EDIÇÃO 14 ANO 7 NÚMERO 3 NOVEMBRO 2014 - Anchieta...Círculo) em torno do que se pode (em termos...
Transcript of EDIÇÃO 14 ANO 7 NÚMERO 3 NOVEMBRO 2014 - Anchieta...Círculo) em torno do que se pode (em termos...
Revista de Estudos sobre Práticas Discursivas e Textuais
ISSN: 1984-2406
Centro Universitário Padre Anchieta Jundiaí/SP Graduação e Pós-Graduação em Letras
EDIÇÃO 14
ANO 7
NÚMERO 3
NOVEMBRO 2014
Organização: Profa. Dra. Maria Cristina de Moraes Taffarello
ARTIGOS
A ANÁLISE DE TEXTOS-ENUNCIADOS COMO PRÁTICA PRECEDENTE À ELABORAÇÃO
DIDÁTICA ....................................................................................................................... 4
Rodrigo Acosta PEREIRA .................................................................................................... 4
A RETÓRICA DO GÊNERO ENTREVISTA DE EMPREGO ..................................... 24
Francisco ALVES FILHO .................................................................................................. 24
Lafity dos Santos ALVES ................................................................................................... 24
A SOCIOLINGUÍSTICA LABOVIANA: “A NORMAL SCIENCE” OU “A REVOLUTIONARY
SCIENCE”? .................................................................................................................... 35
Hélder Sousa SANTOS ...................................................................................................... 35
Sueli Maria COELHO ........................................................................................................ 35
AÇÕES PEDAGÓGICAS DO CURSO TÉCNICO A DISTÂNCIA DA REDE e -Tec BRASIL
CEFET-MG E AS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE ............................................. 53
Aline Moraes LOPES ......................................................................................................... 53
Márcia Gorett Ribeiro GROSSI .......................................................................................... 53
DE FORMIGA A DRAGA: METÁFORAS CONCEPTUAIS E AUTODEFINIÇÃO. 73
Ane Cristina THUROW ...................................................................................................... 73
Liliane da Silva PRESTES-RODRIGUES ......................................................................... 73
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA MIDIÁTICA PARA CRIANÇAS E A VISADA DE CAPTAÇÃO
......................................................................................................................................... 85
Maria Eduarda GIERING ................................................................................................... 85
ESTEREÓTIPOS DO BRASILEIRO EM PIADAS ...................................................... 98
Ana Cristina CARMELINO ............................................................................................... 98
INTRODUÇÃO AO ENSINO DE RETÓRICA EM CURSOS TECNOLÓGICOS:
METODOLOGIA E RESULTADOS ALCANÇADOS .............................................. 113
Ana Lúcia MAGALHÃES ................................................................................................ 113
NA CIRANDA DOS SENTIDOS: A POLIFONIA DE LOCUTORES NO GÊNERO
REPORTAGEM IMPRESSA ....................................................................................... 126
Francisco Vieira da SILVA .............................................................................................. 126
Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA ................................................................ 126
O GÊNERO TEXTUAL MINICONTO NO ENSINO DE LEITURA E ESCRITA ... 141
José Carlos KÖCHE ......................................................................................................... 141
Vanilda Salton KÖCHE .................................................................................................... 141
Adiane Fogali MARINELLO ........................................................................................... 141
O PRETÉRITO PERFEITO COMPOSTO DO INDICATIVO EM LÍNGUA ESPANHOLA:
VALORES ASPECTUAIS ........................................................................................... 152
Valdecy de Oliveira PONTES .......................................................................................... 152
Letícia Joaquina de Castro Rodrigues SOUZA E SOUZA .............................................. 152
QUANDO O AGORA NÃO É AGORA NOS GÊNEROS ACADÊMICOS ............... 164
João Bosco FIGUEIREDO-GOMES ................................................................................ 164
Carla Daniele Saraiva BERTULEZA ............................................................................... 164
REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE: A POLÊMICA DA INTERINCOMPREENSÃO EM
DISCURSOS SOBRE A MACONHA ......................................................................... 183
Marcio Rogério de Oliveira CANO .................................................................................. 183
Ricardo CELESTINO ....................................................................................................... 183
A ANÁLISE DE TEXTOS-ENUNCIADOS COMO PRÁTICA PRECEDENTE À
ELABORAÇÃO DIDÁTICA
Rodrigo Acosta PEREIRA1
Resumo: O artigo apresenta orientações enunciativo-discursivas para a análise de textos-
enunciados como atividade prévia à prática de elaboração didática do professor de Língua
Portuguesa. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo de Bakhtin em torno do enunciado, as
discussões sobre elaboração didática propostas por Halté (2008[1998]) e os trabalhos sobre as
unidades básicas de ensino e aprendizagem de Geraldi (1984[1985]; 1997[1991]). A proposta não
se apresenta como um quadro modelizador, mas como um pensar reflexivo e dialógico em torno de
caminhos de análise acerca dos textos-enunciados que possam assistir o professor na elaboração de
atividades para o ensino de Língua Portuguesa.
Palavras-chave: Texto-enunciado. Análise. Elaboração didática
Abstract: The paper presents enunciative-discoursive orientations to the utterance analysis as a
previous activity to Portuguese Language teachers’ didactic elaboration. To do so, we reviewed
Bakhtin’s Circle writings and the discussions concerning the concept of utterance, the postulations
about didactic elaboration practice from Halté (2008[1998]) and the studies from Geraldi
(1985[1984]; 1997[1991]) about the basic units of learning and teaching language at school. The
proposal is not a prescriptive model, but a reflexive and dialogical thought around the analysis
paths of utterance as a helpful way to assist the teacher in their practice of didactic elaboration to
teach Portuguese Language.
Keywords: Utterance. Analysis. Didactic elaboration
Introdução
Diversas pesquisas contemporâneas no campo da Linguística Aplicada têm procurado
discutir o ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica sob um olhar enunciativo-discursivo,
dentre outros caminhos, à luz das discussões datadas da década de 1980 e 1990 em torno do ensino
operacional e reflexivo (BRITTO, 1997) e das unidades básicas de ensino e aprendizagem
(GERALDI, 1985[1984]; 1997[1991]). Embora revisitadas e reacentuadas ao contexto
1 Professor do DLLV e do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC, Santa Catarina,
Brasil. Trabalho integrado ao NELA – Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada (UFSC/PPGLg). E-mail:
contemporâneo, na escola, na maioria das vezes, o ensino e a aprendizagem da linguagem parecem
estar ainda (embora passados cerca de 30 anos) assentados sob a ótica imanente, desvinculados dos
usos sociais da língua. Visando ao entendimento de que ensinar a linguagem na escola é ensinar os
usos sociais da língua em seus contextos plurais de interação (GERALDI, 2010), objetivamos
apresentar uma discussão, de cunho teórico-metodológico, em torno da proposta de análise
enunciativo-discursiva de textos-enunciados como subsídio para a elaboração didática (HALTÉ,
2008[1998]). Em outras palavras, objetivamos discutir (e, por conseguinte, refletir sobre)
considerações de ordem teórico-metodológica para a análise de textos-enunciados como etapa
prévia de trabalho do professor em suas práticas de elaboração didática em torno de atividades
didático-pedagógicas de leitura, escuta, escrita e análise linguística para o ensino e aprendizagem de
Língua Portuguesa na escola de Educação Básica.
Para tanto, dentre os diversos domínios envoltos aos estudos do enunciado e do discurso,
situamo-nos nos escritos do Círculo de Bakhtin, principalmente retomando desses estudos as
diversas diretrizes de ordem teórico-epistemológica e metodológica de estudo da enunciação2. Além
disso, a fim de compreendermos a prática de elaboração didática, revisitamos a discussão de Halté
(2008[1998]) e, em torno das unidades básicas de ensino e aprendizagem, endereçamo-nos nos
estudos de Geraldi (1985[1984]; 1997[1991]) para que, nesse diálogo (PONZIO, 2012), possamos
coconstruir integibilidades sobre o ensino e a aprendizagem da linguagem na escola de Educação
Básica e, especial, no trabalho docente de elaboração de atividades didático-pedagógicas.
Ressaltamos, em adição, que nosso artigo não se apresenta exaustivo nem deve ser levado como um
modelo prescritivo de análise a ser seguido à risca (dada nossa postura bakhtiniana, nem
poderíamos acreditar nisso). O que propusemos são reações-respostas (no sentido dialógico do
Círculo) em torno do que se pode (em termos de concretibilidades singulares e não de idealidades
universais) analisar ao estudarmos os textos-enunciados que medeiam nossas interações, dada a
“insondabilidade do sentido” na/da enunciação (BAKHTIN, 2003[1979], p.401). Com isso, nosso
objetivo maior é contribuir para a construção de caminhos em torno de um trabalho docente de
excelência e teoricamente amparado (RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATI, 2011).
2 Em Linguística, sob um recorte ilustrativo (a grosso modo) diferentes áreas têm trazido à tona o
conceito de enunciado, seja sob um ponto de vista linguístico-estrutural (BENVENISTE, 1966), semântico-
argumentativo (DUCROT, 1987), seja linguístico-textual (ADAM, 1990; 1992), por exemplo. Nesta
discussão, referimo-nos à visão de enunciado enquanto unidade concreta de sentido do uso da língua em
situações de interação. Em outras palavras, nossa posição é endereçada nos escritos do Círculo de Bakhtin, a
partir dos quais, o enunciado é visto como um “[...] fenômeno ideológico, concreto, que é sempre material e
histórico.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.44). Assim, não estaremos pensando a enunciação como processo
e o enunciado como produto, nem estaremos vinculando o enunciado a construções linguístico-estruturais de
ordem argumentativa ligadas ao contexto de uso em oposição à frase, ou à configuração pragmática de
proposições, mas estaremos compreendendo, em todos os momentos desta discussão, que o enunciado diz
respeito a “[...] um sentido concreto [...] uma realidade concreta em condições igualmente reais de
comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2003[1979], p.291).
A interação verbal como realidade concreta da língua
Bakhtin; Volochínov (2006[1929]) pontuam repetidamente que a comunicação verbal não pode
ser compreendida desvinculada da interação. Para os autores, “a comunicação verbal entrelaça-se
inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da
situação de produção.” (p.128). É sob a matriz dessa afirmativa que os autores postulam as
diretrizes metodológicas para o estudo da língua:
(1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza.
(2) As formas das distintas enunciações [gêneros do discurso], dos atos de fala
isolados, isto é, as categorias de ato de fala na vida e na criação ideológica que
se prestam a uma determinação pela interação verbal.
(3) A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística
habitual. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.128-129).
Como podemos visualizar, as etapas acima orientam o pesquisador para a análise da língua sob
a ordem do social para o linguístico, isto é, o analista inicia das formas e dos tipos de interação para
o exame das formas da língua, ratificando o pressuposto de que a comunicação verbal só pode ser
explicada a partir do vínculo com a situação concreta de interação. Além disso, as diretrizes
metodológicas delineadas acima nos conduzem a olhar para outros conceitos que ascendem nos
escritos do Círculo: enunciado e gênero do discurso. Dado que é comum ao estudo da língua sob o
viés sociológico do Círculo a recorrência aos diversos conceitos outros que se consociam nesse
quadro teórico, neste momento, haja vista nosso objetivo, circunscrevemos nossa discussão em
torno dos dois previamente mencionados. Assim, podemos compreender que, na perspectiva
sociológica, a unidade de análise é o enunciado, e suas formas típicas relativamente estáveis, os
gêneros.
Em síntese, como explica Volochínov (1993[1929], p.246-247), sob a ótica sociológica,
podemos entender que “a essência efetiva da linguagem está representada pelo elo social com a
interação verbal”, permitindo construir, segundo o autor, o seguinte esquema, que, por sua vez, “[...]
serve como um guia para a investigação da unidade real da língua, que chamamos de enunciação.”
(VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.246-247, grifo nosso). Segue a proposta de Volochínov:
Figura 01- Etapas de investigação da unidade real da lingua – o enunciado
Fonte: Esquema proposto por Volochínov (1993[1929], p.247).
Sobre o esquema acima, segundo Volochínov (1993[1929], p.247), seguem alguns
esclarecimentos. Para o autor, sob a ótica sociológica, é necessário (i) examinar o intercâmbio
social3, no qual o enunciado se constitui e funciona; (ii) compreender o conceito de interação verbal
como “[...] a efetiva realização da vida real de uma das formas, de uma das variedades do
intercâmbio comunicativo” (VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.247), ou seja, uma das situações
específicas de interação no interior de uma dada esfera; (iii) analisar as formas típicas dos
enunciados, os gêneros; e (iv) analisar as formas linguísticas à luz da baliza do gênero do enunciado
integrado à situação de interação, à medida que “cada um dos tipos de intercâmbio comunicativo
organiza, constrói e completa, à sua maneira, a forma gramatical e estilística da enunciação [...].”
(VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.248).
Em adição à presente discussão sobre as etapas metodológicas de análise da língua sob a ordem
sociológica, Rojo (2005) assim esclarece:
[...] a ordem metodológica de análise que vai da situação social ou de enunciação
para o gênero/enunciado/texto e, só então, para suas formas linguísticas relevantes
[...]. Ao chegarmos nesse último nível de análise, vale a interpretação linguística
habitual, isto é, as teorias e análises linguísticas disponíveis, desde que seguida a
ordem metodológica que privilegia as instâncias sociais [...]. Dito de outra maneira,
aqueles que adotam a perspectiva dos gêneros do discurso partirão sempre de uma
análise em detalhes dos aspectos sócio-históricos da situação de enunciativa,
privilegiando, sobretudo, a vontade enunciativa do locutor – isto é, sua finalidade,
mas também e principalmente sua apreciação valorativa sobre seus interlocutores e
temas discursivos -, e, a partir desta análise, buscarão marcas [...] que refletem no
enunciado/texto, esses aspectos da situação. (ROJO, 2005, p.199, grifo nosso).
Em consonância com a discussão de Rojo (2005), Brait (2006) explica que a metodologia
proposta por Bakhtin para o estudo da linguagem, embora se apresente como uma abordagem
3 Podemos compreender como esfera da atividade humana. Rodrigues (2005) explica sobre a
flutuação terminológica no conjunto dos escritos do Círculo.
Inves
tigaç
ão d
a u
nid
ade
real
da
lín
gu
a -
o e
nu
nci
ado
Organização da sociedade
Intercâmbio comunicativo social
Interação social
Enunciados
Formas gramaticais da língua
diferenciada, não exclui a Linguística, pelo contrário, Bakhtin (2008[1963]) entende que devem
completar-se, mas não fundir-se4. Dessa forma, como ratifica a autora, metodologicamente
estaremos, em termos bakhtinianos, ultrapassando a materialidade linguística, procurando
desvendar a articulação constitutiva que há entre o interno e o externo na linguagem. “O
enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto, as particularidades discursivas
que apontam para contextos mais amplos, para um extralinguístico aí incluído.” (BRAIT, 2006,
p.13).
Além disso, cabe ressaltar que, no caminho metodológico bakhtiniano, não há categorias de
análise a priori aplicáveis de forma sistemática a textos, discursos, gêneros, com a finalidade de
entender uso situado da língua. Nos escritos do Círculo, há, na verdade, uma arquitetônica das
diferentes formas de conceber o enfrentamento dialógico da linguagem, que se constituem de
movimentos teórico-metodológicos multifacetados. De fato, cabe ao pesquisador desbravar esse
caminho, construindo, por conseguinte, uma postura dialógica diante de seu objeto discursivo
(BRAIT, 2006). “A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades
discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se
interpenetram e se interdefinem [...]” (BRAIT, 2006, p.29). Sob essa orientação, Brait (2006) assim
esclarece:
[Sob a orientação sociológica do Círculo, direcionamo-nos a] esmiuçar campos
semânticos, descrever e analisar micro e macro-organizações sintáticas,
reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que
caracterizam o(s) discurso(s) e indicam sua heterogeneidade constitutiva, assim
como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise
dessa “materialidade linguística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos e
os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses
discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao
inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar
ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua
identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros
sujeitos. Não há categorias a priori aplicáveis de forma mecânica a textos e
discursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentido num
dado discurso, numa dada obra, num dado texto [...]. As diferentes formas de
conceber o “enfrentamento dialógico da linguagem” constituem, por sua vez,
movimentos teóricos e metodológicos que se desenvolvem em diferentes direções.
(BRAIT, 2006, p.13-14, grifo da autora).
Em outro momento, a autora reitera,
[...] o maior ensinamento de Bakhtin [é] a atitude diante da linguagem que consiste
não na aplicação de conceitos pré-estabelecidos a um corpus imobilizado pelas
lupas do analista, mas numa atitude dialógica que permite que os conceitos sejam
4 “A linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e
multifacetado – o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos [...]. Devem completar-se mutuamente, e
não fundir-se.” (BAKHTIN, 2008 [1963], p.207)
extraídos do corpus, a partir de um constante diálogo entre a postura teórico-
metodológica e a dinâmica das atividades, da linguagem e da rica parceria por elas
estabelecida. [...] (BRAIT, 2007, p.28).
Como podemos ver, Brait (2006; 2007) ratifica o pressuposto da inexistência de categorias pré-
estabelecidas para a análise da língua-enunciado sob a ordem sociológica do Círculo. Rojo (2005),
Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012) compartilham da mesma consideração,
reiterando o postulado de que, é nas “idas e vindas” aos dados que as regularidades ascendem e não
na aplicação de modelos de análise pré-estabelecidos, imobilizando a potencialidade discursiva dos
dados. Assim, podemos compreender que, à luz dos escritos do Círculo, não há a possibilidade
mecânica de operacionalizar conceitos pré-estabelecidos (modelos de análise), mas um movimento
dialógico com os dados, “[...] que interroga o analista e o obriga a buscar, até mesmo em outras
disciplinas, conceitos, noções, que possam ajudar na análise da complexa relação existente entre as
atividades humanas e as atividades discursivas a elas afeitas.” (BRAIT, 2007, p.30-31).
Assim, entendemos que o estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros do discurso é de
importância fundamental para superar os estudos simplificados da vida do discurso, do fluxo
discursivo da comunicação. É somente o estudo do enunciado como unidade real de comunicação
discursiva, por exemplo, que nos permite compreender de modo claro a natureza das unidades da
língua e seu emprego na forma de enunciados concretos. Acerca especificamente do estudo do
enunciado e de suas formas relativamente estáveis, os gêneros do discurso, Bakhtin (2003[1979])
pontua algumas considerações metodológicas que, dados nossos objetivos de delinear rotas de
análise da língua como objeto social e sua materialização concreta, reenunciamos abaixo5:
O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos
enunciados nos diversos campos da atividade humana [esferas] é de enorme
importância para quase todos os campos da linguística [...]. [...] todo o trabalho de
investigação de um material linguístico concreto [...] opera inevitavelmente com
enunciados concretos (escritos e orais [e de outras formas semióticas])
relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação [...] de
onde os pesquisadores haurem os fatos linguísticos de que necessitam. Achamos
que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessária uma noção precisa
da natureza do enunciado em geral e das particularidades dos diversos tipos de
enunciados (primários e secundários), isto é, dos diversos gêneros do discurso. O
desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as
peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em qualquer campo da
investigação linguística redundam em formalismo e em uma abstração exagerada,
deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a
vida. (BAKHTIN, 2003[1979], p.264-265, grifo nosso).
Uma determinada função [...] e determinadas condições de comunicação
discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é,
determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais
5 Faremos um breve levantamento de considerações do Círculo em torno dos pressupostos
metodológicos de análise do enunciado. Para tanto, seguem-se diferentes excertos com partes grifadas,
marcando o olhar (do Círculo) para a análise enunciativa.
relativamente estáveis. [...] os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros do
discurso, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem. [...] tanto a questão metodológica de princípio quanto a questão geral
relativa às relações recíprocas do léxico com a gramática, por um lado, e com a
estilística, por outro, baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos gêneros
do discurso. (BAKHTIN, 2003[1979], p.266-269, grifo nosso).
Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer
fenômeno concreto da linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua
estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de
um enunciado individual ou do gênero do discurso já se trata de um fenômeno
estilístico. Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo
falante é um ato estilístico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo
fenômeno concreto da língua não devem ser mutuamente impenetráveis nem
simplesmente substituir mecanicamente um ao outro, devendo, porém, combinar-se
organicamente (na sua mais precisa distinção metodológica) com base na unidade
real do fenômeno da língua. Só uma concepção profunda da natureza do
enunciado e das peculiaridades dos gêneros discursivos pode assegurar a solução
correta dessa complexa questão metodológica. (BAKHTIN, 2003[1979], p.269,
grifo nosso).
As formas gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu
significado estilístico. [...] Toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio de
representação. Por isso, todas essas formas podem e devem ser analisadas do ponto
de vista das suas possibilidades de representação e de expressão, isto é,
esclarecidas e avaliadas de uma perspectiva estilística. (BAKHTIN, 2013, p.23-
25, grifo nosso)
[...] o estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva
permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da
língua (enquanto sistema) – as palavras e orações. (BAKHTIN, 2003[1979], p.269,
grifo do autor).
A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no
pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade de
comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na
forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O
discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um
determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais
diferentes que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela
construção composicional, elas possuem como unidades da comunicação
discursiva peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo, limites
absolutamente precisos. Esses limites, de natureza especialmente substancial e de
princípio, precisam ser examinados minuciosamente. (BAKHTIN, 2003[1979],
p.274-275, grifo do autor).
[...] é necessário abordar previamente o problema da oração como unidade da
língua em sua distinção em face do enunciado como unidade da comunicação
discursiva. [...] A oração enquanto unidade da língua tem natureza gramatical,
fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade. (BAKHTIN, 2003[1979], p.277-
278, grifo do autor).
As unidades da comunicação discursiva – enunciados totais – são irreprodutíveis
(ainda que se possa citá-las) e são ligadas entre si por relações dialógicas.
(BAKHTIN, 2003[1979], p.335, grifo nosso).
Como podemos observar, os excertos nos conduzem a diversas reflexões de Bakhtin acerca da
questão (base) metodológica de análise da língua à luz da unidade de comunicação discursiva – o
enunciado. Desde aspectos voltados inicialmente ao trabalho de seguir a ordem da vida concreta da
língua em situações reais e vivas de interlocução, até as considerações do Círculo sobre a relação
entre gramática, estilística e unidades da língua, as orações, e unidades do discurso, os enunciados.
Além disso, em consonância com a visão de língua, o Círculo, em Marxismo e Filosofia da
Linguagem, delineiam especificações em torno da orientação ideológico-valorativa da língua em
uso. Em outras palavras, Bakhtin; Volochínov (2006[1929], p.198-202) preocupam-se, dentre
outras questões, em desenhar o estudo do “[...] julgamento de valor inerente a toda a palavra viva,
revelado pela acentuação e pela entoação expressiva da enunciação [...] a orientação apreciativa [e
ideológica] do discurso. [Afinal] a palavra é um fenômeno ideológico por excelência [...].” Para os
autores, é “indispensável observar as seguintes regras metodológicas” (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.45, grifo dos autores):
(1) Não separar a ideologia da realidade material do signo [...].
(2) Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social [...].
(3) Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-
estrutura).
Para o Círculo, todo signo é ideológico e, portanto, “cada campo de criatividade ideológica tem
seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada
campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social.” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV,
2006[1929], p.33). Assim, as etapas metodológicas supracitadas direcionam o pesquisador para o
entendimento de que, ao analisar a língua em uso, o pesquisador deve compreender que “a realidade
dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais.” (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.36) e, sobretudo, que
Porque o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entra no horizonte
social do grupo e desencadeia uma reação semiótico-ideológica, é indispensável
que ele esteja ligado às condições socioeconômicas essenciais do referido grupo,
que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. [...] Em outras
palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes
senão aquilo que adquiriu um valor social. [...] O tema ideológico possui sempre
um índice de valor social. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.46, grifo
dos autores).
A partir dessa colocação dos autores, compreendemos que, em termos metodológicos, o estudo
da língua em uso, realizada concretamente por enunciados, deve levar em consideração a orientação
ideológico-valorativa desses enunciados, à medida que, para o Círculo, “[...] a plurivalência social
do signo ideológico é um traço de maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos
índices sociais de valores [posições axiológicas] que torna o signo vivo [...].” (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.47).
Em adição às ideias de Bakhtin; Volochínov (2006[1929]), Medviédev (2012[1928]) explica
que as concepções de mundo, as crenças, os ideais tornam-se realidade ideológica quando
investidos por material semiótico. Dito de outra forma, para o autor, “[...] a criação ideológica e sua
compreensão somente se realizam no processo da comunicação social. Todos os atos individuais
participantes da criação ideológica são apenas os momentos inseparáveis dessa comunicação e são
seus componentes dependentes e, por isso, não podem ser estudados fora do processo social [...].”
(MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.49, grifo nosso). Para Medviédev (2012[1928], p.50), todo produto
ideológico é parte da realidade social e se manifesta semioticamente, posto que “não importa o que
a palavra signifique, ela, antes de mais nada, está materialmente presente como palavra falada,
escrita, impressa, sussurrada no ouvido, pensada no discurso interior, isto é, ela é sempre parte
objetiva e presente do meio social do homem.”
O autor ainda reitera que “a comunicação é aquele meio no qual um fenômeno ideológico
adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de
signo.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.50). Uma correta orientação filosófica geral para o social e a
consequente necessária “precisão metodológica” sob esse olhar, podem ser dadas somente sob “o
terreno do caráter sociológico dos fenômenos ideológicos” (p.71). É preciso entender na palavra,
“as forças e energias da vida ideológica e social.” (p.82-83). Em síntese, “se nós [...] nos
distanciamos das relações sociais que atravessam [o objeto ideológico] e das quais ele é uma das
mais sutis manifestações, se o retirarmos do sistema de interação social, então, nada restará do
objeto ideológico.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.134).
Em relação à projeção valorativa de toda palavra (do signo ideológico, do enunciado, do
discurso), Medviédev (2012[1928], p.183) pontua que “[...] a avaliação social está presente em cada
palavra viva [...]. Qualquer enunciado concreto é um ato social.” Além disso, dadas as orientações
de Medviédev, é metodologicamente impossível compreender o enunciado em sua realização
concreta sem adentrar-se na atmosfera axiológica do meio ideológico. Com isso, “a avaliação social
determina todos os aspectos do enunciado, penetrando-o por inteiro [...]. No enunciado, cada
elemento da língua tomado como material obedece às exigências da avaliação social.”
(MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.185).
Dada nossa compreensão em torno da enunciação e de seu estudo à luz das considerações não
apenas teóricas, mas, sobretudo, metodológicas do Círculo, passamos a delinear aspectos
endereçados no nosso objetivo presente: a análise de enunciados como uma prática precedente à
elaboração didática do professor de Língua Portuguesa.
Textos-enunciados: um olhar analítico
Neste momento, objetivamos seguir um caminho de questionamentos6 como
orientadores para a análise. Esse caminho segue a proposta metodológica de Rodrigues (2001) para
a análise de gêneros do discurso, textos-enunciados típicos, a partir de duas dimensões: social e
verbal, à luz das considerações teórico-metodológicas explicitadas na seção anterior.
Acrescentamos à dimensão verbal proposta pela autora a caracterização “visual”, como
desenvolvido em Acosta-Pereira (2008; 2012), dada a diversidade de textos-enunciados
multissemióticos que medeiam nossas situações de interação. Para fins ilustrativos, seguem dois
gráficos que sintetizam as questões a serem exploradas em cada dimensão, com base nos autores:
Figura 02: Dimensões de análise dos textos-enunciados
Fonte: Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012).
Na dimensão social do texto-enunciado, o professor pode questionar em sua análise:
- Qual a razão desse texto-enunciado ser escrito?
- Qual a esfera que esse texto-enunciado é produzido e quais as características dessa esfera?
- O texto-enunciado é produzido na esfera sob a baliza de qual instituição?
- Quem escreve o texto-enunciado? E como a autoria se projeta no texto-enunciado?
- Onde circula esse texto-enunciado?
- Por quanto tempo circula? Esse tempo-espaço de circulação traz efeitos de sentido para o texto-
enunciado?
6 “O sentido sempre responde a certas perguntas.” (BAKHTIN, 2003 [1979], p.381).
Dim
ensã
o S
OC
IAL
do
s te
xto
s-en
un
ciad
os
Condições de produção: esfera, autoria (posições autorais), horizonte apreciativo-
ideológico, valoração.
Condições de circulação: esfera, interlocutor (ouvinte, leitor), horizonte apreciativo-
ideológico do outro; meios de circulação, espaços de circulação, tempo de circulação.
Condições de recepção: modos de publicação, situação imediata de interação.
Dim
ensã
o V
ER
BO
-VIS
UA
L d
os
texto
s-en
un
ciad
os
Aspectos enunciativo-discursivos: feições do gênero - o que é dizível (tema); estratégias
estilísticas para dizer (estilo) e formas relativamente estável de acabamento, de
orquestração do dizer (composição)
Aspectos textuais: que recursos textuais são agenciados sob a baliza do gênero?
Aspectos linguísticos: que recursos da língua são agenciados à luz das feições do gênero?
Aspectos visuais: como elementos visuais se correlacionam com os verbais para a construção
de sentidos?
- Em que suporte circula esse texto?
- Em qual mídia é publicado?
- Em qual seção? Como se caracteriza o espaço de publicação?
- Quando e onde o texto foi publicado?
- A quem se destina? Qual o público-leitor em potencial? Como se projeta o interlocutor no texto-
enunciado?
- Como se caracterizam os aspectos de diagramação (layout)? Intercalam-se gêneros outros?
A dimensão social, dessa forma, diz respeito às conjecturas histórico-culturais e ideológico-
valorativas de constituição e funcionamento dos textos-enunciados. Na análise dessa dimensão, o
professor pode explorar questões em volta à situação ampla dos enunciados, assim como à situação
imediata, procurando compreender, dentre outras questões, aspectos em torno da autoria e do
projeto discursivo do sujeito-autor, do interlocutor e seu papel na construção do enunciado, por
exemplo. Além disso, questões sobre a dimensão tempo-espaço do texto-enunciado e de sua esfera
de produção, circulação e recepção (compreensão, interpretação) são, em adição, consideradas na
análise dessa dimensão, conforme os questionamentos acima. Ao final, o professor, pode investigar
a possibilidade de intercalação de textos-enunciados outros no texto-enunciado que analisa,
evidenciando ou não esse engendramento dialógica na construção de sentido para a interação.
Na dimensão verbo-visual do texto-enunciado, por sua vez, o professor pode questionar
em sua análise:
- Sobre o que trata o texto-enunciado?
- Que valores (posições avaliativas, ideológicas) são marcados nesse dizer?
- Que relações esse dizer estabelece com outros dizeres?
- De que outras formas o conteúdo temático pode(ria) ser dito?
- Qual o projeto discursivo do autor?
- Quais recursos lexicais, gramaticais, textuais estão sendo agenciados para realizar o projeto
discursivo do autor à luz do gênero em tela?
- Como o texto-enunciado orquestra a projeção composicional do gênero em tela?
- Como elementos visuais se correlacionam com os verbais para a construção de sentidos? Há
gêneros multissemióticos intercalados? Qual a relação de sentido com o texto-enunciado em tela?
Na dimensão verbo-visual, portanto, o professor pode investigar o conteúdo temático do
texto-enunciado, seu estilo e sua composição, procurando evidenciar como este funciona em
determinada esfera de atividade. Para fins de exemplificação, tomemos o caso da análise prévia do
texto-enunciado notícia online.
Figura 03 – Notícia online publicada no jornal Diário Catarinense.
Fonte: http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/ Acesso em 31/01/2014.
Abaixo seguem possíveis respostas aos questionamentos que orientam a análise. Não
respondemos a todos os questionamentos, nem aspiramos a ser exaustivos, deixando ao nosso
interlocutor o trabalho da resposta.
Tabela 01: A análise de textos-enunciados
Dimensões social e verbo-visual Feições do gênero do discurso
Qual a razão de esse texto-enunciado ser
escrito?
Reportar fatos sociais, políticos, econômicos
etc. do cotidiano. No caso da notícia em
ilustração, as espionagens dos EUA sobre o
Brasil.
Qual a esfera em que esse texto-enunciado é
produzido e quais as características dessa
esfera?
Esfera jornalística. A busca por efeitos de
imparcialidade, de atualização de informações,
de contemporaneidade dos fatos, etc.
O texto-enunciado é produzido na esfera sob a
baliza de qual instituição?
Qual a empresa jornalística e sua posição
ideológico-valorativa? Sensacionalista?
Imprensa marrom? Há efeitos sob a linguagem?
O jornal é o Diário Catarinense que tem uma
visão ideológica de direita no estado de SC.
Quem escreve o texto-enunciado? E como a
autoria se projeta no texto-enunciado?
Quem é o autor (posição autoral)? É uma
posição multi-autoral?
Há projeções linguísticas que marcam
explicitamente a posição autoral?
Não está explicito o nome de quem assina a
notícia, conferindo a esta uma projeção de
autoria institucional.
Onde circula esse texto-enunciado? O texto tem circulação municipal, regional,
estadual, federal ou internacional? No caso da
notícia em meio virtual, as fronteiras são
infinitas. Se pensarmos acerca do jornal em
versão impressa, a territorialidade é mais
precisa.
Por quanto tempo circula? Esse tempo-espaço
de circulação traz efeitos de sentido para o
texto-enunciado?
É circulação de horas, de dias, semanal? E como
isso reflete na seleção de objetos dizíveis pelo
gênero? Geralmente notícias online circulam
por 24h, mas podem permanecer por meses no
arquivo digital do jornal. É claro que o conteúdo
temático da notícia em tela diz respeito ao que
tem se discutido na semana nas mais diversas
mídias.
Em que suporte circula esse texto? Jornal, revista, TV, celular, etc e qual os efeitos
de sentido? No computador, em ambiente
virtual, com acesso gratuito.
Em qual mídia é publicado? Impressa, virtual, radiofônica, televisiva,
telefônica.
Em qual seção? Como se caracteriza o espaço de
publicação?
Qual o espaço destinado à publicação e como
(ou por que) se dá essa disposição (valorativa)?
A notícia é publicada na seção “Mundo” o que já
antecipa as expectativas do leitor sobre o que
vai ler.
Quando e onde o texto foi publicado?
O local de publicação e a data de publicação têm
influência nos objetos dizíveis pelo gênero? Nos
diferentes jornais, o mesmo fato seria
enquadrado com projeções distintas.
A quem se destina? Qual o público-leitor em
potencial? Como se projeta o interlocutor no
texto-enunciado?
Ver o público-leitor empírico (classe, idade,
profissão, escolaridade, sexo, orientação sexual,
etc) e discursivo (expectativas, interesses,
horizonte apreciativo). Há recursos linguísticos
explícitos no texto-enunciado que projetam
esse leitor?
Aqui o Diário Catarinense tem seu público-leitor
em potencial, além daqueles que navegam na
internet. Uma notícia pode ter mais adesão do
que outras (acessos) a depender do que reporta
e do como reporta.
Como se caracterizam os aspectos de
diagramação (layout)? Intercalam-se gêneros
outros?
Ver cores, disposição dos parágrafos, olho
textual, boxes, fonte etc. Além disso, verificar a
ocorrência da intercalação; por exemplo, no
gênero notícia é comum intercalarem-se
gêneros como infográfico, fotografia, mapa etc.
Esse gênero engendra-se a outro para
funcionar?
Alguns gêneros necessitam engendrarem-se a
outros para funcionar (entrelaçam-se em
relações dialógicas); por exemplo, o gênero
chamada de capa, necessita que haja uma
notícia ou reportagem principal na revista ou
jornal.
Sobre o que trata o texto-enunciado? O conteúdo temático do texto-enunciado.
Que valores (posições avaliativas, ideológicas)
são marcados nesse dizer?
O horizonte apreciativo sob o qual o sujeito-
autor enuncia. Em outras palavras, é a baliza
ideológico-axiológica a partir da qual o dizer se
constitui.
Que relações esse dizer estabelece com outros
dizeres?
As relações dialógicas (relações semântico-
valorativas) que se estabelecem no dizer
balizado pelo gênero do discurso. São relações
com o dizer do outro (já-ditos, pré-figurados).
De que outras formas o conteúdo temático
pode(ria) ser dito?
Outros caminhos argumentativos (por
exemplo); sob que outro horizonte apreciativo
o conteúdo temático do texto-enunciado
poderia ser contemplado.
Qual o projeto discursivo do autor? A vontade discursiva do dizer. O querer-dizer
do sujeito-autor.
Quais recursos lexicais, gramaticais, textuais
estão sendo agenciados para realizar o projeto
discursivo do autor à luz do gênero em tela?
O estilo do texto-enunciado à luz da baliza do
gênero. Verificar as projeções estilísticas. Por
exemplo, verbos modais podem ser usados de
formas diferentes e sob sentidos distintos, se
pensarmos os gêneros notícia e artigo assinado.
Como o texto-enunciado orquestra a projeção
composicional do gênero em tela?
O acabamento relativamente estável do gênero.
É a orquestração de sua composição típica.
Como elementos visuais se correlacionam com
os verbais para a construção de sentidos? Há
gêneros multissemióticos intercalados? Qual a
relação de sentido com o texto-enunciado em
tela?
A construção de sentido entre o verbal e o
visual.
Fonte: Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012).
Ao final da exemplificação em torno do texto-enunciado notícia, publicado em ambiente
virtual, direcionemos nosso olhar para as considerações em torno da elaboração didática e as etapas
(possíveis) para tanto.
Textos-enunciados: implicações didático-pedagógicas e a elaboração didática
A Teoria da Transposição Didática (T.D) nasce na década de 1980 com a preocupação de
elaborar modos de transformar o conhecimento científico dentro de sistemas didáticos. É a
conversão de objeto do conhecimento em objeto de ensino. Yves Chevallard, matemático e
educador francês, observou a necessidade de associar a análise do conhecimento matemático com
os estudos práticos didáticos. A T. D, para Chevallard (1991), realiza o trabalho de reorganização,
medição e reestruturação dos saberes historicamente constituídos (institucionalizados) em saberes
tipicamente escolares. Segundo Almeida (2011, p.10), para Chevallard, o conceito de T. D prevê
A concepção de 3 partes distintas e interligadas: o saber do sábio, que é o saber
elaborado pelos cientistas; o saber a ensinar, que é a parte específica do professor e
está voltada à didática e à prática de condução da sala de aula; e, por último, o
saber ensinado, aquele que foi absorvido pelo aluno mediante as adaptações e as
transformações feitas pelos cientistas e pelos professores.
Diferentemente da posição de Chevallard (1991), Halté (2008[1998]) propõe o conceito
de elaboração didática que, dentre outras questões, visa a distanciar-se do apagamento em que se
caracterizam as posições do professor e do aluno à luz da teoria da transposição. Assim,
diferentemente de transpor conhecimentos de ordem científica para o campo escolar – da ordem do
saber sábio para o saber ensinado -, contempla-se o trabalho de coconstrução de saberes de
múltiplas ordens, em eventos praxiológicos nos quais professor e aluno assumem papeis agentivos,
situando o acontecimento da aula em um projeto didático, no qual o saber ensinado converge com
escolhas, com objetivos compartilhados, com os conhecimentos prévios e com especialidades afins
(HALTÉ, 2008[1998], p.139), caracterizando a elaboração didática como um agenciamento de
saberes empreendidos para a ação didático-pedagógica (RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATTI,
2011). Segundo Halté,
Pelo fato de fixar a atenção apenas sobre o polo dos saberes, a transposição facilita,
e até legitima, a “deriva para os objetos de ensino”, em detrimento de outros pontos
importantes do famoso triângulo. Pelo fato de definir um processo descendente, do
saber científico para o saber escolar, ela favorece – até mesmo preconiza - o
aplicacionismo. Pelo fato de organizar-se a partir de saberes distribuídos
academicamente em campos constituídos, ela purifica os objetos de ensino ao
preço de uma perda de sentido pelos aprendizes etc. Por essas razões, eu havia
defendido uma didática globalmente praxiológica, caracterizando-se, em relação
aos saberes, por uma metodologia implicacionista que eu nomeei elaboração
didática dos saberes. (HALTÉ, 2008[1998], p.138, grifo do autor).
Entendemos, sob essa perspectiva, que para o trabalho docente de elaboração de
atividades didático-pedagógicas, as etapas a seguir se sucedem. Primeiramente, entendemos que há
a seleção de textos-enunciados do gênero para trabalho em sala: seleção de textos-enunciados
concretos e de circulação social (GERALDI, 1984[1985], 1997[1991], 2010), como, por exemplo,
textos-enunciados que circulam em âmbito global, como aqueles que circulam em contexto local,
contemplando, em sala, uma prática híbrida (STREET, 2003). O importante é selecionar textos
autênticos, inclusive com seu design original (ANTUNES, 2003; 2007; 2010). Em um segundo
momento, ocorre a análise prévia do texto-enunciado pelo professor como subsídio para a
elaboração didática: seguir (como sugestão) a análise da dimensão social e verbo-visual dos textos-
enunciados. Terceira etapa, por sua vez, se caracteriza como a elaboração de atividades de leitura:
propor atividades que contemplem tanto a dimensão social quanto a dimensão verbo-visual dos
textos-enunciado em tela na aula. Entender que ler é reagir responsivamente ao texto-enunciado do
outro.
Consociada à elaboração de atividade de leitura, ao nosso ver, ocorre a elaboração de
atividades de escrita: propor atividades que os alunos tornem-se sujeitos-autores de seu dizer e que,
sobretudo, a aula agencie uma situação concreta de escrita na qual o aluno: (a) tenha o que dizer; (b)
tenha razões para dizer; (c) (re)conheça os interlocutores para dizer; (d) assuma-se como autor do
seu dizer e (e) escolha estratégias para dizer (GERALDI, 1997[1991], p.161). E ainda segundo
Rodrigues; Cerutti-Rizzatti (2011, p.200):
A elaboração didática de ensino e aprendizagem da produção textual não pode
prescindir a noção de gêneros se, de fato, tomarmos como princípio que à
disciplina de Língua Portuguesa cabe o trabalho com o domínio dos usos sociais da
linguagem. Desse encaminhamento, resulta que a grande maestria do professor de
língua portuguesa está na elaboração didática de atividades didático-pedagógicas
que medeiam o processo de apropriação de conhecimentos necessários à produção
de textos pertinentes aos gêneros do discurso a que pertencem; e, como corolário,
construir conhecimento praxiológico necessário para o aluno, como sujeito
historicamente situado, poder transitar em diferentes esferas sociais cujas
interações são mediadas pela escrita (no caso de interações mediadas por textos
escritos).
E sob a perspectiva da leitura e da escrita de textos enunciados, ocorre a elaboração de
atividades de análise linguística: propor atividades que os alunos reconheçam e compreendam
como os diferentes recursos da língua são agenciados para construir sentidos sob a baliza da
situação de interação (ACOSTA-PEREIRA, 2011; 2013). Dessa forma, todo texto-enunciado, sob a
baliza de um gênero, em dada situação de interação, se utiliza de recursos linguísticos que agenciam
sentidos integrados às feições do gênero e às conjecturas da situação de interação. A prática de
análise linguística deve ser integrada às práticas de leitura e de escrita (ACOSTA-PEREIRA, 2013;
RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATTI, 2011). Ao final, de forma integrada, entender como o gênero
do discurso, texto-enunciado típico, medeia as práticas de leitura, de escrita e de análise linguística.
Considerações finais
Nosso objetivo neste trabalho foi, de forma objetiva, apresentar considerações de ordem
enunciativo-discursiva para a análise de textos-enunciados como atividade docente prévia à
elaboração didática. Desse modo, primeiramente, delineamos um caminho de discussão teórico-
metodológica em torno do conceito de enunciado sob a perspectiva dos escritos do Círculo de
Bakhtin, para que, em consórcio à proposta de análise, nosso interlocutor (leitor) pudesse traçar
uma rota de idas e vindas entre a conceituação e os questionamentos para a análise. E um segundo
momento, introduzimos os possíveis questionamentos em torno da análise das dimensões social e
verbo-visual dos textos-enunciados e uma exemplificação com base no gênero notícia online.
Assim, esperamos que os questionamentos delineados acima contribuam para o trabalho
do professor na elaboração didática e no seu entendimento da constituição e do funcionamento dos
textos-enunciados nas diversas situações de interação de que fazem parte. Ao fim, reenunciamos
Rodrigues; Cerutti-Rizzatti (2011, p.152) com as quais concordamos:
Optamos por empreender uma ação didático-pedagógica que não lança mão de
modelizações e de construtos didatizantes. Defendemos o papel central do
professor no delineamento dos rumos de seu fazer, para o que entendemos
essencial a apropriação do conhecimento científico aqui recortado, mas, reiterando
[...] que a lógica da ciência não é a lógica da disciplina, e a escola não é o espaço
para ofazer científico, mas para o ensino e a aprendizagem de conhecimentos
objetificados, historicamente construídos pela humanidade, tanto quanto para o
desenvolvimento de habilidades para os diferentes usos da linguagem, no caso da
disciplina de Língua Portuguesa.
Portanto, como já dito, não procuramos sedimentar um caminho de análise estanque e
modelizador para os textos-enunciados, mas questionamentos que podem ser levantados em torno
da constituição e funcionamento destes. Diferentemente de um trabalho de cunho teórico-
epistemológico, acreditamos, nosso presente trabalho resulta, em grande parte, numa proposta que
visa a contemplar uma posição praxiológica do fazer docente.
Referências
ACOSTA-PEREIRA, R. A prática de análise linguística mediada pelos gêneros do discurso:
matizes sócio-históricos. Revista Letrônica, v. 06, p.494-520, 2013.
______. O gênero carta de conselhos em revistas online: na fronteira entre o entretenimento e a
autoajuda. 261 f. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal de Santa Catarina,
Programa de Pós-graduação em Linguística, Florianópolis-SC, 2012.
______. Contribuições dos estudos sobre gêneros do discurso para a análise linguística em sala de
aula: perspectivas dialógicas. Revista Caminhos em Linguística Aplicada, v. 5, p.01-41, 2011.
______. O gênero jornalístico notícia: dialogismo e valoração. 229 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística). Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-graduação em Linguística,
Florianópolis-SC, 2008.
ADAM, J. M. Eléments de linguistic textuelle. Liège: Madarga, 1990.
______. Les texts: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.
ALMEIDA, G. P.de. Transposição didática: por onde começar. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola, 2010.
_____. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo:
Parábola, 2007.
_____. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003 [1979].
______. (Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. Tradução do francês por Michel Lahud e Yara F.Vieira.12. ed.
São Paulo: Hucitec, 2006 [1929].
_____. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução do russo, notas e prefácio de Paulo
Bezerra. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008 [1963].
BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas de Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; apresentação de Beth Brait; organização e notas da edição
russa de Serguei Botcharov e Liudmila Gogotichvíli. São Paulo: Editora 34, 2013.
BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave.
São Paulo: Contexto, 2006, p.9-32.
______. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: GREGOLIN, M. R. do; BARONAS, R. (Org.).
Análise do discurso: as materialidades do sentido. 3. ed. São Carlos, SP.: Claraluz, 2007. p.19-32.
BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. Paris: Gallimard, 1966.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
BRITTO, L. P.L. A sombra do caos. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1997.
CHEVALLARD, Y. La Transposition Didactique: Du Savoir Savant au Savoir Ensigné.
Grenoble, La pensée Sauvage, 1991.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2010. p.71-
80.
______. Portos de passagem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1991].
______. O texto na sala de aula. 3 ed. Cascavel: ASSOESTE, 1985 [1984].
HALTÉ, J. O espaço didático e a transposição. Fórum Linguístico, Florianópolis, p.117-139,
jul./dez. 2008 [1998].
MEDVIÉDEV, P.N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética
sociológica. Tradução do russo por Ekaterina Américo e Sheila Grillo. São Paulo: Contexto, 2012
[1928].
RODRIGUES. R. H. A constituição e funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e
dialogismo. 347 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem. São Paulo-SP, 2001.
_____. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In:
MEURER, J. L.; BONINI, A; MOTTA-ROTH, D. Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo:
Parábola, 2005. p.152-183.
RODRIGUES, R. H; CERUTTI-RIZZATTI, E. Linguística Aplicada: ensino de língua materna.
Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2011.
ROJO, R. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In: MEURER, J. L;
BONINI, A; MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola
Editorial. 2005. p.184-207.
PONZIO, A. Dialogando sobre diálogo na perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro& João
Editores, 2012.
STREET, B.V. What’s new in New Literacy Studies? Critical Approaches to Literacy in Theory
and Practice. Current Issues in comparative Education, New York, vol. 5, n.2; p.77-91. 2003.
VOLOSHINOV, V. N. La construcción de la enunciación. In: SILVESTRI, A; BLANCK, G.
Bajtín y Vigotsky: la organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993[1929].
p.217-243.
A RETÓRICA DO GÊNERO ENTREVISTA DE EMPREGO
Francisco ALVES FILHO7
Lafity dos Santos ALVES8
Resumo: A principal tendência dos estudos da teoria de gêneros, na perspectiva da nova retórica
estadunidense, é adotar a noção de gênero como uma resposta tipificada a uma situação retórica
recorrente (BITZER, 1968; BURKE, 1973; JAMIESON, 1973) de modo a situar o gênero retórico
na prática retórica e nas convenções de discurso estabelecidas pela sociedade (BAZERMAN, 1988;
e MILLER, 1984). Diante disso, nosso objetivo neste trabalho é buscar explicações para o
funcionamento retórico do gênero Entrevista de emprego, já que se trata de um gênero praticado em
situação privada e modelos de referência não circularem publicamente.
Palavras-chave: Entrevista de Emprego. Gêneros. Nova retórica. Função retórica.
Abstract: The main trend of the studies of the theory of genres, from the perspective of the
American new rhetoric, is to adopt the notion of genre as a typified answer to a recurring
rhetorical situation (BITZER, 1968; BURKE, 1973; JAMIESON, 1973) in order to situate the
rhetorical genre in the rhetorical practice and in the discourse conventions established by society
(BAZERMAN, 1988; MILLER, 1984). Based on this theoretical approach, we aim at seeking
explanations for the rhetorical functioning of the Job Interview genre, since it is about a genre
practiced in private situation and reference models do not circulate publicly.
Keywords: Job Interview. Genres. New rhetoric. Rhetorical Function.
Introdução
Em nível internacional, existem muitas pesquisas que trazem à tona a vertente da Entrevista
de emprego; no entanto, muitos desses trabalhos estão relacionados ao campo da Psicologia. A nível
nacional, também existem alguns trabalhos cuja temática norteadora é a Entrevista de emprego, mas
a visão predominante é a da área administrativa, que tende a olhar o gênero Entrevista de emprego
de forma genérica e abstrata.
7Pós-Doutor em Linguística pela UNICAMP.Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
da UFPI. Teresina-PI. E-mail: [email protected] 8Mestre em Linguística pela UFPI. Professora do Instituto Dom Barreto. Teresina-PI. E-
mail:[email protected]
No Brasil, no campo da sociorretórica, ainda são poucos os trabalhos que abordam a
temática da Entrevista de emprego. Acreditamos que isso nos traz algumas sérias consequências,
quais sejam: pouca incompreensão das funções do gênero supracitado, uma vez que os manuais
disponíveis no meio digital apresentam regras genéricas de um funcionamento abstrato do gênero
Entrevista de emprego, resultantes de situações muito particulares de uso desse gênero; Isso gera
um outro problema: uma visão formalística e rígida do gênero Entrevista de emprego regendo, de
modo geral, o comportamento das pessoas que necessitam fazer uso desse gênero.
Diante disso, nosso objetivo nesta pesquisa é explicar o funcionamento retórico do gênero
Entrevista de emprego, uma vez que ainda se trata de um gênero obscuro para a sociedade.
Seguiremos, então, a teoria de gêneros defendida pelos teóricos da Nova Retórica Americana, tais
como Devitt (2008), Jamieson (1973) e Miller (2005), para quem os gêneros “são construtos sociais
elaborados pelos usuários em situações específicas de uso da linguagem” (SILVA, 2011).
Para realizarmos esta pesquisa contamos com a análise de depoimentos de entrevistadores e
entrevistados em 4 blogs, todos direcionados à entrevista de emprego, sendo que dois deles contém
comentários e relatos de experiências de pessoas que já passaram pela entrevista de emprego. Os
demais contêm dicas de comportamentos dadas pelos consultores.
Assim como em Silva (2011), a nossa análise, aqui, será de base interpretativista, já que
buscaremos, nos depoimentos dos usuários (entrevistados, entrevistadores e consultores) desse
gênero, explicações para o funcionamento da Entrevista de emprego no contexto empresarial.
A escolha da entrevista de emprego como objeto de análise de nossa pesquisa deu-se devido
ao fato de tentarmos procurar explicar o funcionamento do gênero entrevista de emprego para
usuários deste gênero e, também, ao fato de muitos estudos sobre a literatura não abordarem a
complexidade a qual perpassa esse gênero, desconsiderando, assim, a obscuridade característica
dele.
Situação Retórica
A noção de gênero nos Estudos Retóricos recorre diretamente à noção de situação porque
muitos autores assumem que o gênero é tributário da situação retórica e defendem que as pessoas,
quando reconhecem uma situação particular como semelhante a outra já vivenciada, tendem a se
guiar por ela para proferir seu discurso. (SILVA, 2011)
Bitzer (1968) critica os teóricos da retórica clássica por terem ignorado a importância do
estudo da situação e se preocupado mais em distinguir e caracterizar os tipos de discurso e em
descrever e prescrever aspectos formais dos discursos retóricos. Concebendo-a como central para os
estudos retóricos, Bitzer (1968) concebe a situação como um complexo de pessoas, eventos, objetos
e relações presentes numa exigência real e defende que o discurso do retor surge como uma resposta
a uma dada situação retórica.
Jamieson (1973) propõe que seja acrescido à teoria de Bitzer o fato de que a percepção de
uma resposta adequada a uma situação recorrente surge não somente em relação à situação, mas
também a partir de outros gêneros já conhecidos. Também revendo a concepção de Bitzer, Miller
(1984) defende que a situação retórica não é uma realidade objetiva, já que resulta da interpretação
social compartilhada. Como a situação não corresponde ao mundo físico e empírico, mas é
determinada e concebida pelos usuários, os gêneros tornam-se não somente parte do contexto, mas
também parte constitutiva da exigência que solicita respostas futuras. Ou seja, a situação retórica
está associada às condições de comparações entre situações que , de algum modo, assemelham-se.
No caso da Entrevista de Emprego isso se constitui da seguinte maneira: As pessoas tendem a partir
de situações de entrevistas vivenciadas por elas, ou mesmo, por outras pessoas buscar semelhanças
que irão, de algum modo, facilitar o reconhecimento da Entrevista nas mais diferentes situações.
Devitt (2004) também critica a concepção de Bitzer de situação retórica por se tratar de uma
definição determinística, já que supõe apenas uma resposta adequada para cada situação.
Estudos Retóricos dos gêneros
Dois aspectos da abordagem de gênero de Campbell e Jamieson (1978a, 1978b, 1982 citados
por MILLER, 1984) são importantes para os estudos dos gêneros retóricos. O primeiro consiste no
fato de a discussão de Campbell e Jamieson produzir um método de classificação que satisfaz a
exigência de relevância para a prática retórica. Segundo Miller, um gênero se torna um complexo de
traços formais e substantivos que criam um efeito particular numa dada situação. Portanto, o
gênero, mais do que uma entidade formal, torna-se pragmático e retórico - dois importantes
aspectos do gênero como ação social. O segundo aspecto é o fato de Campbell e Jamieson
procederem indutivamente como críticos, o que não as fizeram prever ou limitar os gêneros que
poderiam ser identificados, mas procurar uma explicação da evolução da realidade social dos
discursos.
A compreensão de gênero retórico defendida por Miller (1984, p.163) está pautada na
prática retórica e nas convenções de discurso estabelecidas pela sociedade e resulta do “agir junto”
das pessoas, razão pela qual a compreensão dos gêneros “não se presta à taxonomia, porque gêneros
mudam, evoluem e se deterioram”.
Devitt (2004) se apoia em Miller (1984) para defender que gêneros existentes tendem a guiar
as respostas do retor numa nova situação, razão pela qual “os gêneros [...] dependem muito da
intertextualidade do discurso” (DEVITT, 2004, p.15). A resposta do usuário numa dada situação
poderá ser guiada por respostas dadas em outro momento, mas que têm algo similar com uma nova
situação.
A visão de Miller (1984) sobre a percepção subjetiva é de que esta não é a fonte do que
recorre, pois ela é única em cada momento e muda de pessoa para pessoa. Entretanto, Devitt (2004)
argumenta que a percepção individual também é fonte da recorrência, pois a existência do discurso
dá-se somente através das ações individuais. Além do mais, um escritor ou leitor percebe a
recorrência porque reconhece um gênero existente. Por isso, há, segundo a autora, uma tendência
por parte das pessoas em perceber semelhanças em situações que se lhes apresentam como
adversas. Esse paradoxo decorre do fato de as pessoas construírem os gêneros a partir de uma
situação e a situação através dos gêneros, numa relação, ao mesmo tempo, recíproca e dinâmica.
Dessa forma, as pessoas reconhecem situações recorrentes porque conhecem gêneros e, em
contrapartida, reconhecem um gênero porque são capazes de identificar a situação a ele
recorrentemente associada.
Embora situação e gênero estejam integralmente inter-relacionados, essa relação não captura
tudo da ação. É por isso que Devitt (2004, p.27) propõe adicionar mais dois elementos situacionais
essenciais: ‘cultura’ e ‘outros gêneros’. O contexto cultural “fornece uma fonte para explicar as
facetas significativas do gênero” pelo fato de ele fornecer valores e ideologias que colocam os
retores em situações mais adequadas para ler os gêneros. O outro elemento são os “outros gêneros”
existentes numa sociedade e que se interinfluenciam, já que “ninguém escreve ou fala no vazio”
(p.27). Esses três contextos (cultural, de situação e de outros gêneros) agem de forma simultânea e
interativa dentro de um único gênero.
Devitt (2004, p.33) defende que “os gêneros operam socialmente” já que pressupõem ações
múltiplas de pessoas agindo de modo recorrente, razão pela qual estão interligados às questões de
poder e de identidades ideológicas. Em síntese, Devitt concebe o gênero como algo que não pode
operar independentemente das ações das pessoas. Pois é justamente a interação entre ação humana e
gêneros que possibilita as pessoas construírem os gêneros e serem as situações também construídas,
pelo menos em parte, por eles.
Entrevista de emprego (EE)
O gênero EE é amplamente utilizado para contratação de funcionários de empresas dos mais
diversos setores da economia. Fear (1978 apud CONWELL, 1990) afirma que a função da EE é
avaliar a personalidade do indivíduo de tal modo que o entrevistador possa determinar se o
indivíduo é ou não adequado para a vaga do emprego a que concorre.
Jackson, Peacock e Holden (1982 apud SILVA, 2011) argumentam que um processo de
inferência duplo ocorre na situação da entrevista. A primeira parte envolve o entrevistador
construindo um perfil baseado em informações inferidas em um conjunto de exemplares
comportamentais e a segunda parte envolve o processo de tomada de decisão que está baseado
sobre a informação obtida na primeira parte.
Jackson, Peacock e Holden constataram que candidatos que eram menos prováveis de serem
contratados eram aqueles cujas características eram inconsistentes com a informação inferencial do
avaliador.
