EDIÇÃO ESPECIAL DA REVISTA PZZ N07

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Rafael Lima Visceral Os bastidores de um músico amazônico inter-nacional O SOL DO MEIO-DIA A resistência da música autoral nos anos de 1970 em Belém do Pará ANO III Nº 07 R$ 10,00 www.revistapzz.com.br arte política, cultura e ciência Política e Poesia: a poética de Charles Trocate Terra Imatura: o surgimento rutilante no inferno verde por Marinilce Coelho Ensaio Fotografico: “Conexões”, de Janduari Simões Guiné-Bissau: imagens Brasileiras por Hilton Silva

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EDIÇÃO ESPECIAL DA REVISTA PZZ N07 RAFAEL LIMA SOL DO MEIO DIA TYERRA IMATURA ENSAIO FOTOGRÁFICO JANDUARI SIMÕES CONTO JOSSETE LASSANCE CIENCIA E TECNOLOGIA

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Rafael LimaVisceralOs bastidores de um músico amazônico inter-nacional

O SOL DO MEIO-DIAA resistência da música autoral nos anos de 1970 em Belém do Pará

ANO III Nº 07 R$ 10,00www.revistapzz.com.br

arte política, cultura e ciência

Política e Poesia: a poética de Charles Trocate

Terra Imatura: o surgimento rutilante no inferno verde por Marinilce Coelho

Ensaio Fotografico: “Conexões”, de Janduari Simões

Guiné-Bissau: imagens Brasileiraspor Hilton Silva

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EDITORIAL...........................05

POESOFIA..................................... 06A POESIA POLÍTICA DE TROCATE .................. 08

DOCUMENTÁRIO............................ 16TUDO COMEÇOU NO SOL.....................................18SOL DO MEIO DIA..................................................20CARREIRA SOLO......................................................32MUSICOGRAFIA DE UM EXILADO.......................34ARRIBADO MALUNGO..........................................36APUÍ: MÚSICA DA RAIZ..........................................38500 YEARS, SO WHAT?..........................................42FESTIVAIS INTERNACIONAIS...............................44REINAVAM COMO CASTIÇAL............................46

REVISTAS.................................................50O SURGIMENTO RUTILNTE NO INFERNO VERDE.......................................................52TRAÇOS DE NANQUIN.........................................55VELAS DA POESIA.................................................60

CONEXÃO ÁFRICA..................................64RETRATOS DA GUINÉ-BISSAU:...........................65ARTE, CULTURA E RESISTÊNCIA...........................74

FOTOGRAFIA VIVA ...............................75JANDUARI SIMÕES

CONTOS PARAENSES............................87O PRÉDIO................................................................88

CIÊNCIA E TECNOLOGIA...................91GENÔMICA E PROTÔMICA..............................91

06 Charles Trocate:poemas que valem um momento

ÍNDICE

64Retratos daGuiné-Bissau

16Tudo começou no Sol do Meio Dia

ABRIL/MAIO DE 2009

50 O Infernp Rutilante de Terra Imatura

92 Rede Paraense Genômica Proteômica

75 Ensaio Fotográfico:Janduari Simões

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A necessidade da luta revolucionária é hoje maior que nunca!

A Revista Pará Zero Zero – PZZ é um projeto editorial de caráter inovador junto à comunidade paraense-amazônica que promove a poesia, a escritura, a pesquisa e o livre de-bate de idéias artísticas, filosóficas e científicas com propó-sitos de elevar a consciência da sociedade, nasce, re-nasce, para avivar o pensamento, o sangue, a altitude das ações, nasce, re-nasce para abrir o caminho da luta por um mundo novo, necessário, morre para despertar o espírito libertário da multidão inconformada pelo descaso poético e político que assola a humanidade, demasiadamente humana. O po-der transformador da PZZ é o esforço revolucionário de uma vida verdadeiramente combativa, sem medo de ser in-feliz; contra todas as adversidades, afirma-se como um meio de reflexão e crítica afrontando e indo-além da manipulação e da dominação dos diferentes mecanismos de poder produzi-dos no sistema cultural, político, social, econômico. Afronta o desperdício de material produzido pela indústria do lixo político e cultural, afronta o poder da opressão mercado-lógica que a todo o tempo tenta ignorar, abafar, apagar, boicotar o renascimento de um ser que se renova como o espírito da Arte. Tiranos tendem a uniformizar o rosto cambiante do ser e a uniformizar o rosto ao transformá-lo numa máscara indefi-nidamente repetida, imobilizada, fixa diante de suas vaida-des e mentiras para esconder a diversidade que tem a vida em seus múltiplos aspectos culturais e instrutivos. fora daqui quem só quer a nação vilipendiar...a pedagogia das açõesgolpeia no corpo essa atroz geografiase calarmos... as pedras gritarão...

Preferimos essa Vida e nos basta o espírito dela, o combate. porque é assim que as vidas que assumiram o caminho da lutase planejam

Atividade em Revista

Diretor ExecutivoCarlos ParáEditores

Carlos Pará, Rilke Penafort Pinheiro, Jandu-ari Simões, Odir Castro, Pamela Coelho

Produção Executiva Odir Castro

Projeto Gráfico&Diagramção Rilke Penafort

Tratamento de FotosIgor ParáPesquisa

Carlos Pará, Odir Castro, Marcos Andrade, Ilton Ribeiro, Hilton Silva

Web DesignerMárcio Caldas

Revisor Editor responsável

Carlos Pará Conselho Poético

Benedito Nunes, Paulo Roberto Ferreira, José Roberto Pereira, André Belfort, Na Fi-gueredo, Dimitri Maracajá, Elza Lima, Luiz Arnaldo Campos, Célia Maracajá, Marcos Urupá, Enilson Nonato, Alberdan Batista, Rogerio Parrera, Charles Trocate, Vicente

Cecim, Albery Albuquerque, Rosa Acevedo, Jussara Derenji, Pavel Fernandes, George Venturielli, Acácio Sobral, Afonso Galin-do, Ramiro Quaresma, Rômulo Queiroz, Isabella do Lago, Zenito Weyl, Igor Pará,

Letícia Pará,Carlos Barbosa, Departamento Financeiro

Laura Santana Publicação

Editora Resistência Assinaturas

e-mail: [email protected] Publicidade em Belém: Tel.: (091) 96164992

Av. Duque de Caxias, 160 Ed. José Bonifácio LJ-14 - MARCO

CEP.: 66093-400Fones: (91) 9616-4992 (91) 3246-3987

[email protected]

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PoesofiaNo mundo, o poeta observa as estratégias e artimanhas, instrumentos da classe dominante,conjunturais, no combate à esquerda: são as grandes corporações de jornais e televisões, o patriarcalismo violento e a compadrinhagem internacional de políticos ambiciosos. Caracteristicamente, a brutalidade do latifúndio na sua reação – os assassinatos, as injustiças assinadas na faca – apresentam-se na poesia de Charles Trocate (Francisco Burciere).

Poemas que valemum momento

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Poesofia

A poética Política de Trocate

CARTÃO POSTAL DO HOMEM

Para Ulisses Manaças

Preferi essa vidaE me basta o espírito delaÉ verdade que nada mudou desde que me fiz assim, de aço[lambendo tristezas Verão no chão do lamento Pasmem, com o ócio, duelando sempre!Já quase adulto recorre essa pergunta obsessivaO que poderei fazer para o amanhã?Se me tiram a alface da bocaOrdenam prisão aos meus poemas sobreviventes

De que naufrágio sofrerá o poeta?Preferi essa vidaE me basta o combate delaO amido companheiro do presentePorque é assim que as vidas me planejam.

MarabáOutubro de 2006

RESPOSTA PÚBLICA

Para Rivelino

Sou real, ambíguo entre as ruas e os combates? Estou farto da onda do mar, não? Mas é insuportável não ter o mar Vivendo nessa cidade de sensações.

Debates tortos sobre a vida Ignorâncias desdenhando O último acontecimento Lirismo apodrecido!

Vivo esses dias machucado por essas pancadas[rinocerontesUm dia, ingovernável será minha loucura Quando ela chegar quero um lugar Debaterei esse lugar Serei esse lugar

A mim que é posto isso, odeio a metafísicaHoje tão angular na política!Tenho músculos explorados e toda a classe [deveriam saber Mais os piores hematomas Vão no coração galáxia Terreno cheio de diagramas e explosões!

Marabá Outubro de 2006

Charles TrocateCharles Trocate é paraense, nasceu

na beira do rio Apéu em Castanhal, autor

dos livros, “Poema de Barricada” 2.002

São Paulo, Gráfi-ca e Editora Perez, “Folhas de Prosa e verso”, 2.003, jor-

nal livro de poesias em parceria com

Jorge Luis Ribeiro, Marabá , Grafica e

Jornal Opnião. “Ato Primavera e Bernar-

do -meus poemas de combate! São

Paulo, 2.007 Editora Expressão Popular. É membro da coor-

denação nacional do MST.

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Poesofia

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NAÇÃO DO SILÊNCIO

Para Marildo Menegat

Tenho uma nação de homens dentro de mim [se manifestando Devolvidos ao esquecimento Todos os dias Se acrescentam Se diminuem Se multiplicam, apenas querem explodir?

Em mim vai essa nação de homens organizados [no silêncio bruto Espetáculo “do que é? O que é?” Estão dispersos e mudos Foram ligeiramente arrancados Do tempo real.Esses homensSão perguntas por aí e dormem objetos indecisos? Dia desses como um guarda reveza o turno Imaginarão-se todos fantasmas!

MarabáOutubro de 2006.

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Poesofia

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PARA UM EDITORIAL DE JORNAL

Escuto o alarme da noite Decido pelo que me parece óbvio Afundarei com murros martelos O navio de ódio Atracado no editorial do jornal

Aos olhos incrédulos(até que se exime o escritor bufão) suas idéias Inacessíveis, coisa mesmo, mau hálito Tolice de alguém cego com dois olhos abertos Olhando-se na inação.

As essas queixas escusas Mergulharei no mar se preferes Ó crítico imundo, o incidente Sociólogo dos pedestais.

Mergulharei no mar, é decisão Até que se afogues de sabenças vãs.

MarabáSetembro de 2006.

RESIDÊNCIA

Para o Mano

Confesso já distanteNão tenho apego pelo que se repeteA idéia caminha sem paletóÉ o remorso dos simples arando a razãoEssa flauta quem recusará?

Tudo de novo tornou-se surpresa e viaja comigoO que não pode esperarNão pode esperar os dilacerados, a rude bandeira [do grito. O passado que pari o secreto país.Enjaulado de antiformasComo um Hegel enlouquecidoEscrevo esse verso e retumboPlanejo pelo décimo dia do mês o co-mum de todos [os atos!Estou calado na boca do mundo Sou nome chamado?

Desalojado da arte sou espécie vulgarNunca mais sonharei?Acolhido da fantasia ignoro presente, a sorte e o azarCoisas enigmáticasPendões do nadaAforismo lavrado dentro do rio.

Faço saber: não me submeterei à escra-vidão Esse vexame que rosna no estômago do homem A vida devastada soa e urge!

De hoje pra manhã é minha questão Organizarei no solo impaciente do meu peito [uma plantação Árvores teimosas Pessoas são árvores!

Marabá, Outubro de 2006

O CAMPO DESSE CAMPO

Para Henri des Roziers

Um dia quando não existiam latifúndiosEram florestas de castanhaisEntão, o que deveis?Vejo os governantes disso por aíFogosos e hirtos rumando para a dissi-paçãoEstão informuladosImunes?Reclamo, não permanecerão...

Difícil é compor issoAtravessar o tempo com os corpos em jejum Aprender a sepultar com a mesma fronteira Ignorar, teses secretas a podridão do assunto Permiti com - o aço da beleza - flores Nesse campo exausto, exausto? Xingo a morte e o drama aberto Intérmino pela palavra esse acontecimento.

Minha vida posicionadaAceita o solVai com o corpo cheio de obrigatoriedadePodeis vê nisso felicidade?

É Verdade!Venho do campo com os meus mutilados universaisEm pasmo explico a tensãoEfusão que me dá tempo de dizer: viveremos!Neles me calam justificativas para faltarO arroz e a novidade, eu cantoTodos estão inertes, infantes?Densos e súbitos planejam hectaresE o dever já amanhecidoQue quer meu coraçãoEssa conclusão que realiza e consomeQual é o pronome?Trago da noite que perturba o gesto unidoEspantosa multidão da lavoura!

MarabáOutubro de 2006.

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PoesofiaQUANDO AMANTE!

Para Elis Mello

Análises já não dizem nadaNem me alcançaramDiz-se, tudo vai muito bem por aíFalsários!

O último almoço que fiz já faz quase um ano Todos esses dias (escreve aí) Lavei a fome com água e sabão no rio da poesia Nas noites improvisei a casa que me cabia dormindo [e se sinto frio? Ela, inglória não existia.

Se me indagam, porque não responderei?Guardo amores num coração que invernaHoje me apresso pelo século avalancheA língua da violênciaContinua a lamber meus planosErgo-os bem alto para serem a novidade terrestreTantos são os desenganos!

AlegriaSe interditam o caminhoFaço uma outra viaO que hoje é supremo secará com os mil sóis [que implantarei Num ato primavera. A ti que amasEntregarei meu bosque de idéias E coisas sãs!

Marabá Janeiro de 2006

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OUTRORA

Para Sanara Barbosa

Sou assombro aos olhos dos imbecisPorque sou de carne e alarmeQue bom que sejaO cão que há em mim farejaO bicho burguêsQue há em vocês!Divido-me e não há o que esperarParte estou, parte não estouNão descansarei a vida que tenhoEm rimas tristesNem esperarei pela sorteAo olho nu quero um norte!

PRAZER EM CONHECÊ-LA

Prazer em conhecê-laSou vulcãoVersos de mim marcharão pelo mundo, acreditas?Sendo árvores florestaAté que o governo do meu paísApareça na minha casa sem guarda costasPara diálogos enormes

De impostos sobre o café da manhã A política de parques infantis A permissão ignóbil Da guerra!

MarabáOutubro

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DocumentárioO músiconômadeRafael Lima, cantor e compositor

paraense com 30 anos de estrada ultrapassou as fronteiras amazô-

nicas. Sua trajetória começou nos fins dos anos 70, quando se juntou a outros grandes nomes da música paraense do grupo “Sol do Meio Dia”. Sempre engajado em movi-mentos estudantis e populares, tocava em manifestações políticas da esquerda, além de atuar como membro da Sociedade Pa-raense de Defesa dos Direitos Humanos e como repórter do jornal “Resistência”.

Sua carreira solo teve início em 1983, com o show “Sinal Aberto”, que estreou no Teatro da Paz., e logo no ano seguinte mudou-se para São Paulo, onde perma-neceu até 1986. A carreira internacional começou no Canadá, em fins de 86, passando pela Suíça, Itália, Espanha, Ale-manha, onde foi convidado para tocar em festivais de altíssimo nível, como o “Fes-tival de Jazz de Montreux”, o “Mariposa”, o “KWT Jazz”, o “Festival Internacional de Jazz de Otawa”, o Blue Sky Fest , o “Festate World Mosic”, e outros eventos importantes

Atualmente Rafael Lima se prepara para o lançamento de seu 5° CD produzi-do pelo Ná Figueredo, que deverá ser seu primeiro cd, literalmente brasileiro, com músicos amigos, que residem em Belém, como Minni Paulo Medeiros, Jacinto Ka-whage, Calibre, Príamo, Toninho Abena-thar, Marcos Puff, Pato Moraes, Ricardo Aquino, Marcio Jardim entre outros.

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Quando entrei para o “Sol do Meio Dia” em 1977, a moçada lá, já tinha uma re-ferência boa, pra música; o

sol já era uma referência. Já rolava umas músicas em ritmos ímpares; O Alonso Jr. tinha saído (que era quem cantava), e eu entrei para substituí-lo, muito embora o Sidney Piñon, tenha tido uma breve pas-sagem como cantor e compositor, antes de mim. E aí, o Albery Albuquerque, ain-da estava por lá, e eu lembro que ele tinha umas canções em ritmos ímpares, “Verde Maravilha” por exemplo que tinha uma característica do som do “Sol”; quebrar os ritmos e os arranjos com muitos “cor-tes”, como a gente dizia, e coisas assim; e isso já fazia um diferencial. Ouvíamos muito rock progressivo, e o que aparecia por aqui, de jazz e música instrumental, tentando, claro achar um caminho, um di-recionamento. Mas o que sempre foi de-terminante, no som original, era a manei-ra original de criar e fazer arranjos e tocar apenas as nossas composições. Por isso o “Sol do Meio Dia”, foi o grande divisor de águas dessa época, depois naturalmen-te vieram outras bandas como o “Madeira Mamoré”, e outras. O “Sol” teve várias formações, e tudo começou com Min-ni Paulo (baixo), Odorico (guitarra), Zé Macedo (percussão), Magro, (bateria),, que se reuniam na Casa da Juventude pra acompanhar as missas do Pe. Raul aos do-mingos. À esses cinco integrantes, junta-ram-se Mozart (piano), Alonso Jr. (voz), Dolabela (Piano), Depois o Alonso saiu e eu entrei para ser o cantor, e aì o Mozart já não estava mais e nem o Zé Macedo, e tínhamos Rose Abensur tocando flauta pra substituir os teclados, o que dava um outro timbre. Depois a Rose viajou para

São Paulo, e o Guilherme Coutinho veio tocar com a gente. Fizemos um show em 1978 com dois bateristas (magro e sagi-ca), além do Guilherme Coutinho (tecla-dos) e Jesus no Saxofone, e claro, Minni Paulo, Odorico, eu, Zé Macedo e Barão (na percussão), e ainda o Luis Pinto no violão.

