região metropolita-na de Curitiba.

O músico Plá abre as portas de sua casa para o Comunicação.

Mestre capoeirista avalia o cres-cimento do esporte na “européi-ca” Curitiba.

40 anos depois, movi-mento conquista novas gerações.

Pág. 10

Pág. 6Pág. 3Pág. 8Pág. 12Pág. 7

UFPR - 20152 OPINIÃO

Expediente

Editorial Opinião

O Comunicação é um jornal laboratório produzido por alunos do curso de Jorna-lismo da Universidade Federal do Paraná, nas disciplinas Laboratório de Jornalismo Impresso, Produção e Planejamento Gráfico e Produção e Edição II.

Professores orientadores: Mário Messagi Jr., José Carlos Fernandes e Guilherme Cavalho

Editor-chefe: Lucas PanekProdutores: Karina Fernandes, Lucas Panek

Editores: Ana Clara Tonocchi, Bruna Junskowski, Bruno Vieira, Dayane Farinacio, Gabriele Maniezo, Giovana Monaris, Julia Kreuz, Mariana Della Enns, Thaíssa Falcão

Repórteres: Anna Sens, Cristhian Aguilar, Douglas Maia, Gabriel Dietrich, Giulia Halabi, João Heim, Lisyê Zadorosny, Maria Fernanda Mileski, Milena Alves, Monique Portela, Valsui Junior, Vinícius do Padro

Ilustrações e Arte da capa: Isabelle SantosDiagramação: Thaíssa Falcão, Aléxia Saraiva, Amanda Pupo, Julia Kreuz e Luiza Gui-marãesImpressão: Gráfica UFPRTiragem: 1 mil exemplares

Endereço: Rua Bom Jesus, 650- Juvevê- Curitiba-PRTelefone: (41) 33132017

Errata

Na edição anterior verificamos os seguintes erros:- Editorial, nesta página, é um artigo de opinião do repórter Plínio Lopes.- Na página 5, a gravata da reportagem “Novas tecnologias têm impacto questionável na qualidade da educação” estava trocada.- Na página 8, na entrevista “A negra feminista das pequenas revoluções”, a entre-vistada Emanuella Barth é estudante de Direito e não Ad-ministração.- Na página 12, em “Atuando como comentarista, Serginho Prestes fala da vida pós-jogador de futebol”, também participou como repórter João Heim e a editora foi Dayane Farinacio e não Lucas Panek.Pedimos desculpas aos leitores e aos repórteres e editores prejudicados.

Lição

A voz silenciada das mulheres invisíveisEnquanto mulheres negras são oprimidas e mortas,

mulheres brancas cantam hinos de sobrevivênciaArtigo: Lisyê ZadorosnyEditora: Thaíssa Falcão

Angela Davis, integrante do Panteras Negras, foi procurada pelo governo dos EUA na década de 70, considerada a mulher mais peri-gosa do país por lutar contra o racismo e defender os movimentos

estudantis. Crédito: Allen Forrest (Angela, 2013)

Feminismo é um movimento político, filosófico e social que defende igualdade de direitos entre mulheres e homens. Não é uma guerra entre sexos. Não é antônimo de machismo. É a luta de todas as mulheres por re-speito e igualdade. Então, por que as mulheres têm debatido sobre o femi-nismo branco e sua forma egoísta de luta? Por que separar em categorias um movimento de igualdade? Por que criar divas do movimento e não dar voz àquelas que sofrem abusos constantes e são caladas toda vez que ten-tam falar? Por que as mulheres brancas não diminuem o tom de voz para que a voz negra e periférica possa ser ouvida com mais força?

Primeiro, os debates são muito importantes para que possamos repen-sar e desconstruir certos comportamentos. Eles mostram que dentro de um movimento que busca igualdade há sim muitas diferenças e isso não o faz mais fraco, pelo contrário.

Criar divas supremas que defendem o feminismo é bom para dar visibi-lidade ao movimento, mas não faz diferença alguma se a Dona Maria, negra sem estudo e que sofre violência diariamente não tiver apoio para mudar sua situação. De nada vai adiantar que o mundo pop cante músicas de liber-dade, se as mulheres negras continuarem servindo às mulheres brancas e aos homens brancos e negros.

Divas do feminismo não podem cantar mais alto que as mulheres que lutam para sair da invisibilidade. Não adianta as mulheres brancas, heteros-sexuais e de classe média empoderarem suas irmãs para que andem livres nas ruas enquanto a taxa de feminicídio cresce assombrosamente entre as negras – 54% em dez anos –, deixando-as morrer dentro das próprias casas.

Além disso, quem é o alvo do empoderamento feminista quando mul-heres vistas como ícones da luta são brancas de cabelo liso? Para onde vai todo o esforço das negras que buscam espaço na mídia, que resistem à in-dústria cosmética – que as força a abrir mão de suas origens e se adapta-rem aos padrões estéticos brancos – e que juntam a isso sua luta contra o racismo numa sociedade onde, por unanimidade, a vida da mulher negra vale menos?

Para que o feminismo tenha a cor de todas, é preciso aceitar que ele ainda tem uma só, e, a partir disso, trabalhar para que ele abrigue cada mul-her com sua cor e sua voz. Tornar o espaço de debate um espaço com vozes plurais.

As mulheres negras não precisam da voz das brancas para falar, mas sim do apoio delas. É necessário que o Feminismo seja interseccional para que a mudança seja de verdade.

Ombudsman

A CCXP - Comic Con Expierence 2015 registrou mais um mo-mento de ignorância da mídia com relação a diversidade celebrada pelo evento. Em um ambiente cheio de nerds, gammers e geeks, o cosplay reina como uma forma de manifestação cultural legítima. Parece que, dessa vez, os comediantes do programa Pânico na Band encontraram uma força que se colocou contra os seus pre-conceitos de gênero e o machismo perpetuado em cada 3 de 4 frases ditas pelos apresentadores.

Após comentários desrespeitosos e uma lambida em uma visitante, a CCXP baniu os pseudo-comediantes do espaço do evento e soltou uma nota de repúdio na internet. O ato pode ser sinal da decadência da mídia e do entretenimento que reprodu-zem o sexismo, a misoginia e o machismo e, consequentemente, dão respaldo para os discursos de ódio entoados pela sociedade civil.

Nesse contexto, a discussão sobre o relacionamento próximo entre a comédia e o preconceito de gênero deve ser levantado. Cabe explicar, aqui, que a violência de gênero se configura pelo comportamento consciente e inconsciente de provocar traumas ou ofensas corporais ou mentais a pessoas de gêneros diferen-tes do próprio. Em geral, o termo é usado para fazer referência a agressões sofridas por mulheres, que já são enquadradas como crime através da lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha.

Um balanço realizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, aponta que mais de 77% das mulheres relatam terem sido agredidas fisicamente ou ver-balmente com periodicidade semanal. Em 2014, por exemplo, o levantamento registrou 52.957 denúncias de violência contra a mulher, o que ainda é uma parcela pequena que não representa a realidade. Agora, se levar essas consideração para o campo da comédia, uma investigação sobre a representatividade da mulher nesse campo traria resultados assustadores.

Porta dos Fundos

O documentário O riso dos Outros, financiado pela TV Câmara e dirigido por Pedro Arantes, aborda justamente os limites da piada, do humor. Um dos discursos embutidos é de que a piada surge de alicerces culturais e sociais. Quem fala sabe o lugar e os efeitos que busca com o seu discurso e que, tudo isso, também é uma forma de reforçar estereótipos e preconceitos. Ou seja, esse diálogo entre a comédia e a violência de gênero é consciente. “O ataque às minoria é uma regra do humor”, já dizia André Dahmer.