Também Conwell (1990 apud SILVA, 2011) chega à conclusão semelhante: o candidato
expondo características de personalidade incongruentes ou inconsistentes em relação à ocupação era
avaliado de forma negativa e menos provável a ser empregado do que o candidato exibindo a
informação consistente (p.98).
Ao analisar o gênero EE a partir de informações fornecidas por uma entrevistadora, De
Conto (2008) afirma que a distância existente entre o entrevistador e o entrevistado reforça a
relação hierárquica característica deste gênero, já que não há qualquer manifestação de intimidade
entre os participantes. Além disso, as perguntas elaboradas pelo selecionador são feitas com base
em processos mentais, já que o objetivo maior é avaliar o perfil psicológico do candidato. Por isso o
que mais determina a contratação do candidato não é o que está escrito na carta de apresentação e
no currículo, mas sim a representação que é feita pelo candidato no momento da EE.
Marzari (2005), por sua vez, defende que a EE é um gênero que permite aos indivíduos
envolvidos na situação redefinirem seus papéis e objetivos, já que ela “... revela as concepções, os
objetivos e as perspectivas de entrevistadores a respeito do entrevistado” (p.30).
A EE é um gênero presente em diversas esferas da atividade humana e fundamental na
escolha do candidato que possivelmente virá assumir uma vaga no mercado de trabalho, ocorrendo
numa situação particular que faz parte de um processo de seleção mais amplo incluindo outros
gêneros. Os participantes dessa seleção ocupam dois papéis claramente delimitados:
entrevistador(es) e entrevistado. Trata-se de uma situação com um claro grau de hierarquização já
que o controle e o comando de toda a situação são ditados pelo entrevistador.
Do ponto de vista do entrevistador, a EE constitui-se numa situação abundantemente
recorrente, porque ele a vivencia reiteradamente. Já o entrevistado não tem esta percepção de
recorrência do gênero porque cada situação de entrevista será nova e ele participa de poucas delas
durante toda sua vida. Ou seja, a recorrência funciona diferentemente para os dois perfis de
participantes: abundantemente recorrente para o entrevistador e praticamente inusitada e esporádica
para o entrevistado.
A interinfluência entre situação retórica e gênero manifesta-se claramente na EE, ainda que
varie em função dos sujeitos envolvidos. Embora este gênero apresente um significativo grau de
obscuridade para o entrevistado e ainda que o entrevistador lhe seja alguém desconhecido, o
entrevistado se apoia em suas experiências anteriores com outras entrevistas e outros gêneros para
criar expectativas genéricas acerca da futura entrevista da qual tomará parte.
Como em Silva (2011), acreditamos que a entrevista de emprego pode ser caracterizada
como apresentando como uma de suas facetas marcantes um funcionamento baseado nas
expectativas dos usuários. Tanto entrevistadores como entrevistados guiam suas ações genéricas
com base no que imaginam que poderá ocorrer durante a entrevista.
Segundo Chiavenato (apud SILVA, 2011), a entrevista de emprego somente servirá como
forma de avaliação, se o entrevistador:
a) examinar seus preconceitos pessoais e dar-lhes o devido desconto; b) evitar perguntas do tipo
armadilha; c) ouvir atentamente o entrevistado e demonstrar interesse por ele; d) fazer perguntas
que proporcionem respostas narrativas; e) evitar emitir opiniões pessoais; f) encorajar o entrevistado
a fazer perguntas sobre a organização e o emprego; g) evitar a tendência de classificar globalmente
o candidato (efeito de hallo ou de generalização) como apenas bom, regular ou péssimo; h) evitar
tomar muitas anotações e registros durante a entrevista para poder se dedicar mais atentamente ao
candidato e não às anotações. (p.129)
Concordamos com Silva (2011) quando esta afirma que, nas condições de avaliação
expostas acima, Chiavenato assume o papel social de consultor, já que instrui aos entrevistadores as
regras de funcionamento do gênero entrevista de emprego. O que fica demarcado pela presença dos
verbos: examinar, evitar, ouvir, fazer e encorajar. As condições expostas acima servem como
exemplo para explicarmos o gênero como ação social tal qual defendido por Miller. Para Miller, a
ação social propriamente dita acontece somente quando os indivíduos passam a conceber, ou
melhor, a tipificar o gênero como sendo de uma forma x e não y. Assim, o modo de conceber a
entrevista de Chiavenato sugere que essa seja a forma correta de agir durante uma entrevista,
portanto, quando os entrevistadores passam a comungar com essa visão do gênero entrevista de
Chiavenato, temos a ação social, já que esse modo de conceber esse gênero não é mais somente de
Chiavenato, mas também de outros usuários que partilham uma mesma comunidade discursiva.
Acreditamos que Chiavenato possa ter estabelecido esta concepção de entrevista a partir de
experiências adquiridas com outras pessoas, bem como com outras situações sociais vivenciadas
por ele.
Segundo Chiavenato, a entrevista pode ser conduzida pelo entrevistador de forma
estruturada e padronizada ou de forma livre. A forma utilizada pelo entrevistador dependerá de suas
habilidades na condução da entrevista. Ele classifica as entrevistas (em função das questões e
respostas) em quatro tipos: “entrevista totalmente padronizada”, “entrevista padronizada apenas
quanto às perguntas ou questões”, “entrevista diretiva” e “entrevista não diretiva”. Nesse trecho,
percebemos que a entrevista não é um gênero rígido, mas dinâmico e heterogêneo, já que temos
agrupamentos diferentes para um mesmo gênero e não há somente um critério para rotular os
discursos utilizados nos gêneros. (SILVA, 2011)
Segundo Silva (2011), o gênero Entrevista de Emprego é também retórico no sentido
persuasivo, conforme defendido por estudiosos da teoria clássica, a exemplo de Aristóteles.
Segundo a autora, isso se dá porque, na situação de entrevista, o entrevistado precisa convencer o
entrevistador de que o seu perfil atende ao exigido pela empresa e o que está sendo dito por ele
atesta uma verdade. Mas como o discurso pode, ao invés de refletir, refratar ou distorcer a realidade,
os entrevistadores sentem necessidade de analisar também a linguagem corporal. Há que se
considerar que, para um psicólogo, por exemplo, a verdade pode estar mais no gesto, no olhar do
que na palavra, porque a palavra pode não representar a imagem real do candidato e as pessoas
podem também mentir com o corpo. Isso talvez justifique o fato de muitas empresas terem
psicólogos no processo de seleção de funcionários, porque, em tese, esse profissional consegue
fazer uma leitura perspicaz e acurada da linguagem corporal.
Concepções do gênero entrevista de emprego segundo seus participantes
Situação obscura
Muitos entrevistados concebem a entrevista como um gênero obscuro e enigmático. Pedro9,
estudante de comunicação, declarou que a EE é o "encontro com uma pessoa desconhecida [...] O
entrevistador não te conhece e irá fazer um "juízo" de você que, às vezes, não corresponde com a
realidade” (http//www.acessa.com/vestibular/arquivo/carreira/2005/06/29entrevista/#1), acessado
em 5 de abril de 2010 às 19h25min.). De modo parecido, Joana declarou que a entrevista causa
certo desconforto já que “não sabemos como serão as perguntas"
(http//www.acessa.com/vestibular/arquivo/carreira/2005/06/29-entrevista/#1),acessado em 5 de
abril de 2010 às19h25min. ).
O caráter de obscuridade do gênero, na perspectiva dos entrevistados, apresenta uma
importância estratégica para os entrevistadores, já que os possibilita avaliarem os candidatos em
situações que se mostram como novas e inusitadas. Sendo uma situação nova e não reconhecida
como recorrente, ela pode favorecer a manifestação das posturas e habilidades reais dos candidatos
9 Todos os nomes de entrevistados, entrevistadores e consultores mencionados neste artigo são
fictícios.
em vez de comportamentos frutos de mera representação cênica. Por isso, muitos consultores são
categóricos ao afirmar que o conhecimento prévio da empresa é um fator crucial para que o
candidato venha a se sair bem na entrevista: ela seria uma condição para atenuar a obscuridade.
Situação de investigação
Do ponto de vista de muitos entrevistadores, a entrevista é concebida uma situação de
investigação acerca das verdadeiras habilidades, posturas, e capacidades dos candidatos. Fátima,
uma entrevistadora, afirmou que procura deixar o candidato bem à vontade para “saber como essa
pessoa é realmente... o objetivo de uma entrevista é obter dados que dêem subsídio ao entrevistador
para escolher, com a maior probabilidade de acerto possível o candidato que se adequa melhor
àquele cargo” (entrevista concedida por um Psicólogo e Consultor em
http://psicologiaetrabalho.bolgspot.com/2009/03/entrevistadeemprego.html, acessado em 15 de
fevereiro de 2010, às 14h). Outra entrevistadora, Ana, assegurou que a função do recrutador é
“avaliar o conteúdo do discurso e um conjunto de informações não-verbais utilizadas como
critérios de avaliação, como postura, linguagem corporal, apresentação pessoal, fluência verbal,
motivação e interesse pela vaga [...]” (Psicóloga especialista em RH em:
http://www.zap.com.br/revista/empregos/categoria/como-se-preparar-para-uma-entrevista/page/2/,
acessado em 18 de Fevereiro de 2010, às 18h14min).
Tensão entre recorrência e novidade
As dicas oferecidas pelos consultores em manuais, embora tentem esclarecer o gênero,
trazem comumente alguns problemas. Um deles é o fato de, muitas vezes, conceber a entrevista de
emprego como um gênero que pode ser padronizado independentemente das situações bem
particulares e potencialmente adversas nas quais ele de fato ocorre, o que distorce a evidente
complexidade deste gênero. Embora as dicas oferecidas frequentemente pelos consultores
concebam a EE de modo homogêneo, elas não são seguidas por entrevistadores que assumem
valores e concepções mais particulares acerca deste gênero. Paulo declarou ter participado de uma
entrevista em que as perguntas foram totalmente surpreendentes (no geral, sobre a vida particular
dele e de sua família), frustrando completamente suas expectativas.
Rute, uma empresária que já conduziu muitas entrevistas, comentou em um blog
(http://movv.org/2009/03/15/50-perguntas-e-respostas-para-usar-em-entrevistas-de-
emprego/#comment-99347, acessado em 02-03-2010, às 11h28min) que o grande problema da
entrevista de emprego é o fato de os entrevistados estarem cada vez mais parecidos. Ela atribuiu a
não contratação de alguns candidatos ao fato de eles seguirem à risca certas regras ditadas pelos
manuais e tornarem-se muito parecidos. Mas há depoimentos que indicam exatamente o oposto do
caso acima: Teresa atribui sua reprovação numa entrevista ao fato de ter procurado fugir das
respostas convencionais e buscado ser “mais natural, mais ela” (http://movv.org/2009/03/15/50-
perguntas-e-respostas-para-usar-em-entrevistas-de-emprego/#comment-99347, acessado em 02-
03-2010, às 11h28min).
De modo geral, pode-se dizer que a EE funciona em uma situação tensa para os
entrevistados, já que estes não têm certeza ou convicção a respeito dos temas e propósitos
recorrentes. Aos olhos do candidato, não é fácil descobrir os traços recorrentes para uma situação
obscura, inacessível e imprevisível.
Pois é exatamente este caráter obscuro da entrevista que abre espaço para que as dicas dos
consultores façam tanto sucesso entre pretendentes a emprego. Os consultores buscam justamente
esclarecer o obscuro e indicar as recorrências de um gênero, o qual pode ou não apresentar um
funcionamento recorrente.
Expectativa
Segundo Silva (2011), a expectativa criada por alguns consultores em relação à entrevista de
emprego é de que a entrevista é uma situação de armadilha. Por isso, cabe aos entrevistados ficarem
atentos ao que os entrevistadores irão perguntar.
No entanto, segundo a autora, há outros consultores, dentre eles, Chiavenato, que discordam
desse tipo de visão do gênero entrevista difundida na sociedade. Segundo Chiavanato, para que a
entrevista seja vista como instrumento de avaliação do entrevistador, este deve evitar perguntas do
tipo armadilha. Além disso, há ainda a expectativa de que o gênero entrevista de emprego seja uma
situação de autopromoção da imagem do entrevistado.
Em síntese, a entrevista de emprego pode ser caracterizada como apresentando como uma de
suas facetas marcantes um funcionamento baseado nas expectativas dos usuários. Tanto
entrevistadores como entrevistados guiam suas ações genéricas com base no que imaginam que
poderá ocorrer durante a entrevista. (SILVA, 2011)
Considerações finais
Retoricamente, a EE serve a propósitos muito diferenciados, dependendo fortemente do tipo
de instituição para a qual é utilizada. Por ser um gênero de funcionamento obscuro, os entrevistados
demonstram não se sentir minimamente preparados para as práticas do gênero, demonstrando
dúvidas sobre a sua função retórica.
Podemos então dizer que a EE é um gênero obscuro para os entrevistados, já que mesmo os
candidatos mais experientes não conhecem a pessoa que o entrevistará e nem mesmo sabem que
tipos de crenças e valores o entrevistador traz consigo, o que evidencia não só um desconhecimento
da pessoa que entrevistará, mas também dos propósitos do gênero. Como a EE é um gênero cuja
situação é privada e inacessível, muitos usuários o encaram como um enigma.
Alguns candidatos alimentam a expectativa de que as perguntas nunca mudam, ao passo
que outros supõem que elas mudam. Assim como em Silva (2011), acreditamos que isso demonstra
a dificuldade que os entrevistados têm em lidar com o gênero, já que ele é, ao mesmo tempo,
estável e instável. Ademais, o candidato que vê na entrevista certa rigidez tende a ter sua
expectativa quebrada quando se encontra diante de uma situação de entrevista que se lhe apresenta
como nova. Quando o entrevistador faz perguntas relacionadas à vida pessoal, ele não o faz
somente para deixar o candidato à vontade, já que algum fato negativo denunciado pelo
entrevistado pode ser decisivo na sua eliminação durante uma entrevista.
Referências
BITZER, L. F. The rhetorical situation. In: Philosophy and Rhetoric, Volume 1, Issue 1, pp: 14,
1968.
BAZERMAN, C. Shaping written knowledge: The genre and activity of the experimental
article in science. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1988.
CONWELL, S. L. Inferential judgment in the employment interview. Dissertation in education,
Faculty of Texas, December, 1990.
De COUTO, J. M. O Sistema de Gêneros da Seleção de candidatos a emprego no contexto
empresarial. Dissertação – Centro de Artes e Letras – UFSM (RS), 2008.
DEVITT, A. J. Writing genres. Carbondale: Southern Illinois University Press, 2004.
DU. Comentário 24 feito em resposta à postagem 50 perguntas e respostas para usar em entrevistas de
Emprego. Quintus, 19 fev. 2010. Disponível em: <http://movv.org/2009/03/15/50-perguntas-e-respostas-
para-usar-em-entrevistas-de-emprego/#comment-107755>. Acesso em: 18 mar. 2010
EVITE os erros da entrevista de emprego. Situado.net. Disponível em:
<http://www.blogdicas.com.br/evite-os-erros-da-entrevista-de-emprego/>. Acesso em: 18 fev. 2010
JAMIESON, K. M. Generic Constraints and the rhetorical situacion. In: Philosophy and Rhetoric,
Volume 6, Issue: 3, pp: 162-170, 1973.
MARZARI, G. Q. “Do you have any experience abroad?” O Gênero Entrevista de Emprego
em cursos livros de línguas. Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Artes e Letras, UFSM ,
Santa Maria, 2005.
MILLER, C. Genre as social action. In: Quarterly Journal of Speech, Volume 70, Issue 2, pp:151-
167, 1984.
SILVA, L. S. A retórica do gênero Entrevista de Emprego. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Centro de Ciências Humanas e Letras, UFPI, Teresina, 2011.
UM GUIA para se dar bem nas entrevistas. Revista Zap, 15 jul. 2008. Disponível em:
<http://www.zap.com.br/revista/empregos/categoria/como-se-preparar-para-uma-
entrevista/page/2/?grupo=ZAP>. Acesso em: 18 fev. 2010.
50 PERGUNTAS e respostas para usar em entrevistas de Emprego. Quintus, 15 mar. 2009.
Disponível em: <http://movv.org/2009/03/15/50-perguntas-e-respostas-para-usar-em-entrevistas-de-
emprego/#comment-105171>. Acesso em: 18 fev. 2010
A SOCIOLINGUÍSTICA LABOVIANA: “A NORMAL SCIENCE” OU “A
REVOLUTIONARY SCIENCE”?
Hélder Sousa SANTOS10
Sueli Maria COELHO11
As questões e enigmas enfrentados pela teoria linguística atual são, em muitos
casos, recauchutados por questões e enigmas que aparecem e reaparecem no
pensamento linguístico Ocidental desde que foram propostos. [...] as teorias
contemporâneas permanecem, então, deslumbradas pelos mesmos problemas que
nossos antepassados vêm tentando resolver por mais de dois mil anos (TAYLOR,
apud FIGUEROA, 1990, p.2).
Resumo: No presente artigo, propomos uma discussão de natureza intrateórica cujo foco está na
maneira como o fenômeno linguagem é abordado pelo linguista americano William Labov (2008).
Em sendo assim, para proceder a essa proposta, recorremos a posicionamentos desenvolvidos por
Esther Figueroa (1994), particularmente, em sua obra “Metateoria Sociolinguística” —
“Sociolinguistic Metatheory”. Ante, então, a posicionamentos figueroanos, destacamos que, de fato,
a empreitada laboviana não instituiu uma subárea no campo dos estudos linguísticos, a
Sociolinguística. Ao contrário, em Labov, a ciência linguística é exposta a uma espécie de revisão
daquilo que parte do pensamento saussuriano nos legou como modelo padrão de investigação do
objeto língua, a partir da reivindicação de um estatuto para o caráter social constitutivo da estrutura
da língua.
Palavras-chave: Metateoria. Revisão. Sociolinguística laboviana.
Abstract: In this paper, we propose a discussion of intratheoretical nature whose focus is on the
way the language phenomenon is approached by the American linguist William Labov (2008).
Therefore, to conduct this proposal, we have scrutinized the positionings developed by Esther
Figueroa (1994), particularly in her book “ Sociolinguistics Metatheory ". Before, then, the
positionings of this author, we point out that, in fact, the Labovian intellectual production did not
institute a subfield in the field of linguistic studies, the Sociolinguistics. Unlike, in Labov, the
linguistic science is exposed to a kind of review from the Saussurian thinking as the standard model
of investigation of the object language, from a demand of a statute to the constitutive social
character of language structure.
Keywords: Metatheory. Review. Labovian sociolinguistics
10 Doutorando em Estudos Linguísticos, pela Universidade Federal de Uberlândia (PPGEL-UFU). E-
mail: [email protected] 11
Docente do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]
Palavras introdutórias
Uma revisita atenta à Historiografia das Ideias Linguísticas nos faz notar que o vasto saber
teórico ali produzido por grandes filósofos e linguistas acerca da matéria linguagem pouco se
mostra a priori — semelhante ao que ocorre em outras áreas de conhecimento, na física, por
exemplo, onde um mesmo paradigma, em uma dada conjuntura, garante certa coerência às suas
pesquisas — na condição de um estável arcabouço de conhecimentos e de descobertas claramente
delineados para o exercício de uma ciência.
Ao contrário, observa-se dali que sempre existiram diferentes perspectivas teóricas em
competição, cada uma, à sua maneira, ocupada com a análise e com a descrição de distintos fatos de
língua[gem]. Com efeito, essas perspectivas — não obstante falem de algum lugar teórico em que
quase sempre se reforça a conhecida dicotomia saussuriana Língua Vs. Fala — nunca deixaram de
propor meios para que fosse possível compreender como, sistematicamente, o multifacetado
fenômeno linguístico se estabelece no seio das sociedades, permitindo ali funcionar muitas de suas
práticas, sejam estas de natureza linguageira, social cultural.
Em vista do que então propõem tais perspectivas teóricas, podemos destacar, sem muitas
delongas, dois modos distintos de fazer linguística. Um deles, que está coadunado à premissa
defendida por Saussure (2006 [1916]), no Curso de Linguística Geral (doravante, CLG), de que a
língua (langue), objeto de estudo da ciência Linguística, “[...] um todo por si e um princípio de
classificação” (p.17), permite ser estudada a partir da autonomia de suas formas, no interior de um
sistema, sem, portanto, qualquer ligação àquele que dela faz uso, o falante. E outro, o qual, sem se
distanciar demasiadamente dos trabalhos de Saussure, reclama para si elementos “negados”12 — a
saber, o locus da língua[gem], a fala, o seu estatuto social — na matriz científica proposta pelo
mestre genebriano à pesquisa linguística. Neste segundo caso, especificamente, encontram-se
estudos que reivindicam para o objeto língua a sua outra face pouco explorada nas lucubrações
saussurianas, a fala (“parole”). Um desses estudos, sobejamente assumido por atuais pesquisas com
foco na realização individual da língua, a fala, provém da maneira como o linguista americano
William Labov (2008) compreende questões relativas ao fenômeno linguagem — questões
12 Optamos por aspear esse termo — que na verdade poderia ter sido substituído por outro —, pois,
no CLG, Saussure (2006) não declara ser a “fala” (“parole”) um objeto de estudo desvinculado da
investigação de sua ciência piloto, a Linguística. Sendo assim, afirmar que Saussure negou essa outra parte
constitutiva da linguagem representa um equívoco, já que, nas suas próprias palavras, “langue” e “parole”
“[...] estão estritamente ligadas e se implicam mutuamente; a língua é necessária para que a fala seja
inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça [...]” (p.27).
O que podemos, então, asseverar é que Saussure optou por investigar a língua, e não exatamente a fala, pois
esta, inicialmente, iria impedi-lo de propor uma sistematização de fatos linguísticos tomados em si como
homogêneos.
relacionadas, por exemplo, ao uso,13 que é feito de estruturas linguísticas por um conjunto
específico de falantes, socialmente integrados a determinado nível sociocultural e econômico —, as
quais, para um recorte de tempo observado, permitem corroborar estágios de mudanças ocorridos
nas línguas em geral.
Em sendo assim, na óptica de Labov (2008, p.13), é preciso não perder de vista o fato de que
“a língua tem um caráter social e cabe à linguística reconhecer isto”. Ora, essa injunção que Labov
determina à linguística nada mais é que o cerne de todo seu projeto teórico-metodológico, o qual
está pautado na investigação empírica do objeto língua. Dela, consequentemente, pode-se, aqui,
entrever algo da noção de língua[gem] assumida por Labov. Neste caso, trata-se da convicção que o
impulsionou a apresentar à ciência da linguagem uma alternativa de incluir ali aspectos do caráter
social da língua. Tal convicção, segundo explica o próprio Labov (2008 [1974]), cabe ser avivada
por pesquisas linguísticas que, ao mesmo tempo, se permitam ser trabalhadas por premissas do
paradigma científico proposto em Saussure (2006 [1916]) e pela possibilidade de estudo da vida dos
signos de uma língua em ambientes sociais. No entanto, e muito estranhamente — protesta Labov
(2008) —, o que muitos linguistas seguidores de Saussure praticam é justamente o contrário: lidam
com um ou com dois informantes em suas pesquisas, “corroborando”, nesse caso, a “presumida”
autonomia de formas de uma dada língua, ficando esta, com efeito, totalmente alienada de seu
caráter social, da sua exterioridade constitutiva14.
Em decorrência do que o parágrafo precedente desenvolve, é (também) necessário notar que
os estudos labovianos, focados no caráter social da língua, têm em mente o inadvertido paradoxo
saussuriano do qual tentam se desvencilhar. Paradoxo que Saussure (2006), infelizmente, deixou
escapar ao “oferecer” um método científico às primeiras pesquisas linguísticas com escopo
exclusivo no objeto língua15. No que então toca esse paradoxo, Labov (2008, p.218) pontua que
13 A princípio, a noção de “língua em uso” orienta-nos a conjeturar eventuais contextos facilitadores
para sua realização. A despeito disso, é necessário observarmos que tal noção não se reduz assim a qualquer
“coisa”, já que, ao introduzir uma abordagem para o objeto língua em ação, há ali toda uma diversidade de
fatos para serem perscrutados pelo estudioso de linguagem. Falar em “língua em uso”, nesse sentido, é ousar
pensar para além das aparências de uma estrutura linguística não positivada pela suposta sustancialização de
suas formas. 14
A nosso ver, a designação “exterioridade constitutiva”, que não está sendo usada aqui de modo
semelhante às teorias do discurso, denota não exatamente a ideia de um simples “contexto”, um elemento
pressuposto como facilitador do acontecimento da parole, mas algo que naturalmente explicita o seu caráter
relacional mantido com o próprio sistema da língua; caráter que, nessas circunstâncias, permite a língua
significar. Quanto ao uso do termo “contexto”, cumpre, pois, destacar — conforme nos esclarece Figueroa
(1994, cf., p.151) — que se trata, ainda, de um construto teórico descritivo, sem explicitação da
epistemologia no qual é baseado. Em vista dessas questões, optamos por empregar nessa passagem do
presente estudo a expressão “exterioridade constitutiva”. 15
Cumpre notar que, como todo estudioso, Saussure (2006 [1914]) teve que fazer um recorte, isto é,
teve que delimitar seu objeto de estudo, a língua, face a heterogeneidade da linguagem.
o aspecto social da língua é estudado pela observação de qualquer indivíduo, mas o
aspecto individual somente pela observação da língua em seu contexto social. A
ciência da parole nunca se desenvolveu, mas a abordagem da ciência da langue
tem tido muito sucesso desde a última metade do século XX.
Com efeito, não se deve interpretar dessa citação que ali exista alguma objeção de Labov
quanto ao modo com que Saussure engenhou uma teoria para o estudo da língua. Ao contrário, a
citação em tela, de alguma maneira, torna evidente um dos flancos deixado isolado no âmbito dos
estudos linguísticos: o aspecto social da língua, aspecto que, efetivamente, caberia ser validado
como parte das análises e das descrições linguísticas. Aqui, aproveitando essas observações feitas a
partir da referida citação, abrimos espaço para, brevemente, trazer uma explicação ao leitor acerca
da questão exposta por nós no título que principia este trabalho. Dessa forma, reiterando nosso
questionamento inicial, tem-se o seguinte: a sociolinguística laboviana significa (ou não) a
consolidação de uma nova perspectiva de fazer linguística? Em outras palavras, ela, nos termos de
Kuhn (2009), corresponde a um estágio de “normal science” ou de “revolutionary science” para a
pesquisa linguística padrão?
A princípio, no que tange a esse questionamento, esclaremos ao leitor — como em Figueroa
(1994) — que a pesquisa sociolinguista é, de fato, “[...] um discurso continuísta da chamada
linguística padrão16 [...]”17. Tal discurso, com efeito, coloca em xeque algumas das “[...] premissas
científicas normais acerca do objeto de investigação da linguística padrão, os valores centrais dessa
linguística em relação aos quais a sociolinguística é normalmente colocada na periferia”18.
Do prisma figueroano, então, a pesquisa sociolinguista, como ponto de partida, empreende
uma leitura crítica de proposições teóricas formuladas por Saussure (2006) e por Chomsky (1972)
acerca do que concebem por língua[gem] — leitura que se processa à luz de uma metateoria19, de
sorte a reivindicar uma teoria empírica da língua a qual consiga integrar em seu escopo fatores de
16 Em Figueroa (1994), a designação “received linguistics” [“linguística padrão”] apresenta estatuto
de destaque. Quanto a isso, diríamos que se trata de uma forma singular encontrada por essa sociolinguista
para reafirmar grande parte daquilo que, de fato, constitui a empreitada laboviana: uma revisão de
proposições inicialmente formuladas pela chamada linguística standard (padrão). 17
“[...] an ongoing discourse with received linguistics [...]” (FIGUEROA, 1994, p.10). 18
“[...] normal science assumptions about the object of linguistic enquiry, the core values of
linguistics, in relacion to which sociolinguistics is usually positioned on the periphery” (FIGUEROA, 1994,
p.10). 19
Compreendemos por metateoria todo gesto de discussão intrateórica por meio do qual
pesquisadores se põem a re-analisar postulados e premissas teóricos recebidos a priori por uma comunidade
científica como sendo um “modelo padrão de cientificidade”. Sendo assim, essa forma de discussão, semelhante à que é produzida pela teoria do conhecimento, a epistemologia, procura se questionar acerca de
pontos teóricos subsumidos em análises e descrições construídas para validar determinado objeto de estudo
fudante de um campo científico e, ainda, acerca do método científico — sua validade (ou não) ante ao que
foi engendrado — ali empregado.
caráter social20. Ademais, esse tipo de leitura procura localizar pontos incoerentes e, também,
negligenciados em uma teoria científica já aceita por grande parte dos estudiosos, em particular
aqui, os de linguagem.
Nesse sentido, a sociolinguística laboviana convoca a linguística padrão a re-pensar o modo
de investigação ali proposto para analisar e descrever o objeto dos estudos linguísticos, a língua. Em
se tratando de atuais formas de investigação ocupadas em perscrutar fatos do objeto língua, Labov
inclusive se questiona se seria preciso construir uma nova abordagem linguística para dali fazer
trabalhar aquilo que Saussure (2006) pouco explorou em o CLG, no caso, os aspectos sociais da
língua são recorrentes em estruturas linguísticas, permitindo, nessa circunstância, algum tipo de
sistematização de fatos da parole21. Acerca disso, Labov (2008, p.216-217) assevera ser
[...] relevante, portanto, indagar por que deveria haver a necessidade de uma nova
abordagem da linguística com uma base social mais ampla. Parece bastante natural
que os dados básicos para qualquer forma linguística geral seja a língua tal qual
como usada por falantes nativos comunicando-se uns com os outros na vida diária.
Perante o posicionamento anterior defendido por Labov, nota-se que apenas caberia à
linguística propriamente dita (a linguística padrão) um alargar da visão de língua por ela perpetuada
durante a primeira metade do século XX e parte de sua segunda metade (até 1960, quando,
finalmente, os estudos labovianos começam a ser difundidos), procurando, em decorrência disso, re-
analisar e validar elementos constitutivos da natureza de seu objeto de investigação. Quanto a isso,
Labov (2008, p.298-299) declara não acreditar na necessidade de
[...] uma nova “teoria da linguagem”; em vez disso, precisamos de um novo modo
de fazer linguística que produza soluções decisivas. Ao alargar nossa visão de
língua, encontramos a possibilidade de estarmos certos: ao encontrar respostas que
são sustentadas por um número ilimitado de mediações reproduzíveis, em que o
viés inevitável do observador é cancelado pela convergência de diversas
abordagens.
Dessa forma, há que se notar na sociolinguística laboviana uma “nova” possibilidade de
descrever o fenômeno linguístico o mais próximo possível daquilo que, realisticamente, ele é: uma
totalidade que não só é constituída por aspectos de um sistema gerenciador de usos das formas de
20 No que toca ao caráter social que a sociolinguística laboviana reivindica à linguística padrão,
Figueroa (1994) sinaliza que algo ali precisaria ser mais bem definido, por exemplo, o próprio conceito de
sociolinguística — conceito que, de forma muito redutora, tenta refletir aquilo que julga ser a própria
linguística: um estudo da língua na relação com a sociedade. 21
Acerca disso, Figueroa (1994), insistentemente, nos diz que faltou algum tipo de esclarecimento
teórico àquilo que os trabalhos labovianos sentenciam como sendo o cerne da pesquisa linguística, no caso, o
estudo da “relação entre língua e sociedade”. Que relação é essa? Qual a sua natureza? — são alguns dos
questionamentos da referida autora para esse flanco ainda aberto em Labov. Tal esclarecimento teórico
(ausente em Labov), então, serviria, em particular, para explicar fatos do comportamento linguístico em
termos sociais.
uma língua, mas também por aspectos sociais imiscuídos a esse processo. Quanto a isso, nossa
interpretação é a de que, sem dúvida, a pesquisa de Labov oferece à linguística saussuriana muitas
respostas — ainda que incipientes — para problematizar questões que garantam,
concomitantemente, a articulação de fatos da ordem da langue e da parole em descrições
linguísticas.
Na sequência, sem perder de vista toda essa gama de observações ora (re)construídas em
torno do tópico “sociolinguística laboviana”, trazemos uma primeira discussão intrateórica focada
na própria noção de “sociolinguística”. Para isso, gostaríamos que o leitor, ao realizar outros gestos
de leitura, percebesse que o termo sociolinguística, de modo geral, corresponde a uma espécie de
“expressão linguística”, a princípio compartilhada por diferentes linguistas que dali delimitam
pontos teóricos de “igual” interesse assumidos por todos. Ao que imediatamente nos convém
ressaltar, isso, porém, não é suficiente para que se produza uma exata delimitação de questões que
supostamente sejam determinantes no erigir de um novo “campo” de estudos para a ciência da
linguagem, no caso, a sociolinguística (cf. FIGUEROA, 1994, p.179).
A seguir, vejamos o que nos reserva essa discussão.
Notas iniciais acerca do termo “sociolinguística”
Antes de nada mais, julgamos necessário explicitar ao leitor o real motivo de, aqui, se
apresentarem algumas notas esclarecedoras em torno do termo “sociolinguística”. Ora, por estarmos
comprometidos em re-afirmar aquilo que, efetivamente, constitui a sociolinguística laboviana —
uma prática de ciência que, na óptica de Figueroa (1994), mostra-se como disposta a fazer,
metateoricamente, uma revisão de aspectos teórico-metodológicos pouco explorados pela
linguística padrão —, cabe a nós, minimamente, realizar um exercício que circunstancie isso, com
vistas a evitar algum gesto simplista nosso, afoitos em tentar “precisar” o amplo escopo das
investigações sociolinguísticas.
Em sendo assim, como em Figueroa (1994, p.2), é necessário que retomemos certos fatos
gerais da história das ideias sociolinguísticas, dado que, nas palavras da autora,
a história da sociolinguística obviamente não começa com a primeira pessoa que usou o
termo, nem com o primeiro uso institucional do termo; nem o campo é definido por
qualquer pessoa ou ponto de vista. De fato, o que se define por sociolinguística permanece
um problema. Em Hymes (1974), por exemplo, ‘o termo sociolinguística significa muitas
coisas e muitas pessoas, e, naturalmente, ninguém possui privilégio com sua
definição’(tradução nossa) 22.
22 “The history of sociolinguistics obviously does not start with the first person who used the term,
nor the first institutional use of the term; nor is the field defined by any one person or point of view. But
Com efeito, não se mostra viável precisar um mesmo escopo em causa para o tratamento do
termo sociolinguística, uma vez que estão em jogo ênfases e usos bastante diferentes na forma com
que é concebido o fenômeno linguagem por (socio)linguistas e por pesquisadores. Todavia, isso não
nos impede que, aqui, realizemos uma breve revisão do termo, procurando, por conseguinte,
destacar, em meio às diferentes definições apresentadas, possíveis pontos de semelhança ali
funcionando — os quais nos permitam notar alguma instância metateórica entre eles e, em
decorrência, conjeturar algum gesto particular de um ou de outro estudioso atento em delimitar
particularidades do escopo da sociolinguística. Quanto a isso, é oportuno lembrar que há grande
dificuldade em precisar aquilo que, nas caracterizações formuladas para o termo sociolinguística,
aponta para elementos de um imajado “axioma teórico”23, já que pouco se sabe da real causa
determinante da existência de semelhanças certamente desenvolvidas para a abordagem do objeto
língua em uso (FIGUEROA, 1994).
Em vista do que o parágrafo anterior sentencia, arrolamos, abaixo, algumas das definições
propostas para o termo sociolinguística. Nesse caso, optamos, inicialmente, por reiterar oito
definições que Figueroa (1994, p.2) também destaca em sua obra “Sociolinguistic Metatheory”. Por
sociolinguística, então, renomados linguistas compreendem que seja:
(1) [...] o estudo das características da variação linguística [...] e das características
linguísticas de falantes quando estão em situação constante de interação [...] dentro
de uma comunidade de fala 24 (tradução nossa);
(2) [...] um novo esforço para lidar mais realisticamente e compreensivamente com
fatos de linguagem. Um desses fatos é que a linguagem é parte da vida social 25
(tradução nossa);
(3) uma tentativa de afirmação coerente acerca da relação entre o uso da linguagem
e os padrões sociais ou estruturas de vários tipos26 (tradução nossa);
(4) um estudo com [...] ênfase na fala, nos atos de fala em todas as dimensões
sociais 27 (tradução nossa);
what does define sociolinguistics remains a problem. In Hymes' (1974a, p.195) words: ‘The term
sociolinguistics means many things to many people, and of course no one has a patent on its definition’”
(FIGUEROA, 1994, p.2). 23
No que toca a essa questão, gostaríamos de dizer que a literatura especializada relega sua
existência, dado que, por uma série de razões, não considera a sociolinguística como uma teoria, mas como
um método de análise do objeto língua. De modo diferente, nessa parte de nosso texto, o emprego do termo
axioma institui ali alguma possibilidade de, ao comparar definições formuladas por diferentes linguistas,
espreitarmos, sob um prisma metateórico, um desejável núcleo comum que as esteja promovendo. 24“
Sociolinguistics is ‘the study of the characteristics of language varieties, the characteristics of their
functions, and the characteristics of their speakers as these three constantly interact, change and change one another
within a speech community’” (FISHMAN, 1974, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 25 “
Sociolinguistics ‘should be regarded as a new effort to deal more realistically and
comprehensively with the facts of language. One of these basic facts is that language is part of social life’”
(NEUBERT, 1976, apud FIGUEROA, p.2). 26
“Sociolinguistics ‘attempts to make a coherent statement about the relationship between language
use and social patterns or structures of various kinds’” (ROMAINE, 1982, apud FIGUEROA, 1994, p.2).
(5) o estudo das [...] realizações da variedade linguística de significados
socioculturais [...] e do o curso das interações sociais cotidianas que são relativas
[...] a culturas populares, sociedades, grupos sociais, comunidades de fala,
linguagens, dialetos, variedades e estilos 28 (tradução nossa);
(6) [...] aquela parte da linguística que é interessada com a linguagem como
fenômeno social e cultural 29 (tradução nossa);
(7) [...] a interação entre o fato de que a linguagem varia e o fato de que a variação
é usada para definir a situação social [...]30 (tradução nossa);
(8) [...] o estudo da linguagem em relação com a sociedade 31 (tradução nossa).
Da leitura dessas oito definições em tela, formulamos duas questões: 1ª) o que dali poderia
ser imediatamente destacado como inicial “constructo teórico” comum a todas elas?; 2ª) essas
definições e/ou caracterizações para o termo “sociolinguística” contam com uma proposta de
desenvolvimento de uma teoria ou são relativas a um método específico patenteado por uma “nova”
abordagem fomentada para tratar de realidades de língua[gem]?
Ora, não obstante o pluralismo de acepções acima aduzidas para o que “seja” a tarefa da
sociolinguística, um aspecto comum a todas elas pode, minimamente, ser aqui destacado: quando
em uso, a língua engendra discursos; estes, em suas particularidades, revelam — além de
elementos relativos à natureza sociocultural da linguagem — fatos que somente permitem ser
explicados em função de fatores tais como variação e diversidade linguísticas. No que então
concerne a esse aspecto, eis aí uma confortável resposta para a primeira de nossas questões
formuladas: o discurso (expressão falada) representa, sim, um constructo teórico nodal nas
lucubrações sociolinguísticas.
Porém, ante ao que as definições arroladas nos expõem, é preciso sublinhar que há uma
gama de tópicos e preocupações particulares para o que, teoricamente, busca-se compreender por
sociolinguística (cf., FIGUEROA, 1994). Assim sendo, paradoxalmente, por que admitirmos
também a inexistência de uma não exata comunicabilidade de escopo entre tais definições? Na
verdade, até diríamos que esse outro questionamento nosso coloca em evidência o argumento
27 “Sociolinguistics places ‘stress on parole, on the speech act in all its social dimensions’"
(GIGLIOLI, 1972, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 28
“Sociolinguistics ‘studies the varied linguistic realizations of socio-cultural meanings...the
currency of everyday social interactions which are nevertheless relative to particular cultures, societies,
social groups, speech communities, languages, dialects, varieties, styles" (PRIDE, 1970, apud FIGUEROA,
1994, p.2). 29
“Sociolinguistics ‘is that part of linguistics which is concerned with language as a social and
cultural phenomenon" (TRUDIGILL, 1974, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 30
“Sociolinguistics is the interplay between the fact that language varies and the fact that variation is
used to define the social situation, defining the speaker in terms of ‘what her group loyalties are, how she
perceives her relationship to her hearer, and what sort of speech event she considers herself to be engaged
in’” (FALSOLD, 1984, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 31
“Sociolinguistics is ‘the study of language in relation to society’ (HUDSON, 1980, apud
FIGUEROA, 1994, p.2).
defendido pelos próprios sociolinguistas de que a proposta sociolinguística não se realiza
decisivamente como uma teoria linguística. Acerca desse argumento, sociolinguistas e estudiosos
(em geral) defendem que a sociolinguística, em particular aqui a laboviana, não chega a consolidar
um campo teórico novo para o exercício da ciência da linguagem.
Isso que o parágrafo precedente acaba de esclarecer se mostra tão real em estudos como o de
Figueroa (1994), que não faz sentido deixar de reparar ali a validade do pensamento da autora,
passando, em outra circunstância, a negar que o trabalho de Labov — o qual lida, sim, com variadas
questões de linguística geral (incluindo questões de fonologia, morfologia, sintaxe e, ainda, de
semântica) — em nada se identifica com um fazer científico meta-teórico.
No que tange às variadas questões de sociolinguística, vale, pois, destacar que todas elas,
efetivamente, se encontram refletidas na relação mediada com grande parte do saber que a ciência
saussuriana permitiu produzir para seu objeto de investigação, a língua.
Mais algumas notas acerca do termo “sociolinguística”
Decorrente da anterior exposição e de nossa análise de alguns pontos caracterizadores do
termo sociolinguística, acompanhemos agora outra breve reflexão pautada em mais três definições.
Nesse caso, em linhas gerais, apresentamos alguns aspectos centrais das definições formuladas pela
propalada matriz sociolinguística que se ancora em trabalhos de linguistas tais como: Dell Hymes
(1974), John Gumperz (1982) e William Labov (2008 [1974]). Na perspectiva desses estudiosos,
então, a sociolinguística
(9) [...] não é linguística, mas etnografia, não é linguagem, mas comunicação,
comunicação que possui um quadro de referência interior, em que o lugar da
linguagem na cultura e na sociedade pode ser avaliado32 (tradução nossa).
(10) existe enquanto uma necessidade de uma teoria [...] que representa a função da
comunicação e da variabilidade linguística na relação com os falantes, sem se
reportar a suposições funcionais não testáveis em consonância ou não com sistemas
de normas padrão33 (tradução nossa).
(11) [...] busca abordar as grandes questões da Linguística, como determinar a
estrutura da linguagem — suas formas e organizações subjacentes — e conhecer o
mecanismo e as causas da mudança linguística. Os estudos da linguagem usada no
32“It is not linguistics, but ethnography, not language, but communication, which must provide the
frame of reference within which the place of language in culture and society is to be assessed” (HYMES,
1974, apud FIGUEROA, 1994, p.31). 33
“There is a need for a sociolinguistic theory which accounts for the communicative function of
linguistic variability and for its relation to speakers goals without reference to untestable functionalist
assumptions about conformity or nonconformance to closed systems of norms. Since speaking is interacting,
such a theory must ultimately draw its basic postulates from what we know about interaction” (GUMPERZ,
1982, apud FIGUEROA, 1994, p.111).
dia-a-dia podem ser bastante úteis para alcançar esses objetivos (LABOV, 2007,
p.2).
Face à leitura dessas três outras definições de sociolinguística, sublinhamos — como faz
Figueroa (1994) — que, respectivamente, o ponto nodal das lucubrações sociolinguísticas parece
(con)centrar-se “no significado linguístico”, “na interação social dos falantes” e “na parole”34, o
uso (ou expressão) da linguagem. Em vista disso — apesar da existência de divergências na forma
de delimitar ali qual seja o escopo de investigação (comum) da sociolinguística idealizada pelos três
sociolinguistas aludidos —, notamos pelas definições em questão que, genericamente, há uma
preocupação em desenvolver uma teoria social para tratar de fatos da língua[gem]. Porém, é mister
que sublinhemos que essa teoria não compartilha dos mesmos fins propostos no bojo de suas
inquietações. Em Hymes (apud FIGUEROA, 1994), por exemplo, a noção de social procura
resgatar algo do significado cultural supostamente evidenciado em contextos de uso da linguagem
ordinária. Em Gumperz (apud Figueroa, ibidem), por sua vez, essa noção, que não permite ser
significada por um texto ou por uma instituição, procura abarcar aspectos de linguagem que sejam
negociados na interação construída entre falantes — aspectos que, por sinal, são bastante intuitivos.
Já em Labov (apud FIGUEROA, ibidem), diferentemente, a noção de social responde (algumas
vezes) ao que ele compreende por linguagem enquanto “fato social”, isto é, em linhas gerais, um
tipo de comportamento exterior aos fatos linguísticos (por exemplo, fatos ligados à classe social,
gênero e idade da espécie humana), mas que se impõe a todos os indivíduos pertencentes a uma
dada sociedade, exercendo ali restrições sobre eles; nessas condições, o fato social poderá ser/estar
refletido na competência linguística dos falantes.
Enfim, perante todos os posicionamentos arrolados nesta terceira seção de nosso trabalho,
temos somente uma observação a fazer. Esta diz respeito à importância que todas as definições de
sociolinguística aqui aventadas reconhecem para si. Ora, a proposta de desenvolvermos dois tópicos
com algumas notas esclarecedoras acerca de aspectos caracterizadores — sejam estes de natureza
teórica seja metodológica, conforme olhares de alguns estudiosos aqui citados — de uma proposta
de estudo da linguagem pautada na sua relação com questões sociais não pode ser vista pelo leitor
como um meio de demarcar fronteiras claras para diferentes abordagens sociolinguísticas. Ao
contrário, está presente ali nosso gesto em querer fixar duas posições: uma delas que tem em mente
a importância do termo sociolinguística quando identificado “como uma perspectiva e uma teoria da
34 No que toca à ênfase que os estudos de Labov (1972, apud FIGUEROA, 1994, cf., p.73) a priori
dão aos aspectos da parole — aspectos relativos à linguagem que as pessoas realmente executam —, cumpre
salientar que a tônica de suas lucubrações não se limita por excelência a isso. Há, ao contrário, um
movimento teórico que é singular a esse (socio)linguista. Tal movimento busca demonstrar certa relação
entre fatos de natureza social da linguagem (comuns, assistemáticos) e fatos de natureza linguística
(abstratos, sistemáticos), a fim de produzir alguma compreensão acerca do que o estudo do uso da linguagem
pode revelar sobre estruturas linguísticas.
linguagem” (FIGUEROA, 1994, p.183) e, outra que (com)partilha da ideia de que a empreitada
sociolinguística somente se fundou, porque sempre existiram abordagens diversas (em competição)
re-analisando os “mesmos” fatos linguísticos — nada ali consegue, pois, ser uniforme àquilo que as
movimentam: o caráter social constitutivo da língua.
No tópico seguinte, re(a)presentamos, semelhante à Figueroa (1994), uma síntese de ideias
centrais das teorias “sociolinguística” (particularmente, a laboviana) e “linguística”35.
Enfim, seria a sociolinguística laboviana uma síntese de abordagens standards?
Ante o questionamento em tela, é preciso, inicialmente, reconhecer fatos que se mostram
como caros na formulação de sua resposta, seja esta positiva seja negativa. Em sendo assim, urge
trazer em cena pelo menos um dos motivos que certamente conduziu Labov à elaboração de (suas)
questões (socio)linguísticas. Tal motivo, sem muitas delongas, relaciona-se à concordância desse
estudioso com a demanda de um novo método científico que as ciências em geral —
particularmente, a partir da segunda metade do século XIX — passaram a aderir como parte de suas
pesquisas, o empirismo. Esse método assimila bem muitas das questões doutrinadas pelo chamado
“realismo científico”, a saber, a possibilidade de se ter uma ciência bastante instrumentalizada e, em
decorrência, capacitada para descrever fielmente o real.
Desse prisma, faz todo sentido fixar a seguinte avaliação de Labov (2008, p.233), a qual nos
avisa de que “[...] os linguistas não podem continuar a produzir ao mesmo tempo dados e teoria”,
posto que, agindo assim, muitos deles, presos em (seus) ideais de ciência, estariam a produzir
explicações limitadas acerca da organização e do funcionamento do complexo fenômeno da
linguagem, o qual não só não carece ser explicado por motivações internas a priori tomadas como
objeto de discussão, mas também pelo que lhe é constitutivo: certos fatos ali indicadores de sua
realidade social.
Foi desse método, com efeito, que Labov partiu para problematizar aspectos de natureza
heterogênea inerentes à língua[gem]. Nesse caso, há que se ressaltar — conforme elucida Figueroa
(1994) — que, na visão de Labov, a possibilidade de se assumir uma linguística realista se justifica
face a um conjunto de fatores que, na relação mantida com o mundo cotidiano, em particular aqui,
com o modo como as pessoas vivem/falam, permitem refletir melhor sobre fatos linguísticos
35 Aqui, ressaltamos que, para o tópico que estamos por abrir, não se apregoa uma separação
estanque entre sociolinguística e linguística — ora, isso invalidaria questões que estamos apostando com este
trabalho. Nesse sentido, reiteramos o posicionamento de Labov (2008, p.216) o qual defende ser a
designação sociolinguística “[...] um uso um tanto enganador de um estranho termo redundante”;
“enganador”, porque faria supor que há uma sociolinguística com escopo diferente do da linguística e
“redundante”, porque implicaria a existência de uma linguística que fosse desligada de questões
concernentes ao caráter social inerente à linguagem (idem).
semelhantes àqueles que, efetivamente, são compartilhados por grupos humanos. É por isso, então,
que Labov assevera que o objeto da linguística deve ser “[...] ao fim e ao cabo, o instrumento usado
pela comunidade de fala [...]”36 (LABOV, 2008, p.220).
No entanto, para que esse objeto fosse assim (re)visto — à maneira laboviana — por
estudiosos de língua[gem], foi preciso que o próprio Labov (2008) promovesse uma discussão
intrateórica de premissas aceitas como padrão para a descrição de fatos linguísticos. Ora, desde a
fundação da linguística, em 1916 (exatamente com a publicação do CLG), até 1960, os estudos ali
frutificados tiveram como escopo a realização de descrições puramente objetivas das línguas,
descrições que ignoraram contingências relativas à indissociável relação língua[gem]-sujeito. Por
esse motivo, a língua, objeto de estudo da linguística, não era investigada face a uma possível
relação com a fala, com aquilo que lhe é exterior.
Em vista do que o parágrafo anterior formula, sublinhamos que Labov se interessou bastante
em investigar aquilo que ali estava encoberto: a heterogeneidade constitutiva do sistema linguístico.
Neste caso, para proceder às suas lucubrações, Labov, primeiramente, retomou premissas
defendidas pelas teses saussurianas e pelas teses chomskyanas, as quais, em suma, trazem
particulares análises e descrições, respectivamente, para o objeto língua enquanto “fato objetivo” e
enquanto “fato intuitivo”, uma faculdade inata aos falantes. No que tange a esse retorno, então, não
hesitamos em também asseverar que
Labov pode ser notado como a tentativa de algum tipo de síntese entre abordagens
diferentes dentro do estudo da estrutura da linguagem. Tal síntese pode ser vista
também como uma tentativa de relacionar parole com langue de forma mais
sintética, mostrando uma relação sistemática entre o fenômeno observável, a
parole, e o sistema abstrato, a langue37 (tradução nossa).
Perante o que a citação em tela pontua, consideramos, por conseguinte, que a sociolinguista
laboviana, identificada ali como sendo uma síntese de abordagens linguísticas, se constitui e institui
enquanto um ousado gesto de Labov, gesto que, em geral, é motivado pela possibilidade de se
produzir (e de se ter) uma versão melhorada de teorias desenvolvidas pela chamada linguística
padrão. Sua empreitada, nesse sentido, não chega a fundar um novo paradigma científico para a
prática da ciência linguística, conforme adiante destacaremos.
36 Aqui, gostaríamos de apenas ressaltar que a noção laboviana de “comunidade de fala” produz
alguma “certeza” de que dado comportamento linguístico esteja/seja sempre determinado pelo grupo que o
realiza. Acerca disso, reiteramos o crítico questionamento de Figueroa (1994, p.89), o qual nos faz notar os
seguintes pontos: “como sustentar que a língua se realiza na comunidade de fala, quando o comportamento
linguístico estudado é extraído dos indivíduos?” (Tradução nossa). Sob perspectiva figueroana, então, não há
como discordar que aspectos linguísticos da ordem individual foram extirpados dos estudos de Labov. 37
“Labov may be seen as attempting a synthesis between these rival factions in received linguistics.
It is a synthesis which is seen as building upon past accomplishments, making improvements where
necessary but not fundamentally challenging basic tenets” (FIGUEROA, 1994, p.74).
A fim de melhor explicitar posicionamentos dessa “síntese de abordagens linguísticas” que
Labov (pro)move para o erigir de sua perspectiva teórica, a sociolinguística, (re)formulamos, nos
dois subtópicos seguintes — respaldados em estudos de Figueroa (1994) —, algumas semelhanças e
divergências teóricas que as abordagens estruturalista (saussuriana), gerativista (chomskyanana) e
sociolinguista (laboviana) conservam entre si (ou não) no que constroem como orientação para
possíveis análises e descrições do objeto língua.
Na sequência, passemos a observar essas outras questões.
Considerações acerca de algumas premissas da linguística padrão e da teoria sociolinguística
labovina38
a. Algumas semelhanças e divergências entre as linguísticas de Saussure e de Labov
Todos os pontos abaixo destacados acerca do que aproxima e também do que distancia o
pensamento teórico de Labov do pensamento teórico de Saussure exemplificam aspectos
importantes do trabalho metateórico realizado por Figueroa (1994), que, comedidamente, se lançou
à tarefa de investigar questões cruciais de linguística padrão na relação com questões ali
reconhecidas como “periféricas”, neste caso, questões de (socio)linguística.
Em sendo assim, para que melhor percebamos as elucidações de Figueroa (1994), propomos
o seguinte quadro ilustrativo, o qual identifica algumas semelhanças e diferenças entre questões
concernentes às lucubrações saussurianas e labovianas tomadas sob algum tratamento teórico-
metodológico para fatos linguísticos.
Observemos, então, por meio do quadro a seguir, indicações disso:
38 O leitor, após a leitura desse título, poderá se questionar acerca da designação “teoria
sociolinguística”. Ora, tendo em vista outras de nossas discussões aqui arroladas, uma possível objeção sua
seria esta: a pesquisa sociolinguística identifica-se como um método de análise e de descrição de fatos
linguísticos, e não exatamente como uma teoria linguística. Não obstante questionamentos assim, optamos
por tomar emprestado parte do título que Figueroa (1994) também formula, em especial, quando aduz pontos
de semelhança e de divergência entre o que é pressuposto no âmbito de questões de linguística padrão e o
que Labov dali produziu para demonstrar posicionamentos relativos à sua perspectiva (socio)linguística.
Quadro n.1: Contrastando aspectos teóricos das teorias linguísticas de Labov e de Saussure
LABOV E SAUSSURE: semelhanças LABOV E SAUSSURE: Divergências
1. Labov e Saussure não estão interessados em
perscrutar questões de (variação) linguística que
não possam ser explicadas no/pelo sistema
linguístico.
2. Labov e Saussure rejeitam descrições ou
explicações de natureza
psicológica/individualista para o tratamento de
fatos de língua[gem]; ambos procuram localizar
a língua[gem] como um fato social.
3. Labov e Saussure afirmam que o objeto de
investigação da linguística é a langue, e não a
parole — a despeito de haver estudos
inadvertidos que afirmam ser a parole o objeto
de estudo da sociolinguística.
1. Para Labov, diferente do que apregoa Saussure,
o sistema linguístico não é homogêneo, mas
heterogêneo39. Na óptica laboviana, com efeito, a
comunidade de fala — isto é, as atitudes que os
falantes compartilham em relação à língua — é
aquilo que constitui, realisticamente, um dado
homogêneo.
2. Para Labov, o estudo científico da língua não
deve ignorar, como apregou Saussure, sua
heterogeneidade real. Ora, da perspectiva
laboviana, a parole não é caótica, nem menos
desmotivada40.
3. Para Labov, diferentemente de Saussure, as
pesquisas de língua[gem] são capazes de mostrar
a mudança linguística em curso.
No que tange aos aspectos que o quadro em tela exibe, nota-se dali que alguns dos
fundamentos da sociolinguística laboviana são, em sua maioria, semelhantes àqueles que Saussure
elaborou como orientação básica para suas análises estruturais de fatos linguísticos. Com efeito,
temos somente a dizer que a empreitada de Labov demonstra, tal qual ressalta Figueroa (1994), um
esmerado trabalho de revisão das premissas saussurianas como um novo modo de fazer linguística.
Tal qual procedemos nessas análises anteriores e fundamentos da sociolinguística laboviana
na relação que a aproxima (e, também a distancia) de particularidades da ciência de Saussure,
propomos, abaixo, outro quadro — também, respaldado na pesquisa metateórica de Figueroa (1994)
— que enfatiza movimentos teóricos de Labov perante premissas do programa de investigação
científica (abreviadamente, PIC)41 apresentado à linguística pelo estudioso N. Chomsky (1972).
b. Algumas semelhanças e divergências entre as linguísticas de Chomsky e de Labov
Inicialmente, pode parece estranha ao leitor a afirmação de que a sociolinguística laboviana
contém elementos em seu escopo que sejam familiares a um e/ou a outro elemento(s) do PIC
39 Saussure não defende a homogeneidade do sistema, mas da língua em si, tomada como construção
coletiva. E somente nesse sentido (de saber coletivo) que a língua é entendida como homogênea. 40
Quando, da perspectiva laboviana, apontamos que a fala não é caótica, não se deve entender dali
que, na perspectiva saussureana, ela o seja — de fato, na produção saussuriana não há afirmação textual
disso. 41
Expressão formulada por Lakatos (1978), ao tratar de fatos relativos à história das ciências em
geral.
chomskyano. Todavia, isso é possível de ser percebido, sobremaneira, se não nos furtarmos daquilo
que dali precisa ser compreendido: a linguística, em sua forma singular de (se) fazer ciência, é,
verdadeiramente, um tipo de orientação teórica para a investigação de muitos fenômenos de
linguagem que, em si mesmos, nos permitem determinar princípios gerais (princípios de natureza
formal) reguladores de estruturas das línguas (cf., LABOV, 2008, p.217).
Quanto a isso, notemos o que o quadro seguinte nos esclarece:
Quadro n.2: Contrastando aspectos teóricos das teorias linguísticas de Labov e de Chomsky
LABOV E CHOMSKY: semelhanças LABOV E CHOMSKY: divergências
1. Labov e Chomsky são seguidores de
preceitos da doutrina científica nomeada de
“realismo científico” (a única diferença está
no tipo de realismo adotado: o de Labov é o
mundano, já o de Chomsky é o psicológico).
2. Labov e Chomsky estão empenhados no
estudo geral da estrutura da linguagem —
daí, também, ser possível asseverar que os
estudos labovianos visam a compreender
questões relativas à criação de fatos do
sistema linguístico pela espécie humana (a
única diferença está no fato de que Labov
estuda a estrutura linguística como
incorporada à estrutura social e Chomsky à
faculdade mental da linguagem).