Depois o Minni e o Magro viajaram para S.Paulo com o Johnny Alf, e o Odo-rico me convidou pra remontar o “Sol”, com o Luis Pinto no baixo, e nós monta-mos “A festa de Nazaré” que tinha roteiro do Sidney Piñon. Nessa temporada éra-mos eu, Odorico, Luis Pinto, Rato (Mo-acir bateria), Wilson, e Zé Macedo; De-pois saíram Zé Macedo, Rato e Wilson, e entrou o Walter Freitas e o Aritana; com esse quinteto (Odorico, eu, Walter, Luis Pinto e Aritana), a gente deu continui-dade ao projeto de tocar na periferia, só que desta vez em cima de um caminhão, porque na temporada passada, a gente fazia, nos centros paroquiais das igrejas, colégios, onde desse. Convidei o Walter Freitas para entrar no “Sol”, que por sua vez tinha me convidado para cantar mú-sicas de sua autoria “Verdoenga e Estrela negra”, que tinham sido classificadas para as finais da “Feira Pixinguinha-Pará/80”, e que foram gravadas nesse mesmo ano.

Depois dessa fase, já no finalzinho de 82, o Minni voltou para Belém, e aí a gente remontou a formação quase que original do “Sol”, com Odorico, eu, ele, Zé Macedo e o Sagica; Já era uma outra fase do “Sol”, e os arranjos estavam cada vez mais elaborados e bem mais defini-dos, porque o Minni já estava com mais experiência e naturalmente, nós também. Essa temporada de shows, 82/83, se não me falha a memória foi a última vez em

Documentário

Tudo começou NO SOL

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Rafael Lima em apresentação no Sol doMeio Dia.

que o “Sol”, tocou enquanto “Sol do Meio Dia”, e já tinha mais composições minhas e do Walter Freitas, de uma nova fase, que logo no ano seguinte, eu já estaria, digamos assim, incremen-tando mais a minha carreira solo. E, claro, meu primeiro show valendo, mesmo, foi com toda a base do “Sol”; que foi o “Sinal Aberto”, que tinha direção e arranjos do Minni, e produção do Arnaldo Silva, cenários do Macário Lima, e direção cênica do Walter (Freitas), e além de mim, Odorico e Minni, tinha o Sam (piano), Sagica (bateria), Yuri (flauta), e Maciel (trompete).

Depois, alguns dos raios do “Sol” ganharam o mundo: Magro (EUA), Minni (França), e eu (Canadá, Suíça, Europa);

Mas o que sempre foi determinante, no som original, era a maneira original de criar e fazer arranjos e tocar apenas as nossas composições.

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Mini Paulo e Albery Albuquerque, fizeram parte da primeira formação do Sol do Meio Dia.

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O Sol do Meio Dia

Rafael Lima,Odorico, Luiz Pinto, Walter Freitas, Aritannã “O Sol na Periferia”.

O Sol do Meio Dia estava inserido no contexto musical amazônico e tinha um projeto de ampliação nacional, uma pro-posta musical que grande parte dos mú-

sicos paraenses podiam se beneficiar encarando suas iniciativas. Embora existissem ressalvas para levar a frente um trabalho próprio, autoral, como expressão ar-tística de resistência cultural e de liberdade criativa. Os músicos do grupo foram tomando consciência do que fluía espontaneamente em suas veias abertas ao fazer um trabalho regional, mas não regionalista, trabalhan-do dentro do contexto de um conjunto de diversidades e adversidades musicais na Amazônia. O Sol do Meio Dia era um conjunto de música contemporânea que pesquisava temas regionais, lendas e literaturas amazô-nicas e que, procurando engrandecer mais a cultura de nossa terra, desenvolvia seu trabalho baseando-se em suas origens e raízes, expressando suas canções.

Buscavam o que havia por trás deles mesmos, de suas vidas como pessoas dentro de toda uma riqueza de elementos poéticos, culturais e da complexidade social e política que é a Amazônia ao aceitar as suas próprias vivências ao inserir na própria música suas experiên-cias e sentimentos e com isso construir a base de uma proposta nova.

Processo Inicialmente, pesquisavam o assunto que seria o alicer-ce do trabalho e posteriormente compunham música e letra, desde que já tivessem um volume de dados sufi-cientes para integrar esses dois últimos elementos. A partir daí, então, eram efetuados os arranjos apoiados numa total liberdade de efeitos sonoros, com perguntas e respostas de um instrumento para o outro, dando um

O Sol do Meio Dia era um grupo de resistência que tentou provar que era possível fazer som de qualidade em Belém apesar de toda a barra e por isso partiu para apresentar seus trabalhos em outros lugares de maior acesso, ao ar livre, ao céu aberto, mais intenso, mais enérgico como o Sol do Meio Dia.

Documentário

Por Carlos Pará

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certo sentido, um desenvolvimento quase se-melhante ao do jazz de vanguarda.

“Não queremos vínculos intelectuais, compromissos com a criação musical, ex-plicam. A música, como aliás, toda arte, precisa ser livre, para expressar realmente os sentimentos humanos. E , nesse ponto é a música, de todas elas, a que mais neces-sita de intuição. Por que é através dessa fa-culdade que nós sabemos quando amamos. E, dentro do campo do som, podemos dizer um tal sentimento. Mas, para isso, é preciso estarmos sem prisões mentais, para que ela se manifeste naturalmente, afim de falar ao coração das pessoas”.

O Conjunto tinha como meta expandir a música amazônica, mostrando que o Pará tem um grupo de pesquisa musical à altura, com estilo e origens próprias, sempre procu-rando difundir e divulgar a arte e a cultura popular paraense.

Ritimos Musicais Em termos de ritmos musicais no grupo se criavam vertentes de construir uma linha de

trabalho amazônico, e não só em termos de música, mas também em termos de postura humana, postura vivencial.

Sem inferiorizar nenhum estilo musical, pensando em levar um trabalho próprio, autoral, ao ter ligações realmente de vida, estando inserido nele, e desenvolver um tra-balho para conseguir que a música prove que realmente é universal, que ela chegue a ser conhecida e absorvida por outros centros, por outras pessoas que não tenham nenhuma relação vivencial com ela.

O grupo sempre teve diversas vertentes de composição, estilos e concepções. O Albery quando entrou no Sol do Meio Dia que esta-va nascendo ainda, via que o grupo cantava músicas do Caetano Veloso, Luiz Melodia, Milton Nascimento e outros, então propôs que o grupo tocasse músicas dos composito-res da terra, composições próprias incluindo as suas, como “Menina Estrangeira” Que menina é aquela de olhar tão vazio /No leito da flor do mangue dos rios / Que menina é aquela de olhar tão vazio/ Olhando pro nada, nada, nada,... a música apresentava muito swing, surpresa criativa nos arranjos e nas composições dentro do contexto da música,

do rock, da ecologia social, “Sol a Sol” que trabalhava a palavra através da aliteração dentro do processo da pesquisa musical baseado no ritmo do Caburé, Albery tinha também a música, um rock “Verde Maravi-lha” que foi gravada no estúdio da Rauland e depois foram fazer uma filmagem, um vi-deoclipe na ruína do Murucutú como cena do programa Rock 76 da Liberal. O Sidney Piñon, compôs várias letras de música, “Pedra Sabão”, apresentava uma quebra de compasso, o arranjo era feito pelo próprio grupo, ninguém tinha formação acadêmica musical e era tudo improvisado, o resulta-do ficava no estilo, o Sidney tinha também “Doce Fauna” em parceria com o Odorico, o Minni Paulo tinha musica instrumental a “Bacuri”. Walter Freitas apresentava com-posições como “Verdoenga” e dialogava muito com o grupo sobre a concepção da música e do “Sol”.

Profissionalização O “Sol” não tocava só por tocar, tinha a preocupação em se profissionalizar e discu-tia muito sobre concepção musical.

Durante três anos que o conjunto atuava, vários músicos tinham saído e entrado para o “SOL” e com o afastamento de uns e a chegada de novos elementos, era necessá-rio praticamente refazer todo o trabalho, e conseqüentemente, fazer uma nova adapta-ção do companheiro na turma, na idéia do que era o “Sol do Meio Dia”. O encontro com o músico e pesquisador Egberto Gis-mont em Belém em 1979, atiçou o Sol a começar a batalhar mais, ensaiando cinco dias por semana, exceto sábado e domingo, para poder mostrar sua arte musical fora de Belém; a intenção deles era arribar, isso exigiria maior aplicação dos músicos, e tra-

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A capa do disco “Sol do Meio-Dia” de 1977 de Egberto Gismont que foi gravado em 1977 com as experiências musicais dele no Alto do Xingu.

balhar mais intensamente era uma forma dos músicos se entrosarem melhor e saber como os outros tocavam, criar uma organicidade no Sol. Essa era uma proposta de profissio-nalização futura com a preocupação principal que o grupo teve depois também, foi gravar um disco. Chegaram a conclusão que a ve-lha teoria tinha que ser aplicada “90% de trabalho e 10% de inspiração. Se você não tem trabalho não tem inspiração”. Outra pre-paração para poder fazer música amazônica de qualidade era preciso estudar, pesquisar os ritmos e as sonoridade da Amazônia e aplicar em experiências subjetivas de criação e com-posição, viajar para o interior, para o meio do mato, das cidades ribeirinhas, viajar para o interior de si mesmo e descobrir essa flores-ta de símbolos, de sons com seus mistérios e imaginários poéticos onde as possibilida-des de criação são infinitas, conhecer tribos indígenas e seus rituais de passagens onde a música cadencia os passos e nos leva a ances-tralidade do mundo.

“Os músicos aqui em Belém, principal-mente, se não morrem de fome, recorrem

a boates de terceira categoria, para poder sobreviver através da música. O meio mu-sical daqui é muito restrito; Além de margi-nalizar o artista: não compreendemos o por que disso, quando no sul, gente célebre ou não, não se tem essa diferença por parte dos empresários de rádio e televisão, ou ainda do público. Por isso, sempre achamos que devia existir uma espécie de líder, afim de solucionar esses problemas que definimos de “divisão artística”. Isso é uma questão de casta intelectual que começa por achar que apenas gente que já tem seu rótulo, como

Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, é que valem a pena ser valorizados. Que nada. Te-mos um bom pessoal, aqui em nossa terra, que anda fazendo coisas muito boas em ter-mos de composição e trabalhos musicais de toda forma.”

História musical O “Sol” iluminava a história musical na

Amazônia, uma história consistente, tam-bém contra a propaganda e as dificuldades

Documentário

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Da esq. p/ dir. Aritannã, Luiz Pinto, Rafael, Carlos, Odorico, Wilson, no show “A Festa de Nazaré”, do Sol, no “Waldemar Henrique”, em 1979.

Egberto Gismonti

Egberto Gismonti tinha um dis-co chamado “Sol do Meio Dia” que foi gravado em 1977 com as suas experiências musicais no Alto do Xingu. Quando ele veio tocar em Belém, em 1979, pelo Projeto Pixinguinha, no Theatro da Paz, o grupo do Sol deu uma fita cassete do show ‘Sol e Cia’ para ele. Ele ouviu, e depois fez uma espécie de workshop com eles, e fez uma constatação de que não havia uma unidade mu-sical: Segundo ele, era como se existissem umas três ou quatro linhas de trabalhos diferentes dentro do Sol. O que não deixa-va de ser uma verdade por que o Sol sempre teve diversas verten-tes de composição, estilos e con-cepções. A diversidade de estilo, o Egberto, particularmente não gostava, mas se a intenção do trabalho era essa, então “tudo bem”, segundo ele.

A partir desse momento o gru-po começa a batalhar mais, en-saiando cinco dias por semana, para poder mostrar um trabalho musical fora de Belém; a inten-ção deles era sair, e isso exigi-ria maior aplicação dos músicos, e trabalhar mais intensamente; essa era uma proposta de pro-fissionalização futura. A preocu-pação principal que o grupo teve depois também, foi gravar um disco. Chegaram a conclusão que a velha teoria tinha que ser apli-cada “90% de trabalho e 10% de inspiração. Se você não tem tra-balho não tem inspiração”. O Eg-berto meteu corda no grupo para gravar um disco, e chegou a dizer que ajudaria inclusive a produzir esse disco.

de acesso ao mercado e pelas condições que garantissem a continuidade de um trabalho artístico profissional. Nunca na verdade tinha havido um movimento musical que se propôs de cunho histórico, como o Sol do Meio Dia. A proposta musical que se divulgava no céu de Belém era clássica e elitista algumas vezes mascarada de popular e amazônico.

O Sol do Meio Dia sempre produzia novas melodias e novas letras e algumas delas foram muito tocadas. O Sol incorporava suas reali-zações numa perspectiva dinâmica, onde a

JANDUARI SIMÕES

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mistura do(s) velho(s) e do(s) novo(s), a par de indicar certas mudanças, que são inevitáveis, re-afirmava uma linha coerente de trabalho para evitar o mero folclorismo, o radicalismo nacionalista, o panfletarismo anti-estético, isto é, o panfletarismo pelo panfletarismo, ao re-criar de forma pessoal e original, as influências brasileiras e internacionais que estruturavam suas vivências cotidianas. Construir realmente uma linha de trabalho amazônica de forma es-pontânea, criativa e conceituada. Fazer musica na Amazônia e ir além do regionalismo.

Sol na PeriferiaO Sol do Meio Dia fez shows em bairros da periferia de Belém num projeto de formação de platéias, proposto pelo grupo, para a Se-cretaria Estadual de Cultura da época. Foram quinze apresentações subvencionadas, com shows abertos, e ao ar livre, pelos subúrbios de Belém.

Era uma experiência totalmente diferente do que tocar no Theatro da Paz porque o público era diferente, mais vivo, mais descontraído, as pessoas escutavam porque estavam ali e ou-viam o som e não estavam a fim de criticar, estavam a fim de curtir o som mesmo. Um pú-blico que nunca tinha visto o Sol do Meio Dia. O público que assistia o Sol era um público que assistia eles no teatro, em recintos fecha-dos, era um público de amigos e conhecidos, de intelectuais, restrito e não por culpa deles. O Sol do Meio Dia nesse projeto tocava em cima do Caminhão pelas ruas e periferias de Belém, no intuito de formar platéia, era uma estratégia eficaz de inclusão musical do projeto e de di-vulgação da banda que já tinha a intenção de realizar uma intervenção urbana mais eficaz como em 1979, com o show “A Festa de Na-zaré”, e outros, antes mesmo, como “Sabor de Chocolate”, “Verdevagomundo” e “Respiran-do Água”. Já em cima do caminhão, na perife-

ria, eles se apresentaram com a banda no Mar-co, Jurunas, Sacramenta, Marambaia, Guamá, Terra Firme e Telégrafo; acordavam às seis da manhã e se encontravam no Agir (uma espé-cie de escola/centro de teatro, música e poesia) que ficava na Rui Barbosa; lá eles colocavam os instrumentos no caminhão e iam para a pe-riferia tocar. Esse Projeto começou em cima de um tema com roteiro do Sidney Pinoñ que era a “Festa de Nazaré”, e basicamente foi mu-sicado por Rafael Lima e Odorico, além de outras parcerias como a de Vital Lima, Alonso Jr., e Luis Pinto. O Odorico teve uma idéia de vir da periferia para o centro da cidade. Era uma inovação no cenário musical da cidade, mas não tinha ido pra frente porque pagavam com seus próprios recursos, batalhando com pouca munição e naquela oportunidade, sem nenhum apoio ou subvenção oficial. Depois, com o projeto de formação de platéia, tocan-do em cima do caminhão, começaram a usu-fruir de um dever do Estado que estava apenas cumprindo com uma das poucas obrigações

A Festa de Nazaré”, e outros, antes mesmo, como “Sabor de Chocolate”, “Verdevagomundo”

Cartaz do show “Verde Vago Mundo”, inspirado

na obra do escritor paraense Benedicto

Monteiro. Arte de Luiz Pinto.

Documentário

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que devia cumprir, pagando o trabalho de músicos que tocavam para pessoas que não tinham acesso a teatro, a shows, porque não podiam ir e pagar ingressos. Então, isso era uma proposta aliada ao interesse da banda em tocar nos bairros de Belém e com o cachê poderiam viabilizar seu primeiro disco o que seria um grande registro documental do Sol do Meio Dia e da história musical paraense. Mas o dinheiro não foi liberado todo de uma vez e inviabilizou a produção do disco.

O Sol foi uma das grandes bandas autênti-cas que já teve em Belém , depois veio o Ma-deira Mamoré; chegaram inclusive a cogitar um show em parceria: “Luz na Estrada” que não aconteceu.

Trabalho PolíticoO Sol tinha um trabalho político consciente

onde também tocava em diferentes Centros acadêmicos na UFPa. Os temas musicais do

“Sol”, sempre tratava sobre as questões de des-matamento, estava preocupado com o social, e com a devastação das florestas.

Nessa fase o Sol amadureceu politica-mente em termos de manifestação, em ter-mos nativos, nas letras e no próprio trabalho musical. O fato é que o movimento musical nesta cidade praticamente não existia porque os músicos não tinham espaço para criar, en-saiar e apresentar seus trabalhos com liber-dade de expressão. O que existia no campo musical oficial, eram inúmeros concertos de música clássica no Theatro da Paz, de difícil acesso a maioria da população, seja pelo pre-ço dos ingressos, seja pela arrogância de suas fachadas, seja quanto ao interesse do público por esse tipo de expressão artística tão dis-tante do dia-a-dia da maioria das pessoas.