Em uma conversa entre Gregório Duvivier, um dos criadores do Porta dos Fundos, e a cartunista Laerte, no programa Transando com Laerte, é levantado que a constante repetição da forma de se fazer humor e das piadas refletem na afirmação de preconceitos construídos. Por esse mesmo motivo, quando as mulheres são as que sobem ao palco para fazer comédia, são taxadas de saidinhas e atiradas.

Esse programa do Canal Brasil também é um episódio midiático que merece destaque. Deixe-me explicar: em uma altura da conversa, Gregório se desculpa perante a Laerte por conta de piadas transfóbicas e machistas que apareceram em esquetes escritos por ele para o Porta dos Fundos.

UFPR se posiciona

Depois de um ano marcado por eventos desagradáveis acontecendo dentro do campus da UFPR, a instituição finalmente decidiu tomar um posicionamento claro e consciente. A univer-sidade criou o CONTE CONOSCO, um projeto contra a violência de gênero e discriminação. Nele, qualquer pessoa que se sentiu ameaçada ou foi vítima de agressão, por algum estudante, profes-sor ou funcionário, pode registrar a situação e contar com o apoio institucional, psicológico e até jurídico.

É esse tipo de ação que as universidades, escolas, empresas etc. precisam realizar para dar suporte às diferenças. O Jornal Co-municação busca, de forma humana, dar voz a essas pessoas, assim como cobrar o que lhes são de direito. Junte-se a nós.

A relação entre a comédia e a violência de gênero

O decréscimo do número de jovens filiados a partidos políticos, abordado pelo jornal Comunicação na página 3 da edição 4 de 2015 não pode ser confundido com desinteresse de jovem pela política. A participação da juventude nas manifestações populares que vêm ocorrendo no Brasil desde 2013, o apoio dos estudantes paranaens-es à paralisação dos professores no primeiro semestre deste ano e a recente ocupação das escolas em São Paulo, mostram que a juven-tude está, mais do que nunca, interada das movimentações políticas e interessada em discutir e interferir no debate. Talvez o que os da-dos do TSE mostram é que essa juventude não se sente represen-tada pelos cinco maiores partidos do país (PMDB, PT, PP, PSDB e PDT, segundo a reportagem).

Porém, como muito bem destacou um dos entrevistados da ma-téria, Arthur Wistuba, os espaços são sempre ocupados e, no Paraná, a juventude na política acaba sendo representada por sobrenomes já bastante conhecidos do eleitorado. Se jovens “comuns” não se filiam mais a partidos, ficando impossibilitados de disputar eleições, há sim, muitos jovens exercendo mandatos eletivos no Paraná, mas todos de famílias tradicionais da política. A Assembleia Legislativa é o melhor exemplo disso: Tiago Amaral, Maria Vitória, Pedro Lupion, Bernardo Carli, Evandro Junior, Requião Filho, André Bueno, Anibelli Neto, Felipe Francischini, Paulo Litro, dez herdeiros políticos repre-sentam a “juventude” paranaense no parlamento.

Frustrante

Ao ler a manchete da edição passada do Comunicação, “O im-pacto das cotas”, o leitor deve ter imaginado que encontraria, no

interior do jornal, uma ampla reportagem que mostrasse não só o número de estudantes que ingressaram na UFPR através das cotas raciais e sociais, como também uma análise de eventuais mudan-ças no perfil da instituição após os 10 anos da adoção da política de cotas pela universidade. Ao encontrar uma matéria de cerca de meia página, que ouviu apenas um aluno e um professor, limitada a essa análise numérica, a sensação foi de frustração. Como antecipa números de um relatório que anuncia que ainda seria divulgado, espera-se que, após ter acesso a todos os dados do levantamento, o Comunicação volte a abordar o tema, da maneira aprofundada que a questão merece ser discutida.

Grandes temas

Mesmo assim, a edição número 4 de 2015 volta a mostrar a im-portância de um jornal laboratório e a profundidade que este veí-culo pode ter, ao abordar, além da política de cotas e da participa-ção do jovem na política, outros grandes temas, como o preconceito na legislação sobre doação de sangue, o impacto da tecnologia na educação, o assédio moral no trabalho (problema comum na carreira do jornalista, inclusive) e a situação das presas que têm seus filhos dentro da penitenciária.

Não me representa

Tubo de ensaio

UFPR - 2015 3POLÍTICA

Passando a cidadezinha de Balsa Nova, no início da esburacada e poeirenta estrada de terra que liga o município ao assentamento do Contestado, região da Lapa, uma placa de madeira apontava a direção da “Escola Latino”. “Refazer essa placa é uma das minhas tarefas pra quando as aulas voltarem” exclamou Laís Rossato, no banco de trás. Laís estuda Tecnologia em Agroecologia na Escola Latino Ameri-cana de Agroecologia (ELAA), e foi minha super guia e assistente nessa imersão no Contestado. Sem ela, essa matéria seria uma missão muito mais difícil. Gratidão!

Chegando ao assentamento, me im-pressionei com a “Casa Grande”. Construí-da por volta de 1850 e atual sede da ELAA, foi a morada de um Barão. Também hospe-dou dom Pedro II e seu porão servia de senzala para os escravos do Barão. Pesado.

Impressionante também era o grande numero de carros estacionados. Nos despedimos da minha mãe, Clarice, que nos guiou nos 70km que separam Curitiba do assentamento (igualmente fundamental para o sucesso dessa ma-téria. Muito obrigado!). Já na chegada a animação causada pelo sol que brilhava foi abafada por uma notícia: ninguém da ELAA estava no assentamento; estavam no litoral, para uma palestra sobre gênero. Todos aqueles carros eram de assentados de Santa Catarina, que vieram para um curso de formação e lotavam os alojamen-tos. Foi um primeiro momento difícil, mas logo recebemos a notícia de que iriam nos alocar em uma casa.

Deixamos as mochilas em um canto e fomos conversar com Antonio Capitani, uma das lideranças do assentamento, onde mora desde 2000. Capitani nos con-tou sobre a história do assentamento. A ocupação das terras - que pertenciam a empresa de cerâmica INCEPA e foram de-sapropriadas devido a dívidas da transna-cional com a Previdência Social – ocorreu em 7 de fevereiro de 1999, com cerca de 60 famílias.

O processo de ocupação da terra leva

cerca de dois anos, desde a identificação das terras irregulares, passando por uma pesquisa que identifica a influência do dono das terras na política local, até a or-ganização e mobilização das famílias para a ocupação. Os critérios que legitimam a desapropriação de uma terra dizem res-peito ao cumprimento da função social da mesma, que não pode ter trabalho escravo em seus limites, precisa estar devida- mente documentada, não pode ter des-matamento e precisa ser produtiva.

Há uma relação comunitária na roça, em equilíbrio com a natureza, as ervas medicinais, a curanderia e o catolicismo popular. É um movimento que nós como paranaenses não ficamos sabendo, e que me fez sentir muito mais pertença a tudo isso.”

Subimos o vale e conseguimos uma carona até Balsa Nova, onde embarcamos para Campo Largo e depois Curitiba. Em meio ao silêncio da viagem de volta, pude refletir sobre tudo o que vivi e aprendi nessa imersão no Contestado, e começar a planejar esse texto.

