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Edição de Irene Fialho Mário Vieira de Carvalho José Brandão

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Edição deIrene Fialho

Mário Vieira de CarvalhoJosé Brandão

Índice

Nota prévia 9

«A Morte do Diabo» e as «Visões» de Carlos FradiqueMendes. Criações coletivas no Cenáculo (Irene Fialho) 11

Visões de Carlos Fradique Mendes 41

A Morte do Diabo no contexto da culturamúsico-teatral em Lisboa e do discurso críticode Eça de Queirós (Mário Vieira de Carvalho) 51

A Morte do Diabo. Libreto. De Eça de Queiróse Batalha Reis 87Transcrição e edição do ms A.M. 209 por Irene Fialho 89

Música de Augusto Machado (Edição crítica da partitura

por José Brandão com a colaboração de Dinis Duarte Silva) 105Notas à edição da partitura 107A Morte do Diabo, particella (ms AM-209, ff.1-27) 109A Morte do Diabo, fragmento orquestral

(ms AM-209, ff.31-38) 117O Sol da Navarra, 3.o Ato, Cena 1, N.o 21, partitura

orquestral (ms AM-218, ff.12-26) 118

Glossário 179

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES

CRIAÇÕES COLETIVAS NO CENÁCULO

Irene Fialho

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas.1

No primeiro capítulo de «Memórias e Notas», parte biográ-fica d’A correspondência de Fradique Mendes, o narrador relata, como tendo -a experimentado, a vivência da juventude literata lisboeta no final dos anos 1860 e alude às influências artísti-cas que a dominavam. Abominando e combatendo o «Lirismo íntimo», «enclausurado nas duas polegadas de coração»2, a sua admiração inclinava -se para aqueles poetas «que, seguindo o Mestre sem -igual da Légende des Siècles, iam, numa universal simpatia, buscar motivos emocionais fora das limitadas palpita-ções do coração.»3

Nessa busca pela novidade, o anónimo relator diz como encontrou, no acaso de uma tarde no Café Martinho, um jor-nal amarrotado – A Revolução de Setembro – onde a assinatura «C. Fra dique Mendes» autorizava poemas sob o título global Lapidárias, cujos «temas emocionais» iam ao encontro da estética desejada por ele e pelos seus parceiros de geração. Eram esses temas a morte de um Santo solitário, a narrativa das aventuras de

1 Eça de Queirós. Contos I. Edição Crítica de Marie -Hélène Piwnick. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 81.2 Eça de Queirós. A correspondência de Fradique Mendes. 5.ª ed. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão, 1919, p. 6.3 Idem, ibidem.

A MORTE DO DIABO14

um corvo, a gesta de Persival na busca do Santo Graal; mais do que estes assuntos, porém, destacava -se aquele poema em que «um Satanás de feitio germânico […] dava numa viela de cidade medieval uma serenada irónica aos astros, ‘‘gotas de luz no frio ar geladas…”»4 e um outro, as «Velhinhas», «sentadas sobre um banco de pedra, num longo silêncio de saudade, a uma réstia de sol de Outono.»5

Segundo A Correspondência de Fradique Mendes, os poemas fictícios teriam sido publicados em 1867, mas poemas verdadei-ros houve, também eles surgidos n’ A Revolução de Setembro em 18696 e que puderam ser lidos pelos contemporâneos de Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis, criadores da personagem Carlos Fradique Mendes e da sua ficcionada obra literária. Entre esses poemas de 1869 contam -se «A velhinha» e uma «Serenata de Satã às estrelas», essas «Gotas de luz, no frio ar nevadas» que vol-tariam a ser referidas, anos mais tarde, nas «Memórias e Notas». Fariam parte de um livro a ser publicado por Fradique, neste caso intitulado A Guitarra de Satã. A introdução ao folhetim poético, não assinada, informava os leitores do jornal acerca do «subjeti-

vismo artístico»7 das composições, inspiradas pelo conhecimento pessoal que o seu suposto autor teria dos poetas satânicos fran-ceses Carlos Baudelaire, Leconte de Lisle e Beauvile.

