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Revista de Estudos sobre Práticas Discursivas e Textuais ISSN: 1984-2406 Centro Universitário Padre Anchieta Jundiaí/SP Graduação e Pós-Graduação em Letras EDIÇÃO 14 ANO 7 NÚMERO 3 NOVEMBRO 2014 Organização: Profa. Dra. Maria Cristina de Moraes Taffarello

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Revista de Estudos sobre Práticas Discursivas e Textuais

ISSN: 1984-2406

Centro Universitário Padre Anchieta Jundiaí/SP Graduação e Pós-Graduação em Letras

EDIÇÃO 14

ANO 7

NÚMERO 3

NOVEMBRO 2014

Organização: Profa. Dra. Maria Cristina de Moraes Taffarello

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ARTIGOS

A ANÁLISE DE TEXTOS-ENUNCIADOS COMO PRÁTICA PRECEDENTE À ELABORAÇÃO

DIDÁTICA ....................................................................................................................... 4

Rodrigo Acosta PEREIRA .................................................................................................... 4

A RETÓRICA DO GÊNERO ENTREVISTA DE EMPREGO ..................................... 24

Francisco ALVES FILHO .................................................................................................. 24

Lafity dos Santos ALVES ................................................................................................... 24

A SOCIOLINGUÍSTICA LABOVIANA: “A NORMAL SCIENCE” OU “A REVOLUTIONARY

SCIENCE”? .................................................................................................................... 35

Hélder Sousa SANTOS ...................................................................................................... 35

Sueli Maria COELHO ........................................................................................................ 35

AÇÕES PEDAGÓGICAS DO CURSO TÉCNICO A DISTÂNCIA DA REDE e -Tec BRASIL

CEFET-MG E AS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE ............................................. 53

Aline Moraes LOPES ......................................................................................................... 53

Márcia Gorett Ribeiro GROSSI .......................................................................................... 53

DE FORMIGA A DRAGA: METÁFORAS CONCEPTUAIS E AUTODEFINIÇÃO. 73

Ane Cristina THUROW ...................................................................................................... 73

Liliane da Silva PRESTES-RODRIGUES ......................................................................... 73

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DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA MIDIÁTICA PARA CRIANÇAS E A VISADA DE CAPTAÇÃO

......................................................................................................................................... 85

Maria Eduarda GIERING ................................................................................................... 85

ESTEREÓTIPOS DO BRASILEIRO EM PIADAS ...................................................... 98

Ana Cristina CARMELINO ............................................................................................... 98

INTRODUÇÃO AO ENSINO DE RETÓRICA EM CURSOS TECNOLÓGICOS:

METODOLOGIA E RESULTADOS ALCANÇADOS .............................................. 113

Ana Lúcia MAGALHÃES ................................................................................................ 113

NA CIRANDA DOS SENTIDOS: A POLIFONIA DE LOCUTORES NO GÊNERO

REPORTAGEM IMPRESSA ....................................................................................... 126

Francisco Vieira da SILVA .............................................................................................. 126

Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA ................................................................ 126

O GÊNERO TEXTUAL MINICONTO NO ENSINO DE LEITURA E ESCRITA ... 141

José Carlos KÖCHE ......................................................................................................... 141

Vanilda Salton KÖCHE .................................................................................................... 141

Adiane Fogali MARINELLO ........................................................................................... 141

O PRETÉRITO PERFEITO COMPOSTO DO INDICATIVO EM LÍNGUA ESPANHOLA:

VALORES ASPECTUAIS ........................................................................................... 152

Valdecy de Oliveira PONTES .......................................................................................... 152

Letícia Joaquina de Castro Rodrigues SOUZA E SOUZA .............................................. 152

QUANDO O AGORA NÃO É AGORA NOS GÊNEROS ACADÊMICOS ............... 164

João Bosco FIGUEIREDO-GOMES ................................................................................ 164

Carla Daniele Saraiva BERTULEZA ............................................................................... 164

REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE: A POLÊMICA DA INTERINCOMPREENSÃO EM

DISCURSOS SOBRE A MACONHA ......................................................................... 183

Marcio Rogério de Oliveira CANO .................................................................................. 183

Ricardo CELESTINO ....................................................................................................... 183

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A ANÁLISE DE TEXTOS-ENUNCIADOS COMO PRÁTICA PRECEDENTE À

ELABORAÇÃO DIDÁTICA

Rodrigo Acosta PEREIRA1

Resumo: O artigo apresenta orientações enunciativo-discursivas para a análise de textos-

enunciados como atividade prévia à prática de elaboração didática do professor de Língua

Portuguesa. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo de Bakhtin em torno do enunciado, as

discussões sobre elaboração didática propostas por Halté (2008[1998]) e os trabalhos sobre as

unidades básicas de ensino e aprendizagem de Geraldi (1984[1985]; 1997[1991]). A proposta não

se apresenta como um quadro modelizador, mas como um pensar reflexivo e dialógico em torno de

caminhos de análise acerca dos textos-enunciados que possam assistir o professor na elaboração de

atividades para o ensino de Língua Portuguesa.

Palavras-chave: Texto-enunciado. Análise. Elaboração didática

Abstract: The paper presents enunciative-discoursive orientations to the utterance analysis as a

previous activity to Portuguese Language teachers’ didactic elaboration. To do so, we reviewed

Bakhtin’s Circle writings and the discussions concerning the concept of utterance, the postulations

about didactic elaboration practice from Halté (2008[1998]) and the studies from Geraldi

(1985[1984]; 1997[1991]) about the basic units of learning and teaching language at school. The

proposal is not a prescriptive model, but a reflexive and dialogical thought around the analysis

paths of utterance as a helpful way to assist the teacher in their practice of didactic elaboration to

teach Portuguese Language.

Keywords: Utterance. Analysis. Didactic elaboration

Introdução

Diversas pesquisas contemporâneas no campo da Linguística Aplicada têm procurado

discutir o ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica sob um olhar enunciativo-discursivo,

dentre outros caminhos, à luz das discussões datadas da década de 1980 e 1990 em torno do ensino

operacional e reflexivo (BRITTO, 1997) e das unidades básicas de ensino e aprendizagem

(GERALDI, 1985[1984]; 1997[1991]). Embora revisitadas e reacentuadas ao contexto

1 Professor do DLLV e do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC, Santa Catarina,

Brasil. Trabalho integrado ao NELA – Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada (UFSC/PPGLg). E-mail:

[email protected]

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contemporâneo, na escola, na maioria das vezes, o ensino e a aprendizagem da linguagem parecem

estar ainda (embora passados cerca de 30 anos) assentados sob a ótica imanente, desvinculados dos

usos sociais da língua. Visando ao entendimento de que ensinar a linguagem na escola é ensinar os

usos sociais da língua em seus contextos plurais de interação (GERALDI, 2010), objetivamos

apresentar uma discussão, de cunho teórico-metodológico, em torno da proposta de análise

enunciativo-discursiva de textos-enunciados como subsídio para a elaboração didática (HALTÉ,

2008[1998]). Em outras palavras, objetivamos discutir (e, por conseguinte, refletir sobre)

considerações de ordem teórico-metodológica para a análise de textos-enunciados como etapa

prévia de trabalho do professor em suas práticas de elaboração didática em torno de atividades

didático-pedagógicas de leitura, escuta, escrita e análise linguística para o ensino e aprendizagem de

Língua Portuguesa na escola de Educação Básica.

Para tanto, dentre os diversos domínios envoltos aos estudos do enunciado e do discurso,

situamo-nos nos escritos do Círculo de Bakhtin, principalmente retomando desses estudos as

diversas diretrizes de ordem teórico-epistemológica e metodológica de estudo da enunciação2. Além

disso, a fim de compreendermos a prática de elaboração didática, revisitamos a discussão de Halté

(2008[1998]) e, em torno das unidades básicas de ensino e aprendizagem, endereçamo-nos nos

estudos de Geraldi (1985[1984]; 1997[1991]) para que, nesse diálogo (PONZIO, 2012), possamos

coconstruir integibilidades sobre o ensino e a aprendizagem da linguagem na escola de Educação

Básica e, especial, no trabalho docente de elaboração de atividades didático-pedagógicas.

Ressaltamos, em adição, que nosso artigo não se apresenta exaustivo nem deve ser levado como um

modelo prescritivo de análise a ser seguido à risca (dada nossa postura bakhtiniana, nem

poderíamos acreditar nisso). O que propusemos são reações-respostas (no sentido dialógico do

Círculo) em torno do que se pode (em termos de concretibilidades singulares e não de idealidades

universais) analisar ao estudarmos os textos-enunciados que medeiam nossas interações, dada a

“insondabilidade do sentido” na/da enunciação (BAKHTIN, 2003[1979], p.401). Com isso, nosso

objetivo maior é contribuir para a construção de caminhos em torno de um trabalho docente de

excelência e teoricamente amparado (RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATI, 2011).

2 Em Linguística, sob um recorte ilustrativo (a grosso modo) diferentes áreas têm trazido à tona o

conceito de enunciado, seja sob um ponto de vista linguístico-estrutural (BENVENISTE, 1966), semântico-

argumentativo (DUCROT, 1987), seja linguístico-textual (ADAM, 1990; 1992), por exemplo. Nesta

discussão, referimo-nos à visão de enunciado enquanto unidade concreta de sentido do uso da língua em

situações de interação. Em outras palavras, nossa posição é endereçada nos escritos do Círculo de Bakhtin, a

partir dos quais, o enunciado é visto como um “[...] fenômeno ideológico, concreto, que é sempre material e

histórico.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.44). Assim, não estaremos pensando a enunciação como processo

e o enunciado como produto, nem estaremos vinculando o enunciado a construções linguístico-estruturais de

ordem argumentativa ligadas ao contexto de uso em oposição à frase, ou à configuração pragmática de

proposições, mas estaremos compreendendo, em todos os momentos desta discussão, que o enunciado diz

respeito a “[...] um sentido concreto [...] uma realidade concreta em condições igualmente reais de

comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2003[1979], p.291).

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A interação verbal como realidade concreta da língua

Bakhtin; Volochínov (2006[1929]) pontuam repetidamente que a comunicação verbal não pode

ser compreendida desvinculada da interação. Para os autores, “a comunicação verbal entrelaça-se

inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da

situação de produção.” (p.128). É sob a matriz dessa afirmativa que os autores postulam as

diretrizes metodológicas para o estudo da língua:

(1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições

concretas em que se realiza.

(2) As formas das distintas enunciações [gêneros do discurso], dos atos de fala

isolados, isto é, as categorias de ato de fala na vida e na criação ideológica que

se prestam a uma determinação pela interação verbal.

(3) A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística

habitual. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.128-129).

Como podemos visualizar, as etapas acima orientam o pesquisador para a análise da língua sob

a ordem do social para o linguístico, isto é, o analista inicia das formas e dos tipos de interação para

o exame das formas da língua, ratificando o pressuposto de que a comunicação verbal só pode ser

explicada a partir do vínculo com a situação concreta de interação. Além disso, as diretrizes

metodológicas delineadas acima nos conduzem a olhar para outros conceitos que ascendem nos

escritos do Círculo: enunciado e gênero do discurso. Dado que é comum ao estudo da língua sob o

viés sociológico do Círculo a recorrência aos diversos conceitos outros que se consociam nesse

quadro teórico, neste momento, haja vista nosso objetivo, circunscrevemos nossa discussão em

torno dos dois previamente mencionados. Assim, podemos compreender que, na perspectiva

sociológica, a unidade de análise é o enunciado, e suas formas típicas relativamente estáveis, os

gêneros.

Em síntese, como explica Volochínov (1993[1929], p.246-247), sob a ótica sociológica,

podemos entender que “a essência efetiva da linguagem está representada pelo elo social com a

interação verbal”, permitindo construir, segundo o autor, o seguinte esquema, que, por sua vez, “[...]

serve como um guia para a investigação da unidade real da língua, que chamamos de enunciação.”

(VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.246-247, grifo nosso). Segue a proposta de Volochínov:

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Figura 01- Etapas de investigação da unidade real da lingua – o enunciado

Fonte: Esquema proposto por Volochínov (1993[1929], p.247).