Depois de conversarmos, fui até a Escola/Colégio, onde conheci Israel Gui-lherme da Silva e seus filhos gêmeos, Ga-briel e Rafael, que desfrutavam faceiros de um doce de amendoim, sem os dentes da frente. “Interessante que um perdeu o dente num dia e o outro no outro”, con-tou o pai, sorridente e de fala mansa. Os gêmeos fizeram questão de me mostrarem a horta que ajudaram a cultivar, além da horta de plantas medicinais em forma de mandala. Isso foi um ponto de formação destacado por Capitani: “A criança tem que ajudar na produção. Ver o pai e a mãe cultivando pra amanhã ela fazer. Na es-cola tem que ter uma horta onde a criança tenha seu aprendizado. Ela tem que saber que o alimento da casa dela vem da agro-indústria, que não é do presidente, mas sim da família dela, o que faz com que ela entenda a importância do Movimento e da Cooperativa.”. O trabalho das crianças gera atrito entre o MST e o Conselho Tu-telar, mas é um ponto considerado crucial e irrefutável para a formação das crianças por parte do Movimento.

Israel veio a um ano e meio de Campo Mourão para o Contestado, e vive acam-pado com a esposa Leila e os filhos no lote do irmão. Veio para a implantação da agrofloresta (programa que conta com o apoio da Petrobrás), mas antes trabalhava com construção civil. “A vida na cidade é muito dura, sofrida. Mas aqui eu durmo tranquilo por que não tenho dinheiro,

mas também não tenho com o que gastar”. Na agroecologia não conta só o que você ganha, mas o que deixa de gastar.

Tirei um retrato da família e me des-pedi, indo me encontrar com Laís. Fomos até a casa em que passaríamos a noite, caminhando na companhia da cachorra Baleia (batizada por ela em referência à cadela do romance de Graciliano Ramos).

Depois de um banho, no caminho de volta ao refeitório, nos deparamos com a bata-lha entre um sapo e um besouro guerreiro, que mesmo abocanhado diversas vezes não desistiu. Fiz uma sequencia de fotos da cena e deixamos os bichos se digladian-do. À noite, no brejo, o barulho dos sapos e rãs era muito alto, e estrelas podiam ser vistas por entre as nuvens.

No refeitório, uma grande fila se estendia para além da porta de entrada. O cheiro de churrasco no ar me abriu o apetite. Jantamos e conversamos, cada um bebericando uma lata de Brahma. Laís, vegetariana, negava todas as carnes, en-quanto eu me esbaldava. O som começava tocar um vaneirão, mas não ficamos para o baile. De volta a casa, cansados pelo dia cheio, dormimos ao som dos grilos, cigar-ras e sapos, que faziam sua sinfonia lá fora.

Tempo fechado e preguiça pela ma-nhã. Mas o dever chamava. Levantamos e servimos com carne - que sobrara da noite anterior - as cachorras Bonita e Baleia. Caminhamos de volta ao refeitório, onde o café da manhã já estava terminando de ser servido. Uma xícara de café e um pão com queijo renovaram os ânimos.

Em meio à garoa que caía, fui até o Colégio/Escola, conversar com Sandra Mara Maier, Diretora, Pedagoga e Secre-tária do Colégio Estadual do Campo Con-testado. A tripla função é lamentada por ela. “São oito pessoas que trabalham na Escola, contando com a merendeira e a funcionária da limpeza, que estamos sem. Faz um mês que estamos limpando a es-cola”.

O espaço físico da Escola/Colégio é composto por 5 salas de aula, refeitório, banheiro, sala dos professores, almoxari-fado, cozinha, saguão e “uma salinha que

A política no ContestadoA outra visão sobre o MST e a política no Movimento, em uma imersão no assentamento

Continua na página 4

UFPR - 20154 POLÍTICA

dividimos entre as duas escolas para secretaria e direção pedagógica”, e funciona durante os 3 turnos. “De manhã tem a Escola Municipal onde trabalhamos com turmas bi-seriadas, com 20 alunos em cada sala, o 4º e 5º ano juntos. De tarde tem o Colégio Estadual, de 6º a 9º ano, e ensino mé-dio à noite”.

Além do ensino relacionado à vivência das crianças e um estudo apro-fundado em lutas como as Guerras do Contestado e de Canudos – que cria nas crianças a consciência de que o MST é fruto dessas lutas anteriores - um pon-to interessante é a auto-gestão da es-cola, também feita por elas. “Temos um tempo semanal que é do núcleo seto-rial. São 6 núcleos que desenvolvem as atividades praticas na escola, englo-bando todas as dimensões”. São eles Comunicação e Cultura, Registro de Memória, Apoio ao Ensino, Embeleza-mento e Agrícola e Núcleo de Finanças, que ajuda na gestão dos recursos, con-trolando a entrada e saída de dinheiro. “Tem sempre um educador junto, mas ele é só um apoio que ajuda a orientar. A ideia é que eles façam sozinhos”

A separação das crianças em nú-cleos setoriais para a gestão da escola segue a organicidade de todo o Movi-mento. As famílias assentadas são sep-aradas em núcleos de base (compostos por cerca de 10 famílias), cada um com um homem e uma mulher eleitos coordenadores, cujos agrupamentos formam setores que irão formar as brigadas. Os dirigentes das brigadas formam a direção estadual, que elege um casal para a direção Nacional, que escolhe o casal de relações internacio-nais. É uma cadeia onde não existe car-go mais importante que o outro; uma rede em que cada elo depende do outro para funcionar.

Depois de fazer uma foto de San-dra em frente ao Colégio, me encontrei com Ernesto Puhl, da direção estadual do MST em Santa Catarina e Neomar Ribeiro, técnico da Cooptrasc (Coopera-tiva de Trabalho e Extensão Rural Terra

Viva). Os dois são assentados em Santa Catarina e estavam no Contestado para um curso de capacitação, que tem por objetivo nivelar o conhecimento dos técnicos e socializar as experiências que vem sendo realizadas.

Ernesto citou varias referências para o estudo político no Movimento, como a leitura de grandes clássicos, de Marx e Engels à Che Guevara e Florestan Fernandes, e o estudo de experiências revolucionárias socialis-tas no mundo, como a URSS, China e Cuba. “A formação no Movimento tem por objetivo instruir política e ideologicamente, para tomarmos consciência do nosso papel como classe trabalhadora para a transfor-mação social. Só a formação é que vai dar elementos teóricos, políticos e metodológicos para buscarmos saídas para a transformação social. Cuba só tem todo esse tempo de resistência ao capitalismo por que tem muita forma-ção política. Se nós enquanto Movi-mento, com 30 anos, não tivéssemos formação política, não chegaríamos nem aqui. E não poderíamos dar novos passos sem saber nosso hori-zonte, que é carregado de ideologia, política e cultura”.

Depois fomos até a casa de Se-bastião, formado na primeira turma de licenciatura de Educação do Campo, na Universidade de Brasília, em 2011. Também possui especialização em Física, Química, Biologia, Matemática e Filosofia. Assentado desde 1999 no Contestado, planta morango e diver-sas verduras. Contou triste que per-deu grande parte da produção, e toda a produção de mudas que desenvolvia, quando foi cuidar do filho que sofreu uma trombose e um AVC, em Cascavel. Lecionou de 2011 a 2014, porém esse ano não conseguiu uma vaga de profes-sor no assentamento e decidiu por não trabalhar na cidade. “Lá fora não com-pensa. É um outro modo de viver, que não condiz com o que estamos tentan-do fazer aqui”.