1. Em Labov, diferente de Chomsky, que considera
a linguagem uma propriedade mental, o indivíduo
não é a fonte de dados linguísticos, mas a
comunidade em geral.
2. Em Labov, também diferente de Chomsky, a
intuição não é um meio aceitável para se tratar da
realidade de fatos linguísticos, já que ela é interna e,
nesse sentido, possui caráter subjetivo (não pode
ser, com efeito, replicada).
3. A noção de gramática em Labov não corresponde
a uma construção idealizada a partir do que
conjetura um linguista, mas àquilo que, de fato,
revela fatos linguísticos particulares de uma
comunidade de fala, sendo, para todo caso,
observáveis.
4. O método empregado por Labov para analisar o
objeto língua é o indutivo; são os dados, na
perspectiva laboviana, o elemento que induz uma
teoria. Em Chomsky, ao contrário, devido ao uso
que faz do método dedutivo, é a teoria que conduz
os dados.
Em vista do que os dois quadros construídos nos expõem, cumpre apenas ressaltar, uma vez
mais, que há ali fortes indícios de que Labov realizou uma revisão de pressupostos teóricos da
linguística constituída/padrão, neste caso, referimo-nos aos pressupostos teóricos das linguísticas
saussuriana e chomskyana, respectivamente. Perante então a esse fazer metateórico de Labov,
diríamos que é próprio de toda teoria científica refutar uma e/ou outra premissa(s) já (re)conhecidas
por estudiosos. Porém, somos prudentes em lembrar que existem pressupostos basilares em
qualquer teoria que serão sempre irrefutáveis. Exemplo disso pode ser corroborado naquilo que
Labov tentou fazer das teorias de Saussure e de Chomsky; mesmo que ele tenha se desligado de
pontos singulares dos dois linguistas em questão, muitos argumentos ali construídos foram
retomados em sua (socio)linguística.
A seguir, exibimos alguns posicionamentos do físico e filósofo estadunidense Thomas Kuhn
(2009) acerca do que compreende por “atividade científica”; em particular, posicionamentos que ele
abordou em sua conhecida obra A estrutura das revoluções científicas (2009). Ante variadas
questões que Kuhn desenvolve nessa obra, com efeito, destacamos dali duas, a saber, a de “normal
science” e a de “revolutionary science” — noções que nos permitem compreender o papel dos
estudos do (socio)linguista William Labov para a ciência linguística.
Abaixo, antes de encerrar este trabalho, observemos alguns desses posicionamentos de Kuhn
(2009).
A sociolinguística laboviana: “a normal science” ou “a revolutionary science”?
Do que acabamos de expor resulta que, se Labov, de fato, retoma questões de linguística
geral para estruturar sua perspectiva sociolinguística, há em atitude assim provas de que ele é
tributário de premissas científicas padrões — as premissas científicas clássicas elaboradas por
Saussure e Chomsky.
No que então toca à contribuição de Labov à ciência linguística, sobremaneira, à sua
proposta de estudo de estruturas linguísticas em suas relações com aspectos de natureza social, é
possível compreender melhor essa constatação a partir de duas observações desenvolvidas por Kuhn
(2009). Neste caso, trata-se da noção de “paradigma científico” 42 e da distinção que promove entre
“ciência normal” e “ciência revolucionária”. Essas observações tanto nos permitem aqui um pontuar
de aspectos relativos ao lugar teórico de que Labov fala, quanto a confirmação de algum fim
alcançado por seu empreendimento sociolinguístico.
Em sendo assim, primeiramente, é necessário sublinhar que o esforço de Kuhn (2009) em
problematizar a noção de “paradigma científico” se justifica perante a própria tese defendida por ele
em A estrutura das revoluções científicas. Em linhas gerais, sua tese assevera haver uma nova
imagem de ciência que precisa ser (re)conhecida hoje. Ora, sob a óptica kuhniana, a própria noção
de ciência — que não se (re)faz a partir de uma suposta linearidade de conhecimentos “já sabidos”,
mas a partir de conflitos que se dão entre teorias padrões — compreende um todo de relações
sistemáticas regido por regras construídas por cientistas, com o intuito de fundamentar campos
42 Em Kuhn (2009), encontramos diferentes definições dessa noção, podendo, por exemplo, significar
uma espécie de “matriz” para se fazer/praticar ciência; uma “concepção de mundo” que reúne teorias,
instrumentos, conceitos e métodos de investigação para o perscrutar de fenômenos no/do mundo; um
“conjunto de realizações científicas concretas” (universalmente (re)conhecidas) que, em uma dada
conjuntura histórica, fornecem modelos para o trabalho de estudiosos/cientistas. No que tange a todas essas
tradicionais significações de paradigmas, vale lembrar que todas atendem àquilo que se compreende por
“ciência normal”, isto é, nos termos do próprio Kuhn (idem, p.29), uma “[...] pesquisa firmemente baseada
em uma ou mais realizações científicas passadas”.
científicos, dotando-os, consequentemente, de certa coerência. Essas regras, com efeito, os
paradigmas, equivalem, genericamente, a algo (um instrumento) que, durante algum tempo, é
(com)partilhado por toda uma comunidade científica. Como então os conhecimentos e valores
imputados a certo fazer científico tendem sempre a ser contingenciais, isso certamente levará o
irromper de um novo paradigma para explicação de fenômenos antes ali desconhecidos.
Para o caso da linguística, em especial, esse argumento que o parágrafo precedente coloca
em xeque não se configura em sua exatidão. Em nosso campo de estudo, diferentes paradigmas são,
ao mesmo tempo, utilizados por linguistas, os quais adotam formas completamente variadas de se
compreender o multifacetado fenômeno da linguagem — no âmbito dos estudos linguísticos, não
temos, pois, um paradigma vigente comandando todos os trabalhos com foco único: o objeto língua.
Nesse sentido, reconhecendo agora a segunda das observações a que nos propusemos a
fazer, a distinção que Kuhn (2009) pontua para as noções de “ciência normal” e de “ciência
revolucionária”, podemos, inclusive, responder à questão suscitada no título deste trabalho: afinal,
qual desses dois tipos de ciência pode servir para caracterizar a sociolinguística laboviana?Antes de
uma possível resposta para esta pergunta, reconhecemos que, diante dos propósitos da ciência de
Saussure e da perspectiva sociolinguística de Labov, a possibilidade de que uma revolução
científica tenha advindo dali é inválida. Dessa forma, somos ainda legionários de muitos
ensinamentos saussurianos, já que as regras que governam a prática das pesquisas linguísticas atuais
continuam quase que exclusivamente as mesmas: (con)centradas em fatos que se ligam ao objeto
língua.
No que então toca à questão anterior, concordamos em dizer, conforme reconhece Figueroa
(1994), que a sociolinguística laboviana, por retomar muitas questões da linguística de Saussure
aqui pontuadas, identifica-se com as exigências do que Kuhn (2009) designou de “ciência normal”;
exigências tais como a necessidade de se ter entidades teóricas ordenadas, replicáveis e
generalizáveis para fazer funcionar uma prática científica foram (per)seguidas por Labov. Sua
sociolinguística, por conseguinte, representa, se vista sob uma perspectiva metateórica, um trabalho
atento àquilo que precisa ser verdadeiramente investigado: fatos do objeto comum (a “parole”) na
relação com fatos sistematicamente verificáveis pelo objeto abstrato (a “langue”).
Arrematando alguns pontos
O objetivo central perfilhado neste estudo foi discutir questões de natureza metateórica que
nos permitissem asseverar que a sociolinguística laboviana corresponde a um estágio de “ciência
normal”, “a normal science”, nos termos de Kuhn (2009). Para chegarmos a essa conclusão,
apoiamo-nos em posicionamentos desenvolvidos por Figueroa (1994), em especial, aqueles que
enfatizam bastante o fato de o discurso de Labov ser um continuum de questões de linguística geral,
de sorte que, aqui, fosse possível refletir sobre o que efetivamente representa uma proposta de
estudo que reivindica para si uma metodologia e um escopo definidos a partir de fatos da “parole”.
Disso, com efeito, pudemos notar que a perspectiva sociolinguística de vertente laboviana
parece se justificar ante a necessária relação que, metateoricamente, se estabelece com fatos de
linguística padrão, a saber, fatos de fonologia, de morfologia, de sintaxe e de semântica, como bem
ressalta o próprio Labov (2008). Tal perspectiva, portanto, caracteriza-se, conforme Figueroa
(1994), como uma “metateoria”, que, se vista do prisma de questões preconizadas por Saussure
(2006), procura realçar (como unidade de análise) aspectos relativos ao objeto língua.
Referências
CHOMSKY, Noam. Linguística Cartesiana. Petrópolis: Vozes, 1972.
FIGUEROA, Esther. Sociolinguistic metatheory. Oxford: Pergamon, 1994.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.
______. Sociolinguística: uma entrevista com William Labov. Revista Virtual de Estudos da
Linguagem - ReVEL. Vol. 5, n. 9, agosto de 2007. Tradução de Gabriel de Ávila Othero.
LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. A crítica e o desenvolvimento do onhecimento. São
Paulo: Editora Cultrix, 1979.
PONCHIROLLI Mardeli; PONCHIROLLI, Osmar. Métodos para a produção do conhecimento.
São Paulo: Atlas, 2012.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
AÇÕES PEDAGÓGICAS DO CURSO TÉCNICO A DISTÂNCIA DA REDE e -Tec BRASIL
CEFET-MG E AS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE
Aline Moraes LOPES43
Márcia Gorett Ribeiro GROSSI44
Resumo: O objetivo dessa pesquisa foi verificar se as ações pedagógicas do curso técnico de
eletrônica a distância da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG utilizam as concepções de Paulo Freire
no que se refere à dialogicidade, autonomia e contextualização do saber como ato de cidadania no
processo de ensino. Foi realizado um estudo de caso, cujos resultados revelam que há ações
pedagógicas pautadas nas concepções de Paulo Freire. Contudo, esse resultado apresenta ressalvas,
pois inúmeras possibilidades pedagógicas poderiam ser otimizadas pelo uso pleno das ferramentas
de interatividade e mídias integradas ao Ambiente virtual de aprendizagem.
Palavras-chave: Educação a distância. Rede e-Tec Brasil. Ações pedagógicas. Paulo Freire
Abstract: The objective of this research was to verify if the pedagogical practices of the electronic
technical distance course of e-Tec Brazil CEFET-MG network make use of the conceptions of Paulo
Freire, regarding the dialogical, autonomy and contextualization of knowledge as an act of
citizenship in the teaching process. A case study was conducted and the results revealed that there
are pedagogical actions based on the conceptions of Paulo Freire. However, this result presents
exceptions, because numerous pedagogical possibilities could be optimized by full use of the tools
of interactivity and VTLE-integrated media.
Keywords: Distance education. e-Tec Brasil network. Pedagogical actions. Paulo Freire.
Introdução
As últimas décadas do século XX revelaram períodos de constantes mudanças e evoluções
nos cenários econômicos, políticos, culturais, tecnológicos, assim como na área educacional. O
avanço científico-tecnológico assinalou reconfigurações no modos operandi social, anunciando e
43 Mestre em Educação Tecnológica. Membro do Grupo de pesquisa AVACEFETMG do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. E-
mail: [email protected] 44
Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Doutora em Ciência da Informação. Líder do Grupo
de pesquisa AVACEFETMG. Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected]
efetivando mudanças, visto que “uma revolução tecnológica das últimas décadas da informação
começa a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado” (CASTELLS, 1999, p.39).
Assim, as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) fortemente presentes
na sociedade informacional possibilitam novas dinâmicas sociais que também influenciam o
contexto educacional, possibilitando que educadores (re)pensem suas práticas pedagógicas e
otimizem os processos de ensino e aprendizagem, por meio das tecnologias digitais, principalmente
a internet.
Então, pode se afirmar que a introdução das TDICs na educação, em especial na Educação a
Distância (EaD) pode ser vista como uma promissora oportunidade de se oferecer um ensino de
qualidade, já que esta modalidade tem como preceitos a interatividade, a autonomia e a
aprendizagem colaborativa. Portanto, a EaD tem-se afirmado cada vez mais a partir do uso das
TDICs, configurando novas dinâmicas para o processo de ensino e aprendizagem.
Dessa forma, essa modalidade de ensino representa uma alternativa que permite oportunizar
diferentes experiências educacionais e práticas educativas progressistas, em busca de se devolver
propostas que visem à emancipação e transformação social que também podem ser efetuadas por
meio da educação profissional. Dentre essas possibilidades, pode-se citar no cenário educacional
brasileiro a Escola Técnica Aberta do Brasil que se apresentou como um programa de educação a
distância lançado pelo Ministério da Educação do Brasil em 2007 (Decreto n 6.301 de 12 de
dezembro de 2007), com a finalidade de "ampliar a oferta e democratizar o acesso a cursos técnicos
de nível médio, públicos e gratuitos no País" (Brasil, 2007 online), modificado pelo Decreto n
7.589 de 26 de outubro de 2011, passando a ser nomeado como Rede e-Tec Brasil.
A oferta de programas de EaD, como a Rede e-Tec Brasil, representa uma profícua alteração
na maneira de pensar e praticar a educação, requerendo mudança de paradigmas dos profissionais
envolvidos nesta modalidade de ensino e capacitação apropriada, com o intuito de usar
adequadamente as TDICs disponibilizadas e necessárias para a concretização das expectativas em
melhorar todo o processo de aprendizagem dos alunos, bem como a autoaprendizagem por parte dos
próprios profissionais da EaD.
A proposta de uma educação problematizadora converge para em uma pedagogia engajada
nos processos de emancipação social e, como tal, tem como preceito intervenções e modificações
do status quo vigente. Uma educação humanista-libertadora, na perspectiva do educador Paulo
Freire, necessita ter como ponto de partida a concepção do diálogo como um processo dialético
problematizador.
De acordo com o pensamento freiriano, ser autônomo é a capacidade de libertar o ser
humano do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades,
sendo um processo de humanização que se constrói historicamente através de decisões, ou seja, a
autonomia é a experiência da liberdade, impulsionada pelo pensar crítico- problematizador que
permite consequentemente a transformação social, onde o diálogo impulsiona o pensar crítico
problematizador em relação à condição e ao universo existencial do oprimido.
Nesse contexto o objetivo dessa pesquisa foi verificar se as ações pedagógicas do curso
técnico de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais (Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG) utilizam as concepções de Paulo Freire, no que se refere
à dialogicidade, autonomia e contextualização do saber (apropriação da realidade) como ato de
cidadania no processo de ensino a partir da perspectiva dos professores e tutores do curso.
Para alcançar esse objetivo foi realizada uma pesquisa descritiva e exploratória, cujos
procedimentos técnicos foram o estudo de caso e a pesquisa bibliográfica.
Do ponto de vista teórico - Concepções de Paulo Freire
Segundo Almeida (2009), no contexto social brasileiro, pode-se dizer que Paulo Freire foi
um dos educadores mais sensíveis aos problemas sociais e seu espírito criativo lhe propiciou ações
educativas de grande valia à educação. Dentre estas, destaca-se o Método de Alfabetização de
Adultos, desenvolvendo um novo conceito de leitura e escrita e, ao mesmo tempo, proporcionando
práticas de politização.
De acordo com Freire, A. (2006), são estabelecidas considerações sobre o Método de
alfabetização Paulo Freire: O “Método Paulo Freire, foi por ele entendido não como passos a seguir,
diretrizes a perseguir, caminhos a trilhar. Ao contrário, a natureza mesma do ‘Método’ é em si uma
compreensão de como ensinar-aprender” (FREIRE, A. 2006, p.332).
Para Paulo Freire, descrito em Torres (2003), o método tinha como pressuposto de
aprendizagem que a força motivadora deveria decorrer da resolução de uma situação problema,
sendo que a assimilação inicialmente ocorre a partir do campo semântico vocabular do aluno,
também denominado como “temas geradores”, por meio do método de grupos de discussão no qual
incidiria a efetuação da comunicação entre indivíduos ativamente envolvidos no processo,
intermediados pelo contexto no qual estavam inseridos, com vistas a um posicionamento crítico
diante da realidade e à transformação social. A preocupação de Paulo Freire centrava-se na
educação das classes populares, na qual visava a atingir um nível de consciência da realidade em
que vivem na busca da transformação social. Sua pedagogia concebe a educação na qual o
educando, apropriando-se do conhecimento, passa a ser sujeito de sua própria história, ele é um ser
histórico, autêntico, e capaz de criticar, isto é, de optar e intervir socialmente.
A “dialogação” é fundamental na pedagogia de Paulo Freire, é o traço essencial para o
desenvolvimento da consciência crítica, também denominada como transitividade crítica, e tem
papel de destaque no processo educacional, pois educador-educando são considerados sujeitos do
ato de conhecer, ambos almejando desvelar o objeto cognoscível. Com isso, a pedagogia proposta
preza pelo diálogo: “uma pedagogia que elimina pela raiz as relações autoritárias, onde não há
“escola” nem “professor”, mas círculos de leitura e um coordenador cuja tarefa essencial é o
diálogo” (FREIRE, 1967, p.26).
A principal ideia do pensamento desse educador refere-se à existência de dois tipos de
pedagogia: a pedagogia dos dominantes e a pedagogia do oprimido. A pedagogia dos dominantes
refere-se ao ensino a partir da visão da didática tradicional, constituída como uma disciplina
normativa, centrada no ato de ensinar pelo professor, utilizando como recurso pedagógico principal
a transmissão oral, sendo este o detentor exclusivo do saber a ser recebido passivamente pelo aluno,
também denominado como ensino bancário.
A pedagogia do oprimido propõe oposição a esta realidade em que a educação deveria ser
assumida como prática da liberdade, necessitando se originar dos próprios sujeitos oprimidos. Para
Paulo Freire, no contexto da luta de classes, o saber mais relevante para o oprimido é a descoberta
da sua situação e a condição para se libertar da exploração pela qual é submetido, através da
elaboração da consciência crítica individual com a sua organização de classe. Assim, o processo de
ensino e aprendizagem na pedagogia do oprimido requer fazer do reconhecimento da opressão e das
suas causas o objetivo de sua reflexão, resultando assim o engajamento do homem na luta por sua
libertação. Tal libertação tem de ter caráter político e não se limitar à ação contra um partido
político ou governo. Ela deve começar nas relações e ações entre os indivíduos, sejam na família, na
escola e/ou no trabalho.
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação na Educação (TDICs)
O uso marcante das TDICs tem alterado relevantemente as ações e práticas sociais. Sendo
assim, distintas instituições foram influenciadas pelo seu desenvolvimento, dentre elas a educação.
O uso de técnicas, práticas, modos de pensamento e valores que se ampliam em um ambiente de
conexão entre indivíduos e máquinas instigam múltiplos questionamentos sobre seus
desdobramentos no universo educacional. Contudo, ressalta-se que a tecnologia sempre esteve
presente nas ações educacionais. O livro, o rádio, a televisão, a lousa, o giz, o pincel, o vídeo, o
retroprojetor, o data show e, mais recentemente, o computador e a internet são utilizados como
tecnologias educacionais, fazendo com que professores e estudantes, antes restritos às delimitações
geográficas, passem hoje a conviver legitimamente com dimensões sociais e de convivência mais
extensas, integrando-se em vivências coletivas via sociedade em rede.
Coll, Mauri e Onrubia (2010) alertam para não se cometer o equívoco de incorrer no
determinismo pedagógico ou didático, no sentido de que o potencial das TDICs para transformar,
inovar e melhorar as práticas educacionais depende diretamente do enfoque ou da postura
pedagógica em que está inserida sua utilização.
As tendências atuais de estudo são pelas criações de novos moldes educacionais amparados
a priori pelos usos de recursos tecnológicos. No entanto, de acordo com Coll e Monereo (2010),
este tema é complexo e passível de discussão:
O impacto das TDICs sobre o aparecimento dessas necessidades educacionais e a
importância de novas competências que precisamos adquirir e desenvolver no
marco da Sociedade da Informação é um tema complexo, uma vez que, por um
lado, ambos os fatores estão na origem das novas necessidades educacionais e de
formação, mas, por outro, parecem destinados a desempenhar um papel decisivo na
satisfação dessas mesmas necessidades (COLL; MONEREO, 2010, p.33).
Assim, se a sociedade informacional é marcada pelo uso expressivo das tecnologias, estas,
se bem utilizadas, podem ter um papel fundamental como facilitadoras da interação necessária para
o processo educativo. Sendo assim, é importante refletir se as TDICs pensadas em uma proposta de
educação freiriana podem vir a contribuir para a modalidade EaD.
A Educação a Distância e a rede e-Tec Brasil
A revolução das TDICs propiciou novas formas de organização social e difusão do
conhecimento. A apropriação delas no cenário da EaD proporcionou ressignificar o conceito e as
relações com o conhecimento. É por meio da utilização de ferramentas tecnológicas e a partir de
mediações atuantes e eficientes que as potencialidades pedagógicas emergem, oferecendo uma
educação sem distâncias a um espaço de formação inclusivo e democrático.
Segundo Moran (2002), a EaD pode ser definida como o processo de ensino e aprendizagem
mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados espacial e/ou temporalmente. O
autor diferencia o termo em relação à expressão ensino a distância pelo foco que a segunda atribui:
“Na expressão ‘ensino a distância’ a ênfase é dada ao papel do professor como alguém que ensina a
distância”. Todavia, o autor ressalta que nenhuma das expressões está adequada. Outros autores
também discutiram a respeito da dificuldade na definição de uma terminologia mais adequada que
melhor expressasse essa modalidade de ensino. Dentre eles, pode-se destacar Chaves (1999):
Já argumentei, em vários locais, que considero as duas primeiras expressões --
"Educação a Distância" e "Aprendizagem a Distância"-- totalmente inadequadas. A
educação e a aprendizagem são processos que acontecem, de certo modo, dentro da
pessoa -- não há como ser realizados a distância. Tanto a educação como a
aprendizagem (com a qual a educação está conceitualmente vinculada) acontecem
onde quer que esteja o indivíduo que está se educando ou aprendendo, não há como
fazer, nem sequer entender, "teleeducação" e "teleaprendizagem” (CHAVES, 1999,
online).
Neste estudo, adotou-se a nomenclatura educação a distância enfatizando o processo
educativo como um todo, em que as relações entre o estudante e a edificação compartilhada do
conhecimento efetuam-se por meio de interações dialógicas, não somente com o conteúdo ao qual
está exposto, mas também com professor, tutor e os colegas do ambiente virtual de ensino e
aprendizagem.
No que se refere à contextualização histórica da EaD, essa teve sua fase inicial delimitada
como cenário no século XIX. À medida que avançava o processo de industrialização da sociedade,
fazia-se necessário alfabetizar grande parte da população que se via excluída da escola e, assim,
obter uma mão de obra melhor qualificada que atendesse aos anseios dessa sociedade que se
formava e que se pretendia consolidar.
De acordo com Saraiva (1996), o processo de desenvolvimento da EaD deve ser analisado a
partir da ótica da evolução dos processos comunicativos na sociedade. Assim, pode-se destacar a
importância da criação da prensa móvel por Johannes Guttenberg em 1440 como um marco para o
desenvolvimento do processo da escrita, possibilitando uma nova forma das pessoas se
comunicarem, já que, até então, a comunicação era realizada exclusivamente pela linguagem oral e
corporal.
Saraiva (1996) ressalta que o desenvolvimento de uma ação institucionalizada de educação a
distância teve início a partir da metade do século XIX. Entretanto, é somente no século XX, após a
2º Grande Guerra Mundial, que a EaD passa a ser vista como mais uma possibilidade de se realizar
o processo de ensino e aprendizagem. Assim, com o aprimoramento dos serviços dos correios, dos
meios de transporte, e do desenvolvimento tecnológico por meio das TDICs houve um crescimento
mundialmente notável da EaD. Diante dessa trajetória, conclui-se que o desenvolvimento desta
modalidade educacional só foi possível pelo avanço de tecnologias disponibilizadas, segundo
determinados momentos históricos. Moore e Kearsley (2007) identificam cinco gerações ao longo
da história da EaD, as quais são classificadas em ordem de aparecimento no tempo, ressaltando que,
atualmente, continuam existindo em paralelo. São elas: o estudo por correspondência; transmissão
por rádio e televisão; a universidade aberta; a teleconferência e, finalmente, as aulas virtuais
baseadas no computador e na internet.
Atualmente a EaD vem crescendo cada vez mais, como apresenta o Relatório Analítico da
Aprendizagem a Distância no Brasil 2011, realizado pelo Associação Brasileira de Educação a
Distância (ABED), que aponta um crescimento de 58% de alunos que estudam nessa modalidade de
ensino, bem como um aumento de 28% na oferta de cursos a distância autorizados e reconhecidos
pelo Ministério da Educação (MEC). Para expandir ainda mais essa modalidade de ensino,
interiorizá-la, democratizá-la, o governo federal lançou o projeto rede e-Tec Brasil para ofertar
cursos de educação profissional técnica de nível médio presencial e a distância e de cursos e
programas de formação inicial e continuada ou qualificação profissional a distância gratuitos.
O programa e-Tec foi instituído por meio do Decreto nº 7.589 de 26 de outubro de 2011 e
lançado em 2007 por meio do Decreto n 6.301 de 12 de dezembro de 2007, com a finalidade de
"ampliar a oferta e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e gratuitos no
País" (Brasil, 2007, online), modificado pelo Decreto n 7.589 de 26 de outubro de 2011, intitulado
atualmente como Rede e-Tec Brasil e não mais como um programa. Assim, a Rede e-Tec
Brasil compreende o desenvolvimento de atividades letivas concentradas em polos de apoio
presencial, onde os alunos se reúnem para assistirem às aulas transmitidas ao vivo ou pré-gravadas,
com maior ou menor interação, dependendo das tecnologias disponíveis.
Já a gestão de pessoas inclui tutores presenciais que atuam nos polos e tutores a distância,
que auxiliam os professores e são tutores de conteúdo. Os coordenadores de polo e professores,
eventualmente, visitam os polos para aulas presenciais e atividades de laboratório assistidas. Como
o programa tem abrangência nacional e visa a chegar a parcelas da população que não têm acesso a
cursos presenciais nas modalidades ofertadas, os polos localizam-se em cidades pequenas e médias,
em comunidades rurais e em locais onde os recursos de comunicação são reduzidos em função da
grande disparidade de inclusão digital ainda existente no país.
Metodologia
Neste trabalho optou-se pela pesquisa científica de natureza qualitativa. Quanto ao tipo de
pesquisa, ela foi exploratória e descritiva. Em relação a procedimentos técnicos, adotou-se o estudo
de caso e a pesquisa bibliográfica.
A pesquisa foi realizada no CEFET-MG, que desde 2010 vem oferecendo cursos técnicos de
nível médio a distância, por meio da rede e-Tec Brasil. Atualmente, a instituição oferece três cursos
técnicos a distância: Eletrônica, Meio ambiente, Planejamento e Gestão das Tecnologias da
Informação. Para o desenvolvimento deste trabalho, foi contemplado como amostra apenas o curso
de Eletrônica oferecido nas cidades mineiras: Almenara, Campo Belo, Porteirinha, Timóteo,
Curvelo e Nepomuceno, que são os polos presenciais.
A escolha pelo curso ocorreu em função do papel de destaque que a Eletrônica possui na
sociedade informacional tanto na ordem social como produtiva, pois se sabe que ela é a base da
moderna tecnologia, da informática, dos sistemas de telecomunicações, dos sistemas de automação,
bem como pelo fato de oferecer ainda várias aulas práticas em laboratórios específicos, que é um
desafio nos cursos a distância. O corpus da pesquisa foi composto por professores e tutores
presenciais e a distância deste curso.
No que concerne à coleta de dados, foi realizado o levantamento através dos instrumentos
de coletas, observação e questionário online e, essa pesquisa foi dividida em três etapas:
1ª etapa: Identificação dos pressupostos de Paulo Freire no que concerne à dialogicidade,
autonomia e contextualização do saber, buscando analisar se estes têm sido aplicados nas interações
e mediações que são realizadas nas ferramentas de interatividade e mídias identificadas na primeira
etapa dessa pesquisa. Essa etapa ocorreu durante 2012 e 2013.
2ª etapa: Levantamento das ferramentas de interatividade e as mídias e hiperlinks presentes no
Moodle utilizadas pelo curso de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, no segundo
semestre de 2013, através da concessão de um usuário para o manuseio do Moodle, autorizado pela
coordenação pedagógica do curso. Durante esse período, foi possível observar o uso das
ferramentas e mídias utilizadas nas seguintes disciplinas: Eletrônica Embarcada (90 horas),
Empreendedorismo (60 horas), Arquitetura de Computadores, (60 horas), Circuitos Elétricos II (60
horas) e Eletrônica Analógica II (90 horas).
3ª etapa: Verificação das concepções de Paulo Freire que podem favorecer a edificação do
processo de ensino quando utilizadas pelos professores e tutores. Essa etapa foi realizada no
segundo semestre de 2013. Para isso, foram adotados os seguintes procedimentos:
a)Escolha da população: A população selecionada incluiu tutores presenciais, tutores a distância e
professores das disciplinas do 3º módulo da turma de 2012 do curso de eletrônica da Rede e-Tec
Brasil do CEFET-MG. O convite foi feito por meio de mensagem enviada através do Moodle
utilizado no curso durante o período de 11 de dezembro até o término de 2013. Foram enviados 11
questionários. Desses 11 questionários enviados, 10 foram respondidos, o que corresponde a 90,9%
de retorno.
b)Coleta de dados: A pesquisa teve como instrumento de coleta de dados o questionário composto
por 24 perguntas direcionadas aos tutores presenciais, tutores a distância e professores que estavam
mediando uma ou mais disciplinas no semestre. Antes do envio do questionário, foi enviada uma
mensagem aos respondentes contendo os seguintes dados: uma mensagem via plataforma
informando sobre a pesquisa e solicitando a participação em um questionário, fornecendo as
instruções e o link para acesso ao mesmo. A partir deste link, o usuário tinha acesso ao questionário,
que se encontrava no aplicativo Googledocs. Por meio desse instrumento de coleta de dados,
buscou-se verificar se as concepções de Paulo Freire sobre dialogicidade, autonomia e
contextualização do saber podem favorecer a edificação do processo de ensino do curso de
eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG. O questionário foi dividido em quatro partes:
identificação do perfil dos respondentes, tais como: idade, gênero e grau de instrução.
Levantamento do conhecimento prévio dos respondentes em relação à utilização de recursos
tecnológicos, formação e capacitação. Abordagem das questões relacionadas aos conhecimentos
pedagógicos do curso e as questões referentes ao uso do AVEA pelos tutores e professores.
Apresentação e análise dos resultados
Os resultados e as análises foram apresentados de acordo com cada etapa da pesquisa:
1ª etapa: Esta etapa foi subdividida de acordo com a apresentação e análise das três concepções de
Paulo Freire estudadas nesta pesquisa: dialogicidade, autonomia e contextualização do saber nas
ferramentas de interatividade e mídias presentes no curso:
Dialogicidade nas ferramentas de interatividade: A partir da observação do Moodle que hospeda o
curso de eletrônica, foi possível realizar a análise das ferramentas de interatividade. Sob o ponto de
vista da dialogicidade, pode-se perceber que algumas delas se limitavam a interações apenas
receptivas, nas quais apenas um polo do processo comunicativo estabeleceu a função de comunicar
sobre um determinado assunto, condicionando a uma relação pautada na recepção passiva. Essa
característica foi observada nas ferramentas de interatividade calendário, onde os lembretes, os
eventos, os encontros presenciais ou as observações importantes são postados unilateralmente pelo
professor ou tutor do curso; em últimas notícias que tem como preceito a mesma concepção do
calendário; tarefa ou atividade, os alunos apenas postam as atividades e recebem uma avaliação
quantitativa, pois nessas postagens não se identificou feedbacks qualitativos; aula virtual;
questionários, perguntas respondidas automaticamente, estabelecendo assim, um tipo de educação
criticada por Paulo Freire denominada de educação bancária.
Ainda foram identificadas algumas mídias integradas às ferramentas de interatividade como,
por exemplo, links para textos ou para vídeos, mas nestas a concepção foi a mesma das ferramentas
de interatividade a comunicação unilateral, cabendo ao aluno apenas clicar para poder visualizar o
conteúdo proposto.
No entanto, há no Moodle outras ferramentas que permitiam interações mais profícuas e
mútuas, como pode ser verificado o caso das ferramentas aulas online e fóruns, a primeira
possibilitando uma discussão síncrona e a segunda, discussão assíncrona entre os participantes. Em
ambas as ferramentas os participantes podem intervir nas interações uns dos outros e a interação vai
sendo edificada de forma gradativa durante o processo educacional, sem previsibilidade, nascendo
assim novos elos comunicativos motivados pela provocação inicial.
Contudo, cabe ressaltar que o fórum teve um uso diferenciado dependendo do tutor e/ou do
professor de cada disciplina. Em algumas disciplinas, as interações promoveram uma progressão e
um crescimento (seguindo os preceitos freirianos) da questão ou dúvida postada inicialmente.
Verificou-se isso em todos os tipos de fóruns temáticos. Já em determinadas disciplinas, nem os
mediadores e nem os alunos provocaram o surgimento de novas indagações e reflexões, e os
comentários se resumiram a respostas finalizadoras como bom, muito bom ou concordo.
Em relação à ferramenta mensagem, não foi possível realizar uma análise, visto que ela,
assim como um e-mail pessoal, só pode ser lida por um destinatário previamente selecionado. No
que diz respeito à ferramenta chat e ponto de encontro, a utilização de ambas foi distinta em cada
disciplina. A ferramenta chat, por sua vez, oferece a possibilidade de uma discussão síncrona, o que
intensifica a sensação de presencialidade nas interações entre os sujeitos, em função do imediatismo
das respostas, podendo energizar assim o sentimento de pertença ao grupo. Em algumas disciplinas,
o uso do chat foi muito proveitoso tendo como parâmetro a concepção de Paulo Freire sobre
dialogicidade. Já em algumas disciplinas, os sujeitos apenas entraram no bate-papo e não efetuaram
nenhuma comunicação; e os mediadores também não promoveram estratégias para se conseguir a
progressão do que se pretendia discutir naquela sessão.
A promoção da autonomia através da utilização das ferramentas de interatividade: Uma
postura fundamental nas práxis pedagógicas consiste em dar ao estudante a autonomia do
pensamento, demonstrando-lhe a importância do ato da pesquisa para o desenvolvimento e
crescimento pessoal, do saber metodológico; despertando-lhe a curiosidade e o pensamento crítico.
Essa autonomia, com ressalvas, está presente no curso de eletrônica.
Em uma das tarefas da disciplina de Empreendedorismo, foi solicitado aos estudantes, a
partir da leitura de um texto motivacional, pesquisar entre as pessoas do mesmo grupo de
convivência quem já tinha vivenciado ações de empreendedorismo, seja porque tinham sido
motivadas a empreender por uma necessidade ou por uma oportunidade. Essa experiência foi um
grande aprendizado para todos, tanto para quem pode relatar sua história, como para quem pode
aprender com ela. A partir desse tipo de atividade, pode-se inferir a ideia da autonomia e da
contextualização do saber, pois para Paulo Freire a educação pode contribuir para que as pessoas se
acomodem ao mundo ou se envolvam na transformação dele. Quando parte-se de tipos de tarefa na
qual se envolve o educando para compreender, investigar e até intervir no seu espaço social,
pratica-se a educação libertadora.
Outro ponto de destaque refere-se às mídias em formato de vídeos muito utilizadas em
todas as disciplinas. Nelas também se verificaram marcas das concepções de Paulo Freire, em
especial a autonomia; contudo, cabe ressaltar que a identificação dessa concepção efetuou-se pela
preocupação do professor em sugerir um vídeo mais adequado, a tecnologia por si só não garante o
sucesso da aprendizagem.
Um dos vídeos sugeridos aos alunos relaciona-se a empreendedorismo social. Se o
empreendedorismo social tem como objetivo desenvolver iniciativas empreendedoras visando à
mudança da realidade na qual está inserido, buscando soluções inovadoras e sustentáveis para
problemas locais e o bem-estar da população, pode-se afirmar que tanto a mídia como a ferramenta
tarefa foram ao encontro das concepções do educador.
Ensinar a distância também pode ser um processo de democratização e os AVEAs podem
ser um espaço para esse “ensinar a pensar certo” discutido por Paulo Freire na obra Pedagogia da
Autonomia. Esse “ensinar certo” tem como um dos princípios a ideia de se respeitar a realidade do
educando e por meio dela superar os seus saberes de experiências feitos com o intuito de promover
transformações sociais. Essa superação não está atrelada à exclusão dos saberes edificados no senso
comum, mas está com o intuito de se promover o caminho da curiosidade ingênua à curiosidade
crítica. Em um fórum da disciplina Eletrônica Analógica, o professor uniu em sua apresentação dois
preceitos importantes que dizem respeito à noção da autonomia e da contextualização do saber.
Com o intuito de exemplificar por meio também de outras disciplinas, observou-se, em um
fórum geral, essa ideia de autonomia e democracia. De acordo com Freire (1996), “A autonomia vai
se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vamos tomando” (FREIRE, 1996,
p.120). Se o educador promove em sua prática pedagógica a decisão de questionar seus alunos
sobre a qualidade do material por ele sugerido, pode-se afirmar que esse educador está exercitando
e fomentando o exercício da autonomia, pois a sua edificação está pautada na democracia e na
liberdade.
Já na disciplina Eletrônica Analógica II, a percepção da autonomia e estímulo, o despertar a
curiosidade e ainda o saber metodológico, podem ser inferidos por meio da utilização da ferramenta
chat. O professor ressalta: “[...] dos altos dos meus 48 anos vi que as escolas e os livros só mostram
parte. O restante do conhecimento conquistamos com nossos esforços e ao longo do tempo” (Rede
e-Tec Brasil do CEFET-MG, 2013, online). Nesse sentido, observa-se que o professor reforça a
ideia de que o conhecimento deve ser uma conquista, logo essa ideia vai ao encontro dos
parâmetros de Paulo Freire; de uma educação para a autonomia, na qual ela deve ser edificada a
partir das decisões, das vivências, da própria liberdade.
O conhecimento a partir dos saberes e vivência dos indivíduos: Em um fórum de
apresentação da disciplina de Empreendedorismo identificou-se uma preocupação da professora em
conhecer, mesmo que em um espaço limitado, os seus alunos e procurando por meio desse
diagnóstico conhecer a histórica do educando, bem como levá-lo a pensar em uma possível relação
entre o que ele já sabe e o que se espera conhecer da disciplina.
Espero que vocês tenham lido minha apresentação no tópico inicial do curso. Gostaria
também de conhecê-los para trocarmos experiências durante o semestre. Respondam
algumas perguntas e fiquem à vontade para fazer suas questões. Espero contribuir com o
aprendizado de vocês durante esta disciplina e trocarmos experiências. 1) Nome, idade,
qual sua ocupação? (trabalha e estuda ou só estuda). 2) Qual o seu objetivo ao fazer este
curso? Você já fez outro curso técnico ou superior? 3) O que você espera da disciplina de
Empreendedorismo? 4) Para você, qual é a importância da disciplina no curso? (Rede e-Tec
Brasil do CEFET-MG, 2013, online).
Outro ponto fundamental verificado nesse texto escrito da professora é a noção de que os
saberes são vivenciados e experienciados por todos os sujeitos que compõem o processo
educacional. De acordo com Paulo Freire, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
Para ele, a educação é um processo social que ocorre na escola, no seio familiar, enfim, entre
pessoas que partilham de um mesmo contexto social.
Na disciplina Eletrônica Analógica II, o professor também sinaliza aos seus alunos uma
postura crítica e não neutra. Em outras palavras, em uma sociedade em que convivem segmentos da
população com interesses opostos e contraditórios, nem todos os indivíduos têm acesso, por
exemplo, à educação e às TDICs. Assim, faz-se fundamental que a educação contribua para que os
indivíduos não se acomodem e/ou aceitem os discursos “neoliberais” como verdades universais,
mas que se envolvam na transformação do mundo.
E, por fim, visualizaram-se links que direcionam alunos para vídeos como: “Netuno” e
“Magnetismo na Terra”, possibilitando uma leitura para além das concepções teóricas descritas no
material de apoio, e verificando com isso a importância de se agregar mídias ao processo educativo.
Assim, as várias estratégias de ensino associadas a diferentes ferramentas de interatividade e/ou a
mídias podem permitir a significação da aprendizagem, e a contextualização manifesta-se como
uma possibilidade de dinamizar o ensino, envolvendo mais os alunos com o conhecimento
científico, inserindo-os nas suas realidades locais.
Na Tabela 1 pode-se observar uma sintetização dos resultados mensurando por graus se
houve ou não as três concepções de Paulo Freire contempladas nesta pesquisa.
A proposta de escala visa classificar as ferramentas e as mídias a partir das concepções do
educador e pela promoção da interatividade em ordem crescente; sendo o grau 0: não permitindo a
interatividade de forma significativa do conteúdo, não favorecendo a interação com o professor ou
tutor, comprometendo com isso o preceito dialógico, a autonomia e a contextualização do saber das
três concepções em estudo. O grau 1 caracteriza-se pela pouca promoção das três concepções, o
grau 2 pela boa promoção das três concepções, e o grau 3 atende de forma excelente a utilização das
ferramentas ou mídias.
Tabela 1 - Ferramentas de interatividade e mídias associadas às concepções de Paulo Freire no curso de eletrônica
Ferramenta ou mídia Dialogicidade Autonomia Contextualização
do saber
Chat
Ponto de Encontro
Tarefa ou Atividade
Aula online
Fórum notícias e avisos/ Fórum de dúvidas
Fórum de atividades
Aula Virtual
Calendário/ Últimas notícias
Vídeos/ links – Mídias
1
1
1
3
3
2
0
1
0
1
0
1
1
1
2
1
0
0
1
0
2
1
0
2
1
0
3
2ª etapa: Verificou-se que vários recursos midiáticos e ferramentas podem favorecer o ensino no
curso de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, destacando o uso expressivo da
ferramenta fórum e aula online pelos professores. Já os tutores utilizam com maior frequência as
ferramentas: tarefa, fórum atividade e de notícia. Professores e tutores fazem uso em suas práticas
pedagógicas das ferramentas de interatividade dispostas no AVEA Moodle, e explicitadas no
Quadro 1.
Quadro 1 - Ferramentas de interatividade síncronas
Ferramentas de interatividade síncronas
Tipo Função
Chat Conversação em tempo real. Para a sua realização, geralmente é definido previamente o dia, horário,
temática a ser discutida; e há a presença de um mediador que coordena as discussões.
Ponto de
encontro
Conversação em tempo real com temática livre para contato entre os participantes da disciplina. A
sua realização é livre.
Aula online Exposição de uma temática pelo professor por meio de um programa que possibilita acesso remoto.
As aulas são marcadas em dias e horário pré-definidos. O uso do programa possibilita o acesso e o
compartilhamento de dados entre dois ou mais computadores conectados pela internet, sendo possível
também participar de apresentações já realizadas anteriormente.
Essas ferramentas podem ser, basicamente, divididas em síncronas e assíncronas. As
ferramentas síncronas são definidas por Moore e Kearsley (2007) como:
[...] comunicação interativa sem defasagem de tempo. É também um sistema no quais
eventos que ocorrem regularmente em intervalos de tempo são mantidos em sintonia
usando alguma forma de mecanismo eletrônico de registros de tempo (MOORE;
KEARSLEY, 2007, p.356).
O uso das ferramentas síncronas demanda uma maior preparação por parte do professor e/ou
tutor em relação às ferramentas assíncronas, considerando que a proposta pedagógica e os objetivos
devam estar bem claros durante todo o processo de ensino. As ferramentas síncronas são mais
adequadas às ações em que se privilegiam as respostas imediatas, em que o aluno terá de responder
a partir do conhecimento que foi edificado ao longo do processo. As ferramentas assíncronas são
agrupadas no Quadro 2.
Quadro 2 - Ferramentas de interatividade assíncrona
Ferramentas de interatividade assíncrona
Tipo Função
Tarefa ou
Atividade
Envio de tarefas pelos alunos. A especificidade do curso pluraliza o envio de arquivos em
diversos formatos.
Fórum
Atividade
Promover discussões sobre uma temática pré-definida pelo professor (a). A sua duração é
determinada pelo professor (a), bem como os critérios de avaliação e participação.
Fórum de
notícias e
avisos
Expor informações gerais tais como: calendário, informações sobre material didático,
cancelamento de aula virtual, boas-vindas, entre outros. O uso desse fórum não tem como
objetivo a avaliação do educando, sua função é de apenas transmitir informações relevantes sobre
o curso ou assuntos correlatos.
Questionário Questionário fechado com opções de respostas de múltipla escolha ou ainda questões
dissertativas.
Fórum de
dúvidas
Espaço no qual professores, tutores e alunos socializam dúvidas no que concerne aos conteúdos,
avaliações, problemas técnicos e pessoais.
Aula Virtual Aula gravada pelos professores em formato de vídeo digital referente ao conteúdo da quinzena,
disponibilizada por meio de um link que remete a um site o qual permite que seus usuários
carreguem, compartilhem e comentem vídeos em formato digital.
Calendário Contém informações denominadas eventos sobre as atividades do curso, tais como: encontros
presenciais, período de recuperação, entrega de tarefas, entre outros.
Últimas notícias Possui informações e funções compatíveis com a da ferramenta calendário.
Mensagem Possui o formato de um e-mail pessoal e tem como função enviar mensagens privadas ou para um
grupo de pessoas selecionadas previamente.
Perfil Esta ferramenta permite que o usuário apresente-se, coloque foto e descreva informações que
julgue necessário. Caso o usuário possua uma página pessoal na internet, este pode inserir um link
para acesso a ela.
Em relação às ferramentas assíncronas Moore e Kearsley (2007) afirmam:
[...] literalmente, não síncrono; em outras palavras, não ocorrendo ao mesmo tempo
e criando, portanto, uma comunicação com uma defasagem que permite aos
participantes responder em uma ocasião diferente daquela em que a mensagem é
enviada (MOORE; KEARSLEY, 2007, p.353).
O uso das ferramentas assíncronas propõe respostas mais elaboradas, ou seja, permite ao
educando realizar reflexões sobre a temática antes da postagem final. E, as ferramentas assíncronas
podem ser acessadas a qualquer momento, o que oferece ao educando uma flexibilização temporal.
Outro aspecto relevante refere-se em especial aos fóruns de atividades. Os professores e
tutores, ao proporem uma discussão, devem estar atentos ao tipo de questão postada, pois o objetivo
dos fóruns é estimular o diálogo e a aprendizagem colaborativa. Nesse sentido, o mediador deve
propor questões que favoreçam múltiplas respostas, pois do contrário os educandos não terão a
oportunidade de interagir. Sendo assim, percebe-se que para a escolha por determinada ferramenta
de interatividade, sejam as síncronas ou assíncronas, deve-se levar em consideração a eficácia da
receptividade, transmissão, possibilidade de construção do conhecimento e interações necessárias
no processo educativo.
Resultados e análise da 3ª etapa.
Para a organização e apresentação da análise, realizou-se a demonstração de tabelas
seguindo a mesma lógica de divisão temática do questionário:
1)Perfil dos atores envolvidos na pesquisa: Seis são do gênero masculino e quatro do gênero
feminino. Esse resultado permitiu perceber que há uma diferença de gêneros que atuam na área de
eletrônica no setor educacional, contudo essa diferença não é tão expressiva. Para apresentar a
idade dos respondentes foi elaborada uma tabela, dois, que descreve a distribuição dos respondentes
por faixa etária.
Tabela 2 - Idade dos respondentes
Faixa Etária Quantidade
Abaixo de 25 anos
Entre 26 e 35 anos
Entre 36 e 45 anos
Entre 46 e 55 anos
Acima de 56 anos
6
0
3
1
0
Total 10
Na tabela 3 estão apresentadas as informações sobre o Grau de escolaridade dos
respondentes. Percebe-se que metade dos respondentes possui mais do que a escolaridade mínima
exigida nos editais. Para o processo seletivo de tutores pede-se no mínimo que esteja graduando, e
para atuar como professor pede-se no mínimo a graduação completa. A metade dos respondentes
possui pós-graduação, o que permite inferir que há um equilíbrio na formação, mas também há por
parte de alguns atores uma preocupação com aperfeiçoamento da sua formação profissional, o que
vai ao encontro das notações da sociedade informacional que atribui um valor expressivo à
informação, ao conhecimento e a formação continuada.
Tabela 3 - Grau de Escolaridade
Grau de Escolaridade Quantidade
Graduando na área de Engenharia Elétrica
Graduando em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins
Curso Superior completo na área de Engenharia Elétrica
Curso Superior completo em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins
Pós-Graduação em andamento na área de Engenharia Elétrica
Pós-Graduação em andamento nas áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins
Pós-Graduação completa na área de Engenharia Elétrica
Pós-Graduação completa em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins
5
0
0
0
0
1
4
0
Total 10
Em relação ao uso de recursos tecnológicos pelos tutores e professores, nove informaram
que já tinham experiência com recursos tecnológicos e um respondeu que não tinha. Sobre a
formação acadêmica básica para a atuação, sete possuíam formação e capacitação antes de iniciar as
suas atividades no curso e três declararam não possui essa formação ou capacitação. A partir disso,
entende-se que há uma preocupação da instituição na capacitação e até na escolha desses
profissionais, tendo em vista que nos editais para seleção desses profissionais uns dos critérios de
desempate está relacionado ao grau de escolaridade.
Quanto à parte de análise do questionário que se refere à utilização do AVEA pelos tutores e
professores, verificou-se o tempo de uso do AVEA. De acordo com os editais do processo de
seleção para o 2 º semestre de 2013, a disponibilidade tanto dos tutores quanto de professores é de
20 horas semanais; essa informação é confirmada pela tabela 4.
Tabela 4 - Tempo de uso do AVAE pelos tutores e professores do curso
Horas semanais Quantidade
Apenas 20 horas semanais
De 21 a 30 horas semanais
De 31 a 40 horas semanais
Acima de 40 horas semanais
8
2
0
0
Total 10
A partir da leitura dos dados da tabela 4, pode-se inferir que as horas destinadas para o
cumprimento das propostas pedagógicas estão dentro do previsto, contudo um dos aspectos a serem
ressaltados nesta pesquisa está relacionado ao uso das ferramentas de interatividade e mídias nessas
20 horas mínimas de dedicação ao curso. No que concerne ao uso das ferramentas, será mostrado a
seguir, por meio das tabelas 5 e 6, quais as mais usadas e a sua adequabilidade a EaD.
A partir da análise das tabelas 5 e 6, pode-se verificar o predomínio da utilização das
ferramentas assíncronas para aquelas explicitadas no questionário, que são as de uso mais comum
nos cursos de EaD, todavia na opção outras poderiam entrar também as ferramentas ou mídias
utilizadas no curso e que não foram citadas no questionário, como: perfil, calendário, últimas
notícias, biblioteca, ponto de encontro, aula virtual, aula online, questionário.
Os resultados apresentados na tabela 6 revelam outro aspecto fundamental, para 50% dos
respondentes as ferramentas utilizadas no curso são adequadas à modalidade a distância e para 30%
dos respondentes são parcialmente adequadas. Contudo, muitas ferramentas e/ou mídias poderiam
ter seu uso potencializado no que concerne às concepções de Paulo Freire.
Tabela 5 - Utilização das ferramentas de interatividade por professores e tutores
Avaliação Quantidade
Fórum
Chat
Wiki
Tarefa
Enquetes
Agenda/Mural
Biblioteca
Glossário
Mensagem/Correio
Outras
9
3
1
5
0
2
0
0
4
2
Total 10
Tabela 6 - Adequação das ferramentas de interatividade na EaD
As ferramentas são adequadas a EaD Quantidade
Sim
Não
Parcialmente
5
2
3
Total 10
Nas próximas tabelas procurou-se evidenciar a relação entre o uso dessas ferramentas de
interatividade ou mídias com as concepções do educador, e ainda verificar se há presença ou
ausência da aprendizagem colaborativa a partir dos usos delas. Cabe ressaltar que a aprendizagem
colaborativa, conforme exposto no referencial teórico, não é um termo de Paulo Freire, entretanto a
sua noção também está interligada já que a pedagogia do educador é coletiva, inovadora e
libertadora.
Tabela 7- As ferramentas disponibilizadas favorecem o desenvolvimento da aprendizagem
colaborativa e do diálogo entre os estudantes e entre estudantes, professores e tutores
Aprendizagem Colaborativa e Diálogo Estudantes Porcentagem (%)
Sim, todas as ferramentas de interatividade
Sim, algumas ferramentas de interatividade
Não
40
60
0
Total 100
A partir da leitura desses dados apresentados nas tabelas 7 e 8, entende-se que a maioria dos
respondentes acredita que as ferramentas favorecem a aprendizagem colaborativa e o diálogo entre
os estudantes, todavia quando se amplia essas mesmas concepções para o uso das ferramentas,
pode-se inferir que os respondentes creem que de alguma forma todas ou algumas ferramentas de
interatividade possibilitam por si só a aprendizagem colaborativa.
Tabela 8 - As ferramentas disponibilizadas favorecem o desenvolvimento do diálogo entre os estudantes e
entre estudantes, professores e tutores
Aprendizagem Colaborativa Estudantes, Professores e Tutores Porcentagem (%)
- Sim, todas as ferramentas por si só já possibilitam a aprendizagem colaborativa entre os
estudantes e professores/ tutores
- Sim, algumas ferramentas por si só possibilitam a aprendizagem colaborativa entre os
estudantes e professores
- Não, as ferramentas por si só não garantem a aprendizagem colaborativa, faz-se
necessário estratégias de mediações
- Os próprios alunos e professores possuem autonomia para edificar as aprendizagens e
muitos não utilizam as ferramentas do AVA utilizando outros recursos externos
40
50
10
0
Total 100
No que se refere ao desenvolvimento da autonomia 90% dos respondentes afirmaram que
ela é propiciada pelo uso das ferramentas de interatividade do AVEA e para 10% dos respondentes
a autonomia não é propiciada.
Considerações finais
Nessa pesquisa foi possível verificar que as ações pedagógicas pautadas no desenvolvimento
de práticas dialógicas e colaborativas, na autonomia e na contextualização do saber, conferem-se
como atos de cidadania ao processo de ensino nas práticas dos professores e tutores do curso de
Eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, e também nos princípios pedagógicos do curso
descritos no site da instituição.
Embora tenha sido verificado que para a maioria dos respondentes as ferramentas do curso
são adequadas, observou-se que seus usos poderiam ser otimizados no que diz respeito às
concepções de Paulo Freire, analisadas nesta pesquisa. Além disso, esses respondentes acreditam
que as ferramentas por si só promovem uma aprendizagem colaborativa e os diálogos entre os
estudantes.
Nesse sentido, um dos grandes desafios referentes à atuação dos professores e tutores do
curso analisado nessa pesquisa diz respeito ao fato de eles não responderem de modo adequado ao
uso dessas diversas ferramentas de interatividade. No caso do universo populacional estudado, essa
dificuldade não está relacionada à falta de conhecimentos técnicos ou formação acadêmica, pois,
como se verificou neste estudo, eles já possuíam inclusive cursos de pós-graduação na área e, ainda,
a maioria destacou que a instituição oferece capacitações técnicas antes e durante a atuação no
curso. Faltando, portanto, a instituição oferecer uma base de conhecimentos pedagógicos em suas
capacitações.
Observou-se também que em muitas circunstâncias a utilização das ferramentas de
interatividade em práticas pedagógicas, os tutores e professores não assumiram a postura de
mediadores, ou seja, não promoveram plenamente ações interativas; aspecto fundamental nos
cursos de EaD e que fomentam uma aprendizagem colaborativa entre os pares.
E as ferramentas de interatividade do Moodle bem como a utilização de mídias oferecem
expressivas possibilidades e configurações, todavia nesta pesquisa foram encontradas metodologias
de ensino utilizadas de maneira repetida nas disciplinas do curso, ou seja, observou-se uma única
abordagem, sendo esta pouco promissora no que se refere à edificação de debates e reflexões;
comprometendo assim, além da dialogicidade entre os pares, a autonomia e a contextualização do
saber no processo de ensino.
Além disso, percebeu-se que a maioria dos respondentes acha que pelo menos algumas
ferramentas utilizadas no AVEA favorecem a aprendizagem colaborativa e o diálogo, porém o
grande problema evidenciado está no número expressivo de respondentes afirmarem que as
ferramentas de interatividade por si só já garantem a aprendizagem. Entretanto, cabe ressaltar que o
simples fato de os professores e tutores utilizarem as ferramentas de interatividade ou se
apropriarem das TDICs não garante por si só um ensino exitoso. Faz-se necessário planejar e
reinventar a forma como esses dispositivos serão utilizados e em que situações, a fim de que eles
possam efetivamente contribuir no processo de ensino.
Portanto, ressalta-se a importância de que a equipe pedagógica utilize juntamente com
coordenadores as ferramentas de interatividade do AVEA, bem como de outras mídias com o
intuito de melhorar as formações oferecidas, seja no início da atuação, seja durante a atuação dos
tutores e professores no curso de eletrônica.
Neste contexto, percebeu-se um cenário muito profícuo para que a coordenação pedagógica
e coordenadores de curso façam as intervenções necessárias, pois a maioria dos respondentes
declarou que participam das capacitações de forma voluntária, com o objetivo de melhorar as suas
medições e que as consideram de boa a excelente, o que já é um ponto de partida para se otimizar as
promoções das ações dialógicas, a autonomia e a contextualização do saber e diagnosticar outras
questões importantes para o aprimoramento das atuações dos respondentes.
Contudo, mais da metade dos respondentes considera essas formações pautadas
exclusivamente em habilidades técnicas. Esse resultado elucida duas propostas a serem
apresentadas: a primeira é que as capacitações contemplem conhecimentos pedagógicos, visto que
não é comum os cursos de engenharias e áreas correlatas (perfil dos tutores e professores que estão
no curso) terem contato com conhecimentos das áreas de didática ou teorias da educação; e a
segunda proposta é verificar, seja por meio de pesquisa de clima ou outro instrumento, a origem
desse fenômeno, pois os resultados demonstram uma receptividade de tutores e professores em
participar das formações e até conhecer as formações previstas no curso.
A pesquisa demonstrou que a existência de mediações pedagógicas através das ferramentas
de interatividade, mas sempre podem ser otimizadas, e esse fator é o que precisa ser tratado com
mais atenção: os professores sabem da importância do diálogo, da autonomia e da contextualização
do conhecimento, todavia apresentam dificuldades em mediar, mesmo possuindo um grau de
escolaridade satisfatório e apesar de possuírem identificação com o uso de tecnologias. Apenas
professores seguros e capazes de utilizarem as ferramentas do AVEA, usufruindo o que de melhor
elas têm a proporcionar ao processo de ensino e aprendizagem, serão capazes de interferir de forma
satisfatória e exitosa nas práticas pedagógicas.
Referências
ALMEIDA, Fernando José. Paulo Freire. São Paulo: Folha Pública, 2009.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (ABED). Disponível em:
<http://www.abed.org.br/censoead/censo2012.pdf>. Acesso em: 03 set. 2013.
BRASIL. Decreto Nº 6.301 de 12 de dezembro de 2007. Institui o Sistema Escola Técnica Aberta
do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Decreto/D6301.htm>. Acesso em: 18 dez. 2013.
BRASIL. Decreto No
7.589 de 26 de outubro de 2011. Institui a Rede e-Tec. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7589.htm>. Acesso em: 18
dez. 2013.