Sobre o esquema acima, segundo Volochínov (1993[1929], p.247), seguem alguns

esclarecimentos. Para o autor, sob a ótica sociológica, é necessário (i) examinar o intercâmbio

social3, no qual o enunciado se constitui e funciona; (ii) compreender o conceito de interação verbal

como “[...] a efetiva realização da vida real de uma das formas, de uma das variedades do

intercâmbio comunicativo” (VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.247), ou seja, uma das situações

específicas de interação no interior de uma dada esfera; (iii) analisar as formas típicas dos

enunciados, os gêneros; e (iv) analisar as formas linguísticas à luz da baliza do gênero do enunciado

integrado à situação de interação, à medida que “cada um dos tipos de intercâmbio comunicativo

organiza, constrói e completa, à sua maneira, a forma gramatical e estilística da enunciação [...].”

(VOLOCHÍNOV, 1993[1929], p.248).

Em adição à presente discussão sobre as etapas metodológicas de análise da língua sob a ordem

sociológica, Rojo (2005) assim esclarece:

[...] a ordem metodológica de análise que vai da situação social ou de enunciação

para o gênero/enunciado/texto e, só então, para suas formas linguísticas relevantes

[...]. Ao chegarmos nesse último nível de análise, vale a interpretação linguística

habitual, isto é, as teorias e análises linguísticas disponíveis, desde que seguida a

ordem metodológica que privilegia as instâncias sociais [...]. Dito de outra maneira,

aqueles que adotam a perspectiva dos gêneros do discurso partirão sempre de uma

análise em detalhes dos aspectos sócio-históricos da situação de enunciativa,

privilegiando, sobretudo, a vontade enunciativa do locutor – isto é, sua finalidade,

mas também e principalmente sua apreciação valorativa sobre seus interlocutores e

temas discursivos -, e, a partir desta análise, buscarão marcas [...] que refletem no

enunciado/texto, esses aspectos da situação. (ROJO, 2005, p.199, grifo nosso).

Em consonância com a discussão de Rojo (2005), Brait (2006) explica que a metodologia

proposta por Bakhtin para o estudo da linguagem, embora se apresente como uma abordagem

3 Podemos compreender como esfera da atividade humana. Rodrigues (2005) explica sobre a

flutuação terminológica no conjunto dos escritos do Círculo.

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Organização da sociedade

Intercâmbio comunicativo social

Interação social

Enunciados

Formas gramaticais da língua

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diferenciada, não exclui a Linguística, pelo contrário, Bakhtin (2008[1963]) entende que devem

completar-se, mas não fundir-se4. Dessa forma, como ratifica a autora, metodologicamente

estaremos, em termos bakhtinianos, ultrapassando a materialidade linguística, procurando

desvendar a articulação constitutiva que há entre o interno e o externo na linguagem. “O

enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto, as particularidades discursivas

que apontam para contextos mais amplos, para um extralinguístico aí incluído.” (BRAIT, 2006,

p.13).

Além disso, cabe ressaltar que, no caminho metodológico bakhtiniano, não há categorias de

análise a priori aplicáveis de forma sistemática a textos, discursos, gêneros, com a finalidade de

entender uso situado da língua. Nos escritos do Círculo, há, na verdade, uma arquitetônica das

diferentes formas de conceber o enfrentamento dialógico da linguagem, que se constituem de

movimentos teórico-metodológicos multifacetados. De fato, cabe ao pesquisador desbravar esse

caminho, construindo, por conseguinte, uma postura dialógica diante de seu objeto discursivo

(BRAIT, 2006). “A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades

discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se

interpenetram e se interdefinem [...]” (BRAIT, 2006, p.29). Sob essa orientação, Brait (2006) assim

esclarece:

[Sob a orientação sociológica do Círculo, direcionamo-nos a] esmiuçar campos

semânticos, descrever e analisar micro e macro-organizações sintáticas,

reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que

caracterizam o(s) discurso(s) e indicam sua heterogeneidade constitutiva, assim

como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise

dessa “materialidade linguística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos e

os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses

discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao

inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar

ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua

identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros

sujeitos. Não há categorias a priori aplicáveis de forma mecânica a textos e

discursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentido num

dado discurso, numa dada obra, num dado texto [...]. As diferentes formas de

conceber o “enfrentamento dialógico da linguagem” constituem, por sua vez,

movimentos teóricos e metodológicos que se desenvolvem em diferentes direções.

(BRAIT, 2006, p.13-14, grifo da autora).

Em outro momento, a autora reitera,

[...] o maior ensinamento de Bakhtin [é] a atitude diante da linguagem que consiste

não na aplicação de conceitos pré-estabelecidos a um corpus imobilizado pelas

lupas do analista, mas numa atitude dialógica que permite que os conceitos sejam

4 “A linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e

multifacetado – o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos [...]. Devem completar-se mutuamente, e

não fundir-se.” (BAKHTIN, 2008 [1963], p.207)

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extraídos do corpus, a partir de um constante diálogo entre a postura teórico-

metodológica e a dinâmica das atividades, da linguagem e da rica parceria por elas

estabelecida. [...] (BRAIT, 2007, p.28).

Como podemos ver, Brait (2006; 2007) ratifica o pressuposto da inexistência de categorias pré-

estabelecidas para a análise da língua-enunciado sob a ordem sociológica do Círculo. Rojo (2005),

Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012) compartilham da mesma consideração,

reiterando o postulado de que, é nas “idas e vindas” aos dados que as regularidades ascendem e não

na aplicação de modelos de análise pré-estabelecidos, imobilizando a potencialidade discursiva dos

dados. Assim, podemos compreender que, à luz dos escritos do Círculo, não há a possibilidade

mecânica de operacionalizar conceitos pré-estabelecidos (modelos de análise), mas um movimento

dialógico com os dados, “[...] que interroga o analista e o obriga a buscar, até mesmo em outras

disciplinas, conceitos, noções, que possam ajudar na análise da complexa relação existente entre as

atividades humanas e as atividades discursivas a elas afeitas.” (BRAIT, 2007, p.30-31).

Assim, entendemos que o estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros do discurso é de

importância fundamental para superar os estudos simplificados da vida do discurso, do fluxo

discursivo da comunicação. É somente o estudo do enunciado como unidade real de comunicação

discursiva, por exemplo, que nos permite compreender de modo claro a natureza das unidades da

língua e seu emprego na forma de enunciados concretos. Acerca especificamente do estudo do

enunciado e de suas formas relativamente estáveis, os gêneros do discurso, Bakhtin (2003[1979])

pontua algumas considerações metodológicas que, dados nossos objetivos de delinear rotas de

análise da língua como objeto social e sua materialização concreta, reenunciamos abaixo5:

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos

enunciados nos diversos campos da atividade humana [esferas] é de enorme

importância para quase todos os campos da linguística [...]. [...] todo o trabalho de

investigação de um material linguístico concreto [...] opera inevitavelmente com

enunciados concretos (escritos e orais [e de outras formas semióticas])

relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação [...] de

onde os pesquisadores haurem os fatos linguísticos de que necessitam. Achamos

que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessária uma noção precisa

da natureza do enunciado em geral e das particularidades dos diversos tipos de

enunciados (primários e secundários), isto é, dos diversos gêneros do discurso. O

desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as

peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em qualquer campo da

investigação linguística redundam em formalismo e em uma abstração exagerada,

deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a

vida. (BAKHTIN, 2003[1979], p.264-265, grifo nosso).

Uma determinada função [...] e determinadas condições de comunicação

discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é,

determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais

5 Faremos um breve levantamento de considerações do Círculo em torno dos pressupostos

metodológicos de análise do enunciado. Para tanto, seguem-se diferentes excertos com partes grifadas,

marcando o olhar (do Círculo) para a análise enunciativa.

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relativamente estáveis. [...] os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros do

discurso, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da

linguagem. [...] tanto a questão metodológica de princípio quanto a questão geral

relativa às relações recíprocas do léxico com a gramática, por um lado, e com a

estilística, por outro, baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos gêneros

do discurso. (BAKHTIN, 2003[1979], p.266-269, grifo nosso).

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer

fenômeno concreto da linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua

estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de

um enunciado individual ou do gênero do discurso já se trata de um fenômeno

estilístico. Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo

falante é um ato estilístico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo

fenômeno concreto da língua não devem ser mutuamente impenetráveis nem

simplesmente substituir mecanicamente um ao outro, devendo, porém, combinar-se

organicamente (na sua mais precisa distinção metodológica) com base na unidade

real do fenômeno da língua. Só uma concepção profunda da natureza do

enunciado e das peculiaridades dos gêneros discursivos pode assegurar a solução

correta dessa complexa questão metodológica. (BAKHTIN, 2003[1979], p.269,

grifo nosso).

As formas gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu

significado estilístico. [...] Toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio de

representação. Por isso, todas essas formas podem e devem ser analisadas do ponto

de vista das suas possibilidades de representação e de expressão, isto é,

esclarecidas e avaliadas de uma perspectiva estilística. (BAKHTIN, 2013, p.23-

25, grifo nosso)

[...] o estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva

permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da

língua (enquanto sistema) – as palavras e orações. (BAKHTIN, 2003[1979], p.269,

grifo do autor).

A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no

pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade de

comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na

forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O

discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um

determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais

diferentes que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela

construção composicional, elas possuem como unidades da comunicação

discursiva peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo, limites

absolutamente precisos. Esses limites, de natureza especialmente substancial e de

princípio, precisam ser examinados minuciosamente. (BAKHTIN, 2003[1979],

p.274-275, grifo do autor).

[...] é necessário abordar previamente o problema da oração como unidade da

língua em sua distinção em face do enunciado como unidade da comunicação

discursiva. [...] A oração enquanto unidade da língua tem natureza gramatical,

fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade. (BAKHTIN, 2003[1979], p.277-

278, grifo do autor).

As unidades da comunicação discursiva – enunciados totais – são irreprodutíveis

(ainda que se possa citá-las) e são ligadas entre si por relações dialógicas.

(BAKHTIN, 2003[1979], p.335, grifo nosso).

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Como podemos observar, os excertos nos conduzem a diversas reflexões de Bakhtin acerca da

questão (base) metodológica de análise da língua à luz da unidade de comunicação discursiva – o

enunciado. Desde aspectos voltados inicialmente ao trabalho de seguir a ordem da vida concreta da

língua em situações reais e vivas de interlocução, até as considerações do Círculo sobre a relação

entre gramática, estilística e unidades da língua, as orações, e unidades do discurso, os enunciados.

Além disso, em consonância com a visão de língua, o Círculo, em Marxismo e Filosofia da

Linguagem, delineiam especificações em torno da orientação ideológico-valorativa da língua em

uso. Em outras palavras, Bakhtin; Volochínov (2006[1929], p.198-202) preocupam-se, dentre

outras questões, em desenhar o estudo do “[...] julgamento de valor inerente a toda a palavra viva,

revelado pela acentuação e pela entoação expressiva da enunciação [...] a orientação apreciativa [e

ideológica] do discurso. [Afinal] a palavra é um fenômeno ideológico por excelência [...].” Para os

autores, é “indispensável observar as seguintes regras metodológicas” (BAKHTIN;

VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.45, grifo dos autores):

(1) Não separar a ideologia da realidade material do signo [...].

(2) Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social [...].

(3) Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-

estrutura).

Para o Círculo, todo signo é ideológico e, portanto, “cada campo de criatividade ideológica tem

seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada

campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social.” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV,

2006[1929], p.33). Assim, as etapas metodológicas supracitadas direcionam o pesquisador para o

entendimento de que, ao analisar a língua em uso, o pesquisador deve compreender que “a realidade

dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais.” (BAKHTIN;

VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.36) e, sobretudo, que

Porque o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entra no horizonte

social do grupo e desencadeia uma reação semiótico-ideológica, é indispensável

que ele esteja ligado às condições socioeconômicas essenciais do referido grupo,

que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. [...] Em outras

palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes

senão aquilo que adquiriu um valor social. [...] O tema ideológico possui sempre

um índice de valor social. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.46, grifo

dos autores).