Em cima do caminhão o Sol percorria a periferia de Belém: Pedreira , Guamá, Sacramenta, Marambaia, Terra Firme, Telégrafo, ...

MIGUEL CHIKAOKA/KAMARA KÓ

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Documentário

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Cartaz do show “Sol & Cia”, Theatro da Paz, Projeto Jayme Ovalle.

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Luiz Maklouf Carvalho

Não se trata de estar aqui ou estar ali, na colônia ou na metrópole, que é colônia também. O pais é. Não

como categoria vaga, de nação e povo. Mas de país dividido: velho x novo.

Minoria x maioria. Pais de classe. De luta. A arte de enquadrar no seio farto dessas contradições e estabelecer um pólo de defesa, uma trincheira: Rafael Lima aí. Sinal aberto, curva fechada, esquina rompendo o beco.

É do tempo de beco e de sinal muito fecha-do que o homem está na luta. Como Rafa, ou-tros. Armas diferentes querendo ser poder de fogo junto. Tempo de treva, já se anuviando: de sentir na veia e na garganta o seguinte: a força da voz dele, da minha e de quase todos. A voz. A música. A palavra. O som, o artista. O músico, esse, digamos, fu(n)dido. Em Ra-fael Lima (“novacomo o broto da limeira/livre como o grito da manhã) a consciência dessas armas não é de hoje. Ele cantou só, primeiro, e mesmo cheio de gente, pelos bares, pela vida, pela boêmia, pelo sem dinheiro, conti-nuou sozinho até que descobrisse mais. Não um sozinho de solidão, mas de procurar gente e ganhar um pessoal pra confiança da sua arte. Pintou o Sol do Meio-Dia: experimento da calma, de tumulto, de criatividade. De porrada e de companheirismo. Rafael cresceu com e para cada músico do Sol.

Sinal Aberto é uma vitória da luta de Ra-fael. Ele quis muito e está aí como um artista

que tem o que dizer. Num canto que emociona e significa. Mexe. Arrepia. Um artista em construção: “por isso pegar a bigorna e o martelo e — o quanto antes — novas canções forjar”.

Ele trabalha como músico de letristas que dizem que “os dias não eram assim”.

Que alguma coisa sumiu, “como somem as verdades”. Que brincam gostosamente de guerra: “é bala de melão na boca/acesa dos conflitos”. Que “jogam frutos no mundo”. Quem em gotas de sol, esperam que “dias novos hão de vingar”. Tudo se encontrou na inspiração (e no trabalho, muito) de Rafael.

E sai pra fora, abrindo o sinal e mais um pedaço da liberdade com a competência e o brilhantismo dos músicos da Banda Esperta.

Um show, enfim, que dá força.

Carreira Solo

Arte gráfica do poeta Age de

Carvalho para o primeiro show da

cerreira solo de Rafal Lima

Documentário

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O “Arribadas” (1983) foi meu primeiro disco, gravado metade no Canadá e meta-de em São Paulo. A mas-

terização e a prensagem foram feitas na Suíça em 1983. Nesse CD gravei músicas como “Arribada Malunga”, que tem letra do João Gomes “uns malungos atrevidos desceram os lamejos levados / no porto do sal se melaram de pêxe e as modinhas marrom”; “Nao” com letra também do João, “Mim” que é só de minha, “Fu-guêra” do Macá-rio, “Tum Ta Tá” e “Lua-aluá” do Walter Freitas.

O CD tinha letras do João Gomes, com uma linguagem que o Walter Freitas já vinha desenvol-vendo no seu disco “Tuyabaé Cuaá”. Tem coisa do tupi guarani, do linguajar peculiar do caboclo amazônida. E era praticamen-te, esse o repertório do “Arribadas”; era só esse som, que eu já tocava lá fora, no Canadá, e que virou disco. Tem músicos como por exemplo: Gordon, Sheard (pia-no/teclados), David Woodhead (baixo), Quammie Williams (perc.), Jonh Jonh-son (saxs.), Armando Castagnoli (saxs./flautas), Bird (bateria), entre outros, e,

músicos radicados em São Paulo, como Proveta,(sax.) Pedro Ivo (baixo), Magui-nho (bat.), Luizão Rabelo (perc.) e Jota Rezende (teclados).

Essa história de eu sair fora daqui, é porque tem um momento que as coisas começam a ficar muito pequenas; e eu ti-nha ficado saturado de Belém, queria vi-ver de música. Daí, um dia, já morando em

S.Paulo, abandonei o Banco Central, a es-tabilidade financeira, me separei da minha mulher e da minha filha que eu amava muito, e meti o pé na estrada, como a gen-te costumava falar na época; Eu nem pen-sei duas vezes, ou no depois, quando de-cidi arribar, em riba

d`asas como o Walter Freitas escreveu; a certeza que eu tinha, era essa história, de acreditar na música, na música que eu fa-zia, no meu canto, que na verdade ainda estava em processo de maturidade, mas já existiam canções, como “nao, mocho-índio, arribada malunga, festança, festêra” entre outras, que viriam ser a base do meu primeiro CD. Festêra, por exemplo, é a pre-sença da “caboca festêra”, dançadeira de ca-rimbó, lundú, síriá e outros ritmos do norte

Músicografia de um exilado

Eu nem pensei duas vezes, ou no depois, quando decidi arri-bar, em riba d`asas como o Walter Freitas escreveu; a certeza que eu tinha, era essa história, de acreditar na música, na música que eu fazia, no meu canto...

O disco “Arribadas” de 1993. Gravado no Cana-dá e prensado na Suiça, foi a sua primeira expe-riência fora do Brasil.

Influências regionais e muitas parcerias nas andanças do músico e compositor paraense Rafael Lima, que nunca se cansa de abrir o verbo para falar da gente daqui para o mundo ouvir.

Documentário

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do Brasil e a tematica desta canção que têm como ritmo básico o carimbó. A personagem central na música que narra, na verdade só quer a atenção do seu parceiro, o nhô belo, que também é um dançador. Parece também uma alusão à lenda do boto branco, o en-cantado, que à noite sai das águas dos rios e se transforma no mais belo dos homens; e, exímio dançador, encanta e seduz a todas as mulheres nas festas por onde passa. Diz ain-da a lenda, que este belo homem sempre está vestido impecavelmente todo de branco - até o chapéu-, e este, nunca o tira, mesmo du-rante a dança, pra que não se deixe ver o furo que traz na nuca que é o seu respiradouro de peixe. Ainda na canção a personagem cen-tral contrapondo-se a lenda, diz que até esse rapaz encantado, o boto branco, se rende aos seus encantos de mulher, quando esta, devi-damente esta trajada para as festas de carim-bó. Porém, a dançadeira só quer o nhô belo, seu parceiro, que segundo ela é um dança-deiro incomparável a ninguém; nem mesmo

ao exímio boto branco, o encantado. Até então, em Belém, eu já tinha grava-

do duas músicas do Walter Freitas na feira Pixinguinha em 1980, al´wem da experi-ência no Sol do Meio-Dia, e tinha gravado também uma música do Pedrinho Cavalero e do Jorge Andrade chamada “Bem-te-vi”, no disco do Festival “Três canções para Be-lém”. Essa minha estada de três anos em São Paulo (1984-1986), me deu mais um fôlego, um know how para tentar a vida no exterior. Na minha bagagem eu carregava o ritmo da mata, os ritmos ímpares, que é o som do ín-dio; misturados com o carimbó, lundu, ou-tros batuques, outros sons, que compõem a diversidade, a peculiaridade, e a riqueza musical amazônica.

NAO*

Rafael Lima e João Gomes

Nós veio do dentro da índia Na indi’América do sul seremos nomeados índios na Indi’Améri’Carnaval na vaga músicaBrasíli morenos frangos de quintal seremos pedra matutina auroleando o pessoal

suando pingo de resinaque nem tambor no pacoval a pele tosc’AleGrest’ina derrete as esporas de salAgora nós pede licença É Sin’Agô’IampTribal o bumba da nossa vivença fêz baque nessa capital nós truxe o sumo das essença o cimo im flor do mangueiral o pitiú da piracema as flor do bicho folharal

no quengo tuda a conciênçadas tribo la do bananal uns ‘ronco de rumpí ‘nhá vença dessas modinha tropical

Três toque no banjo caboco faz fest’AniM’ont’arraial Alegra o povo faz seresta paresque as do castanhal Sonora flor lá da floresta Iara às vez, um bamburral fez D’alva’im’riba im nossa testa e o rumo foi cimento e cal

A gente é sodade que infesta reimã que não traz o mal É “Nao” que todo o brilho em-prestapro nossso canto natural.

* ”nao”- abreviação de nome feminino japonês; aqui também usado no sentido de embarcação, nau. do dentro da índia-citação da mata amazônica; o que é nascido, vindo do seio dela.

ARQUIVO

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“Arribado Malungo”

FESTÊRA

Rafael Lima e João Gomes

‘to ruxinha ‘tô danada nada e pêxe no ‘gapótudo é pêxe dentro d’ágúa nada sû sem carimbó feche a dûr adore a dança vença o “pare” o desamûr’ abra a boca encharque a pança de alua, bacaba é bom’

‘nhô és belo eu quero eu querorebola lá no mojuto menina, to vexada vermelinha ‘iguá ‘rucum flor és belo eu quero eu quero te ‘roça nos meu’ caju juro juro de pé’junto tar’juriti zé cantadû:‘revelû lá na cidade que eu a filha de xangô stí das muita a mais bonita ‘té que ‘nita e ‘nhá fulô‘ói que quando ‘tô de chita que me arrastû no lundûboto branco inté se agitasobe im terra e berra eu sû:

‘nhô és belo, eu quero eu quero, etc... tôdo o refrão

o rapaz das prûfundeza lá do rio de bujaru diz pra mira que eu sû princeza me prûmete o seu amor mas só quero tu nhô belo vem no tum-tum do tambor’ que de cá, me vû te quero dançadêro iguá’ nenhum

A poética das letras de Rafael

Lima e joão Gomes incoopora

a linguagem popular como

imagem narrativa das nossas raízes

caboclas.

Documentário

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“Arribado Malungo”

Da esq. p/ dir. João Marcos (teclados), Sagica (bateria), Mini Paulo (baixo). Rafael Lima (violão e voz), Odorico (guitarra), Zé Macedo (percissão) e Paulo Levi (saxs), no lançamento do CD “Arribadas” em Belém do Pará.

ARRIBADA MALUNGA

Rafael Lima e João Gomes

uns malungo atrevidodescêro os lamejo levadono porto do sal - se melaro de pêxee as modinha marromse melaro (lavaro) na gosma do solver-o-peso da chula q’sses pari-cerotrûxero do cuspo do vauver a fama do bichono bumba matêro, no limo desse pessoalé sumano benzido e bentado nos tronco’ reivoso’ dos açaizal é suprimo de corpo fechado pula’ sete flexa do preto Amerbalé m’é feia de fita enxotando a tristeza espiando o que chêra -os quintal é ‘scambimbo de zinho no couro da vida é cacete no lombo do maluns caboco atentado aluaro de lua‘s pitinguarana das manhãaNaoaro de ´strela a Cidid’Amazôniana luz matutina - IansãSaravara’ as cidade os perfume no ar Saravara’ as cidades os perfume no arde Mentina-Clemen, tiã, tiã, tiã...de Mentina-Clemen, tiã, tiã, tiã...e a festêra na bera das águadeságua um sorriso da moça Iananãna planície, as cabocase ajuntam morena - tûda’ salpi-cadas de sol urubú desce lentoacordu salvaterra- e a paixão verdoenga arribûde Mentina- Clemen, tiã, tiã, tiã... de Mentina- Clemen, tiã, tiã, tiã... pixãim chêra forteo budum lava terrade reçarayanarrebol, de raçaraya-narrebol e os rebumbo da pele cabanaagora tão lá (as lonjura correm) noestrangêro vela à pique fazendo seu soldo bronze fazendo seu soluns tapuio atantado no mundoalentado no mundo, uns tapuiouns malungo, uns tupãuns tambores tantando no mundoatantando no mundouns tapuio, uns malungouns tan-tan

GERALDO RAMOS

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A formatação da elaboração musical

muda com a presença da tecnologia na Suíça

Francesa.

No disco “Apuí”, passamos aproxima-damente um mês dentro do Groun-dworks estúdio, na Suíça Francesa, gravando, entre setembro e outubro

de 1995. Foi uma experiência diferente do Arri-badas, porque a gente tinha um estúdio na mão e podia experimentar mais; não era aquela coisa de chegar e gravar porque a hora tava correndo...E depois tinha a presença do Bocato, do mestre Bo-cato, que fazia os arranjos pros metais e mandava ver. Era muito legal porque passamos essa tem-porada na mesma casa, eu, Bocato, Tiago Costa, Doum Rumão, Paulo Levi, Eduardo Costa, e a moçada que vinha gravar. Só o Calibre, que mo-rava em outra casa, mas a gente se via todo dia no estúdio. Então o Apuí teve todo esse clima. A gen-te ficava impressionado com a energia do Doum (Rumão), com seus já 70 anos de idade. Depois, o Bocato, era como se fosse uma espécie de Pai-zão de todos, com aquela calma dele; eu me sinto um cara meio que de sorte, por ter conhecido o Boca (Bocato), e ele ter gostado do meu som; eu me sinto muito feliz por isso, e serei eternamente grato a ele por isso. Depois de terminadas as gra-vações eu vim para o Brasil e só retornei à Suiça para a finalização em fevereiro de 86. O CD foi produzido por Stanley Maumary pela gravadora Birdline e o lançamento foi feito no Festival de Jazz de Cully no norte da Suíça. Nessa turnê de lançamento participaram os músicos que tinham gravado como o Paulo Levy, Bocato, Thiago Cos-

ta, Eduardo Costa, Calibre, Rodrigo Botter Maio e o grande Dom Um Rumão que foi parceiro da Elis Regina. O Dom Um eu conheci na Suíça num festival de Jazz: Eu ia abrir o show dele, era eu, uma banda italiana e ele, e aí na passagem do som ele me ouviu, curtiu muito o meu som, e quis tocar comigo e acabamos tocando juntos a minha música. Tem uma particularidade nesse Cd que é a música Sagas, ela entrou à parte no disco Apuí. Quando retornei à Suíça para finalizar o Cd, resolvi gravar Sagas que é alusiva ao mas-sacre dos 11 trabalhadores rurais sem-terra em Corumbiara, Rondônia. Depois com o disco pronto voltei ao Brasil para fazer o lançamento, começando por Belém, chegando aqui no dia 18 de abril de 1996; ou seja, um dia depois do massacre de El Dorado dos Carajás no Pará onde “dezenove brasileiros foram massacrados, na PA-150 dezenove lavradores foram assassinados na curva do “S”. Foi outro choque, porque eu tinha acabado de gravar o “Apuí”, que eu incluí um música sobre um massacre, e daí acontecia um outro massacre muito pior. Dei de cara com uma imensa manifestação de todos os setores da sociedade, contra esse massacre, ali por volta das 11h. da manhã, na avenida Magalhães Barata, e naturalmen-te, acompanhei os protestos. E, logo em seguida, como eu já tinha uma agenda a cumprir sobre o lançamento do Cd, fui no programa Sem Censura e denunciei que o responsável pelo massacre era o governador Almir Gabriel. Essa denún-cia, me rendeu um ostracismo que perdurou até o governo do Simão Jatene, e a minha música, que já não tocava muito regularmente na Radio Cultura, daí mesmo é que foi proibi-da de ser veiculada. Anos depois, em 2007, é que vim a saber através de funcionários da Funtelpa, que, na verdade existia esse tipo de proibição meio que nas escondidas. Acho que já nos dois últimos anos do governo Jatene, é que ouve uma relaxada, e tocaram algumas vezes, mas isso é uma coisa que não acompanhei porque pouco parava por aqui.

Apuí: músicada raiz

Documentário

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A formatação da elaboração musical

muda com a presença da tecnologia na Suíça

Francesa.