BRASIL. Lei No 5.692 de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º
graus. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/l5692_71.htm>. Acesso em: 09 fev.
2013.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação. Economia, sociedade e cultura.
São Paulo: Paz e Terra, v. 1, 1999.
CHAVES, Eduardo O. Tecnologia na educação, ensino a distância e aprendizagem mediada pela
tecnologia: conceituação básica. Revista de Educação, PUC-Campinas, v.3, n.7 novembro de
1999. 29-43 p.Disponível em: <http://www.chaves.com.br/TEXTSELF/EDTECH/EAD.htm>.
Acesso em: 03 fev. 2013.
COLL, César; MONEREO, Carles. Psicologia da Educação Virtual: aprender e ensinar com as
tecnologias da informação e comunicação. Tradução de Naila Freitas. Porto Alegre: Artmed,
2010.365 p.
COLL, César; MAURI Teresa; ONRUBIA Javier . Os ambientes virtuais de aprendizagem
baseados na análise de casos e na resolução de problemas. In: COLL Cesar; MONEREO Carles
(Org.). Psicologia da Educação Virtual: aprender e ensinar com as Tecnologias da Informação e
Comunicação. Porto Alegre: Artemed, 2010.
COSTA, J. W. da; OLIVEIRA, M. A. M. (Orgs.). Novas linguagens e novas tecnologias:
educação e sociabilidade. Petrópolis: Vozes, 2004.
FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. São Paulo: Villa das Letras, 2006.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra. 1996.
MINAS GERAIS. Rede e-Tec CEFET-MG, 2012. Disponível em: <http://www.etec.cefetmg.br>.
Acesso em: 18 dez. 2013.
MOORE, Michael G.; KEARSLEY, Greg. Educação a distância: uma visão integrada. Tradução
de Roberto Galman. São Paulo: Thomson Learning, 2007.
MORAN, José Manuel. O que é educação a distância? 2002. Disponível em:
<http://www.eca.usp.br/prof/moran/dist.htm>. Acesso em: 15 jan. 2013.
SARAIVA, Terezinha. Educação a Distância no Brasil: lições da história. Em aberto, Brasília,
ano 16, n.70, 1996. Disponível em: <http://www.emaberto.inep.gov.br/>. Acesso em: 21 jan. 2013.
TORRES, Carlos Alberto. Diálogo com Paulo Freire. São Paulo: Loyola, 2003.
DE FORMIGA A DRAGA: METÁFORAS CONCEPTUAIS E AUTODEFINIÇÃO.
Ane Cristina THUROW45
Liliane da Silva PRESTES-RODRIGUES46
Resumo: A metáfora perpassa a linguagem: as pessoas compartilham esse conhecimento cognitivo
e utilizam-no sem perceber, através de experiências sócio-históricas e culturais. Este trabalho visa a
analisar expressões metafóricas (e metáforas conceptuais) de autoidentificação pela verificação de
postagens em blogs com a temática “gordinha”. A teoria utilizada é a Metáfora Conceptual
(LAKOFF e JOHNSON, 1980), segundo a qual as metáforas são convencionais, culturais e
inconscientes, refletindo ideologias e modos de ver o mundo. O trabalho apresenta o levantamento
das expressões metafóricas presentes em quatro blogs. A análise versou pela explicação e
caracterização das expressões metafóricas, possibilitando revelar as metáforas conceptuais
correspondentes.
Palavras-chave: Metáfora. Linguagem. Convenção. Cultura. Blog.
Abstract: Metaphors span language: people have shared this cognitive knowledge and have used it
without noticing throughout socio-historical and cultural experiences. This study aims at analyzing
metaphorical expressions (and conceptual metaphors) of self-identification by checking blog posts
with the theme “chubby”. Theoretical support is given by the Conceptual Metaphor theory
(LAKOFF e JOHNSON, 1980) which states that metaphors are conventional, cultural and
unconscious; thus, they reflect ideologies and ways of seeing the world. This study reports the
metaphorical expressions found in four blogs. The analysis deals with the explanation and
characterization of the metaphorical expressions and enables the correspondent conceptual
metaphors to be revealed.
Keywords: Metaphor. Language. Convention. Culture. Blog.
Introdução
A Internet tem facilitado e possibilitado um grande fluxo de informações. Estas informações
estão vinculadas às redes sociais que conectam pessoas com interesses comuns. O ambiente virtual
serve de suporte à comunicação, mas também permitem a visualização de material pessoal. Assim,
45 Mestranda em Letras do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Católica
de Pelotas (UCPel), Pelotas – RS, Brasil; [email protected] 46
Docente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), Centro de Educação e Comunicação
da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Pelotas – RS, Brasil; [email protected]
uma das formas de interação no ambiente virtual é usando o blog. O blog é uma ferramenta que
proporciona visibilidade e popularidade na Internet, possibilitando formas de interagir e manter
relações interpessoais. O foco deste trabalho é constituído por blogs que apresentam informações
pessoais e mantêm a popularidade de sua autora através do número da audiência, do número de
visitas no perfil e pela quantidade de links postados e comentados na rede.
O objetivo geral deste trabalho é analisar a utilização de expressões metafóricas, e das
metáforas conceptuais que lhes embasam, através da análise de algumas postagens em blogs cuja
temática insere-se no contexto “gordinha”, isto é, blogs cujas autoras tem como objetivo buscar,
atingir e manter uma aparência física considerada ideal. O quadro teórico-metodológico utilizado é
o da Metáfora Conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 1980), que preconiza que as metáforas são
convencionais, culturais e inconscientes, refletindo, deste modo, a ideologia e o modo de ver o
mundo de um determinado grupo de pessoas. A partir do entendimento de que as metáforas
conceptuais são uma representação mental dando base para a configuração desse tipo de estrutura
cognitiva, os objetivos específicos deste trabalho são: (i) verificar os diferentes usos das expressões
metafóricas que constam nas postagens dos blogs selecionados; (ii) relacionar essas expressões às
metáforas conceptuais correspondentes; (iii) analisar os efeitos de sentido das expressões
metafóricas.
Referencial Teórico
No decorrer do tempo, o estudo da metáfora vem sendo ampliado e aprofundado.
Tradicionalmente vista como figura de linguagem, ligada, portanto, à estilística e à linguagem
literária, posteriormente passou a ser foco de interesse de pesquisa de diferentes áreas. A
Linguística Cognitiva (LC) aborda-a como um processo cognitivo fundamental não só no uso da
linguagem, mas na compreensão e apreensão do mundo, como uma maneira de conceptualizar as
experiências cotidianas.
A teoria sobre o pensamento metafórico teve como marco inicial o livro Metaphors we live
by, de Lakoff e Johnson (1980). Os autores tratam as metáforas como um recurso que está atrelado
ao pensamento e à ação, de maneira que o sistema conceptual é fundamentalmente metafórico
(LAKOFF, 1993). Deste modo, os autores expõem:
Nosso sistema conceptual desempenha, assim, um papel central na definição das
nossas realidades cotidianas. Se estivermos certos em sugerir que nosso sistema
conceptual é em grande parte metafórico, então o modo como pensamos, o que nós
experimentamos, e o que fazemos todos os dias é muito mais uma questão de
metáfora. (LAKOFF e JOHNSON, 1980, p.3)47
Essa visão de metáfora concebe-a como uma forma esquemática resultante de uma
comparação não explícita entre categorias (EVANS e GREEN, 2006). Uma delas, designada
domínio-fonte (ou domínio-origem) fornecerá elementos, características, atributos para a
compreensão do domínio-alvo, mais abstrato. É a chamada metáfora conceptual.
A título de exemplo, Lakoff e Johnson (1980) citam metáforas como DISCUSSÃO É
GUERRA e TEMPO É DINHEIRO48
, que são empiricamente demonstradas através de várias
ocorrências encontradas na língua portuguesa. Para o primeiro tipo, são expostas as expressões
metafóricas49
“Você está desperdiçando meu tempo./ Você tem muito tempo de sobra?”50
e, no
segundo, “Suas reivindicações são indefensáveis./Eu nunca ganhei uma discussão com ele.”51
No primeiro exemplo, o ato de argumentar é evidenciado como guerra, visto que, em uma
discussão, posições de ataque e defesa, planejamento e estratégias podem ser utilizados para
convencer o outro/adversário de algo. Essas posições podem ser percebidas na cultura e na estrutura
das ações que se realiza ao discutir. No segundo, o foco está no tempo, isto porque na cultura
ocidental ele é um recurso valioso e limitado, que permite alcançar os objetivos pretendidos.
Também associado ao tempo está o trabalho que é quantificado através de salários, horários, tarifas
e orçamentos anuais, necessários para a dinâmica típica de uma sociedade capitalista (LAKOFF e
JOHNSON, 1980).
As metáforas existem na cultura ocidental e não há como interagir e entender o mundo sem
vivenciá-las. Assim, uma metáfora conceptual é uma maneira convencional de conceptualizar um
domínio de experiência em termos de outro, ou seja, é uma forma de estabelecer uma definição para
alguma coisa e isso ocorre normalmente de modo inconsciente. Na medida em que são elas
culturais, refletem a ideologia e o modo de ver o mundo de um determinado grupo de pessoas em
uma cultura (SARDINHA, 2007).
Destarte, as “metáforas como expressões linguísticas são possíveis precisamente porque
existem metáforas no sistema conceptual de uma pessoa”52
(LAKOFF e JOHNSON, 1980, p.7).
47 Our conceptual system thus plays a central role in defining our everyday realities. If we are right in
suggesting that our conceptual system is largely metaphorical, then the way we think, what we experience,
and what we do every day is very much a matter of metaphor. 48
Estudos anteriores têm convencionado apresentar as metáforas conceptuais grafadas em letras
maiúsculas. 49
Dá-se o nome de expressão metafórica às construções linguísticas produzidas pelos falantes no
contexto comunicativo, na linguagem cotidiana. A expressão metafórica é a concretização da metáfora
conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 1980). 50
You're wasting my time./ Do you have much time left? 51
Your claims are indefensible./I've never won an argument with him. 52
Metaphors as linguistic expressions are possible precisely because there are metaphors in a
person's conceptual system.
Elas são consideradas produtivas quando os falantes criam um amplo conjunto de expressões que as
realizem. Com isso, elas são de acesso automático e seu mecanismo envolve a conceptualização de
um domínio de experiência em termos de outro, de maneira que não é preciso esforço para
compreender e produzir as expressões metafóricas.
Os estudiosos da teoria da Metáfora Conceptual notaram, conforme já referido, que as
metáforas estabelecem mapeamentos entre domínio-fonte e domínio-alvo em um sistema
conceptual (LAKOFF, 1993; KÖVECSES, 2010), o que expressa que uma das propriedades do
processo é a unidirecionalidade53
. As metáforas são consideradas como relações estáveis e
sistemáticas entre dois domínios. De tal modo que
“Há um padrão de unidireccionalidade da metáfora conceptual que vai do concreto
ao abstrato: o domínio-origem é concreto e pode ser experienciado ou percebido
‘directamente’, ao passo que o domínio-alvo é mais abstracto e diz respeito a
experiências subjectivas.” (SILVA, 2006, p.131)
A metáfora envolve tanto questões da linguagem como do pensamento e raciocínio que se
constroem na interação social. Um dos exemplos mais conhecidos e citados refere-se à metáfora
AMOR É VIAGEM, que esquematicamente estabelece projeções entre o domínio-fonte VIAGEM e
o domínio-alvo AMOR. Essa construção metafórica, por sua vez, herda “a estrutura da projecção
mais esquemática VIDA É VIAGEM, cujas correspondências ontológicas incluem pessoa é
viajante, nascimento é ponto de partida” (SILVA, 2006, p.127), etc.. Deste modo, elementos
cognitivos e socioculturais são integrados, mostrando a noção cultural de fases diferentes da vida e
a noção de transição temporal como transição espacial. E assim, as projeções de experiências
culturais possibilitam o uso do conhecimento sobre viagem aos relacionamentos amorosos e até
mesmo à vida.
A partir de experiências compartilhadas, as pessoas podem interpretar algumas expressões
como “no meio do caminho” e “tinha uma pedra”, de maneira a relacioná-las a metáfora AMOR É
VIAGEM. E com isso, as projeções das vivências geram correspondências por meio de padrões
inferenciais relacionados aos contextos comunicativos e socioculturais. Além de ancorada a esses
fatores, a metáfora conceptual tem uma forte relação com a experiência corpórea, com as
características do corpo humano e o conjunto de experiências físicas que este proporciona. De
acordo com Silva (2006):
O próprio corpo humano é um centro de expansão metafórica bastante produtivo:
são vários os termos de partes do corpo humano que desenvolveram sentidos
metafóricos (mais ou menos) lexicalizados [...]. (idem, p.133)
53 Autores como Cameron e Deignan (2006), entretanto, salientam que a metáfora não se caracteriza
pela unidirecionalidade, mas por uma via de mão dupla em um sistema dinâmico. Esse tipo de abordagem
não faz parte da construção teórica que sustenta a presente pesquisa.
Nesse sentido, por tudo o que foi exposto, a metáfora não se caracteriza pela arbitrariedade
(SILVA, 2006; YU, 2008), mas pela relação com o corpo (universal), a sociedade e a cultura
(específicos).
Lakoff e Johnson (1980), tomando como critério a função cognitiva, apontam três grandes
tipos de metáforas conceptuais: orientacionais, ontológicas e estruturais.
As metáforas orientacionais envolvem uma direção e tornam um conjunto de conceitos
coerentes dentro de um sistema, ou seja, os “conceitos-alvo tendem a ser conceptualizados de
maneira uniforme54
” (KÖVECSES, 2010, p.40). Assim, as metáforas conceptuais FELIZ É PARA
CIMA/ TRISTE É PARA BAIXO têm como expressões metafóricas, por exemplo, “Ele tem um
alto astral./ Estou me sentindo para baixo.”.
As metáforas ontológicas são as capazes de concretizar algo abstrato em termos de entidade.
Sua função é atribuir um status ontológico a categorias gerais de conceitos mais abstratos
(KÖVECSES, 2010). A metáfora conceptual INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE, nessa perspectiva,
conduz a expressão metafórica “A inflação está diminuindo nosso padrão de vida.55
” (LAKOFF e
JOHNSON, 1980).
Assim como as experiências básicas de orientações espaciais humanas dão origem
a metáforas orientacionais, também as nossas experiências com objetos físicos
(especialmente os nossos próprios corpos) fornecem a base para uma extraordinária
variedade de metáforas ontológicas, isto é, formas de visualização de eventos,
atividades, emoções, ideias, etc., como entidades e substâncias. (LAKOFF e
JOHNSON, 1980, p.26)56
Já as metáforas estruturais ocorrem quando o domínio-fonte fornece uma estrutura de
comportamento relativamente rica para o domínio-alvo, permitindo que os falantes, via
mapeamentos, compreendam este a partir dos elementos fornecidos por aquele. É o caso das
metáforas conceptuais DISCUSSÃO É GUERRA, TEMPO É DINHEIRO e AMOR É VIAGEM,
citadas anteriormente, e suas respectivas expressões metafóricas.
Além dos tipos abrangidos anteriormente, há, ainda, as metáforas de personificação e
primárias. As metáforas de personificação mostram uma entidade atrelada a uma pessoa, ou seja,
através dela são atribuídas características essencialmente humanas a seres não-humanos. É o caso
da metáfora conceptual UMA TEORIA É UMA PESSOA, que tem exemplo de expressão
metafórica “os fatos revelam que...”. As mais básicas, porém, são as primárias, que são motivadas
54 [...] target concepts tend to be conceptualized in a uniform manner.
55 Inflation is lowering our standard of living.
56 Just as the basic experiences of human spatial orientations give rise to orientational metaphors, so
our experiences with physical objects (especially our own bodies) provide the basis for an extraordinarily
wide variety of ontological metaphors, that is, ways of viewing events, activities, emotions, ideas, etc., as
entities and substances.
por aspectos físicos do corpo humano e bastante comuns em muitas culturas: BOM É PARA CIMA,
AFEIÇÃO É CALOR. Para esse tipo, é comum o uso da expressão “pessoa fria” (SARDINHA,
2007).
Segundo Sardinha (2007, p.34) “o corpo humano é a origem de muitas metáforas
conceptuais”. Desta forma, uma experiência humana física como demonstrar o afeto e carinho a
alguém está ligada à metáfora conceptual primária AFEIÇÃO É CALOR, porque o corpo humano é
quente e, ao se aproximar de uma pessoa, transmite e sente calor. Com isso, “as metáforas
conceptuais são, em maior ou menor grau, corporificadas, ou seja, possuem uma base no corpo
humano” (idem, p.34)
Lakoff e Johnson (1980), no livro Metaphors we live by, na edição publicada em 2003,
apresentam um posfácio abordando a sua tentativa de explicitar a natureza do pensamento
metafórico e sua relação com a linguagem, além de esclarecimentos sobre algumas revisões dos
tipos de metáforas conceptuais.
A divisão de metáforas em três tipos - de orientação, ontológica, e estrutural - era
artificial. Todas as metáforas são estruturais (na medida em que mapeiam
estruturas de estruturas); todas são ontológicas (na medida em que elas criam
entidades - entidades principais); e muitos são orientacionais (na medida em que
mapeiam orientação de esquemas imagéticos). (LAKOFF e JOHNSON, 1980,
p.265)57
Ainda, foi explorada a ideia de que determinados conceitos decorrem de esquemas
imagéticos, sendo que tais esquemas podem servir de domínio-fonte para a correspondência
metafórica (LAKOFF, 1987). À vista disso, “os esquemas imagéticos são estruturas de
conhecimento que emergem diretamente da experiência corpórea pré-conceptual” (FERRARI,
2010, p.99), sendo que estas estruturas derivam de experiências cotidianas. Por isso, salienta-se que
uma das características da metáfora é a sua natureza enciclopédica e experiencial, que está
relacionada aos contextos comunicativos apreendidos durante a vida.
Metodologia
A pesquisa tem por objetivo identificar e analisar (à luz da teoria da Metáfora Conceptual)
metáforas conceptuais e expressões metafóricas utilizadas para autodefinição por blogueiras em
blogs relacionados ao contexto geral “gordinha”, tratando de temas como excesso de peso, forma e
aparência física, alimentação e dietas. Como hipótese, as pesquisadoras cogitaram encontrar
57 The division of metaphors into three types — orientational, ontological, and structural — was
artificial. All metaphors are structural (in that they map structures to structures); all are ontological (in that
they create target do - main entities); and many are orientational (in that they map orientational image-
schemas).
regularidades na autodefinição tanto da aparência física quanto do comportamento dessas
blogueiras, via metáforas estruturais, revelando certo grau de convencionalidade ao tratarem da
autoimagem. Com isso, a metodologia que norteia este estudo evidencia os aspectos sócio-
históricos e culturais envolvidos nos domínios linguísticos dos falantes de uma determinada região.
Para a coleta dos dados, inicialmente fez-se uma leitura das postagens de treze blogs. Destes,
foram selecionados os quatro nos quais foram encontrados os maiores números de ocorrências de
metáforas de autodefinição (Ex.: Eu sou um bolo fofo.). Todos os blogs têm, assim, aspectos
importantes em comum: através deles, suas autoras relatam suas experiências com os temas citados,
revelando a intenção de buscar, atingir e manter uma forma física considerada ideal, ou seja, ser
magra.
A observação inicial dos blogs selecionados revelou o uso constante de expressões
metafóricas abordando relatos da vida diária. Até a elaboração do presente texto, os quatro blogs
continham 1621 postagens, que foram lidas em sua totalidade, e das quais foram extraídas as
expressões metafóricas, um total de 40 dados. Em seguida, fez-se a leitura atenta e minuciosa dos
dados, considerando o contexto em que ocorreram. Estes foram inicialmente categorizados de
acordo com sua relação com aparência física ou comportamento. Em seguida, passou-se à
formulação das metáforas conceptuais correspondentes, discutindo-as em articulação com a base
teórica.
Na seção a seguir, passa-se à análise da referida peça à luz do referencial teórico.
Da teoria à análise
O recorte escolhido para a análise deste artigo foi guiado pela leitura e busca minuciosa de
expressões metafóricas atreladas à imagem de si e ao comportamento. Através dessas expressões,
observaram-se os usos e efeitos de sentido que eram atribuídos pelas autoras na escrita dos blogs.
A partir do levantamento e observação das construções linguísticas, foram identificadas
algumas expressões metafóricas recorrentes como: “sou uma formiga” e “estou uma bola”, que
permitiram buscar outras construções que estivessem relacionadas às metáforas conceptuais
encontradas. O uso da expressão metafórica “sou uma formiga” remete a um tom crítico quanto ao
seu desejo de comer doces, enquanto que “estou uma bola” relaciona-se ao formato corporal
arredondado que a autora do blog se atribui.
Desta forma, no que se refere à imagem de si, alguns padrões foram identificados. A
classificação das expressões metafóricas considera o contexto em que estão inseridas. O QUADRO
158
, a seguir, sistematiza os achados:
QUADRO 1: Expressões metafóricas relacionadas à imagem de si59
:
Expressões metafóricas
Positivas Negativas Forma arredondada
Eu sou uma diva! [...] estou um trapo! Estou uma bola de tão
gorda.
[...] sou praticamente aquela
última coca-cola gelada no
deserto.
[...] estou um ogrozinho
[...] a bolinha-fofa que
estou.
Estou uma bola de tão
gorda.
[...] estou uma porpeta!
Estou jacando. [...] eu sou Miss Coxinha
As expressões metafóricas relacionadas à aparência física foram classificadas em três
categorias. Foram identificadas expressões que refletem uma postura positiva em relação à imagem
de si. Na construção “Eu sou uma diva!”, a autora equipara-se a uma deusa, uma figura feminina
muito bela e formosa. Na construção “sou praticamente aquela última coca-cola gelada no deserto”,
fica evidente o sentimento de autovalorização que, inserido em seu contexto, relaciona-se à beleza
física. Assim, são os atributos de deusa e o caráter de exclusividade, respectivamente, as
características dos domínios-fonte mapeados para a definição do domínio-alvo.
Também foram encontradas expressões metafóricas que refletem uma postura negativa em
relação à autoimagem. “Estou um trapo!”, “estou um ogrozinho”; “estou uma bola de tão gorda” e
“estou jacando” revelam insatisfação com a aparência física na medida em que projetam no
domínio-alvo aspectos ruins (a aparência enxovalhada do trapo; a feiura do ogro; a circunferência
da bola; a forma da fruta).
Foram identificadas, ainda, expressões metafóricas relacionadas às formas arredondadas do
corpo. Em “estou uma bola de tão gorda” e “a bolinha fofa que estou”, é o formato arredondado da
bola que é projetado para a definição do sujeito que se concebe como gordo. Já em “estou uma
porpeta!” e “eu sou Miss Coxinha”, além do formato arredondado, é a própria comida que contribui
para essa definição.
58 O Quadro sintetiza as expressões metafóricas encontradas. Algumas delas repetiram-se.
59 A apresentação dos dados obedece a forma de escrita utilizada pelas autoras. Por isso, algumas
expressões aparecem grafadas com letras maiúsculas e pontuação diferenciada.
A partir da identificação, classificação e análise dos sentidos das expressões metafóricas
estudadas, foi possível chegar à metáfora conceptual correspondente. Entende-se que a formulação
adequada seja SUJEITO É FIGURA, na medida em que aquilo que domínio-fonte fornece ao
domínio-alvo, o sujeito que se autodefine via expressão metafórica, é a sua forma exterior, seu
formato ou imagem, o delineamento de limites físicos e superfície.
No que se refere à autodefinição do sujeito através de seu comportamento, foram
encontradas algumas expressões metafóricas, todas consideradas em seus contextos. O Quadro 260
,
a seguir, apresenta os resultados.
QUADRO 2: Expressões metafóricas relacionadas ao comportamento61
:
Expressões metafóricas
Avaliação positiva Avaliação negativa
Em relação ao consumo de
comida
Estou ligada no 220!!!! [...] quase um cupim
ambulante.
Sou uma fraude!
[...] estou a todo vapor, gás
total [...]!
Sou muito formiga!
(formigona)
[...] estou atolada até o pescoço.
SOU MAIS MACHO QUE
MUITO HOMEM.
Eu estou uma draga! [...] eu sou uma palhaça!
Já sou palhaça e malabarista [...].
As expressões metafóricas encontradas mostram que o sujeito se define através de posturas
positivas e negativas. Quando se revela uma avaliação positiva, o sujeito se define através das
expressões “ligada no 220”; “a todo vapor, gás total” e “macho”. Assim, para a autodefinição, toma
do domínio-fonte, respectivamente, as características de energia; atividade e agitação; de valentia e
coragem.
Quando se revela uma avaliação negativa, os dados foram categorizados considerando-se o
fato de haver ou não, no contexto, referência ao comportamento ligado ao consumo de comida.
Salienta-se que todas as vezes em que veio à tona o assunto comida, a autodefinição foi negativa.
Assim, as expressões metafóricas encontradas foram “sou praticamente um cupim ambulante”; “eu
estou uma draga”; “sou uma formiga (formigona)”. As características projetadas no domínio-alvo
relacionam-se à maneira como o sujeito que se define lida com a comida. No primeiro caso, é ato de
60 O Quadro sintetiza as expressões metafóricas encontradas. Algumas delas repetiram-se.
61 A apresentação dos dados obedece a forma de escrita utilizada pelas autoras. Por isso, algumas
expressões aparecem grafadas com letras maiúsculas e pontuação diferenciada.
devorar seu alimento até destruí-lo ou descaracterizá-lo; no segundo, é o ato de consumir grande
quantidade de uma só vez; no terceiro, é a predileção por doces, comumente associada à formiga.
No que se refere às expressões metafóricas em que constam avaliações negativas de si,
porém não ligadas ao consumo de comida, foram encontradas “sou uma fraude”; “estou atolada até
o pescoço”; “eu sou uma palhaça!” e “já sou palhaça e malabarista”. As características projetadas
no domínio-alvo são: a enganação promovida pela fraude; a falta de alternativas de quem está
atolado até o pescoço; o estar à mercê do riso alheio (atributo da palhaça) e de ser capaz de oferecer
divertimento aos outros (atributo do malabarista).
Analisados os sentidos das expressões metafóricas que definem o sujeito através de seus
comportamentos, chegou-se à formulação da metáfora conceptual correspondente: SUJEITO É
AÇÃO. Em todos os casos, o sujeito se define por aquilo que ele faz, a maneira como age, seja em
relação ao consumo de comida (alguém que destrói o alimento; que consome grandes quantidades;
que prefere alimentos tidos como “engordantes”), seja em relação a outros aspectos (agitação e
atividade; coragem e valentia; capacidade de enganar, de proporcionar aos demais diversão e riso).
Os resultados apontam, portanto, para mapeamentos do domínio-fonte para o domínio-alvo
(LAKOFF e JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1993; KÖVECSES, 2010) que constroem a
autodefinição do sujeito. As avaliações tanto da aparência física quanto do comportamento, via
expressões metafóricas, são muito reveladoras. Primeiramente, deve-se lembrar de que um dos
princípios fundamentais dos estudos em LC postula que a cognição é corporificada, no sentido de
que é o corpo que define as possibilidades de contato com o mundo de um modo geral. Nessa
perspectiva, o corpo do sujeito mostra-se presente na autodefinição. Foram encontradas expressões
metafóricas ligadas à aparência física – especialmente “ogrozinho”, “porpeta”, “coxinha” –, em que
as formas relacionam-se com uma configuração corporal mais robusta e arredondada, com
conotação negativa. Nos dois últimos exemplos, é a própria comida que o sujeito come que lhe
fornece atributos definidores. Nesse sentido, a metáfora conforme Silva (2006) e Yu (2008),
caracteriza-se pela forte relação com o corpo, a sociedade e a cultura, já que a gastronomia de um
modo geral é essencialmente cultural.
Pode-se afirmar que esse dado sociocultural se revela por dois aspectos: o primeiro diz
respeito à repetição das ocorrências, visto que diversas vezes os sujeitos se definiram como
“formiga”, por exemplo, o que mostra o quanto certas expressões metafóricas são já consolidadas
pelo uso, convencionalizadas pela repetição. Além disso, tanto avaliações positivas quanto
negativas, no que diz respeito à aparência física e ao comportamento, apontam para sentimentos de
autoafirmação ou reprovação também presentes na cultura ocidental. Assim, a mulher que se insere
no contexto “gordinha”, para se autoafirmar, define-se como uma diva, como a última Coca-cola
gelada no deserto, etc. Essa mesma mulher, quando reprova sua aparência, se define como um
trapo; um ogro; uma bola, apontando para uma visão também já consolidada dos gordos em geral.
Quanto ao comportamento, ou mostra-se decidida e motivada (ligada no 220, a todo vapor, gás
total) em contextos relacionados a projetos de emagrecimento; ou mostra-se indignada com sua
falta de controle, definindo-se como cupim; fraude; draga, etc. Essas conceptualizações são
convencionais, no sentido de que revelam a ideologia e o modo de ver o mundo de um determinado
grupo de pessoas (LAKOFF e JOHNSON, 1980).
Considerações Finais
O presente trabalho tinha por objetivo analisar a utilização de expressões metafóricas e das
respectivas metáforas conceptuais ligadas à autodefinição em postagens de blogs contendo a
temática “gordinha”. Os dados coletados revelaram posturas positivas e negativas tanto em relação
à aparência física quanto ao comportamento. Tais dados permitiram que se formulassem as
metáforas conceptuais SUJEITO É FIGURA e SUJEITO É AÇÃO. Em ambos os casos, a
autodefinição toma do domínio-fonte atributos que auxiliam na conceptualização. Mais do que
localizar expressões metafóricas e apresentar metáforas conceptuais, constatou-se através dos dados
que as metáforas conceptuais estão presentes de maneira inconsciente na mente do sujeito e fazem
parte do caráter dinâmico da linguagem, que se constitui a partir das vivências, das memórias
consolidadas individual e coletivamente, por isso, são também construções culturais.
Referências
EVANS, Vyvyan; GREEN, Melanie. Cognitive Linguistics: An introduction. Hillsdale, NJ and
Edinburgh: Lawrence Erlbaum Associates/Edinburgh University Press, 2006.
FERRARI, Lilian. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.
KÖVECSES, Zoltán. Metaphors: a practical introduction. 2. ed. New York: Oxford University
Press, 2010.
LAKOFF, George. The contemporary theory of metaphor. IN: Ortony, A. Metaphor and tought. 2.
ed. Cambridge: Cambridge University press, 1993.
_____. Women, fire, and dangerous things: What categories reveal about the mind. Chicago:
University of Chicago Press., 1987.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
SARDINHA, Tony Beber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
SILVA, Augusto S. O mundo dos sentidos em português: polissemia, semântica e cognição.
Coimbra: Almedina, 2006.
YU, Ning. Metaphors from body and culture. IN: Gibbs, R. W. The Cambridge handbook of
metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA MIDIÁTICA PARA CRIANÇAS E A VISADA DE
CAPTAÇÃO
Maria Eduarda GIERING62
Resumo: Este artigo trata da divulgação científica destinada a crianças na mídia brasileira.
Estudam-se características linguístico-discursivas de artigos publicados nas versões digitais das
revistas Ciência Hoje das Crianças, Mundo Estranho e do Caderno Folhinha da Folha de S. Paulo.
O objetivo é verificar como se apresentam títulos e subtítulos e ocorrências na introdução do corpo
do texto que evidenciam a preocupação do produtor em aproximar-se do leitor, a fim de informar ou
explicar questões do mundo sob a perspectiva científica. Adotam-se, para análise, a noção de
contrato de comunicação midiática e a ideia de restrições discursivas impostas pelo contrato de
midiatização da ciência (CHARAUDEAU, 2008).
Palavras-chave: Divulgação científica. Discurso. Contrato de comunicação. Informar. Captar
Abstract: This paper deals with scientific propagation intended to children in the Brazilian media.
Linguistic-discursive characteristics of texts published in the digital versions of the magazines
Ciência Hoje da Crianças, Mundo Estranho and Folha de S. Paulo are studied. The aim is to verify
how headings and subheadings are presented, as well as aspects in the text body introduction which
evidence the producer’s concern about approaching the reader, in order to inform or explain world
issues under a scientific perspective. The notion of mediatic communication contract and the idea of
discursive restrictions imposed by the contract of science mediatization (CHARAUDEAU, 2008)
are adopted for the analysis.
Keywords: Scientific propagation.Discourse. Communication contrac. Inform. Catch.
Introdução
A divulgação científica midiática tem conquistado diferentes espaços sociais, inclusive as
escolas, e há um aumento significativo de ações da mídia com o objetivo de aproximar os saberes
produzidos pelas ciências de um público amplo. Nesse contexto, cresceu muito a divulgação
científica publicada na mídia endereçada a crianças. Poucos estudos discursivos, entretanto,
investigam quais as características dessas publicações no Brasil. Com esse intuito, publica-se o
62 Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PPGLA), Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. [email protected]
presente artigo, que se dedica à exposição de resultados de pesquisa sobre divulgação científica em
textos de revistas e cadernos de ciência direcionados aos jovens.
Este trabalho mostra algumas peculiaridades do discurso de midiatização científica dirigido ao
público entre 7 e 12 anos. O corpus, formado por 62 textos de diferentes gêneros discursivos, foi
retirado das revistas eletrônicas Ciência Hoje das Crianças e Mundo Estranho e no caderno
Folhinha do jornal Folha de S. Paulo on-line. O critério básico para seleção dos textos foi
tematizarem a ciência.
Os artigos foram analisados seguindo-se a proposta semiolinguística de Patrick Charaudeau
(2008). Adotou-se especialmente a noção de contrato de comunicação da midiatização da ciência e
a postulação de características peculiares deste contrato, as quais se traduzem em certa organização
discursiva e em procedimentos linguísticos.
A investigação procurou verificar como se revela, em publicações para o público infanto-
juvenil, a dupla finalidade dos discursos de divulgação científica midiática, conforme Charaudeau
(2006), a de informar (fazer saber) e a de captar o leitor (suscitar o interesse), considerando-se o
contrato de comunicação específico da divulgação midiática da ciência (CHARAUDEAU, 2008).
Para isso, estudaram-se características dos títulos e subtítulos e ocorrências na introdução do
corpo do texto que evidenciam a preocupação do produtor em aproximar-se do leitor, a fim de
informar ou explicar questões do mundo sob a perspectiva científica.
O contrato de divulgação científica midiático
É importante neste estudo a noção de contrato de comunicação postulado por Patrick
Charaudeau (2006). Ela pressupõe que todos os indivíduos, ao se comunicarem entre si, levam em
conta os dados da situação de comunicação, que determina a identidade social e psicológica dos
interlocutores. Explica o linguista: “a situação de comunicação é como um palco, com suas
restrições de espaço, de tempo, de relações, de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e
aquilo que constitui o seu valor simbólico” (CHARAUDEAU, 2006, p.67). Indivíduos que
pertencem a um mesmo corpo de práticas sociais constroem um jogo de regulação dessas práticas a
fim de justificá-las e de valorizá-las.
Por meio do contrato de comunicação, os parceiros de uma troca de linguagem reconhecem-
se um ao outro com os traços identitários que os definem como sujeitos desse ato (identidade),
reconhecem o objetivo do ato que os sobredetermina (finalidade), entendem-se sobre o que constitui
o objeto temático da troca (propósito) e consideram a relevância das coerções materiais que
determinam esse ato (circunstâncias).
Focalizando o discurso de divulgação científica, Charaudeau (2008) salienta, em seus
estudos sobre midiatização da ciência, que esse discurso aparece em situações de comunicação
didáticas ou midiáticas. Por isso é fácil compreender que ele toma emprestado características de
uma e de outra, e, às vezes, das duas ao mesmo tempo. Explica o linguista:
É preciso distinguir aquilo que se inscreve numa situação de ensino daquilo que se
inscreve numa situação midiática. Pode-se até mesmo dizer que, no primeiro caso,
ele se confunde com o discurso didático, partilhando da mesma finalidade, das
mesmas posições identitárias dos sujeitos e do mesmo tipo de tema. Em
contrapartida, aparecendo em uma situação midiática, o discurso de divulgação tem
características próprias (CHARAUDEAU, 2008, p.17).
Em vista disso, Charaudeau propõe a distinção entre discurso de divulgação científica e
discurso de midiatização científica, sustentando que o primeiro, ao passar pelas mídias de
informação
não é a tradução de um discurso científico de origem, escrito por autores
especialistas em uma disciplina endereçada aos pares, mas um discurso construído
pelo órgão midiático em função da finalidade de seu contrato de comunicação
(CHARAUDEAU, 2008, p.19).
Em consequência, é possível determinar as situações específicas como variantes da situação
global midiática, caso se leve em conta a identidade dos interlocutores, cuja especificidade
repercute sobre a finalidade, o que privilegiará mais a credibilidade ou a captação.
As características particulares do discurso de divulgação científica em situação midiática,
conforme Charaudeau (2008, p.12), podem ser verificadas por meio dos componentes do contrato
de comunicação que se estabelece na interação. A identidade dos parceiros em relação à posição de
saber, contrariamente àquela do discurso científico, é acentuadamente assimétrica. Quanto ao tema
do discurso de midiatização da ciência, embora ele corresponda a um objeto de saber como nos
discursos científico e didático, vem, muito frequentemente, desatrelado da disciplina a que
normalmente se liga, pois se supõe que o público não possua um corpo de referências. Isso produz
um discurso explicativo sem possibilidade de estabelecer as marcas do domínio de conhecimento ao
qual ele pertence, destaca o linguista (CHARAUDEAU, 2008).
As circunstâncias materiais são constituídas pelos suportes por meio dos quais se faz a
transmissão da informação. No caso do corpus em estudo, trata-se de suportes em que se realiza o
escrito-visual, circunstância que coloca em cena a informação de maneira diferente da que seria se o
suporte fosse audio-oral, como é o caso do rádio, ou audiovisual, como a televisão.
Em relação à finalidade do discurso de divulgação científica midiática, ele apresenta uma
dupla finalidade discursiva, a de informar e a de captar o leitor (suscitar seu interesse), “numa
relação contraditória”, segundo Charaudeau (2008, p.17). Assim, o discurso de midiatização da
ciência dá a conhecer ao público-leitor fatos já estabelecidos, o que faz com que o discurso
produzido procure ser explicativo (discurso didático), ao mesmo tempo em que busque produzir
suas próprias estratégias de captação (discurso midiático). Para Charaudeau (2008), a credibilidade
do discurso de divulgação científica midiática dependerá do modo como se dá o manejo dessas
estratégias.
Devido à necessidade de satisfazer a condição de captação midiática, o objeto de saber dos
artigos de divulgação científica é transformado num acontecimento e de imediato tratado segundo
as mesmas estratégias discursivas de dramatização, como um acontecimento qualquer da mídia em
geral. Procede-se, então, conforme Charaudeau (2008, p.19), a uma “dessacralização” do discurso
científico.
As características do contrato de divulgação científica midiática (doravante DCM) se
traduzem em certa organização discursiva e procedimentos linguísticos. Dessa forma, para o
linguista, os discursos DCM se submetem a quatro restrições gerais: de visibilidade, de legibilidade,
de seriedade e de emocionalidade. A restrição de visibilidade é a que leva a mídia a dramatizar os
acontecimentos. A legibilidade se caracteriza pela simplicidade sintática e lexical e pela
figurabilidade63
, que se traduz “nos procedimentos escrito-visuais de composição semiológica
paratextual” (CHARAUDEAU, 2008, p.20). A restrição de seriedade leva o discurso de
midiatização da ciência a se valer de procedimentos que buscam autentificar a instância de
produção: emprego de elementos iconográficos (gráficos, mapas, etc.), da citação, de torneios
metalinguísticos, de modos de organização descritivo e explicativo de discurso, entre outros, a fim
de mediar a passagem do discurso científico para a linguagem cotidiana do leitor. Já a restrição de
emocionalidade é marcada por todo procedimento que busca provocar efeitos afetivos. A opção por
uma organização descritiva e narrativa, por exemplo, pode apresentar a pesquisa científica como
“uma aventura em busca da verdade” (CHARAUDEAU, 2008, p.21), assim como o uso de um
vocabulário metafórico e metonímico.
O contrato midiático que envolve o corpus desta pesquisa remete fortemente à condição de
captação. Constata-se que os textos colocam em cena a informação de tal forma que essa participe
de um espetáculo que, como todo espetáculo, deve sensibilizar o leitor, conforme prevê Charaudeau
(2008) ao tratar dos discursos DCM.
Nos artigos de divulgação científica para crianças a condição de captação se apresenta de
forma contundente, pois o jornalista ou o cientista que escreve para essa faixa etária está numa
situação bastante desfavorável em relação ao seu leitor. Se o adulto precisa ser conquistado, mais
ainda essa necessidade se impõe quando o leitor é uma criança, principalmente ao se considerar que
63 O termo “figurabilidade” é tomado de Jacobi (2005, p.66), que assim denomina as características
iconográficas abundantes nos documentos de divulgação científica.
as temáticas ligadas ao domínio das ciências (devido muito à forma como a ciência é tratada
normalmente nas escolas) são de antemão alheias aos interesses imediatos dos leitores infantis, sem
falar das dificuldades que se colocam em relação ao léxico próprio do discurso científico ou à
complexidade do tema envolvido. A instância midiática, devido a essa delicada situação, conforme
Charaudeau (2006, p.92), acha-se “condenada”, mais do que nunca, a “procurar emocionar seu
público, a mobilizar sua afetividade, a fim de desencadear o interesse e a paixão pela informação
que lhe é transmitida”.
A pesquisa
Considerando essa base teórica semiolinguística, investigou-se o corpus para identificar
elementos do contrato de comunicação. Das estratégias textuais-discursivas, estudaram-se os textos
quanto às escolhas dos produtores textuais por formas de aproximação do leitor leigo. Neste artigo,
enfocamos as formulações de títulos, subtítulos e partes do corpo do texto.
Características das publicações dirigidas ao público infantil
O corpus dirigido às crianças se caracteriza por diferentes visadas: fazer-crer (2 textos),
fazer-saber (20 textos) e fazer-compreender (35 textos).
Os artigos de fim discursivo fazer-compreender focalizam fenômenos do cotidiano do leitor
ou fatos curiosos cujas características ou funcionamento são desconhecidos dele. Os fenômenos são
desvendados pelo texto, fazendo o leitor compreender o “enigma” (Por que temos que tomar
banho?/ Por que os paleontólogos adoram encontrar excrementos petrificados de animais?). Como
afirma Coltier (1986, p.8) sobre a explicação, neste caso “o questionamento é ocasionado pela
vontade de ir além das aparências, lançando-se em busca de informações a respeito de um
fenômeno que não se deixa decifrar imediatamente”. O leitor, a partir da explicação, encara o
fenômeno sob uma perspectiva diferente. Saliente-se que os textos de fim discursivo fazer-
compreender, quanto a sua composição, organizam-se de acordo com a sequência explicativa (fase
de questionamento – fase de resolução – fase de avaliação), conforme Adam (2011).
Nos artigos de fim fazer-saber, o produtor informa sobre os resultados de uma pesquisa ou
descoberta (Sabia mais sobre o estudo que encontrou no Brasil dez espécies de fungo que produzem
luz!/ Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos atrás), valendo-
se da estrutura da notícia. Aqui, o modo de organização narrativo predomina na composição do
discurso.
A seguir, apresentam-se exemplos de estratégias linguístico-discursivas predominantes no
corpus. Nessa exposição, após cada exemplo, acrescenta-se o fim discursivo almejado pelo texto, a
fim de esclarecer o que estava na mira do produtor em termos de informação ou explicação
científica. Ei-los:
- Títulos que remetem a conhecimentos populares:
(a) Cara de um, focinho do outro (dito) (FIGUEIRA, CHC64
)
Fim discursivo: divulgar pesquisa que deu origem ao primeiro cão clonado do
mundo.
(b) Chove chuva, chove sem parar (música) (FIGUEIRA, CHC)
Fim discursivo: divulgar pesquisa que aponta o lugar mais chuvoso do Brasil.
(c) Espelho, espelho meu (literatura infantil) (MATTOS, CHC)
Fim discursivo: divulgar pesquisa que comprovou que os elefantes se reconhecem
diante do espelho.
(d) Na segunda divisão (futebol) (LOPES, FSP)
Fim discursivo: explicar por que Plutão perdeu o título de planeta
- Títulos (ou subtítulos) com questionamento – direto ou indireto –, correspondendo
à fase de questionamento do par problema-solução dos textos cujo fim é explicar um fato ou
fenômeno do mundo pelo viés da ciência:
(a) Por que o biscoito fica mole? (SILVA, CHC)
Fim discursivo: explicar o processo químico que faz com que os biscoitos amoleçam
(c) Por que os paleontólogos adoram encontrar excrementos petrificados de
animais? (SOUTO, CHC)
Fim discursivo: explicar o objeto e a metodologia de estudo dos paleontólogos
(d) Por que o bafo é quente e o sopro é frio? (VASCONCELOS, ME)
Fim discursivo: explicar o processo biofísico do bafo e do sopro
(e) Por que as girafas fedem? (LOPES, CHC)
Fim discursivo: explicar a função biológica do mau cheiro das girafas
(f) Saiba como várias espécies produzem som e por que só alguns podem ser
ouvidos pelo homem (MEWS, C.M.; SZINWELSKI – CHC)
Fim discursivo: informar sobre como várias espécies de insetos produzem sons e o
porquê de apenas alguns se tornarem audíveis pelo homem.
64 Na exposição dos exemplos, para melhor identificação, após o sobrenome do autor, faz-se
referência ao veículo do qual foi extraído: Ciência Hoje das Crianças (CHC), Mundo Estranho (ME), Folha
de S. Paulo (FSP).
- Títulos com frases exclamativas que afetam emocionalmente o leitor
(a) Não pise no co...prólito! (SOUTO, CHC)
Fim discursivo: explicar o objeto e a metodologia de estudo dos paleontólogos
(b) Descoberta de gente grande! (CHAGAS, CHC)
Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na
Ilha do Marajó
(c) Estrelas não caem! (GONÇALVES, CHC)
Fim discursivo: explicar como os meteoros se desintegram ao entrar na superfície
terrestre
(d) Raios! (MAGALHÃES, CHC)
Fim discursivo: explicar o que são os raios e como se proteger deles.
- Subtítulos que enfocam uma dramatização, seguido de uma narrativa
(a) Senhoras e senhores, com vocês o papa-vento, um novo lagarto descoberto aqui
no Brasil! (MATTOS, CHC)
Fim discursivo: divulgar a descoberta de um tipo de lagarto no serrado brasileiro.
(b) Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos
atrás! (CHAGAS, CHC)
Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na
Ilha do Marajó
(c) Com vocês...um dinossauro com penas e plumas! (MOLICA, CHC)
Fim discursivo: divulgar a descoberta no Brasil de um fóssil que apresenta tanto
características de aves quanto de dinossauros.
(d) Naves invadem solo marciano (NOGUEIRA, FSP)
Fim discursivo: informar sobre envio de robôs ao planeta Marte.
- Subtítulos com o emprego do verbo no modo imperativo, implicando especialmente uma demanda
cognitiva do leitor:
(a) Entenda o que são os meteoros e como eles se desintegram ao entrar na
atmosfera (GONÇALVES, CHC)
(b) Descubra como a nata se forma e do que ela é feita (SILVA, CHC)
(c) Aprenda mais sobre as funções desse ato (piscar) que não serve só para
paquerar (CORREA, CHC)
- No corpo do texto, introduções que caracterizam uma fase de “preparação” do leitor, cujo
objetivo é fazê-lo interessar-se pelo tema ou pela leitura do texto por meio de:
(a) Relato de história pessoal
Estrelas não caem!
Entenda o que são os meteoros e como eles se desintegram ao entrar na atmosfera
Quando morava em S. Paulo e acordava cedo, bem de madrugada, lá pelas 5h30,
para correr um pouco sem o intuito de competir, eu reparava muitas vezes, quando
olhava para o céu, que de repente uma estrela “caía”. E eu, todo contente, na
hora fazia um pedido: na maioria das vezes, o meu desejo era ver outro desses
objetos.
Aí vinha-me uma pergunta: por que uma estrela cai? O que são as “estrelas
cadentes”? Uma estrela que não aguentou seu peso e de repente caiu? Ou será
que Deus pegou uma estrela, pois estava sobrando no céu, e a “jogou”? Ou talvez
fosse um controle de população de estrelas, para não ficarem muitas por aí
atrapalhando as constelações… É só de vez em quando que vemos umas dessas
cruzar o céu… Mas será que são mesmo estrelas? E o nosso Sol, será que um dia
vai “cair”? [...] (GONÇALVES, CHC)
Fim discursivo: explicar como os meteoros se desintegram ao entrar na superfície
terrestre
(b) Relato de história em que o leitor é colocado como protagonista:
Descoberta de gente grande!
Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos
atrás
Imagine a cena: você está brincando com seus amigos em um rio, quando encontra
alguns pedaços de cerâmica com desenhos indígenas. Como eles parecem meio
velhos e desgastados para você dar de presente à sua mãe, a melhor opção, à
primeira vista, é devolvê-los ao lugar de onde vieram. Você faz isso várias e várias
vezes e já está até ficando intrigado com as descobertas. Resolve, então, levar os
pedacinhos para a escola.
Desconfiado, o diretor pede para que você comece a guardar tudo o que pegar nos
rios. Pouco tempo depois, um geólogo (profissional que estuda a origem e
constituição da Terra) passa por lá e descobre que os pequenos pedaços faziam
parte de urnas mortuárias ‐ usadas para enterrar os mortos ‐ produzidas por
índios de centenas de anos atrás! Parece um filme ou história em quadrinhos? Mas
é verdade! Aconteceu com alguns meninos da ilha de Marajó, no Pará, que
costumavam brincar às margens do rio Araramã. [...] (CHAGAS, CHC)
Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na
Ilha do Marajó
(c) Questionamento da validade de saberes anteriores:
Por que conhecer os dinos?
Estudar essas criaturas hoje ajuda a entender o mistério da vida no planeta em
que vivemos
Tá bom, dinossauros são legais, impressionantes, mas não passam de um monte de
ossos velhos, certo? Bem, até alguns anos atrás, era mais ou menos isso, sim. Mas,
hoje, os pesquisadores olham para os dinos de outro jeito. Estudar esses bichos
extintos é uma das tarefas mais emocionantes da ciência.
[...] (ANGELO, FSP)
Fim discursivo: explicar porque é importante para a ciência estudar os dinossauros
(d) Referência a temas e situações supostamente já conhecidas do leitor:
Cara de um, focinho do outro
Conheça Snuppy, o primeiro cachorro clonado do mundo
Snoopy, você conhece: é o cachorro do Charlie Brown, um beagle que tem como
melhor amigo um pássaro chamado Woodstock. Mas será que já ouviu falar no
Snuppy (repare na grafia diferente do nome)? É provável. Esse simpático filhote
da raça afghan hound virou notícia. Adivinhe por quê! [...] (FIGUEIRA, CHC)
Fim discursivo: divulgar pesquisa que deu origem ao primeiro cão clonado do mundo
Ciência para fazer bolo
Três xícaras de farinha de trigo, três xícaras de açúcar, três ovos, um copo de
leite, uma colher de manteiga e uma colher de fermento. Bata a manteiga com o
açúcar até formar uma pasta. Depois, acrescente as gemas. Vá adicionando a
farinha, o fermento e o leite sem parar de mexer. Como última etapa, bata as
claras em neve e misture tudo. Coloque a massa em um tabuleiro e leve-a ao forno
pré-aquecido. Em alguns minutos você poderá saborear um apetitoso bolo! Mas
como foi que aquela massa viscosa mudou de aparência, transformando-se numa
delícia de dar água na boca? [...] (MAGALHÃES, CHC)
Fim discursivo: explicar o processo químico que transforma ingredientes em um bolo
- Avaliações emotivas de um objeto ou ser ou de uma ação, com frequente uso de frases
exclamativas:
(a) Com uma bússola no bico
[...] É, os pombos-correios são mesmo bichos incríveis. Vai dizer que você não
ficou com vontade de trocar seu carteiro ou e-mail por um animal desses?!
(PEGORIM, CHC)
Fim discursivo: divulgar pesquisa que descobriu como os pombos-correios se
orientam
(b) Por que conhecer os dinos?
Tá bom, dinossauros são legais, impressionantes, mas não passam de um monte de
ossos velhos, certo? Bem, até alguns anos atrás, era mais ou menos isso, sim. Mas,
hoje, os pesquisadores olham para os dinos de outro jeito. Estudar esses bichos
extintos é uma das tarefas mais emocionantes da ciência. (ANGELO, FSP)
Fim discursivo: explicar por que é importante para a ciência estudar os dinossauros
(c) Não pise no co…prólito!
[...] Aqui no Brasil, já foram encontrados vários coprólitos de diferentes animais,
como dinossauros e mamíferos extintos. Eles variam de um a 20 centímetros e têm
as mais variadas formas e cores. Agora, abra o olho para não pisar num coprólito!
Se encontrar algum por aí, anote o local onde ele está enterrado e avise a um
paleontólogo. Acredite, ele vai adorar! (SOUTO, CHC)
Fim discursivo: explicar o objeto de estudo e a metodologia de pesquisa dos
paleontólogos
- Emprego do pronome você, visando ao reconhecimento do leitor como alvo do apelo do produtor:
(a) Vamos supor que você seja contratado para investigar a vida de algum animal.
Qual seria seu primeiro passo? Procurar pegadas? Ossos? Se você permite que eu
dê uma sugestão... Que tal tentar encontrar os excrementos desses animais? É isso
mesmo, o cocô! (SOUTO, CHC)
(b) […] Se, depois de ouvir essa história, você ficou interessado em procurar esse
pesquisador para clonar o seu cachorro... Esqueça! […] (FIGUEIRA, CHC)
- Uso do recurso do humor no contexto das vivências infato-juvenis
(a) Por que as girafas fedem?
[…] Mas lembre-se bem: o mau-cheiro das girafas pode trazer benefícios para
elas, mas isso não significa que vá fazer bem pra você também! Portanto, nem
adianta dizer pra sua mãe que leu no site da Ciência Hoje das Crianças que o
fedor protege, porque o exemplo das girafas não é desculpa pra fugir do banho...
(LOPES, G., CHC)
Fim discursivo: explicar a função biológica do mau cheiro das girafas
(b) Por que piscamos?
Aprenda mais sobre as funções desse ato que não serve só para paquerar
[…] Se você vai responder que pisca para paquerar, saiba que existem outros
motivos que justificam esse abrir e fechar de olhos que realizamos naturalmente.
Com esse simples reflexo, lubrificamos nossos olhos e os protegemos de corpos
estranhos presentes no ar. (CORREA, CHC)
Fim discursivo: explicar as funções biológicas do reflexo de piscar
Observando-se os trechos transcritos dos artigos destinados ao público infantil, nota-se que
os produtores, especialmente os da Ciência Hoje das Crianças, recorrem a variadas estratégias de
aproximação do leitor, nas quais buscam, antes de mais nada, despertar-lhe o interesse pelo tema.
Às vezes, inclusive, implicam diretamente seu destinatário por meio de marcas linguísticas
específicas. Destaca-se também a recorrência de frases interrogativas e exclamativas, que objetivam
principalmente a demanda de informação ou de conhecimento. Salienta-se ainda a preocupação em
assinalar avaliações emotivas de ações empreendidas pelo cientista ou dos objetos que investiga.
Considerações finais
É importante considerar que prevalece atualmente a ideia, como destaca Jacobi (2005), de
que os leitores não são absolutamente ignorantes em relação aos temas postos. Na verdade, segundo
esse linguista, os textos de divulgação científica costumam estabelecer dois modos de relação com
os saberes anteriores dos leitores. “Eles buscam, por um lado, apoiar-se sobre as representações dos
destinatários e, por outro, confirmar ou contradizer essas representações” (JACOBI, 2005, p.33).
Para Jacobi, a divulgação científica estabelece um jogo ambíguo frente às representações populares:
“De um lado, ela pretende destruí-las ao afirmar que elas são errôneas; de outro, a divulgação
científica não se priva de se apoiar nelas, na verdade, de se utilizar delas nas comparações,
metáforas, no recurso de registro familiar da língua” (JACOBI, 2005, p.35). É o que se constata nas
opções de aproximação projetadas pelos produtores nos artigos do corpus.
Quando se relacionam as estratégias descritas às restrições do contrato de midiatização da
ciência postulados por Charaudeau, verifica-se que a restrição de emocionalidade se impõe em
maior grau.
Nos artigos DC dirigidos ao público adulto (GIERING, 2008), a relação com o leitor se dá
diferentemente. Por exemplo, o produtor raramente implica o leitor por meio do pronome você, ou
pelo uso de verbos no imperativo. Ele raramente faz uso da primeira pessoa para o relato de uma
experiência pessoal, tampouco assinala no texto avaliações emotivas de um objeto ou ser ou de uma
ação, como acontece no corpus infantil. Na verdade, nos artigos endereçados ao público adulto, o
discurso acadêmico exerce influência mais forte do que nos artigos para crianças, embora também
se observe a pressão da condição de captação, como não poderia deixar de ser já que se trata de
discurso midiático. Mas a condição de seriedade prevalece, e informação é privilegiada.
Ao se comparar o corpus de artigos dirigidos a adultos com o direcionado ao público
infantil, constata-se que escrever sobre ciência para crianças “dá mais trabalho” ao produtor, pois
ele precisa mobilizar estratégias peculiares, muitas delas dispensáveis quando se trata de público
adulto. É o caso das avaliações emotivas de objetos ou fenômenos do mundo natural ou de ações
investigativas de cientistas. Esse tipo de estratégia assim como as demais descritas na análise se
justificam pela necessidade de captar o leitor para ganhar credibilidade. Charaudeau (2010) explica:
É preciso que os sujeitos falantes ganhem em credibilidade e saibam captar o
interlocutor ou o público. Ele65
é, então, levado a apostar na influência, se valendo de
estratégias discursivas em quatro direções: 1) o modo de estabelecimento de
contato com o outro e o modo de relação que se instaura entre eles; 2) a construção
da imagem do sujeito falante (seu ethos); 3) a maneira de tocar o afeto do outro para
seduzi-lo ou persuadi-lo (o pathos) e 4) os modos de organização do discurso que
permitem descrever o mundo e explicá-lo segundo os princípios da veracidade (o
logos).
Os exemplos demonstram a opção por estratégias que buscam influenciar o leitor, a fim de
provocar-lhe emoção e de seduzi-lo para a leitura do restante do texto. É intuito, além disso,
sensibilizá-lo para os temas científicos, que, afinal, são mostrados à criança como não tão distantes
de seu mundo. Trata-se, segundo Charaudeau (2010), de um processo de dramatização. Destaca-se
também o empenho dos produtores em construir uma imagem de si como alguém que é carismático,
que conhece o mundo do leitor, e que, por isso, merece sua atenção.
Para o produtor do artigo DC midiático dirigido às crianças, o empenho em envolvê-las por
meio de estratégias de captação coloca-se como tarefa crucial, pois as características desse parceiro
exigem escolhas linguístico-discursivas adequadas aos efeitos pretendidos para a satisfação do
princípio de emoção, visando à descrição credível de um mundo inusitado a partir do universo de
conhecimento e de vivência do leitor. O produtor precisa construir uma relação com seu destinatário
em que se coloca como aquele que conhece o mundo de uma perspectiva nova e que convida o
leitor a compreender esse mundo extraordinário e a desvendar ele mesmo seus mistérios.