A partir dessa colocação dos autores, compreendemos que, em termos metodológicos, o estudo

da língua em uso, realizada concretamente por enunciados, deve levar em consideração a orientação

ideológico-valorativa desses enunciados, à medida que, para o Círculo, “[...] a plurivalência social

do signo ideológico é um traço de maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos

índices sociais de valores [posições axiológicas] que torna o signo vivo [...].” (BAKHTIN;

VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p.47).

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Em adição às ideias de Bakhtin; Volochínov (2006[1929]), Medviédev (2012[1928]) explica

que as concepções de mundo, as crenças, os ideais tornam-se realidade ideológica quando

investidos por material semiótico. Dito de outra forma, para o autor, “[...] a criação ideológica e sua

compreensão somente se realizam no processo da comunicação social. Todos os atos individuais

participantes da criação ideológica são apenas os momentos inseparáveis dessa comunicação e são

seus componentes dependentes e, por isso, não podem ser estudados fora do processo social [...].”

(MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.49, grifo nosso). Para Medviédev (2012[1928], p.50), todo produto

ideológico é parte da realidade social e se manifesta semioticamente, posto que “não importa o que

a palavra signifique, ela, antes de mais nada, está materialmente presente como palavra falada,

escrita, impressa, sussurrada no ouvido, pensada no discurso interior, isto é, ela é sempre parte

objetiva e presente do meio social do homem.”

O autor ainda reitera que “a comunicação é aquele meio no qual um fenômeno ideológico

adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de

signo.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.50). Uma correta orientação filosófica geral para o social e a

consequente necessária “precisão metodológica” sob esse olhar, podem ser dadas somente sob “o

terreno do caráter sociológico dos fenômenos ideológicos” (p.71). É preciso entender na palavra,

“as forças e energias da vida ideológica e social.” (p.82-83). Em síntese, “se nós [...] nos

distanciamos das relações sociais que atravessam [o objeto ideológico] e das quais ele é uma das

mais sutis manifestações, se o retirarmos do sistema de interação social, então, nada restará do

objeto ideológico.” (MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.134).

Em relação à projeção valorativa de toda palavra (do signo ideológico, do enunciado, do

discurso), Medviédev (2012[1928], p.183) pontua que “[...] a avaliação social está presente em cada

palavra viva [...]. Qualquer enunciado concreto é um ato social.” Além disso, dadas as orientações

de Medviédev, é metodologicamente impossível compreender o enunciado em sua realização

concreta sem adentrar-se na atmosfera axiológica do meio ideológico. Com isso, “a avaliação social

determina todos os aspectos do enunciado, penetrando-o por inteiro [...]. No enunciado, cada

elemento da língua tomado como material obedece às exigências da avaliação social.”

(MEDVIÉDEV, 2012[1928], p.185).

Dada nossa compreensão em torno da enunciação e de seu estudo à luz das considerações não

apenas teóricas, mas, sobretudo, metodológicas do Círculo, passamos a delinear aspectos

endereçados no nosso objetivo presente: a análise de enunciados como uma prática precedente à

elaboração didática do professor de Língua Portuguesa.

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Textos-enunciados: um olhar analítico

Neste momento, objetivamos seguir um caminho de questionamentos6 como

orientadores para a análise. Esse caminho segue a proposta metodológica de Rodrigues (2001) para

a análise de gêneros do discurso, textos-enunciados típicos, a partir de duas dimensões: social e

verbal, à luz das considerações teórico-metodológicas explicitadas na seção anterior.

Acrescentamos à dimensão verbal proposta pela autora a caracterização “visual”, como

desenvolvido em Acosta-Pereira (2008; 2012), dada a diversidade de textos-enunciados

multissemióticos que medeiam nossas situações de interação. Para fins ilustrativos, seguem dois

gráficos que sintetizam as questões a serem exploradas em cada dimensão, com base nos autores:

Figura 02: Dimensões de análise dos textos-enunciados

Fonte: Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012).

Na dimensão social do texto-enunciado, o professor pode questionar em sua análise:

- Qual a razão desse texto-enunciado ser escrito?

- Qual a esfera que esse texto-enunciado é produzido e quais as características dessa esfera?

- O texto-enunciado é produzido na esfera sob a baliza de qual instituição?

- Quem escreve o texto-enunciado? E como a autoria se projeta no texto-enunciado?

- Onde circula esse texto-enunciado?

- Por quanto tempo circula? Esse tempo-espaço de circulação traz efeitos de sentido para o texto-

enunciado?

6 “O sentido sempre responde a certas perguntas.” (BAKHTIN, 2003 [1979], p.381).

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os

Condições de produção: esfera, autoria (posições autorais), horizonte apreciativo-

ideológico, valoração.

Condições de circulação: esfera, interlocutor (ouvinte, leitor), horizonte apreciativo-

ideológico do outro; meios de circulação, espaços de circulação, tempo de circulação.

Condições de recepção: modos de publicação, situação imediata de interação.

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texto

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Aspectos enunciativo-discursivos: feições do gênero - o que é dizível (tema); estratégias

estilísticas para dizer (estilo) e formas relativamente estável de acabamento, de

orquestração do dizer (composição)

Aspectos textuais: que recursos textuais são agenciados sob a baliza do gênero?

Aspectos linguísticos: que recursos da língua são agenciados à luz das feições do gênero?

Aspectos visuais: como elementos visuais se correlacionam com os verbais para a construção

de sentidos?

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- Em que suporte circula esse texto?

- Em qual mídia é publicado?

- Em qual seção? Como se caracteriza o espaço de publicação?

- Quando e onde o texto foi publicado?

- A quem se destina? Qual o público-leitor em potencial? Como se projeta o interlocutor no texto-

enunciado?

- Como se caracterizam os aspectos de diagramação (layout)? Intercalam-se gêneros outros?

A dimensão social, dessa forma, diz respeito às conjecturas histórico-culturais e ideológico-

valorativas de constituição e funcionamento dos textos-enunciados. Na análise dessa dimensão, o

professor pode explorar questões em volta à situação ampla dos enunciados, assim como à situação

imediata, procurando compreender, dentre outras questões, aspectos em torno da autoria e do

projeto discursivo do sujeito-autor, do interlocutor e seu papel na construção do enunciado, por

exemplo. Além disso, questões sobre a dimensão tempo-espaço do texto-enunciado e de sua esfera

de produção, circulação e recepção (compreensão, interpretação) são, em adição, consideradas na

análise dessa dimensão, conforme os questionamentos acima. Ao final, o professor, pode investigar

a possibilidade de intercalação de textos-enunciados outros no texto-enunciado que analisa,

evidenciando ou não esse engendramento dialógica na construção de sentido para a interação.

Na dimensão verbo-visual do texto-enunciado, por sua vez, o professor pode questionar

em sua análise:

- Sobre o que trata o texto-enunciado?

- Que valores (posições avaliativas, ideológicas) são marcados nesse dizer?

- Que relações esse dizer estabelece com outros dizeres?

- De que outras formas o conteúdo temático pode(ria) ser dito?

- Qual o projeto discursivo do autor?

- Quais recursos lexicais, gramaticais, textuais estão sendo agenciados para realizar o projeto

discursivo do autor à luz do gênero em tela?

- Como o texto-enunciado orquestra a projeção composicional do gênero em tela?

- Como elementos visuais se correlacionam com os verbais para a construção de sentidos? Há

gêneros multissemióticos intercalados? Qual a relação de sentido com o texto-enunciado em tela?

Na dimensão verbo-visual, portanto, o professor pode investigar o conteúdo temático do

texto-enunciado, seu estilo e sua composição, procurando evidenciar como este funciona em

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determinada esfera de atividade. Para fins de exemplificação, tomemos o caso da análise prévia do

texto-enunciado notícia online.

Figura 03 – Notícia online publicada no jornal Diário Catarinense.

Fonte: http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/ Acesso em 31/01/2014.

Abaixo seguem possíveis respostas aos questionamentos que orientam a análise. Não

respondemos a todos os questionamentos, nem aspiramos a ser exaustivos, deixando ao nosso

interlocutor o trabalho da resposta.

Tabela 01: A análise de textos-enunciados

Dimensões social e verbo-visual Feições do gênero do discurso

Qual a razão de esse texto-enunciado ser

escrito?

Reportar fatos sociais, políticos, econômicos

etc. do cotidiano. No caso da notícia em

ilustração, as espionagens dos EUA sobre o

Brasil.

Qual a esfera em que esse texto-enunciado é

produzido e quais as características dessa

esfera?

Esfera jornalística. A busca por efeitos de

imparcialidade, de atualização de informações,

de contemporaneidade dos fatos, etc.

O texto-enunciado é produzido na esfera sob a

baliza de qual instituição?

Qual a empresa jornalística e sua posição

ideológico-valorativa? Sensacionalista?

Imprensa marrom? Há efeitos sob a linguagem?

O jornal é o Diário Catarinense que tem uma

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visão ideológica de direita no estado de SC.

Quem escreve o texto-enunciado? E como a

autoria se projeta no texto-enunciado?

Quem é o autor (posição autoral)? É uma

posição multi-autoral?

Há projeções linguísticas que marcam

explicitamente a posição autoral?

Não está explicito o nome de quem assina a

notícia, conferindo a esta uma projeção de

autoria institucional.

Onde circula esse texto-enunciado? O texto tem circulação municipal, regional,

estadual, federal ou internacional? No caso da

notícia em meio virtual, as fronteiras são

infinitas. Se pensarmos acerca do jornal em

versão impressa, a territorialidade é mais

precisa.

Por quanto tempo circula? Esse tempo-espaço

de circulação traz efeitos de sentido para o

texto-enunciado?

É circulação de horas, de dias, semanal? E como

isso reflete na seleção de objetos dizíveis pelo

gênero? Geralmente notícias online circulam

por 24h, mas podem permanecer por meses no

arquivo digital do jornal. É claro que o conteúdo

temático da notícia em tela diz respeito ao que

tem se discutido na semana nas mais diversas

mídias.

Em que suporte circula esse texto? Jornal, revista, TV, celular, etc e qual os efeitos

de sentido? No computador, em ambiente

virtual, com acesso gratuito.

Em qual mídia é publicado? Impressa, virtual, radiofônica, televisiva,

telefônica.

Em qual seção? Como se caracteriza o espaço de

publicação?

Qual o espaço destinado à publicação e como

(ou por que) se dá essa disposição (valorativa)?

A notícia é publicada na seção “Mundo” o que já

antecipa as expectativas do leitor sobre o que

vai ler.

Quando e onde o texto foi publicado?

O local de publicação e a data de publicação têm

influência nos objetos dizíveis pelo gênero? Nos

diferentes jornais, o mesmo fato seria

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enquadrado com projeções distintas.

A quem se destina? Qual o público-leitor em

potencial? Como se projeta o interlocutor no

texto-enunciado?

Ver o público-leitor empírico (classe, idade,

profissão, escolaridade, sexo, orientação sexual,

etc) e discursivo (expectativas, interesses,

horizonte apreciativo). Há recursos linguísticos

explícitos no texto-enunciado que projetam

esse leitor?

Aqui o Diário Catarinense tem seu público-leitor

em potencial, além daqueles que navegam na

internet. Uma notícia pode ter mais adesão do

que outras (acessos) a depender do que reporta

e do como reporta.

Como se caracterizam os aspectos de

diagramação (layout)? Intercalam-se gêneros

outros?

Ver cores, disposição dos parágrafos, olho

textual, boxes, fonte etc. Além disso, verificar a

ocorrência da intercalação; por exemplo, no

gênero notícia é comum intercalarem-se

gêneros como infográfico, fotografia, mapa etc.

Esse gênero engendra-se a outro para

funcionar?

Alguns gêneros necessitam engendrarem-se a

outros para funcionar (entrelaçam-se em

relações dialógicas); por exemplo, o gênero

chamada de capa, necessita que haja uma

notícia ou reportagem principal na revista ou

jornal.

Sobre o que trata o texto-enunciado? O conteúdo temático do texto-enunciado.

Que valores (posições avaliativas, ideológicas)

são marcados nesse dizer?

O horizonte apreciativo sob o qual o sujeito-

autor enuncia. Em outras palavras, é a baliza

ideológico-axiológica a partir da qual o dizer se

constitui.

Que relações esse dizer estabelece com outros

dizeres?

As relações dialógicas (relações semântico-

valorativas) que se estabelecem no dizer

balizado pelo gênero do discurso. São relações

com o dizer do outro (já-ditos, pré-figurados).