Um aspecto de formação políti-

ca destacado por Sebastião, além da leitura de clássicos (que lotam uma grande estante em sua casa) foi o trab-alho. “A nossa formação vem de várias atividades que temos que fazer, desde limpar a casa a levantar cedo, mas prin-cipalmente o trabalho. A gente jamais deve depender de ou-tra pessoa pra se alimentar. Você não tem que fazer com que outra pessoa tenha que trabalhar pra você. Temos essa rotina de trabalho que deve ser preservada.”

Visitamos o lote de Sebastião e nos despedimos, voltando ao refeitório onde o almoço já era servido. Macarrão, frango, arroz e feijão caíram bem. Des-cemos, pelo meio da mata, até uma cla-reira com uma cachoeira, no fundo do vale. No caminho, um grande jacu nos assustou, berrando e correndo ao nosso redor. Ao som da água da cachoeira, Laís me mostrou uma escada e alguns bancos, todos feitos 100% de materiais da natureza, fruto do trabalho dela e de seus colegas de curso. Ela falou sobre o processo de aprendizado sobre a região e a Guerra do Contestado, e do processo de identificação e pertencimento pelo qual os estudantes passam. “A gente estudou a floresta, desde quando os ín-dios aqui habitavam, e os hábitos deles. A assim como eles comíamos muito pinhão; é uma vivência muito integral, você sentir mesmo essa relação com esse solo. E depois perceber que nessa época do Contestado existia uma mo-bilização muito grande para poderem viver de forma comunitária na roça, em equilíbrio com a natureza, as ervas medicinais, a curanderia e o catoli-cismo popular. É um movimento que nós como paranaenses não ficamos sa-bendo, e que me fez sentir muito mais pertença a tudo isso.”

Subimos o vale e conseguimos uma carona até Balsa Nova, onde embarcamos para Campo Largo e depois Curitiba. Em meio ao silêncio da viagem de volta, pude refletir so-bre tudo o que vivi e aprendi nessa imersão no Contestado, e começar a planejar esse texto.

Números do assentamentoAtualmente, cerca de 150 famílias vivem nos 3.200 hectares do Contestado, que recebeu este nome em

homenagem à luta dos camponeses na Guerra do Contestado, da qual as terras do assentamento foram palco. Grande parte das famílias assentadas desenvolve produção agroecológica - que visa a produção de agricultura relacionada com a ecologia, sem utilizar agrotóxicos e respeitando os ciclos da terra.

A escolha pela agroecologia veio de uma discussão interna do Movimento sobre a necessidade de uma mu-dança na matriz de produção, química e com veneno, instituída pelo agronegócio, para uma produção orgânica e ecológica. “A nossa visão é um projeto para o futuro. Quando começamos nesse trabalho o pessoal dizia ‘Vocês são loucos, vão morrer de fome’, mas foi muito pelo contrário”, conta orgulhoso. Desde 2010 a Cooperativa de Agroindústria e Comércio Terra Livre coordena a produção e distribuição de alimentos agroecológicos dos cerca de 260 cooperadores, entre assentados e vizinhos do Contestado, que além de alimentar todas as famílias as-sentadas é distribuída para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PNAE), ambos do governo federal, que abastecem creches, escolas, hospitais e os Restaurantes Universitários da UFPR e UTFPR .

Sobre a formação política, o que ficou claro foi o foco na educação das crianças, que sempre foi uma meta do assentamento em busca de autonomia e emancipação, para além da alimentação, e um lema do Movimento: “Todos e Todas Sem Terra Estudando”. Meta alcançada com louvor; o Contestado possui sua própria estrutura de educação, desde a educação infantil, materializada pela Ciranda Infantil Curupira, passando pelo ensino fun-damental e médio, da Escola Municipal e do Colégio Estadual do Campo Contestado, ensino de jovens e adultos, até a educação superior, com a ELAA.

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Por fora, a pintura gasta, o portão aberto e a grama, que há meses não é cortada, conferem à casa ares de lugar abandonado. Por dentro, porém, o con-traste: 6 computadores um ao lado do outro, 8 pequenas câmeras instaladas no teto, muita fumaça de cigarro e homens por todos os cantos. Na parede da sala, a verdadeira pista: Goku, de Dragon Ball; Aang, de Avatar; Mew e Charizard de Pokémon, todos personagens da cul-tura nerd, ilustram o ambiente. “Deixa o mato crescer. Você vai pagar o jardineiro ou vai comprar jogos? Prioridades!”, diz Renato Melo, um dos moradores da casa.

Ali, em uma ruela estreita do bairro curitibano Campo Comprido, funciona a Domuns Stream, a primeira casa de stream de jogos do Brasil. Trocando em miúdos, é um espaço habitado exclusi-vamente por jogadores profissionais de vídeo-games. Eles transmitem suas par-tidas e outros programas relacionados a jogos ao vivo, os live streams, para qual-quer um que acesse seu canal. Atenção para não confundir com o conceito de gaming house: Gaming house é uma casa onde moram jogadores profissionais que treinam para competições. “Nós também somos jogadores profissionais, mas a gente não joga para competir e sim para entreter”, explica Renato Melo, funda-dor do blog e canal BunkerNerd. Mais do que mostrar imagens do jogo, o chamado gameplay, eles emitem comentários, de-monstram reações, além de interagirem com quem assiste à partida. É um pro-grama de entretenimento ao vivo, com direito à interatividade verdadeira que, à distância, só a internet proporciona.

Player2Player + BunkerNerd = Domus

A Domus foi concebida por Renato

Melo do BunkerNerd, Célio “Caricaz” Nunes, Rafael “Maverick” Pissetti e Rodrigo “Wuawydu” Cesar do Player-2Player, ambos blogs com conteúdo so-bre jogos. Em março de 2015, todos, ex-ceto Rafael, se mudaram para esta casa e criaram um terceiro canal chamado Domus Stream. A princípio, a Domus foi projetada para funcionar como uma es-pécie de Big Brother de gamers: durante cerca de 3 meses, as 8 câmeras instaladas na casa ficaram ligadas 24 horas por dia. O objetivo era aproximar público e gamers ao mostrar o backstage dos streams. “A ideia não funcionou principalmente pela dificuldade em monetizar, o aumento na conta de luz e a falta de feedback para o público”, comenta Célio. Assim que as câmeras foram desligadas, a Domus então firmou-se como um espaço de co-working, na qual BunkerNerd e Player-2Player dividem o teto, as despesas e as ferramentas de trabalho — porque para eles, vídeo-game não é apenas um hobby.

O financeiro

“Eu posso dizer: mãe, eu pago minhas contas com meu trabalho, mas aí eu vou ouvir: podia estar pagando

as contas e tendo mais dinheiro”, diz Célio, o primeiro do grupo a lar-

gar seu emprego formal, técnico de in-formática, para viver só de games. Sim, Renato, Célio, Rodrigo e Rafael vivem apenas de jogos. Tanto a casa como as contas pessoais de cada um são pagas com dinheiro resultante de dois únicos

meios: o Twitch e o Paypal. O Twitch é uma plataforma semelhante ao You-tube, mas permite cobrar mensalidade de cada pessoa que se inscreve no ca-nal, além de permitir o live stream - jo-gos compartilhados ao vivo. O custo

da mensalidade é de 4,99 dólares: metade fica para a plataforma, metade para os donos dos canais. A inscrição é op-cional, mas o público pagante, os chama-dos subscribers, tem vantagens. Já o que vem do Paypal é dinheiro de doação. “A comunidade não deixa a casa cair”, co-menta Renato — e não deixa mesmo. A Domus só existe porque seu público paga. Não há patrocínio, não há publici-dade, tudo é orgânico e colaborativo. Esta realidade já foi retratada em números: mesmo em tempos de crise, o mercado brasileiro de jogos cresceu 30% este ano.