Os leitores coevos podiam encontrar nas páginas de um outro periódico – A Gazeta de Portugal – títulos muito próximos daque-les atribuídos a Fradique Mendes: eram a repetição em prosa dos temas emocionais e das influências literárias francesas, encabeçan-do textos assinados por Eça de Queirós. Essas influências seriam confirmadas, anos mais tarde, nas páginas d’ A Correspondência de

Fradique Mendes como descoberta fantástica de estética moderna por parte do narrador e dos seus amigos: o encontro com a poesia

4 Idem, p. 7.5 Idem, ibidem.6 V. A Revolução de Setembro. A. 30, n.º 8167, 20 Ago. 1869, pp. [1] -2.7 Idem, p. [1].

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES 15

de Baudelaire e Leconte de Lisle fora para eles «um deslumbra-mento e um amor!»8

No livro, a «Serenata de Satã aos astros» seria, como se disse, um dos poemas do volume por publicar intitulado Lapidárias, «versos com que se orgulharia Leconte de Lisle.»9 Fradique

não considerava assináveis esses pedaços de prosa rimada, que

decalcara, havia quinze anos, na idade em que se imita, sobre

versos de Leconte de Lisle, durante um Verão de trabalho e de

fé, numa trapeira de Luxemburgo, julgando -se a cada rima um

inovador genial…10

O autor francês dera à estampa, em 1862, um livro de Poèmes

Barbares. Nele cantava em verso a Tristeza do Diabo: um Satanás silencioso olhava o abismo negro, escutava, nos Hossanas e nos Te Deum servis entoados na Terra, o «lugubre concert du mal universel, / aussi vieux que le monde et que la race humaine»11. Satã lamentava a sua Eternidade, os dias monótonos que nela se sucediam numa sonolência que o envolvia para todo o sempre.

Em Portugal, o jovem Eça de Queirós publicava, ainda na Gazeta de Portugal, textos que, segundo Batalha Reis, eram in-fluenciados pelo «maravilhoso popular germânico» e por Henri Heine, crónicas em que abades vendiam a alma ao Diabo, useiro em escrever missivas a monjas. Instado pelo amigo, anos mais tarde, a reunir esses folhetins em volume, Eça dizia: «Talvez se deva republicar isso em livro […]. Mas sob o título crítico e se-vero de Prosas Bárbaras.»12 O título que, de facto, foi atribuído postumamente a um volume contendo a produção juvenil do

8 Eça de Queirós. A Correspondência de Fradique Mendes, p. 8.9 Idem, p. 22.10 Idem, p. 30.11 V. Leconte de Lisle. «La tristesse du diable» in Poèmes Barbares. Paris: Lemerre, 1862, pp. [295] -297.12 Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis. Cartas e recordações do seu convívio. Porto: Lello & Irmão, 1966, p. 131.

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escritor, remete desde logo para os Poèmes Barbares de Leconte de Lisle. Pela mesma época, na tertúlia do Cenáculo13, em casa de Jaime Batalha Reis na Travessa do Guarda -Mor, um coro de Demónios entoava as misérias causadas pelo cansaço e pelo tédio da Eternidade do Inferno: não se tratava agora da tristeza de Satã, mas de uma divertida melodia de opereta, que compunham coletivamente: A Morte do Diabo, título que remetia, uma vez mais, para o poema de Leconte de Lisle. Na última estrofe de «La tristesse du Diable», a Criação, a Obra dos Seis Dias tinha um final anunciado, no momento em que se proclamasse através do Universo a frase «Satan est mort!»14.

Em A Morte do Diabo, tal como nos textos de Prosas Bár-

baras, o senhor dos Infernos surge «corporizado e despido da sua dimensão transcendental. Embora apresentado como uma personagem ambígua e complexa, ele não deixa contudo de pos-suir um retrato físico definido e concreto»15. Trata -se, afinal, de um Diabo humanizado, com sentimentos e desejos que a sua condição de imortal não satisfazem nem afastam de imediato e por vontade própria, como seria de supor numa personagem metafísica e potente.

O Diabo, na sua forma de Satanás, apresenta -se na escrita de Eça semelhante ao Homem, ser decadente, cheio de tédio, de lassidão, de enfastiamento, talvez por ele se ter deixado contami-

13 V. Glossário.14 No conto «O Senhor Diabo», o Satã de Eça apresenta -se aos humanos sob a forma de um ho-mem pálido, de grandes cabelos negros, tocando guitarra e confessando: « - Estou velho. Vai -se--me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão […]. Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo e a aparecer muito a tinta. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vida tinha de me entreter perdoando e consolando – para não morrer de tédio! Sê infame, lamacento, poder, vil e imundo, e sê todavia um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou, é o mesmo.» Responde -lhe o seu pajem: « – Também os diabos se vão! Adeus, Satã.» Cf. Eça de Queirós. Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal). Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, pp. 93 -94.15 V. Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho. «Introdução» a Eça de Queirós, Textos de Imprensa I (da

Gazeta de Portugal). Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 40.