65 Charaudeau refere-se, aqui, ao enunciador.
Pode-se dizer que a divulgação científica midiática para crianças tem características muito
particulares, constituindo um contrato de comunicação peculiar, de forma a seduzir os pequenos
para o mundo da ciência e seus desafios.
Referências
ADAM. Jean-Michel. A linguística textual. Introdução à análise textual dos discursos. 2. ed. S.
Paulo: Cortez, 2011.
ANGELO, Claudio. Por que conhecer os dinos? Caderno Folhinha. Folha de S. Paulo on line.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/dicas/di21010607.htm Acesso em: 26 nov
2007.
CHAGAS, Catarina. Descoberta de gente grande! Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível
em: http://cienciahoje.uol.com.br/2911 Acesso em: 28 nov 2007.
CHARAUDEAU. Patrick. La médiatisation de la science. Bruxelas: De Boeck, 2008.
______. Discurso das mídias. S. Paulo: Contexto, 2006.
______. O discurso propagandista: uma tipología. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato.
Análises do Discurso Hoje, vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna) 2010, p.57-78.
COLTIER, D. Approches du texte explicatif. Pratiques, Metz, n. 5, p.3-22, sept. 1086. Tradução de
Ignácio Antonio Neis.
CORREA, Beatriz Simões. Por que piscamos? Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível em
http://cienciahoje.uol.com.br/98776. Acesso em: 11 nov 2007.
CUNHA, Adriana Bonomo José Marcos. Ciência Hoje das Crianças on line. Por que temos que
tomar banho? Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/103520. Acesso em: 12 nov 2007.
FIGUEIRA, Mara. Cara de um focinho de outro. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível
em: http://cienciahoje.uol.com.br/3520 Acesso em: 03 dez 2007.
______. Chove chuva, chove sem parar. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível em
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/66118 . Acesso em: 20 nov 2011.
GIERING, Maria Eduarda. Gênero de discurso artigo de divulgação científica para crianças:
estratégias retóricas e estrutura composicional. Investigações (Recife), v. 21, p.241-260, 2008b
GONÇALVES, Diego “Moicano”. Estrelas não caem! Ciência Hoje das Crianças on line.
Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/967 . Acesso em: 26 nov
2007.
JACOBI, Daniel. Les sciences communiquées aux enfants. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 2005.
LOPES, Gisele. Por que as girafas fedem? Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível em:
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/1026. Acesso em: 26 nov 2007.
LOPES, José Reinaldo. Na segunda divisão. Caderno Folhinha. Folha de S. Paulo on line.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/dicas/di02090602.htm Acesso em: 26 nov
2007
MAGALHÃES, Bruno. Ciência para fazer bolo. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível
em: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/1177 . Acesso em: 26 nov 2007.
MAGALHÃES, Bruno. Raios! Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível:
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/2885. Acesso em: 26 nov 2007.
MATTOS, Rosa Maria. Espelho, espelho meu. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível em
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/64455 . Acesso em: 20 nov 2007.
______. Um velho novo lagarto. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível em:
http://chc.cienciahoje.uol.com.br/um-velho-novo-lagarto/ . Acesso em: 21 nov 2007.
MEWS, C.M.; SZINWELSKI, N. Por que alguns insetos cantam? Ciência Hoje das crianças on-
line. Disponível em <http://cienciahoje.uol.com.br/114996> Acesso em: 18 abril 2008.
MOLICA, Júlio. Com vocês... Um dinossauro com penas e plumas! Ciência Hoje das Crianças on
line. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/50289 Acesso em: 12
nov 2007.
NOGUEIRA, Salvador. Naves invadem solo marciano. Caderno Folhinha. Folha de S. Paulo on
line. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/dicas/di07020401.htm . Acesso em: 12
nov 2007.
PEGORIM, Eliana. Com uma bússola no bico. Ciência Hoje das Crianças on line. Disponível
em: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/3247 Acesso em: 20 nov 2007.
SILVA, Joab Trajano. Por que o biscoito fica mole. Ciência Hoje das Crianças on line.
Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/112280 Acesso em: 03 mar 2008.
SOUTO, Paulo Roberto de Figueiredo. Não pise no co...prólito! Ciência Hoje das Crianças on
line. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/2815 . Acesso em: 23 nov 2007.
VASCOCELOS, Yuri. Por que o bafo é quente e o sopro é frio. Mundo Estranho on line.
Disponível em: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/materia_240747.shtml Acesso em: 07
jan 2008.
ESTEREÓTIPOS DO BRASILEIRO EM PIADAS
Ana Cristina CARMELINO66
Resumo: Partindo da premissa de que existe piada de brasileiro, assim como ocorre com algumas
nacionalidades, este artigo objetiva demonstrar que estereótipos ou traços identitários são
construídos pelo (para o) brasileiro nesse tipo de produção textual que envolve o tema e que circula
no Brasil em diferentes mídias (impressa e virtual). O referencial teórico que fundamenta as
análises advém da Análise do Discurso, especialmente a partir das noções de identidade e
estereótipo tratadas por Penna (1997), Possenti (1998, 2010) e Amossy e Pierrot (2001).
Palavras-Chave: Identidade. Estereótipo. Piada de brasileiro.
Abstract: Assuming that there is joke about the Brazilian people, as well as about some other
nationalities, this article aims at demonstrating that stereotypes or identifying features are
constructed by (for) the Brazilian in this type of textual production that involves the theme and
circulates in Brazil in different media (print and virtual). The theoretical framework underlying the
analysis comes from the Discourse Analysis, especially from notions of identity and stereotype used
by Penna (1997), Possenti (1998, 2010) and Amossy e Pierrot (2001).
Keywords: Identity. Stereotype. Joke about the Brazilian people.
Em questão a piada e a nacionalidade
Peculiarmente anônima, a piada caracteriza-se por ser um texto narrativo (seja num diálogo, seja
num par pergunta/resposta) de humor, que traz como traços a brevidade e o final inesperado. De acordo
com Brewer (2000, p.133), tratando de “contingências e tensões da vida comum”, essa produção
aborda “alguma adversidade curiosa, incongruência ou réplica inteligente, personificando e atraindo
um grupo de pessoas de gostos parecidos”.
Além de integrar a cultura mais geral do humor em uma sociedade, constituindo-se (até
certo ponto) um indicador do que nela se entende como engraçado, as piadas – conforme atestam os
estudos de Possenti (1998, 2010) e Carmelino (2009, 2011, 2013) – podem (i) escancarar
comportamentos não admitidos pelas normas sociais explícitas, mas praticados graças à hipocrisia;
66 Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Guarulhos,
São Paulo, Brasil. Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: [email protected].
(ii) dissimular, expressando efeitos de verdade; e (iii) levar a reflexões sobre práticas socialmente
enraizadas na cultura de um povo, sobre modos de ser, sobre representações identitárias.
O fato de as piadas servirem como fonte de veiculação de traços identitários (e serem,
portanto, um material rico para se estudar a representação) não é novidade. Sabe-se que as piadas
frequentemente operam com estereótipos. Essas considerações são claras quando se observa a
forma como algumas nacionalidades são refletidas (simbolicamente) nesse tipo de produção:
a) O francês é sujo
(1) _ Quantas roupas íntimas os franceses têm no guarda roupa?
_ 12. Uma pra cada mês. Fonte: Piadas Engraçadas. Disponível em: <http://www.piadasnet.com/piada771franceses.htm>. Acesso em:
25/09/2014
b) O argentino é arrogante
(2) _ Qual o melhor negócio do mundo?
_ Comprar um argentino pelo que ele vale e depois vendê-lo pelo que ele pensa que vale. Fonte: Clickgrátis piadas. Disponível em:
<http://www.clickgratis.com.br/piadas/nacionalidades/argentino/melhor-negocio.html>. Acesso em: 25 set.
2014.
c) O japonês tem pênis pequeno
(3) _ Por que todo japonês é inteligente?
_ Porque eles têm um micro entre as pernas. Fonte: Piadas curtas. Disponível em: <http://www.piadascurtas.com.br/piadas-de-japones>. Acesso em: 25 set.
2014.
d) O português é burro
(4) _ Por que o Manuel só usa roupa molhada?
_ Porque na etiqueta vem escrito: “lave e use”. Fonte: Amor e paixão. Disponível em: <http://www.amorepaixao.com.br/piadas.htm>. Acesso em:
25 set. 2014.
e) O turco é avarento
(5) _ O cara diz pro turco:
_ Seu Nassib, por que o senhor chama seu filho de Par, se o nome dele é Gaspar?
E o turco:
_ Pra economizar o gás, senhor! Fonte: Piadas do dia. Disponível em: <http://www.piadasdodia.com.br/mostrapiada.asp?id–piada=6265>.
Acesso em 25 set. 2014.
Os exemplos mostram nitidamente traços identitários estereotipados de cada país posto em
questão (França, Argentina, Japão, Portugal e Turquia). Considerando-se que aspectos da
nacionalidade (amparados ou não no real) são comumente explorados em produções humorísticas,
busca-se, neste texto, demonstrar quais traços identitários são construídos para o (pelo) brasileiro
em piadas que envolvem tal tema e que circulam no país em diferentes meios de difusão (mídia
impressa e virtual).
Embora não seja atribuído ao brasileiro um rótulo, nota-se que a população do país é
representada com características que evidenciam aspectos socioculturais. Dados que certamente
refletem manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados no país. Veja-se a piada que
segue:
(6) Incêndio
Incêndio no edifício da multinacional. Executivos de diversos países estão em reunião no
vigésimo oitavo andar. Tomado pelo desespero, o executivo inglês grita, em cima do
parapeito da janela:
_ Pela Inglaterra! E pula.
Momentos após, o executivo alemão entra em pânico também e pula, não sem antes
proclamar:
_ Pela Alemanha!
O executivo brasileiro, ao verificar que ainda há energia elétrica no prédio, lança o seu
brado:
_ Pelo elevador! Fonte: SARRUMOR, L. Mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 1998. p.82.
Nesse exemplo, observa-se que (numa comparação com as outras duas nacionalidades) o
brasileiro é construído como esperto, sagaz (no sentido de ser o mais atento, inteligente), por isso
leva vantagem em relação ao inglês e ao alemão, garantindo-se vivo.
Não há dúvida de que se trata de uma anedota que envolve o brasileiro. Nesse caso (e em
outros do mesmo tipo), tem-se defendido (CARMELINO, 2014) que se está diante de uma “piada
de brasileiro”. A questão parece óbvia, porém não insignificante. Piada de brasileiro pode se referir
a piada contada/criada por brasileiro ou a piada contada/criada por não brasileiros. Na verdade, o
que deve ficar claro aqui é que o importante não é a origem geográfica de quem conta ou cria a
piada, mas o tipo de discurso que nela é veiculado. O que de fato interessa é a posição em relação à
brasilidade que as piadas materializam, ou seja, os discursos aí veiculados.
Como base nisso, o referencial teórico que fundamenta as análises empreendidas, neste
texto, é discursivo. Busca-se discutir o caso das piadas que envolvem o brasileiro especialmente a
partir das noções de identidade (PENNA, 1997), estereótipo (AMOSSY; HERSCHBERG-
PIERROT, 2001) e identidade-estereotipada (POSSENTI, 2010). Dados explorados no item que
segue.
Identidade, estereótipo ou identidade-estereotipada: o caso da piada
Embora abordada por diferentes áreas do conhecimento, a noção de identidade que interessa
às reflexões aqui propostas foi formulada por Penna (1997), que busca atribuir à questão um
tratamento discursivo. Compartilhando do conceito de identidade social proposto por Gumperz
(1982)67
, Penna considera não apenas que a identidade se relaciona aos processos de apreensão do
mundo social e é constituída por meio da linguagem, mas, também, que ela é representada
(imaginária).
Em oposição à proposta de Gumperz – que, além de centrada a uma concepção de
linguagem restrita à interação verbal, limita a pesquisa identitária apenas a traços culturais: o
estudioso entende que a realidade social modifica-se apenas em um contexto marcado por
diferenças culturais, pois estas afetam diretamente o processo comunicativo –, Penna assume a
necessidade de extrapolar elementos que se situam somente em práticas culturais, já que, além
deles, é importante considerar aspectos históricos na questão da identidade.
Assim, ao reformular e ampliar a definição de identidade proposta por Gumperz (1982),
considerando que os traços identitários bem como a representação da própria identidade são
construídos historicamente, Penna delimita seu próprio conceito de identidade social, que, segundo
ela, está ligado à noção de representação e a uma forma de classificação.
Entender a identidade como representação significa considerá-la uma construção simbólica
(imaginária), que – tendo ou não amparo no real – leva em conta aspectos que refletem indivíduos
ou grupos. Tal construção é direcionada de acordo com interesses, valores e referenciais sociais
disponíveis; constitui-se na própria sociedade, ao longo da história, sendo moldada conforme as
características culturais do grupo ou sociedade. Não se trata, contudo, de uma condição, espécie de
essência do indivíduo, da sociedade.
Com relação à forma de classificação, Penna (1997) destaca que o fato de se considerar a
existência de identidades sociais já delimita grupos, cria espaços específicos. Nesse cenário,
percebe-se um jogo de reconhecimento social que leva em conta o valor que é atribuído a uma
determinada classe ou grupo e o caminho para fazer ou não parte dela/dele.
Tal qual a noção de identidade – proposta por Penna (1997) e assumida aqui –, o conceito de
estereótipo também pode ser concebido como social, imaginário, construído. Segundo Amossy e
Herschberg-Pierrot (2001), os estereótipos são “representações cristalizadas, esquemas culturais
preexistentes, através dos quais cada um filtra a realidade que o envolve”68
(p.32 – tradução nossa).
67 Conceito desenvolvido na perspectiva da Sociolinguística Interativa.
68 “Se trata de representaciones cristalizadas, esquemas culturales preexistentes, a través de los
cuales cada uno filtra la realidad del entorno” (p.32)
Definido como uma imagem coletiva, simplificada e rígida (cristalizada) de algo (pessoa,
grupo, assunto) – imagem esta que resulta de expectativas, hábitos de julgamento ou falsas
generalizações recorrentes na sociedade –, o estereótipo geralmente é relacionado à noção de
preconceito, sendo tratado de um ponto de vista negativo.
Retomando-se algumas piadas de nacionalidades mencionadas no início deste texto, nota-se
o rótulo negativo que se instaura em moradores de certos países: o francês é considerado sujo, o
português é tido como desprovido de inteligência, o argentino é mostrado como arrogante.
No entanto, essa não é a única leitura que se faz do termo. Os estereótipos também podem
promover a categorização valorativa (rápida e fácil) de grupos sociais. Segundo Amossy e
Herschberg-Pierrot (2001), que tomam como base os estudos da Psicologia Social, os estereótipos
podem cumprir funções importantes na vida social. Desse modo,
[...] seria um equívoco considerar apenas o lado negativo do estereótipo [...], os
psicólogos sociais reconhecem o caráter inevitável, inclusive indispensável, do
estereótipo, o qual não é apenas uma fonte de erros e preconceitos, mas também
um fator de coesão social, um elemento construtivo na relação do homem consigo
mesmo e com o outro69
(p.47 – tradução nossa).
Como se vê, o estereótipo tem um impacto na identidade social. Ao mostrar uma
categorização valorativa de um grupo, ele pode funcionar como um fator de identificação do
indivíduo com esse grupo: o indivíduo adere ao estereótipo, “expressa de alguma forma
simbolicamente sua identificação a uma coletividade” (p.48 – tradução nossa)70
. Nesse sentido, o
estereótipo é um fator preponderante de identificação do indivíduo com um grupo, e por isso, de sua
própria identidade. É o que se verifica em:
A adesão a uma opinião estabelecida, a uma imagem compartilhada, permite, além
disso, que o indivíduo indiretamente anuncie a adesão ao grupo de que deseja
participar. [...] Ao fazer isso, substitui a tarefa de julgamento pelos modos de
pensar do grupo de que quer fazer parte. Reivindica implicitamente, em troca, o
reconhecimento de seu pertencimento71
(p.48 – tradução nossa).
69 “[…] sería equivocado considerar sólo el lado negativo del estereotipo. [....] los psicólogos
sociales terminan por reconocer el carácter inevitable, e incluso indispensable, del estereotipo, que no sólo es
fuente de errores y de prejuicios, sino también un factor de cohesión social, um elemento constructivo en la
relación del ser humano consigo mismo y con el otro” (p.47) 70
“expresa de algún modo simbólicamente su identificación a uma colectividad” (p.48). 71
“La adhesión a una opinión establecida, una imagen compartida, permite además al individuo
proclamar indirectamente su adhesión al grupo del que desea formar parte. [...] Al hacerlo, sustituye el
ejercicio de su propio juicio por las formas de pensar del grupo al que le importa integrarse. Reivindica
implícitamente como contrapartida el reconocimiento de su pertenencia” (p.48).
Das anedotas citadas, a esperteza do brasileiro pode ser considerada como uma valoração
positiva na representação estereotípica. Outro caso é a piada de japonês. Apesar de posta ao lado de
uma categorização negativa (ter pênis pequeno), a inteligência é um traço explicitamente ressaltado
na construção do japonês (“Por que todo japonês é inteligente?”).
Amossy e Herschberg-Pierrot (2001) assinalam também que, assim como o estereótipo pode
servir para integrar socialmente o indivíduo, ele também pode ser um fator de diferenciação entre
grupos. A partir de uma categoria específica, um grupo distingue o que é dele próprio e o que está
fora dele. Essa consideração se aproxima da de Penna (1997), quando a autora trata da classificação
como um elemento constituinte da noção de identidade.
Esse dado é notável nos discursos em geral, mas adquire maior destaque no discurso
humorístico, tendo em vista que, nesse caso, as marcas estereotípicas pejorativas são
exageradamente assinaladas, constituindo, muitas vezes, a causa do riso. A título de exemplo,
retoma-se o caso do turco, caracterizado nas piadas como avarento, mesquinho (ou, como se diz no
Brasil, “mão de vaca”, “pão-duro”, “canguinho”).
Ainda no que tange à relação entre identidade e estereótipo, especialmente no discurso
humorístico, Possenti (2010) defende a hipótese de que a identidade (ou a representação identitária)
é “sempre representada nas piadas através de estereótipos” (p.39). Nesse sentido, como bem ressalta
o autor, as piadas e anedotas constituem uma forma (extremamente rica) de abordagem da questão
da identidade-estereotipada.
A essas considerações, Possenti acrescenta que as piadas geralmente opõem dois discursos:
um positivo e um negativo. Isso também pode ser visto em relação aos estereótipos. Nas anedotas,
ao lado de um estereótipo básico (assumido pelo grupo), há um oposto (atribuído pelos outros). Os
estereótipos opostos, para o autor, “são construtos produzidos por aquele(s) que funciona(m) como
o(s) Outro(s) para algum grupo” (p.41); trata-se, geralmente, de um simulacro, um efeito necessário
da relação interdiscursiva.
Assim, nas piadas que refletem aspectos da nacionalidade, como as citadas, haveria sempre
discursos e estereótipos em oposição: (1) sujo/asseado; (2) arrogante/modesto, (3) pênis pequeno/
pênis grande/normal, (4) burro/inteligente, (5) avarento/generoso, esbanjador, (6) esperto/bobo.
No entanto, essa relação interdiscursiva geralmente é ofuscada ou apagada, criando-se o
efeito de que “o estereótipo é universal, que não tem condições históricas de produção, ou pelo
menos, que essas condições não incluem as efetivas relações de confronto com uma alteridade”
(POSSENTI, 2010, p.41).
Admitindo-se que as condições para a construção da representação identitária e os elementos
nela articulados estão intimamente vinculados às condições de existência, à cultura, à História e às
relações sociais nas quais o indivíduo (ou o grupo) encontra-se inserido, tanto as considerações
sobre identidade, tecidas por Penna (1997), quanto às sobre estereótipo, tratadas por Amossy e
Herschberg-Pierrot (2001), e as de identidade-estereotipada, refletidas por Possenti (2010), ajudam
a entender melhor os traços identitários do brasileiro que se refletem nas piadas sobre o tema.
Traços identitários estereotipados do brasileiro: um estudo em piadas
A presença do brasileiro em piadas é uma constante. No entanto, não se vê em obras
especializadas e sites de humor o rótulo “piada de brasileiro”, como ocorre com algumas
nacionalidades (“piada de português”, “piada de argentino”, “piada de turco”). A explicação para
isso talvez esteja no fato de que certas nacionalidades veiculam no imaginário um traço identitário
mais saliente (argentino > arrogante; português > burro; turco > avarento), capaz de estereotipá-las.
Embora não haja um estereótipo do brasileiro em piadas, verifica-se que a população do país
é retratada com traços que evidenciam certas marcas socioculturais. Um levantamento feito nesse
tipo de produção humorística revela o brasileiro como: alto, atento, calculista, contador de
vantagem, contraventor, corajoso, corrupto, dissimulado, eficiente (quente) sexualmente,
engraçado (gozador), esperto (saga), folgado, ganancioso, golpista, incrédulo, inteligente,
interesseiro, leva vantagem, malandro, malicioso, não leva desaforo, obcecado por sexo,
oportunista e só pensa em sacanagem (Cf. Carmelino, 2014). Vejam-se algumas dessas
representações nos exemplos que seguem.
(7) Argentino, boliviano e brasileiro
_ Ontem à noite fiz amor com a minha mulher quatro vezes seguidas, disse o argentino e, de
manhã, ela me disse que me amava muito!
_ Ah, ontem à noite fiz amor com a minha seis vezes, disse o boliviano, e de manhã ela fez
um delicioso café da manhã e disse que eu era o homem da vida dela...
Como o brasileiro ficou calado, o argentino perguntou:
_ Quantas vezes é que fez amor com a sua mulher ontem à noite?
_ Uma. Respondeu o brasileiro.
_ Só uma? Exclamou o boliviano. – E de manhã, o que é que ela disse?
_ Fica aí, não para não, que tá muito bom! Fonte: Os Vigaristas. Disponível em: <http: www.osvigaristas.com.br/piadas/argentino-o-boliviano-e-o-
brasileiro-3141.html>. Acesso em: 25 set. 2014.
No caso acima, o brasileiro é construído como um amante fogoso e eficiente. Diga-se mais
disposto sexualmente que outros, no caso o argentino e o boliviano. Se o argentino e o boliviano se
mostram capazes de fazer amor com suas esposas algumas vezes em uma mesma noite (quatro e
seis vezes), o brasileiro surpreende (e supera as expectativas), visto que faz amor apenas uma única
vez com sua mulher, no entanto o ato dura toda a noite.
A eficiência e a disposição sexual do brasileiro, salientadas no final da piada, são atestadas
diretamente pela esposa que diz “Fica aí, não para não, que tá muito bom!”. Nesse sentido, o que
está em jogo para o brasileiro não é quantidade de vezes que se faz amor, mas, sim, a intensidade e
a duração do ato.
Além da brasilidade estar associada ao vigor sexual, nessa piada se depreendem outros
aspectos identitários: a constituição de um brasileiro esperto (que se sai melhor que o argentino e o
boliviano) e, de certa forma, contador de vantagem (dado visto no exagero da duração do ato
sexual, a noite toda). Esses traços constroem para o brasileiro um tipo com características bem
definidas, o estereótipo do “bom de cama”.
(8) Aposta
Próximo a um lago de água geladíssima estavam um brasileiro, um americano e um francês.
Na outra margem, dois amigos conversavam:
_ Eu te dou cem pratas se você conseguir fazer com que aquelas três pessoas pulem nessa
água gelada.
O outro, sem perder tempo, foi logo falar com os três turistas.
Após algum tempo, os três pularam na água.
Aí o outro perguntou.
_ Tudo bem, eu te pago os cem, mas me conta: como você fez pra eles pularem?
_ Fácil! Pro americano, eu disse que era lei. Pro francês, que era moda. E pro brasileiro, eu
disse que era proibido! Fonte: AVIZ, L. As melhores piadas que circulam na internet e as que ainda vão circular. Rio de Janeiro:
Record, 2001. p.57.
Nessa anedota, o brasileiro é mostrado como contraventor (infrator, violador das regras), já
que o motivo que o leva a pular na água gelada é justamente o fato de ser esta uma ação proibida.
Esse texto de humor funciona como uma espécie de arma de denúncia. Busca –
simbolicamente a partir de uma ação (“pular na água gelada”) – desvelar posicionamentos (modos
de ver, de se comportar) arraigados em três culturas: o americano segue rigorosamente as leis, o
francês segue a moda e o brasileiro desrespeita as regras. O brasileiro é estereotipado como
malandro.
(9) Pane
O avião está em pane, prestes a cair. A tripulação, composta por um francês, um português,
um americano e um brasileiro, dispõe apenas de três paraquedas.
O primeiro a saltar é o francês. Logo em seguida, o português coloca o paraquedas e pula
também. O brasileiro, rapidamente vai colocando o outro paraquedas, quando o americano
lhe diz:
_ Escute, eu sou um alto-executivo de uma multinacional, eu não posso morrer agora. Eu lhe
ofereço cem mil dólares, agora, em dinheiro, por esse paraquedas.
_ Negócio fechado! – concorda o brasileiro, sorrindo, e apanha o dinheiro.
O americano, colocando o paraquedas, comenta:
_ Você nem parece que vai morrer. Por que está tão sorridente?
_ Porque hoje eu lucrei cento e cinquenta mil dólares!
_ Como assim?
_ Antes de você, eu havia vendido a minha mochila por cinquenta mil ao português! ... Fonte: SARRUMOR, L. Mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 1998. p.153-154.
No exemplo (9), o brasileiro é visto como malandro/esperto (sai-se bem quando o avião
entra em pane: além de manter-se vivo, ganha com o ocorrido), calculista (interesseiro, leva
vantagem sobre o português e o americano), ganancioso/ambicioso (lucra em exagero ao vender um
paraquedas por cem mil dólares e uma mochila, por cinquenta), golpista (engana o português ao
vender-lhe uma mochila no lugar de um paraquedas). Os traços identitários em conjunto levam à
construção estereotipada do brasileiro como oportunista: o que sabe tirar proveito em determinadas
circunstâncias em benefício de seus interesses.
(10) Último pedido
Um italiano, um francês e um brasileiro, foram condenados à morte. Chegaram perto do
Italiano e perguntaram:
_ Antes de morrer, qual é o seu último pedido? O italiano respondeu:
_ Quero comer pizza!
Deram a pizza pro italiano e ele comeu. Quando ele terminou, mataram ele.
_ E você francês, qual é o seu pedido? O francês disse:
_ Quero filé mion! Deram o filé mion pro francês, depois que ele comeu, também
mataram o francês.
Chegou a vez do brasileiro.
_ E você brasileiro, qual o seu pedido?
_ Morango!
_ Morango? Mais não tá nem na época! E o brasileiro respondeu:
_ Eu espero! Fonte: Piadas de Nathaly. Disponível em:
<https://www.facebook.com/PiadasDeNathaly/posts/439328746113698>. Acesso em: 25 set. 2014.
No exemplo (10), se a proposta era realizar um último desejo de três condenados à morte
(um italiano, um francês e um brasileiro) e o desejo de cada um deles referia-se a um tipo de comida
(pizza, filé mion e morango), ao escolher algo fora de época (morango), o brasileiro, espertamente,
tenta se beneficiar, ganhando mais tempo de vida. Mais uma vez, nota-se que o brasileiro é
estereotipado como esperto, sagaz.
Em síntese, observa-se que há piadas que envolvem o brasileiro e que ele é ridicularizado de
alguma forma (contraventor, contador de vantagem, calculista, ganancioso, golpista). Tais casos
colocariam em questão sua brasilidade? Se sim, em que consiste essa brasilidade? Para caracterizá-
la, é necessário verificar melhor qual(is) é(são) o(s) traço(s) que constitui(em) o imaginário sobre o
brasileiro, o(s) lugar(es) comum(ns).
A amostra de piadas apresentada aqui revela a recorrência à construção do brasileiro como
esperto (o malandro que se beneficia por sua sagacidade). Constituiria este um indício da
representação identitária dessa população? Segundo se entende, sim. Mais ainda, defende-se aqui a
hipótese de que este é o estereótipo (ou identidade-estereotipada) do brasileiro nesse tipo de
produção humorística. Tais considerações se confirmam nas piadas (6), (7), (9) e (10).
A construção do brasileiro nas piadas como esperto comprova, de certo modo, as
considerações de Amossy e Herschberg-Pierrot (2001) sobre o conceito de estereótipo. As
representações coletivas, simplificadas e rígidas (cristalizadas) podem promover também a
categorização valorativa de um grupo.
Considerando, juntamente com Penna (1997), que a representação identitária não pode ser
vista apenas sob o prisma cultural, sendo necessário levar em conta, em sua constituição, aspectos
históricos, é possível aventar algumas explicações para a caracterização do brasileiro como esperto,
sagaz.
Amparada ou não no real, a sagacidade (malandragem) atribuída ao brasileiro ganha eco
dentro e fora do país. Trata-se de um discurso do senso comum, que pode ter origem na história da
população desse país, especialmente ligada a determinados casos (pessoas/figuras/personagens) que
simbolicamente representam o brasileiro. As manifestações artísticas nacionais reúnem diferentes
exemplos desse comportamento, refletido em suas narrativas.
Nas histórias em quadrinhos, tornou quase lugar-comum vincular Zé Carioca ao jeito
malandro. Nesse caso, a associação é feita especificamente a uma das marcas estereotípicas centrais
dos moradores do Rio de Janeiro. Embora criado nos Estados Unidos pelos estúdios de Walt
Disney, o papagaio adquiriu traços bem brasileiros ao ter suas histórias produzidas por autores
nacionais a partir da segunda metade dos anos 1960.
Na década seguinte, um conjunto de criadores consolidou seu “DNA” associado ao país,
com especial atenção ao trabalho feito por Renato Canini (1936-2013). O personagem passou a
morar nos morros cariocas, a ser mostrado como preguiçoso e avesso ao trabalho, a gostar da
boemia e a driblar as pessoas a quem devia dinheiro – a ponto de existir até uma associação de
credores, a Anacozeca (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca).
A brasilidade explicitada nas histórias destoava das demais criações Disney publicadas no
país pela editora Abril – a empresa iniciou a veiculação em 1950. O contraste levou os estúdios
norte-americanos a pedirem o afastamento de Canini da criação do personagem, o que ocorreu em
fins da década de 1970. Na leitura de Guazzelli (2009), o desenhista desenvolveu em Zé Carioca
uma inversão de estereótipos, substituindo o modo como os norte-americanos enxergavam o
brasileiro pela forma como os próprios moradores do país viam a si próprios.
No teatro, ficou conhecida a “Ópera do Malandro”, peça musical composta por Chico
Buarque e encenada no teatro (1978) e no cinema (1986). Ambientada na década de 1940, no bairro
carioca de Copacabana, a peça mostra o universo da prostituição e como a malandragem pode ser
aplicada a esse ambiente.
Na letra da canção “O Malandro”, os versos iniciais escritos por Buarque descrevem o
personagem central como um bon vivant às custas do jeitinho brasileiro: “O malandro, na dureza,
senta à mesa do café. Bebe um gole de cachaça, acha graça e dá no pé. O garçom, no prejuízo, sem
sorriso, sem freguês, de passagem pela caixa dá uma baixa no português”.
Além da adaptação de “Ópera do Malandro”, o cinema brasileiro é plural nos exemplos na
construção de personagens malandros, sagazes. Para ficarmos em um caso mais recente, pode ser
destacado o longa-metragem “Os Penetras”, de 2012, estrelado por Marcelo Adnet e Eduardo
Sterblitch, dois dos representantes de uma nova geração de humoristas brasileiros. O personagem
interpretado por Adnet é o típico malandro, que procura levar vantagem em tudo. Tanto que procura
se aproveitar da ingenuidade do suposto parceiro (Sterblitch), que vai, aos poucos, sendo também
inserido nesse modus vivendi.
Considerando, por outro lado, a tese proposta por Possenti (2010, p.40) – que o estereótipo
seria uma manifestação do simulacro, ou seja, “uma espécie de identidade pelo avesso [...], que um
grupo em princípio não assume, mas que lhe é atribuído de um outro lugar, eventualmente pelo seu
outro” –, verifica-se que, no caso das piadas de brasileiro, a representação do esperto (malandro) é
oposta. Trata-se de um simulacro atribuído pelo Outro.
Ainda que possa parecer complexa, a questão tem uma boa explicação histórica. Há um
imaginário sobre o povo brasileiro que o concebe como inferior, incapaz, com baixa autoestima e,
portanto, de certa forma, bobo, ingênuo. A expressão “complexo de vira-latas”72
, criada pelo
escritor brasileiro Nelson Rodrigues em 1958 e retomada ao longo do tempo por outras pessoas,
elucida esse sentimento inoculado no brasileiro.
Várias são as causas do complexo de inferioridade do brasileiro. Numa rápida abordagem à
questão, destacam-se:
a) a origem mestiça que leva a população a ser alvo de preconceito racial constantemente. Segundo
Schwarcz (1998), em 1845, o conde francês Arthur de Gobineau, ao desembarcar no Rio de Janeiro,
72 A expressão “complexo de vira-latas” – definida como “a inferioridade em que o brasileiro se
coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”
(RODRIGUES, 1993, p.52) – foi citada na última crônica do autor antes da estreia do Brasil na Copa de
1958 (a primeira vencida pela seleção brasileira) referindo-se ao trauma sofrido pelos brasileiros na Copa de
1950, quando a seleção perdeu, na final, para o Uruguai. Ainda que ligada ao futebol, o termo se estende a
outros campos do país como um todo.
disse que os cariocas “pareciam-se com macacos”. Mais de um século depois, percebe-se que a
associação a macacos perdura. Em 27 de abril de 2014, o jogador brasileiro Daniel Alves foi
hostilizado em campo durante partida no Campeonato Espanhol de futebol – Alves atua no time do
Barcelona. Quando ia cobrar um escanteio, um torcedor jogou uma banana em campo. A fruta caiu
próxima ao atleta. A reação dele foi a de pegar a banana, descascá-la e comê-la, tudo em segundos.
Somente depois, cobrou o escanteio. A atitude foi vista como um claro sinal de protesto, tanto na
Europa quanto no Brasil, onde ecoou fortemente via imprensa;
b) o fato de os brasileiros viverem nos trópicos, onde o clima predispõe os habitantes à preguiça. A
questão é refletida na figura de Jeca Tatu, na obra Urupês, de Monteiro Lobato (1957), que,
originalmente publicada em 1918, retrata o estereótipo do homem do campo, simbolizando o
caboclo analfabeto que vivia na extrema pobreza, sem saber muito bem de onde vinha e para onde
ia;
c) a falta de reconhecimento no campo científico e profissional: Humberto Mariotti (2014) afirma
que “trabalhador brasileiro é sinônimo de garçom ou peão de construção civil. Nossa única
profissão exportável, mesmo não qualificada pela educação formal é, como todos sabem, a de
futebolista”; e
d) os sucessivos escândalos de corrupção nos quais o governo brasileiro esteve envolvido: os
governos do período pós-Ditadura Militar (depois de 1985), eleitos pelo voto direto, passaram por
escândalos de alguma ordem: Collor foi acusado de tráfico de influência, o que levou à sua
renúncia, em 2 de outubro de 1992; Fernando Henrique foi envolvido no escândalo de compra de
votos para aprovação na Câmara e no Senado de lei que permite a reeleição (dele, inclusive); Lula,
suspeito de participar do esquema do mensalão, em que integrantes do governo federal pagaram
verbas regulares a integrantes da Câmara dos Deputados; e Dilma, acusada do suposto
superfaturamento em compras de áreas por parte da Petrobras.
O sentimento de inferioridade também é atestado na literatura do próprio país. A exemplo,
em 1903, o autor Monteiro Lobato revela-se profundamente pessimista com o potencial do povo
brasileiro, por ele assim definido na obra abaixo consultada:
O Brasil, filho de pais inferiores – destituídos desses caracteres fortíssimos que
imprimem – um cunho inconfundível em certos indivíduos, como acontece com o
alemão, com o inglês, cresceu tristemente – dando como resultado um tipo
imprestável, incapaz de continuar a se desenvolver sem o concurso vivificador do
sangue de alguma raça original (LOBATO, 1959, p.110).
As piadas, por meio de uma estratégia discursiva, opõem esse discurso público (das
conversas cotidianas, da mídia, de uma parcela da elite brasileira, do estrangeiro) negativo, a um
discurso contrário ao anterior, enaltecendo o brasileiro como esperto, sagaz, capaz, inteligente para
se safar das situações e se beneficiar.
Desse modo, se as piadas não dizem apenas o oposto, mas o oposto da forma mais exagerada
possível (POSSENTI, 2010), o estereótipo do brasileiro “esperto, sagaz, malandro” (caso recorrente
na maior parte dos exemplos) seria um simulacro do brasileiro bobo, ingênuo.
Nesse sentido deveria ser evidente que os estereótipos são construtos produzidos por aqueles
que funcionam como o(s) Outro(s) para algum grupo. Entretanto, essa relação interdiscursiva é
ofuscada. O efeito é de que o estereótipo é universal, que não tem condições históricas de produção,
ou pelo menos que essas condições não incluem efetivas relações de confronto com uma alteridade.
No caso das “piadas de brasileiro”, a hipótese é de que o Outro ou o estereótipo oposto, como
apontado por Possenti (2010), seja o discurso de uma parcela da elite brasileira, dos estrangeiros, da
mídia.
Considerações finais
Neste texto, buscou-se mostrar que, embora não circule na mídia impressa ou virtual a
existência de uma piada de brasileiro, essa nacionalidade é representada de forma recorrente, com
marcas socioculturais, nesse tipo de produção humorística.
Dentre os vários traços identitários observados (e que se confirmam nas piadas aqui citadas
– esperto, sagaz, “bom de cama”, contador de vantagem, contraventor), um é mais saliente: o que
identifica o brasileiro como esperto (sagaz, malandro).
Para a construção dessa identidade-estereotipada, aventaram-se duas explicações:
a) trata-se de um discurso do senso comum, que pode ter origem na história da população desse
país, especialmente ligada a determinados casos (pessoas/figuras/personagens) que
simbolicamente representam o brasileiro;
b) trata-se de um simulacro, uma vez que as piadas geralmente dizem o oposto; nesse caso, o
revelado “esperto” seria no fundo “bobo, ingênuo”.
Além disso, convém ressaltar que as piadas de brasileiro geralmente são construídas
colocando essa nacionalidade em oposição a outras e que nem sempre, nessa produção, o brasileiro
é estereotipado de forma pejorativa.
Referências
Amor e paixão. Disponível em: <http://www.amorepaixao.com.br/piadas.htm>. Acesso em: 25 set.
2014.
AMOSSY, R.; HERSCHEBERG-PIERROT, A. Estereotipos y clichés. Buenos Aires: Eudeba,
2001.
AVIZ, L. As melhores piadas que circulam na internet e as que ainda vão circular. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
BREWER, D. Livros e piadas em prosa predominantes na Inglaterra entre os séculos XVI e XVIII.
In: BREEMER, J.; ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. São Paulo, Record,
2000. p.133-163
CARMELINO, A. C. As dicas-piadas do Casseta e Planeta: denúncia e liberação. In: LINS, Maria
da Penha Pereira; CARMELINO, A. C. (Org.). A linguagem do humor: diferentes olhares. Vitória,
ES: UFES, 2009, v. 1, p.21-35.
______. Efeito de sentido humorístico e processo evenemencial. In: M.; ABRIATA, V. L. R.;
MOMESSO, M. R.; SCHWARTZMANN, M. N. Discurso e linguagens: objetos de análise e
perspectivas teóricas. v. 6. Franca, SP: Universidade de Franca, 2011. p.53-73.
______. Humor e representações culturais em Guias da revista MAD. In: AREIAS, L.; PINHEIRO,
L. De Lisboa para o mundo: ensaios sobre o humor luso-hispânico (Ebook). Clepul/Lisboa:
LusoSofia, 2013, p.7-33. Link: <http://pt.calameo.com/read/0018279774e8460344095>
______. Piada de brasileiro: para a além da representação regional. Estudos Linguísticos, São
Paulo, 44, 2014 (no prelo).
Clickgrátis piadas. Disponível em:
<http://www.clickgratis.com.br/piadas/nacionalidades/argentino/melhor-negocio.html>. Acesso em:
25 set. 2014.
GUAZZELLI FILHO, E. Canini e o anti-heroi brasileiro: do Zé Carioca ao Zé – realmente –
Carioca. 2009. 190f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo.
GUMPERZ, J. J. Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press 1982.
LOBATO, M. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1957.
______. A todo transe. In: Literatura do Minarete. São Paulo: Brasiliense, 1959. p.110.
MARIOTTI, H. O complexo de inferioridade do brasileiro. Revista bsp – Business Scholl São
Paulo, mar. 2014. Disponível em: <http://www.revistabsp.com.br/edicao-marco-
2014/2014/03/17/o-complexo-de-inferioridade-do-brasileiro/>. Acesso em 10/07/2014.
Os Vigaristas. Disponível em: <http: www.osvigaristas.com.br/piadas/argentino-o-boliviano-e-o-
brasileiro-3141.html>. Acesso em: 25 set. 2014
PENNA, M. L. F. Identidade social, linguagem e discurso. 1997. 253f (Tese de doutorado).
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco,
Pernambuco, CE.
Piadas curtas. Disponível em: <http://www.piadascurtas.com.br/piadas-de-japones>. Acesso em: 25
set. 2014.
Piadas de Nathaly. Disponível em:
<https://www.facebook.com/PiadasDeNathaly/posts/439328746113698>. Acesso em 25 set. 2014.
Piadas do dia. Disponível em: <http://www.piadasdodia.com.br/mostrapiada.asp?id–piada=6265>.
Acesso em 25 set. 2014.
Piadas Engraçadas. Disponível em: <http://www.piadasnet.com/piada771franceses.htm>. Acesso
em: 25 set. 2014
POSSENTI, S. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. Campinas: Mercado de
Letras, 1998.
______. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.
RODRIGUES, N. Complexo de vira-latas. In: À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia
das Letras, 1993. p.51-52.
SARRUMOR, L. Mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 1998.
SCHWARCZ, L. M. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
INTRODUÇÃO AO ENSINO DE RETÓRICA EM CURSOS TECNOLÓGICOS:
METODOLOGIA E RESULTADOS ALCANÇADOS
Ana Lúcia MAGALHÃES73
Resumo: Por definição, cursos de exatas, em geral, não costumam privilegiar o ensino de Humanas.
No entanto, as FATECs, Faculdades de Tecnologia do Centro Paula Souza, autarquia ligada ao
Estado de São Paulo, incluem disciplinas não-tecnológicas: Comunicação e Expressão, por
exemplo. A ementa trata, principalmente, de correção gramatical e das diversas formas de
comunicação na empresa. A introdução de aulas de Retórica para alunos desses cursos tem
suscitado resposta positiva dos alunos: conceitos retóricos como ethos, pathos e logos, e
argumentação (convencimento e persuasão) são aprendidos com relativa facilidade e têm sido bem
aplicados nas atividades. Há indícios de melhoria na comunicação oral e escrita como resultado da
compreensão de técnicas discursivas aplicadas a diversos gêneros.
Palavras-chave: Argumentação; Comunicação; Retórica; Tecnologia.
Abstract: Exact science courses are not usually keen on humanities. In the State of Sao Paulo
Technological College, however, technological majors study non-technological disciplines as part
of their preparation. Business Communication is one of them. The official syllabus is loose and
instructors usually choose grammar reinforcement and teaching of ways to communicate within
organizations. Rhetoric was introduced in some classes in the last four years and student response
has been positive. Concepts like ethos, pathos and logos, convincing and persuasion are learned
without hassle and well applied in exercises. There are also signs of improvement in oral and
written communication skills.
Keywords: Argumentation, Communication, Rhetoric, Technology
Introdução
A proposta desse trabalho é apresentar uma experiência com introdução do ensino de
Retórica em escola tecnológica de nível superior, cujos cursos são tipicamente voltados para o
mercado de trabalho e envolvem essencialmente matérias da área das ciências exatas. Os alunos
esperam do curso o desenvolvimento de competência e habilidades próprias e boa parte deles
costuma considerar as disciplinas que não fornecem formação específica como perda de tempo.
73 MAGALHÃES, Ana Lúcia. Doutora em Língua Portuguesa. Pesquisadora do Grupo de Estudos
Argumentativos e Retóricos, PUC-SP – Brasil, [email protected]
No entanto, é esperado de qualquer profissional competência em se comunicar, entendida
não apenas como capacidade de troca de informações, mas também o domínio de habilidades
argumentativas, sob pena de ter seu progresso dificultado. À medida que o profissional se
desenvolve na carreira, as habilidades não técnicas aumentam de importância.
Em recente visita ao Brasil para treinamento de docentes sobre metodologia de ensino, dois
professores de Harward mantiveram reunião com empresários da região do Vale do Paraíba
histórico. Após exposição, durante as questões abertas, os gestores dessas empresas foram unânimes
em apontar como maiores dificuldades observadas nos recém-formados a comunicação escrita e, em
seguida, a própria comunicação oral. Segundo esses gestores, os ex-alunos chegam ao mercado na
expectativa de conseguir cargos de gestor, mas apresentam grande dificuldade em expor seus
pensamentos com lógica e propriedade, tanto oralmente quanto na escrita, destaque para a segunda
modalidade.
A experiência com alunos de Análise e Desenvolvimento de Sistemas, curso típico, mostrou
fortes indícios de que a Retórica pode ser introduzida por meio de alguma disciplina relacionada nas
escolas tecnológicas e contribui para o desenvolvimento dessas capacidades consideradas essenciais
e reforçadas pelos gestores.
A estrutura deste texto inicia-se com uma contextualização sobre as escolas de cunho
tecnológico no estado de São Paulo – FATEC; especifica alguns conceitos de retórica trabalhados;
esclarece, em detalhe, o tipo de auditório (PERELMAN Y TYTECA, 1999, p.22), objeto de análise;
insere o conteúdo programático a partir do qual se percebeu a possibilidade de inclusão de Retórica
e apresenta a metodologia das aulas específicas. Ao final, mostra alguns dos resultados obtidos.
Perfil dos estudantes da FATEC
Segundo informações divulgadas no site da FATEC de Guaratinguetá,
O Tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas analisa, projeta,
documenta, especifica, testa, implanta e mantém sistemas computacionais de
informação. Esse profissional trabalha, também, com ferramentas computacionais,
equipamentos de informática e metodologia de projetos na produção de sistemas.
Raciocínio lógico, emprego de linguagens de programação e de metodologias de
construção de projetos, preocupação com a qualidade, usabilidade, robustez,
integridade e segurança de programas computacionais são fundamentais à atuação
desse profissional (FATEC Guaratinguetá, 201374
).
De acordo com o perfil desenhado pela instituição, os tecnólogos em Análise e
Desenvolvimento de Sistemas têm como função analisar, projetar, documentar, especificar,
74 http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, acesso em 04/12/2013
implantar e manter sistemas computacionais de informação. Assim, a grade é configurada para
atender as exigências específicas de mercado.
Para isso, é esperado que esse profissional, ao lado de uma qualificação técnica no emprego
de linguagens específicas, desenvolva raciocínio lógico e apresente habilidade linguística. Esta
última, necessária basicamente em qualquer profissão, é particularmente importante àquele que
precisa tratar diretamente com públicos, internos ou externos à organização, caso do analista de
sistemas, preparado especificamente para funções de gestão. Além do contato com tais públicos, ele
constantemente necessitará elaborar relatórios, projetos e mesmo textos diversos, em que o domínio
da língua é certamente exigido. Enquanto a qualificação técnica pode ser adquirida por meio das
disciplinas oferecidas e o raciocínio lógico possa ser desenvolvido da mesma maneira — e
efetivamente isso se dá ao longo do curso —, percebe-se maior dificuldade na conquista de uma
desenvoltura linguística, principalmente associada à linguagem escrita.
Alunos e professores reconhecem que não raramente experimentam extrema dificuldade em
“colocar as ideias no papel”. É possível que, em algum momento, se questione a necessidade de
desembaraço linguístico por parte de profissionais da área de exatas, porém tal habilidade está
diretamente ligada à capacidade de o indivíduo se colocar no mercado de trabalho e efetivamente
comprovar sua competência.
Ainda que restrições de linguagem possam ter diversas origens, inclusive deficiências do
ensino fundamental, pretende-se mostrar, independentemente de tais reservas, de que modo a
inclusão de aulas de retórica na disciplina elencada tem contribuído para que os alunos se
posicionem e efetivamente melhorem sua capacidade comunicativa.
Retórica e argumentação: conhecimento útil em todas as profissões
Tudo o que se diz da Retórica nessa brevíssima composição histórica, mesmo seus conceitos
mais antigos, podem ser aplicados ainda hoje. A Retórica tem sido definida, sob o ponto de vista da
organização clássica das disciplinas, como a “arte de bem falar” (PLANTIN, 2008, p.9), ou seja, a
arte de utilizar todos os recursos da linguagem com o objetivo de provocar determinado efeito nos
ouvintes. Conforme o autor, para os sofistas – pensadores pragmáticos e utilitaristas –, a Retórica
estava ligada à arte de argumentar, no sentido de debater contra ou a favor de qualquer opinião,
desde que vantajosa.
Essa postura foi debatida por Sócrates nos Diálogos (PLATÃO, in: Os Pensadores, 1995)
que lhe emprestava valor apenas à medida em que participasse da essência da filosofia e, para
Platão (OS PENSADORES, 1995), a retórica poderia convencer os próprios deuses. Tratava-se da
utilização dos recursos discursivos para obter a adesão dos espíritos, expressão ainda hoje lembrada,
que exprime muito bem seu objetivo.
Aristóteles, ao sistematizar a retórica, define-a como
A faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a
persuasão. [...] parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada
questão, descobrir o que é próprio para persuadir. (ARISTÓTELES, s/d, p.33).
Entre os conceitos explicados pelo filósofo, destacam-se as três provas retórico-discursivas:
ethos que, em linhas gerais refere-se ao caráter, à imagem que o orador transmite por meio do seu
discurso; pathos, que está ligado ao componente emocional que o discurso desperta no auditório e
logos, que se refere também ao orador e à sua capacidade de convencimento, ao seu conhecimento
de mundo.
Da Grécia à Roma antiga, enquanto para Cícero, em três tratados, o orador perfeito era o
homem perfeito, ponto de vista também encontrado em Quintiliano (1865, p.180), para este último a
Retórica, exposta de maneira mais completa e sistemática, era a “arte de falar do que levanta
problemas nos assuntos civis, de forma a persuadir”. Durante a Idade Média e Renascença, a
Retórica foi indispensável na educação, dividindo-se com a Lógica no século XVI. Neste século e
no seguinte, os grandes mestres retóricos foram os jesuítas, membros da Companhia de Jesus, que a
aplicavam aos domínios da crítica. De acordo com Plantin (2008, p.13), no fim do século XIX, a
Retórica foi violentamente criticada como disciplina não científica e eliminada do currículo da
universidade republicana.
Após longo período restrita ao estudo das figuras de linguagem, ressurgiu com Perelman y
Tyteca (1958) em seu Tratado da Argumentação (1999) ligada, efetivamente, aos estudos da
argumentação que, do ponto de vista da organização clássica das disciplinas, está vinculada à lógica
como “arte de pensar corretamente“, à retórica como “arte de bem falar“ e à dialética “arte de bem
dialogar“. Evidentemente esse tripé forma a base do sistema argumentativo de Aristóteles.
Segundo Plantin,
um dos méritos essenciais do Tratado da Argumentação, de Perelman & Olbrechts-
Tyteca, é o de ter fundado o estudo da argumentação sobre o estudo das “técnicas
argumentativas“ [...] e forneceu uma base empírica de esquemas […] (PLANTIN,
2008, p.45).
Ao afirmar que a argumentação eficiente se liga à intensidade da adesão dos ouvintes ou ao
menos à criação de uma disposição para ouvir, Perelman y Tyteca introduziram o conceito de
auditório, que pode ser universal ou particular (PERELMAN Y TYTECA, 1999, p.30). Outra
questão importante comentada no Tratado é a adesão racional e passional, denominadas,
respectivamente, convencimento e persuasão. É preciso mencionar que, em retórica, o racional não
é o demonstrável, pois ela subsiste no campo do provável, do possível, do plausível, do verossímil.
Persuasão e convencimento aparecem separados apenas para fins didáticos, uma vez que, na
realidade, estão imbricados no discurso e quase não se percebe quando se utiliza um ou outro, assim
como não se decide por um ou outro na prática discursiva. No entanto, foi justamente o estudo e a
exploração dessas duas formas de argumentação, inicialmente separadas, que permitiu uma
aproximação mais efetiva com os alunos dos cursos de tecnologia da FATEC.
Oportunidade de acréscimo de aulas de retórica
A grade dos cursos prevê aulas de Comunicação e Expressão com objetivos e ementa
bastante específicos, voltados quase exclusivamente à correção de textos empresariais.
Ementa: visão geral da noção de texto. Diferenças entre oralidade e escrita, leitura,
análise e produção de textos de interesse geral e da administração: cartas,
relatórios, correios eletrônicos e outras formas de comunicação escrita e oral nas
organizações. Coesão e coerência do texto e diferentes gêneros discursivos.
Embora a FATEC permita ao professor o livre exercício da didática, a ementa de todos os
seus cursos é predeterminada e não pode ser modificada. É possível observar, na citação, mesmo em
uma leitura superficial, que a fragilidade desses itens conduz a uma restrição de conteúdo. Com
isso, existe uma tendência natural à repetição de conceitos ministrados no ensino médio, em parte
talvez porque o docente percebe não terem sido tão bem assimilados pelos alunos, em parte porque
a própria ementa a isso conduz.
Apoiada em alguns vocábulos ali presentes (gêneros discursivos, processos linguísticos,
análise crítica de produção textual), a autora deste texto resolveu inserir conceitos de discurso,
retórica e argumentação na tentativa de expandir os conhecimentos dos alunos e permitir que
repensem seus próprios discursos.
Conteúdo das aulas de retórica
Com a finalidade de proporcionar maior abrangência da área de atuação desses cursos e para
propiciar interação com outras disciplinas, foi elaborado um quadro de competências linguísticas
julgadas importantes. Percebeu-se não apenas a possibilidade de introdução de conceitos retóricos e
argumentativos aplicados, como a necessidade deles para melhorar a compreensão dos processos
comunicativos nos diversos níveis. A partir dessa constatação, como verificar se essa abertura
oferece aos alunos maior percepção daquilo que praticam intuitivamente? Haveria uma maneira de
observar sensíveis modificações na qualidade da escrita ou mesmo na oralidade?
Para responder a tais perguntas foram utilizadas duas estratégias: 1) distribuição de um
questionário com perguntas indiretas aos alunos e 2) exercícios orais e escritos efetuados antes e
após as aulas de retórica. Esse trabalho foi desenvolvido sempre com uma turma de 40 alunos
aproximadamente, durante dez semestres. Escolheu-se uma turma típica para levantamento de
dados e avaliação de resultados.
Conceitos de texto e discurso (GREIMAS, 2008; KOCH, 1998; MAINGUENEAU, 1997),
objetividade e subjetividade (BENVENISTE, 2002), argumentação – persuasão e convencimento –
e o estudo das três provas retóricas conforme teorizam Aristóteles (s/d), Perelman (1999) e Meyer
(2009) foram tão amplamente discutidos quanto possível e, após, exercitados por meio da aplicação
aos gêneros (BAKHTIN, 2006) jurídico, jornalístico, publicitário e organizacional. Embora algumas
dúvidas possam não ter sido inteiramente sanadas, tendo em vista a complexidade do assunto, os
alunos se mostraram interessados e procuraram sempre se aplicar durante os exercícios. Os autores
citados neste artigo não foram mencionados nas aulas.
Metodologia das aulas
As aulas, com duração de três horas e meia e intervalo de dez minutos, apresentam uma
metodologia diferenciada para cada assunto e se ajustam ao auditório. Dessa forma, se para
determinado grupo de alunos é mais conveniente comentar sobre conceitos e exercitar depois, para
outro, o mais sensato será apresentar e discutir um texto e só então, introduzir e trabalhar o
conceito. Em outros casos, parte-se do repertório do aluno. Assim, não existe uma forma única ou
mais apropriada. Depende sempre da disposição do auditório.
Como ilustração, o tema Retórica e Argumentação é tratado em vários momentos e
retomado sempre que possível, com a finalidade de reforçar o entendimento. Uma das maneiras de
abordar tem sido o método socrático, por meio de perguntas específicas sobre o assunto (o que o
aluno entende por retórica, em que contexto a palavra foi ouvida, o que é argumentação, persuasão,
convencimento, se existe diferença entre persuasão e convencimento). O método é repetido para
cada uma dessas perguntas. Os alunos se manifestam livremente e a professora anota as respostas
— corretas ou não — no quadro, para que todos acompanhem o raciocínio. Como se trata de
conceitos complexos, muitas vezes é necessário considerável esforço mental, mas tem havido
grande participação dos estudantes. Após esse primeiro momento de debate, os alunos são levados a
refinar a lista de respostas e só então os conceitos são ministrados. Em seguida, os discentes são
instados a exemplificar com casos reais, fruto da observação ou mesmo de experiência pessoal.
Caso necessário, são corrigidos e ajustados.
Evidentemente o assunto é retomado em aulas posteriores, embora com abordagem
diferente. Durante o estudo da linguagem jornalística, por exemplo, os alunos são solicitados a
aplicar os conceitos de retórica e argumentação já trabalhados. O mesmo ocorre nas aulas de
linguagem promocional e organizacional, esta última considerada como foco da disciplina
Comunicação e Expressão para Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Apesar da retomada em
vários momentos e dias diferentes, há sempre cuidado para que o tópico não se torne cansativo,
embora haja necessidade de repetições.
Conceitos de ethos, pathos e logos são introduzidos nas aulas subsequentes, porém de forma
diversa, uma vez que dificilmente alunos de cursos de tecnologia terão tido contato com tais
vocábulos. Nesse caso, um triângulo com os termos é mostrado e o conceito explicado por meio de
várias ilustrações. Só então os estudantes começam a participar com exemplos, experiência e se
posicionar diante dos discursos político, educacional e organizacional. Textos curtos são projetados
em tela para que todos possam ler e analisar. Busca-se sempre a participação do maior número de
alunos. Qualquer que seja a sequência escolhida há, ao final, uma aplicação prática por meio de
exercícios orais ou escritos.
A importância do conhecimento desses conceitos reflete-se diretamente na capacidade de
análise argumentativa para elaboração de discursos oral e escrito. O profissional com tais
conhecimentos tem perspectivas diferenciadas de crescimento na carreira e mesmo como pessoa,
além de preencher, ao menos parcialmente, a carência apontada no início deste artigo, pelos
gestores.
Alguns exercícios e atividades
Uma das proposições é solicitar que os alunos escrevam uma Nota Oficial sobre
determinado acidente em uma empresa real. Uma folha com histórico conciso sobre o acidente é
entregue sem qualquer instrução prévia. Os textos produzidos são recolhidos. Iniciam-se então as
aulas sobre retórica e argumentação que inclui estudos de subjetividade, persuasão, convencimento,
as três provas retóricas e algum outro conceito pertinente. Tais conceitos são trabalhados oralmente
e exercitados, de acordo com a metodologia escolhida conforme aquele auditório. Após algumas
aulas, é solicitado que os alunos reescrevam a Nota Oficial, porém com a preocupação de utilizar os
conceitos sobre argumentação estudados. Os novos textos são recolhidos e comparados com os
anteriores. Esse foi, conforme mostrado adiante, um dos exercícios utilizados para avaliar a fixação
dos conceitos e capacidade de uso em funções práticas.