A rotina

Tal como a grama alta, o portão aberto tem razão de ser: sempre há quem chegue ou saia da Domus. O lugar não para por um segundo. Entre mo-radores fixos e muitos visitantes, nor-malmente amigos ou subscribers de confiança, a casa está sempre cheia. É preciso revezar na hora de dormir, pois não há camas para todos. “Para mim, hoje ainda é ontem” — de fato, os olhos

de Rodrigo estavam um pouco inchados.O BunkerNerd e o Player2Player

tentam passar o maior tempo possível online: são cerca de 18 horas diárias de programação ao vivo. No geral

al eles cumprem escalas para não pesar muito para ninguém, mas há (muitas) exceções. “Ontem a minha live durou 14 horas”, bocejou Renato. Ele passou o último Natal e a última virada do ano fazendo uma live — e havia pú-blico, garante. Desde a abertura da Do-mus, houve apenas uma semana sem streams, por pura necessidade: eles es-tavam montando um estúdio no evento Mega Gamer. A programação intensa dos canais faz com que fatores da vida quotidiana, como limpeza e alimenta-ção, fiquem totalmente em segundo plano — as caixas de pizza e as teias de aranha no abajur da sala podem compro-var. A rotina, portanto, é não ter rotina.

Curitiba tem a primeira streaming house do Brasil

A Domus Stream funciona como casa e escritório para quatro amigos cujo trabalho é o sonho de muita gente: jogar vídeo-game.

CIÊNCIA E TECNOLOGIADiversãoUFPR - 2015 5

Decoração na parede revela o espírito da casa.Crédito: Reprodução Domus/Sream

Da esquerda para a direita, Wuawydu, Caricaz e Renato Melo, moradores da Domus Stream. (Fotos: Monique Portela)

“Eu posso dizer: mãe, eu pago

minhas contas com meu trabalho, mas

aí eu vou ouvir: podia estar pagando as

contas e tendo mais dinheiro”

Mesmo em tempos de crise,

o mercado brasileiro de

jogos cresceu 30% este ano.

Jogo de adulto

Eu ouço zumbidos e bombas. Eu ouço gritos e gritos de crianças, eu ouço gritos, zumbidos e bombas em crianças. Eu ouço até lágrimas. Eu as ouço e dói. Eu ouço gritos e bombas e zumbidos e lágri-mas entre crianças. Cochichos, murmú-rios. Eu ouço um sotaque que se dissipa, um grito que se perde. Eu ouço a falácia dos jornais e ouço as vozes de facebook. Eu ouço zumbidos. Eu os guardo para mim. Eu ouço. Mas não falo.

O quão pretensioso seria deduzir? Eu sempre fui tímida. Não enquanto re-pórter, mas lidar com pessoas habituadas ao ambiente e chegar como uma intrusa, numa escola nova, por exemplo, nunca foi fácil.

O que significa pertencer? Nos-sa permanência é sempre etérea? Não aprendemos a viver fora do habitat, isso vem com a prática. No meu caso, o segun-do semestre na escola nova já tornava o território meu. Ai de quem chegasse!

Como lidamos com mudanças? Sempre cogitei um mundo fora daqui. In natura, Brasil, Paraná, Curitiba. Mas o mundo dos turistas traz consigo uma perspectiva: o retorno. Quando não se é turista, mas também não se é nativo, o que resta? Você não está se escondendo, mas tem medo de mostrar a cara.

O planeta não deveria pertencer a todos? Dizem que no Brasil todas as na-cionalidades são brasileiras. Mas o san-gue híbrido não impede o preconceito. Infelizmente.

O que entendemos sobre identida-de? “I am a musician and I play alaúde”, palavras de Louis Loving, sírio que vive no Brasil há seis meses – em Curitiba há um, com um inglês carregado de sotaque árabe e uma simpatia de quem está che-gando na escola nova. Sem a aura turísti-ca da perspectiva de voltar.

Louis é músico e veio ao Brasil inves-tir na carreira dos acordes. Ele é também engenheiro elétrico, mas enquanto não conseguir um A em Língua Portuguesa, não pode validar o diploma em terras tupiniquins. Muito diferente do árabe, o português ainda é uma barreira, mas ele tem se esforçado. Até seu nome soa dife-rente pronunciado na nossa língua.

A rotina de Louis no Brasil se resu-me à música e ao aprendizado do idioma. Morou primeiro em Minas Gerais, até que um amigo comentou de Curitiba, província da qual nunca teria ouvido falar em outras condições. Louis mantém con-tato com a família na Síria – sorri daquele jeitinho, sem mostrar os dentes, com a maior sinceridade do mundo, quando se lembra dos familiares -, mas não tem pre-tensões de retornar à terra natal.

Divide apartamento com um amigo, que está de mudança para outro estado. Pensou em ir para São Paulo, a grande ci-dade, a cidade que não dorme. Mas Curi-tiba agrada. Agora ele procura outra mo-radia, definitiva talvez, aqui mesmo entre os pinhões.

O mundo tem enfrentado uma ca-lamidade com a crise dos refugiados da Síria. Cerca de 2070 sírios vieram para o Brasil desde que a guerra civil iniciou por lá, em 2011. Os números da guerra entristecem: estima-se até agora, 70 mil mortos e 1 milhão de refugiados.

A Primavera Árabe abriu os olhos de outros países para a Síria, que guerreia contra o governo pela saída de Bashar Al-Assad do poder. Ações violentas, ima-gens chocantes: a tristeza de uma guerra que chegou às vias de fato e que não tem

previsão de acabar. Louis é gentil. Se oferece para co-

zinhar comida árabe – “você conhece hommus?”, explico que o que entendo da culinária de lá, por enquanto, é o que uma ou outra rede de fast-food trouxe para o Brasil. Louis tem interesse em fazer amigos e conhecer outros músicos no Brasil, criar raízes, viver em paz. Mas o que entendemos sobre identidade?

Questiono sobre a guerra. Soa frio, direto, cruel. Louis enrijece. “Eu não quero falar sobre isso. Todo mundo sabe o quanto é triste”, sentencia. Sabemos sim, Louis. O quão pretensioso seria de-duzir? Desejo-lhe sorte com o alaúde.

O silêncio muitas vezes é a palavra. É o texto inteiro. O que significa perten-cer? Nossa permanência é sempre eté-rea? Dói e eu tento imaginar o que Louis pode ou não ter passado na caminhada da Síria até o Brasil. Ele sorri sempre e se esforça com o idioma, é solícito, bem disposto.

Como lidamos com mudanças? Louis lida todos os dias com costumes, gestos, palavras, símbolos novos. Bem disse como a cultura brasileira se difere da síria. Você não é turista e não é nati-vo. O que resta é aprender.

Cada experiência é única – o som, o gosto, a fuga. Pensamos em acolher. Acolhemos. Iremos continuar acolhen-do. Toda predestinação é risível, mas às vezes é melhor crer que “maktub” (esta-va escrito). Diferente de karma. Mas o acaso nem sempre protege as distrações, e aí temos que recorrer aos credos.