De que outras formas o conteúdo temático

pode(ria) ser dito?

Outros caminhos argumentativos (por

exemplo); sob que outro horizonte apreciativo

o conteúdo temático do texto-enunciado

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poderia ser contemplado.

Qual o projeto discursivo do autor? A vontade discursiva do dizer. O querer-dizer

do sujeito-autor.

Quais recursos lexicais, gramaticais, textuais

estão sendo agenciados para realizar o projeto

discursivo do autor à luz do gênero em tela?

O estilo do texto-enunciado à luz da baliza do

gênero. Verificar as projeções estilísticas. Por

exemplo, verbos modais podem ser usados de

formas diferentes e sob sentidos distintos, se

pensarmos os gêneros notícia e artigo assinado.

Como o texto-enunciado orquestra a projeção

composicional do gênero em tela?

O acabamento relativamente estável do gênero.

É a orquestração de sua composição típica.

Como elementos visuais se correlacionam com

os verbais para a construção de sentidos? Há

gêneros multissemióticos intercalados? Qual a

relação de sentido com o texto-enunciado em

tela?

A construção de sentido entre o verbal e o

visual.

Fonte: Rodrigues (2001; 2005) e Acosta-Pereira (2008; 2012).

Ao final da exemplificação em torno do texto-enunciado notícia, publicado em ambiente

virtual, direcionemos nosso olhar para as considerações em torno da elaboração didática e as etapas

(possíveis) para tanto.

Textos-enunciados: implicações didático-pedagógicas e a elaboração didática

A Teoria da Transposição Didática (T.D) nasce na década de 1980 com a preocupação de

elaborar modos de transformar o conhecimento científico dentro de sistemas didáticos. É a

conversão de objeto do conhecimento em objeto de ensino. Yves Chevallard, matemático e

educador francês, observou a necessidade de associar a análise do conhecimento matemático com

os estudos práticos didáticos. A T. D, para Chevallard (1991), realiza o trabalho de reorganização,

medição e reestruturação dos saberes historicamente constituídos (institucionalizados) em saberes

tipicamente escolares. Segundo Almeida (2011, p.10), para Chevallard, o conceito de T. D prevê

A concepção de 3 partes distintas e interligadas: o saber do sábio, que é o saber

elaborado pelos cientistas; o saber a ensinar, que é a parte específica do professor e

está voltada à didática e à prática de condução da sala de aula; e, por último, o

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saber ensinado, aquele que foi absorvido pelo aluno mediante as adaptações e as

transformações feitas pelos cientistas e pelos professores.

Diferentemente da posição de Chevallard (1991), Halté (2008[1998]) propõe o conceito

de elaboração didática que, dentre outras questões, visa a distanciar-se do apagamento em que se

caracterizam as posições do professor e do aluno à luz da teoria da transposição. Assim,

diferentemente de transpor conhecimentos de ordem científica para o campo escolar – da ordem do

saber sábio para o saber ensinado -, contempla-se o trabalho de coconstrução de saberes de

múltiplas ordens, em eventos praxiológicos nos quais professor e aluno assumem papeis agentivos,

situando o acontecimento da aula em um projeto didático, no qual o saber ensinado converge com

escolhas, com objetivos compartilhados, com os conhecimentos prévios e com especialidades afins

(HALTÉ, 2008[1998], p.139), caracterizando a elaboração didática como um agenciamento de

saberes empreendidos para a ação didático-pedagógica (RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATTI,

2011). Segundo Halté,

Pelo fato de fixar a atenção apenas sobre o polo dos saberes, a transposição facilita,

e até legitima, a “deriva para os objetos de ensino”, em detrimento de outros pontos

importantes do famoso triângulo. Pelo fato de definir um processo descendente, do

saber científico para o saber escolar, ela favorece – até mesmo preconiza - o

aplicacionismo. Pelo fato de organizar-se a partir de saberes distribuídos

academicamente em campos constituídos, ela purifica os objetos de ensino ao

preço de uma perda de sentido pelos aprendizes etc. Por essas razões, eu havia

defendido uma didática globalmente praxiológica, caracterizando-se, em relação

aos saberes, por uma metodologia implicacionista que eu nomeei elaboração

didática dos saberes. (HALTÉ, 2008[1998], p.138, grifo do autor).

Entendemos, sob essa perspectiva, que para o trabalho docente de elaboração de

atividades didático-pedagógicas, as etapas a seguir se sucedem. Primeiramente, entendemos que há

a seleção de textos-enunciados do gênero para trabalho em sala: seleção de textos-enunciados

concretos e de circulação social (GERALDI, 1984[1985], 1997[1991], 2010), como, por exemplo,

textos-enunciados que circulam em âmbito global, como aqueles que circulam em contexto local,

contemplando, em sala, uma prática híbrida (STREET, 2003). O importante é selecionar textos

autênticos, inclusive com seu design original (ANTUNES, 2003; 2007; 2010). Em um segundo

momento, ocorre a análise prévia do texto-enunciado pelo professor como subsídio para a

elaboração didática: seguir (como sugestão) a análise da dimensão social e verbo-visual dos textos-

enunciados. Terceira etapa, por sua vez, se caracteriza como a elaboração de atividades de leitura:

propor atividades que contemplem tanto a dimensão social quanto a dimensão verbo-visual dos

textos-enunciado em tela na aula. Entender que ler é reagir responsivamente ao texto-enunciado do

outro.

Consociada à elaboração de atividade de leitura, ao nosso ver, ocorre a elaboração de

atividades de escrita: propor atividades que os alunos tornem-se sujeitos-autores de seu dizer e que,

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sobretudo, a aula agencie uma situação concreta de escrita na qual o aluno: (a) tenha o que dizer; (b)

tenha razões para dizer; (c) (re)conheça os interlocutores para dizer; (d) assuma-se como autor do

seu dizer e (e) escolha estratégias para dizer (GERALDI, 1997[1991], p.161). E ainda segundo

Rodrigues; Cerutti-Rizzatti (2011, p.200):

A elaboração didática de ensino e aprendizagem da produção textual não pode

prescindir a noção de gêneros se, de fato, tomarmos como princípio que à

disciplina de Língua Portuguesa cabe o trabalho com o domínio dos usos sociais da

linguagem. Desse encaminhamento, resulta que a grande maestria do professor de

língua portuguesa está na elaboração didática de atividades didático-pedagógicas

que medeiam o processo de apropriação de conhecimentos necessários à produção

de textos pertinentes aos gêneros do discurso a que pertencem; e, como corolário,

construir conhecimento praxiológico necessário para o aluno, como sujeito

historicamente situado, poder transitar em diferentes esferas sociais cujas

interações são mediadas pela escrita (no caso de interações mediadas por textos

escritos).

E sob a perspectiva da leitura e da escrita de textos enunciados, ocorre a elaboração de

atividades de análise linguística: propor atividades que os alunos reconheçam e compreendam

como os diferentes recursos da língua são agenciados para construir sentidos sob a baliza da

situação de interação (ACOSTA-PEREIRA, 2011; 2013). Dessa forma, todo texto-enunciado, sob a

baliza de um gênero, em dada situação de interação, se utiliza de recursos linguísticos que agenciam

sentidos integrados às feições do gênero e às conjecturas da situação de interação. A prática de

análise linguística deve ser integrada às práticas de leitura e de escrita (ACOSTA-PEREIRA, 2013;

RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATTI, 2011). Ao final, de forma integrada, entender como o gênero

do discurso, texto-enunciado típico, medeia as práticas de leitura, de escrita e de análise linguística.

Considerações finais

Nosso objetivo neste trabalho foi, de forma objetiva, apresentar considerações de ordem

enunciativo-discursiva para a análise de textos-enunciados como atividade docente prévia à

elaboração didática. Desse modo, primeiramente, delineamos um caminho de discussão teórico-

metodológica em torno do conceito de enunciado sob a perspectiva dos escritos do Círculo de

Bakhtin, para que, em consórcio à proposta de análise, nosso interlocutor (leitor) pudesse traçar

uma rota de idas e vindas entre a conceituação e os questionamentos para a análise. E um segundo

momento, introduzimos os possíveis questionamentos em torno da análise das dimensões social e

verbo-visual dos textos-enunciados e uma exemplificação com base no gênero notícia online.

Assim, esperamos que os questionamentos delineados acima contribuam para o trabalho

do professor na elaboração didática e no seu entendimento da constituição e do funcionamento dos

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textos-enunciados nas diversas situações de interação de que fazem parte. Ao fim, reenunciamos

Rodrigues; Cerutti-Rizzatti (2011, p.152) com as quais concordamos:

Optamos por empreender uma ação didático-pedagógica que não lança mão de

modelizações e de construtos didatizantes. Defendemos o papel central do

professor no delineamento dos rumos de seu fazer, para o que entendemos

essencial a apropriação do conhecimento científico aqui recortado, mas, reiterando

[...] que a lógica da ciência não é a lógica da disciplina, e a escola não é o espaço

para ofazer científico, mas para o ensino e a aprendizagem de conhecimentos

objetificados, historicamente construídos pela humanidade, tanto quanto para o

desenvolvimento de habilidades para os diferentes usos da linguagem, no caso da

disciplina de Língua Portuguesa.

Portanto, como já dito, não procuramos sedimentar um caminho de análise estanque e

modelizador para os textos-enunciados, mas questionamentos que podem ser levantados em torno

da constituição e funcionamento destes. Diferentemente de um trabalho de cunho teórico-

epistemológico, acreditamos, nosso presente trabalho resulta, em grande parte, numa proposta que

visa a contemplar uma posição praxiológica do fazer docente.

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A RETÓRICA DO GÊNERO ENTREVISTA DE EMPREGO

Francisco ALVES FILHO7

Lafity dos Santos ALVES8

Resumo: A principal tendência dos estudos da teoria de gêneros, na perspectiva da nova retórica

estadunidense, é adotar a noção de gênero como uma resposta tipificada a uma situação retórica

recorrente (BITZER, 1968; BURKE, 1973; JAMIESON, 1973) de modo a situar o gênero retórico

na prática retórica e nas convenções de discurso estabelecidas pela sociedade (BAZERMAN, 1988;

e MILLER, 1984). Diante disso, nosso objetivo neste trabalho é buscar explicações para o

funcionamento retórico do gênero Entrevista de emprego, já que se trata de um gênero praticado em

situação privada e modelos de referência não circularem publicamente.

Palavras-chave: Entrevista de Emprego. Gêneros. Nova retórica. Função retórica.

Abstract: The main trend of the studies of the theory of genres, from the perspective of the

American new rhetoric, is to adopt the notion of genre as a typified answer to a recurring

rhetorical situation (BITZER, 1968; BURKE, 1973; JAMIESON, 1973) in order to situate the

rhetorical genre in the rhetorical practice and in the discourse conventions established by society

(BAZERMAN, 1988; MILLER, 1984). Based on this theoretical approach, we aim at seeking

explanations for the rhetorical functioning of the Job Interview genre, since it is about a genre

practiced in private situation and reference models do not circulate publicly.

Keywords: Job Interview. Genres. New rhetoric. Rhetorical Function.

Introdução

Em nível internacional, existem muitas pesquisas que trazem à tona a vertente da Entrevista

de emprego; no entanto, muitos desses trabalhos estão relacionados ao campo da Psicologia. A nível

nacional, também existem alguns trabalhos cuja temática norteadora é a Entrevista de emprego, mas

a visão predominante é a da área administrativa, que tende a olhar o gênero Entrevista de emprego

de forma genérica e abstrata.

7Pós-Doutor em Linguística pela UNICAMP.Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras

da UFPI. Teresina-PI. E-mail: [email protected] 8Mestre em Linguística pela UFPI. Professora do Instituto Dom Barreto. Teresina-PI. E-

mail:[email protected]

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No Brasil, no campo da sociorretórica, ainda são poucos os trabalhos que abordam a

temática da Entrevista de emprego. Acreditamos que isso nos traz algumas sérias consequências,

quais sejam: pouca incompreensão das funções do gênero supracitado, uma vez que os manuais

disponíveis no meio digital apresentam regras genéricas de um funcionamento abstrato do gênero

Entrevista de emprego, resultantes de situações muito particulares de uso desse gênero; Isso gera

um outro problema: uma visão formalística e rígida do gênero Entrevista de emprego regendo, de

modo geral, o comportamento das pessoas que necessitam fazer uso desse gênero.