No disco “Apuí”, passamos aproxima-damente um mês dentro do Groun-dworks estúdio, na Suíça Francesa, gravando, entre setembro e outubro

de 1995. Foi uma experiência diferente do Arri-badas, porque a gente tinha um estúdio na mão e podia experimentar mais; não era aquela coisa de chegar e gravar porque a hora tava correndo...E depois tinha a presença do Bocato, do mestre Bo-cato, que fazia os arranjos pros metais e mandava ver. Era muito legal porque passamos essa tem-porada na mesma casa, eu, Bocato, Tiago Costa, Doum Rumão, Paulo Levi, Eduardo Costa, e a moçada que vinha gravar. Só o Calibre, que mo-rava em outra casa, mas a gente se via todo dia no estúdio. Então o Apuí teve todo esse clima. A gen-te ficava impressionado com a energia do Doum (Rumão), com seus já 70 anos de idade. Depois, o Bocato, era como se fosse uma espécie de Pai-zão de todos, com aquela calma dele; eu me sinto um cara meio que de sorte, por ter conhecido o Boca (Bocato), e ele ter gostado do meu som; eu me sinto muito feliz por isso, e serei eternamente grato a ele por isso. Depois de terminadas as gra-vações eu vim para o Brasil e só retornei à Suiça para a finalização em fevereiro de 86. O CD foi produzido por Stanley Maumary pela gravadora Birdline e o lançamento foi feito no Festival de Jazz de Cully no norte da Suíça. Nessa turnê de lançamento participaram os músicos que tinham gravado como o Paulo Levy, Bocato, Thiago Cos-

ta, Eduardo Costa, Calibre, Rodrigo Botter Maio e o grande Dom Um Rumão que foi parceiro da Elis Regina. O Dom Um eu conheci na Suíça num festival de Jazz: Eu ia abrir o show dele, era eu, uma banda italiana e ele, e aí na passagem do som ele me ouviu, curtiu muito o meu som, e quis tocar comigo e acabamos tocando juntos a minha música. Tem uma particularidade nesse Cd que é a música Sagas, ela entrou à parte no disco Apuí. Quando retornei à Suíça para finalizar o Cd, resolvi gravar Sagas que é alusiva ao mas-sacre dos 11 trabalhadores rurais sem-terra em Corumbiara, Rondônia. Depois com o disco pronto voltei ao Brasil para fazer o lançamento, começando por Belém, chegando aqui no dia 18 de abril de 1996; ou seja, um dia depois do massacre de El Dorado dos Carajás no Pará onde “dezenove brasileiros foram massacrados, na PA-150 dezenove lavradores foram assassinados na curva do “S”. Foi outro choque, porque eu tinha acabado de gravar o “Apuí”, que eu incluí um música sobre um massacre, e daí acontecia um outro massacre muito pior. Dei de cara com uma imensa manifestação de todos os setores da sociedade, contra esse massacre, ali por volta das 11h. da manhã, na avenida Magalhães Barata, e naturalmen-te, acompanhei os protestos. E, logo em seguida, como eu já tinha uma agenda a cumprir sobre o lançamento do Cd, fui no programa Sem Censura e denunciei que o responsável pelo massacre era o governador Almir Gabriel. Essa denún-cia, me rendeu um ostracismo que perdurou até o governo do Simão Jatene, e a minha música, que já não tocava muito regularmente na Radio Cultura, daí mesmo é que foi proibi-da de ser veiculada. Anos depois, em 2007, é que vim a saber através de funcionários da Funtelpa, que, na verdade existia esse tipo de proibição meio que nas escondidas. Acho que já nos dois últimos anos do governo Jatene, é que ouve uma relaxada, e tocaram algumas vezes, mas isso é uma coisa que não acompanhei porque pouco parava por aqui.

O Apuí pertence a família Cecropiaceae, e existem diferentes espécies de Apuí, cada qual com seu nome científico. O Apuí é um cipó que cresce sobre outras árvores lançan-do raízes aéreas (vem do alto em direção ao chão), e a medida que vai se desenvolvendo, abraçando e dominando a árvore que o hospe-dou, esta vem a morrer. É uma caracteristíca da Floresta Amazônica ela se alimentar dela mes-mo, daí a constatação de que na floresta, mui-tas vezes morte é vida

O disco “Apuí” de 1996, gravado na

Suíça Francesa, contou com um

sofisticado estúdio de gravação.

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40 ABRIL / MAIO DE 2009 PZZ

A impunidade moti-va e fomenta a vio-lência no campo. O atrazo da Reforma

Agrária no Brasil vai gerar maiores conflitos e conse-

quentemente mais ocupações, despejos,

trabalho escravo e mortes

São meganhas infelizesmatadores de escopetasarma e lei, uma merda sólatifúndio em uma só mão

Documentário

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SAGAS (1996)

Rafael Lima

então que alguém ´tra vez me explique´onde é que foi parar o sermão do santo padre da santa madre-será tudo isso não foi em vão? Como pode um certo exército, assim armado até os dentesassassinar tanto inocenteonze mártires de um clãmataram assim a brasileiros gente sem terra sem tetoá procura de um abrigoá procura de seu chão em paranaspanemas, corumbiáras, no sul do Pará, a chacinatem a benção do Estadopara defender o patrãoSão meganhas infelizesmatadores de escopetasarma e lei, uma merda sólatifúndio em uma só mão

Recupéra-se o perdidoRompe-se a dura prisão no auge do furacãosegue o mar embravecido

são diolindas, são antonios “dons” josés, rainhas e pedrosgente cuja teimosiatreme mundo move chãoteimosia com honestidade dando a vida por justiçagente vista como não santamas me mostre a santidadede um “antonio do pau oco”tomás de aquino ou agripinoque em vida as diatribesmuito, muito cometerammelhor o não canonizadoo aqui na terra pagantegente humilde retirante“franciscana” de meu deus

refrão

então me diga quantos médicesgolberís e figueredosfhc e outros fernandosestarão ainda de plantãomantendo em dia a dita ordemmassacrando opositores

financiado pelas cias, es.u.as. e outros financiadospelas “Cias” “Euas” e outros ladrões- ou será que as “Cias” da vidaoutros “Allendes”,“Ches” e Lamarcas continuarão assas-sinando com o aval de seus patrõescom Nestles e city Banksfinanciando esses massacresaparatados pelo estadoem suas sórdidas missões

refrão

CAÇULA

Rafael Lima

não te assusta nãocorre já pra dentromaré vai subirsobe `s água é já.junto jacaré `roncô; tu´viu?passa vem cura`r `ssa maleta brabaquem ti `mpinimô?

anda que tua febre arde tem três noiteschá que é bom tu já não toma tem 3 dias ´s águas já alagaram os campo ́tem três luasböiu jiju tu já não come é só por birra?senta o rabo nessa rede – oh, os santos!faz descanso três Aves Mariascuida moleque `sse teu quebrantonhá Preta tira com sabedoria

paludismo que matoumuito curumim por lá`strela d’alva vem më contaos home` se pûs a remaras mulhe` se pus a velarna `ilhar`ga os filho a bom rezásofrendo atrás de ter`ra ar`tanös alagados prá acolá sucuriju veio, corpo levûfoi tudo tão matrêro que pir`ralho numanadû.tem de engulí `m seco, pegá no terçöentregá a alma ao santo o cor`pó o diabo já arribô.

não te assusta nãocorre já pros camposmaré vai ba`xájunto as cobras, vai`paludismo, febre, rôla vem - tu `viu!dêxa zefa já´ssa semvergonhice`stá já que te `ncantû

anda que o calor `tá fortenão tem mais enchente `ta só igapósar`ta que a maré `ta baxatem muita vazante nesse Marajótoca montaria ligêra`rumo lá pros lados do alto-arari

.(....)JOÃO

LAET

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Mentiras e verdades sobre os 500 anos do “Descobrimento do Brasil”.

Foi um disco gravado em aproxi-madamente 10 dias em maio de 2000, em Lausanne, na Suíça, e produzido por Stanley Mau-

mary pela gravadora L177; era um disco que eu queria chamar a atenção para a farsa dos 500 anos de “descobrimento” do Brasil por isso fiz uma música em parceria com o Minni Paulo Medeiros com texto em inglês para que a denúncia fosse mais abrangente na Europa e ao mesmo tempo escrevi a canção “quinhentos danos”, que é uma outra forma de retratar a questão do “descobrimento” , ela vai mais no cerne da questão, do massacre dos índios, e de to-dos que se levantaram contra a mão bran-ca colonizadora. A outra particularidade desse disco é a ausência de instrumentos de sopro e a presença mais incisiva da gui-tarra do músico espanhol Jesus Gomes. Participam desse disco, além desse gui-tarrista, Calibre (baixo),, Nicola Marinoni (percussão), Minni Paulo Medeiros (bai-xo), Stanley Maumary (bateria), e tem um coro com 50 integrantes do Movimento Sem Terra no refrão da música “as pedras gritarão”. Esse coro, nós ensaiamos em frente da Universidade da Amazônia na hora do Julgamento dos militares respon-sáveis pelo massacre; e após o término, fomos caminhando até o estúdio e grava-mos. Esse material eu levei comigo para a Suíça e incluí no CD.

Capa do disco “500 Ye-ars, so what ? de 2000. Gravado na Suíça pela L177 Records.

Cartaz da turnê de lançamento do CD 500

years, so what? na Europa.

500 years,so what ?

Documentário

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QUINHENTOS DANOS

Rafael Lima

então que alguém me diga, que alguém me diga e explique já !que merda é essa agora ?quinhentos anos comemorar !quem fôi que descobriu ?descobriu o que ?quem fôi esse “pedro” vil ?“cabrão” corrido não sei lá da donde êquerem que a gente engula e se ponha a co-memorarmassacres do passado atrocidades sem conta“palmares” e “farrapos” e tantos outros maisuma certa cabanagem...que vingou lá pras bandas do meu paráe uma nação cabana quase tres anos a lutarindios, negros e humildes contra os deman-dos do lugardesmandos dos impérios dos “portugais”tiranos vis “manélis”gente muito mesquinha que aportou cákraós, yanomamis, kaiapós e kamayurástembés e nhambiquáras, guerreiros todos se juntaitomemos dos tacapes e bordunaso sangue derramadode nossos ancestrais temos que vingar...quantos quinhentos danos, ainda teremos que suportar ?quantos outros massacres, ainda teremos que enfrentar ?massacres de inocentes, sempre a lutarpor uma pátria livre... por “liberdad”por um brasil cabano... por “igualdad”um país soberano... “fraternidad”uma nação que seja livre e possa cantar...uma nação que seja livre e possa cantar...uma nação que seja livre e possa cantar...quem matou nossos ancestrais vai ter de pagarno fogo do inferno essas almas hão de queimardeuses, guerreiros hão de um dia se levantarcontra os malfeitores que sangram nosso lugarcurupiras e pajés hão de um dia vingarfora daqui quem só quer a nação vilipendiar...

AS PEDRAS GRITARÃO

Rafael Lima

testemunhamos pra contar a nossos filhos e suas geraçõesgovernava o brasil em dezessete de abril, dia do massacre vãoum tal fernando henrique que era o presidente, e chefe da naçãogovernava o meu pará, dr. almir gabriel, que determinou a operaçãomas foi um tal de coronel mário pantoja, que deu ordem de atiraçãodezenove brasileiros foram massacrados, na PA-150dezenove lavradores foram assassinados na curva do “S”, entãoeram silvas, pereiras, almeidas, santos, dias, e nascimentosgente de brio e fibra como eles não são tantos, atrás de teto e chãoa PA-150, foi manchada em sangue, do brio desses irmãosa curva do “S”, para sempre envergonhada,chora a morte desses cabra “bão”“acreditamos que as pessoas que vivem para os outros, um dia chegarãoa reconstruir o que os egoistas tentam destruir, mas nunca conseguirão”3 antônio, 1 oziel, 1 lourival, 1 joaquim1 amâncio, 1 manoel, 1 leonardo, 1 altamirojoão rodrigues, joão carneiro, 1 abílio, e 1 raimundimdois josés, um graciano, aquele-um robson, e 1 valdemirocandelárias, candelarias...candelarias, candelárias...candelárias, candeláriascarandirús, corumbiáras,os eldorados dos carajása pedagogia das açõesgolpeia no corpo essa atroz geografiase calarmos... as pedras gritarão...

música de rafael lima e adaptação poética em texto escrito por pedro tierra sobreo massacre de eldorado de carajás, ocorrido em 17.04.96

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A música de Rafael Lima tem cruzado diferentes fronteiras e enfrentado as mais diversas platéias,

mundo afora, em festivais de mú-sica, normalmente voltados para o jazz, mas com uma visão progres-siva, ou o jazz/fusion, por exemplo, como a música de Miles Davis, Jaco Pastorius, Weather Report, Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, entre outros. E isso, seja na América do Norte, na Europa, ou no Brasil.

É dentro desse contexto que se pode citar alguns eventos que Rafael Lima vem se apresentando ao longo desses anos: Montreux Jazz Festi-val, Suíça 1994; Stelli sotto State, Milão, Italia, 2005; Festival Latino

Americano, Milão Italia 1992; Ota-wa International Jazz Festival, 1989; Festival de Jazz de Barcelona, 2004; Varese Jazz Festival, Varese, Italia, 2005; Blue Sky Festival, Crareedon, Canadá, 1989; Festate World Mu-sic, Chiasso, Suíça 1991; Kultur Jazz, Festival contra o Racismo e a Xenofobia, Locarno, Suí-ça, 1993; Festival de Cinema de Locarno, Suíça 1991; Mariposa Festival, Berye/Toronto Canada 1987; Jazz in the Garden, Lau-sanne, Suíça 1997; KWT Jazz Festival, Toronto, Canadá, 1987; Les Toniques Festival Lausanne, Suíça 1998; Podring Jazz Festi-val, Biel, Suíça, 1995; Cully Jazz Festival, Cully, Suíça, 1996.

Festivaisinternacionais

Documentário

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Da esq. p/ dir. Nicola Marinoni (percussão), Rodrigo Botter Maio (saxs., flautas), Chico Correa (teclados e piano), Mini Paulo (baixo elétrico e acústi-co) e Rafael Lima (voz,violão), em tournê pela Suiça em 1997.

STEFAN EICHER

Stefan Eicher - sexta - e Rafa-el Lima - sábado por uma nova música; Jorge Ben Jor, Ney Ma-togrosso e Daníela Mercury pela “brasileira”.“... Se um paralelo é consentido (fazer) entre os artistas que pi-saram o palco deste festival nos dois primeiros dias, não se pode deixar de não considerar junto ao nome de Stefan Eicher o nome do compositor, cantor e violonista brasileiro Rafael Lima. Pelo “res-piro” cultural que ele acumula, a propensão a confrontar-se com outras culturas, e o empenho por uma nova linguagem musical que seja expressão de uma escolha de vida.Na primeira noite brasileira o fes-tival de Montreux propôs nomes seguramente mais famosos que o de Rafael Lima, de seu trombo-nista Itacyr Bocato e de seu per-cussionista suíço Nicola Marinoni. Nos referimos a Jorge Ben Jor, a Ney Matogrosso e a Daniela Mer-cury, artistas que sábado a noite chamaram milhares de expec-tadores ao Auditório Stravinski, transformando-o em uma fantas-magórica praça do Rio de Janeiro em pleno carnaval. Mas mesmo com um “consumado” mistério, com sedução e transgressão refi-nadas, não fizeram outra coisa a não ser oferecer o Brasil a Mon-treux como um produto de con-sumo entre a “música de baile e karaokê de massa”. Rafael Lima, com seus músicos um pouco bra-sileiros e um pouco europeus foi um mensageiro do Brasil e de sua cultura...”

Umberto Savolini(Transcrito do jornal suíço “Corriere dei Ticino” de 4 de julho de 1994)

ARQUIVO

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Reinavam com o castiçalRafael Lima e

Walter Freitas, apresentando

“Reinavam com o Castiçal” em Ponta

de Pedras, nas comemorações

do centenário de Dalcidio Jurandir, em

janeiro deste ano. Os dois parceiros

se conhecem desde 1978, o que ja

rendeu algumas parcerias e varios

shows juntos. Rafael já gravou seis

canções do parceiro.

Documentário

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È um diálogo do livro “Pri-meira Manhã” de Dalcídio Jurandir que eu musiquei em 1993 numa noite de inverno

em Zurique na Suíça, resultando numa opereta de aproximadamente 30 minu-tos. Eu andava com os 11 livros do Dalcídio na mala, podia deixar roupas, mas os livros andavam sempre comi-go. Esse diálogo se trava entre o Alfre-do que é um personagem recorrente de quase todos os 11 livros de Dalcídio, e

Ludica, uma “quase prima”, dele que aparece nesse livro, à frente de um santuário iluminado por um castiçal onde os dois adolescentes, ela com 16 e ele com 15 entre sutilezas, brin-cadeiras e essa linguagem peculiar ri-beirinha fazem uma comparação entre o sexo masculino e o castiçal aceso e a partir daí a conversa se desenvolve através do universo dalcidiano que in-voca as crendices, os costumes, o ima-ginário popular amazônico, o linguajar marajoara e a própria musicalidade porque a escrita do Dalcídio sugere isso. Por exemplo, a primeira vez que eu li o “Primeira Manhã” em meados dos anos 80, quando eu me deparei com esse diálogo, eu tinha a certeza que isso era música pura; muito tempo depois em Zurique, já em 1993, re-lendo esse livro, quando eu cheguei no diálogo, comecei literalmente, imedia-tamente a tocar isso, e a compor o que viria ser a opereta que posteriormente eu viria a chamar de “Reinavam com o castiçal”, e que praticamente a fiz na-quela noite. Recentemente a opereta foi apresenta-da no mês de janeiro , por ocasião das comemorações do centenário de Dal-cídio Jurandir, em Ponta de Pedras, (10), Cachoeira do Arari (13), e na Fonoteca da Fundação Tancredo Ne-ves (15). Eu convidei o Walter Freitas para interpretar o Alfredo e eu fiquei com a parte da Lúdica.

Reinavam com o castiçalCastiçal

À mesa do oratório, no castiçal tão bem areado quê se acredi-

tava de ouro, a caçula acende a vela. Devagarzinho ia Alfredo descendo do parapeito de Eunice, da janela da Odaléa, até que uma furtiva palavra da mocinha o fêz cair no alçapão. Então, foi, tirou da bagagem o ja-buti, dou não dou, dou não dou, e deu: tome que lhe trouxe, trate bem dele. A moça indaga. Ele sem expli-car nada. Deu-lhe, no silêncio, um brusco pesar pela Valmira, brusco, o impul so de sair dali, correr entre os coqueiros... A moça só pinava, estudando aquele embaraço, curio-sa, ansiosa, fa minta de conversar, de tirar dele, rapaz da cidade, o que a cidade tem, oculta e promete. Num querer ganhar intimi dade, fêz-se mais dada, como coisa que ele era de casa, um primo, puxa um assunto mais travesso, resvala aqui, dis farça ali, foi passando nas palavras e na faceirice a sua urtiga e o seu anel arqueava-se no riso ou de repente cara de anjo, a voz proibida, o todo sorrateiro, o olhar facheando sobre o desconfiado. De embaraçado, foi por pouco, Alfre do chega a saliente. Já nem sabiam como principiaram. Reinavam com o castiçal.