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES 17

nar pelas almas tristes que caem diariamente nos seus domínios. Soçobra de fadiga sensabor, essa «doença horrível» que «estende silenciosamente a sua rede em volta da alma» dos «Poetas do Mal» nas Prosas Bárbaras: em seu torno «[…] espalha -se uma moleza errante: calam -se os coros interiores: aparecem os deses-peros lentos, as angústias frias: os braços caem nos desconsolos, como asas dum pássaro ferido16 […] na alma há também um Cristo morto – a Fé»17. Teria o Diabo perdido a Fé?

Nos seus primeiros textos ficcionais Eça demostra uma «atra-ção por Satã, «a figura mais dramática da História da Alma», ou pelas suas encarnações e metamorfoses», atração resultante de uma tendência «para tudo o que é dual, tudo o que na vida con-juga, de forma desconcertante, o sublime e o grotesco»18.

É assim que dedica um dos textos da Gazeta de Portugal à interpretação por J. Petit de Mefistófeles no Fausto de Gounod. Na ópera, para Eça, o protagonista não é Fausto, mas o Diabo:

a grande f igura angulosa, nervosa, elástica, incisiva, atravessa

o drama – os seus lirismos nostálgicos, as suas sensualidades

tristes, os seus misticismos artif iciais – sinistra, glorif icando a

força brutal do dinheiro, escarnecendo as castidades expirantes,

empurrando o Fausto espiritualista para a violência lasciva,

combatendo a serena inspiração do Cristo, negociando em al-

mas, e abatendo toda a penosa construção da honra, do dever, do

perdão, do amor, da purif icação – com o riso trágico do mal!19

É ele quem

tem uma vida real e poderosa. É ele, a antiga criatura terrível

e grotesca, vaidosa, infame e trágica. É o antigo Satanás das

16 V. ainda o poema de Leconte de Lisle: «Enveloppé du noir manteau de ses deux ailes».17 V. «Poetas do Mal» in Eça de Queirós. Textos de Imprensa I. Ed. cit., p. 87.18 V. Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho, op. cit., p. 41.19 Eça de Queirós. «Mefistófeles – J. Petit» in Textos de Imprensa I. Ed. cit., p. [155].

A MORTE DO DIABO18

legendas. É ele – o mesmo a quem os Sevérios ouviram dizer que

antes queria devorar uma alma, do que voltar, entre purif ica-

ções, para os seus antigos camaradas, os astros, sidera lucida!20

Astros a quem o Satã de Fradique dedica a lírica serenata, tão diferente desse Mefistófeles triunfante da ópera de Gounod, que «Tem o escárnio, tem a violência, tem as trevas, a jovialidade e o medo. Range, ri, treme, devasta, insulta e vence.»21

Para Eça, no entanto, Mefistófeles não podia representar inte-gralmente a sua particular fantasia da figura diabólica: ele é mais um dos avatares do Senhor do Mal, pois o conceito do jovem escritor assentava numa imagem melancólica, amargurada, trá-gica, consistente com um tempo em que Nietzsche não tardaria a anunciar a morte de Deus e em que os poetas satânicos já tinham declarado a morte do Diabo:

E se é certo que o Diabo morreu, e que já lhe f izeram o epi-

táfio, e que as suas imagens são estátuas que o homem lhe ergue,

e que, depois de morto, teve para dizer a sua beleza Milton, e

para dizer a sua tragédia Dante, se é certo que se foi juntar, no

vasto cemitério azul onde os sepulcros são os astros, aos f inados

enormes, que foram os Deuses da Índia, do Egipto e da Grécia,

se é certo que é por ele morto, que o mar geme, e que as florestas

rezam, se é certo que ele se deitou na serenidade eterna, dei-

xando o homem por herdeiro, se é certo que ele morreu, o bom

Diabo – é também verdade que esta criação de Mefistófeles, por

este artista – é uma ressurreição, e que todas as noites o velho

Satã vem, como no tempo dos seus amores vestido de escarlate,

contar sobre uma cena resplandecente, entre as instrumentações

esplêndidas –a sua velha legenda da tentação.22

20 Idem, p. 157.21 Idem, pp. 158 -159.22 Idem, p. 160.

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES 19

Confirmando esta visão, no conto «O senhor Diabo», apre-senta a «legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!» que o narrador diz saber de cor. «O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez a nostalgia do céu!»23