Diante disso, nosso objetivo nesta pesquisa é explicar o funcionamento retórico do gênero

Entrevista de emprego, uma vez que ainda se trata de um gênero obscuro para a sociedade.

Seguiremos, então, a teoria de gêneros defendida pelos teóricos da Nova Retórica Americana, tais

como Devitt (2008), Jamieson (1973) e Miller (2005), para quem os gêneros “são construtos sociais

elaborados pelos usuários em situações específicas de uso da linguagem” (SILVA, 2011).

Para realizarmos esta pesquisa contamos com a análise de depoimentos de entrevistadores e

entrevistados em 4 blogs, todos direcionados à entrevista de emprego, sendo que dois deles contém

comentários e relatos de experiências de pessoas que já passaram pela entrevista de emprego. Os

demais contêm dicas de comportamentos dadas pelos consultores.

Assim como em Silva (2011), a nossa análise, aqui, será de base interpretativista, já que

buscaremos, nos depoimentos dos usuários (entrevistados, entrevistadores e consultores) desse

gênero, explicações para o funcionamento da Entrevista de emprego no contexto empresarial.

A escolha da entrevista de emprego como objeto de análise de nossa pesquisa deu-se devido

ao fato de tentarmos procurar explicar o funcionamento do gênero entrevista de emprego para

usuários deste gênero e, também, ao fato de muitos estudos sobre a literatura não abordarem a

complexidade a qual perpassa esse gênero, desconsiderando, assim, a obscuridade característica

dele.

Situação Retórica

A noção de gênero nos Estudos Retóricos recorre diretamente à noção de situação porque

muitos autores assumem que o gênero é tributário da situação retórica e defendem que as pessoas,

quando reconhecem uma situação particular como semelhante a outra já vivenciada, tendem a se

guiar por ela para proferir seu discurso. (SILVA, 2011)

Bitzer (1968) critica os teóricos da retórica clássica por terem ignorado a importância do

estudo da situação e se preocupado mais em distinguir e caracterizar os tipos de discurso e em

descrever e prescrever aspectos formais dos discursos retóricos. Concebendo-a como central para os

estudos retóricos, Bitzer (1968) concebe a situação como um complexo de pessoas, eventos, objetos

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e relações presentes numa exigência real e defende que o discurso do retor surge como uma resposta

a uma dada situação retórica.

Jamieson (1973) propõe que seja acrescido à teoria de Bitzer o fato de que a percepção de

uma resposta adequada a uma situação recorrente surge não somente em relação à situação, mas

também a partir de outros gêneros já conhecidos. Também revendo a concepção de Bitzer, Miller

(1984) defende que a situação retórica não é uma realidade objetiva, já que resulta da interpretação

social compartilhada. Como a situação não corresponde ao mundo físico e empírico, mas é

determinada e concebida pelos usuários, os gêneros tornam-se não somente parte do contexto, mas

também parte constitutiva da exigência que solicita respostas futuras. Ou seja, a situação retórica

está associada às condições de comparações entre situações que , de algum modo, assemelham-se.

No caso da Entrevista de Emprego isso se constitui da seguinte maneira: As pessoas tendem a partir

de situações de entrevistas vivenciadas por elas, ou mesmo, por outras pessoas buscar semelhanças

que irão, de algum modo, facilitar o reconhecimento da Entrevista nas mais diferentes situações.

Devitt (2004) também critica a concepção de Bitzer de situação retórica por se tratar de uma

definição determinística, já que supõe apenas uma resposta adequada para cada situação.

Estudos Retóricos dos gêneros

Dois aspectos da abordagem de gênero de Campbell e Jamieson (1978a, 1978b, 1982 citados

por MILLER, 1984) são importantes para os estudos dos gêneros retóricos. O primeiro consiste no

fato de a discussão de Campbell e Jamieson produzir um método de classificação que satisfaz a

exigência de relevância para a prática retórica. Segundo Miller, um gênero se torna um complexo de

traços formais e substantivos que criam um efeito particular numa dada situação. Portanto, o

gênero, mais do que uma entidade formal, torna-se pragmático e retórico - dois importantes

aspectos do gênero como ação social. O segundo aspecto é o fato de Campbell e Jamieson

procederem indutivamente como críticos, o que não as fizeram prever ou limitar os gêneros que

poderiam ser identificados, mas procurar uma explicação da evolução da realidade social dos

discursos.

A compreensão de gênero retórico defendida por Miller (1984, p.163) está pautada na

prática retórica e nas convenções de discurso estabelecidas pela sociedade e resulta do “agir junto”

das pessoas, razão pela qual a compreensão dos gêneros “não se presta à taxonomia, porque gêneros

mudam, evoluem e se deterioram”.

Devitt (2004) se apoia em Miller (1984) para defender que gêneros existentes tendem a guiar

as respostas do retor numa nova situação, razão pela qual “os gêneros [...] dependem muito da

intertextualidade do discurso” (DEVITT, 2004, p.15). A resposta do usuário numa dada situação

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poderá ser guiada por respostas dadas em outro momento, mas que têm algo similar com uma nova

situação.

A visão de Miller (1984) sobre a percepção subjetiva é de que esta não é a fonte do que

recorre, pois ela é única em cada momento e muda de pessoa para pessoa. Entretanto, Devitt (2004)

argumenta que a percepção individual também é fonte da recorrência, pois a existência do discurso

dá-se somente através das ações individuais. Além do mais, um escritor ou leitor percebe a

recorrência porque reconhece um gênero existente. Por isso, há, segundo a autora, uma tendência

por parte das pessoas em perceber semelhanças em situações que se lhes apresentam como

adversas. Esse paradoxo decorre do fato de as pessoas construírem os gêneros a partir de uma

situação e a situação através dos gêneros, numa relação, ao mesmo tempo, recíproca e dinâmica.

Dessa forma, as pessoas reconhecem situações recorrentes porque conhecem gêneros e, em

contrapartida, reconhecem um gênero porque são capazes de identificar a situação a ele

recorrentemente associada.

Embora situação e gênero estejam integralmente inter-relacionados, essa relação não captura

tudo da ação. É por isso que Devitt (2004, p.27) propõe adicionar mais dois elementos situacionais

essenciais: ‘cultura’ e ‘outros gêneros’. O contexto cultural “fornece uma fonte para explicar as

facetas significativas do gênero” pelo fato de ele fornecer valores e ideologias que colocam os

retores em situações mais adequadas para ler os gêneros. O outro elemento são os “outros gêneros”

existentes numa sociedade e que se interinfluenciam, já que “ninguém escreve ou fala no vazio”

(p.27). Esses três contextos (cultural, de situação e de outros gêneros) agem de forma simultânea e

interativa dentro de um único gênero.

Devitt (2004, p.33) defende que “os gêneros operam socialmente” já que pressupõem ações

múltiplas de pessoas agindo de modo recorrente, razão pela qual estão interligados às questões de

poder e de identidades ideológicas. Em síntese, Devitt concebe o gênero como algo que não pode

operar independentemente das ações das pessoas. Pois é justamente a interação entre ação humana e

gêneros que possibilita as pessoas construírem os gêneros e serem as situações também construídas,

pelo menos em parte, por eles.

Entrevista de emprego (EE)

O gênero EE é amplamente utilizado para contratação de funcionários de empresas dos mais

diversos setores da economia. Fear (1978 apud CONWELL, 1990) afirma que a função da EE é

avaliar a personalidade do indivíduo de tal modo que o entrevistador possa determinar se o

indivíduo é ou não adequado para a vaga do emprego a que concorre.

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Jackson, Peacock e Holden (1982 apud SILVA, 2011) argumentam que um processo de

inferência duplo ocorre na situação da entrevista. A primeira parte envolve o entrevistador

construindo um perfil baseado em informações inferidas em um conjunto de exemplares

comportamentais e a segunda parte envolve o processo de tomada de decisão que está baseado

sobre a informação obtida na primeira parte.

Jackson, Peacock e Holden constataram que candidatos que eram menos prováveis de serem

contratados eram aqueles cujas características eram inconsistentes com a informação inferencial do

avaliador.

Também Conwell (1990 apud SILVA, 2011) chega à conclusão semelhante: o candidato

expondo características de personalidade incongruentes ou inconsistentes em relação à ocupação era

avaliado de forma negativa e menos provável a ser empregado do que o candidato exibindo a

informação consistente (p.98).

Ao analisar o gênero EE a partir de informações fornecidas por uma entrevistadora, De

Conto (2008) afirma que a distância existente entre o entrevistador e o entrevistado reforça a

relação hierárquica característica deste gênero, já que não há qualquer manifestação de intimidade

entre os participantes. Além disso, as perguntas elaboradas pelo selecionador são feitas com base

em processos mentais, já que o objetivo maior é avaliar o perfil psicológico do candidato. Por isso o

que mais determina a contratação do candidato não é o que está escrito na carta de apresentação e

no currículo, mas sim a representação que é feita pelo candidato no momento da EE.

Marzari (2005), por sua vez, defende que a EE é um gênero que permite aos indivíduos

envolvidos na situação redefinirem seus papéis e objetivos, já que ela “... revela as concepções, os

objetivos e as perspectivas de entrevistadores a respeito do entrevistado” (p.30).

A EE é um gênero presente em diversas esferas da atividade humana e fundamental na

escolha do candidato que possivelmente virá assumir uma vaga no mercado de trabalho, ocorrendo

numa situação particular que faz parte de um processo de seleção mais amplo incluindo outros

gêneros. Os participantes dessa seleção ocupam dois papéis claramente delimitados:

entrevistador(es) e entrevistado. Trata-se de uma situação com um claro grau de hierarquização já

que o controle e o comando de toda a situação são ditados pelo entrevistador.

Do ponto de vista do entrevistador, a EE constitui-se numa situação abundantemente

recorrente, porque ele a vivencia reiteradamente. Já o entrevistado não tem esta percepção de

recorrência do gênero porque cada situação de entrevista será nova e ele participa de poucas delas

durante toda sua vida. Ou seja, a recorrência funciona diferentemente para os dois perfis de

participantes: abundantemente recorrente para o entrevistador e praticamente inusitada e esporádica

para o entrevistado.

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A interinfluência entre situação retórica e gênero manifesta-se claramente na EE, ainda que

varie em função dos sujeitos envolvidos. Embora este gênero apresente um significativo grau de

obscuridade para o entrevistado e ainda que o entrevistador lhe seja alguém desconhecido, o

entrevistado se apoia em suas experiências anteriores com outras entrevistas e outros gêneros para

criar expectativas genéricas acerca da futura entrevista da qual tomará parte.

Como em Silva (2011), acreditamos que a entrevista de emprego pode ser caracterizada

como apresentando como uma de suas facetas marcantes um funcionamento baseado nas

expectativas dos usuários. Tanto entrevistadores como entrevistados guiam suas ações genéricas

com base no que imaginam que poderá ocorrer durante a entrevista.

Segundo Chiavenato (apud SILVA, 2011), a entrevista de emprego somente servirá como

forma de avaliação, se o entrevistador:

a) examinar seus preconceitos pessoais e dar-lhes o devido desconto; b) evitar perguntas do tipo

armadilha; c) ouvir atentamente o entrevistado e demonstrar interesse por ele; d) fazer perguntas

que proporcionem respostas narrativas; e) evitar emitir opiniões pessoais; f) encorajar o entrevistado

a fazer perguntas sobre a organização e o emprego; g) evitar a tendência de classificar globalmente

o candidato (efeito de hallo ou de generalização) como apenas bom, regular ou péssimo; h) evitar

tomar muitas anotações e registros durante a entrevista para poder se dedicar mais atentamente ao

candidato e não às anotações. (p.129)

Concordamos com Silva (2011) quando esta afirma que, nas condições de avaliação

expostas acima, Chiavenato assume o papel social de consultor, já que instrui aos entrevistadores as

regras de funcionamento do gênero entrevista de emprego. O que fica demarcado pela presença dos

verbos: examinar, evitar, ouvir, fazer e encorajar. As condições expostas acima servem como

exemplo para explicarmos o gênero como ação social tal qual defendido por Miller. Para Miller, a

ação social propriamente dita acontece somente quando os indivíduos passam a conceber, ou

melhor, a tipificar o gênero como sendo de uma forma x e não y. Assim, o modo de conceber a

entrevista de Chiavenato sugere que essa seja a forma correta de agir durante uma entrevista,

portanto, quando os entrevistadores passam a comungar com essa visão do gênero entrevista de

Chiavenato, temos a ação social, já que esse modo de conceber esse gênero não é mais somente de

Chiavenato, mas também de outros usuários que partilham uma mesma comunidade discursiva.