Capa do livro “Primeira manhã”

de Dalcídio Jurandir onde Rafael Lima

musicou o diálogo de 13 páginas entre

Alfredo e Ludica no que viria a se

transformar na opereta “Reinavam

com o Castiçal”

DALCIDIO JURANDIR

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Trajetóriamúsica

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Revistas

InfernoVerde...A revista Terra Imatura, ligada à literatura, à arte e à ciência. Essa revista foi significativa por expressar em suas páginas uma literatura mais preocupada com a realidade sociopolítica

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Marinilce Oliveira Coelho

No final da década de 1930, quase dez anos depois do fechamento da revista Be-lém Nova, surgiu no Pará a

revista Terra Imatura, ligada à literatura, à arte e à ciência. Essa revista foi significa-tiva por expressar em suas páginas uma li-teratura mais preocupada com a realidade sociopolítica, já sem aquele caráter expe-rimental e irreverente do primeiro instan-te modernista. Dirigida pelos irmãos Cléo Bernardo de Macambi-ra (01) e Sylvio Braga, a revista teve uma cir-culação mensal de 1938 até 1942.

A redação funcionava, ini-cialmente, à rua Angelo Custódio, 4, e depois mudou-se para a rua 7 de Setembro, 66, no Centro de Belém. Na época, o mundo vivia a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a capital pa-raense passava por transformações na sua paisagem urbana. Folheando as páginas da revista Terra Imatura, o leitor pode ver as fotografias dos novos prédios públicos, dos novos pontos de bondes no Ver-o-Pe-so, da reforma da Praça do Relógio. Além, é claro, dos novos trabalhos de escritores e poetas locais e nacionais.

José Maria Mendes Pereira, redator-chefe de Terra Imatura, tinha a colabora-ção de nomes como o de Alberto Soares

do Valle Guimarães, Adalcinda Camarão, Aloysio Chaves, Bruno de Menezes, Car-los Eduardo da Rocha, Daniel Coelho de Souza, Dalcídio Jurandir, Francisco Pau-lo Mendes, Fernando José Leão, Flávío de Carvalho, José Augusto Telles, Juracy Reis da Costa, Luís Faria, Machado Coe-lho, Mário Couto, Mário Augusto da Ro-cha, Ruy Guilherme Paranatinga Barata, Raul Newton Campbell Penna, Stélio Ma-roja e Solerno Moreira Filho.

A revista contribuiu no sentido de con-gregar intelectuais e poetas paraenses que estavam dispersos, sem ligação alguma entre si (02). O título foi uma homenagem

ao romance do escri-tor Alfredo Ladislau, intitulado Terra Ima-tura (03), publicado em 1923. O romance trata sobre a cultura e a economia da Região Amazônica, ressaltan-do a diversidade da na-tureza. Duas epígrafes compõem o romance

de Alfredo Ladislau, uma de Euclides da Cunha transcrita de “À margem da histó-ria - sobre a descrição geológica do “largo canal terciário que por longo tempo sepa-rou os planaltos Brasileiro e os de Guya-na” e a outra de Alberto Rangel sobre a “terra prometida às raças superiores, toni-ficadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e providas de dinheiro, e que, um dia virão”, transcrita da obra Inferno Verde. Nesse contexto, o romance Terra Imatura despertou grande interesse no meio intelectual da época devido as po-sições ora mítica, ora nacionalista da obra

em relação à Região Amazônica.A trama se desenvolve a partir da con-

versa entre dois personagens, Aiúna e Arianda, que contemplam o pôr-do-sol amazônico, da cidade de Santarém, na confluência dos rios Tapajós e Amazo-nas. Absorvidos pela beleza natural das terras amazônicas, eles dialogam sobre a pobreza econômica do povo daquela “vastíssima região impúbere, terra ain-da imatura”(04), mesmo vivendo em “terra, prodigamente fecunda”. A in-quietação daqueles jovens amazônicos, na exigente procura de um caminho de

A revista Terra Ima-tura, ligada à litera-tura, à arte e à ciên-cia foi significativa por expressar em suas páginas uma literatura mais pre-ocupada com a rea-lidade sociopolítica

Revistas

Terra Imatura: o surgimento rutilanteno inferno verde

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desenvolvimento para a região, vingou como uma palavra de ordem no grupo de Cléo Bernardo que seguiu o estilo de pensar e adotou o espírito de luta na realidade econômica, cultural, social, política e cultural que se estruturava no país nos anos 30.

A revista Terra Imatura (04) como tal meio de vincularão para comunicar a ideia da geração, publicou no número 2, de maio de 1938, um editorial que definia a finalidade do periódico e cla-mava apoio dos estudantes. Leia um trecho do editorial.

[...] Terra Imatura é a peleja por um Brasil mais nosso, por uma Amazônia mais ajudada. A mudança se fez porque o espírito da mocida-de quis prestar uma homenagem reconhecida à memória daquele que em vida, entre lágrimas e soluços cantou os mistérios da Terra Imatu-ra, tornando-se poeta cantado da planície.

Quem ama com carinho esta terra, conhece a alma de Ladislau transformada em páginas sublimes — a jóia preciosa do seu espírito — Terra Imatura.

Terra Imatura c a Terra Verde de Eneida. O verde esperança. A esperança c a mocidade.

A mocidade é o Brasil. Por isso, Terra Ima-tura, surgindo entre a promessa e a juventude tem que ser com a ajuda de Deus, a revista do Brasil [...] Terra Imatura aparecendo, surgin-do rutilante, como o sol nas manhãs caboclas do inferno verde de Rangel, principia a can-tar o hino mavioso que cantaremos sempre a grandeza sentimental da Amazônia - a esme-ralda que o Brasil deve guardar com fé, no anel grandioso do seu orgulho. (05)

Nos trechos citados acima se percebe que a revista Terra Imatura, o “mensário independente dos estudantes do Pará”,

empenhar-se-ia em representar o mundo amazônico em seu lirismo e ideal regio-nalista. No artigo Para realizar - levanta-te mocidade!, de Cléo Bernardo, o autor volta-se para a necessidade da organi-zação dos estudantes paraenses a fim de conquistarem melhorias sociais, como as alcançadas pelos estudantes de Pernam-buco, que conseguiram fundar a Casa do Estudante, naquele Estado. Para Cléo Ber-nardo, uma instituição modelar que tam-bém poderia ser construída em Belém.

“O estudante pobre tem duas barreiras

contra si: a sua pobreza e a carestia dos livros e das taxas escolares.

Além disso tudo, a moradia e o passa-dio são caros.

Em Belém não há casas apropriadas para hospedar estudantes pobres de ou-tros logradouros.

Só existe para o rico, com diárias a co-ronel”.(06)

Outra preocupação com a injustiça so-cial avança em outras crônicas do mesmo autor. Uma delas é A alma do século, a propósito dos horrores da guerra sino-

Folheando as páginas da revista Terra Imatu-ra, o leitor pode ver as fotografias dos novos prédios públicos, dos novos pontos de bon-des no Ver-o-Peso, da reforma da Praça do Relógio.

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Revistas

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japonesa, vistos por Cléo Bernardo em filme, no cinema Olímpia, em 1938.

A guerra surgiu porque a ambição nasceu (...), porque o século XX é o tempo do direito da força contra a consciência do direito. E o mundo acovarda-se. E as sociedades ba-tem palmas, aplaudindo essas nações que querem fazer a sua glória, a sua grandeza no cume aguçado das baionetas. (07)

Em outubro de 1938, Terra Imatura trazia notícia sobre o avanço das tropas alemães na Europa. O autor demonstra toda sua indignação diante do nazismo e do fascismo que dominavam a Europa e revolta-se com a idéia do abuso de poder dos ditadores da guerra, Cléo Bernardo denuncia o morticínio legado à humani-dade pelas guerras, de um tempo histó-rico de força contra o direito humano de viver. (08)

O orgulho, o cego e tradicional orgulho alemão sempre plantando no seio da hu-manidade a semente da angústia, da gran-de angústia, da grande angústia universal [...] Bismarck passou. Guilherme II passará como Hitler e outros endocrinopatas impe-rialistas[...] (09)

Traços de nanquim

Em Terra Imatura, tanto os textos cha-mam a atenção do leitor pela intensa determinação de pensar o Brasil (10) e sua gente, como os desenhos que apare-cem na revista seguem o mesmo intuito. Os “redatores desenhistas”, como eram denominados, da revista muito colabora-ram para manifestar o espírito crítico de interpretação que predominava no meio intelectual da época. Dentre os ilustrado-res, tem-se os seguintes nomes: Baran-dier da Cunha, Geraldo Corrêa, Guiães de Barros, Garibaldi Brasil.

Os desenhos Cabeça de negro, do “ar-tista da planície” Garibaldi Brasil (11), e Maracatu, de Barandier da Cunha, servem de referência de um movimento intelectual que desvendava o país e sua gente. Barandier, por exemplo, conse-guiu captar o movimento harmonioso dos passos do maracatu e, mais além, a

Os desenhos Cabeça de negro, do “artista da planície” Garibaldi Brasil144, e Maracatu, de Barandier da Cunha, servem de referência de um movimento inte-lectual que desvendava o país e sua gente.

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sensualidade dos dançarinos em suas for-mas de equilíbrio e sensualidade, que nos lembram o ritmo frenético da “negra fulo” dos versos de Jorge de Lima.

Outro destaque, do caprichoso trabalho gráfico e visual da revista Terra Imatura eram as capas. Um exemplo é a da revista número 2, de maio de 1938, ilustrada com motivos da flora regional, assinada por Guiães de Barros. A vitória-régia dese-nhada é símbolo de beleza para a mocida-de de Terra Imatura que celebrava a vida. Já na revista de número 5 de outubro do mesmo ano, o desenho de capa, por Geral-do Corrêa, é uma alusão ao Círio de Nossa Senhora de Nazaré, festa religiosa realiza-da no mês de outubro, em Belém do Pará. Desse mesmo desenhista é a ilustração da coluna “Ciranda Social”, onde, em traços de nanquim, garçons e fregueses habituais do terrace do Grande Hotel tornaram-se figuras magras e elegantes, de um cená-rio de conversas entremeadas por fumaça de cigarro e drinques.

Velas da poesia

Na década de 1930 foram lançados li-vros significativos para a história da litera-tura brasileira, obras como Libertinagem, de Manuel Bandeira; Remate de males, de Mário de Andrade; Poemas, de Murilo Mendes; Pássaro cego, de Augusto Frede-rico Schmidt, Cobra Norato, de Raul Bopp e Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade. No Pará, De Campos Ribei-ro estreia com Aleluia (1930), Bruno de Menezes lança Poesia (1931) we Batuque (1931). Dulcinéia Paraense, Paulo Plínio Abreu c Ruy Guilherme Paranatiriga Ba-rata publicam os primeiros poemas, nas páginas de Terra Imatura.

A literatura brasileira da década de 1930 é caracterizada pela “substituição do tra-balho destruidor pelo trabalho construti-vo.” O poema-piada, tão presente na fase inicial do Modernismo, perde lugar para a seriedade nas discussões, surgem preo-cupações novas de toda ordem: políticas, sociais, econômicas, religiosas e filosófi-cas. Em Belém, Ruy Guilherme Parana-

Publicidade da loja “A Pernambucana” publi-

cada nas páginas da Terra Imatura.

NOTAS DE RODAPÉ DA PUBLICAÇÃO “O GRUPO DOS NOVOS”. MEMÓRIAS LITERÁRIAS DE BELÉM DO PARÁ - EDITORA UINIVERSITÁRIA /UFPA

01 Cléo Bernardo de Macambira Braga nasceu em Belém. Formado pela Facul-dade de Direito da Universidade Federal do Pará, lecionou nesta mesma univer-sidade e no Colégio Moderno. Jornalista, cronista, poeta e parlamentar estadual pelo Partido Socialista Brasileiro. Foi sol-dado voluntário da Força Expedicionária Brasileira.02 BARATA, Ruy Guilherme Paranatin-ga. A geração remediada do Pará dá boa tarde a Fortaleza por intermédio de Ruy

Barata. Folha do Norte, Belém, 20 jul 1947. Suplemento Arte Literatura, n°33, p. 3. Entrevista.03 LADISLAU, Alfredo. Terra Imatura. Belém; J. B. dos Santos e Cia Editores, 1923.\361bidem, p. 15.04 Terra Imatura, Belém, n. 2., maí 1938, p.2-5. 4. Na pesquisa realizada foram consultados o exemplares de nú-mero 2, 5 e 10, únicos encontrados ua Seção de Obras Raras da Biblioteca Pú-

blica “Arthur Viana”, cm Belém.05 Idem, ibidem, p. s/n.06 BRAGA, Cléo Bernardo. Para reali-zar - levanta-te mocidade! Terra Imatu-ra, Belém, n. 5, p. s/n, out 1938.07 Idein. A alma do século. Terra Ima-tura, Belém, n° 2, p. s/n, maio 1938.08 HOBSBAWN, Eric J. Era dos extre-mos: o breve século XX (1914-199Í). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.09 BRAGA, Cléo Bernardo. Agora. Terra

Imatura, Belém, n° 10. p. s/n, sct 1939.10 De acordo com Nelson Werneck Sodré, o confronto entre o velho e o novo regime político no Brasil, desde o fim do século XK até o encerramento da Primeira Guerra Mundial, despertou nos intelectuais do país um intenso trabalho de espírito crítico. Na década de l930, essa autenticidade de interpretar o país alcançou uma maturidade, pois com o Modernismo, os conceitos de novo, de moderno, de autêntico, de nacional e de

Revistas

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tinga Barata (12) publica Eterno Dilema, poema longo de três estrofes, numa linha existencilista sobre o mito da busca. Um menino ouve e guarda o conselho amigo do velho sorridente, que lhe adverte a compreender a vida com um único senti-do verdadeiro. O menino cresce e as fra-ses do velho soam-lhe em pensamentos por muito tempo. Quando homem: em busca “da fortuna, do amor, da ventura e da paz” que ele pensa ser a vida.

Com as sandálias ro-tas, depois de ter anda-do mundo afora depois de ter sonhado e sofrido, “de-pois de desistir do prometido”, o jovem já descrente olha para o céu e per-gunta aos deuses: “ - Porventura existe vida?”

No mito da busca, o herói esvazia de sentido a caminhada aniquila a crença na solução compensadora que algum dia lhe traria “as pétalas de louro”. Na mitologia grega, Jasão deve enfrentar vencer o dra-gão que guarda o velocino de ouro, mas o herói após adormece, o monstro com a ajuda de um filtro mágico, preparado pela feiticeira Medéia. Jasão, submisso a Me-déia, perde o sentido da missão. Perdido o sentido da busca, o herói não consegue compreender que certos fins não podem ser atingidos por quaisquer meios. E, assim, se distancia da concepção de que para vencer basta apenas compreender o “único ponto verdadeiro: a vida”. Trata-se, portanto, de desvendar o alcance e os limites circunscritos ao homem moder-no.

E ainda, em Terra Imatura, que a poe-

sia de Dulcinéa Paraense tem de pessoal um lirismo marcado pela saudade, pelo desengano.

A revista Terra Imatura publicou tam-bém a prosa paraense. São textos que descrevem a paisagem regional, numa linguagem clara, objctiva. Dois exemplos de prosa podem ser citados. O primeiro é de Dalcídio Jurandir, intitulado Ver-o-Pe-so, segundo noticiário da própria revista, um trecho do romance inédito, até aquela

data, mas que já po-dia ser lido na edição de setembro de 1939 de Terra Imatura. Ve-jamos:

Tons de telhado colonial na luz nas-cente. Os sobrados

abrem as suas janelas gastas e maravi-lhadas e com os seus azulejos reluzentes e os seus telhados de telhas vãs olham as velas que vão subindo devagar, com o seu ritmo que seria uma dança de velas em ascensão para a luz. Os canoeiros lançam as velas que vão secar ao sol. É como se toda a Doca, suja e espetada de mastros e traçado de cordagens fosse uma prodi-giosa flor desabrochando, todas as velas subiram para o sol, como se abrem as fo-lhas dos tajazeiros grandes (14).

O segundo exemplo, é de autoria de Ruy Guilherme Paranatinga Barata, que publicava nas páginas de Terra Imatura um trecho do romance inédito chamado Interior. Numa narrativa mais introspecti-va, o texto mostra o homem amazônico e a solidão do lugar.

Ruy Guilherme Parana-tinga Barata publica em Terra Imatura “Eterno Dilema”, poema longo de três estrofes, numa linha existencilista so-bre o mito da busca.

Ruy Guilherme Paranatinga Barata

O velho lhe dizia sorridentenas manhãs de abril da sua infância.Menino, em breve serás homem,guarda contigo este conselho amigopara venceres sempre, basta apenasque compreendas o único ponto verda-deiro.- Ávida [...]E ansiando angariar o vcloeino de ouro,qual Jasão partiu sem olhar para trás...As sandálias já rotascurvado e encanecido,depois de ter sonhado e ter sofrido,depois de desistir do prometidodescrente parou [...]Ó deuses das desditas e das desgraças,vós que regeis toda a humanidade,dizei-me:Porventura existe vida?