Influências satânicas num Cenáculo da Travessa do Guarda -Mor, ao Bairro Alto

Eça escreveu estas palavras em 1867, aos vinte e um anos, quando o Cenáculo da Travessa do Guarda -Mor efervescia e se entusiasmava com as experiências com que cada um dos seus membros contribuía para as fantasias criativas do grupo. É Ba-talha Reis quem introduz o compositor Augusto Machado na tertúlia e este, que estudara música em França, torna -se uma peça -chave na criação conjunta. Influenciados ainda pelo Ro-mantismo,

As f ilosof ias, as grandes épocas históricas, as mais funda-

mentais instituições, assumiam, nas discussões delirantes desse

grupo de rapazes românticos, as formas mais disparatadas e

extraordinárias: um sistema político ou uma religião, ora se to-

mava a sério com um vasto terror sagrado, ora se considerava

como um simples argumento de ópera cómica.24

No Antero de Quental – In Memoriam, Batalha Reis lembrou que na sua casa de São Pedro de Alcântara apareciam «O Au-gusto Fuschini, o José Tedeschi, o Filémon da Silva Avelino, o Alberto Teles, o António Machado e o Augusto Machado, – que começava então a compor música, a quem nós encarregávamos

23 Eça de Queirós. Contos I. Ed. cit., p. [79] -80.24 in Dicionário Universal Português Ilustrado (sob a direção de Fernandes Costa), vol. vi, M -Mag. Lisboa: Tipografia do Dicionário Universal Português Ilustrado, 1884, pp. 133 -134.

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de nos fornecer de ideal sob essa forma, e para quem o Antero de Quental traduziu um libreto (...)»25

Eram os anos de 1866 e 1867 «[…] datas capitais na história da educação do meu espírito.»26 – acrescenta Batalha num texto posterior:

A predominante paixão pela música ligara -me a Augus-

to Machado, que estudava então piano e harmonia com dois

dos melhores mestres da especialidade em Lisboa. […] Ora em

1867 Augusto Machado, ao voltar de Paris, onde cursara pia-

no, harmonia e composição com Alberto de Lavignac e outros,

trazia, como repertório de estudo, os Prelúdios e Fugas de Bach;

as Sonatas de Mozart e Beethoven, as obras de Mendelssohn,

Schumann e Chopin. 27

Por esse tempo surgiam na Gazeta de Portugal os «Folhetins» de Eça de Queirós, escritos plenos de originalidade de forma numa Lisboa ainda apegada aos cânones da escola literária ul-trarromântica. A Batalha Reis, esses textos fizeram «[…] uma impressão só comparável, em profundidade e consequências sub-jetivas, à que, justamente pela mesma época, me fazia a descober-ta das obras dos grandes criadores da música moderna.»28

Conjugadas, as duas expressões de modernidade – a musical, de Augusto Machado e a literária, de Eça de Queirós – deram o mote para um novo projeto de arte, a que não deve ter sido alheio o fascínio de Eça pelas personagens demoníacas. Mas também 25 Jaime Batalha Reis. «Anos de Lisboa (Algumas Lembranças)». Antero de Quental – In Me-

moriam. Porto: Mathieu Lugan, Editor, 1896, pág. 449. O Libreto mencionado foi na verdade traduzido em colaboração com o próprio Jaime Batalha Reis; trata -se da opereta «O Degelo», le-vada à cena no Teatro da Trindade em 1875. Batalha Reis, por discrição ou modéstia, várias vezes omitiu ao público a sua contribuição para projetos conjuntos do Cenáculo, como adiante se verá.26 Jaime Batalha Reis. «Na primeira fase da vida literária de Eça de Queirós». Apêndice a Textos

de Imprensa I (da Gazeta de Portugal), Edição Crítica de Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2004, p. 172. O texto tem constituído, na tradição editorial, a Introdução ao volume antológico Prosas Bárbaras, de Eça de Queirós.27 Idem, p. 173.28 Idem, ibidem.

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pelo seu encanto pela música, patente nos temas tratados – por vezes apenas nos títulos dos folhetins: «Sinfonia de Abertura», «O Macbeth», sobre a ópera de Verdi, «A ladainha da dor», sobre o Fausto de Gounod e o já mencionado «Mefistófeles», enquanto personagem dissonante do Satã de «O Senhor Diabo».