Acreditamos que Chiavenato possa ter estabelecido esta concepção de entrevista a partir de

experiências adquiridas com outras pessoas, bem como com outras situações sociais vivenciadas

por ele.

Segundo Chiavenato, a entrevista pode ser conduzida pelo entrevistador de forma

estruturada e padronizada ou de forma livre. A forma utilizada pelo entrevistador dependerá de suas

habilidades na condução da entrevista. Ele classifica as entrevistas (em função das questões e

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respostas) em quatro tipos: “entrevista totalmente padronizada”, “entrevista padronizada apenas

quanto às perguntas ou questões”, “entrevista diretiva” e “entrevista não diretiva”. Nesse trecho,

percebemos que a entrevista não é um gênero rígido, mas dinâmico e heterogêneo, já que temos

agrupamentos diferentes para um mesmo gênero e não há somente um critério para rotular os

discursos utilizados nos gêneros. (SILVA, 2011)

Segundo Silva (2011), o gênero Entrevista de Emprego é também retórico no sentido

persuasivo, conforme defendido por estudiosos da teoria clássica, a exemplo de Aristóteles.

Segundo a autora, isso se dá porque, na situação de entrevista, o entrevistado precisa convencer o

entrevistador de que o seu perfil atende ao exigido pela empresa e o que está sendo dito por ele

atesta uma verdade. Mas como o discurso pode, ao invés de refletir, refratar ou distorcer a realidade,

os entrevistadores sentem necessidade de analisar também a linguagem corporal. Há que se

considerar que, para um psicólogo, por exemplo, a verdade pode estar mais no gesto, no olhar do

que na palavra, porque a palavra pode não representar a imagem real do candidato e as pessoas

podem também mentir com o corpo. Isso talvez justifique o fato de muitas empresas terem

psicólogos no processo de seleção de funcionários, porque, em tese, esse profissional consegue

fazer uma leitura perspicaz e acurada da linguagem corporal.

Concepções do gênero entrevista de emprego segundo seus participantes

Situação obscura

Muitos entrevistados concebem a entrevista como um gênero obscuro e enigmático. Pedro9,

estudante de comunicação, declarou que a EE é o "encontro com uma pessoa desconhecida [...] O

entrevistador não te conhece e irá fazer um "juízo" de você que, às vezes, não corresponde com a

realidade” (http//www.acessa.com/vestibular/arquivo/carreira/2005/06/29entrevista/#1), acessado

em 5 de abril de 2010 às 19h25min.). De modo parecido, Joana declarou que a entrevista causa

certo desconforto já que “não sabemos como serão as perguntas"

(http//www.acessa.com/vestibular/arquivo/carreira/2005/06/29-entrevista/#1),acessado em 5 de

abril de 2010 às19h25min. ).

O caráter de obscuridade do gênero, na perspectiva dos entrevistados, apresenta uma

importância estratégica para os entrevistadores, já que os possibilita avaliarem os candidatos em

situações que se mostram como novas e inusitadas. Sendo uma situação nova e não reconhecida

como recorrente, ela pode favorecer a manifestação das posturas e habilidades reais dos candidatos

9 Todos os nomes de entrevistados, entrevistadores e consultores mencionados neste artigo são

fictícios.

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em vez de comportamentos frutos de mera representação cênica. Por isso, muitos consultores são

categóricos ao afirmar que o conhecimento prévio da empresa é um fator crucial para que o

candidato venha a se sair bem na entrevista: ela seria uma condição para atenuar a obscuridade.

Situação de investigação

Do ponto de vista de muitos entrevistadores, a entrevista é concebida uma situação de

investigação acerca das verdadeiras habilidades, posturas, e capacidades dos candidatos. Fátima,

uma entrevistadora, afirmou que procura deixar o candidato bem à vontade para “saber como essa

pessoa é realmente... o objetivo de uma entrevista é obter dados que dêem subsídio ao entrevistador

para escolher, com a maior probabilidade de acerto possível o candidato que se adequa melhor

àquele cargo” (entrevista concedida por um Psicólogo e Consultor em

http://psicologiaetrabalho.bolgspot.com/2009/03/entrevistadeemprego.html, acessado em 15 de

fevereiro de 2010, às 14h). Outra entrevistadora, Ana, assegurou que a função do recrutador é

“avaliar o conteúdo do discurso e um conjunto de informações não-verbais utilizadas como

critérios de avaliação, como postura, linguagem corporal, apresentação pessoal, fluência verbal,

motivação e interesse pela vaga [...]” (Psicóloga especialista em RH em:

http://www.zap.com.br/revista/empregos/categoria/como-se-preparar-para-uma-entrevista/page/2/,

acessado em 18 de Fevereiro de 2010, às 18h14min).

Tensão entre recorrência e novidade

As dicas oferecidas pelos consultores em manuais, embora tentem esclarecer o gênero,

trazem comumente alguns problemas. Um deles é o fato de, muitas vezes, conceber a entrevista de

emprego como um gênero que pode ser padronizado independentemente das situações bem

particulares e potencialmente adversas nas quais ele de fato ocorre, o que distorce a evidente

complexidade deste gênero. Embora as dicas oferecidas frequentemente pelos consultores

concebam a EE de modo homogêneo, elas não são seguidas por entrevistadores que assumem

valores e concepções mais particulares acerca deste gênero. Paulo declarou ter participado de uma

entrevista em que as perguntas foram totalmente surpreendentes (no geral, sobre a vida particular

dele e de sua família), frustrando completamente suas expectativas.

Rute, uma empresária que já conduziu muitas entrevistas, comentou em um blog

(http://movv.org/2009/03/15/50-perguntas-e-respostas-para-usar-em-entrevistas-de-

emprego/#comment-99347, acessado em 02-03-2010, às 11h28min) que o grande problema da

entrevista de emprego é o fato de os entrevistados estarem cada vez mais parecidos. Ela atribuiu a

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não contratação de alguns candidatos ao fato de eles seguirem à risca certas regras ditadas pelos

manuais e tornarem-se muito parecidos. Mas há depoimentos que indicam exatamente o oposto do

caso acima: Teresa atribui sua reprovação numa entrevista ao fato de ter procurado fugir das

respostas convencionais e buscado ser “mais natural, mais ela” (http://movv.org/2009/03/15/50-

perguntas-e-respostas-para-usar-em-entrevistas-de-emprego/#comment-99347, acessado em 02-

03-2010, às 11h28min).

De modo geral, pode-se dizer que a EE funciona em uma situação tensa para os

entrevistados, já que estes não têm certeza ou convicção a respeito dos temas e propósitos

recorrentes. Aos olhos do candidato, não é fácil descobrir os traços recorrentes para uma situação

obscura, inacessível e imprevisível.

Pois é exatamente este caráter obscuro da entrevista que abre espaço para que as dicas dos

consultores façam tanto sucesso entre pretendentes a emprego. Os consultores buscam justamente

esclarecer o obscuro e indicar as recorrências de um gênero, o qual pode ou não apresentar um

funcionamento recorrente.

Expectativa

Segundo Silva (2011), a expectativa criada por alguns consultores em relação à entrevista de

emprego é de que a entrevista é uma situação de armadilha. Por isso, cabe aos entrevistados ficarem

atentos ao que os entrevistadores irão perguntar.

No entanto, segundo a autora, há outros consultores, dentre eles, Chiavenato, que discordam

desse tipo de visão do gênero entrevista difundida na sociedade. Segundo Chiavanato, para que a

entrevista seja vista como instrumento de avaliação do entrevistador, este deve evitar perguntas do

tipo armadilha. Além disso, há ainda a expectativa de que o gênero entrevista de emprego seja uma

situação de autopromoção da imagem do entrevistado.

Em síntese, a entrevista de emprego pode ser caracterizada como apresentando como uma de

suas facetas marcantes um funcionamento baseado nas expectativas dos usuários. Tanto

entrevistadores como entrevistados guiam suas ações genéricas com base no que imaginam que

poderá ocorrer durante a entrevista. (SILVA, 2011)

Considerações finais

Retoricamente, a EE serve a propósitos muito diferenciados, dependendo fortemente do tipo

de instituição para a qual é utilizada. Por ser um gênero de funcionamento obscuro, os entrevistados

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demonstram não se sentir minimamente preparados para as práticas do gênero, demonstrando

dúvidas sobre a sua função retórica.

Podemos então dizer que a EE é um gênero obscuro para os entrevistados, já que mesmo os

candidatos mais experientes não conhecem a pessoa que o entrevistará e nem mesmo sabem que

tipos de crenças e valores o entrevistador traz consigo, o que evidencia não só um desconhecimento

da pessoa que entrevistará, mas também dos propósitos do gênero. Como a EE é um gênero cuja

situação é privada e inacessível, muitos usuários o encaram como um enigma.

Alguns candidatos alimentam a expectativa de que as perguntas nunca mudam, ao passo

que outros supõem que elas mudam. Assim como em Silva (2011), acreditamos que isso demonstra

a dificuldade que os entrevistados têm em lidar com o gênero, já que ele é, ao mesmo tempo,

estável e instável. Ademais, o candidato que vê na entrevista certa rigidez tende a ter sua

expectativa quebrada quando se encontra diante de uma situação de entrevista que se lhe apresenta

como nova. Quando o entrevistador faz perguntas relacionadas à vida pessoal, ele não o faz

somente para deixar o candidato à vontade, já que algum fato negativo denunciado pelo

entrevistado pode ser decisivo na sua eliminação durante uma entrevista.

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A SOCIOLINGUÍSTICA LABOVIANA: “A NORMAL SCIENCE” OU “A

REVOLUTIONARY SCIENCE”?

Hélder Sousa SANTOS10

Sueli Maria COELHO11

As questões e enigmas enfrentados pela teoria linguística atual são, em muitos

casos, recauchutados por questões e enigmas que aparecem e reaparecem no

pensamento linguístico Ocidental desde que foram propostos. [...] as teorias

contemporâneas permanecem, então, deslumbradas pelos mesmos problemas que

nossos antepassados vêm tentando resolver por mais de dois mil anos (TAYLOR,

apud FIGUEROA, 1990, p.2).

Resumo: No presente artigo, propomos uma discussão de natureza intrateórica cujo foco está na

maneira como o fenômeno linguagem é abordado pelo linguista americano William Labov (2008).

Em sendo assim, para proceder a essa proposta, recorremos a posicionamentos desenvolvidos por

Esther Figueroa (1994), particularmente, em sua obra “Metateoria Sociolinguística” —

“Sociolinguistic Metatheory”. Ante, então, a posicionamentos figueroanos, destacamos que, de fato,

a empreitada laboviana não instituiu uma subárea no campo dos estudos linguísticos, a

Sociolinguística. Ao contrário, em Labov, a ciência linguística é exposta a uma espécie de revisão

daquilo que parte do pensamento saussuriano nos legou como modelo padrão de investigação do

objeto língua, a partir da reivindicação de um estatuto para o caráter social constitutivo da estrutura

da língua.

Palavras-chave: Metateoria. Revisão. Sociolinguística laboviana.

Abstract: In this paper, we propose a discussion of intratheoretical nature whose focus is on the

way the language phenomenon is approached by the American linguist William Labov (2008).

Therefore, to conduct this proposal, we have scrutinized the positionings developed by Esther

Figueroa (1994), particularly in her book “ Sociolinguistics Metatheory ". Before, then, the

positionings of this author, we point out that, in fact, the Labovian intellectual production did not

institute a subfield in the field of linguistic studies, the Sociolinguistics. Unlike, in Labov, the

linguistic science is exposed to a kind of review from the Saussurian thinking as the standard model

of investigation of the object language, from a demand of a statute to the constitutive social

character of language structure.