Dulcinéa Paraense

Alma incompreendidaSe eu pudesse fazer de ti, como as múl-tiplas estrelasum precioso colar,te ostentaria, então, orgulhosa e altaneirasobre o meu peito arfantc a humanidade inteirapara fazer vibrar de inveja c de desejosaqueles que fecharam as bocas aos teus beijos,aqueles que te viram e não te compre-enderamaqueles que te possuíram e não soube-ram te amar.

ETERNO DILEMA

INCOMPREENDIDO

NOTAS DE RODAPÉ DA PUBLICAÇÃO “O GRUPO DOS NOVOS”. MEMÓRIAS LITERÁRIAS DE BELÉM DO PARÁ - EDITORA UINIVERSITÁRIA /UFPA

popular, por exemplo, ganharam mais espaço nos estudos históricos e literá-rios. Vide SODRÉ, Nelson Werneck. His-tória da literatura brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 489.11 A revista noticia a mostra de nan-quins de Garibaldi Brasil, ocorrendo na-queles dias, na Livraria Martins. Terra Imatura, Belém, n. 10, p. s/n, set. 1939, p. s/n.12 Ruy Guilherme Paranatinga Bara-ta nasceu cm 25 de junho de 1920, em

Santarém - Pará, cidade localizada às margens do rio Tapajós, filho de Alarico de Barros Barata e Maria Paranatinga Barata. Veio para Belém aos dez anos de idade a fim de estudar o ginásio. A família mudou-sc para Óbidos, outra cidade do Baixo- Amazonas. Cursou as duas primeiras séries no internato do Colégio Moderno as três últimas no Ins-tituto Nossa Senhora de Nazaré - colégio religioso dirigi pelos Irmãos Maristas. Estudou ainda no Colégio Estadual Paes

de Carvalho. Neste colégio, juntamente com outros dois colegas, Cléo Bernardo e Carlos Eduardo da Rocha, fundou a revista literária e política Terra Imatura. Formou pela Faculdade de Direito do Pará, em 1943. Exerceu o jornalismo Trabalhou no jornal Folha do Norte. E dirigiu nos anos 60, o Suplemento li-terá de A Província do Pará. Elegeu-se deputado estadual pelo Partido Soe Progressista, cm duas legislaturas, de 1947 a 1954. Lecionou Literatura Bra-

sile na Faculdade de Filosofia, Letras e Artes. Em 1964 foi preso e demitido cartório em trabalhava e aposenta-do, compulsoriamente, do magistério superior com a anistia foi readmitido como professor da Universidade Fede-ral do Pará Morreu em São Paulo, no dia 23 de abril de 1990, onde foi fazer uma cirurgia, sepultado em Belém. Li-vros: Anjo dos abismos (poesia, 1943); A linha imaginária (poesia, 1951); An-tilogia (poesia, 2000).

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Mocidade crítica

A revista Terra Imatura trazia uma coluna especial de crítica literária intitulada “As-pectos Literários”. De responsabilidade de Carlos Eduardo Rocha, a coluna comen-ta, por exemplo, sobre Machado de Assis. Com um estilo didático, Carlos Eduardo explica as duas fases da obra de Machado de Assis: a romântica é a realista. Essa di-visão é feita, de acordo com o pensamento de José Veríssimo, admirado por Carlos Eduardo, que divide a obra machadiana de acordo com as características dos estilos literários românticos e realistas. Cha-ma a atenção do leitor para o humor de Machado de Assis e para a influência de escritores estrangeiros, principalmente os franceses e alemães, na obra macha-diana. Tece comentários, por exemplo, do tipo: “Machado de Assis, possuidor de importantes características, é, na sua personalidade total, o maior dos nossos escritores.”

Em outro número da revista, aparece um artigo sobre Marques Rebelo (16). O autor de Oscarina (1931) é comparado a Machado de Assis: “Estilista de raça, descendente da nobilíssima família es-piritual de Machado de Assis, pela efi-ciência de forma e, sobretudo pela sua humanidade.” É destaque o interesse de Marques Rebelo pelo ambiente urbano da Zona Norte do Rio de Janeiro, com sua gente: funcionários públicos, malan-dros, sambistas. Assim, Carlos Eduardo se refere a Marques Rebelo.

Marques Rebelo, talvez como ninguém, compreendeu e sentiu tão bem o Rio de Ja-neiro mediano e burguês. Em Oscarina, fixou com perfeita exatidão o carioca despreocu-pado e o cotidiano da sua vida.

Outro nome ligado à crítica literária que aparece em Terra Imatura é o de Rornangueira de Oliveira. Em O atual movimento literário no Rio Grande do Sul, artigo especial para Terra Imatura, ele trata acerca da prosa e poesia atuais do Rio Grande do Sul. O ensaísta cita nomes de autores da literatura moderna gaúcha como por exemplo: Eriço Verís-simo, Mário Quintana e Darci Azambu-

ja. Obras de Érico Veríssimo, como Cla-rissa (1935), Caminhos cruzados (1935) e Música ao longe (1935), são elogiadas por suas densidades dramáticas. Olivei-ra destaca o interesse de Érico Veríssimo em escolher como tema para as novelas o cenário gaúcho e “parcialmente aspectos e costumes sulinos”, o que evidenciava na tendência regionalista da literatura brasileira daqueles anos.

A rua dos cata-ventos (1940), livro de poesia de Mário Quintana, e No gal-pão, livro de contos de autoria de Darci Azambuja, seriam outros, destaques da literatura sulista. Do Norte do país, o en-saísta cita como exemplo de escritores de tendência regionalista, o romancista baiano Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.

Diante disso, a revista Terra Imatura ampliou e desenvolveu os novos itine-rários da literatura local e nacional da década de 1930, marcando definitiva-mente o movimento literário paraense. Depois do fechamento da revista, em 1942, por motivos financeiros, pode-se dizer que houve um desfalecimento na vida literária local. Somente a partir de 1946, a literatura paraense tomou um novo impulso com a publicação do su-plemento literário da Folha do Norte. No qual se atinge uma literatura e, também, uma crítica literária preocupadas com os problemas existenciais do homem con-temporâneo.

Além do suplemento, duas revistas foram lançadas por essa geração de es-critores: Encontro (1948), com apenas um número, e Norte (1952). A última, lançada quando o suplemento literário da Folha do Norte não mais circulava. Antes de passarmos para a análise do suplemento literária da Folha do Norte, que tem pela sua extensão e periodicida-de uma importância literária e histórica maior, passaremos pela presença dessas duas revistas locais que, dirigidas por integrantes do “Grupo dos Novos”, apre-sentam importância documental para a história literária de Belém.

A capa do disco “Arribadas” de 1993. Gravado no Canadá e

prensado na Suiça, foi a sua primeira experiência

fora do Brasil.

Revistas

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GuinéBissau:Imagens BrasileirasConsiderando os diversos

aspectos da globaliza-ção e a vinculação intrínseca entre condições socioeco-nômicas, ambientais e as de saúde – situação conhe-cida na literatura científica como Determinantes Sociais da Saúde –, Brasil e Guiné-Bissau estão intimamente irmanados em seus desafios atuais, e a realidade de seu futuro dependerá da quali-dade das medidas tomadas agora em favor de suas po-pulações mais carentes.

Hilton Silva

ConexãoÁfrica

FOTOS HILTON SILVA

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Hilton Silva

Sentado ao pé de uma manguei-ra, vendo as pessoas passar ao meu redor e provando o cheiro e o sabor doce de uma manga

daquelas que o educador Paulo Freire tanto gostava, não posso deixar de ima-ginar como era a Guiné-Bissau na época em que ele esteve aqui pela primeira vez, em 1975, logo após a independência. A guerra de libertação, liderada por Amíl-car Cabral e vencida contra Portugal, foi o golpe de misericórdia no império português e transformou radicalmente a face da África, este enorme continente que se parece tanto com o Brasil (in-clusive na sua forma geométrica), e que para nós ainda é tão superficialmente conhecido. Chega a ser, de fato, impres-sionante o pouco que é publicado na imprensa sobre este pedaço de mundo, a não ser em caso de guerras, pragas e desgraças naturais.Com apenas 36.125 quilômetros quadra-dos e cerca de 1,3 milhão de habitantes, a Guiné-Bissau, com nome e sobre-nome para diferenciar da Guiné Conacri e da Guiné Equatorial, tornou-se oficialmente indepen-dente em setembro de 1974. O país, um dos menores da África, é for-mado por mais de 30 etnias, entre elas os grupos Balanta e Fula, populacional-mente dominantes, que se juntam aos Manjaco, Papel, Mandinga, Mancanha, Bijagós e muitos outros povos minori-tários que, por sua vez, estão relaciona-dos a diversas etnias de outros países do oeste africano. Essa junção forma um magnífico um mosaico multicolorido, ao qual se somam portugueses, cabo-verdianos, senegaleses e um crescente número de brasileiros. O encontro de povos contribui para uma profusão de línguas, desde a primeira,a língua ma-terna, étnica, que as crianças aprendem

nas tabancas (como são chamadas as al-deias-vilas locais), a segunda, o crioulo, originada da mistura das línguas locais com a portuguesa, aprendida nas ruas, na interação com os outros grupos, e as demais que podem ser o português, o francês, o inglês ou o árabe, dependen-do da atividade profissional, da origem familiar e das escolhas pessoais dos in-divíduos.Como muitos países da África, a Guiné-Bissau também passou por convulsões internas após a libertação de Portugal e por uma guerra civil (1998-99) que dei-xaram marcas profundas em sua infra-estrutura, fazendo com que essa jovem democracia, com mais de 30 partidos políticos registrados, ocupe uma das últimas posições no IDH (Índice de De-senvolvimento Humano), que é medido em 177 países, situando-se, portanto, entre as nações mais pobres do planeta.

Em 2007 estive na Guiné-Bissau como consultor do Unicef e da UNESCO para ajudar no treinamento de profes-sores e desenvolvimento de materiais didáticos, alguns dos grandes desafios, entre muitos outros, enfrentados pelos guineenses. Nesse caso, minha função foi colaborar para o desenvolvimento de materiais de formação para os pro-

fessores leigos, isto é, aqueles que não passaram por uma Escola Normal, e que representam mais da metade dos docen-tes em atividade no sistema público no país. Lá o analfabetismo ainda prevale-ce em todas as faixas etárias, e mesmo as crianças que conseguem emergir do ensino básico, um em cada dez que in-gressam, aproximadamente, não conse-guem escrever no nível desejado nem se comunicar fluentemente em Português, a língua oficial do país.Após alguns dias lá, percebi que a Guiné-Bissau em muito se parece com o Brasil, embora seja centenas vezes menor, esteja muitos pontos abaixo no IDH e fique do outro lado do oceano Atlântico. Tanto no passado quanto no presente, além da fortíssima influência africana nas Terras de Vera Cruz (cerca de 28% dos nossos genes segundo al-guns estudos), temos muitos pontos em comum.Ambos os países foram colônias portu-guesas, têm como língua oficial o portu-guês, estão em vias de desenvolvimen-to, têm uma grande variedade de etnias tradicionais e se assemelham também nos ritmos que se ouvem nas ruas, nas comidas e frutas, nos mercados, na di-versidade religiosa, na alegria e no es-forço do povo em superar dificuldades, na mistura entre as muitas culturas, na presença de florestas tropicais e belezas naturais ainda desconhecidas do resto do mundo, e na elevada prevalência de problemas socioeconômicos, com suas inevitáveis conseqüências ambientais.Dependente fundamentalmente de re-cursos naturais para adquirir divisas, com grande parte da população rural e iletrada, Guiné-Bissau vê sua juventude sem perspectiva de educação e traba-lho e assiste a infiltração das drogas em todas as camadas do tecido social. Lá, como aqui, milhares de pessoas morrem por falta de acesso a serviços básicos de

Retratos daGuiné-Bissau

A guerra de liber-tação, liderada por Amílcar Cabral e ven-cida contra Portugal, foi o golpe de mise-ricórdia no império português e transfor-mou radicalmente a face da África, este enorme continente que se parece tanto com o Brasil

ConexãoÁfrica

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O país, um dos menores da África, é formado por mais de 30 etnias, entre elas os grupos Balanta e Fula, populacionalmente dominantes, que se juntam aos Manjaco, Papel, Mandinga, Mancanha, Bijagós e muitos outros povos minoritários que, por sua vez, estão relacionados a diversas etnias de outros países do oeste africano.

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ConexãoÁfrica

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água, esgotos e atendimento à saúde. As mulheres são discriminadas e a violên-cia contra elas e as crianças é algo corri-queiro. Apenas uma minoria tem acesso à educação de qualidade, a gravidez en-tre as meninas, as doenças infecciosas, a pobreza, a violência no campo, o subem-prego e a corrupção são endêmicos e as florestas estão virando carvão. As seme-lhanças com o Brasil são inegáveis.Uma das bases mais importantes da eco-nomia guineense é a castanha de caju. A monocultura do cajueiro se desenvolveu com maior intensidade, a partir da década de 1980, fomentada pelo governo como uma alternativa à agricultura tradicional de subsistência. Muita floresta foi corta-da para dar lugar aos cajuais. Agora, a árvore cresce livremente nas proprieda-des familiares, sendo as plantações ex-ploradas pelas famílias individualmente e a castanha vendida in natura aos atra-vessadores de diversos países que para lá se deslocam na época da colheita, nos meses de maio a junho. A coleta do caju e o tratamento das castanhas envolvem homens, mulheres e crianças, como as demais atividades agrícolas de subsis-tência, que garantem o sustento regular das famílias, freqüentemente numerosas e sujeitas às flutuações do preço de seu principal produto no mercado interno e externo. Em 2007, em função das mu-danças climáticas globais e da especula-ção dos atravessadores, a produção foi severamente reduzida e os preços muito baixos deixaram milhares de famílias em situação precária.Na Guiné-Bissau, assim como em todos

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os países, a degradação ambiental é fruto dos padrões de uso social que se faz dos recursos naturais, e os efeitos das mu-danças ambientais globais já começam a aparecer. No ano de 2007, as chuvas, que geralmente iniciam com intensidade em maio, não começaram até meados de julho. Em um país de bases econômicas rurais e extrativistas, isto pode ser catas-trófico, e foi. Como declarado em diver-sos painéis e documentos da ONU, e rei-terado no recente Fórum Social Mundial, em Belém (27\01 a 1\02\2009), os efeitos das mudanças climáticas serão mais sen-tidos nos países mais pobres. O caju, o arroz, o milho e diversas outras culturas guineenses têm sido severamente afeta-das pela mudança no padrão das chuvas.Nos países considerados ‘em desenvol-vimento’, entre os quais encontram-se o Brasil e a Guiné-Bissau, grande parte das doenças humanas está associada a con-dições ambientais. Os elevados níveis de parasitoses intestinais entre crianças e adultos, a alta mortalidade infantil e o grande número de internações hospitala-res por desidratação, diarréias e gastren-terites estão ligados à carência de servi-ços de tratamento de água e esgotos e à conseqüente poluição dos mananciais. Muitos casos de doenças oftálmicas, respiratórias e, possivelmente, cânceres são causados por poluição doméstica, pela exposição crônica, especialmente de mulheres e meninas, à fumaça prove-niente da queima de carvão nos fogões domésticos. A malária, principal causa de mortalidade na Guiné-Bissau e umas grandes endemias brasileiras, encontra terreno fértil para continuar a se desen-volver nas condições insalubres em que habitam grandes contingentes populacio-nais nas áreas rurais sem infra-estrutura e nas zonas periurbanas sem saneamento básico, e os anofelíneos (assim como o Aedes aegypti que transmite a Dengue, aqui) encontram muitos lugares para de-positar seus ovos nas áreas alagadas, ruas lamacentas e nos lixões, que são ubíquos na paisagem nacional.Naturalmente, há coisas que são mais es-pecíficas da Guiné-Bissau. Algumas são mais prosaicas como a convivência, nas ruas empoeiradas deste país paupérrimo, entre os últimos modelos de Hummer,

Audi e Toyota, as centenas de velhos táxis de lotação e os ‘toca-tocas’ (nome local para as nossas vans) superlotados e caindo aos pedaços. Outras são mui-to mais graves. As plantações de arroz, a base da alimentação dos guineenses, estão ficando sufocadas pelas águas sal-gadas do oceano Atlântico, que a cada ano avançam mais sobre as bolanhas (planícies alagadiças onde se planta ar-roz), que recebem menos água dos rios, afetados pelas mudanças pluviométricas. Como em tantos outros países da África Ocidental, alguns grupos ainda realizam a mutilação genital feminina (parte de um complexo ritual iniciático chamado localmente de ‘fanado’ e que envolve também a circuncisão masculina), práti-ca que tem sérias conseqüências sobre as morbidades associadas ao parto e à mor-talidade feminina. Cerca de 80% da po-pulação sobrevive com dois dólares por dia ou menos. Conseqüentemente, a des-nutrição infantil, e mesmo entre os adul-tos, é marcante. A mortalidade perinatal infantil e materna é bem superior a 10%, e, para agravar mais a situação, o sistema público de saúde é pago diretamente pelo usuário, por procedimento. A agricul-tura itinerante, a exploração de madeira nativa para fazer carvão e construção de casas e móveis, somadas à necessidade de expandir as plantações de caju, têm contribuído sobremaneira para a redução da cobertura vegetal natural – estimada em menos de 10% do território nacional. Um número desconhecido de crianças, os ‘talibés’, é enviado ao exterior pelos pais, principalmente ao Senegal, para estudar em escolas corânicas, mas acaba por en-grossar a quantidade de pedintes nas ruas dos países recipientes, trabalhando para os seus ‘mestres’ em condições análogas às de escravidão, e mais de 80 % do Pro-duto Interno Bruto (PIB) do país é prove-niente de doações de outras nações, entre elas o Brasil.No entanto, diferenças à parte, as seme-lhanças entre a Guiné-Bissau e o Brasil têm muito a ver com a realidade sociopo-lítica dos dois países, suas histórias pre-gressas e suas perspectivas para o futuro. Em ambos, o investimento e as políticas nacionais para a educação e saúde têm tido muitos percalços e descontinuidades,

Cerca de 80% da população sobrevive com dois dólares por dia ou menos.