Outra atividade consiste em dividir a sala em três grupos. Um caso jurídico real ligado a
roubo é distribuído para que os alunos leiam cuidadosamente. A um dos grupos é atribuída a tarefa
da acusação; a outro, a defesa e ao terceiro, grupo defesa e acusação, pois terá como tarefa julgar,
com base nos argumentos apresentados, o grupo que se sair melhor. É determinado um tempo
relativamente curto para que os alunos discutam o caso, elaborem argumentos e elejam um
representante. Após a discussão, o primeiro grupo acusa e o segundo defende. Há oportunidade de
réplica, pelo primeiro grupo e tréplica, pelo segundo. Em seguida, o terceiro grupo se manifesta,
expressa a análise dos argumentos apresentados por ambos e informa sua escolha com justificativa.
A atividade é bastante movimentada e reforça os conceitos argumentativos estudados. À medida
que o exercício tem sido aplicado em semestres diferentes – a experiência se repete semestralmente
em novas salas –, os alunos têm se mostrado mais conscientes da importância desse conhecimento.
A proposta de leitura de um conto de mistério com poucos personagens é outro exercício
com resultado positivo na compreensão dos conceitos de ethos, pathos e logos. Após leitura
minuciosa e discussão sobre o enredo, os alunos são instados a, oralmente, construir o ethos dos
principais atores discursivos. Após essa fase, verificam os argumentos utilizados e se há
predominância de persuasão ou convencimento, se há mais paixão ou racionalidade. Em seguida, é
solicitado que escrevam um conto de mistério que privilegie a construção do ethos e demonstre
alguma agilidade no domínio de argumentos.
Resultados e rendimento dos alunos
Embora se trate de curso de tecnologia com predomínio de disciplinas da área de exatas, os
alunos têm demonstrado interesse durante as aulas e não se furtam aos exercícios. É interessante
notar que, apesar da dificuldade na aquisição de conceitos e principalmente na necessidade de
seguir raciocínios complexos, há participação de parte considerável das salas e até mesmo
demonstrações de entusiasmo.
A aquisição dos conceitos foi avaliada por meio de uma pequisa quantitativa em duas partes.
Elas foram:
a) Proficiência na aplicação dos conceitos, verificada a partir das duas redações da nota
oficial citada.
b) Identificação de instâncias de ethos, pathos e logos em uma série de afirmações.
Utilizou-se, nos dois casos, o método científico, o que implicou em uso de critérios
objetivos e quantificáveis.
A primeira parte da pesquisa, detalhada a seguir, verificou a capacidade de uso dos
conceitos retóricos em um contexto prático.
Problema-questão: as aulas de Retórica conduziram os alunos a entendimento e utilização
dos conceitos de logos, pathos e ethos?
Hipótese: aulas de Retórica auxiliam alunos a compreender e utilizar os conceitos
mencionados.
Teste: análise de duas redações de uma nota oficial após um acidente, conforme descrito na
seção que trata dos exercícios. Foram marcadas, nos dois textos, as incidências de ethos, pathos e
logos e, após esse levantamento, elaborou-se um quadro comparativo do primeiro texto, escrito
antes das aulas de Retórica, com o segundo, após as aulas.
A população de teste consistiu da totalidade dos alunos de uma turma, perfazendo 30
estudantes. Os alunos que faltaram quando da aplicação de um dos testes não foram considerados.
Os resultados aparecem na tabela 1 e são ilustrados pelo gráfico da figura 1.
antes das aulas após as aulas variação
incidências de ethos 21 34 + 62%
incidências de pathos 22 11 - 50%
incidências de logos 26 35 + 35%
Tabela 1: comparação das redações antes e após as aulas de Retórica
Figura 1: incidências de ethos, pathos e logos antes e após as aulas de Retórica
A tabela 2, a seguir, fornece uma amostra de textos da redação antes e depois das aulas de
Retórica. Nota-se o deslocamento de pathos para logos e a preocupação com o ethos.
Antes da aula de Retórica Após aula de Retórica
Venho por meio desta informar a toda a
população que a nossa empresa se
responsabiliza pelo ocorrido [...] (P.L.)
A empresa xxx vem a público informar que o
acidente ocorreu em decorrência das fortes
chuvas P.L.)
Nós nos responsabilizamos e iremos cobrir
todas as despesas causadas pelo acidente
provocado pela empresa J.P.M
A empresa se coloca à disposição para os
esclarecimentos necessários e, caso fique
comprovada sua responsabilidade, entrará em
contato (J.P.M)
Informamos que estamos tristes com o
ocorrido e faremos tudo que estiver ao nosso
alcance para cobrir todas as despesas das
famílias atingidas (B.S.M)
A empresa esclarece que o acidente de agora
não tem relação com a ocorrência do ano
anterior e se coloca à disposição para maiores
esclarecimentos (B.S.M)
A empresa cobrirá todos os danos causados
pelo acidente de sua inteira responsabilidade
(J.S.S)
A empresa se coloca à disposição dos órgãos
ambientais para os esclarecimentos que se
fizerem necessários (J.S.S.)
Nós, da empresa xxx, estamos consternados com a mortandade de peixes provocada pelo
rompimento de nossa barreira de contenção.
Assumimos a responsabilidade e arcaremos
A empresa xxx informa que o produto derramado não é tóxico e que a mortandade dos
peixes se deveu ao excesso de argila presente
na água, após rompimento da barragem,
0
10
20
30
40
incidências deethos
incidências depathos
incidências delogos
antes das aulas
após as aulas
todos os prejuízos (M.L.M) causado pelas fortes chuvas (M.L.M)
Informamos a todos que nossa barragem se
rompeu por causa da falta de manutenção em
nossos equipamentos (A.L.S.P)
A empresa informa que o rompimento da
barragem se deu devido às fortes chuvas em
curto período de tempo (A.L.S.P.)
Como se observa, do primeiro texto, sem conhecimento dos aspectos argumentativos, para o
segundo, há considerável aumento da presença de ethos e logos e uma diminuição substancial do
pathos. Naquele momento, trabalhava-se o discurso organizacional como espaço que privilegia o
aspecto objetivo, factual para construir e reforçar uma boa imagem corporativa em bases sólidas.
O exercício demonstrou que os alunos foram capazes, não apenas de compreender os
argumentos racionais e patéticos ligados às três provas retóricas (ARISTÓTELES, s/d, p.45), mas
também de aplicar tais conhecimentos em um texto escrito. Outras práticas foram experimentadas
com resultados semelhantes.
A segunda parte da pesquisa verificou a capacidade de reconhecimento das provas retóricas
e identificação de incidências de convencimento e persuasão.
Problema-questão: os alunos são capazes de reconhecer instâncias de uso de ethos, pathos e
logos, convencimento e persuasão em textos que façam parte do cotidiano de organizações em
geral?
Hipótese: o ensino de Retórica proporciona aos alunos capacidade de análise rápida desses
componentes do discurso.
Teste: foi distribuído um questionário simples, com duas questões. Na primeira, os alunos
(os mesmos 30 considerados na primeira parte da pesquisa) deveriam identificar ethos, pathos e
logos em uma lista que misturava dezoito afirmações, seis com cada um dos três elementos. Na
segunda, por meio do mesmo critério, identificariam características de argumentos racionais e
passionais em uma lista de vinte afirmações, dez com elementos do primeiro grupo e dez do
segundo.
Embora fosse solicitado que pensassem com calma antes de responder uma vez que as
afirmações eram parecidas, o teste durou menos de quinze minutos e os alunos aparentaram
bastante tranquilidade.
A tabela 3 e a figura 2 sumarizam e ilustram os resultados.
total de respostas respostas certas % acerto
incidências de ethos 180 142 79%
incidências de pathos 180 160 89%
incidências de logos 180 164 91%
frases com persuasão 300 267 89%
frases com convecimento 300 243 81%
Tabela 3: resultados de teste de reconhecimento de ethos, pathos e logos.
Figura 2: reconhecimento de conceitos
As porcentagens mostram que os alunos, de maneira geral, entenderam os conceitos,
especialmente os de persuasão e convencimento. O que pareceu, a princípio, mais complexo foi a
compreensão do conceito de ethos que, em alguns casos, foi confundido com o de pathos. No
entanto, não se pode considerar exatamente como falha tal ambiguidade, pois trata-se de assunto
subjetivo. Percebeu-se que os estudantes encontraram maior facilidade na identificação do logos.
Uma possível causa se relaciona ao conhecimento prévio do auditório, voltado para exatas.
As análises demonstraram, nos dois casos, que alunos de cursos tecnológicos foram capazes
de compreender conceitos filosóficos complexos e, mais do que isso, houve uma melhora visível na
composição textual, como mostram os textos da tabela 2.
A tabela 4 apresenta indícios de melhora de atenção ao produzir textos, quando os alunos
reescreveram após as aulas de Retórica uma redação de mesmo tema e mesmo número de linhas que
havia sido proposta antes das aulas. Naturalmente, a melhora pode ser atribuída ao conjunto das
atividades da disciplina, porém foi observado que se tornou mais intensa depois das aulas de
Retórica, possivelmente como fruto de, conforme mencionado, mais atenção ao texto. Essa
tendência poderá ser eventualmente confirmada por outros estudos. Como na tabela 2, os textos são
escritos pelos mesmos alunos para cada linha da tabela.
0
100
200
300
incidências deethos
incidências depathos
incidências delogos
frases compersuasão
frases comconvecimento
total de respostas
respostas certas
Texto Antes das aulas Texto depois das aulas
possui seus cerca de 1,87 com cerca de um metro e oitenta
calçava sandálhas (sic) rasteirinhas que
possuía
usava sandálias de origem humilde
caso algo que não seja ruim aconteça-me caso algo não muito bom me aconteça
mataram as meninas ás jogando para que os
urubus famintos devorem (sic)
mataram as meninas jogando-as aos urubus
para que as devorassem
de família pobre, onde seu pai era... de família pobre, cujo pai era...
Tabela 4: instâncias de aperfeiçoamento de capacidade de expressão.
Conclusão
A introdução de aulas de Retórica na disciplina de Comunicação e Expressão para o curso
de Análise e Desenvolvimento de Sistemas em uma escola superior de tecnologia mostrou efeito
bastante positivo na aquisição de conceitos voltados para a área das ciências humanas, não
consideradas como básicas nesses cursos e por isso objeto de menor empenho pelos alunos.
A pesquisa mostrou que, embora grande parte desses conceitos seja intuitiva, pois
convencimento e persuasão, por exemplo, encontram-se imbricados no discurso e são de uso
corrente, a compreensão de conceitos da Retórica proporciona uma visão mais clara e pragmática
desse conhecimento intuitivo.
Além da aquisição desse conhecimento, há indícios de melhora na compreensão de
conteúdos e na qualidade da produção textual. Os alunos passaram a observar melhor os
argumentos, e a utilizar conscientemente os conhecimentos a eles associados, em textos escritos.
Os estudantes de tecnologia buscam por carreiras e grande parte deles espera atingir
posições de gerência nas organizações em que trabalharem ou estar à frente de seu próprio negócio.
Essas possibilidades de ascensão dependem significativamente da capacidade de se exprimir e de
argumentar.
O ensino de humanidades em geral e particularmente o de Retórica contribuem para
aquisição dessas habilidades. A experiência de dez semestres tem mostrado que os alunos, ao serem
alertados para esse conjunto de fatos, entendem perfeitamente a mensagem e passam a encarar com
muito mais atenção, e mesmo respeito, não apenas os estudos de argumentação como os de
humanidades em geral.
Referências
ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________. Arte Retórica e Arte Poética. São Paulo: Ediouro Publicações, S.A., 2002.
________. Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1995.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006
BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral. 4. ed., vol I, São Paulo: Pontes, 2002.
BRZOVIC, K.; FRAER, L.; LOEWY, D.; VOGT, G. Core Competencies and Assessment in
Business Writing: BUAD 201, 301 and 501. California State University at Fullerton, USA, 2012.
FATEC-Guaratinguetá, Perfil do aluno de Análise de Sistemas,
http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, (acesso em 04/03/2012).
GREIMAS, A.J; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
KOCK, I.V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo, Contexto, 1998.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes Editores,
1997.
MEYER, M., Questões de Retórica: linguagem, razão e sedução. Lisboa, Portugal: Edições 70
Ltd., 2007.
PERELMAN, C.; TYTECA, L. Tratado da argumentação, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
PLANTIN, C. A Argumentação: história, teorias, perspectivas, Tradução Marcos Marcionilo,
São Paulo, Parábola Editorial, 2008.
NA CIRANDA DOS SENTIDOS: A POLIFONIA DE LOCUTORES NO GÊNERO
REPORTAGEM IMPRESSA
Francisco Vieira da SILVA75
Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA76
Resumo: Esse artigo se propõe a analisar a polifonia de locutores no gênero reportagem impressa.
Para isso, retomamos os pressupostos teóricos da Semântica Argumentativa, conforme postulada
por Ducrot (1988) e colaboradores. Tomamos como corpus para análise cinco reportagens
impressas publicadas na revista Veja. A análise de tais reportagens permitiu-nos evidenciar três
modos de materialização da polifonia, a saber: i) estilo direto com ou sem verbo dicendi, com ou
sem arrozoado por autoridade; ii) estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem
arrozoado por autoridade; iii) aspas de diferenciação.
Palavras-chave: Polifonia de locutores. Reportagem impressa. Argumentação.
Resumen: Este artículo busca analizar la polifonía de locutores en el género reportaje impresa.
Para esto, retomamos los presupuestos teóricos de la semántica Argumentativa, de acuerdo con
Ducrot (1988) y colaboradores. Tomamos como corpus para los análisis cinco reportajes impresas
publicadas en la revista veja. La análisis de tales reportajes nos permitió evidenciar tres modos de
materialización de la polifonía, a conocer: i) estilo directo con o sin verbo dicendi, con o sin
defensa por autoridad; ii) estilo directo con verbo dicendi modalizador con o sin defensa por
autoridad; iii) comillas de diferenciación.
Palabras–llave: Polifonía de locutores. Reportaje impresa. Argumentación.
Introdução
Uma máxima atribuída ao escritor britânico G. K. Chersterton prega que “as pessoas
geralmente brigam porque não sabem argumentar”. Com efeito, seja para apaziguar os ânimos, seja
para inflamá-los, o fato é que a argumentação está presente, em maior ou menor grau, nas diferentes
instâncias que perpassam a atividade humana da comunicação. Com diferentes objetivos, estamos
75 Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutorando do Programa
de Pós-Graduação em Linguística (PROLING). Membro do Círculo de Discussões em Análise do Discurso
(CIDADI), UFPB, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: [email protected]. 76
Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora
do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Pau dos Ferros,
RN, Brasil. E-mail: [email protected].
sempre tentando persuadir o outro acerca de nosso ponto de vista e, muitas vezes, sequer nos
apercebemos. Assim, Nietzsche (2007) asseverava que ao mesmo tempo que o homem é constituído
pela linguagem, ele é um efeito dela. Arriscamos transpor esse raciocínio para pensarmos a relação
do sujeito por meio da argumentação, uma vez que esta é de fundamental importância na
constituição do sujeito e na relação com o outro, concebendo a linguagem a partir de um viés
dialógico.
Levando em consideração que a língua é constitutivamente argumentativa, conforme
apontam os pressupostos teóricos de Oswald Ducrot e colaboradores, pretendemos neste texto
descrever e analisar os marcadores da polifonia no gênero reportagem impressa, no intuito de
investigar o funcionamento semântico-argumentativo desses marcadores no gênero em estudo. Para
tanto, baseamo-nos teoricamente nos postulados ducrotianos a respeito da argumentatividade e no
redimensionamento dessa noção proposto por Espíndola (2003), para quem não somente a língua é
argumentativa por natureza, como também o uso que dela fazemos. A partir dessa ancoragem
teórica, objetivamos perscrutar ainda o modo como o locutor responsável pela reportagem impressa
se relaciona com os outros locutores, de modo a se engajar ou não com as vozes alheias.
Encontrando eco em trabalhos já desenvolvidos na área, a exemplo dos estudos de
Nascimento (2005; 2012a), nos quais esse autor analisa o fenômeno da polifonia de locutores nos
gêneros notícia jornalística e ata, na perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua (TAL),
tomamos como corpus para essa investigação 05 (cinco) reportagens veiculadas na edição impressa
da revista VEJA, no ano de 201377
. Vislumbramos a possibilidade de estudarmos a polifonia de
locutores, não prescindindo de levar em conta as especificidades do gênero reportagem, as quais,
em alguma medida, incidem sobre a constituição semântico-argumentativa desse gênero.
Esse texto encontra-se estruturado em algumas seções, além desses comentários
introdutórios, quais sejam: na seção a seguir, priorizamos discutir de forma breve acerca dos
principais aspectos da TAL; após esse momento, centramos o foco no conceito de polifonia de
locutores; posteriormente, tratamos de caracterizar o gênero reportagem impressa, situando-o no
cerne do domínio discursivo jornalístico. Na seção seguinte, lançamos nosso olhar sobre o corpus,
tomando como subsídio as teorizações anteriormente expressas para, na seção final, fazermos
algumas considerações mais gerais sobre a análise realizada.
77 A revista VEJA foi criada em 1968 e, atualmente, é publicada pela Editora Abril. Escolhemos essa
revista pelo fato de ela ser a mais vendida do Brasil, “a única revista de informação no mundo a desfrutar de
tal situação. Em outros países, revistas semanais de informação vendem bem, mas nenhuma é a mais vendida
– esse posto geralmente fica com as revistas de tevê” (SCALZO, 2003, p.31).
A Teoria da Argumentação na Língua
As teorizações de Ducrot e colaboradores (1988), na constituição da denominada Teoria da
Argumentação na Língua (TAL), contrapõem-se de modo fulcral à concepção tradicional do
sentido. Para esses pensadores, normalmente se consideram três indicações do sentido no
enunciado: as indicações objetivas, subjetivas e intersubjetivas. As objetivas descrevem a realidade,
as subjetivas, por sua vez, denotam a atitude do locutor ante a realidade descrita, e as intersubjetivas
englobam as relações do locutor com aqueles para quem endereça seu dizer. As divergências de
Ducrot no que concerne a essa concepção de sentido dizem respeito ao fato de aquele autor
acreditar que “a linguagem ordinária não possui uma parte objetiva, tampouco os enunciados
descrevem a realidade” (NASCIMENTO, 2012b, p.53).
Assim, Ducrot (1988) postula que, se há a possibilidade de a língua ordinária descrever a
realidade, isso ocorre por meio dos elementos subjetivos e intersubjetivos, os quais ele denomina de
valor argumentativo. Esse valor argumentativo está atrelado à orientação que o enunciado dá ao
discurso. A ideia de sentido em Ducrot liga-se inextricavelmente à direção. Noutras palavras, a
argumentação não recobre apenas a significação, mas, sobretudo, a direção que um dado enunciado
imprime ao discurso.
É relevante definir alguns termos utilizados amiúde em diferentes vertentes linguísticas e
que, na ótica da TAL, apresentam uma conotação específica. Trata-se das noções de frase,
enunciado, língua e discurso. Nessa perspectiva teórica, a frase é concebida como uma abstração
que permite a consecução do enunciado. Segundo Ducrot (1988, p.65): “El enunciado es la realidad
empírica, observale, y la frase es la entidad teórica, lingüística, contruida por el lingüista”. Esse
autor compreende a língua como um conjunto de frases, ao passo que o discurso é visto como uma
sucessão de enunciados.
A TAL tem passado por (re)configurações constantes, em consonância com a não-fixidez do
próprio conhecimento científico, confirmando o pensamento de Barthes (1978, p.27), segundo o
qual “as ciências não são eternas”, o que explica, portanto, as diferentes fases que essa teoria
apresenta: Descritivismo Radical, Descritivismo Pressuposicional, Argumentação como
Constituinte da Significação, Argumentatividade Radical e, mais recentemente, presenciamos o
despontar do atual momento da TAL, corporificado na Teoria dos Blocos Semânticos. Não nos
interessa historicizar de modo exaustivo cada uma dessas fases, mas antes considerar, ainda que
sumariamente, a natureza fluida e cambiante da TAL em seu desenvolvimento epistemológico ao
longo do tempo. No entanto, de maneira bem sumária, é possível reconhecer que estas fases
caracterizam-se por um movimento em que ora se não se considera uma relação direta entre língua e
argumentação, na fase do Descritivismo Radical, na qual, segundo Anscombre e Ducrot (1994), as
contribuições da língua à argumentação não eram propriamente argumentativa, pois se encontravam
ainda no nível da descrição dos fatos, até a fase da Argumentatividade Radical em que se considera
o par língua e argumentação como indissociável.
O sentido do enunciado em Ducrot, conforme defende Nascimento (2009), está relacionado
com a noção de polifonia – concebida como as diferentes vozes mobilizadas pelo locutor que
marcam a enunciação e que se materializam discursivamente por meio de diferentes estratégias.
Essa noção se enxerta no seio de outros marcadores que ativam a argumentatividade na língua,
como os operadores argumentativos, os modificadores, os modalizadores, a pressuposição, dentre
outros.
A noção de polifonia
O conceito de polifonia advém das análises de Bakhtin (2002), a partir do exame da obra de
Doistoévski. Ao estudar tal obra, esse teórico russo distingue dois tipos de literatura: a dogmática e
a polifônica. Enquanto na primeira prevalece apenas a voz do autor, a despeito de existir vários
personagens, na segunda, diversas vozes entram em contato, e a voz do autor se apresenta como
uma delas, não havendo, pois, a emergência de uma voz que controle as demais, como na literatura
dogmática. Nesse sentido, o termo polifonia, proveniente do universo musical, expressa a
multiplicidade de vozes existente nos discursos. No caso da literatura polifônica, “todos os
elementos de sua estrutura são determinados pela tarefa de construir um mundo polifônico e um
herói cuja voz se estrutura do mesmo modo [...] que a voz do autor do romance” (BRAIT, 2009,
p.55).
A inserção da noção de polifonia no âmbito dos estudos linguísticos deve-se,
principalmente, ao fato de Ducrot (1988, p.16) entender que “el autor de un enunciado no se
expresa nunca directamente, sino que pone en escena en mismo enunciado um cierto numero de
personajes”. Com isso, Ducrot desfaz a ideia de uma pretensa unicidade do sujeito falante, segundo
a qual num enunciado encontramos somente uma única voz. Para tanto, Esse autor categoriza o
sujeito em três dimensões: o sujeito empírico, o locutor e o enunciador.
O sujeito empírico (SE), conforme postula Ducrot (1988), refere-se ao autor efetivo,
produtor do enunciado; o locutor (L) é concebido como aquele que se responsabiliza pelo dito, já o
enunciador (E) abrange os diferentes pontos de vista apresentados num enunciado. Refletindo sobre
essa classificação, Silva (2012, p.51) esclarece que “o próprio locutor pode representar um desses
pontos de vista, embora mantenha uma certa distância em relação a eles”.
Ducrot identifica duas formas de polifonia: a polifonia de locutores e a de enunciadores.
Como nosso foco centrar-se-á sobre esta última, descreveremos em seguida os modos através dos
quais esse tipo de polifonia se materializa. A polifonia de locutores ocorre no discurso relatado,
corporificando-se por meio das aspas, citações, referências, argumentação por autoridade, dentre
outros modos. Essa possibilidade de aparecer múltiplas vozes
permite não somente dar a conhecer o discurso atribuído a alguém como também
produz um eco imitativo, ou ainda organizar um teatro no interior da própria fala,
ou que alguém se torne porta-voz de um outro e empregue, no mesmo discurso, eus
que remetem tanto ao porta-voz quanto à pessoal da qual é porta-voz
(NASCIMENTO, 2009, p.23-24, grifo do autor).
No caso do discurso relatado, a língua oferece uma série de recursos gráficos que o realça,
tais como: dois pontos, travessão, aspas, verbos dicendi, como podemos notar no excerto a seguir,
oriundo do corpus sobre o qual lançaremos nosso olhar.
Excerto 1: Casada há quinze anos, a advogada Letícia Queiroz de Andrade, 39,
teve certeza de que não teria filhos quando, com um mestrado recém-concluído, viu
a chance de engatar um doutorado. Ela tinha 34 anos. “Era ser mãe ou mergulhar
fundo no meu Ph.D. Fiquei com a segunda opção”, conta Letícia, que é hoje
professora universitária e sócia de um dos maiores escritórios de advocacia do país,
em São Paulo (VEJA, 2013, ed.2323 p.114, grifos nossos).
Nesse excerto, é possível identificar dois locutores: L1 – jornalista autor da reportagem, em
terceira pessoa e L2 – voz do sujeito que depôs para a reportagem, em primeira pessoa. A inserção
desse discurso segundo está marcada pelo verbo dicendi contar e pelas aspas. Estas últimas, de
acordo com Authier-Revuz (2004), são designadas pela intenção do locutor de suspender a
responsabilidade pelo dito, isentando-se de sanções futuras. Assim, nesse excerto, o discurso de L2
está no estilo direto, o que pressupõe certo distanciamento de L1 no tocante ao discurso relatado. O
estilo indireto implica um envolvimento maior com a voz alheia. Para Nascimento (2009, p.27):
“[...] trata-se de uma questão de maior ou menor comprometimento, já que no estilo indireto há uma
assimilação e, no direto, um distanciamento das palavras do outro.”
A argumentação por autoridade possui basicamente duas facetas, de acordo com Ducrot
(1987), quais sejam: a autoridade polifônica e arrozoado por autoridade. Interessa-nos esta última,
uma vez que ela se relaciona com a polifonia de locutores. Nesse caso, o locutor responsável pelo
dito (L1) traz para seu discurso a voz de um outro locutor (L2), com a qual estabelece uma relação
de identificação. Essa voz de autoridade legitima a argumentação de L1. Na escrita jornalística, essa
prática é bastante comum, tendo em vista que o locutor precisa imprimir certa confiabilidade ao seu
dizer. O excerto abaixo transcrito, proveniente do corpus desse trabalho, ilustra o que estamos
afirmando.
Excerto 2: “Direta ou indiretamente, a [vitamina] D está relacionada a pelo menos
2000 genes, o que comprova a sua vasta gama de benefícios”, disse a VEJA o
endocrinologista americano Michael Holick, professor da Universidade de Boston,
o grande pesquisador do assunto e autor do livro Vitamina D – Como um
Tratamento Tão Simples Pode Reverter Doenças Tão Importantes. (VEJA, 2013,
ed.2304, p.66, grifo nosso)
Para referendar o seu ponto de vista, L1, autor da reportagem, cujo tema trata dos benefícios
da vitamina D, traz para o seu discurso a voz de uma autoridade que se encontra identificada pelas
credenciais acadêmicas (publicação na área, universidade na qual leciona). A autoridade mobilizada
por L1 é de substancial importância no sentido de legitimar o seu dizer, uma vez que se trata da voz
de um especialista na área. O arrozoado por autoridade, para que possa constituir-se como tal,
necessita vir indicado, de algum modo, no discurso do locutor responsável pelo dito
(NASCIMENTO, 2005). Não basta somente o sujeito ser reconhecido socialmente como uma
autoridade, é necessário que o locutor responsável assim o identifique.
Um último aspecto a ser discutido nessa seção diz respeito aos verbos dicendi, os quais são
responsáveis pela introdução das vozes alheias. Tais verbos podem se comportar discursivamente
como modalizadores (NASCIMENTO, 2005). Seguindo a classificação proposta por esse autor, os
verbos dicendi são agrupados em duas categorias: os verbos dicendi não-modalizadores e os verbos
dicendi modalizadores. Os primeiros são verbos que apresentam o discurso de L2, sem deixar
marcas de avaliação daquele que o introduz (L1), a exemplo dos verbos perguntar, dizer, dentre
outros. Já os modalizadores, ao mesmo tempo em que inserem o discurso de L2, indicam uma
avaliação, uma orientação conferida por L1, tais como explicar, confirmar, entre outros.
Sobre o gênero reportagem impressa
Objetivamos nesta seção tecer alguns comentários acerca do gênero reportagem impressa,
considerando a noção de gênero do discurso de Bakhtin (2000). Para esse autor, os gêneros
apresentam três critérios que os definem: conteúdo temático, estilo e estrutura composicional. Em
seguida, tangenciaremos o gênero em estudo com tais critérios, mas antes achamos conveniente
relacioná-lo com o domínio jornalístico do qual ele provém.
Em primeiro lugar, é necessário situar a reportagem no âmbito dos gêneros jornalísticos,
incluindo aí as idiossincrasias que os caracterizam. Nesse sentido, atentamos para o fato de as linhas
divisoras que separam um gênero jornalístico de outro serem evanescentes, o que explica a profusão
de gêneros híbridos e, em alguns casos, indefiníveis, inclassificáveis, pois apresentam propriedades
inerentes a outros gêneros. Sobre essa questão, convocamos Bawarshi e Reiff (2013, p.18) que, ao
resenharem o estudo de Bonini (2009) acerca dos gêneros notícia e reportagem veiculados no
Jornal do Brasil, afirmam: “as fronteiras entre esses gêneros jornalísticos são confusas, havendo
sobreposição de movimentos retóricos”. Entendemos que a natureza miscigenada de tais gêneros
advém da multiplicidade que circunda a práxis jornalística, profundamente ligada ao desejo de
separar nitidamente a informação da opinião. Essa tentativa, muitas vezes frustrante, esbarra na
instabilidade da linguagem, a qual, em alguns momentos, reluta a classificações; assim “não
podemos definir a linguagem em sua totalidade dentro da perspectiva categorizadora, pois o novo
não é categorizável” (BONINI, 2008, p.57).
No caso das reportagens que compõem o corpus desse trabalho, acreditamos que esse
gênero apresenta-se na sua forma mais prototípica, pois se trata de reportagens de capa. As próprias
capas, por seu turno, cumprem um papel comunicativo e um modelo mais ou menos estável de
produção que entrelaça o verbal e o imagético (PEREIRA, 2013). Desse modo, as reportagens de
capa ganham um destaque em relação aos outros gêneros presentes na revista. Em síntese, esse
gênero tem como conteúdo temático, em sintonia com os critérios bakhtinianos já arrolados, “o
relato ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações
que são percebidas pela instituição jornalística” (MELO, 2003, p.66).
Na revista VEJA, tal conteúdo pode se referir tanto a acontecimentos marcantes que
reverberaram no decorrer da semana (com ênfase nos fatos políticos), quanto a assuntos de interesse
mais geral concernentes à saúde, às tecnologias, ao emprego, ao comportamento, dentre outros.
Geralmente, as reportagens de capa de VEJA ocupam de oito a dez páginas da publicação e se
encontram numa relação de homologia com as imagens da capa. Assim, na edição 2315 (maio de
2013), por exemplo, a capa traz um executivo com um avental, como se estivesse defronte a uma
pia de louça suja. Com uma esponja na mão, o pretenso executivo apresenta um semblante
desolador frente à tarefa doméstica que o aguarda e o assusta. A reportagem de capa trata das novas
legislações trabalhistas das empregadas domésticas no país e a imagem vem corroborar os efeitos de
sentido que a revista imprime sobre o tema, qual seja: o desamparo dos patrões em face das
exigências da legislação no que se refere, principalmente, às consequências que isso implica no
orçamento familiar.
A questão do estilo em Bakhtin é o aspecto mais suscetível à mutabilidade: é a um só tempo
a expressão da relação discursiva típica do gênero e a expressão pessoal do autor no âmbito do
gênero (SOBRAL, 2009). No tocante à reportagem, o estilo pode atrelar-se a algumas
peculiaridades presentes nesse gênero como, por exemplo, uma pretensa “objetividade” no relato
dos fatos, a recorrência a outras vozes, uma certa predominância da forma narrativa (SODRÉ e
FERRARI, 1986), além do uso recorrente do argumento de autoridade, conforme delinearemos
posteriormente na análise das reportagens de VEJA.
Em relação à estrutura composicional, entendemos que a reportagem não possui uma
estrutura fixa identificável, não se trata de um gênero formulaico, mas podemos entrever
determinadas regularidades no que se refere à abertura da reportagem, uma vez que “se destina
basicamente a chamar a atenção do leitor e conquistá-lo para a leitura do texto” (SODRÉ e
FERRARI, 1986, p.67). Antes da abertura, as reportagens impressas de VEJA apresentam uma
espécie de texto-síntese que contém a informação principal a ser esmiuçada no decorrer do texto.
Destaca-se ainda a ampla utilização de imagens, boxes informativos, infográficos e tabelas, os
quais, em alguns casos, didatizam visualmente os conceitos discutidos ao longo da reportagem.
A polifonia na reportagem impressa
Conforme já explicitamos anteriormente, nosso corpus é formado por cinco reportagens
impressas veiculadas na revista VEJA, no ano de 2013. Escolhemos aleatoriamente esse número de
reportagens dentre as edições da VEJA publicadas nesse período, de modo que não nos interessou
evidenciar uma unidade temática para as reportagens coletadas ou quaisquer regularidades que as
tornassem aparentemente homogêneas. Os temas abordados por essas reportagens e a extensão de
cada uma delas encontram-se explicitados no quadro abaixo:
Título da reportagem de capa Nº de
páginas
2013 previsões (ed.2302) 10
D – O que você não sabe
sobre a vitamina do sol (ed.2304)
10
Você amanhã (ed.2315) 08
A escolha de Angelina
(ed.2322)
10
Filhos? Não, obrigada!
(ed.2323)
08
Diante desse corpus, constatamos a recorrência da polifonia de locutores marcada por
algumas formas, as quais discutidas a seguir. Embora este estudo seja de natureza eminentemente
qualitativa, consideramos conveniente quantificar as formas através das quais a polifonia de
locutores se efetua, com o intuito de especificar o efeito de sentido que emerge dessas construções,
além de cotejá-lo com as especificidades do gênero. O quadro a seguir sumariza os modos de
aparição da polifonia na reportagem e a ocorrência com que aparecem no corpus. Posteriormente,
descreveremos, através de excertos, cada um desses modos de apropriação das vozes alheias.
Modos de materialização da polifonia de locutores na reportagem impressa Oco
rrência
Estilo direto com ou sem verbo dicendi não-modalizador, com ou sem arrozoado
por autoridade
37
Estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem arrozoado de
autoridade
23
Estilo indireto com verbo dicendi (não)modalizador, com ou sem arrozoado de
autoridade
0
Aspas de diferenciação 09
Diante dos dados presentes no quadro acima, podemos depreender que, nas reportagens
coletadas para esse trabalho, a polifonia de locutores se manifesta, principalmente, por meio do
estilo direto, mais precisamente através da utilização de verbos dicendi, ou mesmo sem a aparição
desse verbo introdutor. Os excertos a seguir ilustram o que estamos afirmando:
Excerto 3: A corretora de imóveis Érica Miranda, 39 anos, teve vários
relacionamentos sérios, mas não encontrou ninguém que imaginasse no papel de
pai, e foi empurrando a maternidade. Até que ela própria deixou de ser como mãe.
“Minha vida está completamente preenchida sem filhos. Sinto que o momento
passou”, diz a mineira, que hoje vive imersa em uma rotina de trabalho sem horário
fixo no Rio de Janeiro. (VEJA, 2013, ed. 2323, p.119, grifo nosso)
Excerto 4: “A relação empregada-patroa, que mistura exploração e solidariedade,
tem origem no período da escravidão, quando a senhora da casa não tinha outra
função que não a de acompanhar o serviço da cozinha e passava o dia ao lado das
escravas e dos seus filhos”, diz a historiadora Mary del Priore. (VEJA, 2013, ed.
2315, p.77, grifo nosso)
Em ambos os excertos anteriormente expressos, observamos a presença de dois locutores: o
L1 (responsável pelos discursos) e L2 (Érica Miranda e Mary del Priore), evidenciando, desse
modo, a presença dos personagens mobilizados pelo locutor na constituição de um enunciado
(DUCROT, 1988). Na introdução dos discursos de L2, verificamos a presença do verbo dicendi
dizer. Esse verbo, conforme explicitamos, não é modalizador, ou seja, o locutor, ao utilizá-lo, não
emite nenhum tipo de valor subjetivo. Dessa maneira, o relato em estilo direto pressupõe certo
distanciamento do locutor responsável pelo dito em relação ao discurso de L2.
É preciso registrar ainda a recorrência do arrozoado por autoridade, presente no quarto
excerto, o qual reitera a argumentatividade de L1, ao trazer para seu discurso a voz de um
especialista no assunto (historiador) para dissertar, do ponto de vista histórico, acerca dos novos
desdobramentos provenientes das recentes legislações trabalhistas das empregadas domésticas. Na
escrita jornalística, a utilização do arrozoado por autoridade é uma constante, tendo em vista que
esse campo precisa construir uma imagem de credibilidade frente ao público.
Já nos excertos a seguir, a introdução dos discursos alheios se dá por meio de verbos dicendi
modalizadores, a partir dos quais o locutor expressa seu relacionamento com o conteúdo
proposicional, “avaliando seu teor de verdade ou expressando seu julgamento sobre a forma
escolhida para a verbalização desse conteúdo” (CASTILHO e CASTILHO, 2002, p.201). No caso
dos verbos que inserem as vozes alheias nas reportagens estudadas, entendemos que o locutor
responsável pelo enunciado como um todo avalia o discurso de L2 e, ao mesmo tempo, instaura
determinado efeito de sentido que poderá funcionar como um protocolo de leitura, de modo a
indicar como esse discurso deve ser lido/entendido. Vejamos os excertos abaixo:
Excerto 5: Ela suspendeu o tratamento, a carreira se deslanchou e o casamento só
se fortaleceu. Não foi fácil. Todos os seus sete irmãos têm filhos – e ela, dezenove
sobrinhos. “Naquele tempo, era mais dura a decisão de não ter filhos”, lembra a
atriz. (VEJA, 2013, p.116, ed. 2323, grifo nosso)
Excerto 6: “Me sinto bem na função de tia. As crianças me adoram”, gaba-se.
(VEJA, 2013, ed. 2323, p.118, grifo nosso)
Excerto 7: Segundo no ranking mundial das neoplasias mais incidentes, o câncer de
mama é, sem dúvida, o mais estudado – e “está entre os mais curáveis, lembra
Paulo Hoff, oncologista do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. (VEJA, 2013,
ed.2322, p.96, grifo nosso)
Excerto 8: “Como a vitamina D é solúvel na gordura, ela é armazenada no tecido
adiposo e liberada mesmo durante o inverno, permitindo níveis suficientes de
vitamina durante o ano todo”, afirma Michael Hollick. (VEJA, 2013, ed. 2304,
p.69, grifo nosso)
Os verbos dicendi responsáveis pela inserção das vozes alheias nos excertos citados trazem
avaliações por parte de L1 em relação aos discursos de L2. Acreditamos que se trata de verbos
modalizadores, concebendo o fenômeno da modalização como “um ato de fala particular que
permite ao locutor, além de deixar marcas de suas intenções, agir em função do seu interlocutor”
(NASCIMENTO e SILVA, 2012, p.63).
No caso dos excertos cinco e sete, observamos que L1 se distancia do discurso de L2,
devido à utilização o estilo direto, deixando registrado, a partir do verbo lembrar como o relato de
L2 deve ser lido. No excerto três, L1, responsável pelo enunciado, lança mão do verbo dicendi
gabar, a fim de introduzir o discurso de L2, denotando certa avaliação em relação a esse discurso.
No último excerto, temos uma modalização epistêmica asseverativa, uma vez que o verbo
introdutor afirmar exprime a noção de certeza. Esse não-engajamento de L1 com o discurso de L2
perpassa de modo efusivo os enunciados presentes nas reportagens analisadas, o que explica, por
exemplo, a inexistência do discurso indireto que, em tese, indicaria um engajamento maior por parte
de L1.
Nos excertos abaixo transcritos, notamos a presença das aspas de diferenciação. Atentamos
para o funcionamento semântico-argumentativo desse recurso na reportagem.
Excerto 9: No caso de proliferação exagerada das células, ela induziria à apoptose
– mecanismo de defesa no qual células potencialmente malignas “cometem
suicídio”. (VEJA, 2013, ed.2322, p.74)
Excerto 10: Assim, dizer que Maria “é como se fosse da família” pode ser uma
verdade em termos sentimentais, mas pode também ser uma crença que resulta no
escamoteamento de obrigações empregatícias. (VEJA, 2013, ed.2315, p.79)
Excerto 11: A história já provou que leis que aterrisam no vácuo não “pegam.”
(VEJA, 2013, ed.2315, p.81)
Excerto 12: Ocorre que “esse sistema de bondades” esconde problemas. (VEJA,
2013, ed.2315, p.79)
As aspas põem o locutor em posição de juiz e de dono das palavras, capaz de recuar, de
emitir um julgamento sobre as palavras no momento em que as utiliza (AUTHIER-REVUZ, 2004).
Com efeito, quando o locutor lança mão das aspas de diferenciação, ele imputa a responsabilidade
do dizer a um outro locutor, de maneira a isentar-se daquilo que enuncia. Nos excertos citados, o
locutor utiliza as aspas de diferenciação com diferentes asserções: no excerto nove as aspas exercem
a função de vulgarizar um dado conhecimento científico, aproximando do senso comum; no excerto
seguinte, o trecho destacado por aspas circunscreve um lugar comum, uma crença; em “pegam”, as
aspas estão relacionadas a um sentido figurativo do verbo e, por fim, na última ocorrência, o uso das
aspas exprime uma ironia.
Ao relacionarmos o funcionamento dos marcadores da polifonia com as temáticas das
reportagens analisadas, obtivemos os seguintes dados, de acordo com que se observa no quadro
abaixo expresso:
Temática-título da reportagem Esti
lo direto
com ou sem
verbo não-
modalizador
Estilo
direto com
verbo
modalizador
As
pas de
diferencação
2013 previsões (ed.2302) 07 04 02
D – O que você não sabe sobre a
vitamina do sol (ed.2304)
08 04 02
Você amanhã (ed.2315) 08 06 04
A escolha de Angelina (ed.2322) 07 04 __
Filhos? Não, obrigada! (ed.2323) 07 05 01
A associação entre os modos de materialização da polifonia de locutores e a temáticas das
reportagens evidencia uma equidade do ponto de vista quantitativo, o que assinala o fato de o
funcionamento dos marcadores da polifonia não está vinculado ao conteúdo da reportagem, mas ao
gênero em si, considerado no âmbito da esfera jornalística e das especificidades que a caracterizam.
Nesse sentido, a mobilização de vozes alheias e a forma através da qual o locutor responsável pelo
dito relaciona-se com elas no esteio da reportagem independe do tema que está sendo tratado.
Considerações Finais
Traçamos como objetivo para este texto analisar os marcadores da polifonia de locutores no
gênero reportagem impressa. Para tanto, pautamo-nos na perspectiva da Teoria da Argumentação na
Língua (TAL), conforme postulada por Ducrot (1988) e colaboradores. Segundo esses autores, a
língua é constitutivamente argumentativa, de modo que na sua estrutura subsistem determinados
elementos os quais ativam essa característica que lhe é intrínseca (BARBISAN, 2013). Dentre esses
elementos, tomamos a polifonia de locutores como objeto de análise no gênero reportagem
impressa, por acreditarmos que a recorrência às vozes alheias é uma das principais especificidades
no exercício da escrita jornalística.
A análise das reportagens permitiu-nos evidenciar três modos de materialização da
polifonia, a saber: i) estilo direto com ou sem verbo dicendi, com ou sem arrozoado por autoridade;
ii) estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem arrozoado por autoridade; iii) aspas de
diferenciação. Esses modos marcam a polifonia de locutores no gênero estudado e delineiam um
não-engajamento por parte do sujeito responsável pelo enunciado como um todo, tendo em vista a
predominância do estilo direto, bem como a inexistência do estilo indireto, o qual, poderia incitar,
em maior ou menor grau, um engajamento de L1 com o discurso relatado.
Esse distanciamento do locutor responsável pelo dito no gênero reportagem pode vincular-se
a tão propalada objetividade dos textos jornalísticos, e de maneira particular da reportagem
(SODRÉ e FERRARI, 1986), que prevê (ilusoriamente!) o apagamento das marcas de
subjetividade. De qualquer modo, os reflexos do fazer jornalístico incidem sensivelmente sobre os
gêneros produzidos no âmbito desse campo. O estudo de Nascimento (2005) acerca do gênero
notícia, por exemplo, corrobora o que estamos afirmando, na medida em que constatou que as
estratégias de não-engajamento sobressaem-se sobre as de engajamento, em função da necessidade
de criação e manutenção da imagem de neutralidade/objetividade do texto jornalístico.78
78 Numa incursão nos sites de busca da web, não foi possível localizar trabalhos que estudassem a
polifonia de locutores no gênero reportagem. O estudo que mais se assemelha a este, no sentido de tomar
como corpus um gênero presente na revista VEJA e pautar-se nos pressupostos teóricos de Ducrot é o
No entanto, cabe ressaltar o funcionamento dos verbos dicendi utilizados no discurso direto,
o que denota, à primeira vista, uma objetividade por parte de L1. Todavia, se considerarmos que
estes verbos também exprimem certa subjetividade do sujeito responsável pelo dito, pois ele não
escolhe qualquer verbo e não utiliza despretensiosamente, é possível relativizar o não-engajamento
proclamado no parágrafo anterior.
Ademais, reiteramos a recorrência do arrozoado por autoridade nas reportagens analisadas, o
que assinala a atividade jornalística enquanto uma instância que se caracteriza na incessante busca
de garantir a credibilidade (NAVARRO, 2010). Assim, construir uma imagem crível junto ao
público redunda em lançar mão de vozes de especialistas em diferentes áreas, as quais são
responsáveis por legitimar o discurso da reportagem. Quando o locutor que assume a
responsabilidade pelo dito recorre a uma voz de autoridade, ele o faz, com vistas a endossar a
argumentatividade do seu dizer. Essas vozes especializadas, constantemente retomadas pelo locutor
da reportagem, atrelam-se de modo intrínseco ao conhecimento científico, de modo a notabilizar o
laço incestuoso existente entre a ciência e a mídia, tendo em vista que a primeira confere seriedade
e atualidade à segunda (TUCHERMAN e CAVALCANTI, 2013).
É necessário ressaltar que outras pesquisas, com um corpus mais amplo, incluindo aí as
variações referentes ao suporte, veículo, perfil dos leitores, dentre outras, poderão subsidiar
conclusões distintas destas aqui dispostas, acenando para outras possibilidades de caracterizarmos a
reportagem, a partir da análise e descrição dos marcadores da polifonia de locutores, concebendo
esta última como constitutiva da língua, em conformidade com os pressupostos de Ducrot (1988),
segundo os quais a língua é eminentemente argumentativa, porque na sua própria estrutura contém
marcas que ativam, em alguma medida, a argumentação.
Referências
ANSCOMBRE, J. C.; DUCROT, O. La argumentación en la lengua. Versión española de Julia
Sevilla e Marta Tordesilhas. Madrid: Editora Gredos, 1994.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: estudo enunciativo do
sentido. Trad. Leci B. Barbisan e Valdir N. Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2002.
______. Estética da criação verbal. Trad. M. E. G. Gomes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
trabalho de Mack (2011), na medida em que investiga a construção do ethos em ensaios publicados na
VEJA, tomando como aparato teórico, além da TAL, as reflexões de Maingueneau e Amossy.
BARBISAN, L. B. Do signo ao discurso: a complexa natureza da linguagem. In: FIORIN, J. L.;
FLORES, V. N. _______. (Orgs.). Saussure: a invenção da linguística. São Paulo: Contexto, 2013.
BARTHES, R. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978.
BAWARSHI, A.; REIFF, M. J. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. Trad. Benedito Gomes
Bezerra. São Paulo: Parábola, 2013.
BRAIT, B. Problemas da Poética de Dostoiévski e estudos da linguagem. In: _____ (Org.).
Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
BONINI, A. Os gêneros do jornal: questões de pesquisa e ensino. In: KARWOSKI, A.
M.;GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
CASTILHO, A. T.; C. CASTILHO, C. M. M. Advérbios modalizadores. In: ILARI, R. (Org.).
Gramática do português falado. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.
______. Polifonia y Argumnetación: Conferencias Del Seminario Teoría de la Argumentación y
Analisis Del Discurso. Cali: Universidad Del Valle, 1988.
ESPÍNDOLA, L. O gênero charge: leitura e ensino. Texto da comunicação apresentada no V
Encontro sobre Mídia, Educação e Leitura no IV COLE – Congresso de Leitura do Brasil.
Campinas-SP: ALB/UNICAMP, 22 a 25 de julho de 2003. (2003) (Mimeografado)
MELO, J. M. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. Campos do
Jordão: Mantiqueira, 2003.
NASCIMENTO, E. P. Jogando com as vozes do outro: a polifonia – recurso modalizador – na
notícia jornalística. 239 f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba: João
Pessoa, 2005.
______. Jogando com as vozes do outro: a argumentação na notícia jornalística. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2009.
______. A polifonia de locutores no gênero ata: estratégia semântico-argumentativa, Desenredo,
Passo Fundo, v.8, n.2, jul./dez.2012a. p.112-130. Disponível em:
http://www.upf.br/seer/index.php/rd/article/view/2918. Acesso em 21. nov. 2013.
______. Gêneros textuais, argumentação e ensino. In: PEREIRA, R. C. M. (Org.). A didatização
de gêneros no contexto de formação continuada em EAD. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2012b.
______; SILVA, J. M. O fenômeno da modalização: estratégia semântico-argumentativa e
pragmática. In: ______ (Org.). A argumentação na redação comercial e oficial: estratégias
semântico-discursivas em gêneros formulaicos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012.
NAVARRO, P. Uma definição da ordem discursiva midiática. In: MILANEZ, N.; GASPAR, N. R.
A (des)ordem do discurso. São Paulo: Contexto, 2010.
NIETZSCHE, F. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. 4. ed. Trad. P. Süssekind. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2007.
PEREIRA, T. M. A. O espetáculo de imagens na ordem do discurso midiático: o corpo em cena
nas capas da revista Veja. 203 f. 2013. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal da
Paraíba: João Pessoa, 2013.
REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. Ano 46, nº1, 2013.
______. São Paulo: Abril. Ano 46, nº 3, 2013.
______. São Paulo: Abril. Ano 46, nº14, 2013.
______. São Paulo: Abril. Ano 46, nº21, 2013.
______. São Paulo: Abril. Ano 46, nº22, 2013.
SCALZO, M. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.
SOBRAL, A. Estética da criação verbal. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia.
São Paulo: Contexto, 2009.
SODRÉ, M.; FERRARI, M. H. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São
Paulo: Summus, 1986.
SILVA, M. A. Argumentação e polifonia na língua. In: NASCIMENTO, E. P. (Org.). A
argumentação na redação comercial e oficial: estratégias semântico-discursivas em gêneros
formulaicos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012.
TUCHERMAN, I.; CAVALCANTI, C. Apostando nos riscos: como a Veja apresenta o nosso
futuro, Contracampo, Niterói, v.26, n.1, abril/2013. p.5-20. Disponível em:
http://www.uff.br/contracampo/index.php/revista/article/view/271. Acesso em 12. dez. 2013.
O GÊNERO TEXTUAL MINICONTO NO ENSINO DE LEITURA E ESCRITA
José Carlos KÖCHE79
Vanilda Salton KÖCHE80
Adiane Fogali MARINELLO81
Resumo: Este artigo aborda o gênero textual miniconto, sua definição, características e estrutura, e
propõe atividades de leitura e escrita para exploração do gênero junto aos alunos do Ensino Médio e
Superior. O trabalho integra a pesquisa-ensino Leitura, escrita e práticas de análise linguística a
partir de gêneros textuais, desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul. A pesquisa apresenta
um enfoque qualitativo-interpretativo e de aplicação didático-pedagógica. Fundamentam este artigo
os PCN+ (2002), e os autores: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza; Souza
(2013) e Spalding (2008).
Palavras-chave: Gênero textual. Miniconto. Leitura e produção textual.
Abstract: This article discusses the flash fiction genre, its definition, characteristics and structure,
and suggests reading and writing activities to explore the genre with students from high school or
college. The work integrates research-teaching of reading, writing and the practices of linguistic
analysis of text genres, developed at University of Caxias do Sul. The research presents a
qualitative-interpretive approach and didactic-pedagogical use. This article is based on the PCN+
(2002) and the following authors: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza;
Souza (2013) and Spalding (2008).
Keywords: Text genre. Flash fiction. Reading and writing.
79 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidad de Salamanca. Professor do Centro de
Ciências Humanas e da Educação, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.
E-mail: [email protected] 80
Mestre em Estudos de Linguagem pela UFRGS. Professora do Centro de Ciências Sociais e
da Educação, Universidade de Caxias do Sul – CARVI, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
Mestre em Letras e Cultura Regional pela UCS. Professora do Centro de Ciências Sociais e
da Educação, Universidade de Caxias do Sul – CARVI, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
Introdução
A eficiência no uso da língua materna é uma das principais exigências do mundo
contemporâneo. Para atender a essa necessidade, a disciplina de Língua Portuguesa no Ensino
Médio e a disciplina de Leitura e Produção Textual no Curso de Graduação em Letras buscam
aperfeiçoar a competência discursiva do estudante.
Nesse sentido, os PCN+ Ensino Médio (2002) afirmam que é preciso oportunizar ao aluno
situações de ensino-aprendizagem que propiciem o desenvolvimento do espírito crítico, da
percepção das diversas formas de expressão linguística e da capacidade de ler efetivamente os
diferentes textos. O documento ressalta a necessidade de ampliar e articular competências e
conhecimentos que possam ser mobilizados pelo estudante nas inúmeras situações comunicativas de
seu cotidiano.
Por sua vez, as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Letras preconizam o “domínio do
uso da língua portuguesa, nas suas manifestações oral e escrita, em termos de recepção e produção
de textos” (2001, p.30). Assim, torna-se fundamental o trabalho com gêneros textuais de circulação
social.
Este artigo objetiva caracterizar e analisar o gênero textual miniconto e propor atividades de
leitura, escrita, análise da linguagem e reflexão linguística a partir desse gênero, que poderão
contribuir para a ação pedagógica dos professores. Fundamentam este trabalho os PCN+ Ensino
Médio (2002) e os autores: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza; Souza
(2013) e Spalding (2008).
O miniconto
O miniconto é um gênero textual narrativo literário conciso, com um só conflito, poucas
personagens e número reduzido de ações, que ocorrem num tempo e espaço limitados. Esse gênero
é escrito em prosa, apresenta narrador e o tempo é indicado especialmente por formas verbais e
adverbiais. Constitui uma narrativa bem mais condensada do que o conto, mas é completa e não um
simples fragmento de texto.
Lagmanovich (2009) afirma que o miniconto possui um título significativo, e este é um
elemento praticamente indispensável do texto. Segundo o autor, o gênero pode expor situações
muito distantes da realidade, apresentar mundos inexistentes e inverter a ordem natural das coisas.
O autor prossegue dizendo que a primeira ação no miniconto não é necessariamente a ação
inicial em ordem cronológica. Acrescenta que o gênero admite diversas estratégias discursivas em
seu breve enredo e termina com um final que, embora não desencadeie obrigatoriamente surpresa
no leitor, proporciona-lhe certo conhecimento a respeito do fechamento da narrativa.
De acordo com Capaverde (2004), o miniconto não ultrapassa duas páginas de extensão. A
autora destaca que o gênero tem sua origem na tradição oral e o denomina também de microconto,
microrrelato, minificção, conto brevíssimo ou conto em miniatura.
O miniconto possui três características essenciais, conforme Lagmanovich (2009): a
narratividade, a ficcionalidade e a brevidade ou concisão.
A narratividade é inerente aos textos que relatam fatos, envolvendo personagem, ação,
movimento, tempo e espaço. Por sua vez, a ficcionalidade refere-se a fatos oriundos da imaginação
ou invenção.
Lagmanovich (2009), ao caracterizar o miniconto, esclarece que prefere usar a palavra
concisão em vez de brevidade, pois um texto conciso não é o mesmo que um texto curto: um texto
mais extenso também pode ser conciso, se não há excessos, se nada é supérfluo e se são usadas
apenas palavras indispensáveis. Para o autor, uma escrita concisa equivale a dizer muito com
poucas palavras, o que é uma virtude dos grandes escritores.
Nesse sentido, Spalding (2008) faz uma ressalva ao afirmar que o miniconto precisa ter certo
grau de determinação para que o leitor possa preencher os seus vazios a partir da estrutura proposta.
Logo, nesse gênero, o leitor torna-se coautor da produção literária.
Lagmanovich (2009) concebe o miniconto como um produto literário autossuficiente e
autônomo. Ressalta que, apesar da rapidez da escrita e da leitura, o texto mantém significados
diversos e profundos.
O miniconto, conforme Rodrigues, Souza e Souza, requer dos leitores “uma postura
investigatória diante dos mais simples objetos significantes em seus mais recônditos detalhes, o que
culmina, quando de uma bem sucedida leitura, no prazer da descoberta” (2013, p.88). Assim, o
papel do leitor é essencial na construção do sentido desse gênero e as escolhas do autor devem ser
exatas para auxiliar o leitor nesse processo.
Spalding (2008) coloca que, apesar de o miniconto ser curto, produz um efeito no leitor. Ou
seja, pode gerar diferentes reações ou emoções: o leitor se identifica, sonha, ri, chora, se amedronta,
se enfurece e até reflete sobre suas vivências.
Geralmente, o narrador é anônimo e não participa dos fatos narrados, constituindo-se em
mero observador, narra os fatos como se conhecesse tudo o que se passa na trama, mas pode
também ser um narrador personagem que participa das ações.
Spalding (2008) atribui a disseminação do miniconto à internet, em virtude de ele ter o
tamanho adequado para a leitura na tela do computador, uma vez que a objetividade e a rapidez são
características do mundo contemporâneo.
Entre os escritores que produzem minicontos, conforme Capaverde (2004), destacam-se: no
México, Juan José Arreola, Augusto Monterroso e René Avilés Fabila; na Venezuela, Luis Brito
Garcia, Gabriel Jimenez Emán e Ednodio Quinteros; na Argentina, Julio Cortázar, Marco Denevi e
Ana Maria Shua.
Já na literatura brasileira, sobressaem-se Dalton Trevisan, Luiz Rufatto, Sérgio Sant’Anna,
Tatiana Blum, Miguel Sanches Neto, Antonio Torres, João Gilberto Noll e Millôr Fernandes, entre
outros.
No Brasil, Dalton Trevisan foi o pioneiro na produção do gênero, com o livro Ah, é?.
Spalding (2008) afirma que a partir dessa obra e com a publicação de vários livros com minicontos,
houve uma reinvenção e revitalização do conto na literatura brasileira. Entre os minicontos do autor,
com menos de duas páginas, destacam-se Cemitério de Elefantes (1964), Uma vela para Dario
(1964), Bonde (1968), O ciclista (1968) e Apelo (1968).
O miniconto mais famoso do mundo é do escritor Augusto Monterroso: O dinossauro. É um
miniconto unifrasático, com apenas sete palavras, que gerou muitos estudos e persiste na tradição
literária. Conforme Spalding (2008), não existe nenhum texto unifrásico como O dinossauro, e
também não são comuns os minicontos com menos de um parágrafo.
De acordo com esse autor, o miniconto unifrásico consiste “numa narrativa que se constrói
para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto” (2008, p, 72). Exemplo:
Por que é que eu nunca anotei o número da emergência? (Douglas Ceccagno, Tarde).
O texto de Ceccagno possibilita a cada leitor recriar a situação sugerida pelas onze palavras
que o compõe.