O mundo não deveria pertencer a todos? Eu gostaria de poder abraçar cada pessoa e renegar a timidez tola de chegar numa escola nova, como Louis tem fei-to. Em terras brazucas, acolhemos a to-dos. Queremos ouvir o som do alaúde se mesclar com o cavaquinho. Já não preci-samos agredir ninguém com questiona-mentos sobre tudo que a guerra pode ou não ter causado. Me abstenho à preten-são de deduzir. Seja bem-vindo, Louis.

SOCIEDADE

PertencimentoUFPR - 20156

O desconhecido que assusta, mas acolhe. O que diz o silêncio sobre pertencer?

Perfil

Espalhados pelo país, eles expõem seu trabalho na rua. Arame, barbante, couro, pedras, sementes e penas que os artesãos de rua transformam em brincos, anéis, pulseiras, colares ou artigos de decoração. Eles convidam os passantes a pararem um instante para que vejam as peças. São donos de um estilo de vida alternativo: tiram seu sustento de trabalhos artísticos e defendem a fuga do capitalismo e a vida à margem da sociedade. São traduzidos pelo gosto em viajar e falta de residência fixa. São nômades que em uma constante busca pelo contato com a natureza.

Os artesãos de rua são, muitas vezes, chamados de hippies, mas rejeitam o termo. Beatriz, curitibana de 19 anos que vende sua arte no calçadão da Rua XV de Novembro, explica. “Hippie foi um movimento muito forte nos anos 1960, lutavam por muitas causas. Ainda levantamos a bandeira da liberdade, da paz e do amor e da igualdade, mas hoje é diferente. Nos chamamos de malucos, para poder nos reconhecermos. Mas não precisa de títulos, chega aí e per-gunta meu nome”.

Beatriz estudava, trabalhava e pensava em fazer faculdade de história. Entretanto, não se encaixava em um estilo de vida tradi-cional. “A sociedade diz que, para você ser alguém, tem que estudar e trabalhar. Dis-seram que eu teria que parar um ano da minha vida para estudar para o vestibular. Até quando vou ficar parando minha vida para fazer algo pelo sistema?” questiona. O ritmo acelerado do mundo também incomo-dava a artista. “No sistema, as pessoas estão sempre com pressa, sempre buscando algo. Mas não existe nada a alcançar, temos que aproveitar o que temos agora”, avalia.

Apesar de viver à margem do sistema, ela sabe que não tem como fugir dele: está fazendo autoescola e, grávida de três meses, enfrenta filas em posto de saúde para garan-tir a saúde do bebê. Beatriz se preocupa com o futuro do filho, mas tem confiança de que vai conseguir criá-lo de uma forma alterna-tiva, em contato com a natureza e liberdade.

Malucos de BR

Os Malucos, Malucos de Estrada ou Malucos de BR tem um modo de vida, uma estética e uma ideologia de liberdade que os aproxima, mas se engana quem acha que são todos iguais. Como eles mesmos pontuam, as visões de mundo são bastaste variadas. “Você pode fazer várias entrevistas, cole-tar vários depoimentos para tentar chegar a uma conclusão, mas não vai conseguir. Porque ninguém é igual a ninguém”, filosofa Caverna, enquanto expõe seu trabalho na praça Eufrásio Corrêa.

Caverna, que oficialmente se chama Jefferson, tem 46 anos, 20 deles vivendo do artesanato. Sua carreira profissional é vasta, com registro em carteira ou informalmente, mas a arte que faz lhe proporciona mais do que uma renda fixa poderia dar. “Tem que correr, no final do mês não tem nada garan-tido. Mas tem a liberdade, que também é riqueza”, afirma.

Quanto à alcunha de Caverna, ele con-ta que o nome lhe foi dado “pela natureza”

há um ano e meio e que o significado ainda não é certo para ele. “Quando falo caverna, as pessoas pensam em algo escuro, ou da Idade da Pedra, mas o significado do meu nome remete à valores primitivos de con-vívio com a natureza”, explica.

“Meu nome de estrada é Alienígena”, conta o jovem de 28 anos que vende suas peças ao lado de Caverna. Alienígena é ser-gipano, mas veio de uma família de viajantes e, desde que nasceu nunca teve parada. Já viajou por várias regiões do Brasil, da Améri-ca do Sul e da Europa. O pai também era artesão e lhe ensinou o que sabia do ofício. Seus quatro irmãos também estão viajando pelo país.

Alienígena está há um mês em Curi-tiba. Estava hospedado na casa de um tio, mas agora está morando em uma pensão, onde vai ficar até decidir pôr o pé na estrada de novo. “Pra mim, é uma vida comum. Não consigo achar comum a vida de alguém que trabalha com carteira assinada”.

“É uma corrente de energia”

É assim que Beatriz explica o calçadão da XV de Novembro. “Tem a galera do arte-sanato, os ambulantes, os vendedores de al-fajor, os moradores de rua, os hare krishna. Nos conhecemos e cada um tem seu espaço, não tem disputa”, esclarece. Por conhecer as pessoas que também ficam na XV de Novembro, ela se sente segura ali, mesmo quando está sem seu companheiro.

A solidariedade entre eles é visível nos detalhes. Enquanto Caverna era entrevis-tado, dois clientes se aproximaram de seu pano. Alienígena atendeu os clientes, fez a venda e não aceitou a comissão que Caverna quis lhe dar. “Depois eu pago uma cerveja pra ele”, confidenciou Caverna.

Fiscalização da arte

Só recentemente a atividade dos artesãos de rua foi legalizada em todo o país. A lei federal n° 13.180/2015, conhecida como Lei do Artesão, sancionada em 24 de outubro deste ano, tem o objetivo de “valori-zar a identidade e cultura nacional”. Além de liberar a exposição da arte nas ruas brasilei-ras, a lei regulamenta a atividade, cadast-rando os artistas na Carteira Nacional do Artesão, desde que sejam respeitados alguns critérios, como o espaço que o pano ocupa.

De acordo com a lei municipal n°14.000, de 2012, que regulamenta as feiras de arte-sanato de Curitiba, “atividade artesanal é a atividade de cunho cultural e econômico de transformação de matéria-prima em produto acabado”. Apesar de a Prefeitura reconhecer o caráter cultural do artesanato e a importância econômica para quem o produz, os artesãos de rua contam que já tiveram problemas com a fiscalização. Nessas situações, eles cuidam um do outro, avisando a chegada da fiscaliza-ção ou ajudando a recolher os trabalhos. Hoje, com as mudanças na legislação, os conflitos com fiscais diminuíram.

“Se eu parar hoje, amanhã consigo um emprego, talvez até com carteira assinada”, garante Caverna, confiante nas suas habili-dades e experiências profissionais. “Mas é na arte que eu encontro minha felicidade e meu sustento. Desenvolvendo minha arte eu de-senvolvo meu interior”, reflete.

A praça Eufrásio Correia, em frente ao Shopping Estação – marco histórico de Curitiba, abriga um grupo de pessoas que vivencia a rotina urbana de maneira dife-rente. Os curitibanos que transitam pelo local notam o estilo alternativo das suas roupas, assim como a maneira tranquila de comercializar o seu artesanato. São os neohippies que tem ganhado espaço no centro da capital paranaense.

Com cabelo na altura da cintura, pre-so por dreads, Deni passa as suas manhãs sentado na praça, expondo seus artigos místicos para venda. Enquanto trançava uma pulseira, o garoto de 24 anos contou ao Jornal Comunicação como descobriu a cultura hippie e revelou a sua perspectiva sobre a vida em uma metrópole.