A Nos países considerados ‘em desenvolvimento’, entre os quais encontram-se o Brasil e a Guiné-Bissau, grande parte das doenças humanas está associada a condições ambientais.

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estando sujeitos muito mais a decisões individuais dos mandatários de plantão do que a um projeto nacional. O inves-timento em educação é uma prioridade da qual nenhum dos dois países pode ser furtar mais, sob pena de perder seu lugar na história. Os chamados ‘tigres asiáti-cos’, e também alguns países africanos, vêm demonstrando muito claramente às demais nações em desenvolvimento que somente o investimento sério e contínuo em educação, como política de Estado, pode levar a uma perspectiva de supe-ração da situação de miséria crônica em que as metrópoles deixaram os países co-lonizados nos séculos 19 e 20.A educação também desempenhará um papel fundamental em relação ao desen-volvimento de relações humanas menos predatórias com o meio ambiente e nas metas a serem alcançadas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) da ONU. Assim como o Brasil, a Guiné-Bissau não alcançará muitos dos ODMs até 2015. No Brasil, os mais otimistas acham que a maioria dos oito objetivos será alcançada no prazo previsto, pelo menos em algumas regiões do país. Na Guiné-Bissau, como na maioria dos paí-ses africanos, nem os mais utópicos acre-ditam nisso. Nas duas nações, somente com a elevação do nível de escolaridade (Objetivo 2), será favorecida a igualda-de social entre os gêneros (Objetivo 3); a boa governança será fortalecida, e as gerações futuras poderão reduzir a mor-talidade infantil, a mortalidade materna e as elevadas taxas de gravidez entre ado-lescentes (Objetivos 4 e 5). A elevação da educação formal é essencial para o con-trole das doenças infecciosas como a ma-lária, a tuberculose e a dispersão do HIV (Objetivo 6). Ela contribuirá ainda para reduzir significativamente, e até mesmo erradicar, as chamadas ‘práticas nefastas’ e as violações dos Direitos das Crianças, e para que os dois países possam dar pas-sos mais largos na direção da erradicação da pobreza (Objetivo 1) e da corrupção, que dominam os cenários nacionais.Em particular para a Guiné-Bissau, espe-cialmente em relação à saúde ambiental, os desafios enfrentados são enormes, uma vez que a maior parte da população vive

ConexãoÁfrica

As semelhanças entre a Guiné-Bissau e o Brasil têm muito a ver com a realidade sociopolítica dos dois países, suas histórias pregressas e suas perspectivas para o futuro.

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A maior parte da população vive em áreas rurais e periurbanas, sem acesso a saneamento básico, água tratada, luz, moradias adequadas e estradas para escoar sua produção.

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Pintura de artista

plástica da Guine Bissau.

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em áreas rurais e periurbanas, sem acesso a sane-amento básico, água tratada, luz, moradias ade-quadas e estradas para escoar sua produção. Para sobreviver, a população explora o meio ambiente das maneiras mais diversas, como a realização de agricultura e pecuária em áreas impróprias para tais usos, práticas pesqueiras não sustentáveis, corte de madeira nativa para fazer carvão, lenha e móveis, construções civis que não levam em consideração impactos ambientais e disposição de lixo urbano no meio ambiente sem qualquer controle. Esta situação, no entanto, em muito

lembra a realidade da região amazônica brasileira, onde o Objetivo 7 – garan-tir a sustentabilidade ambiental – e vários outros também não serão alcançados até 2015.As mudanças climáticas globais, agora associa-das à crise econômica mundial, já estão pesando muito mais sobre os países economicamente pe-riféricos e que dependem fundamentalmente da agricultura para o crescimento do seu PIB. Em função de sua trajetória histórica e das deman-das do capitalismo mundial, esses países tende-rão a explorar cada vez mais intensamente seus

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recursos naturais em busca dos fundos necessários à manutenção de seus “com-promissos internacionais” e de máquinas estatais pesadas, burocráticas, elitistas e corruptas, cujos líderes, em sintonia com a globalização, investiram na ciranda fi-nanceira e nas indústrias dos países de-senvolvidos aquilo que retiraram dos seus países de origem; e agora vêm em busca de mais, para “sanar” a crise. Os eleva-dos níveis de pobreza dos países do Cone

Sul, a escassez, por pressões externas, de investimentos em saúde e educação, o crescimento do mercado de armas leves e de drogas, e a violência interna, que tem impacto milionário na economia brasi-leira e cujo perigo constante ameaça os guineenses, também são partes perversas da globalização. Mas a globalização também permite es-treitar laços e buscar colaborações que não eram possíveis há apenas algumas décadas, e isso já é visível, por exemplo, na área do comércio. Atualmente, graças à tecnologia do telefone celular, ampla-mente presente na população, é possível falar com uma pessoa em qualquer taban-ca da Guiné-Bissau, e os aparelhos, des-bloqueados e mais baratos que no Brasil, freqüentemente são os mais modernos do mercado.Bebês são carregados nas costas das mães como há milhares de anos, mas agora usam fraldas descartáveis e calçam tênis de marcas famosas, feitos na Indoné-sia. Nas feiras, encontra-se uma infinidade de implementos agrícolas produzidos no Brasil e aparelhos eletrônicos vindos dire-tamente da Ásia. A globalização tem seu lado bom e seu lado ruim, e os cidadãos desta era precisam aprender a conviver com isso de forma a melhorar sua quali-dade de vida.Considerando os diversos aspectos da glo-balização e a vinculação intrínseca entre condições socioeconômicas, ambientais e as de saúde – situação conhecida na li-teratura científica como Determinantes Sociais da Saúde –, Brasil e Guiné-Bissau estão intimamente irmanados em seus de-safios atuais, e a realidade de seu futuro dependerá da qualidade das medidas to-madas agora em favor de suas populações mais carentes.

CANTOS DO MEU PAÍS

Julião Soares Souza

Canto as mãos que foram es-cravasnas galéscorpos acorrentados a chicotenas américas

Canto cantos tristesdo meu Paíscansado de esperara chuva que tarde a chegar

Canto a Pátria moribundaque abandonou a lutacalou seus gritosmas não domou suas esperan-ças

Canto as horas amargasde silêncio profundocantos que vêm da raizde outro mundoestes grilhões que ainda detêma marcha do meu País

Coletânea Um novo amanhecer, Guiné-Bissau, 1996

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A cultura é um poderoso mecanismo de resistência social. No Brasil, os escravos, primeiro indígenas e de-pois africanos, resistiram à violência

da dominação colonial através de sua expressão musical, de seus ritos e, gradualmente, as suas palavras, modos, costumes e arte foram se fi-xando, tornando-se não mais parte da cultura “indígena” ou “africana”, mas componentes essenciais da cultura brasileira, inclusive como características que a diferenciam da cultura por-tuguesa. A resistência africana trouxe contribui-ções fundamentais para a formação nacional. Graças a ela hoje nos orgulhamos da capoeira, arte marcial genuinamente brasileira, reconhe-cida mundialmente; saboreamos a feijoada, adotamos padrões de beleza física próprios e temos uma língua muito particular, embora par-tilhe inúmeros elementos com a que é falada em Portugal.Na África a resistência também se fez e se faz através de elementos culturais, que só agora co-meçam a ser valorizados em outros continentes. Apesar de meio milênio de intenso contato com a cultura européia, a arte, a música, a religiosi-dade e as línguas africanas conseguiram sobre-viver e hoje ganham força como instrumentos de valorização étnica e nacional. Nos merca-dos, salta aos olhos a riqueza do artesanato em madeira, osso, dente, marfim, fibras vegetais e miçangas; o colorido dos tecidos e das roupas, em especial das mulheres, expressa seu orgulho identitário, e onde quer se reúna um grupo de pessoas e a conversa pare, alguém começa logo a entoar uma música, ao ritmo de palmas ou movimentos cadenciados. Lá, como no Brasil, a resistência é parte essencial da vida. Na Guiné-Bissau, dezenas de línguas convi-vem com o Português e o Criolo, as religiões tradicionais locais convivem com as grandes religiões ocidentais, e as expressões artísticas como desenho, pintura, música, poesia e dança florescem em função de uma crescente valori-zação do que é local. Para alcançar um mercado

mais amplo, como na música, artistas desenvol-veram projetos que incorporam o moderno ao tradicional, e instituições como o carnaval são adaptadas para manter as tradições, enquanto mobilizam para as questões que estão no co-tidiano do povo guineense. Um exemplo é o carnaval de 2008 cujos temas principais foram as drogas, a imigração ilegal e a corrupção. O carnaval, naturalmente, não é uma invenção da Guiné, porém, ali ele se adaptou plenamente e os diferentes grupos e agremiações participam da festa reforçando suas tradições. Dentro de um contexto de alegorias e danças próprias das diversas etnias e regiões do país, os temas são amplamente retratados através de fantoches, objetos alegóricos, fantasias, teatro de rua, mú-sica, declamações e movimentos. Dada a sua enorme diversidade e antiguidade (afinal os primórdios da humanidade estão na-quele continente) é impossível alguém dominar todos os aspectos da “arte” ou da “cultura” afri-cana. Porém, qualquer um pode apreciar sua beleza estética. Para mostrar um pouco dessa beleza, foi lançado na Mostra África-Brasil, durante o Fórum Social Mundial, em Belém, o docuficção Guiné-Bissau: Colorido de ritmos e movimentos, uma abordagem etnovisual e an-tropológica sobre movimento, dança e cultura naquele país, realizada no Pará, em colaboração com guineenses que vivem na Amazônia, a par-tir de imagens feitas em tempos diferentes, por diversos atores sociais, e interpretadas através de olhares artísticos-estéticos-criativos contem-porâneos. No geral, a Mostra objetivou trazer ao FSM um pouco da produção audiovisual africa-na e sobre a África, contando com filmes feitos em Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde, Burki-na Faso, Portugal e Brasil. Assim como outros aspectos da arte, o cinema africano também é, em grande parte, um cinema de resistência, vol-tado para os problemas locais e preocupado em contar estórias e histórias que reforcem as lutas por liberdade e melhores condições de vida para a população.

ConexãoÁfrica

Arte, Cultura e Resistência: outras imagens

Na África a resistência também se fez e se faz

atrvés de elementos culturais,

que só agora começam

a ser valorizados em outros

continentes

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Fotografiaviva

ConexõesA realidade fotográfica, o olhar es-

trangeiro, o lugar desconhecido o encontro com as imagens, “Cone-xões”. O fotógrafo Janduary Simões, após apresentar sua exposição na Casa de Cultura de Wiesbaden na Alemanha, reconecta as nossas im-pressões que ultrapassam o olhar.

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O PrédioInfluencias regionais e muitas parcerias nas andan-ças do músico e composi-tor paraense que nunca se cança de abrir o verbo para falar da gente daqui para o mundo ouvir.

Contos

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Contosparaenses

602Acabara de se mudar para o sexto andar mais uma senhora que mora sozinha com seu gato persa, mania de tapetes persas e gatos. Na baga-gem perucas usadas de todas as cores em cima de um manequim negro. Na era do rádio fora uma cantora, por isso mesmo atrás dos estúdios ainda guarda suas vaidades.. as revistas da época guarda na gaveta de uma eletrola rotação 45, de resto uma mobília cansada que ainda conserva com carinho. Um binóculo de cobre que ganhou de presente de seu avô. O caminhão estacionou bem na porta, largo, tomava conta quase da rua toda, uma via secundária esticada por um olho em perspectiva.

Esperava pelo porteiro dar o aval, depois subiria pelo elevador de serviços todas as suas tralhas. Um cílio postiço saiu do lugar e a senhora de setenta e três anos não perdendo a compostura inclinou-se no espelho carcomido da sala de re-cepção e propôs a consertar seu erro, teria colo-cado com pressa, ainda no casarão onde morava, derrubado para mais uma construção de um pré-dio moderno.

Lá funcionariam umas lojas de departamentos, com um enorme estacionamento e uma boate de vidro fumê tiraria a monotonia das noites e após 25 anos de aluguel e os donos terem morrido, a casa fora vendida, sem que os defuntos esfrias-sem, pelos filhos por uma imobiliária famosa.

Agora ajeita a maquiagem, o pó, o rouge forte num de seus rostos envelhecidos.

Depois da notícia, viu-se sentada no nada e a maquete a lhe sorrir embriagada de projetos, anti-projeto da senhora em desfazer-se dispersa no que fora todo esse tempo, a casa a despeda-çar-se pelos ruídos dos tratores loucos comendo as lembranças, viu-se lixo, como o barro que se desfizera, do pó ao pó. O mijo da noite anterior ainda fedia nas paredes.

Um som turvo a fez voltar, era a voz do porteiro dizendo que o elevador já a aguardava. Com o gato persa no colo entrou no elevador com uma sacola enfeitada de margaridas, o aço lhe refle-tiu a imagem 4 vezes, o tom colorido da bolsa e o vestido branco com seus movimentos, o gato miava e tocou o sinal de descer: 6º andar. Cami-nhou com as chaves nas mãos e abriu a porta do apto. Seu novo lar a aguardava vazio, nada que a despertasse lembranças. As bagagens foram su-bindo com os empregados da transportadora.

301Sherlock Holmes, um garotinho de oito anos, míope quase de nascença, foi entrando no eleva-dor e percebendo com sua lupa, os pêlos cinzas do gato persa espalhados no tapete. Examinava minúcias da passagem, desde as marcas digitas nas paredes metálicas... um garoto manchado de sardas, segundo sua mãe, o gênio do colégio.

O PrédioInfluencias regionais e muitas parcerias nas andanças do músico e compositor paraense que nunca se cança de abrir o verbo para falar da gente daqui para o mundo ouvir.

Jossete Lassancenasceu em Belém do Pará em 1962.

Graduou-se em História e Artes

Plásticas na UFPA. Participou de várias

publicações em revistas como: Fundo

de Gaveta, Belém/PA (1982); Poesia

do Grão Pará, Rio de Janeiro/RJ (2001);

Carlegarius (2002); Revista Viva Vaia,

Porto Alegre/RS (2003); Revista de

Literatura Brasileira, Rio de Janeiro/RJ

(2003); Pará Zero-Zero, Belém/PA (2004)

entre outras.

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Suas vozes misturaram-se ao eco do corre-dor e foram diminuindo de tamanho à medi-da em que abriam a porta. A sala impecável, os quartos impecáveis; seu pai um militar, sua mãe, dedicada dona de casa que se ocu-pava com as tarefas domésticas.

Um aquário com peixes azuis quebrava a monotonia do ambiente, peixes azuis silen-ciosos percorriam dos navios abandonados entre esqueletos de piratas feitos de borra-cha.A televisão era um enfeite, a biblioteca, um prazer medido pelos pequenos olhos do me-nino, como o de satisfazer suas curiosida-des.Do terceiro andar onde moravam, o pequeno caolho se debruçava nas grandes grades da janela a viciar-se por olhar a rua, a banca de revista, o playground funcionando, os seis andares do prédio ele tinha impressão de vê-los sob as nuvens e quando passavam no céu o prédio andava pelo vento fresco das nove horas da manhã, enquanto os garotos ferviam pulando atrás de uma bola.

302, 403, 202Outros apartamentos vazios, por alugar, o vento fazia eco quando entrava nas frestas das janelas empoeiradas, o nada por vir das paredes, os azulejos em fila sem gorduras, as torneiras secas.

101Dava para sentir o bafo úmido dos carpe-tes invadindo a voz fina e fraca da mulher com a maior paciência do mundo tentando acordar seu marido para tomar o xarope de groselha; um velhinho que passava o dia assistindo desenho animado, telejornal, fil-me, novela, programa de auditório, novela, jornal, filme.. até os grânulos abstratos da imagem aparecerem como um todo.