Para Spalding (2008), o miniconto unifrásico mostra que existe sempre algo mais a cortar,
até que se chegue ao núcleo narrativo, em que substituir uma palavra modifica o sentido de todo o
texto e compromete seu efeito sobre o leitor. Segundo o autor, nesse gênero não há espaço para
descrições.
Análise ilustrativa de um miniconto
AS FLORES CRESCERAM
Douglas Ceccagno
As flores cresceram e invadiram o meu espaço, o meu ar; preencheram todos os vazios da
casa, enfeitaram o meu campo de visão, esconderam a sujeira das paredes e os defeitos do carpete.
Na minha cama já não se veem lençóis manchados, na cozinha a louça suja e o fogão engordurado
foram cobertos pelos caules, na sala de estar não há poeira sobre a estante, no banheiro
desapareceram os cabelos da pia e, na privada, não se encontram nem água suja nem restos de
excrementos. Meus sapatos embarrados estão longe do meu alcance, da mesma forma que minhas
camisas suadas e o ocre de minhas roupas íntimas. As flores reduziram meu espaço ao canto da sala
e tomaram de mim tudo o que era meu: minha casa, meu ar, meus movimentos, meu corpo, minha
liberdade, meu desejo, meu sonho, minha vida e minha morte, meu futuro. Agora são elas que me
fornecem nutrientes para que eu cresça viçoso e alegre e que acredite que tenho ao meu redor todas
as belezas da Terra. E fui eu que, no princípio, as alimentei.
As flores cresceram, do escritor Douglas Ceccagno, constitui-se num miniconto. Diferencia-
se do conto por ser uma narrativa bem mais concisa e condensada. O protagonista é a única
personagem e também o narrador dos fatos. O emprego do adjetivo viçoso, no fragmento [...] para
que eu cresça viçoso [...], mostra que a personagem é do sexo masculino.
No miniconto, há um só conflito: o homem observa as flores tomarem conta de um espaço
que antes ele ocupara.
As ações ocorrem em um único espaço, a casa do protagonista. Este conta os fatos no
ambiente onde vivia: As flores reduziram meu espaço ao canto da sala [...]. As descrições mostram
como era esse ambiente e como ficara: as flores com seus caules invadiram sua casa, quer
enfeitando, quer escondendo a sujeira, os defeitos e a desorganização; os objetos pessoais, tudo o
que era seu e o que ele era cederam lugar às flores.
A escolha lexical do narrador materializa a situação da casa. Para descrevê-la antes de as
flores tomarem conta do ambiente, usa palavras e expressões que remetem ao desleixo, como:
defeitos do carpete, lençóis manchados, louça suja, fogão engordurado, poeira sobre a estante,
sapatos embarrados e camisas suadas. Já para caracterizar a casa em um momento posterior opta
por vocábulos que lembram um ambiente agradável e feliz: flores, enfeitaram, nutrientes, viçoso,
alegre e belezas.
A marcação do tempo ocorre por meio de adjuntos adverbias (a princípio – remete ao
passado; agora – refere-se ao presente). O emprego dos verbos também delimita o tempo. O
narrador usa o presente para caracterizar o ambiente exatamente como o vislumbra no momento da
enunciação. Vale-se também do pretérito perfeito do indicativo para assinalar a relação que existe
entre o ambiente de outrora e o atual.
No final do texto, a personagem conclui que as flores lhe oferecem todas as belezas. Elas
simbolizam o belo, a perfeição, a própria alma, o desapego à vida e a evolução espiritual do
homem.
Alguns elementos do texto podem sugerir que o protagonista narra os fatos após sua morte:
Agora são elas [as flores] que me fornecem nutrientes para que eu cresça viçoso […].
A linguagem figurada está presente no miniconto. Exemplifica-se: As flores […] tomaram de
mim tudo o que era meu: minha casa, meu ar, meus movimentos, meu corpo, minha liberdade, meu
desejo, meu sonho, minha vida e minha morte, meu futuro. Essa metáfora pode representar que, com
a morte, nada resta do ser humano.
A tipologia textual de base do miniconto em estudo é a narração, pois há um fato com início,
meio e fim, envolvendo uma personagem, tempo e espaço.
Estudo de texto
Nesta parte, propõem-se atividades voltadas para a leitura e escrita do gênero textual
miniconto, direcionadas aos alunos da disciplina de Língua Portuguesa do Ensino Médio e da
disciplina de Leitura e Produção Textual do Curso de Graduação em Letras.
I. Pré-leitura
1) Você já leu minicontos? Cite alguns.
2) Para você, o que é um miniconto?
3) Qual é o título do miniconto que você lerá?
4) Quem é o autor desse texto?
5) Em que obra esse miniconto foi publicado?
6) Qual é o país de origem desse miniconto? Como você chegou a essa conclusão?
7) Você já leu outros textos desse autor? Qual (is)?
8) O que representa matar o Tempo, a partir da primeira frase do miniconto: Como a viatura
atravessava o bosque, ele a fez parar nas proximidades de um estande de tiro ao alvo, dizendo que
lhe era agradável atirar algumas balas para matar o Tempo.
9) A partir do título e da primeira frase do texto, imagine a possível trama do miniconto.
II. Leitura
1) Leitura silenciosa do miniconto.
2) Leitura em voz alta do texto pelo professor ou por um aluno.
O GALANTE ATIRADOR
1 Como a viatura atravessava o bosque, ele a fez parar nas proximidades de um estande de tiro
ao alvo, dizendo que lhe era agradável atirar algumas balas para matar o Tempo. Matar esse
monstro não é a ocupação mais comum e a mais legítima de cada um? E ofereceu galantemente a
mão para sua amada, deliciosa e execrável mulher, a esta misteriosa mulher à qual lhe devia muito
em prazeres, muito em dores, e pode ser também uma grande parte da sua genialidade.
2 Várias balas bateram longe do alvo desejado; uma delas afundou-se ainda no teto. E como a
charmosa criatura ria loucamente, zombando da inabilidade de seu marido, este virou-se
bruscamente para ela e lhe disse: “Observe esta boneca, lá, à direita, que tem o nariz arrebitado e as
feições tão altivas. Muito bem! Meu anjo querido, eu imagino que seja você.” E ele fechou os olhos
e puxou o gatilho. A boneca foi literalmente decapitada.
3 Depois, inclinando-se sobre sua amada, sua deliciosa, sua execrável mulher, sua inevitável e
implacável Musa, e, beijando-lhe respeitosamente a mão, acrescentou: “Ah! Meu anjo querido,
como lhe agradeço por minha pontaria!”
BAUDELAIRE, Charles. Le galant tireur. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação
dos autores.
III. Atividades orais de interpretação
1) As hipóteses que você levantou a respeito da trama do miniconto se confirmam após a leitura?
Comente.
2) Quem é o protagonista desse miniconto? Como ele é nomeado?
3) Onde ele se encontra? Quem o acompanha?
4) O que o protagonista pretende a princípio?
5) Ele consegue atingir seu objetivo? Por quê?
6) Qual é a reação da mulher diante disso?
7) O texto sugere que ele ficou irritado com a reação da amada? Por quê?
8) O que ocorre no fechamento da narrativa?
9) No miniconto há vazios que precisam ser preenchidos pelo leitor. Com base nisso, o que podem
representar as seguintes ações do protagonista: inclinou-se sobre sua mulher e beijou sua mão?
IV. Atividades escritas de interpretação
1) Substitua as palavras ou expressões por outras de mesmo sentido, considerando o contexto em
que foram empregadas.
a) galante (título):
b) estande de tiro ao alvo (parágrafo 1):
c) legítima (parágrafo 1):
d) execrável (parágrafo 1):
e) altivas (parágrafo 2):
f) decapitada (parágrafo 2):
g) implacável (parágrafo 3):
h) Musa (parágrafo 3):
2) Quais são as personagens envolvidas na trama do miniconto O galante atirador? Caracterize-as.
3) Em torno de que conflito se desenvolve o miniconto?
4) Referindo-se ao Tempo, o narrador questiona o leitor: matar esse monstro não é a ocupação mais
comum e a mais legítima de cada um? Qual é a sua posição frente a essa pergunta?
5) O que representa o fato de o protagonista imaginar que a boneca com o nariz arrebitado e as
feições tão altivas é a própria esposa?
6) O que sugerem as ações narradas no fechamento do miniconto?
7) Que efeito esse miniconto provoca em você, leitor?
8) Que características contribuem para que O galante atirador se configure como um miniconto?
Práticas de análise da linguagem e reflexão linguística
1) Observe quem narra os fatos no texto.
a) Qual é a posição do narrador em relação aos fatos do miniconto? Comprove sua resposta com um
fragmento do texto.
b) Que tempo verbal prepondera? Exemplifique.
c) Por que o narrador usa esse tempo verbal?
2) No início e no final do miniconto, o narrador repete os adjetivos amada, deliciosa e execrável
para qualificar a mulher.
a) Que efeito o uso desse recurso ocasiona na construção do sentido do texto?
b) Constata-se nesse trecho a presença da figura de linguagem denominada antítese? Explique,
relacionando com o sentido do miniconto.
3) No texto, o narrador afirma que o protagonista devia à sua mulher muito em prazeres, muito em
dores.
a) O que representa a fala do protagonista?
b) Nesse fragmento, observa-se novamente a presença da antítese? Justifique com base no sentido
global do texto.
4) É possível depreender ironia na fala do homem dirigida à sua esposa: “Ah! Meu anjo querido,
como lhe agradeço por minha pontaria!”(parágrafo 3)? Por quê?
5) Conforme o texto, o Tempo é um monstro. O que simboliza essa metáfora?
6) Atente no texto para a transcrição das falas das personagens.
a) Prevalece o discurso direto ou indireto? Exemplifique.
b) Qual é o tempo verbal predominante? Por que há o uso desse tempo verbal?
7) Leia com atenção o fragmento a seguir e faça o que se pede.
[...] ele virou-se bruscamente para ela e lhe disse: “Observe aquela boneca, lá, à direita, que tem o
nariz arrebitado e as feições tão altivas. Muito bem, meu caro anjo, eu imagino que seja você”
(parágrafo 2).
a) Reescreva a fala da personagem, transformando o discurso direto em indireto. Realize os ajustes
necessários.
b) Na reescrita da fala, que mudança houve em relação ao uso dos tempos verbais? Por que
aconteceu essa alteração?
8) No miniconto em estudo, há várias palavras vinculadas ao campo semântico morte.
a) Destaque cinco vocábulos pertencentes a esse campo semântico.
b) Que relação pode ser estabelecida entre o uso desses vocábulos e o desfecho do miniconto?
Produção textual
1) Produção textual escrita
A seguir, você tem o início de um miniconto escrito por Charles Baudelaire. Use sua
imaginação e dê continuidade à narrativa. Lembre-se de que esse gênero textual preza sobretudo
pela objetividade e concisão.
A SOPA E AS NUVENS
Minha louquinha bem-amada me serviu o jantar, e pela janela aberta da sala eu contemplava
as movediças arquiteturas que Deus faz com as nuvens, as maravilhosas construções do impalpável.
E eu refletia em meio à minha contemplação: “Todas estas fantasmagorias são quase tão belas
quanto os olhos da minha bela bem-amada, a louquinha monstruosa de olhos verdes.”
Subitamente ....
BAUDELAIRE, Charles. La soupe et les nuages. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação
dos autores.
2) Reescrita
A partir das observações de seu professor e mediante as inadequações verificadas por meio
de sua própria leitura, reescreva seu miniconto.
3) Produção oral
Pesquise minicontos de autores brasileiros, como Dalton Trevisan, Luiz Rufatto, Sérgio
Sant’Anna, Tatiana Blum, Miguel Sanches Neto, Antonio Torres, João Gilberto Noll e Millôr
Fernandes. Apresente oralmente um dos textos aos colegas e professor.
Considerações finais
Este artigo apresentou um estudo do gênero textual miniconto e sugeriu atividades de
leitura, escrita, análise da linguagem e reflexão linguística, voltadas aos estudantes da disciplina de
Língua Portuguesa do Ensino Médio e da disciplina de Leitura e Produção Textual do Curso de
Graduação em Letras. O trabalho proposto pode possibilitar a apropriação do miniconto por parte
dos alunos e a compreensão das condições de produção e recepção desse gênero textual.
Assim, espera-se contribuir para o aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem de
língua materna, com subsídios teórico-práticos que poderão favorecer o desenvolvimento da
competência comunicativa dos alunos.
Referências
Referências teóricas
BRASIL. Parecer CNE/CES 492/2001, de 03 de abril de 2001. Estabelece Diretrizes Curriculares
Nacionais dos cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação Social,
Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Diário Oficial da União,
Brasília, p.50, 09 jul. 2001. Seção 1e. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.
BRASIL. PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos parâmetros
curriculares nacionais – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2002.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf>. Acesso em: 04 jun.
2013.
CAPAVERDE, Tatiana da Silva. Intersecções possíveis: o miniconto e a série fotográfica. 2004. 98
f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2004. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/6117/000436913.pdf?sequence=1>. Acesso em:
27 maio 2014.
LAGMANOVICH, David. El microrrelato hispánico: algunas reiteraciones. Iberoamericana:
América Latina – España - Portugal, Berlín; Hamburgo; Frankfurt am Main/Madrid, v. 9, n. 36,
p.85-96, 2009. Disponível em: <http://journals.iai.spk-
berlin.de/index.php/iberoamericana/article/view/735/418>. Acesso em: 26 maio 2014.
RODRIGUES, Elizete; SOUZA, Vanderlei de; SOUZA, Marlene de Almeida Augusto de. O poder
atômico do miniconto: análise de narrativas ultracurtas divulgadas em concursos literários na
Internet. Letras Raras, Campina Grande, v. 2, n. 1, p.73-92, 2013. Disponível em:
<http://150.165.111.246/revistarepol/index.php/RLR/article/view/144/131>. Acesso em: 26 maio
2014.
SPALDING, Marcelo. Os cem menores contos brasileiros do século e a reinvenção do
miniconto na literatura brasileira contemporânea. 2008. 81 f. Dissertação (Mestrado em
Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-africanas) – Instituto de Letras, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13816/000651683.pdf?sequence=1>. Acesso
em: 28 maio 2014.
Referências de textos literários e não literários na íntegra
BAUDELAIRE, Charles. Le galant tireur. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose.
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02
jun. 2014. Tradução e adaptação dos autores.
CECAGNO, Douglas. As flores cresceram [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<[email protected]> em 15 maio 2014.
_____. Tarde [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 15 maio 2014.
Referências de obras com trechos citados
BAUDELAIRE, Charles. La soupe et les nuages. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en
prose. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso
em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação dos autores.
O PRETÉRITO PERFEITO COMPOSTO DO INDICATIVO EM LÍNGUA ESPANHOLA:
VALORES ASPECTUAIS
Valdecy de Oliveira PONTES82
Letícia Joaquina de Castro Rodrigues SOUZA E SOUZA83
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os valores aspectuais presentes no uso de
Pretérito Perfeito Composto do indicativo. Com relação às amostras, selecionamos algumas
entrevistas sociolinguísticas dos seguintes centros urbanos: Buenos Aires, Cidade do México e
Madri. Martínez-Atienza (2008) destaca três subvariedades do aspecto Perfeito: o resultativo, o
experiencial e o continuativo. Descreveremos os valores aspectuais encontrados (resultativo e
experiencial) e analisaremos as seguintes questões relacionadas ao PC em Espanhol: a) os usos,
considerando-se os matizes de significado no discurso; b) as diferenças de uso com base no aspecto;
c) correlação forma-função.
Palavras-chave: Variação Dialetal. Pretérito Perfeito Composto, Valores Aspectuais.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo analizar los valores aspectuales presentes en el
uso del Pretérito Perfecto Compuesto de indicativo. En cuanto a las muestras, seleccionamos
algunas entrevistas sociolingüísticas de los siguientes centros urbanos: Buenos Aires, Ciudad de
México y Madrid. Martínez-Atienza (2008) apunta tres subvariedades para el aspecto Perfecto: el
resultativo, el experiencial y el continuativo. Describiremos los valores aspectuales encontrados
(resultativo y experiencial) y analizaremos las siguientes cuestiones relacionadas al PC en
Español: a) los usos, teniendo en cuenta los matices de significado en el discurso; b) las diferencias
de uso a partir del aspecto; c) correlación forma-función
Palabras-clave: Variación Dialectal. Pretérito Perfecto Compuesto. Valores Aspectuales.
Introdução
Neste trabalho, trataremos da noção de tempo e aspecto ao analisar o Pretérito Perfeito
Composto (PC) do espanhol. O PC é uma forma verbal que apresenta grandes divergências de uso
82 Doutor em Linguística – UFC; Professor do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade
Federal do Ceará – UFC; Pesquisador do Grupo SOCIOLIN-CE/UFC. [email protected] 83
Doutoranda em Linguística – UFC; Professora do Departamento de Letras Estrangeiras da
Universidade Federal do Ceará – UFC.
entre variedades geográficas — e sociais — de uma mesma língua. Pode-se dizer que o PC é uma
categoria temporal-aspectual, uma vez que carrega traços de tempo e aspecto. A princípio, essa
forma composta estaria veiculada ao aspecto Perfeito. Martínez-Atienza (2008) destaca três
subvariedades do aspecto Perfeito: o resultativo, o experiencial e o continuativo. Há a possibilidade,
em espanhol, segundo alguns autores (BARTENS; KEMPAS, 2007; CARRASCO GUTIÉRREZ,
2008), do PC poder, a princípio, na variedade peninsular do espanhol, e no norte da Argentina estar
veiculado a dois aspectos: Perfeito ou Perfectivo.
Há muitos estudos dedicados a debater o uso do PC em espanhol, a descrever os contextos
onde aparecem nas diferentes variantes dessa língua. Entretanto, poucos abordam a questão deste
tempo verbal poder veicular dois diferentes aspectos, o perfectivo (evento concluído) ou o Perfeito
(consequência no presente de um evento passado). O estudo de Harris (1982, apud AKERBERG
2008) analisa o uso do PC nas línguas românicas. Com a evolução dessas línguas, o uso desse
tempo verbal foi se modificando e com isso o valor aspectual veiculado a ele também. O autor
descreve a evolução da categoria do PC em diferentes etapas e propõe que o PC pode estar em 4
estágios. Harris (1982) demonstra o que representa o PC em cada etapa e mostra que ao se
desenvolver e passar para outro estágio, a língua não perderá os valores já existentes. A escala do
autor começa com a etapa onde o PC encontra-se apenas veiculado ao Perfeito resultativo, já a
última fase seria aquela onde o PC fosse utilizado em contexto de aspecto perfectivo.
Este artigo pretende analisar os valores aspectuais resultativo e experiencial atrelados ao uso
do Pretérito Perfeito Composto do Indicativo (PC) em amostras orais das cidades de Madri, Cidade
do México e Buenos Aires. De acordo com García Fernández (1998, 2000, 2004), o PC no espanhol
pode ter duas leituras aspectuais: uma de Perfeito (perfect) e outra de perfectivo. Tomaremos por
base os valores elencados por García Fernández (2006) para o Aspecto Perfeito, experiencial e
resultativo. Analisaremos as seguintes questões relacionadas ao PC em espanhol: a) os usos,
considerando-se os matizes de significado no discurso; b) as diferenças de uso com base no aspecto;
e c) a correlação forma-função.
O aspecto verbal em espanhol
De acordo com Comrie (1990), a diferença entre o pretérito perfeito composto e o
pretérito perfeito simples é também aspectual. Pois, não se estabelece uma relação entre dois pontos
no tempo, e sim a relevância de uma situação passada no momento da enunciação. Por isso, como
usamos esses dois tempos para falar do passado, a diferença é aspectual e não temporal. A diferença
está no fato de o pretérito perfeito composto apresentar, além do valor de Aspecto perfectivo
(conclusão da ação passada), o valor de Aspecto perfeito, ou seja, de consequência presente de uma
situação passada, ou ainda da relevância para o falante, no momento da enunciação, de uma ação
passada. Vejamos um exemplo em que usamos o pretérito perfeito composto por tratar-se de
consequência presente de uma situação passada:
(1) Pablo se cayó de la bici y se ha roto un brazo. (Pablo caiu da bicicleta e quebrou um braço.)
A diferença fundamental entre Tempo e Aspecto consiste no fato de o primeiro
considerar somente o tempo externo da situação e o Aspecto considerar o que está relacionado com
a ideia de tempo interno da ação. Para Comrie (1976, p 03): “Aspecto são diferentes formas de ver a
constituição interna de uma situação.”84
García Fernández (2006), por sua vez, retoma muitas das
pesquisas recentes e analisa o Aspecto a partir da relação entre o tempo da situação (tempo do
evento) e o tempo do foco (período em que uma determinada afirmação é válida). A partir desses
pressupostos, o autor propõe cinco tipos de Aspecto (p.45):
a) Imperfeito: o tempo do foco (TF) está incluído no tempo da situação (TS). Focaliza a parte
interna da situação sem mencionar o início ou o final.
(2) Hace dos días Juan pintaba su casa./ Faz dois dias que Juan pintava sua casa.
b) Perfectivo ou Aoristo: O tempo do foco (TF) inclui todo o tempo da situação (TS), desde
seu início a sua finalização.
(3) El presidente leyó su discurso a las ocho./ O presidente leu o seu discurso às oito.
Neste exemplo, o Aspecto Perfectivo tem uma interpretação ingressiva, ou seja, sabemos
que a leitura foi iniciada às oito horas, mas não há a inclusão do ponto de finalização da
referida ação. Logo, ela é vista em sua totalidade e com um final implícito.
c) Perfeito: o tempo do foco (TF) é posterior ao tempo da situação (TS). Esta variedade
aspectual enfatiza os resultados do evento.
(4) Hace dos días Juan ya había pintado su casa. /Faz dois dias que Juan já tinha pintado a
casa.
84 Aspects are different ways of viewing the internal constituency of a situation.
d) Prospectivo: o tempo do foco (TF) é anterior ao tempo da situação (TS).
(5) Hace dos días Juan iba a pintar su casa./ Faz dois dias que Juan ia pintar a sua casa.
e) Continuativo: o tempo do foco (TF) abrange desde o início do tempo da situação (TS) até
um ponto interno de seu desenvolvimento.
(6) Juan lleva dos horas pintando su casa./ Juan gasta duas horas pintando a sua casa.
A seguir, apresentamos o sistema aspectual do Espanhol, proposto por García Fernández
(2006):
a) Prospectivo: a fase ou período prévio, o TF é anterior ao TS.
b) Incoativo: focaliza o início da ação.
c) Continuativo: desde o início até o momento anterior ao final (ponto interno do
desenvolvimento da ação).
d) Imperfeito: posterior ao início e anterior ao final, o TF está incluído no TS.
e) Progressivo: focaliza somente um instante.
f) Habitual: repetição que caracteriza a ação como um costume.
g) Contínuo: focaliza uma situação que se mantém estável durante o intervalo de tempo que
se toma como referência.
h) Aoristo ou Perfectivo: desde o início até o final.
i) Terminativo: focaliza o final da ação.
j) Perfeito: focaliza o período posterior ao evento. Temos dois tipos de Aspecto Perfeito:
1) Resultativo: focaliza o resultado de uma ação anterior.
2) Experiencial: estado de coisas que supõe ter tido uma experiência anterior:
(7) Yo ya he comido espaguetis./ Eu já comi espaguetis.
Em nossa pesquisa, trataremos da relação entre Tempo e Aspecto ao analisarmos os valores
aspectuais atrelados ao uso do Pretérito Perfeito Composto (PC). Tomaremos por base os valores
elencados por García Fernández (2006) para o Aspecto Perfeito, a saber: experiencial e resultativo.
Outra questão, que devemos considerar, reside no fato de os gramáticos apresentarem o
Pretérito Perfeito Composto (PC) com funções e papéis fixos. No entanto, sabemos que a língua não
é um objeto estável e regido por regras fixas e pré-determinadas, ou seja, homogênea. Ao
verificarmos o funcionamento de uma língua, percebemos que, nos diferentes contextos, ela se
apresenta de forma heterogênea, ou seja, apresenta variações. Tarallo (2002), retomando a proposta
de Coseriu (1976), classifica essas variações como: diatópicas (diferenças em função do espaço
geográfico); diastráticas (diferenças em função dos aspectos sociais; como sexo, idade, etnia etc.) e
diafásicas (diferenças em função da utilização dos diversos estilos de linguagem na comunicação).
Há muitos estudos dedicados a debater o uso do PC em espanhol, a descrever os contextos
onde aparecem nas diferentes variantes dessa língua. Entretanto, poucos abordam a questão deste
tempo verbal poder veicular dois diferentes aspectos, o perfectivo (evento concluído) ou o Perfeito
(consequência no presente de um evento passado). Por exemplo, há a possibilidade, em espanhol,
segundo alguns autores (HARRIS, 1982; BARTENS; KEMPAS, 2007; CARRASCO
GUTIÉRREZ, 2008), do PC poder, a princípio, na variedade peninsular do espanhol e no norte da
Argentina estar veiculado a dois aspectos: Perfeito ou Perfectivo. No sentido de resolver essa
lacuna, uma abordagem sociolinguística variacionista (LABOV, 1972, 1994 e 2001), poderia trazer
contribuições bem significativas, pois, nesta perspectiva, analisa-se a língua, a sua variação e os
processos de mudança, considerando-se a função semântico-pragmática das variantes.
Metodologia
O corpus oral está constituído por entrevistas sociolinguísticas transcritas que fazem
parte do Macrocorpus da Norma Linguística Contamos, então, com um total de 3 entrevistas
transcritas, de aproximadamente meia hora de duração com intervenção do entrevistador, uma para
cada centro urbano (Madri, Cidade do México e Buenos Aires). O ideal talvez tivesse sido analisar
mais entrevistas, no entanto, devido à quantidade de dados encontrados nas três entrevistas e à
quantidade de fatores que selecionamos para a pesquisa, optamos por aprofundar uma análise mais
qualitativa. Ademais, de acordo com Silva (2009), mesmo que, na atualidade, haja uma gama de
bancos de dados orais da Língua Espanhola, há diversidade no que diz respeito à metodologia para
a coleta dos dados, ao estilo e às datas. Ademais, o acesso para os pesquisadores limita-se à consulta
via internet e à aquisição em formato de mídias. Vejamos a descrição dos informantes:
a) Madri:
Mulher de 26 anos (Neurologista)
b) Cidade do México:
Homem de 25 anos (Engenheiro químico)
c) Buenos Aires:
Homem de 35 anos (Advogado e professor universitário)
Devemos destacar que tanto a fala do informante quanto a do entrevistador são tomadas
como objeto de descrição e análise. Optamos por considerar, também, a fala do entrevistador
porque nos interessa analisar os turnos de fala. Tal decisão foi tomada tendo em vista que o
entrevistador possui perfil semelhante aos entrevistados, sendo este do mesmo centro urbano que o
entrevistado.
Grupos de fatores controlados
Nesta seção, faremos uma breve exposição dos fatores de análise que foram utilizados nesta
pesquisa, são eles:
Fatores controlados:
1) grupos de fatores linguísticos:
a) nível semântico-lexical: tipos de verbo, conforme Vendler (1957, 1967);
estados: apresentam uma duração indefinida, são atélicos e estáticos (Él tiene ojos verdes./
Ele tem olhos verdes.);
atividades: são durativas, atélicas e dinâmicas (Ella bailó toda la noche/ Ela dançou a noite
toda.);
processos culminados: são durativos, télicos e dinâmicos (Él construyó una casa./ Ele
construiu uma casa.);
culminações: denotam eventos instantâneos, télicos e dinâmicos (María abrió la puerta./
Maria abriu a porta.).
b) nível sintático-semântico: modificadores aspectuais, polaridade; agentividade e objeto
individuado.
c) nível textual-discursivo: figura e fundo, conforme Hopper e Thompson (1980), unidades da
narrativa (Labov 1972b).
2) grupos de fatores extralinguísticos:
a) centro urbano: Madri, Cidade do México e Buenos Aires;
b) turno de fala: entrevistador e informante.
Apresentação e análise dos resultados
Para a análise da alternância entre os valores aspectuais experiencial e resultativo do PC,
utilizaremos o programa estatístico GOLDVARB (2005) do pacote computacional VARBRUL.
Este programa foi projetado por David Sankoff especialmente para a análise da variação
sociolinguística. A função principal é a de realizar uma análise de regressão de variáveis
qualitativas. Para os dois valores aspectuais analisados, o programa considerou como relevantes, em
términos estatísticos, somente o centro urbano e o turno de fala. Por isso, para os demais fatores,
analisaremos as porcentagens de ocorrências.
Tabela 01: Atuação do centro urbano na codificação da função resultativa
Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo
Madri 14/60 23,3% 0,413
Cidade do México 08/12 66,7% 0,791
Buenos Aires 6/15 40% 0,586
A partir das probabilidades obtidas, podemos verificar que na Cidade do México há uma
maior probabilidade de uso do PC com o valor aspectual resultativo, com um valor de 0,791, assim
como em Buenos Aires com um valor de 0,586. Por outro lado, conforme a amostra, Madri
apresenta um baixo valor probabilístico para o uso do valor resultativo com somente 0,413. Dessa
forma, conforme os dados analisados, podemos observar que há uma tendência para o uso do valor
resultativo por parte dos centros urbanos da Cidade do México e Buenos Aires. Selecionamos
alguns exemplos que ilustram o uso do PC com valor resultativo, nestas duas capitais:
(8)… generalmente su base es la que han adquirido en los libros extranjeros./ ... geralmente sua
base é a que adquiriram nos livros estrangeiros. (Cidade do México)
(9) … me he encontrado con profundas dificultades./ ... encontrei profundas dificuldades. (Buenos
Aires)
Em relação ao valor aspectual, podemos verificar nos exemplos 8 e 9 o resultado de uma
ação passada, ou seja, os livros foram adquiridos (8) e o falante encontrou profundas
dificuldades. O resultado estatístico obtido a respeito da Cidade do México está de acordo com o
que propõe Paixão (2011). De acordo com a autora, a variedade mexicana está na terceira etapa do
esquema proposto por Harris (1982, p.42 - 70), ou seja, o falante mexicano utiliza, principalmente,
o PC quando quer marcar que o resultado de uma ação passada é claramente relevante, sem que haja
obrigatoriamente marcas de duração ou repetição, se trata de um presente ampliado.
Tabela 02: Atuação do turno de fala na codificação da função resultativa
Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo
Informante 26/65 40% 0,607
Entrevistador 2/22 9,1% 0,217
Vimos que no turno conversacional dos informantes há uma maior probabilidade de uso do
PC com o valor aspectual resultativo, com um valor de 0, 607. No entanto, por causa do tamanho da
amostra analisada, não podemos considerar que o uso do valor resultativo esteja condicionado ao
turno de fala do informante, no gênero entrevista sociolinguística. Por outro lado, podemos sugerir
que existe uma tendência para tal uso, mas propomos a realização de estudos futuros para que se
confirme ou se refaça tal proposição. Como ilustração deste valor aspectual, selecionamos dois
exemplos:
(10)… se ha desarrollado esta industria./ ... desenvolveu-se esta indústria. (Informante)
(11) … no se ha descubierto que la tenga./ ... não se descobriu que a tenha (Entrevistador)
Para a discussão sobre os resultados obtidos com os demais fatores que o programa não
considerou como relevantes, em termos estatísticos, selecionamos somente o fator que apresentou
porcentagens de ocorrências mais significativas: tipos de verbo.
Tabela 03: Atuação dos tipos de verbo na codificação da função resultativa
Fatores Aplicação/Total Porcentagem
Processo Culminado 20/51 41,2%
Culminações 1/13 7,7%
Estado 5/19 26,3%
Atividades ¼ 25%
Entre as propostas para classificar os verbos segundo o critério aspectual, a que há
desfrutado de maior influência nos estudos linguísticos é esta classificação proposta por Vendler
(1967). A partir da correlação desta classificação de aspecto léxico com o valor aspectual
resultativo no uso do PC, verificamos que os verbos que indicam processo culminado favorecem o
uso do PC com valor resultativo. Os processos culminados, segundo Morimoto (1998), são eventos
extensos, que se prolongam ao passar do tempo, mas apresentam uma finalização. A porcentagem
de 41,2% para este tipo de verbo confirma o que propõe Givón (2001), ou seja, que os verbos que
indicam processos culminados e culminações estão relacionados com o uso do PC e PS do
indicativo. No entanto, os verbos de atividade e estado favorecem o uso do pretérito imperfeito do
indicativo. Selecionamos, a seguir, um exemplo do valor aspectual resultativo relacionado ao
processo culminado:
(12) Yo he matado a este individuo./ Matei este indivíduo. (Processo Culminado)
Em relação ao valor aspectual experiencial do PC, a partir dos dados apresentados na tabela
04, podemos verificar que somente a cidade de Madri favorece o uso deste valor aspectual com
probabilidade de 0,608 frente aos outros centros urbanos que apresentaram tão somente 0,391
(Buenos Aires) e 0,162 (Cidade do México).
Tabela 04: Atuação do centro urbano na codificação da função experiencial
Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo
Madri 37/60 61,7% 0,608
Cidade do México 2/12 16,7% 0,162
Buenos Aires 6/15 40% 0,391
O resultado estatístico obtido a respeito de Madri está de acordo com o que propõe Akerberg
(2008), ao tratar dos valores do PC, afirma que o uso do PC para o passado recente é muito marcado
no espanhol peninsular. No entanto, esta variedade ainda apresenta os outros valores aspectuais, tais
como: experiencial e resultativo. Para ilustrar o uso do valor aspectual experiencial, na cidade de
Madri, apresentamos o seguinte exemplo:
(13) No ha tenido amor en su vida./ Não teve amor em sua vida. (Experiencial - Madri)
Com relação à discussão sobre os resultados obtidos com os demais fatores que o programa
não considerou como relevantes, em termos estatísticos, selecionamos somente o fator que
apresentou porcentagens de ocorrências mais significativas: polaridade.
Tabela 05: Atuação da polaridade na codificação da função experiencial
Fatores Aplicação/Total Porcentagem
Positivo 40/78 51,3%
Negativo 5/9 55,6%
No corpus analisado, encontramos mais ocorrências de orações cuja polaridade é positiva
com 78 dados. Destes, 40 estão relacionados com o valor aspectual experiencial com uma
porcentagem de 51,3%. Por outro lado, ainda que haja uma porcentagem de 55, 6 % para as orações
negativas, temos tão somente 5 ocorrências de um total de 9. Com o objetivo de exemplificar a
polaridade nas orações analisadas, apresentamos dois dados, a continuação:
(14) Porque no han tenido nunca un hogar./ Porque nunca teve um lar (Polaridade negativa)
(15) He estado veinte días en los Pirineos./ Estive vinte dias nos Pirineos. (Polaridade positiva)
Considerações finais
Em relação à discussão sobre os resultados obtidos, verificamos que no uso do Pretérito
Perfeito Composto (PC):
a) o valor aspectual resultativo desfruta de uso nos centros urbanos da Cidade de México e
Buenos Aires, o que corrobora os resultados de outros estudos já publicados, tais como:
Paixão (2011) e Harris (1982). Ademais, o turno de conversação do sujeito entrevistado
favorece o uso deste valor aspectual;
b) o valor aspectual experiencial foi encontrado, principalmente, no centro urbano de
Madri, o que ratifica as considerações de Akerberg (2008), ao tratar dos valores do PC,
no espanhol peninsular.
Por fim, destacamos o caráter limitado dos resultados de nossa investigação. Portanto, não
temos a pretensão de tecer generalizações para outros contextos de uso da língua espanhola.
Confiamos que futuras investigações, sobre os valores aspectuais de PC, permitirão corroborar ou
relativizar os resultados e interpretações que aqui esboçamos.
Referências
AKERBERG, M. “Efeitos do ensino sobre a aquisição das diferenças de uso do pretérito simples e
composto em espanhol e português.” In L. Wiedemann e M. Scaramucci (Orgs.). Português para
falantes de espanhol. Ensino e aquisição. São Paulo: Pontes, 2008.
BARTENS, A; KEMPAS, I. Sobre el valor aspectual del Pretérito Perfecto en el español
peninsular: resultados de una prueba de reconocimiento realizada entre informantes universitarios”.
In: Revista de Investigación Lingüística, nº 10, 2007: 151–171.
CARRASCO GUTIÉRREZ, Ángeles. Los tiempos compuestos del español: formación,
interpretación y sintaxis. In. CARRASCO GUTIÉRREZ, Ángeles. Tiempos compuestos y formas
verbales complejas. Madrid: Lingüística iberoamericana, 2008. p.13 – 64.
COMRIE, Bernard. Tense (4 ed.). Cambrigde: Cambridge University Press, 1990.
____. Aspect: an introduction to the study of verbal aspect and related problems. Cambridge:
Cambridge University Press, 1976.
COSERIU, E. El sistema verbal románico. México: Siglo XXI Editores, 1976.
GARCÍA FERNÁNDEZ, Luis. El aspecto gramatical en la conjugación. Madrid: Arco/Libros,
1998.
____ La gramática de los complementos temporales. Madrid: Visor Libros, 2000.
____ El pretérito imperfecto: repaso histórico y bibliográfico. In: Ed. L. García Fernández y B.
Camus Bergareche. El pretérito imperfecto. Madrid: Gredos, 2004.
____ Diccionario de perífrasis verbales. Madrid: Gredos, 2006.
GIVÓN, T. Syntax: an introduction. Amsterdam: J. Benjamins, 2001.
HARRIS, M. The past simple” and “present perfect in Romance. In: Vicent, N.; HARRIS, M.
(eds.). Studies in the Romance Verb. London: Croom Helm, 1982, p.42-70.
HOPPER, P.; S. THOMPSON. Transitivity in Grammar and Discourse. Language, vol. 56, n° 2:
pp.251-299, 1980.
LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972a.
____. Language in the inner city. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972b.
____ . Principles of Linguistic Change: Internal Factors. Cambridge, MA: Blackwell, 1994.
____ . Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell, 2001.
MARTÍNEZ-ATIENZA, Maria. Dos formas de oposición en el ámbito románico”. In: CARRASCO
GUTIÉRREZ, Ángeles. Tiempos compuestos y formas verbales complejas. Madrid: Lingüística
iberoamericana, 2008. p.204 – 229.
MORIMOTO, YUKO. El aspecto léxico: delimitación. Madrid: Arco/Libros, 1998.
PAIXÃO, F.T. O valor aspectual veiculado ao pretérito perfeito composto na variante
mexicana. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) – Curso de Pós-graduação em Letras
Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
SANKOFF, David; TAGLIAMONTE, Sali A. e SMITH, E. Goldvarb X - A multivariate analysis
application. Toronto: Department of Linguistics; Ottawa: Department of Mathematics. 2005.
SILVA, Iandra Maria da. As voltas que o modo dá: parâmetros funcionais da alternância
indicativo/subjuntivo em espanhol. Tese (Doutorado em Linguística) – Curso de Pós-graduação em
Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
TARALLO, Fernando. A Pesquisa Sociolinguística. (7. ed.) São Paulo: Ática, 2005.
VENDLER, Zeno. Verbs and Times. In: The philosophical review. Vol. 02, Nº 2. 1957, p.143-
160.
____ . Verbs and Times. In: Linguistics in philosophy. New York: University Press, 1967.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.164
QUANDO O AGORA NÃO É AGORA NOS GÊNEROS ACADÊMICOS
João Bosco FIGUEIREDO-GOMES85
Carla Daniele Saraiva BERTULEZA86
Resumo: As gramáticas tradicionais apresentam os advérbios como uma classe fechada, cujos
elementos têm características de circunstanciadores. Entretanto se constata que alguns desses
elementos assumem novos usos, como o agora que, dependendo do gênero, ocorre
diferentemente do uso prototípico como advérbio de tempo. Com base na orientação teórica
da Linguística Funcional Centrada no Uso, este artigo tem como objetivo descrever
sincronicamente os usos do item agora em gêneros acadêmicos. Os resultados empíricos
demonstram uma tendência de trajetória de mudança construcional do agora: TEMPO >
TEXTO, funcionando, além do uso prototípico, como sequenciador textual e como marcador
discursivo em gêneros acadêmicos.
Palavras-chave: Funcionalismo. Linguística Funcional Centrada no Uso. Gramaticalização.
Agora. Gêneros Acadêmicos.
Abstract: Traditional grammars present the adverbs as a closed class whose elements have
characteristics of circumstance. However, it has been verified that some of those elements
assume new uses such as the use of “now” that, depending on the genre, occurs differently
from its prototypical use as an adverb of time. Based on the theoretical orientation of Usage-
Centered Functional Linguistics, the present article aims at synchronically describing the
uses of the item “now” in academic genres. The empirical results demonstrate a tendency of
constructional change of “now”: TIME > TEXT, functioning, in addition to its prototypical
use, as a textual sequencer and as a discourse marker in academic genres.
Keywords: Functionalism. Usage-Centered Functional Linguistics. Grammaticalization.
Now. Academic Genres.
85 Doutor em Linguística, professor do Programa de Pós-graduação em Letras e do
Departamento de Letras do Câmpus Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, em Açu/RN - Brasil. [email protected] 86
Mestre em Letras, professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia –IFRN, Câmpus Pau dos Ferros/RN – Brasil. [email protected]
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.165
Introdução
Sabemos que os advérbios são tratados pela tradição gramatical como uma classe
fechada, cujos elementos têm características de circunstanciadores, como tempo, modo,
dúvida, intensidade, entre outros. Entretanto sabemos também que se trata de uma classe
heterogênea que não se prende somente a um núcleo, mas também ao conteúdo semântico-
discursivo da oração, podendo alguns de seus elementos assumirem novas funções. É o caso
do agora que, dependendo do gênero, ocorre diferentemente do uso prototípico como
advérbio de tempo.
Com base na orientação teórica da Linguística Funcional Centrada no Uso
(FURTADO DA CUNHA et al., 2013), este artigo tem como objetivo descrever
sincronicamente os usos do item agora nos gêneros acadêmicos dissertação de mestrado e
tese de doutorado.
O artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente, apresentamos os
achados de trabalhos funcionalistas sobre o item agora em outros gêneros que não os
acadêmicos; em seguida, discorremos sobre a orientação teórica desta investigação que reside
na proposição denominada pelo grupo Discurso & Gramática como Linguística Funcional
Centrada no Uso – LFCU; depois, vem a metodologia, seguida da análise e discussão dos usos
do item agora nos gêneros acadêmicos, mostrando os resultados e as tendências de seus
diferentes usos.
ESTUDOS FUNCIONALISTAS SOBRE O ITEM AGORA
Nesta seção, apresentamos alguns significados/funções do item agora resultantes dos
estudos funcionalistas de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues
(2009) e Philippsen (2011).
Niedzieluk (2004) estuda o item agora no discurso oral de Florianópolis, cujos dados
foram extraídos de 24 entrevistas do Banco de Dados do Projeto Variação Linguística Urbana
na Região Sul do Brasil – VARSUL. Buscando descrever a multiplicidade de funções que o
agora exerce, a autora apresenta duas macrofunções: a de advérbio temporal, que contém
cinco microfunções, e a de conector/elo discursivo, que contém quatros microfunções.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.166
Segundo Niedzieluk (2004), o agora possui a propriedade dêitica enquanto advérbio
referenciador da circunstância de tempo, estruturalmente vinculado ao plano sentencial. A
macrofunção advérbio temporal está dividida nas seguintes microfunções: a) momento atual:
o agora é empregado aludindo ao momento atual da enunciação do falante; b) época atual: o
agora é empregado aludindo à época atual, ou seja, o momento de enunciação refere-se à
época atual/contemporânea; c) tempo de contraste: o agora é empregado para contrastar com
a época passada e isto é mencionado no discurso precedente do informante; d) tempo de
referência ao passado: o agora é empregado aludindo a um tempo referido pelo falante com
relação ao passado; e) tempo de referência ao futuro: o agora é empregado aludindo a um
tempo referido pelo falante com relação ao futuro.
Niedzieluk (2004) afirma que o item agora possui também uma característica
específica de conector/elo discursivo, que é a propriedade que permite dar sequencialidade ao
discurso, funcionando como um organizador, ao estabelecer uma relação entre a parte do texto
que ele introduz e a precedente, estabelecendo um elo coesivo. A partir dessa macrofunção de
conector/elo discursivo, o item agora assume as microfunções: a) contrastivo: o agora tem a
função de explicitar uma oposição à ideia anterior; b) retomador: o agora tem a função de
recuperar anaforicamente o tópico da narrativa e dar prosseguimento ao discurso; c)
avaliativo: o agora tem a função de explicitar um ponto de vista e/ou uma opinião do
informante; d) avaliativo de realce: o agora tem também a função de explicitar um ponto de
vista ou opinião, mas atenta para um enfoque especial na informação precedente; e) aditivo: o
agora tem a função de acrescentar outra informação ao já dito.
Desse modo, Niedzieluk (2004) conclui que o item agora parece estar exposto ao
processo de gramaticalização, que se transfere de sua categoria inicial para outra, no caso, de
uma “microfunção puramente dêitica temporal para uma macrofunção de conector/elo
discursivo, passando por uma transição entre essas duas categorias.” (NIEDZIELUK, 2004,
p.04).
Outro trabalho que estuda o item agora é o de Souza Júnior (2005). O autor faz um
estudo sincrônico nas tiras de quadrinhos de “Gatão de Meia idade”, de Miguel Paiva. Souza
Júnior (2005) mostra que o item agora ocorre nas funções de dêitico temporal, na função de
juntivo e na função discursiva. Para Souza Júnior (2005), o agora, quando se apresenta como
dêitico temporal prototípico, equivale semanticamente a “neste momento”, “no momento
presente” que remete ao tempo presente da ação enunciativa. Quando o item agora atua na
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.167
função juntiva, assume a função de conector com o sentido mais abstrato, perdendo o traço de
mobilidade e ganhando o traço de fixação, passa a funcionar como recurso para organização
das ideias e a progressão textual, estabelecendo relações de causalidade, apresentando a noção
de conclusão, de contrajunção com ideia de ressalva e com a ideia de contraste, ao vir
acompanhado de mas, marcando assim a oposição temporal passada. Diferentemente, quando
o item agora assume a função discursiva, ele atua nas funções de introdutor de digressão,
quando o falante (um personagem) insere um segmento tópico no interior de outro, e de
redirecionador de tópico, quando o falante (um personagem) deixa de lado um tópico
principal sobre o qual discorre para dar explicações, opinião sobre o que está sendo tratado.
Desse modo, Souza Júnior (2005) afirma que o item agora está perdendo os traços
presentes no uso temporal e apresentando novos usos e funções como o valor juntivo, agindo
como um conector de sequencialização, estabelecendo relações lógicas e, em outros casos, o
item agora está atuando como marcador discursivo na organização do discurso. Segundo o
autor, o agora está passando, portanto, por uma trajetória crescente de abstratização, passando
de um sentido mais concreto para um mais abstrato.
Também em uma perspectiva sincrônica, Duque (2009) fez um estudo sobre o
processo de gramaticalização do item agora, utilizando o córpus de língua falada do
Programa de Estudos de Usos da Língua/UFRJ – PEUL. O autor encontrou uma diversidade
de ocorrências com o uso do elemento agora e afirma que esse item surgiu da reanálise da
expressão latina hac hora ((n)esta hora). Com base nessa diversidade encontrada, Duque
(2009) defende que o item agora vem cumprindo a trajetória ESPAÇO > TEMPO > TEXTO,
proposta por Heine et al. (1991).
Ancorado na perspectiva funcionalista de vertente norte-americana, Duque (2009)
classificou o agora encontrado nas ocorrências como exofórico (ou dêitico) e endofórico
(juntivo ou discursivo), funções que se assemelham com as apresentadas por Souza Júnior
(2005), pois o uso considerado exofórico por Duque (2009) é aquele que Souza Júnior
denomina de dêitico temporal, em que o item agora equivale a “neste momento” ou “no
momento presente”. A função juntiva do agora é entendida pelos dois autores já mencionados
como um uso em que o item apresenta-se como conector responsável pela organização das
ideias: a de adversidade e a de concessão, que fazem parte da função que Souza Júnior (2005)
chama de contrajunção, em que o elemento articula sequencialmente o texto.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.168
Outro ponto em comum entre os achados de Duque (2009) e de Souza Júnior (2005) é
o agora discursivo, em que os autores mostram que, nessa função, o item exerce o papel de
marcador discursivo, perdendo características temporais e textuais, passando a atuar na
organização de unidades discursivas, promovendo a abertura, a retomada ou o fechamento de
tópico.
Philippsen (2011) também apresenta um estudo sincrônico sobre o item agora, mas
em textos orais e escritos do Estado de Mato Grosso. Para a autora, o item agora apresenta,
nos textos analisados, as funções de dêitico, conector de sequencialização, conector de
contrajunção, conector de causalidade ou perífrase conjuncional causal/explicativa e marcador
discursivo. Segundo Philippsen (2011), o agora dêitico apresenta traços prototípicos como
mobilidade de colocação na frase e localização de referência temporal de momento presente.
Com base na frequência do item agora conector, Philippsen (2011) observa que o uso dessa
função pode tratar-se de um deslizamento funcional de agora advérbio > conjunção, em que
as velhas formas se revestem de uma nova roupagem, ou seja, uma nova função, fruto do
processo de gramaticalização. Como Souza Júnior (2005), a autora também reconhece o item
agora como conector de contrajunção, cujo efeito discursivo pretendido é mostrar ao
interlocutor a oposição de ideias entre os segmentos textuais. Além da função de conector de
contrajunção, o item agora apresenta também a função de conector de sequencialização, cujo
efeito discursivo pretendido é direcionar o interlocutor para a sequência dos acontecimentos.
Parece-nos que esse uso, reforçado pelo conector e, tem também um aditivo, acrescentando
mais uma informação e funcionando como além disso. Para Philippsen (2011), o agora
também apresenta a função de conector de causalidade ou perífrase conjuncional
causal/explicativa, que, segundo ela, o efeito discursivo apresenta a crença do falante a
respeito do que é dito e a explicação causal atribuída aos fatos. Além disso, a autora
constatou alguns usos do agora na função de marcador discursivo, em que esse item assume
funções argumentativas referentes à organização lógica das ideias, assim “nas velhas formas e
nas novas funções acrescentam-se novos efeitos sintático-pragmáticos”. (PHILIPPSEN,
2011, p.16).
Para Philippsen (2011), a gramaticalização do item agora como conector de
contrajunção ocorre na modalidade oral, pois, na escrita, continua-se utilizando a conjunção
adversativa mas. A autora constatou também que não só os deslizes funcionais se apresentam
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.169
em um contínuo dos usos da língua, mas também que os efeitos sintático-pragmáticos são
mobilizados num processo permanente de gramaticalização.
Devido ao estudo de Rodrigues (2009) ser diferente dos demais já apresentados, não
obedecemos à ordem cronológica. Trata-se, pois, de um estudo pancrônico de textos do latim
até o século XX sobre o item agora. Nos dados analisados, o item agora apresenta usos
temporais, usos de conexão e usos discursivos. Segundo Rodrigues (2009), o item agora
ainda é usado como advérbio, mas deixa de se vincular ao momento presente e passa a ter
traços com mais referência temporal passada em alguns casos e mais referência temporal
futura em outros. Rodrigues (2009) nos mostra que, exercendo o papel de elemento de
conexão, o item agora assume a função de sequencializador, de opositor e de concluidor. No
papel de marcador discursivo, segundo Rodrigues (2009), o item agora funciona como
enfatizador de tópico, localizado em todas as sincronias, e retomador de tópico, encontrado
somente nas sincronias clássica e moderna. Com base nisso, Rodrigues (2009) afirma que o
agora é um item multifuncional que se gramaticalizou, ao longo da trajetória da língua
portuguesa, cujo percurso é TEMPO > TEXTO.
Em síntese, podemos assinalar que, conforme os estudos apresentados, o item agora
assume, nos diferentes gêneros, usos temporais: como advérbio temporal, também chamado
de dêitico temporal ou exofórico; usos de conexão: como retomador, avaliativo, aditivo,
concluidor, sequencializador, conector de causalidade e conector de contrajunção (ou de
contraste); e usos discursivos: como marcador discursivo, introdutor de digressão,
redirecionador de tópico, enfatizador de tópico. Essa multifuncionalidade nos levou a verificar
quais usos do agora podem caracterizar os gêneros acadêmicos, como veremos adiante.
A Linguística Funcional Centrada no Uso
Historicamente, a denominação dessa abordagem provém de usage-based model
(modelo baseado no uso), termo que foi utilizado primeiramente por Langacker (1987) para
designar modelos teóricos que privilegiam o uso da língua. Em Martelotta (2011), o modelo
passou a ser traduzido como “linguística centrada no uso” e, mais recentemente, como
proposição teórico-metodológica do Grupo Discurso e Gramática – D&G, essa vertente
passou a ser designada Linguística Funcional Centrada no Uso – LFCU (FURTADO DA
CUNHA et al. 2013).
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.170
A LFCU é, pois, uma abordagem resultante da junção das tradições de pesquisas de
representantes da Linguística Funcional, como Givón, Hopper, Traugott, Bybee, Heine, entre
outros, como também representantes da Linguística Cognitiva, como Lakoff e Langacker.
Essas correntes apresentam diversos pressupostos teórico-metodológicos em comum, como a
rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às análises, a
não distinção escrita entre léxico e gramática, a relação entre a estrutura das línguas e o uso
que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação.
Segundo Furtado da Cunha et al. (2013), o princípio da Linguística Funcional
Centrada no Uso é que a estrutura da língua emerge a partir dos contextos em que esta é
usada. Assim essa abordagem compreende a regularidade e a instabilidade da língua como
sendo influenciadas e modificadas pelas práticas discursivas dos usuários no cotidiano social
(FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007). A LFCU é também um tipo de abordagem
que, em sua análise, expõe tanto os aspectos formais, das formas pela estrutura social, como
também dados relacionados aos contextos comunicativos, ou seja, dados semânticos,
pragmáticos e discursivos. Desse modo, existe o interesse pela dimensão formal (fonético-
fonológica e morfossintática) e a dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva).
Na dimensão significativa, os fatores discursivo-pragmáticos e semântico-cognitivos
funcionam para satisfazer demandas comunicativas, seguindo da eventualidade discursiva
para a regularização estrutural previsível; nesse processo de regularização acontece um
crescente grau de abstratização. Na dimensão formal, estão os processos de mudança
relacional entre os signos e a transformação da construção na qual eles interagem.
Assim, a Linguística Funcional Centrada no Uso tem como objeto de estudo temas que
estejam relacionados à emergência e à regularização de padrões construcionais no âmbito da
proposição, envolvendo fatores fonológicos, morfológicos e sintáticos, como também o
discurso e os aspectos linguísticos relacionados à organização do texto. Essa abordagem
também leva em conta aspectos relacionados às restrições cognitivas que incluem a captação
de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na memória, como também
aspectos associados à capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão de
acordo com os dados da experiência.
Segundo Martelotta (2011), a habilidade linguística do falante é vista como formada
das regularidades no processamento mental da linguagem em contextos de uso. Os eventos de
uso são primordiais para a continuidade da estruturação do sistema, pois fornecem o input
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.171
para os sistemas de outros falantes, por meio, por exemplo, de reanálises, analogias e outros
processos que sugerem alterações e extensões no uso das expressões linguísticas. Assim, o
sistema tem um caráter eminentemente dinâmico ou emergente, já que surge da adaptação das
habilidades cognitivas humanas em eventos de comunicação específicos e amplia-se a partir
da repetição ou ritualização desses eventos.
A LFCU reconhece a base biológica da linguagem, as estruturas e habilidades inatas
que capacitam os humanos a aprender e usar uma ou mais línguas, mas mostra que os
aspectos culturais têm uma importância mais significativa. Assim, esse paradigma não adota a
noção de sintaxe autônoma, como faz o gerativismo, já que não acredita existir uma gramática
autônoma de base biológica, em que os princípios estejam inseridos na estrutura genética
humana.
A abordagem da LFCU entende a sintaxe, pois, como estando diretamente relacionada
a fenômenos de natureza semântica ou discursivo-pragmática. A sintaxe é vista como uma
estrutura a serviço do discurso e esse é entendido como um uso criativo da língua nos
diferentes contextos de comunicação. Segundo Furtado da Cunha (2012), o discurso e a
gramática interagem e um influencia o outro mutuamente, de tal modo que, no uso real da
língua, um não pode ser acessado, ou até mesmo explicado, sem referência ao outro. Nessa
perspectiva, as línguas são motivadas e moldadas pela interação complexa de princípios
cognitivos e funcionais que exercem um papel na aquisição, no uso e na mudança linguística
(TOMASELLO, 1998).
A gramática é vista pela LFCU como um conjunto de esquemas/processos simbólicos
que são usados na elaboração e na organização de um discurso coerente. Segundo Furtado da
Cunha et al. (2013), a gramática é constituída de categorias morfossintáticas rotinizadas,
apresentando padrões funcionais mais regulares e formas opcionais em processo de mudança
motivada por fatores cognitivo-interacionais. Desse modo, a gramática e o discurso estão
unidas e agem em mútua dependência, em que um (re)modela o outro.
Assim, a gramática é concebida como um “sistema aberto, fortemente suscetível à
mudança e intensamente afetado pelo uso que lhe é dado no dia a dia” (FURTADO DA
CUNHA; TAVARES, 2007, p.18). Considerando o aspecto emergente da gramática, as
regras que regulam o sistema linguístico resultam de um grupo de princípios de adaptação
contextual. A gramática, por esse viés, é um fenômeno sociocultural em que sua estrutura e
sua regularidade vêm do discurso, sendo moldadas em um processo contínuo. Exemplo disso
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.172
é a posição do sujeito na predicação em português: podemos colocar o sujeito antes ou depois
do verbo, mas, ao formular as frases, temos que decidir em que parte vai aparecer, o que não é
arbitrário, já que é o contexto de uso o fator motivador da escolha. Então, dominar uma
gramática de uma língua significa dominar os mecanismos de natureza sintática e os
processos associados a: organização textual (planos discursivos, coesão e coerência, etc.) e
aos fenômenos interacionais (intenções e expectativas dos participantes, leituras de interação,
implicaturas conversacionais, etc.). Existe uma estreita relação entre esses pontos, porque o
texto é organizado contextualmente e o próprio lugar da interação, posto que os interlocutores,
“como sujeitos ativos, negociam o sentido de maneira interativa, tanto respondendo ao
contexto quanto criando contexto.” (TRAUGOTT; DASCHER, 2005).
Em suma, vimos que, na LFCU, os fatores sociocognitivos entram em ação no
processamento das sentenças, ou seja, na interação e que a utilização de informações
contextuais é primordial para a criação e interpretação das sentenças, implicando também em
uma visão adaptativo-funcional do sistema linguístico que serve de base à comunicação
verbal. Assim, temos uma visão de gramática emergente que reflete a criatividade humana
para encontrar a forma ótima e expressiva de comunicação em diferentes contextos.
Resultante dessa gramática emergente é o fenômeno da gramaticalização. Segundo
Furtado da Cunha et al. (2013), a gramaticalização designa fenômenos de variação e mudança
linguística, que se modificam tanto sincrônica como diacronicamente, considerando, como
vimos, aspectos relacionados à dimensão significativa e a dimensão formal.
O processo de gramaticalização tem como princípio cognitivo a exploração de velhas
formas para novas funções (WERNER; KAPLAN, 1963), o que faz com que conceitos
concretos sejam movimentados para o entendimento de um elemento menos concreto.