Chegará o Outono ao Diabo?29

Em 1867 e 1868 os teatros do Príncipe Real e da Trindade levaram à cena, com grande êxito popular, as primeiras repre-sentações em Portugal de operetas de Jacques Offenbach e os três – Batalha, Eça e Machado, devem ter encontrado na fórmula um veículo de transmissão das suas ideias musicais e literárias. Nascia um projeto ocultado por todos eles, como por embaraço de extravagância juvenil, mas subliminarmente referido por Eça, quando no In Memoriam de Antero recorda a chegada do antigo companheiro de Coimbra ao Cenáculo: «Sob a influência de Antero logo dois de nós, que andáva-mos a compor uma Opera -buffa, contendo um novo sistema do Universo, abandonámos essa obra de escandaloso delírio – e começámos à noite a estudar Proudhon […]»30 Eça não esqueceria a tentativa da opereta e, n’ Os Maias, referirá o poeta detestado por Tomás de Alencar, Simão Craveiro, «o homem da «Ideia Nova», o paladino do Realismo»31 de quem Ega de-clama com entusiasmo uma estrofe do poema «A morte de Satanás»: E entre duas costeletas, no decote / Tinha um bouquet de rosas! que tanto lembra o poema fradiquista «Tu serás es-queleto e podridão…»32 Craveiro voltará ainda a surgir no conto «José Matias», preparando os poemas «Ironias» e «Dores 29 Cf. Eça de Queirós. Contos I. Ed. cit., p. 94.30 Eça de Queirós «Um Génio que era um Santo» in Almanaques e outros dispersos. Edição Crítica de Irene Fialho. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2011, p. 306.31 V. Eça de Queirós. Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil, s/d [1970], p. 90.32 V. infra. as referências a «No álbum de Rigolboche» ou «Na lápide de Mlle. Rigolboche».

A MORTE DO DIABO22

de Satã», «acirrando brigas entre a Escola Purista e a Escola Satânica.»33

Com maior reserva, mas sem omitir, Batalha Reis, no mesmo volume de homenagem, na descrição das longas discussões filo-sóficas nocturnas, agora já com Antero envolvido:

– Porque não poder entrever, ao menos, a Teoria do Universo…

– Entremos contentes na realidade burguesa…

– Corramos a Cenóbios…

– Corramos ao Chiado…

– Trá la rá lari

– Trá la ra la rá…

Ó prazeres da Baixa,

Quem vos dera cá!...34

Citados numa aparência de detalhe saudosista, os versos boé-mios haviam de fornecer elementos para a identificação de um sonho de opereta que se chamou «A Morte do Diabo». Perdida, por não se conhecerem outras referências em impressos e espólios estudados, a obra, ou aquilo que dela resta, foi finalmente iden-tificada na Biblioteca Nacional numa «Árvore Sonora – Relação das Composições Musicais do Maestro Português Augusto de Oliveira Machado»35. Um dos ramos dessa árvore indica «A mor-te do Diabo – opereta – ano 1868. Parte da música executada no Teatro da Trindade, 1870 – Libreto de Eça de Queirós e Batalha Reis», ou seja, o ano de composição corresponde aos anos do primeiro Cenáculo, embora a apresentação pública da música tenha sido posterior.

No espólio de Augusto Machado no arquivo musical da Bi-blioteca Nacional encontraram -se mais tarde os fragmentos de

33 Eça de Queirós. Contos I. Ed. cit., p. 363.34 Jaime Batalha Reis. «Anos de Lisboa» in Antero de Quental – In Memoriam. Porto: Mathieu Lugan Editor, 1896, pp. 447 -448.35 «Investigação por Alfredo Borges da Silva – Lisboa – MCMXX».