Keywords: Metatheory. Review. Labovian sociolinguistics

10 Doutorando em Estudos Linguísticos, pela Universidade Federal de Uberlândia (PPGEL-UFU). E-

mail: [email protected] 11

Docente do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

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Palavras introdutórias

Uma revisita atenta à Historiografia das Ideias Linguísticas nos faz notar que o vasto saber

teórico ali produzido por grandes filósofos e linguistas acerca da matéria linguagem pouco se

mostra a priori — semelhante ao que ocorre em outras áreas de conhecimento, na física, por

exemplo, onde um mesmo paradigma, em uma dada conjuntura, garante certa coerência às suas

pesquisas — na condição de um estável arcabouço de conhecimentos e de descobertas claramente

delineados para o exercício de uma ciência.

Ao contrário, observa-se dali que sempre existiram diferentes perspectivas teóricas em

competição, cada uma, à sua maneira, ocupada com a análise e com a descrição de distintos fatos de

língua[gem]. Com efeito, essas perspectivas — não obstante falem de algum lugar teórico em que

quase sempre se reforça a conhecida dicotomia saussuriana Língua Vs. Fala — nunca deixaram de

propor meios para que fosse possível compreender como, sistematicamente, o multifacetado

fenômeno linguístico se estabelece no seio das sociedades, permitindo ali funcionar muitas de suas

práticas, sejam estas de natureza linguageira, social cultural.

Em vista do que então propõem tais perspectivas teóricas, podemos destacar, sem muitas

delongas, dois modos distintos de fazer linguística. Um deles, que está coadunado à premissa

defendida por Saussure (2006 [1916]), no Curso de Linguística Geral (doravante, CLG), de que a

língua (langue), objeto de estudo da ciência Linguística, “[...] um todo por si e um princípio de

classificação” (p.17), permite ser estudada a partir da autonomia de suas formas, no interior de um

sistema, sem, portanto, qualquer ligação àquele que dela faz uso, o falante. E outro, o qual, sem se

distanciar demasiadamente dos trabalhos de Saussure, reclama para si elementos “negados”12 — a

saber, o locus da língua[gem], a fala, o seu estatuto social — na matriz científica proposta pelo

mestre genebriano à pesquisa linguística. Neste segundo caso, especificamente, encontram-se

estudos que reivindicam para o objeto língua a sua outra face pouco explorada nas lucubrações

saussurianas, a fala (“parole”). Um desses estudos, sobejamente assumido por atuais pesquisas com

foco na realização individual da língua, a fala, provém da maneira como o linguista americano

William Labov (2008) compreende questões relativas ao fenômeno linguagem — questões

12 Optamos por aspear esse termo — que na verdade poderia ter sido substituído por outro —, pois,

no CLG, Saussure (2006) não declara ser a “fala” (“parole”) um objeto de estudo desvinculado da

investigação de sua ciência piloto, a Linguística. Sendo assim, afirmar que Saussure negou essa outra parte

constitutiva da linguagem representa um equívoco, já que, nas suas próprias palavras, “langue” e “parole”

“[...] estão estritamente ligadas e se implicam mutuamente; a língua é necessária para que a fala seja

inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça [...]” (p.27).

O que podemos, então, asseverar é que Saussure optou por investigar a língua, e não exatamente a fala, pois

esta, inicialmente, iria impedi-lo de propor uma sistematização de fatos linguísticos tomados em si como

homogêneos.

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relacionadas, por exemplo, ao uso,13 que é feito de estruturas linguísticas por um conjunto

específico de falantes, socialmente integrados a determinado nível sociocultural e econômico —, as

quais, para um recorte de tempo observado, permitem corroborar estágios de mudanças ocorridos

nas línguas em geral.

Em sendo assim, na óptica de Labov (2008, p.13), é preciso não perder de vista o fato de que

“a língua tem um caráter social e cabe à linguística reconhecer isto”. Ora, essa injunção que Labov

determina à linguística nada mais é que o cerne de todo seu projeto teórico-metodológico, o qual

está pautado na investigação empírica do objeto língua. Dela, consequentemente, pode-se, aqui,

entrever algo da noção de língua[gem] assumida por Labov. Neste caso, trata-se da convicção que o

impulsionou a apresentar à ciência da linguagem uma alternativa de incluir ali aspectos do caráter

social da língua. Tal convicção, segundo explica o próprio Labov (2008 [1974]), cabe ser avivada

por pesquisas linguísticas que, ao mesmo tempo, se permitam ser trabalhadas por premissas do

paradigma científico proposto em Saussure (2006 [1916]) e pela possibilidade de estudo da vida dos

signos de uma língua em ambientes sociais. No entanto, e muito estranhamente — protesta Labov

(2008) —, o que muitos linguistas seguidores de Saussure praticam é justamente o contrário: lidam

com um ou com dois informantes em suas pesquisas, “corroborando”, nesse caso, a “presumida”

autonomia de formas de uma dada língua, ficando esta, com efeito, totalmente alienada de seu

caráter social, da sua exterioridade constitutiva14.

Em decorrência do que o parágrafo precedente desenvolve, é (também) necessário notar que

os estudos labovianos, focados no caráter social da língua, têm em mente o inadvertido paradoxo

saussuriano do qual tentam se desvencilhar. Paradoxo que Saussure (2006), infelizmente, deixou

escapar ao “oferecer” um método científico às primeiras pesquisas linguísticas com escopo

exclusivo no objeto língua15. No que então toca esse paradoxo, Labov (2008, p.218) pontua que

13 A princípio, a noção de “língua em uso” orienta-nos a conjeturar eventuais contextos facilitadores

para sua realização. A despeito disso, é necessário observarmos que tal noção não se reduz assim a qualquer

“coisa”, já que, ao introduzir uma abordagem para o objeto língua em ação, há ali toda uma diversidade de

fatos para serem perscrutados pelo estudioso de linguagem. Falar em “língua em uso”, nesse sentido, é ousar

pensar para além das aparências de uma estrutura linguística não positivada pela suposta sustancialização de

suas formas. 14

A nosso ver, a designação “exterioridade constitutiva”, que não está sendo usada aqui de modo

semelhante às teorias do discurso, denota não exatamente a ideia de um simples “contexto”, um elemento

pressuposto como facilitador do acontecimento da parole, mas algo que naturalmente explicita o seu caráter

relacional mantido com o próprio sistema da língua; caráter que, nessas circunstâncias, permite a língua

significar. Quanto ao uso do termo “contexto”, cumpre, pois, destacar — conforme nos esclarece Figueroa

(1994, cf., p.151) — que se trata, ainda, de um construto teórico descritivo, sem explicitação da

epistemologia no qual é baseado. Em vista dessas questões, optamos por empregar nessa passagem do

presente estudo a expressão “exterioridade constitutiva”. 15

Cumpre notar que, como todo estudioso, Saussure (2006 [1914]) teve que fazer um recorte, isto é,

teve que delimitar seu objeto de estudo, a língua, face a heterogeneidade da linguagem.

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o aspecto social da língua é estudado pela observação de qualquer indivíduo, mas o

aspecto individual somente pela observação da língua em seu contexto social. A

ciência da parole nunca se desenvolveu, mas a abordagem da ciência da langue

tem tido muito sucesso desde a última metade do século XX.

Com efeito, não se deve interpretar dessa citação que ali exista alguma objeção de Labov

quanto ao modo com que Saussure engenhou uma teoria para o estudo da língua. Ao contrário, a

citação em tela, de alguma maneira, torna evidente um dos flancos deixado isolado no âmbito dos

estudos linguísticos: o aspecto social da língua, aspecto que, efetivamente, caberia ser validado

como parte das análises e das descrições linguísticas. Aqui, aproveitando essas observações feitas a

partir da referida citação, abrimos espaço para, brevemente, trazer uma explicação ao leitor acerca

da questão exposta por nós no título que principia este trabalho. Dessa forma, reiterando nosso

questionamento inicial, tem-se o seguinte: a sociolinguística laboviana significa (ou não) a

consolidação de uma nova perspectiva de fazer linguística? Em outras palavras, ela, nos termos de

Kuhn (2009), corresponde a um estágio de “normal science” ou de “revolutionary science” para a

pesquisa linguística padrão?

A princípio, no que tange a esse questionamento, esclaremos ao leitor — como em Figueroa

(1994) — que a pesquisa sociolinguista é, de fato, “[...] um discurso continuísta da chamada

linguística padrão16 [...]”17. Tal discurso, com efeito, coloca em xeque algumas das “[...] premissas

científicas normais acerca do objeto de investigação da linguística padrão, os valores centrais dessa

linguística em relação aos quais a sociolinguística é normalmente colocada na periferia”18.

Do prisma figueroano, então, a pesquisa sociolinguista, como ponto de partida, empreende

uma leitura crítica de proposições teóricas formuladas por Saussure (2006) e por Chomsky (1972)

acerca do que concebem por língua[gem] — leitura que se processa à luz de uma metateoria19, de

sorte a reivindicar uma teoria empírica da língua a qual consiga integrar em seu escopo fatores de

16 Em Figueroa (1994), a designação “received linguistics” [“linguística padrão”] apresenta estatuto

de destaque. Quanto a isso, diríamos que se trata de uma forma singular encontrada por essa sociolinguista

para reafirmar grande parte daquilo que, de fato, constitui a empreitada laboviana: uma revisão de

proposições inicialmente formuladas pela chamada linguística standard (padrão). 17

“[...] an ongoing discourse with received linguistics [...]” (FIGUEROA, 1994, p.10). 18

“[...] normal science assumptions about the object of linguistic enquiry, the core values of

linguistics, in relacion to which sociolinguistics is usually positioned on the periphery” (FIGUEROA, 1994,

p.10). 19

Compreendemos por metateoria todo gesto de discussão intrateórica por meio do qual

pesquisadores se põem a re-analisar postulados e premissas teóricos recebidos a priori por uma comunidade

científica como sendo um “modelo padrão de cientificidade”. Sendo assim, essa forma de discussão, semelhante à que é produzida pela teoria do conhecimento, a epistemologia, procura se questionar acerca de

pontos teóricos subsumidos em análises e descrições construídas para validar determinado objeto de estudo

fudante de um campo científico e, ainda, acerca do método científico — sua validade (ou não) ante ao que

foi engendrado — ali empregado.

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caráter social20. Ademais, esse tipo de leitura procura localizar pontos incoerentes e, também,

negligenciados em uma teoria científica já aceita por grande parte dos estudiosos, em particular

aqui, os de linguagem.

Nesse sentido, a sociolinguística laboviana convoca a linguística padrão a re-pensar o modo

de investigação ali proposto para analisar e descrever o objeto dos estudos linguísticos, a língua. Em

se tratando de atuais formas de investigação ocupadas em perscrutar fatos do objeto língua, Labov

inclusive se questiona se seria preciso construir uma nova abordagem linguística para dali fazer

trabalhar aquilo que Saussure (2006) pouco explorou em o CLG, no caso, os aspectos sociais da

língua são recorrentes em estruturas linguísticas, permitindo, nessa circunstância, algum tipo de

sistematização de fatos da parole21. Acerca disso, Labov (2008, p.216-217) assevera ser

[...] relevante, portanto, indagar por que deveria haver a necessidade de uma nova

abordagem da linguística com uma base social mais ampla. Parece bastante natural

que os dados básicos para qualquer forma linguística geral seja a língua tal qual

como usada por falantes nativos comunicando-se uns com os outros na vida diária.

Perante o posicionamento anterior defendido por Labov, nota-se que apenas caberia à

linguística propriamente dita (a linguística padrão) um alargar da visão de língua por ela perpetuada

durante a primeira metade do século XX e parte de sua segunda metade (até 1960, quando,

finalmente, os estudos labovianos começam a ser difundidos), procurando, em decorrência disso, re-

analisar e validar elementos constitutivos da natureza de seu objeto de investigação. Quanto a isso,

Labov (2008, p.298-299) declara não acreditar na necessidade de

[...] uma nova “teoria da linguagem”; em vez disso, precisamos de um novo modo

de fazer linguística que produza soluções decisivas. Ao alargar nossa visão de

língua, encontramos a possibilidade de estarmos certos: ao encontrar respostas que

são sustentadas por um número ilimitado de mediações reproduzíveis, em que o

viés inevitável do observador é cancelado pela convergência de diversas

abordagens.