201Três jovens morando sem os pais radicaliza-vam um andar: maconha, livros, rituais pa-gãos psicodélicos. Chegavam na madrugada subindo pelas escadas com suas garrafinhas

de cerveja compradas na loja de conveniên-cias. Um incenso destilava sua aura mística enquanto se deliciavam num mantra.Correr antes que o tempo os freasse era sentir-se. Um sopro livre, um encontro com a paixão, um tiro no escuro: flashes e a luz a repetir-lhes a aparência, entre viadutos e carros, viadutos e carros, eles gozavam da noite esguia, de lá num ângulo lânguido re-verberavam seus sonhos, a ilusão de todos os jovens, de dentro de seus corpos a mesma vibração, janelas moldadas de suas imagi-nações, de lá imagens ímãs em P & B.De dentro da sacola eles tiravam o horizon-te e compravam cúmplices, vendendo seus anti-heróis na noite. Era como sentir o ar ra-refeito e um calor na alma, passando todos eles como enfermos queimando em febre, seguiam as ruas da rotina lado a lado de suas quebras de tabu, e os ônibus frenéticos não paravam na paisagem da rua, passavam em velocidades frias, eles que não dormiam viam tudo com seus invisíveis guarda-chu-vas negros a água cinzenta a passar pelas pernas em redemoinhos, um festival de corvos. O olhar das pessoas trancadas nos apartamentos tinha um pouco de silêncio se-dutor, diziam tudo o que escondiam em sua boca. Sair e entrar eram desejos. Um fetiche usar o sentido anti-horário do mundo

304Um homem suspeito, 45, solteiro, com uma enorme sobrancelha sempre tropeçava nas garrafas deixadas ao longo das escadas e re-clamava alto, morava no terceiro andar mas fazia questão de ir pelas escadas, às seis da manhã descia e dava bom dia ao porteiro, ia se exercitar e depois retornava com um cigarro na boca, mal humorado e o jornal do dia dobrado em suas axilas suadas.Descia às nove para o trabalho e só retorna-va uma hora da manhã, nunca comparecia às reuniões de condomínio. Desapareceu. Três dias. O porteiro chamou os bombeiros, arrombaram a porta do apartamento: o ho-mem estirado com as mãos pálidas seguran-do o coração arregalava um olho.Foi encontrado no seu criado mudo, pacotes

de cigarro com teor altíssimo de nicotina, muitas garrafas pequeninas vazias de uís-que de avião com suas tampas abertas, tinha duas pontes de safena. Um livro de bolso na cabeceira de sua cama: . A geladeira aberta vazia. Nenhum móvel, exceto uma cadeira pintada de negro, uma mesinha de centro e uma almofada.Remédio para dormir, para fígado, estôma-go, garganta, remédio para alergia, remédio para gripe.

603Uma família perfeita: pai, mãe, filho, filha, bordados os dias da semana nos guardana-pos laranjas, a geladeira enfeitada de bichi-nhos com ímãs, bordados como um cimento que imprime seu lacre, guardar mistérios domésticos, domesticados às vozes de di-álogos familiares, nenhuma contravenção, perfeitos à ira de deus, impressos num jor-nal digno de domingo, digno de rosas, flores vermelhas, almoços nos jardins, passeios de carro pela praia, piquenique nas florestas.O pai médico do SUS, a mãe professora de gramática de escola pública, os filhos estu-dam no mesmo colégio de freiras, sempre saem impecáveis quando ao tomar seu café às sete, entram no fiat 93 do pai. A menina estudiosa, cabelos lisos, sempre penteados, usa xampu para cabelos secos, o menino usa cabelos bem curtos para dar impressão de limpeza. Limpeza é a exceção do mundo. 12 e 13 anos, idades e idéias revestidas de idéias sobre idéias sob idéias, sob incons-cientes rompidos pelo consciente.

501Giordani tem um gato, diferente da Sra. do 602, não é um gato persa cheio de frescu-ras. O artista tem um gato torto, encontrado semi-morto, semi-vivo, num buraco de um esgoto destampado, Um gato magro, negro, vira-lata. Um gato torto porque quebrou suas costelas ao levar pedradas de um transeunte. Um gato magro porque não tolera razão, tor-ce o nariz e assim só come às vezes, quando o artista decide dar-lhe algum resto de bife do almoço, ou pedaços de batatas fritas.

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ContosparaensesO gato arranha seu rabo fino na esperança de fiapos de rosbife da sobra de suas marmitas. O artista é ausente, apenas idéias e estórias, tem em seu arquivo uma fotografia do gato no lugar onde o encontrou, ainda com seus detalhes vermelhos de sangue em contraste com tons amorfos da calçada.Seu apartamento é espaçosos mas não tem onde sentar, nenhuma tela em branco, ficam no chão os registros, às vezes ficam no ba-nheiro, escritos à mão nos azulejos num ara-maico subjetivo..O gato passa entre as garrafas azuis cheias de líquidos em quantidades diferenciadas, em turbulência se modificam as silhuetas esqueléticas do felino a cada passo que o artista vê sem piscar em seus movimentos desequilibrados, porque debruçado ao chão, as três garrafas lhes parecem vivas e em pé transformam em miragens, suas imagens reais. O artista vê em seu mundo fundo invertido na garrafa e o aniquila com seu olho cru e o distorce, diminui o volume da tolerância, explode em dejetos, a tela não é mecanicamente fluída, não lê nada, letreiros abstratos, não pinta, acelera-se em câmara lenta um retardar a seco..Rompe a balbúrdia, extermina a vingança, veste-se de rato nas orgias noturnas e deter-mina que o artista é bandido na mesma pro-porção da vida, bandido rato que não brinca, mas oblitera com sua máscara a julgar-se um corruptor de sentimentos.5º andar. Apartamento alugado. Três meses de condomínio por pagar, o artista espera vender suas últimas obras, potes com su-posições, escritos em esperanto, supostos abortos do tempo escondidos sob a superfí-cie fina do óleo de linhaça, engarrafar loucu-ras são projetos suicidas...Morar de aluguel é se excluir de um espaço visual onde a rua é uma infinita razão para infinitas idéias de tortura, placas luminosas roubam o silêncio dos olhos, roubam a paz da limpidez onde comprar não é nenhum perigo e se limitar a ver consiste em sua ver-dadeira liberdade.Morar na rua é desligar-se da morada, desli-gar-se de domínios, é jogar-se à esmo pelas idéias do contratempo, tempo anti-matéria, um tempo não real, subjetivo, mas um tem-pestuoso inimigo do conforto.O artista mora e não morre, seu tédio vai além dessa chacina assassinato-ruas-frio-tempestuosidade-anonimato de identidades-

amontoado amorfo de cérebros excluídos e carnes concisas deitadas na costura fúnebre dos jornais machados de sangue das notí-cias. Morar na rua é livre-se.O artista morre se não fizer de si um ci-rurgião, ali ele constrói sem medidas seus franksteins, remendo de estrelas, rascunhos de mentiras, rasura de ilusões.Um pacto entre o real e a criação,Enquanto isso lá fora o mundo se divide ao meio. O prédio e a rua. Dentro e fora dos portões avassaladores de ferro fundido. Lá fora a chuva na sua água absoluta começa a mudar o teor do domingo adentrando na rotina dos moradores.Chove sem parar e a cidade morre envolta numa alucinação coletiva.Os carros passam quase arrastando suas bundas nas enchentes. Todos se trancam e escutam o ronco invisível do trovão, a luz fluorescente quem vem antes no risco de um silêncioUníssono, encorpado de eletricidade.É bom separar-se em átomos e exploir-se dessa paisagem negra da cidade, dessas pa-redes sujas de fumaça e limo,Bom é limpar os olhos nas lembranças nuas do campo, onde poder imaginar-se num cor-rer de um puro sangue no pasto entre a linha do horizonte a fundir-se como uma trajetó-ria neon em prata rasgando o céu de ponta a ponta e um raio a cair num lago onde costu-ma-se passar os domingos pescando..E esse cavalo a correr agoniado na corpo-rificação de sua ansiedade, as crinas a lhe caíres aos caos dos olhos cintilantes.Encobrir-se de toda essa aura nesse momen-to é único, é como envolver-se na veloci-dade de seu corpo lustroso e úmido pelas primeiras gotas, corpúsculos de uma chuva musculosa.Deixar-se penetrar nesse semblante de den-tro de uma casa feita de pedra, embaixo de cobertores é sonhar sem medo que a tarde depois do crepúsculo cairá e se servirá de estrelas à noite mais negra do mundo.Enquanto isso as padarias, os pontos de café, de loteria esportiva, o ponto de ônibus, taxis, ambulantes, os pedintes, escravos do medo e da desordem urbana e cheia de metáforas futuristas, ilumina a tarde o movimento vivo de pedestres agoniados entre o fim de tarde, fim de trabalho e a noitada recheada de tv.As plantas das sacadas passam por meta-morfoses, umedecidas as texturas verdes de

suas bocas transpiram pólens e suas flores suadas beijam o ar mostrando suas florestas nuas. Entre cores escarlates a mosca solitá-ria pousa exausta. Mais um dia se passou e nada aconteceu de verdade. Todos empur-ram a vida com a barriga.A mãe, o pai, o filho, a empregada, a velhi-nha, o casal de velhos, os jovens, os gatos, o artista, o morto, vivem envolvidos em suas angústias e suas carreiras de felicidade, a selva mãe evidente os carrega de um lado para o outro. O trabalho e a chance de as-censão elevam o grau de cumplicidade com o sistema, que os obriga criar mecanismos que os confortem a passar o ano imaginando o dia de amanhã, e seus status sustentarem suas vaidades. O que se esvazia é o medo da penumbra, o olhar puro de seus espelhos sem mágica, e seus desejos aguçados de fome.

Na realidade vivem neles o prédio, manhã após manhã, noite a pós noite, silêncio após silêncio, imersos na solitária sensação de eternidade. Ninguém os devolve à entrega, o que é absolutamente necessário é se pos-suir a certeza de que se deve assassiná-la.

*Conto extraído do livro O Prédio, 2002, de Josette Lassance.

Livros publicadosVida de Bruxa

Poemas (1992)Os Gatos Nus Passeiam sobre os Telhados Sujos

Contos (1994)Galeria dos Maus

Poemas e Contos (1999)Prazer Clandestino

(Cartões Fotográficos de Poesia 2001)

O Prédio Contos (2002)

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CiênciaTecnologia

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Rede ParaenseGenômica e Proteômica

CiênciaTecnologia

“A escolha do que vai ser investigado em um projeto genoma não é um processo simples. Um genoma é o ponto de início para busca de solução de problemas.”

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Dr. Artur Luiz da Costa

Uma rede genômica tem por ob-jetivo mapear e decodificar a estrutura molecular de todos os genes de um organismo.

Este objetivo final não é uma tarefa tri-vial. São necessários maquinários espe-cializados, insumos tecnológicos e uma atmosfera acadêmica favorável, constru-ída por professores, pesquisadores e seus discípulos. Nosso Estado possui todos estes ingredientes e é por isso que a Rede Genoma Pará está sendo alvo de comen-tários na comunidade científica brasilei-ra, pelo reconhecimento da competência aqui instalada e constatação da inversão histórica do papel dos centros produto-res de conhecimento de tecnologia de vanguarda localizados no sul/sudeste para Amazônia. A competência para gerar um genoma é ainda privilegio de poucos países, um clube pequeno, e que no Brasil se iniciou em 1997 com o projeto Xylella, e que foi concluído em 2000. Neste mesmo ano, o MCT organiza o Programa Genoma Bra-sileiro e, na Amazônia, o CNPq implanta a Rede da Amazônia Legal de Pesquisas Genômicas. Nestes dois últimos projetos de pesquisa, a UFPA esteve presente de forma efetiva e foi aí que aprendemos a fazer genomas. Já se passaram quase dez anos. Não é muito tempo, assim como não faz muito tempo que o primeiro ge-noma foi completamente decodificado, o

da bactéria Haemophilus influenza, em 1995. O genoma humano só foi comple-tado em 2003. O Estado do Pará só possui competência nesta área de fronteira por conta dos tra-balhos pioneiros do pediatra, geneticista e estatístico Manuel Ayres, que criou o grupo da Genética no barracão de ma-deira do Laboratório de Filosofia e que o fundou. Ele foi também o primeiro di-retor do atual Instituto de Ciências Bio-lógicas.A tecnologia de seqüenciamento de DNA se implanta na região com os trabalhos pioneiros de Horacio e Paula Schneider, Iracilda Sampaio, João Guerreiro, Sid-ney e Ândrea Santos, em 1992. Neste período, no final de minha graduação em Biologia, tive oportunidade de estagiar no laboratório americano do Dr. Mor-ris Goodman e lá aprender a técnica de clonagem gênica e seqüenciamento de DNA.O Solid - Implantar este arsenal tecnoló-gico em Belém não foi tarefa fácil. Pos-suíamos instalações modestas, tínhamos que trabalhar com isótopos radioativos importados e contávamos com apoio unicamente do governo federal, uma vez que se demorou muito para termos uma fundação de apoio à pesquisa no Estado do Pará. Hoje a historia é diferente, estamos aqui para lançar a Rede Genoma Pará, que possui como principal componente tec-nológico o sistema de produção de geno-mas Applied Biosystems SOLiD. Uma tecnologia inovadora, com alta capacida-de de geração de dados e que faz um ge-noma de uma bactéria em apenas 4 dias e um genoma humano em 10 dias!O equipamento que temos é a versão 2.0. O upgrade para versão 3.0, lançada em fevereiro deste ano pelo fabricante, já está em processo de importação pela FAPESPA e representará um aumento de 10x na capacidade instalada e permitirá o processo de produção de genomas de novo. Um genoma de novo é um geno-ma que não possui informações previas sobre seu tamanho, complexidade e or-ganização.Linhas de pesquisa - A escolha do que vai ser investigado em um projeto genoma

não é um processo simples. Um genoma é o ponto de início para busca de solu-ção de problemas. Pensando junto com nossos colegas na FAPESPA, SEDECT e UFPA, tomamos a decisão de atacar um problema que é de alto interesse para o Pará: a cultura da pimenta do reino. A pimenta do reino é uma atividade de pequenos produtores, de agricultura fa-miliar e o Brasil é o maior produtor mun-dial desta especiaria e por sua vez o Pará é o líder nacional. A cultura da pimenta do reino possui diferentes inimigos.Dentres os patógenos o que destaca é a fusariose. No pimental que o Fusarium se instala a produção é abandonada; se pensando em agricultura familiar isto pode significar a ruína financeira, a ne-cessidade de aumento da fronteira agrí-cola ou mesmo a opção pela instalação de outra cultura. O Brasil está perdendo espaço para os produtores asiáticos. O projeto do genoma da pimenta versus Fusarium é uma parceria com a Embrapa Amazônia Oriental, instituição referên-cia no estudo deste fitopatógeno e que já realiza pesquisas nesta matéria há mais de 40 anos. Fazer o genoma da pimenta do reino não bastava, o arsenal tecnológico implan-tado nos permitia ir mais além, sermos audaciosos; decidimos então procurar soluções e entender as razões da exis-tência de um outro problema: o câncer gástrico.O Pará possui uma das mais altas pre-valências em uma das variantes desta patologia. Não sabemos o porquê desta alta manifestação em nosso povo, mas há indícios que nosso componente genético miscigenado e nossa dieta possam estar colaborando. Vamos aqui procurar alvos de novas drogas e soluções para mitigar o sofrimento alheio. Este componente só é possível porque no Pará está presente o grupo que mais produz conhecimento acerca desta patologia no mundo e aqui está sendo implantada a Unidade de Alta Complexidade em Oncologia, uma par-ceria da UFPA, Secretaria de Estado de Saúde Pública e o Instituto Nacional do Câncer. Existe ainda outra vertente de pesquisa, a que trata do seqüenciamento do genoma

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de bactérias de interesse biotecnológico industrial. Neste vamos empregar nossa moderna tecnologia no aproveitamento econômico de nossa biodiversidade atra-vés da prospecção de enzimas e proteínas de interesse da indústria de fármacos, de biocombustíveis e procurar a caracteri-zação de outros químicos de alto valor agregado. Esta prospecção será feita em produtos de nossas matas e também ba-seado no conhecimento tradicional dos povos que habitam nossas florestas. Rede de investigação - A forma-ção de recursos humanos é outra preocupação, pois a quantidade de infor-mação que será gerada exigiu que implan-tássemos dentro do Programa de Pós Gra-duação em Genética e Biologia Molecular uma turma de mestrado e doutorado em Bioinformática, em parceria com colegas da Rede Genoma Minas e da Universida-de de São Paulo. Também está em curso

a formação de médicos com mestrado e doutorado em genética do câncer. Esta rede de investigação não poderia es-tar sendo implantada sem o apoio incondi-cional da UFPA, que não mediu esforços no apoio aos grupos de excelência e na consolidação de novos grupos de pesquisa

na UFPA onde a equipe docente/pesqui-sadores tem agora mais oportunidades e melhores condições de trabalho resulta-do de uma articulação junto a Sectam e a

FINEP para que aqui se fosse implantado um dos dez laboratórios da Rede Proteô-mica Nacional. O Estado do Pará começa a ocupar seu devido lugar na condução de pesquisas científica estratégicas para manutenção e aproveitamento da biodiversidade amazô-nica. Não existe fórmula mágica, pois se quisermos o desenvolvimento social sus-tentável da Amazônia temos que seguir o exemplo do primeiro mundo. Na aprova-ção no orçamento da maior potência mun-dial, o presidente Obama justificou que o aumento recorde nas verbas para ciência e tecnologia em 2010 era uma das princi-pais frentes para revitalização da econo-mia americana. Os gastos para os próxi-mos dois anos superam os investimentos, em valores corrigidos, feitos nos progra-ma Apollo (viagem tripulada à Lua) e do projeto Manhattan (construção da bomba atômica). Só existe um caminho para nós: priorizar educação, ciência e tecnologia.

Artur Luiz da Costa da Silva, é biólogo com mestrado e doutorado em Ciências Biológicas (Genética e Biologia Molecular) pela Universidade Federal do Pará e coordenador da Rede Paraense de Genômica e Proteômica.

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O Estado do Pará começa a ocupar seu devido lugar na condução de pesquisas científica estratégicas para manutenção e aproveitamento da biodiversidade amazônica.

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O mais moderno sequenciador genético da América Latina preserva

a maior biodiversidade do mundo.A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará, a Secretaria de Estado de

Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia, e a Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia trouxeram o SOLiD para a Amazônia.

Primeiro sequenciador genético de ultima geração da América Latina, o SOLiD coloca a Rede Paraense de Genômica e Proteômica como referência mundial em pesquisas genéticas,

ajudando a Amazônia a conhecer o seu próprio potencial. GC

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