Nova ideologia

O movimento hippie que se es-palhou pelo mundo na década de 1960 seguia um comportamento de contra-cultura. Baseados no princípio da “não--violência”, os integrantes costumavam viver em comunidades, lutando por cau-sas ambientais, emancipação sexual e o desapego de bens materiais. Deni (foto) conta que a filosofia, agora, é mais sim-ples: “A cultura hippie é bem democrática. Defende que podemos ser quem quiser-mos”.

O contato inicial do jovem com essa ideologia libertadora aconteceu em uma conversa com um vendedor de pulseiras da rua XV de Novembro. Interessado pelo trabalho artesanal, ele procurou conhecer mais sobre o estilo de vida e tornou-se aprendiz do homem que trabalhava na XV. “Ele me ensinou e disse que eu preci-

sava seguir em frente sozinho. Falou que eu tinha aprendido a andar, o resto era por minha conta”, descreve com a grati-dão estampada no rosto. Para ele, a maior lição para a geração hippie atual é o “valor do que se pensa e a forma que se guia a própria vida”.

Lila, 25, integrante do grupo es-palhado pela Rua das Flores, também ressalta esse caráter individualista: “As pessoas nascem, crescem e vivem atrás de objetivos que não são delas, mas sim impostos pela sociedade. Os hippies têm uma filosofia diferente, de liberdade e crescimento pessoal”. Lila afirma que o que une o grupo, hoje em dia, é a cultura única e forte. “A gente se reúne para ven-der nossos itens, não mais para lutar por causas”, conta.

Curitiba conta com uma feira hippie famosa, a Feirinha do Largo da Ordem. Sempre aos domingos, o evento reúne mais de 15 mil participantes por edição.

Dinâmica urbana

Uma característica associada aos hippies é a busca pelo anarquismo em comunidades igualitárias. Fica a dúvida de como esse grupo enxerga a experiên-cia urbana em Curitiba. Deni responde afirmando que “aqui as pessoas se res-peitam. O problema é que não prestam atenção umas às outras e não se ajudam”. Para Lila, a falha é a falta de conexão com o espaço: “Os curitibanos não têm o há-bito de parar e viver a cidade, as ruas e os parques. Elas passam apressadas por nós, apenas pensando em seus compro-missos”. Em contraponto, ela afirma que a cultura hippie está em alta entre os jo-vens. “Eles se interessam pelos nossos ar-tigos, eles curtem a nossa moda. Eles nos

valorizam”, conclui.

Hippies vs Malucos

Deni revela ainda que, dentro do grupo, há certa discriminação por parte de alguns membros. Segundo ele, há quem faça uma distinção dos integrantes entre hippies e malucos. “É uma arrogância, por parte deles, querer separar a gente. Eu, por exemplo, me considero hippie. Mas aí vem gente dizendo que sou maluco. O que importa é o que eu quero ser”, desabafa. Ele explica que hippies são aqueles que vivem a ideologia “paz e amor”, enquanto os malucos são as pessoas que não fazem nada da vida. Para Lila, essa diferenciação não afeta as relações dentro da comunida-de: “Ninguém é privado de viver por causa de uma nomenclatura usual”.

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Cultura urbana

Malucos por liberdade O estilo de vida alternativo traz heranças da contracultura dos anos 60, mas não os chame de hippies. Os Malucos querem pôr o pé na estrada e viver da arte que produzem.

“Chega mais, dá uma olhada. Fica a vontade, pode pegar na mão pra sentir a energia da arte”. (Foto: Douglas Maia)

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CULTURA UFPR - 20158

“Eu não acho muito legal falar de mim mesmo. Você pode perguntar pra outra pessoa” dispara o artista de rua mais famoso de Curitiba quando perguntado sobre sua importância para a música local. Mas logo comple-ta: “Eu vivo o que eu faço. Essa é uma semente que está sendo plantada. A importância dela vai ser absorvida com o tempo”. Enquanto isso, Plá continua incansável com seus quase 60 CDs gravados e 13 livros lançados, sempre de forma independente.

Engana-se quem o vê como um “maluco beleza”. Sem respostas va-gas, ele fala com a lucidez de quem vive a ideologia que canta. “Meu es-tilo de vida nasceu naturalmente, de uma necessidade minha”, esclarece. Plá optou por sua própria forma de exercer sua espiritualidade e por bus-

car o autoconhecimento na arte. “Eu me sinto bem comigo mesmo. Me sin-to bem fazendo o que faço. Não acho que eu tenha abdicado de muita coi-sa, é apenas uma escolha por algo que me preenche melhor”.

Plá narra sua trajetória com a voz agitada de um garoto, enquanto pinta pergaminhos no estúdio de arte nos fundos de sua casa. A “Suíte Campes-tre”, como ele batizou, foi erguida com as próprias mãos e a ajuda de al-guns poucos amigos, usando madeira descartada na rua. Aquecendo os pés numa fogueira em sua suíte, o músi-co lembra de seus primeiros acordes. “Quando eu era bem moleque, meu pai fazia um fogo de chão como esse e ficava tocando violão. Eu observava e logo aprendi o que ele sabia”, conta.

Em 1976, o interior ficou peque-no demais para o garoto que queria “estudar, conhecer a vida, conhecer o mundo”. O dom para as artes, des-coberto com o pai, facilitou a escolha do destino. Na Faculdade de Artes

do Paraná, ele se formou em música. “Depois fiz um ano de musicoterapia e enjoei mesmo de ir pra escola. Guar-dei o diploma e fui pra rua”, diz com um sorriso. “Fui mostrar minha arte para as pessoas. Foi uma ideia bem positiva e não parei mais”.

Os 900 e tantos anos

“Quem levanta cedo vê que o Sol raiou/ segue sem medo, o dia come-çou/Banho gelado pra ativar a circu-lação/ Pra esquentar o corpo eu tomo chimarrão/ Pego a bike, ela é a minha condução/ Pode estar frio, calor ou dando trovão / Não tenho luxo, mas consigo viver bem/ Pela estrada vou seguindo com meu bem” canta Plá em uma de suas novas composições. Segundo ele, é a música que melhor o define.

O músico diz viver uma “vida in-tensiva”. “Vivo um mês como se fos-se um ano. Não tem aquele lance de ficar ali marcando bobeira. Tenho uma grande vivência espiritual”, explica. Perguntado sobre a idade, brinca: “Ah, já passei de 900 anos”. Apesar disso, ele não acredita em rotina. “Eu sinto em cada dia o que deve ser feito. Geralmente levanto de madrugada, tomo um chimarrão, faço meditação, leio algu-ma coisa, organizo al-gum material de arte. Lá pelas 10h30 eu pego a bike e vou pra XV”.

E foi na Rua XV de Novembro, mais precisamente na Boca Maldi-ta, que Ademir Antunes dos Santos tornou-se Plá. O pseudônimo não é apenas um apelido, muito menos um personagem. “Eu costumo dizer que é um nome espiritual, um nome que designa toda uma trajetória, uma ex-periência”.

O primeiro poema assinado por Ademir como Plá dizia: “O sistema quer que você dependa dele e seja contra o teu vizinho. E você entra nessa direitinho e acha que não tem outro jeito. Mas tem”. A mudança de nome marcou a busca por esse outro jeito. “O Ademir quase nem aparece mais. O Plá tomou a frente com uma atitude e uma postura diferenciada do comum”.

O hospício

“Eu vejo a rua XV como um palco, ali rola de tudo. É um lugar muito es-pecial para desenvolver arte”, obser-va Plá. Em um disco inteiramente de-dicado ao tema loucura, ele descreve seu local de trabalho: “O pátio do hos-pício é a boca maldita, onde os loucos vão tomar sol, ou não”. Aos olhos dele, a cidade é um grande hospício. A reflexão sobre a loucura surgiu do encontro com um hospício real.