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uma partitura não identificada, incluindo as letras das árias res-petivas, onde intervêm personagens burlescas e tão diversas como «Satanás» ou «Satã», «Méfisto», «Ventre», «Lorette», «Dandy», «Poeta» e coros de «Diabos Velhos» e «Diabos Novos», cantan-do os estribilhos «Antes o Penim do que isto assim!», «Antes o Chiado do que este Fado!» e a linha inserida nas lembranças de Batalha «Ó prazeres da Baixa, quem vos dera cá!», entre garga-lhadas ao «estilo do Orpheu de Offenbach»: a cena passa -se no Inferno, onde diversas encarnações do Diabo sofrem um tédio de morte, tal como os deuses no Olimpo do Orphée aux Enfers de Offenbach. Se, na opereta francesa, os deuses preferem descer ao Hades para mudarem de ares, os demónios de «A Morte do Diabo» antes querem encontrar -se na abjeta boémia lisboeta do que sofrer a lenta e melancólica eternidade do Inferno, onde tudo é pelintra, criando esse «efeito de estranheza» referido por Mário Vieira de Carvalho quando analisou os primeiros textos jorna-lísticos de Eça, efeito que «está ainda ligado a um dos artifícios mais comuns da offenbachiada: mudar a ação para outras paragens quando o que se tem em vista é o aqui e agora.»36 Desse mes-mo tédio de que já morria, «enfastiado e silencioso», «O Senhor Diabo» de Eça, aquele Satã que, sentando -se nos degraus de um cruzeiro, canta com escárnio, depois de afinar a guitarra.

A Guitarra satânica de Carlos Fradique Mendes

Abandonado o libreto de «A Morte do Diabo», com a chegada de Antero, o Cenáculo criou uma nova encenação:

Um dia, pensando na riqueza imensa do moderno movi-

mento de ideias, cuja existência parecia ser tão absolutamente

desconhecida em Portugal, pensando na apatia chinesa dos lis-

36 Mário Vieira de Carvalho. Eça de Queirós e Offenbach: a ácida gargalhada de Mefistófeles. Lisboa: Edições Colibri, p. 84.

A MORTE DO DIABO24

boetas, imobilizados, durante anos, na contemplação e no cin-

zelar de meia ideia, velha, indecisa, em segunda mão, e em mau

uso, – pensámos em suprir uma das muitas lacunas lamentáveis

criando ao menos, um poeta satânico. Foi assim que apareceu

Carlos Fradique Mendes.37

Mas o espírito satânico do Cenáculo, ainda sem nome nem rosto, alimentado pelas diabruras de Eça e Batalha, coadjuvados por Machado, começou a dissipar -se no dia em que Antero de Quental cruzou a porta da casa da travessa do Guarda -Mor,

[…] onde, antes da vinda de Antero […], nada poderia ter

nascido além de chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a

vinho de Torres, e farrapos de Filosofia fácil, nasceram, mira-

bile dictu, as Conferências do Casino, aurora dum mundo novo

que depois, ó dor, creio que envelheceu e apodreceu…38

Envelhecera o mundo, porque tinham envelhecido aqueles a quem:

[…] bruscamente (nessa mesma esquina da travessa do

Guarda -Mor) aparecera a Vida, enrugada, de dedo ameaçador

a avisar que ela não é Musa ou Ninfa que se trate com ligeireza,

indiferença, e cantando.39

37 Jaime Batalha Reis. «Anos de Lisboa (Algumas Lembranças)». Ed. cit., p. 460. Carlos Reis diz a este propósito: «quando um dos responsáveis pela poesia fradiquista, concretamente Antero de Quental, discorda das linhas de força inspiradoras dos Poemas do Macadame («a poesia não pode ser o grito da agonia: é a voz mais pura e mais íntima do coração: é mesmo nas vascas da morte, é sobretudo nas horas da provação, um hino, carmen»), uma tal discordância acaba por constituir uma espécie de «efeito de real»; por outras palavras: distanciando -se, no plano estético--ideológico, da criatura de que era cocriador, Antero acaba implicitamente por lhe reconhecer o direito a uma vida e poética próprias.» V. Carlos Reis. Estudos Queirosianos. Lisboa: Presença, 1999, p. 139.38 , Eça de Queirós. «Um Génio que era um Santo» in Almanaques e outros dispersos. Ed. cit., p. 306. 39 Idem, pp. 306 -307.

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES 25

O convívio com Antero afastara Eça, Batalha e Augusto Ma-chado do plano concebido, afastamento que pode explicar que apenas «parte da música» –, integrada na opereta de Machado O Sol da Navarra, como confirmam o Diário de Notícias40 e dois artigos biográficos de Augusto Machado saídos da pena de Ba-talha Reis41, tenha sido executada no Trindade. Nesse mesmo teatro referido por Batalha (numa carta de namoro à noiva Ce-leste Cinatti), onde Antero quis ir ver um baile de máscaras, por nunca ter assistido a nenhum, e onde tanto se falou do tema do momento, Fradique Mendes:

Entrei no teatro e andei um pouco de tempo seguido do An-

tero, do Machado e do Queirós a falar aos homens que entra-

vam na sala, ao Gusmão do Diário Popular, ao Albuquerque

do Jornal do Comércio, ao Luciano Cordeiro, ao José Horta,

ao Dr. Alvarenga, enf im a tudo que eram pessoas que eram

conhecidas e a intrigá -las. Depois de uma hora ou duas de falar

assim a mais tipos, achei -me muito aborrecido, pensava muito

em ti, tinha tanta pena de ter ido ao baile.42

A última aparição pública de Carlos Fradique Mendes, an-tes da sua póstuma biografia, traçada por Eça a partir de 1885, aconteceu nas páginas do Diário de Notícias com a descrição de um episódio de amor canibalesco e o fragmento de um poema satânico, onde o poeta prometia ir cancanear sobre a campa de

40 « - O Sol da Navarra ópera -burlesca, letra de Alfredo Ataíde, representada em 1870 e em que Augusto Machado intercalou alguns trechos compostos para uma opereta, A Morte do Diabo, poema de Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis, que não chegara a ser concluída.» V. Diário de

Notícias, quinta -feira, 28 Fev. 1884, pág. [1].41 Em O Ocidente, 6.º Ano, Vol. VI, n.º 148, de 1 de fevereiro de 1883, pp. 26 -27, assinado com a abreviatura de um pseudónimo de Batalha, «V. de D» e no Dicionário Universal Português Ilustra-

do, Vol. VI, Lisboa: Tipografia do Dicionário Universal Português Ilustrado, 1884, pp. 133 -134 (sem assinatura).42 Manuscrito no espólio de Batalha Reis da Biblioteca Nacional, cota E4/57 -7.88. Infelizmente, as cartas de namoro de Batalha Reis a Celeste Cinatti não têm datas, o que permitiria aproximar acontecimentos de referências literárias e históricas.

A MORTE DO DIABO26

uma amante que desejava ver morta43. Tratava -se do negro Um

mistério na Estrada de Sintra, estava -se em 1870. Fradique, nas-cido no Cenáculo, vivia ainda (viveria sempre) na mente de um dos seus criadores. Os outros dois remetiam -se ao silêncio: Jaime Batalha Reis sem palavras finais, Antero de Quental traçando um epitáfio moralizador numa epígrafe a versos que ele próprio, sob a máscara de Fradique Mendes, alinhara e tratara de publicar: aqueles eram a expressão da

[…] poesia cantando, sobre as ruínas da consciência moderna,

um requiem e um dies irae fatal e desolador! Ora, francamente,

será esta a missão da poesia? […] O nosso amigo [Fradique]

tem um espírito muito alto e muito esclarecido, para que não

entre (passado o primeiro período de ardor, próprio das voca-

ções verdadeiramente originais) no caminho eterno da grande

poesia, o caminho largo, sereno e luminoso do Ideal 44.

Tinham passado os primeiros ardores e Fradique não podia seguir o luminoso caminho do Ideal: Fradique não existia. En-carnara, durante algum tempo, nas imaginações de Batalha, Eça e Antero; fora apresentado a outros membros do Cenáculo e ao mundo; adormecera.

Antero é considerado um dos pais de Fradique, e a maior parte dos poemas publicados sob aquele pseudónimo45 são de autoria do poeta das Odes Modernas. Jaime Batalha Reis afirmou mesmo que não estava «[…] inteiramente certo que o Antero de Quental não pusesse às vezes, com sinceridade, sentimentos próprios no

43 V. «Um mistério na estrada de Sintra», Diário de Notícias, 1870, 6.º Ano, n.º 1708, domingo, 18 de setembro, p. 1 («A confissão dela»).44 Cf. «Poemas do Macadame» in O Primeiro de Janeiro – órgão do centro eleitoral portuense, 1.º Ano, 1869, domingo 5 de dezembro, n.º 272, Porto, p. [1].45 A incapacidade da personagem Marcos Vidigal d’ A Correspondência de Fradique Mendes para encontrar um pseudónimo digno, exigido por Fradique, com que pudesse assinar os poemas das «Lapidárias», levou -o a pôr o verdadeiro nome do autor n’A revolução de Setembro, escusando -se da inépcia com a frase «Sublimidade não é vergonha!» V. A Correspondência de Fradique Mendes. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmãos, 1900, p. 17.