Assim, os falantes e ouvintes, devido às assimetrias de suas experiências, negociam e adaptam
funções e formas para o sucesso da troca comunicativa, permitindo que a língua altere os seus
padrões discursivos e a sua contraparte mental.
Segundo Heine et al. (1991), torna-se possível expor o processo de gramaticalização
por meio do grupo de categorias conceptuais, de acordo com uma escala de abstração
crescente, em que cada elemento seguindo um percurso unidirecional se liga a outro elemento
a direita por meio de “flechas” (“>” leia-se “passa para”), resultando no que muitos
pesquisadores chamam de “metáforas categoriais”:
PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.173
Para os autores, essas categorias representam um domínio de conceituação relevante
para a estruturação da experiência humana. Martelotta (2008) ilustra essa escala de
abstratização, em português, por meio de exemplos, com a palavra “braço” que indica uma
parte do corpo e passa a designar um objeto como “braço da cadeira”, uma atividade, como
em “braçada”, uma medida de espaço, como em “uma braça” e uma qualidade, como em “Ele
é meu braço direito”. Essas categorias representam uma variedade de conceitos definidos
perceptual e linguisticamente.
Continuando essa perspectiva, mais recentemente, a LFCU, baseada em Traugott
(2012) e Traugott e Trousdale (2013), entende a gramaticalização como uma mudança
construcional que acaba por moldar a gramática da língua e implicar diluição de fronteiras
categoriais mais nítidas. Nessa ótica, um uso qualquer, motivado por fatores de ordem
pragmático-discursiva pode se tornar, via repetição frequente, uma expressão fortemente
esquemática e convencional, em termos de sentido e estrutura, que cumpre uma nova função,
de estatuto mais gramatical. Ou seja, o que era livre escolha passa a ser idiomático e os novos
usos, com maior vinculação entre si, tornam-se mais abstratos e (inter)subjetivos.
(FURTADO DA CUNHA; OLIVEIRA, 2014)
Metodologia
O córpus utilizado na invetigação faz parte do banco de dados de Dissertações e Teses
sobre gramaticalização, organizado por Figueiredo-Gomes e Bertuleza (2013) e intitulado
córpus DISSERTAÇÕES E TESES – DISSERTES.
O córpus DISSERTES constitui um banco de dados que permite uma análise do
Português culto Brasileiro, norma exigida em trabalhos acadêmicos, que contém uma média
de 2.000.000 palavras, dos gêneros acadêmicos Dissertações e Teses, defendidas no período
de 1998 a 2012. Como o córpus é formado por trabalhos de gramaticalização, há muitas
amostras de fala, ilustrando os fenômenos de estudo. Para caracterizar os usos do agora em
gêneros acadêmicos, por razões metodológicas, isolamos todas as amostras de fala, uma vez
que esses usos não caracterizam o gênero em questão.
A fim de analisarmos os usos do item agora nos gêneros acadêmicos, selecionamos as
categorias de análise resultantes dos estudos existentes sobre esse item, quais sejam, os
estudos de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues (2009) e
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.174
Philippsen (2011). Na seleção das variáveis, incluímos todos os usos identificados nos
trabalhos sobre esses itens, embora alguns sejam próprios da língua falada, nós os
mantivemos no levantamento, posto que esses usos podem ter se gramaticalizado na escrita.
Como o córpus deste trabalho é formado por dissertações de Mestrado e teses de
Doutorado, sentimos a necessidade de defini-los enquanto gêneros acadêmicos. Segundo
Swales (1990), o gênero acadêmico é associado a gêneros escritos que apresentam alguma
investigação produzida por seus(suas) autores(as) com interesse de expor suas descobertas ou
discutir questões teóricas e/ou metodológicas. Segundo a ABNT, esses dois gêneros, apesar
de acadêmicos, são diferentes, pois a dissertação evidencia o conhecimento de literatura
existente sobre um assunto e a capacidade de sistematização do candidato ao título de mestre,
já a tese apresenta uma investigação original, constituindo-se em real contribuição para a
especialidade em questão, que concede ao candidato o título de doutor, último título de
escolaridade reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior-CAPES.
Para o tratamento dos dados, obedecemos aos seguintes passos: após selecionarmos as
dissertações e as teses, fizemos a conversão do formato *pdf (Adobe Reader) dos gêneros
acadêmicos para o formato *txt, extensão necessária à aplicação do programa WordSmith
Tools (SCOTT, 2008), uma ferramenta de grande valia para os pesquisadores da Linguística
de Córpus, que possibilita a coleta de amostras de usos da linguagem. O programa
WordSmith Tools apresenta três ferramentas, são elas: o WordList, que permite gerar listas de
palavras, contendo todas as palavras do arquivo ou arquivos selecionados, elencadas em
conjunto com suas frequências absolutas e percentuais; o Concord, que faz concordâncias de
uma palavra específica com partes do texto onde ocorreu; e o KeyWords, que coleta palavras
de acordo com a frequência.
Nesta pesquisa, o programa WordSmith Tools contribuiu para a coleta de amostras em
que ocorrem os usos do item agora e para o cálculo de frequência dos usos desse item. O
programa permitiu também listarmos as concordâncias do item agora com os outros
elementos que são usados no texto e extrairmos as amostras para a análise dos usos em
comum.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.175
Usos e funções do item agora em gêneros acadêmicos
Sabemos que o item agora etimologicamente provém de hac hora (latim) que significa
‘neste momento’ ou ‘no momento presente’ e tradicionalmente é visto como um simples
advérbio, um dêitico temporal que tem como função situar eventos a que se refere em um
determinado período de tempo. No entanto, esse item pode apresentar um desdobramento da
noção de tempo, que, segundo Neves (1992), ele não revela apenas o momento fisicamente
determinado, mas apresenta variação de alcance que pode referir-se a um mínimo pontual,
como também pode abranger um momento maior ou menor, pertencente à esfera do presente,
do passado ou do futuro, desde que se aproxime do momento da enunciação ou o atinja.
Pudemos ver, na seção “Estudos funcionalistas sobre o item agora”, essa abrangência e outros
achados nos estudos de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues
(2009) e Philippsen (2011).
Com base nesses estudos, encontramos usos temporais prototípicos do agora nos
gêneros acadêmicos segundo os dados do córpus DISSERTES e outros que se desdobraram
com outras funções como podemos ver na Tabela 01.
Como mostra a Tabela 01, o item agora ocorre, no córpus DISSERTES, com usos
mais próximos do seu sentido prototípico, como TEMPO (57%): dêitico temporal, mudança
de estado e divisor de época, e o agora como TEXTO (43%): sequencial e introdutor de
tópico, que apresentamos, a seguir:
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.176
1 AGORA COMO TEMPO
O uso do agora como tempo foi encontrado nos cinco os trabalhos que apresentamos.
É o uso do agora como advérbio temporal, diferenciando apenas as especificações da
referência da circunstância de tempo. Descrevemos, a seguir, os usos temporais assumidos
pelo item agora no córpus DISSERTES, quais sejam: agora dêitico temporal, mudança de
estado e divisor de época.
1.1 AGORA DÊITICO TEMPORAL
O córpus DISSERTES apresentou os usos temporais do item agora que indicam a
noção de tempo, por meio da função de dêitico temporal, função prototípica desse item
equivalente a “neste momento”, em 27,5% de ocorrências, como podemos ver nas amostras
(1) e (2).
(1) Resta agora observar o comportamento das modais introduzidas pela
locução SEM QUE, no que tange à mobilidade posicional. (73-D-21)87
(2) O efeito principal da apassivação é que ela cria, por assim dizer, um
ambiente inacusativo. Por figurar agora em um ambiente inacusativo, o
complemento de considerar passa pelas mesmas transformações descritas em
(6): o sujeito da SC é alçado para o Spec/IP matriz em (8a), mas não em
(8b). (34-T-08)
Conforme (1) e (2), amostras dos gêneros dissertação e tese, respectivamente, sobre
estudos de gramaticalização da língua portuguesa, o item agora ocorre na sua função de
dêitico temporal. Na amostra (1), o item agora em “resta agora observar” equivale
semanticamente a “neste momento”. Já na amostra (2), o item agora em "por figurar agora em
um ambiente inacusativo, o complemento de considerar passa pelas mesmas transformações
descritas em (6):” corresponde ao momento presente da enunciação.
87 As amostras estão codificadas da seguinte maneira: o primeiro número corresponde à
ocorrência no programa Excel; a letra maiúscula indica o gênero (D – Dissertação; T - Tese) e o
número corresponde à identificação do texto no córpus DISSERTES.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.177
1.2 AGORA MUDANÇA DE ESTADO
Ocorreram 24,7% de usos nos gêneros acadêmicos em que o item agora apresentou a
função temporal de mudança de estado, função que equivale semanticamente a “a partir desse
momento” como mostra (3) e (4). Embora sejam muito próximos da função divisor de época,
diferenciamos estes usos por não sugerirem um cessamento, mas uma mudança de estado que
se inicia.
(3) A contração de para com o artigo a era esperada neste contexto, porque
no registro de fala coloquial este tipo de contração (pra) é usual. O gênero
de Unicamp foi alterado e agora é masculino: Unicampo, mas o seu
determinante continua feminino: a Unicampo. (127-D-30)
(4) No entanto, ressalta-se que sempre se imaginou como principal intenção
de um estudo não o esgotamento das possibilidades de análise ou o
oferecimento de todas as respostas, mas a promoção de reflexão sobre novas
respostas, novos caminhos de investigação que, neste caso, agora estão
submetidos à apreciação e contribuição dos leitores. (94-T-13)
Na amostra (3), a função temporal do item agora apresenta uma noção de mudança de
estado, em que o gênero da palavra Unicamp, a partir daquele momento, foi alterado para o
masculino. Verificamos também uma mudança de estado em (4), em que o item agora
pressupõe que, a partir daquele momento, estão submetidas às reflexões sobre as respostas e
os caminhos da investigação. Salientamos que é um uso que se diferencia da função dêitica do
agora, apesar de temporal, por marcar as mudanças nos eventos a partir de um tempo
específico.
1.3 AGORA DIVISOR DE ÉPOCA
Outro uso temporal, apresentado nos gêneros acadêmicos, embora com 4, 5% de
ocorrências, é o agora divisor de época que se trata de um uso em que o item agora faz
referência a uma situação que era no passado de uma forma e no momento da enunciação não
é mais, como ocorre em (5).
(5) Todavia, diferentemente de (32), em que o operador argumentativo era
apenas o item até, sendo que o que não podia ser retirado da sentença sem
prejuízos sintáticos, por ser uma conjunção integrante, agora o que se
chama de operador argumentativo é o grupo até que, já que ele, em bloco,
serve ao discurso. (26-D-15)
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.178
Na amostra (5), em que a dissertação versa sobre os operadores argumentativos e
mostra que a função era restrita a apenas um elemento, o “até”, não incluindo o “que” como
conjunção integrante, mas, por meio do item agora, marca-se a época atual, em que o
operador argumentativo “até” mudou, passando a constituir as expressões até que e fazendo
parte do grupo já que.
2 AGORA TEXTUAL
Assumindo funções mais textuais e discursivas, o item agora passa a desempenhar
novas funções advindas do seu sentido primeiro (tempo), funcionando, no texto, como
conectivo, apresentando noção de sequenciação; e como marcador discursivo, introduzindo
tópico.
2.1 AGORA SEQUENCIAL
Esse uso está presente nos estudos de Niedzieluk (2004), distribuído nas funções
contrastivo, retomador, avaliativo, avaliativo de realce e aditivo, que coloca no mesmo grupo
as funções discursivas. Souza Júnior (2005) registra apenas como conector o agora juntivo
por contrajunção. Além do agora juntivo adversidade, Duque (2009) encontra o agora juntivo
concessão. Rodrigues (2009) registra os usos do conector sequencializador, opositor e
concluidor. Por fim, Philippsen (2011) inclui na função do agora conector, além da
contrajunção, o conector de sequencialidade e de causalidade (perífrase conjuncional
explicativa/causal). No córpus DISSERTES, o item agora como conectivo apresenta também
a noção de sequenciação.
Na função sequencial, também tipificada por Rodrigues (2009) e Philippsen (2011), o
item agora, com 38,5% de ocorrências, tem, nos gêneros acadêmicos, a função de dar
continuidade à sequência de eventos ou ações dentro do contexto em que está inserido. Trata-
se de um uso em que existe uma fluidez entre o registro escrito e a localização espacial no
texto, como mostra (6) e (7).
(6) Na realidade, o uso dessa sentença tem a função de defender um
argumento contrário ao procedimento em questão, uma vez que a
propriedade resultante já existe. Observe agora o exemplo contido em (2-
23). (07-D-18)
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.179
(7) Uma vez confirmada a capacidade de discriminação e de esquematização
dos informantes, cabe agora discutir o nível dessa granularidade e a força de
coesão entre os grupos. (91- T-23)
Nas amostras (6) e (7), o agora enfraquece sua noção temporal e passa a estabelecer
uma relação de continuidade entre as informações do registro, direcionando o leitor e
indicando o local do conteúdo textual nos dois gêneros acadêmicos. Verificamos uma forma
de chamamento para o leitor do que quer que seja observado, em (7), e um aviso da
organização do processamento textual do autor que reflete também o direcionamento das
reflexões sobre o conteúdo.
2.2 AGORA INTRODUTOR DE TÓPICO
Segundo Risso, Silva e Urbano (1996), qualquer elemento de função textual
desempenha sempre uma função orientadora da interação, mesmo que seja sutilmente, essa
afirmação mostra que é difícil estabelecer uma distinção exata entre os elementos que são de
função absolutamente textual dos elementos interativos, como os marcadores discursivos. No
entanto, consideramos que, em alguns usos ocorridos nos gêneros acadêmicos, o agora, além
de atuar como um direcionador do texto, ocorre desempenhando funções de predominância
discursiva. Embora com função discursiva do agora, Niedzieluk (2004) inclui as funções
retomador e avaliativo e avaliativo de realce como conector. Considerando marcador
discursivo, Souza Júnior (2005) elenca o agora introdutor de digressão e redirecionador de
tópico; Duque (2009) registra o agora introdutor de tópico; Rodrigues (2009) divide os
marcadores, além do agora introdutor de tópico, nas funções de enfatizador de tópico e
retomador de tópico; e, por fim, Philippsen (2011) engloba o agora como marcador discursivo
na função argumentativa de organizador lógica de ideias. Como marcador discursivo, no
córpus DISSERTES, o item agora funciona como introdutor de tópico, como também o
acharam Duque (2009) e Rodrigues (2009) em gêneros diferentes.
Nos gêneros acadêmicos do córpus DISSERTES, tipificamos o agora introdutor de
tópico, com 4,5% de ocorrências, cuja função é introduzir um tópico ou um novo momento do
discurso, por meio de uma mudança no tópico ou no assunto tratado, como segue em (8) e (9).
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.180
(8) Vimos que era preciso, então, excluir as ocorrências com os principais
ser e ter, além dos modais. Com essa nova rodada, obtivemos um percentual
de 24% de ocorrência da forma nova entre os verbos de segunda conjugação,
amalgamando F e P.Agora, com o índice de 60% de ocorrência da forma
entre verbos de 2ª conjugação e de uma sílaba, podemos concluir que, com
exceção dos verbos mais frequentes na língua e de morfologia mais marcada,
a exemplo de ser e ter, o processo de mudança já atingiu essa conjugação na
escrita. (06-D-17)
(9) Agora, conforme foi feito para o verbo achar, são apresentados alguns
cruzamentos entre a categoria ‘sentidos’ e outras categorias. (113-T-10)
Conforme as amostras, o item agora ocorre iniciando tópicos. Na amostra (8), que
apresenta os percentuais obtidos após a exclusão de algumas ocorrências, o agora aparece
iniciando um novo tópico, apresentando o índice de uma nova forma entre verbos de segunda
conjugação e de uma sílaba. Em (9), o agora também introduz um turno/tópico no qual ele
mostra que, a partir daquele trecho, será feito um cruzamento entre categorias.
Com base nessas ocorrências, constatamos que o item agora, embora seja de um uso
mais conservador, formalidade exigida pelos gêneros acadêmicos, quando mais de 50% dos
usos preservam a função prototípica de dêitico temporal, está passando por um
desdobramento do tempo, seguindo como sequenciador textual e, em outros casos, como
marcador discursivo.
Conclusão
Os resultados empíricos revelam que o item agora apresentam novos usos e funções
nos gêneros acadêmicos, como: dêitico temporal, divisor de época, mudança de estado,
sequencial e introdutor de tópico. Os resultados mostram também que o item agora segue a
trajetória: TEMPO > TEXTO nos gêneros acadêmicos dissertação de mestrado e tese de
doutorado.
Com base nesses resultados, concluímos que o item agora é multifuncional e assume
funções específicas, em certos contextos, que contribuem, principalmente, na organização e
na construção de sentido do texto acadêmico, por meio das funções introdutor de tópico e
sequenciador textual, corroborando, assim, os pressupostos da LFCU, sobretudo no que diz
respeito à teoria da gramaticalização.
Desse modo, podemos tomar a variação e a mudança como um processo que pode ser
trabalhado, nos diversos níveis de ensino e mesmo no nível acadêmico, posto que a variação é
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.181
um traço inerente e mesmo constitutivo das línguas, em maior ou menor grau; já a mudança,
embora seja uma tendência nas línguas, não tem que acontecer. Baseados nisso e nos
resultados apresentados, sugerimos, pois, que essa concepção possa ser levada em conta nas
atividades de análise e reflexão linguística nas aulas de língua portuguesa.
Referências
BERTULEZA, C. D. S.; FIGUEIREDO-GOMES. Córpus DISSERTES. Açu/RN: UERN,
2013. (em andamento)
DUQUE, P.Q. O processo de gramaticalização do item agora. In: XIII CNLF. Anais... Rio de
Janeiro: CiFEFiL, 2009, p.943.
FURTADO DA CUNHA, M. A.; TAVARES, M. A. Linguística funcional e ensino de
gramática. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; TAVARES, M. A. (Org.). Funcionalismo e
ensino de gramática. – Natal, RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2007, p.13-51.
FURTADO DA CUNHA, M. A. A linguística centrada no uso (ou linguística cognitivo-
funcional). In: Sintaxe em foco / [Organizado por] Medianeira Souza. [ et al.]. – Recife:
PPGL / UFPE, 2012.
FURTADO DA CUNHA, M, A.; BISPO, E. B.; SILVA, J. R. Linguística funcional centrada
no uso: conceitos básicos e categorias analíticas. In: CESÁRIO, M. M.; FURTADO DA
CUNHA, M. A. Linguística centrada no uso: uma homenagem a Mário Martelotta. Rio de
Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2013.
FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M. R. Abordagem construcional de gramática
e ensino de língua portuguesa. In: V Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
– De volta ao futuro. (Resumo do simpósio) Leece, Itália: Università del Salento, 2015.
Disponível em: < http://simelp.it/simposio > acesso em: 29 ago. 2014.
HEINE, B.; CLAUDI, U.; HUNNEMEYER, F. Grammaticalization: a conceptual
framework. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.
LANGACKER, R. Foundations of Cognitive Linguistics, v. 1, Theoretical Prerequisites.
Stanford: Stanford University Press, 1987.
MARTELOTTA, M. E. Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
______. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011.
NEVES, M. H. M. Advérbios circunstanciais. In: ILARI, R. (org.) Gramática do português
falado: A ordem. Campinas. UNICAMP/FAPESP.V. 1. 1992.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.182
NIEDZIELUK, L. C. Afinal, como se apresenta o agora no discurso oral de Florianópolis:
conector/elo discursivo ou advérbio temporal? In: VI Encontro - Círculo de Estudos
Linguísticos do Sul – Celsul. Anais... Florian2004.
PHILIPPSEN, Neusa I. Deslizamentos funcionais do item agora: a gramaticalização em
processo. Revista Philologus, Ano 17, N° 49. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr. 2011.
RISSO, M. S.; SILVA, G. M. O.; URBANO, H. Marcadores discursivos: traços definidores.
In: KOCH, I. G. V. (Org.). Gramática do português falado. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1996.
RODRIGUES, F. C. D. Padrões de uso e gramaticalização de agora e então. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal Fluminense – Instituto de Letras, 2009.
SCOTT, M. WordSmith Tools. Oxford: Oxford University Press, 2008.
SOUZA JÚNIOR, R. C. A multifuncionalidade do item agora em tiras de quadrinho: da
gramática ao discurso. Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais- Programa de Pós-graduação em Letras, 2005.
SWALES, J. M. Genre Analysis: English in academic and research settings. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990.
TOMASELLO, M. (Ed). The new psychology of language. New Jersey: Lawrence Erlbaum,
1998.
TRAUGOTT, E. C.; DASHER, R. Regularity in semantic change. Cambridge: Cambridge
University Press, 2005.
TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and constructional changes.
Oxford: Orford University Press, 2013.
WERNER, H.; KAPLAN, B. Symbol-formation: na organismic developemental approach to
language and the expression. Of thought. New York/London/Sidney: Wiley, 1963.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.183
REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE: A POLÊMICA DA
INTERINCOMPREENSÃO EM DISCURSOS SOBRE A MACONHA
Marcio Rogério de Oliveira CANO88
Ricardo CELESTINO 89
Resumo: Em contribuição aos estudos enunciativo-discursivos propostos pela Análise do
Discurso de linha francesa, de Dominique Maingueneau (2006, 2007, 2008, 2012),
analisamos o discurso jornalístico Crônicas do Jornal, de Arnaldo Jabor, veiculados no
telejornal Jornal da Globo, e o discurso de regulamentação da maconha, do presidente
uruguaio José Pepe Mujica. Examinamos a polêmica da interincompreensão que se instaura
nos discursos supracitados, ao problematizarmos a palavra regulamentação, em uma
alternativa política de controle do consumo e venda da maconha no Uruguai. A divergência de
ambos os discursos situa-se na maneira em que um traduz o outro, a partir das formações
discursivas que os institucionalizam politicamente.
Palavras-chave: Polêmica da interincompreensão. regulamentação da maconha. Análise do
Discurso. Arnaldo Jabor. José Pepe Mujica.
Abstract: In contribution to the enunciation-discursive studies proposed by the French-line
Discourse Analysis, by Dominique Maingueneau (2006, 2007, 2008, 2012), we have analyzed
the journalistic discourse Crônicas do Jornal, by Arnaldo Jabor, aired on the TV news Jornal
da Globo, and the marijuana regulation discourse, by the Uruguayan President José Pepe
Mujica. We have examined the controversial interincomprehension which is established in the
above mentioned discourses, when problematising the word regulation, in an alternative
control politics of consumption and sale of marijuana in Uruguay. The divergence of both
discourses lies in the way in which one reflects the other, from the discursive formations that
institutionalize them politically.
Keywords: Interincomprehension polemic; marijuana regulation; Discourse Analysis;
Arnaldo Jabor, José Pepe Mujica.
88 Professor Doutor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Lavras, UFLA, Minas
Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]. 89
Mestrando do Programa de Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, Brasil. E-mail:
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.184
Considerações Iniciais
Este artigo tem como tema o estudo da polêmica da interincompreensão entre o
discurso jornalístico Crônicas do Jornal, de Arnaldo Jabor, veiculado pelo suporte televisivo
da Rede Globo, no telejornal Jornal da Globo, e o discurso de regulamentação da maconha,
proferido pelo presidente uruguaio José Pepe Mujica nos programas TV Folha e TV Brasil.
A polêmica da interincompreensão, proposta por Maingueneau (2008), consiste em
uma categoria que examina, no espaço discursivo, as diversas possibilidades de posições
enunciativas que, em conflito, geram semas positivos e negativos em um mesmo discurso. Em
outras palavras, para o autor há um embate constante, em alguns discursos, entre o ato de
enunciar em conformidade com as regras da formação discursiva e o ato de traduzir o sentido
dos enunciados do Outro, estabelecendo uma relação de oposição e polêmica.
Compreendemos que o uso de drogas e, especificamente, a regulamentação da
maconha proposta por Uruguai reflete um tema de grande polêmica na sociedade atual, por
reunir diversas formações discursivas distintas. Trata-se de um tema que pode ser
compreendido a partir de diversos campos discursivos, dos quais selecionamos o da política,
em que de um lado há a ideia de que o projeto uruguaio se trata de um populismo do governo
uruguaio que simpatiza com a esquerda latino-americana, enquanto de outro há o sema de que
o projeto é inovador e reflete uma necessidade social mundial que nenhum líder político teve
coragem de discutir com propriedade.
Assim, a análise que propomos, pautada na premissa de que a polêmica se localiza no
interior do discurso de um e de outro, é apenas o início de uma grande vereda, possível de ser
ampliada em estudos futuros, tanto no que diz respeito ao tema selecionado – a questão da
regulamentação da maconha – quanto à categoria selecionada, a polêmica da
interincompreensão na Análise do Discurso de tendência francesa.
A descriminalização das drogas e o projeto de estatização da produção da maconha no
Uruguai.
A questão das drogas no Brasil é um tema de grande polêmica. Pela condição marginal em
que é colocada, muitos discursos são produzidos e outros tantos são calados, o que possibilita
uma observação a partir de vários campos discursivos da política, da economia, da saúde, da
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.185
cultura, dentre outros. Porém, podemos concordar com Silva (2007, p.1) que no contexto da
discussão atual sobre esse assunto, há consenso da existência de dois aspectos levantados em
quaisquer esferas sociais que discutam o tema: de um lado, a produção, a comercialização e a
oferta; de outro o consumo de substâncias e suas consequências.
Para a autora, ambas as facetas convivem em interdependência na sociedade. A produção,
comercialização e oferta de drogas só existem, porque há uma demanda que estimula esse
processo. Assim, para o Estado viabilizar planos no combate às drogas, é necessário observar
essas duas facetas na mesma proporção. Ao considerar criminalização a produção,
comercialização e oferta, além do consumo e, por outro lado, as consequências serem tratadas
como problema de saúde e de dependência, cria-se um hiato entre os dois aspectos, o que
possibilita um fosso de produção discursiva complexa, com posicionamentos vários acerca da
questão.
Dentre os discursos possíveis, podemos citar aqueles relativos às políticas antidrogas, que,
segundo Acserald (2003), precisam ter como pressuposto mais a prevenção do que a
repressão. Para o autor, a repressão pela repressão não previne o uso indevido de drogas, mas
coage os usuários que, ao manterem a mesma prática, acabam assumindo o papel social de
marginalizados.
Silva (2007) compreende que o consumo de drogas pode extrapolar as condições de
decisão e escolha das pessoas. Um determinado usuário pode consumir drogas de forma
ocasional e recreativa, sem comprometimentos no que diz respeito a dependências orgânicas
ou psíquicas. Todavia, também há o usuário que possui dependência e que deve ser
compreendido como um sujeito que sofre de um distúrbio ou uma doença tão comum quanto
o alcoolismo, o tabagismo, dentre outros.
A consciência dos efeitos danosos consequente do uso de drogas, segundo Silva (2007),
levou a sociedade brasileira e internacional a construir, lentamente, uma tendência de
enfrentamento do consumo de drogas na perspectiva de prevenção. A partir da década de
1990, quando estudiosos da área da saúde e de políticas públicas notaram a falta de resultados
positivos em projetos de caráter repressor, deram início, paulatinamente, a projetos que
tinham como fundamento prevenir e tratar o usuário de drogas.
A tendência de prevenção e tratamento aos usuários rompeu com o paradigma social
acerca de como observar a temática drogas. Compreende-se, segundo Silva (2007), que a
questão da prevenção e do tratamento constitui-se hoje como uma construção coletiva, que
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.186
envolve os sujeitos em todas as suas relações sociais. A participação direta ou indireta das
diversas instituições que constituem o sujeito enquanto ser social influenciará no rumo de
quaisquer projetos que almejam o combate aos dependentes químicos. Ainda, segundo o
autor, o fortalecimento de políticas que têm como pressuposto a prevenção e o tratamento é
fundamental para a emancipação da sociedade humana.
Em vista disso, nos deparamos, no segundo semestre de 2013, com projeto proposto pelo
presidente uruguaio José ´´Pepe´´ Mujica sobre a estatização da maconha. Contudo, o projeto
gerou grande polêmica na comunidade internacional, uma vez que a figura de Mujica é
marcada por seu posicionamento político de esquerdista sulamericano, o que possibilitou
vincular a discussão e o projeto a esses traços esquerdistas dele, mobilizando uma resposta de
outros setores políticos enviesados pela possibilidade de discussão política que, muitas vezes,
pode colocar a discussão sobre o projeto para segundo plano.
Ex-guerrilheiro tupamaro, Mujica tornou-se destaque internacional em seu primeiro
mandato, observado como um dos políticos cujas ações rompem com o paradigma de seu
lugar de poder. Segundo a revista Carta Capital, Mujica abriu mão de 90% do salário e
preferiu morar em sua chácara, do que na residência oficial. Para a revista americana Foreign
Policy, Mujica está entre os cem pensadores mais importantes de 2013, por redefinir o papel
da esquerda no mundo. Em plena derrocada da esquerda latino-americana, devido à morte de
Hugo Chávez, Mujica torna-se um novo símbolo de representação da esquerda e de críticas de
movimentos opositores.
As propostas de Mujica mobilizam as mídias e instituições não só nacionais, como
internacionais, devido a sua ousadia em tocar temas tabus de grande polêmica na sociedade.
Apenas em 2013, Mujica propôs projetos de legalização do aborto até o terceiro mês, a
liberação da união civil homoafetiva e a estatização da maconha, que foi aprovada pelo
Senado por 16 votos a favor e 13 contra. Tais medidas elevaram a imagem do presidente
uruguaio como um dos principais progressistas da atualidade, para os grupos da esquerda, e
um neo-chavista populista para os grupos da direita.
O projeto de estatização da maconha no Uruguai tem como objetivo a redução da
criminalidade no país. Não se trata de liberar o consumo da erva, mas regularizá-la, a fim de
substituir um mercado de regras marginalizadas e constituir um mercado estruturado pelo
governo uruguaio. Opositores compreendem que o projeto não tem garantias concretas de
êxito, o que leva a crer que o Uruguai será utilizado como uma espécie de laboratório para o
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.187
mundo. A Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes, órgão das Nações Unidas
responsável por supervisionar as convenções e o cumprimento sobre drogas, afirma que o
projeto viola os tratados internacionais assinados, dentre outros países, pelo Uruguai, que
determina o uso da Cannabis apenas para fins médicos e científicos.
No entanto, inúmeros países, dentre eles a Noruega, o México e a Suíça, questionam os
maus resultados que os atuais projetos de combate e de proibição às drogas apresentam. Para
os suecos, os projetos que têm como pressupostos a repressão e a proibição não têm surtido
efeito para a diminuição do consumo de drogas e contribuem para afastar os consumidores
dos tratamentos médicos que previnam doenças físicas e psicológicas em virtude do consumo
de drogas.
Diante dessa realidade, o projeto de Mujica foi ressaltado como inovador por boa parte da
crítica que deixa de lado o posicionamento político do presidente uruguaio. Em inúmeros
depoimentos, Mujica prevê dificuldades, mas defende a ideia de que se trata de uma forma
diferente de buscar minimizar a quantidade de vidas perdidas pelas drogas: desde ajustes de
contas com traficantes, até questões de saúde física e psicológica. Afirma, ainda, que o projeto
possibilita um caminho de combate não por meio da repressão ou da proibição, mas pela
educação e conscientização do consumo desse tipo de substâncias, como há muito tempo se
busca.
Diante da importância e da referência mundial que esse projeto constrói para si e das
formas como se constituem as polêmicas por meio dos discursos produzidos por essa atitude,
propusemos fazer esse estudo para desvelar a organização de um discurso polêmico e a forma
como se dá o processo de interação discursiva que instaura tal polêmica. Em nossos estudos,
privilegiamos o processo de relações interdiscursivas que se manifestam em vários campos
como o jornalístico, o político, o publicitário, o literário entre outros. No espaço desse artigo,
traremos os dados e sua análise de um dos aspectos da arquitetura discursiva que é a polêmica
da interincompreensão. Tal princípio de análise deve colocar em evidência unidades tópicas
ou atópicas que se localizam em uma mesmo campo ou no embate entre dois campos
discursivos.
Para esse estudo, selecionamos um discurso tópico que pretende responder ao projeto do
presidente do Uruguai, produzido pelo Jornalista Arnaldo Jabor e veiculado no Jornal da
Globo, da emissora de mesmo nome. Levantamos, para isso, os traços que compõem os
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.188
sentidos que Arnaldo Jabor propõe para tal projeto e como deveria ser para tratar e desvelar a
instauração da polêmica.
Para compreendermos melhor o que é a polêmica da interincompreensão, traremos uma
reflexão teórica de partida, respaldados essencialmente em Dominique Maingueneau (2006,
2007, 2008, 2012), expoente da área de Análise do Discurso de linha francesa.
A polêmica da interincompreensão
A polêmica da interincompreensão tem como ponto de partida a reflexão sobre os
semas, terminologia muito utilizada na linguística na área da Análise Sêmica (doravante AS).
Entendemos que os semas são unidades semânticas mínimas de significado e para
compreendê-las, na perspectiva da AS, é necessário partir de um conjunto de semelhanças e
diferenças. Um exemplo disto é associar e dissociar o sentido das palavras cadeira e poltrona.
Observaremos que existem semelhanças entre ambas as palavras que as colocam em um
mesmo grupo de objetos, mas existem particularidades que a tornam diferentes e as
individualizam de alguma maneira. Cada um dos elementos semânticos levantados que se
distoam ou se assemelham constitui um sema.
A partir do que compreende a AS acerca dos estudos dos semas, Maingueneau (2008)
propõe um olhar enunciativo-discursivo sobre o estudo da polêmica dos sentidos em um
discurso. Por se tratar a Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD) uma disciplina
linguística que observa os enunciados em relação com a prática social, o autor compreende
que toda e qualquer manifestação enunciativa está submetida a uma relação interdiscursiva de
construção de sentido. Para o autor, o interdiscurso precede o discurso, já que é impossível
conhecermos a prática social constante em uma prática enunciativa sem conhecer outros
discursos que dialogam com o discurso em análise. Assim, o autor afirma que o interdiscurso
deve ser observado como um sistema de restrições e coerções globais, uma vez que é por
meio da interdiscursividade que encontramos um espaço de embate de diversas formações
discursivas. Esse embate, para o analista, serve de unidade central para o estudo do discurso,
já que pressupõe um processo dialógico, de relação nem sempre explícita, entre um processo
enunciativo com outros processos enunciativos anteriores.
Compreendemos ainda que analisar o discurso pela sua relação interdiscursiva
pressupõe a investigação dos dispositivos que vêm a conduzir a relação de um determinado
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.189
discurso com outro, ou ainda, com um determinado universo de discursos. Para Maingueneau
(2008b), a relação com o Outro é o fundamento da discursividade, partindo do pressuposto de
que uma interação discursiva se constitui a partir do diálogo existente com outros discursos -
base do princípio dialógico e polifônico de Bakhtin (1992). A interação enunciativa, segundo
o autor, é constituída pela forma com que um enunciador conduz diversos olhares de Outros
discursos na constituição de seu próprio discurso. Se retomarmos o exemplo anterior, na
perspectiva da AD, em uma palavra podemos ter efeitos de sentidos divergentes a partir de
quem a observa, pois as coerções que serão realizadas para a construção do sentido são fruto
de posicionamentos e de formações discursivas específicas, inscritas em um espaço histórico e
social de cada indivíduo ou grupo de indivíduos.
A partir dessas reflexões, o autor propõe um quadro metodológico que categoriza o
interdiscurso, a partir de uma tríade composta por: universo discursivo, campo discursivo e
espaço discursivo.
Por universo discursivo, Maingueneau (2008b, p.33) entende um conjunto de
formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada. Por conjuntura
dada compreendemos se tratar de espaços histórico-sociais delimitados que servem de
condições de produção para diversos discursos. Segundo o autor, o universo discursivo é de
pouca utilidade ao analista, pois representa uma extensão máxima [...] de domínios suscetíveis
de ser estudados. Em outras palavras, trata-se de um todo vasto e impossível de ser
apreendido em sua totalidade por um analista, já que este tem como finalidade observar os
efeitos de sentido possíveis de um processo enunciativo, dentro de posicionamentos e
formações discursivas mais delimitadas. Contudo, o universo discursivo possibilita uma
abertura para delimitarmos os campos discursivos.
Maingueneau (2008b, p.34) define campo discursivo como um conjunto de formações
discursivas que se encontram em concorrência. Segundo o autor, devemos compreender
concorrência como um confronto de posicionamentos, ou a aliança destes, nos discursos que
possuem uma mesma função social e divergem do modo como deve ser preenchida - ou da
forma com que deve compreender sua prática social.
O recorte por campos não define zonas insulares, ou seja, não estabelece as fronteiras
de influências que definem as condições de produção de um discurso. Isto nos permite refletir
que se tratam de lugares abstratos que apenas possibilitam a consolidação de redes de trocas
de formações discursivas, sem, ainda, delimitá-las. A noção de campo discursivo só permite
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.190
que notemos a existência de dois campos discursivos distintos que possuem uma mesma
formação discursiva de base. Compreendemos que tais fronteiras incidem no posicionamento
discursivo dos enunciados, bem como nas formas de desenvolvimento da prática social
desempenhada pelo discurso.
Para completar a tríade, Maingueneau ( op.cit.p.35) propõe, também, o espaço
discursivo, delimitado pelo analista, que consiste em subconjuntos de formações discursivas.
Mais delimitado que o campo discursivo, trata-se de um recorte de discursos, realizado pelo
analista, que antecedem o discurso a ser analisado e que influenciam na constituição dos
enunciados do discurso em análise. Embora não represente a totalidade de formações
discursivas que compõem seu interdiscurso, faz parte de todo o território de influências
interdiscursivas que o analista construiu para o desenvolvimento de sua pesquisa. É a partir do
espaço discursivo, que se definem como territórios da AD os espaços de trocas entre os
discursos, que vêm a constituir inúmeras formações discursivas, que possibilitam espaço de
trabalho para o analista.
Assim, Maingueneau (2008) propõe que no espaço discursivo há uma polêmica da
interincompreensão. O autor compreende que em cada discurso há uma rede semântica, fruto
da interação entre enunciador e coenunciador, com possibilidades de diversas posições
enunciativas. Segundo o autor:
[...] não há dissociação entre o fato de enunciar em conformidade com as
regras de sua própria formação discursiva e de ´´não compreender´´ o
sentido dos enunciados do Outro; são duas facetas do mesmo fenômeno.
(MAINGUENEAU, 2008, p.100)
Se levarmos em consideração que um enunciado possui um determinado
posicionamento na prática social, constituído pelas formações discursivas no interdiscurso,
compreendemos, segundo Maingueneau (2008, p.101), que a cada posição discursiva se
associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro, traduzindo-os nas
categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, é como se cada
envolvido na enunciação possuísse um sistema de coerções próprio que constrói um simulacro
do discurso do Outro, segundo um posicionamento e um conjunto de formações discursivas
específicas. Assim, na enunciação, há em cada enunciado um conjunto de semas que são
divididos em positivos e negativos. Essa categorização dos semas é realizada no discurso-
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.191
agente, já que é no posicionamento discursivo que os semas de um enunciado emergem, como
dispositivos que servem de coerção para interpretar o discurso do Outro.
Maingueneau (2008, p.100) denomina discurso-agente aquele que se encontra em
posição de tradutor do discurso do Outro e de discurso-paciente aquele que é traduzido. O ato
de traduzir, para o autor, está relacionado ao fato de no interior de um mesmo sistema
linguístico existirem zonas de interincompreensão recíprocas a determinados campos
discursivos que possuem posicionamentos que se divergem. Em outras palavras, na
enunciação há determinadas regras de passagem previstas no sistema de coerções e nas
formações discursivas, que conduzem a um posicionamento de um grupo. Essas regras de
passagem possibilitam interpretações distintas sem afetar a estabilidade do significante
linguístico. Esse tipo de tradução é um mecanismo regular, relacionado, segundo o autor, à
constituição de formações discursivas que remetem, para além delas mesmas, a
descontinuidades sócio-históricas irredutíveis.
A interincompreensão está no interior do espaço discursivo e inscreve-se na
irredutibilidade e redutibilidade de um posicionamento. Compreendemos que determinados
temas, ao serem abordados por grupos sociais diferentes, são tomados de forma irredutível,
sem que sejam aceitas quaisquer possibilidades de invariância que venha a abalar os
paradigmas que constituem as formações discursivas e o posicionamento daquele grupo.
Dessa maneira, examinaremos, a seguir, como se dá a polêmica da interincompreensão em um
discurso institucionalizado da mídia televisiva, acerca da temática da estatização da maconha
no Uruguai.
Regulamentação ou controle? A polêmica da interincompreensão no discurso de Jabor
sobre José ´´Pepe´´ Mujica.
Como afirmamos anteriormente, o projeto de estatização da maconha gerou grande
polêmica nas mídias e demais instituições internacionais. De um lado, presenciamos aqueles
simpatizantes ao projeto de Mujica, defendendo a ideia de que se trata de um passo nunca
dado por nenhum líder político; por outro lado, instituições que relativizam a competência do
governo uruguaio em possibilitar que o projeto saia do papel sem agravar ainda mais a atual
condição dos consumidores de maconha e do narcotráfico.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.192
Assim, selecionamos como amostra para nossa análise o artigo de opinião de Arnaldo
Jabor, veiculado na Rede Globo de televisão, no bloco Crônicas do Jornal, no telejornal
Jornal da Globo, que define de maneira explícita seu posicionamento referente ao tema.
Transcrevemos a seguir, o discurso de Jabor:
Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados? Estão estatizando
a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os níveis da economia: o Estado
quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu irmão, ou daquela
Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior. Como são incompetentes e não
resolvem nada de importante, a América Latina só cuida de bobagens: ao invés de
liberar ou proibir, resolvem estatizar, quando o desastre é exatamente o Estado.
Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de drogas.
- Boa tarde, eu queria 300 gramas da boa.
- O senhor já pegou a senha?
- Que senha, cara?
- E além da senha tem de trazer certidão de nascimento original, dois retratos 3x4
com cabelo cortado, e também...
- Mas eu queria California Gold, vocês tem?
- Hermano, aqui não entra maconha imperialista, aqui só temos maconha de
esquerda.
- E da brasileira, tem?
- Imagina! Vem tudo lá do Paraguai. E agora, depois do golpe neo-liberal que
fizeram, aqui não entra mais o Itaipu Special.
- Pô, cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!
- Tá legal! Mas leva maconha estatal.
- Mas essa eu não quero! É tudo palha!
- Hermano, é a maconha nacionalista! Maconha do povo uruguaio!
- Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que vocês tão
vendendo aí, morô. (JABOR, 2014)
A partir da reflexão exposta anteriormente, acerca de que um discurso é constituído
pelo diálogo com outros discursos, somos capazes de identificar que nossa amostra
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.193
selecionada é constituída pelos campos discursivos da economia e das políticas públicas para
fundamentar o posicionamento político do enunciador, como podemos observar no recorte
abaixo:
Recorte I
Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados? Estão estatizando
a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os níveis da economia: o Estado
quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu irmão, ou daquela
Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior.
No enunciado Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados?, o
enunciador constrói seu discurso de maneira a ironizar o projeto de Mujica de estatização da
maconha. Ao enunciar quem ta muito louca, o enunciador coloca-se como pertecente a um
estereótipo de grupo social usuários de droga para iniciar seu discurso sobre o projeto de
Mujica. Podemos compreender que a escolha do enunciador em iniciar seu discurso com um
enunciado que o evidencie, mesmo que ironicamente, como pertencente a um determinado
grupo social, possibilita dois efeitos de sentido: primeiro, o enunciador determina qual a
temática que será desenvolvida na enunciação; segundo, determina seu posicionamento de
oposição ao projeto de estatização da maconha, projetando-se na persona de um usuário para
poder falar sobre o projeto, comparando-o como uma possível droga.
Identificamos, ainda, que o enunciador não responsabiliza o presidente uruguaio, nem
a nação uruguaia pelo projeto de estatização da maconha, mas opta por enunciar quem ta
muito louca é a América Latina, colocando todos os países latino-americanos no mesmo lugar
que o Uruguai. A opção em selecionar todas as nações latinas e não apenas a uruguaia nos
possibilita refletir que o Uruguai, assim como grande parte das nações latinas, possui um líder
cujo posicionamento político é marcado - extrema esquerda - o que faz com que o enunciador
pressuponha a adesão de todas as nações latinas ao projeto de Mujica ao mesmo tempo que
transforma essa discussão específica em um espaço de embate entre posicionamentos
políticos. Além disso, a simpatia desse grupo com a política chavista, que, nesta ocasião
oferece a Mujica os holofotes que eram dados ao Chaves, colocando-o como um dos políticos
mais inovadores do mundo, possibilita essa associação realizada pelo enunciador.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.194
Temos, então, no primeiro enunciado do discurso, a revelação de um posicionamento
acerca do campo discursivo político. Este posicionamento se estabelece no discurso no
enunciado seguinte, Estão estatizando a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os
níveis da economia: o Estado quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu
irmão, ou daquela Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior. O enunciador destaca
Chaves e Argentina careta comparando-os ao Uruguai que decide estatizar a maconha.
Defende, explicitamente, por meio dos enunciados controlar a vida, na onda daquele Chaves
e Argentina careta, como forma de afirmar-se em oposição ao discurso-paciente. Essa
estratégia que procura a adesão do co-enunciador, traz uma representação negativa de países
marcadamente de esquerda como Argentina e Venezuela, transferindo esses traços negativos à
imagem do Uruguai. Antes mesmo de pensar na proposta que o presidente Uruguaio traz, ela
já é introduzida por alguém que tem uma imagem construída negativamente. Assim o
enunciador recorre à estratégia de atacar o sujeito para ironizar qualquer proposta vinda dele.
Representar tanto a Venezuela como a Argentina e toda a América Latina dessa forma
constitui-se como um modo de dizer sobre o outro atravessado por um discurso violento.
Ainda no recorte I, notamos que o enunciador realiza a primeira leitura acerca do
projeto de Mujica: há uma proposta de estatização que tem como interesse o controle do
Estado na economia do país. O projeto que tem como leitura, para Mujica e seus adeptos, de
que se trata de uma inovação nunca tentada em nenhum país do mundo, para o enunciador da
amostra selecionada é compreendido como um populismo chavista, que tem como
pressuposto o controle da economia, da mesma maneira que fazem os países latino-
americanos, destacando a Argentina. Este é o primeiro ponto que selecionamos que marca
uma polêmica da interincompreensão. Identificamos que para o enunciador, um projeto de
estatização da maconha deva caminhar em conformidade com um modelo econômico
descentralizado do Estado, o que compreendemos como sema positivo dentro do sema de
negação que o enunciador possui acerca do discurso paciente de Mujica.
A seguir, identificamos que o enunciador manifesta seu posicionamento acerca do ato
de estatizar a maconha, refletindo sobre competência e controle.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.195
Recorte II
Como são incompetentes e não resolvem nada de importante, a América Latina só
cuida de bobagens: ao invés de liberar ou proibir, resolvem estatizar, quando o
desastre é exatamente o Estado.
Novamente, o enunciador responsabiliza a América Latina pela irresponsabilidade
política. Compreende que uma proposta coerente deve pautar-se na questão de liberar ou
proibir, e estatizar passa a ser um gesto populista do governo uruguaio, que tem por finalidade
chamar atenção da comunidade nacional. Afirma, ainda, que o Estado é um órgão de
incompetência, estabelecendo uma relação de causa e consequência: resolvem estatizar,
quando o desastre é exatamente o Estado.
Se levarmos em consideração as condições sócio-históricas de produção do discurso-
paciente, identificamos que o projeto de Mujica tem como pressuposto a descriminalização da
maconha, tendo por fim, com a estatização, iniciar uma política de liberação, cuja finalidade
seja cultural e educacional. O fato de estatizar pressupõe que o Estado, ao invés de
marginalizar seus usuários de drogas, passará a atendê-los enquanto indivíduos, seja pela
dependência, seja como consumidores recreativos. O projeto de estatização tem por fim
desencadear outros projetos, cuja finalidade seja a promoção da cultura de uso da maconha,
tal qual há a cultura de uso de drogas lícitas como o álcool. O fato é que poucos projetos na
comunidade mundial atenderam o usuário como indivíduo, ao passo que se preocupavam mais
em combater o uso, marginalizar o usuário e, muitas vezes, até criminalizá-lo.
Esses traços apresentados compõem os sentidos que decorrem do projeto, porém, a
leitura realizada no discurso-agente é outra, sofre uma espécie de tradução dos sentidos do
discurso-paciente. Pelo Estado uruguaio ter um posicionamento político marcadamente de
esquerda e pela simpatia que Mujica gerou em toda comunidade latino-americana esquerdista,
e ainda, pelo posicionamento marcado do enunciador de oposição política ao presidente, a
negação dos argumentos do discurso-paciente advém de que tudo que é enunciado por um
enunciador que coadune com as formações discursivas da esquerda latino-americana será
interpretado com negação. O fato de, no discurso-paciente, estar marcado o sema controle do
consumo e da produção que fundamenta o projeto de estatização da maconha, pressupõe o
sema populismo de extrema esquerda para o discurso-agente, que observa o discurso-paciente
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.196
como um projeto que tem a finalidade de apenas chamar atenção de eleitores e da comunidade
internacional. A possibilidade de adesão do co-enunciador ao discurso-agente é que,
historicamente, de fato as nações latino-americanas são marcadas com projetos de finalidade
populistas e o enunciador utiliza esse sema como coerção para fundamentar todos os
enunciados do Recorte II e tornar ilegítimo o projeto de Mujica.
Recorte III
Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de drogas.
- Boa tarde, eu queria 300 gramas da boa.
- O senhor já pegou a senha?
- Que senha, cara?
- E além da senha tem de trazer certidão de nascimento original, dois retratos 3x4
com cabelo cortado, e também...
No enunciado Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de
drogas., o enunciador propõe a cenografia do diálogo entre um viciado e um servidor público
uruguaio, na compra da maconha estatal. Identificamos que o enunciador possui a referência
de que os órgãos públicos executam serviços burocráticos que são sufocantes ao público.
Projeta a imagem do atendimento de um servidor público a um cliente de maneira
estereotipada, pronta na memória coletiva das pessoas que necessitam de serviços públicos no
Brasil. Trata-se de uma generalização presente nas formações discursivas do brasileiro que se
opõe aos serviços públicos nacionais. É uma realidade proposta pelo enunciador que
referencia mais a prática social brasileira do que a uruguaia.
Ao levarmos em consideração o discurso-paciente de Mujica (2014a, 2014b, 2014 c),
identificamos que ainda não foi proposta nenhuma rotina burocrática de como o consumidor
terá contato com a maconha. Trata-se de um projeto que ainda não começou a ser implantado,
cuja distribuição ainda está em estudo pelo governo uruguaio. Contudo, por se tratar de um
projeto governamental, de um grupo político que, sob a classificação do enunciador, se trata
de populista, o discurso-agente constrói o efeito de sentido de que se trata de um projeto
burocrático, pois está contido nas formações discursivas do enunciador o sema de que todo
projeto populista que se diz competente, pressupõe incompetência de execução desse grupo,
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.197
cuja intenção, para o enunciador, é de apenas construir boas ideias, impossíveis de serem
materializadas. Podemos compreender como sema positivo do discurso-agente que tal projeto
só poderia ser eficaz nas mãos de outro grupo político, que revelasse a imagem de um Estado
competente, que detivesse controle de todo o funcionamento do projeto.
Novamente, compreendemos que a impressão do enunciador é fruto de sua
comparação com projetos do passado, que são traduzidos por ele, como iniciativas populistas
que não geraram bons resultados, mas apenas cenas burocráticas que desestimulavam grande
parte da população. Ainda, a referência à burocracia é construída à luz de uma rotina
brasileira e não uruguaia, e o enunciador pressupõe que um projeto de estatização da
maconha, se executado de maneira burocrática, acarretará na contribuição do aumento do
narcotráfico, pois legitimará este como órgão mais competente que o Estado, como
observamos no recorte abaixo:
Recorte IV
- Pô, cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!
- Tá legal! Mas leva maconha estatal.
- Mas essa eu não quero! É tudo palha!
- Hermano, é a maconha nacionalista! Maconha do povo uruguaio!
- Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que vocês tão
vendendo aí, morô.
Nos enunciados Pô cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!, o enunciador
busca informar o co-enunciador de que o funcionalismo público uruguaio e brasileiro é
passível de corrupção. Traduz que é pressuposta a corrupção em um projeto de um Estado
liderado por um grupo que defende o posicionamento político de esquerda, o que reforça a
impressão de descontrole, defendida pelo enunciador no início de seu discurso. Ainda, o
enunciador constrói um estereótipo do consumidor de maconha, que é um indivíduo que
buscará corromper o Estado, que faz uso de gírias como Tô fora, meu irmão! e Morô!,
buscando identificar o consumidor de maconha a um estereótipo social que é marginalizado
por outros grupos sociais como alguém que não detém o saber, os conhecimentos culturais,
valores éticos e morais, dentre outras características que reforçam a imagem negativa desse
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.198
grupo de indivíduos presente na sociedade brasileira. O enunciador ignora o fato de, na
prática social não só brasileira como mundial, o consumo de drogas não ser um hábito
específico apenas de um determinado grupo de pessoas que não detém o saber formal e uma
conduta ética e moral traduzida por ele como adequada, mas estar associada a um grupo vasto
de pessoas, que engloba também intelectuais, artistas, jornalistas, dentre outros tipos sociais
que fazem parte de seu convívio social.
No enunciado Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que
vocês tão vendendo aí, morô. o enunciador traduz que a maconha que será oferecida pelo
Estado uruguaio é uma maconha sem qualidade e a associa como droga no sentido de sem
valor. Identificamos que o conceito de qualidade é divergente do discurso-paciente para o
discurso-agente. Para o discurso-paciente, a maconha com qualidade é aquela que esteja livre,
o máximo possível, de impurezas que prejudiquem a saúde, o que não é um parâmetro para o
narcotráfico. No narcotráfico, encontra-se a maconha vendida de maneira mesclada com
outras substâncias que podem impulsionar o vício, ou causar problemas na saúde do usuário.
Por outro lado, o discurso-agente compreende qualidade como a maconha que trará o efeito
esperado ao consumidor, em semelhança com a vendida no narcotráfico. O enunciador não
preocupa-se em observar questões de saúde pública, mas em atender as exigências de
qualidade do usuário que, assim como o consumidor de álcool, busca a maconha pelo efeito
psico-motor que ela causa.
A falta de qualidade, traduzida pelo enunciador, é fruto de uma falsificação do próprio
produto oferecido pelo Estado uruguaio. A maconha estatal é feita com palha e não com
maconha. O serviço público irá ludibriar o consumidor, segundo o enunciador, substituindo
maconha por palha. É possível compreendermos que esse é o posicionamento defendido pelo
enunciador acerca do grupo de governa o Estado uruguaio: com propostas populistas, o grupo
político conquista o povo vendendo palha no lugar de maconha. Contudo, essa ação, na visão
do enunciador, potencializa ainda mais a rejeição do consumidor que retornará ao narcotráfico
pela péssima qualidade da maconha comercializada.
Por fim, podemos sintetizar a análise realizada agrupando os semas observados. O
agrupamento permite uma visão mais clara dos efeitos de sentido que geram a polêmica da
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.199
interincompreensão no discurso-agente de Jabor, quando o comparamos com o discurso-
paciente de Mujica90
.
José Mujica Arnaldo Jabor
M+91
M+ M-
Controle Liberação Descontrole
Combate Independe Contribuição
Inovação Descentralização do
Estado
Populismo
Competência Estado esclarecido Incompetência
Qualidade Consumo: maconha é
igual ao álcool
Ineficiência
Considerações finais
Com esse quadro de fechamento da análise, podemos concluir que a polêmica não se
instaura, como sempre se entendeu, no embate entre dois sujeitos que discutem sobre o
assunto, mas se localiza no interior do discurso de um e do discurso do outro. Por meio do
quadro, percebemos que a polêmica se instaura no interior do discurso de Jabor, pois ele
confronta os semas positivos e negativos dentro do seu discurso. Os semas negativos podem
ser vistos como uma “tradução” dos semas positivos retirados do discurso do presidente
Uruguaio, que entram em confronto com os semas positivos do próprio enunciador do
discurso-agente.
Isso ocorre porque o sistema de coerções da formação discursiva onde se projeta o
discurso-agente e os atravessamentos de outros discursos, portanto de outras formações
discursivas advindas da política, economia, violência, humor etc, compõem um
posicionamento do enunciador que refaz os sentidos dos semas e é no interior desse
posicionamento que se deve problematizar a polêmica.
90 Utilizamos a letra M, no quadro, como símbolo representativo dos semas para ficar em
consonância com a forma utilizado por Maingueneau (2006). 91
Utilizamos a letra M como símbolo representativo dos semas para ficar em consonância com
a forma utilizado por Maingueneau (2006)
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.200
A nosso ver, a polêmica da interincompreensão pode esclarecer uma questão muito
debatida em vários setores da sociedade democrática, como por exemplo, ampliar a harmonia
entre os diversos posicionamentos conflitantes existente no mundo. Ela nos mostra que a
eficiência do acordo não está em quem ganha ou quem perde no embate discursivo, mas em
quem consegue refazer os sentidos que circulam no discurso do outro. Pensar nessa estratégia
nos parece bastante produtivo, porém não entramos em uma discussão assumindo o
posicionamento um ou dois, a ou b, mas problematizamos esse conflito que surge dentro do
próprio discurso de um ou de outro. Em nossa pesquisa, a polêmica se mostra não no discurso
do presidente do Uruguai, nem no embate apenas dos dois discursos, mas no interior do
discurso do enunciador que tem como referência Arnaldo Jabor.
Referências
ACSELRAD, Gilberta. Políticas de drogas e cultura de resistência. In.: GARCIA, Joana;
LANDIM, Leilah; DAHMER, Tatiana (Orgs.). Sociedade e políticas: novos debates entre
ONGs e Universidade. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 2003.
MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da Análise do Discurso. 2ª Reimpressão.
Trad.: Márcio Venício Barbosa e Maria Emília Amarante Torres Lima. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.
______. A análise do discurso e suas fronteiras. Revista Matraga. Rio de Janeiro, v.14, n.20,
p.13-17, jan./jun.2007.
______. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.
______. Análise de Textos de Comunicação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SILVA, Selma Maria Muniz Marques da. A questão das drogas no Brasil. III Jornada
Internacional de Políticas Públicas. São Luis, MA, 28 a 30 de agosto de 2007. p.1-8.
Sites
JABOR, Arnaldo. Comentário de Arnaldo Jabor sobre a estatização da maconha no Uruguai,
no Jornal da Globo. In.: https://www.youtube.com/watch?v=1KLNmuDHGLY. Último
acesso em 17/03/2014. 2014a.
MENEZES, Cynara. A ousadia de Mujica. In.: Carta Capital. publicado em
01/01/2014.http://www.cartacapital.com.br/revista/779/a-ousadia-de-mujica-1404.html.
último acesso em 21/01/2014.
MUJICA, José Pepe. Mujica, a maconha uruguaia e a burguesia paulista. In.:
http://www.youtube.com/watch?v=NjrJzWT6xVg. Último acesso em 17/03/2014. 2014b.
Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.201
________________. Entrevista de José Pepe Mujica a Emir Sade, da TV Brasil. In:
http://www.youtube.com/watch?v=lEXFhdy6zVI. Último acesso em 17/03/2014. 2014c.