“Quando eu fazia musicoterapia na FAP, comecei um estágio no hospital Nossa Senhora da Luz. Lá eles internam as pessoas e enchem de droga, de química. Eu vi que a situação das pessoas lá dentro já era muito crítica e que o trabalho com musicoterapia teria um resultado muito lento”, explica. Aler-tar as multidões dos

perigos da vida “normal” se tornou sua filosofia. “É um trabalho de pre-venção para que as pessoas não che-guem ao ponto de precisar ir para um hospício”.

“Parem os carros”

Presença certa na Bicicletada de Curitiba desde 2005, Plá se alegra com o crescimento do cicloativismo

na cidade e se inspirou nessa mo-bilização para compor três álbuns dedicados às bikes. Os três volumes de Biciclopédia são a trilha sonora dos encontros ciclísticos na Reitoria da UFPR, toda última sexta-feira do mês. “Eu pedalo desde garoto e fiquei tão contente com esse movimento da bicicleta, que eu compus ‘A invasão das bicicletas’”. O vídeo em que Plá canta o refrão “Parem os carros, dimi-nuam os carros, queremos pedalar” foi para a internet e logo chegou a outras Bicicletadas pelo país. “Depois disso me convidaram para participar da Bicicletada em São Paulo. Hoje eu participo também no Rio de Janeiro e Porto Alegre, vou seguindo o movi-mento da bicicleta”.

Visto quase sempre na companhia de sua inseparável bike, o músico en-controu em sua experiência diária como ciclista uma bandeira de luta. “É útil para a economia, para fazer um exercício, para se transportar. E a maioria das pessoas não percebe o grande valor de pedalar”, lamenta. “Eu pensei em compor para incenti-var a galera a comprar uma bicicleta e pedalar. É algo que acabou me dando um sentido a mais na minha trajetó-ria”.

“Estou bem no meio”

A comparação com Raul Seixas pode ser muito tentadora. A barba e o timbre de voz lembram muito o re-volucionário roqueiro baiano. Plá re-conhece, sem hesitar, que Raul foi o artista que mais o inspirou desde sua adolescência, mas não gosta da com-paração. “As pessoas procuram asso-ciar muito. Orra, acho até careta isso aí”, comenta. Plá não é um novo Raul, tampouco se sente um poeta margi-nal. “Como eu poderia ser um poeta marginal seu eu tô no meio? Estou justamente na Boca Maldita. No meio da capital. Por que vou me considerar à margem?”.

Arte independente

CULTURAUFPR - 2015 9

“Como eu poderia ser um poeta marginal se eu tô no meio?

Estou justamente na Boca Maldita. No meio da capital. Por que vou

me considerar à margem?”

Reportagem e Edição: Ana Clara Tonocchi

ENSAIO FOTOGRÁFICOViolência UFPR - 201510

Nos pormenores da

ENSAIO FOTOGRÁFICOUFPR - 2015 11

Biblioteca PúblicaA Biblioteca Pública do Paraná (BPP) foi criada em 1857 e está desde 1954 no endereço que conhecemos, na Cândido Lopes. O prédio, tombado pelo Patrimônio Cultural, reúne diversas salas e setores, compor-

tando um acervo de cerca de 600 mil volumes, entre livros, periódicos, fotografias e materiais multimídia.Dentre os trabalhos oferecidos, há atendimento à escolas, crianças, deficientes visuais e uma programação cultural que atrai públicos de diversas idades. Essa galeria procura explorar os ambientes e as utilidades da

Biblioteca para seus diversos públicos.

ESPORTE UFPR - 201512

O professor Kaveira, do Grupo Senzala de Capoeira, cedeu entre-vista ao Jornal Comunicação, mesmo na correria do dia a dia para ir ao tra-balho. Ele falou sobre a adesão dos curitibanos à prática de raízes afri-canas, as influências da Capoeira no Brasil, as diferentes formas de jogo e principalmente como a cultura dos povos afro-brasileiros é preservada por quem pratica esse jogo.

Jornal Comunicação: Como come-çou o esporte no Paraná?A gente considera o pioneiro o mestre Sergipe, porque ele fincou o pé aqui em 1972 e está até hoje. Ele é da ve-lha guarda, ainda dá algumas aulas e faz palestras. No ano seguinte veio o mestre Burguês e os dois começaram.

JC: Quais os estilos de capoeira que existem?Antigamente, em uma divisão nos anos 30, a capoeira era classificada em duas vertentes: Mestre Bimba criou a capoeira regional baiana e o Mestre Pastinha, que praticava o mé-todo pré-Bimba, passou a chamá–la de capoeira de Angola. Hoje em dia, além dessas, temos a contemporânea, que usa elementos das duas anteri-

ores, mas a batida é diferente, e a de Senzala, criada na década de 60 no Rio de Janeiro, em que o jogo é mais em pé e com mais instrumentos. Em todos quem comanda as ações é o

ritmo do berimbau.

JC: Há um grande interesse dos curitibanos em praticar a Capoei-ra?Tem tido bastante interesse. No livro Curitiba Entra na Roda, do Miguel Nowicz, foram encontradas cerca de 60 escolas de Capoeira na cidade. Considerando que cada grupo tem em média um mestre, dois professores e dez alunos, é muita gente. Depois que a prática foi reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade, nós estamos desenvolvendo a ativi-dade em escolas públicas e particula-res, o que aumenta o número de pra-ticantes. Hoje a Capoeira não é vista como coisa de vagabundo, mas uma

forma de saúde e bem-estar.

JC: O poder público incentiva a prática?O governo colocou a Capoeira nas es-colas graças à intenção de que as cri-anças aprendam mais sobre a África durante o ensino. Mas acontece que apenas os instrumentos vieram de lá, a Capoeira em si é brasileira, eles não reconhecem isso. Outro problema é que para os capoeiristas darem aula é exigido um diploma acadêmico em Educação Física, não importando a nossa formação feita dentro dos nossos grupos. Os mais jovens estão correndo atrás do ensino superior, mas os mestres experientes na área, para ensinarem nos colégios, fazem de graça ou ganhando metade do sa-lário de um professor de outra dis-ciplina.

JC: Explica um pouquinho de como a Capoeira faz parte da cultura do nosso povo.Ela é uma parte da nossa cultura, assim como o Samba de Roda, a Ci-randa, o Fandango e tantos outros. A Capoeira tem a importância de agregar a puxada de rede e o arrastão, práticas da pesca que os negros que moravam no litoral faziam quando foram “libertos” da escravidão. Dan-ças dos nossos ancestrais como Ma-culelê e Jongo também são lembradas na Capoeira.

Jogo criado por filhos e netos de escravos africanos no Brasil é referência como prática cultural. Capoeira é considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade e tem cerca de 60 grupos de praticantes na capital.

Em novembro, o Brasil comemora do dia da Consciência Negra. Es-palhados pelo país, grupos negros fazem palestras, rodas de conversas e aproveitam o feriado do dia 20 para chamar a atenção para a contribuição cultural da capoeira e da cultura afro. Curitiba, no caminho inverso de muitas capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, não celebra a data em forma de feriado. No Paraná, só duas cidades instituíram folga no dia 20 de novembro: Guarapuava e Londrina.

Herança

Capoeira mantémvivas as raízesafrobrasileirase ganha adeptosem Curitiba