«A MORTE DO DIABO» E AS «VISÕES» DE CARLOS FRADIQUE MENDES 27

que Carlos Fradique Mendes assinava.»46 No entanto, Antero foi o primeiro a repudiar como sua a estética fradiquista; primeiro, ao publicar a crítica aos já referidos «Poemas do Macadame» no folhetim d’ O Primeiro de Janeiro em dezembro de 1869; depois, no comentário, defensivo e anónimo, aos dois sonetos de «O Pos-sesso» em A Folha:

É escusado advertir que o nosso colaborador, que em tantos

dos seus escritos se mostra possuído da mais entranhável cren-

ça na bondade e ordem providencial das eternas leis físicas e

morais do universo, não é por modo algum solidário com as

desconsoladoras doutrinas que expõe nestes dois sonetos. Uma

coisa é o homem e o pensador, outra o artista para quem, dentro

da verdade estética, todos os factos psicológicos têm valor igual,

e a quem assiste o direito de explorar indiferentemente o céu e o

inferno, a crença e a negação, quando trata de definir pratica-

mente os vários modos de ser da alma humana.47

Finalmente, ao permitir a inclusão, nos volumes de poesia, de quase todas as suas produções para Fradique, mencionando explicitamente que se tratava de versos anteriormente assinados por um pseudónimo.

Recorde -se que, em vida dos autores, foram publicados, e assinados por «C. Fradique Mendes», um poema de Eça de Queirós – a «Serenata de Satã às estrelas» – e um poema de Jaime Batalha Reis – «A velhinha» – ambos no «Folhetim» da edição de 29 de agosto de 1869 d’A Revolução de Setembro; nesse mesmo folhetim surgem dois poemas de Antero, um «Soneto» e um «(Fragmento da Guitarra de Satã)»; depois, em 5 de de-zembro do mesmo ano, O Primeiro de Janeiro, sob o folhetim de «A.Q.» já mencionado, oferece mais quatro composições fra-

46 Cf. «Anos de Lisboa», Ed. cit., p. 462.47 V. A Folha – microcosmo literário, n.º 2, 5.ª Série, 1873, pp. 13 -14.

A MORTE DO DIABO28

diquistas às quais, mais tarde, Antero retiraria a assinatura de Fradique Mendes, apondo -lhe a sua: o «Soneto» passou com o título «Diálogo» à 2.ª edição das Odes Modernas em 187548 e aos Sonetos completos em 188649; o «(Fragmento da Guitarra de Satã)» foi colecionado por Teófilo Braga em Raios de Extinta

Luz com o titulo «Guitarrilha de Satã», a data 1869, e a nota «Estes versos apareceram pela primeira vez publicados com o pseudónimo de Carlos Fradique Mendes»50; d’ O Primeiro de Ja-

neiro, «As flores do asfalto» – com um novo título, «Versos escri-tos num exemplar das Flores do Mal» – os versos dedicados «A Carlos Baudelaire (autor das Flores do Mal)» – e «Intimidade» passaram às Primaveras Românticas em 1872 – os dois últimos com a indicação expressa de terem sido «em tempo publica-dos com um pseudónimo»51; apenas «Noites de Primavera no Boulevard» se ficou pelas páginas do jornal portuense. A Folha, como se disse, publicava em 1873 dois sonetos em «Comentário às Ladainhas de Satã» de Baudelaire, repetidos vinte anos mais tarde em Raios de Extinta Luz com o subtítulo afrancesado «Co-

mentário às Litanies de Satan» – eram as duas composições de «O Possesso»52.

Disse Batalha Reis, em 1896, que a criação de Fradique se de-veu à necessidade de «suprir uma das muitas lacunas lamentáveis» derivadas da «apatia chinesa dos lisboetas, imobilizados, durante anos, na contemplação e no cinzelar de meia ideia, velha, indecisa, em segunda mão, e em mau uso [...]»53 sublinhando:

48 Antero de Quental. Odes Modernas – 2.ª edição contendo várias composições inéditas. Porto -Braga: Livraria Internacional de Ernesto Chardron e Eugénio Chardron, 1875, p. 65.49 Antero de Quental. Os Sonetos completos (publicados por Oliveira Martins). Porto: Livraria Por-tuense, 1886, p. 64.50 Antero de Quental. Raios de Extinta Luz – Poesias Inéditas (1859 -1863). Lisboa: M. Gomes Livreiro, 1892, pp. [145] -146.51 Antero de Quental. Primaveras Românticas. Versos dos vinte anos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872.52 Op. cit., pp. [153] -156.53 Jaime Batalha Reis. «Anos de Lisboa (Algumas Lembranças)». Ed. cit., p. 460.