Dessa forma, há que se notar na sociolinguística laboviana uma “nova” possibilidade de

descrever o fenômeno linguístico o mais próximo possível daquilo que, realisticamente, ele é: uma

totalidade que não só é constituída por aspectos de um sistema gerenciador de usos das formas de

20 No que toca ao caráter social que a sociolinguística laboviana reivindica à linguística padrão,

Figueroa (1994) sinaliza que algo ali precisaria ser mais bem definido, por exemplo, o próprio conceito de

sociolinguística — conceito que, de forma muito redutora, tenta refletir aquilo que julga ser a própria

linguística: um estudo da língua na relação com a sociedade. 21

Acerca disso, Figueroa (1994), insistentemente, nos diz que faltou algum tipo de esclarecimento

teórico àquilo que os trabalhos labovianos sentenciam como sendo o cerne da pesquisa linguística, no caso, o

estudo da “relação entre língua e sociedade”. Que relação é essa? Qual a sua natureza? — são alguns dos

questionamentos da referida autora para esse flanco ainda aberto em Labov. Tal esclarecimento teórico

(ausente em Labov), então, serviria, em particular, para explicar fatos do comportamento linguístico em

termos sociais.

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uma língua, mas também por aspectos sociais imiscuídos a esse processo. Quanto a isso, nossa

interpretação é a de que, sem dúvida, a pesquisa de Labov oferece à linguística saussuriana muitas

respostas — ainda que incipientes — para problematizar questões que garantam,

concomitantemente, a articulação de fatos da ordem da langue e da parole em descrições

linguísticas.

Na sequência, sem perder de vista toda essa gama de observações ora (re)construídas em

torno do tópico “sociolinguística laboviana”, trazemos uma primeira discussão intrateórica focada

na própria noção de “sociolinguística”. Para isso, gostaríamos que o leitor, ao realizar outros gestos

de leitura, percebesse que o termo sociolinguística, de modo geral, corresponde a uma espécie de

“expressão linguística”, a princípio compartilhada por diferentes linguistas que dali delimitam

pontos teóricos de “igual” interesse assumidos por todos. Ao que imediatamente nos convém

ressaltar, isso, porém, não é suficiente para que se produza uma exata delimitação de questões que

supostamente sejam determinantes no erigir de um novo “campo” de estudos para a ciência da

linguagem, no caso, a sociolinguística (cf. FIGUEROA, 1994, p.179).

A seguir, vejamos o que nos reserva essa discussão.

Notas iniciais acerca do termo “sociolinguística”

Antes de nada mais, julgamos necessário explicitar ao leitor o real motivo de, aqui, se

apresentarem algumas notas esclarecedoras em torno do termo “sociolinguística”. Ora, por estarmos

comprometidos em re-afirmar aquilo que, efetivamente, constitui a sociolinguística laboviana —

uma prática de ciência que, na óptica de Figueroa (1994), mostra-se como disposta a fazer,

metateoricamente, uma revisão de aspectos teórico-metodológicos pouco explorados pela

linguística padrão —, cabe a nós, minimamente, realizar um exercício que circunstancie isso, com

vistas a evitar algum gesto simplista nosso, afoitos em tentar “precisar” o amplo escopo das

investigações sociolinguísticas.

Em sendo assim, como em Figueroa (1994, p.2), é necessário que retomemos certos fatos

gerais da história das ideias sociolinguísticas, dado que, nas palavras da autora,

a história da sociolinguística obviamente não começa com a primeira pessoa que usou o

termo, nem com o primeiro uso institucional do termo; nem o campo é definido por

qualquer pessoa ou ponto de vista. De fato, o que se define por sociolinguística permanece

um problema. Em Hymes (1974), por exemplo, ‘o termo sociolinguística significa muitas

coisas e muitas pessoas, e, naturalmente, ninguém possui privilégio com sua

definição’(tradução nossa) 22.

22 “The history of sociolinguistics obviously does not start with the first person who used the term,

nor the first institutional use of the term; nor is the field defined by any one person or point of view. But

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Com efeito, não se mostra viável precisar um mesmo escopo em causa para o tratamento do

termo sociolinguística, uma vez que estão em jogo ênfases e usos bastante diferentes na forma com

que é concebido o fenômeno linguagem por (socio)linguistas e por pesquisadores. Todavia, isso não

nos impede que, aqui, realizemos uma breve revisão do termo, procurando, por conseguinte,

destacar, em meio às diferentes definições apresentadas, possíveis pontos de semelhança ali

funcionando — os quais nos permitam notar alguma instância metateórica entre eles e, em

decorrência, conjeturar algum gesto particular de um ou de outro estudioso atento em delimitar

particularidades do escopo da sociolinguística. Quanto a isso, é oportuno lembrar que há grande

dificuldade em precisar aquilo que, nas caracterizações formuladas para o termo sociolinguística,

aponta para elementos de um imajado “axioma teórico”23, já que pouco se sabe da real causa

determinante da existência de semelhanças certamente desenvolvidas para a abordagem do objeto

língua em uso (FIGUEROA, 1994).

Em vista do que o parágrafo anterior sentencia, arrolamos, abaixo, algumas das definições

propostas para o termo sociolinguística. Nesse caso, optamos, inicialmente, por reiterar oito

definições que Figueroa (1994, p.2) também destaca em sua obra “Sociolinguistic Metatheory”. Por

sociolinguística, então, renomados linguistas compreendem que seja:

(1) [...] o estudo das características da variação linguística [...] e das características

linguísticas de falantes quando estão em situação constante de interação [...] dentro

de uma comunidade de fala 24 (tradução nossa);

(2) [...] um novo esforço para lidar mais realisticamente e compreensivamente com

fatos de linguagem. Um desses fatos é que a linguagem é parte da vida social 25

(tradução nossa);

(3) uma tentativa de afirmação coerente acerca da relação entre o uso da linguagem

e os padrões sociais ou estruturas de vários tipos26 (tradução nossa);

(4) um estudo com [...] ênfase na fala, nos atos de fala em todas as dimensões

sociais 27 (tradução nossa);

what does define sociolinguistics remains a problem. In Hymes' (1974a, p.195) words: ‘The term

sociolinguistics means many things to many people, and of course no one has a patent on its definition’”

(FIGUEROA, 1994, p.2). 23

No que toca a essa questão, gostaríamos de dizer que a literatura especializada relega sua

existência, dado que, por uma série de razões, não considera a sociolinguística como uma teoria, mas como

um método de análise do objeto língua. De modo diferente, nessa parte de nosso texto, o emprego do termo

axioma institui ali alguma possibilidade de, ao comparar definições formuladas por diferentes linguistas,

espreitarmos, sob um prisma metateórico, um desejável núcleo comum que as esteja promovendo. 24“

Sociolinguistics is ‘the study of the characteristics of language varieties, the characteristics of their

functions, and the characteristics of their speakers as these three constantly interact, change and change one another

within a speech community’” (FISHMAN, 1974, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 25 “

Sociolinguistics ‘should be regarded as a new effort to deal more realistically and

comprehensively with the facts of language. One of these basic facts is that language is part of social life’”

(NEUBERT, 1976, apud FIGUEROA, p.2). 26

“Sociolinguistics ‘attempts to make a coherent statement about the relationship between language

use and social patterns or structures of various kinds’” (ROMAINE, 1982, apud FIGUEROA, 1994, p.2).

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(5) o estudo das [...] realizações da variedade linguística de significados

socioculturais [...] e do o curso das interações sociais cotidianas que são relativas

[...] a culturas populares, sociedades, grupos sociais, comunidades de fala,

linguagens, dialetos, variedades e estilos 28 (tradução nossa);

(6) [...] aquela parte da linguística que é interessada com a linguagem como

fenômeno social e cultural 29 (tradução nossa);

(7) [...] a interação entre o fato de que a linguagem varia e o fato de que a variação

é usada para definir a situação social [...]30 (tradução nossa);

(8) [...] o estudo da linguagem em relação com a sociedade 31 (tradução nossa).

Da leitura dessas oito definições em tela, formulamos duas questões: 1ª) o que dali poderia

ser imediatamente destacado como inicial “constructo teórico” comum a todas elas?; 2ª) essas

definições e/ou caracterizações para o termo “sociolinguística” contam com uma proposta de

desenvolvimento de uma teoria ou são relativas a um método específico patenteado por uma “nova”

abordagem fomentada para tratar de realidades de língua[gem]?

Ora, não obstante o pluralismo de acepções acima aduzidas para o que “seja” a tarefa da

sociolinguística, um aspecto comum a todas elas pode, minimamente, ser aqui destacado: quando

em uso, a língua engendra discursos; estes, em suas particularidades, revelam — além de

elementos relativos à natureza sociocultural da linguagem — fatos que somente permitem ser

explicados em função de fatores tais como variação e diversidade linguísticas. No que então

concerne a esse aspecto, eis aí uma confortável resposta para a primeira de nossas questões

formuladas: o discurso (expressão falada) representa, sim, um constructo teórico nodal nas

lucubrações sociolinguísticas.

Porém, ante ao que as definições arroladas nos expõem, é preciso sublinhar que há uma

gama de tópicos e preocupações particulares para o que, teoricamente, busca-se compreender por

sociolinguística (cf., FIGUEROA, 1994). Assim sendo, paradoxalmente, por que admitirmos

também a inexistência de uma não exata comunicabilidade de escopo entre tais definições? Na

verdade, até diríamos que esse outro questionamento nosso coloca em evidência o argumento

27 “Sociolinguistics places ‘stress on parole, on the speech act in all its social dimensions’"

(GIGLIOLI, 1972, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 28

“Sociolinguistics ‘studies the varied linguistic realizations of socio-cultural meanings...the

currency of everyday social interactions which are nevertheless relative to particular cultures, societies,

social groups, speech communities, languages, dialects, varieties, styles" (PRIDE, 1970, apud FIGUEROA,

1994, p.2). 29

“Sociolinguistics ‘is that part of linguistics which is concerned with language as a social and

cultural phenomenon" (TRUDIGILL, 1974, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 30

“Sociolinguistics is the interplay between the fact that language varies and the fact that variation is

used to define the social situation, defining the speaker in terms of ‘what her group loyalties are, how she

perceives her relationship to her hearer, and what sort of speech event she considers herself to be engaged

in’” (FALSOLD, 1984, apud FIGUEROA, 1994, p.2). 31

“Sociolinguistics is ‘the study of language in relation to society’ (HUDSON, 1980, apud

FIGUEROA, 1994, p.2).

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defendido pelos próprios sociolinguistas de que a proposta sociolinguística não se realiza

decisivamente como uma teoria linguística. Acerca desse argumento, sociolinguistas e estudiosos

(em geral) defendem que a sociolinguística, em particular aqui a laboviana, não chega a consolidar

um campo teórico novo para o exercício da ciência da linguagem.

Isso que o parágrafo precedente acaba de esclarecer se mostra tão real em estudos como o de

Figueroa (1994), que não faz sentido deixar de reparar ali a validade do pensamento da autora,

passando, em outra circunstância, a negar que o trabalho de Labov — o qual lida, sim, com variadas

questões de linguística geral (incluindo questões de fonologia, morfologia, sintaxe e, ainda, de

semântica) — em nada se identifica com um fazer científico meta-teórico.

No que tange às variadas questões de sociolinguística, vale, pois, destacar que todas elas,

efetivamente, se encontram refletidas na relação mediada com grande parte do saber que a ciência

saussuriana permitiu produzir para seu objeto de investigação, a língua.

Mais algumas notas acerca do termo “sociolinguística”

Decorrente da anterior exposição e de nossa análise de alguns pontos caracterizadores do

termo sociolinguística, acompanhemos agora outra breve reflexão pautada em mais três definições.

Nesse caso, em linhas gerais, apresentamos alguns aspectos centrais das definições formuladas pela

propalada matriz sociolinguística que se ancora em trabalhos de linguistas tais como: Dell Hymes

(1974), John Gumperz (1982) e William Labov (2008 [1974]). Na perspectiva desses estudiosos,

então, a sociolinguística

(9) [...] não é linguística, mas etnografia, não é linguagem, mas comunicação,

comunicação que possui um quadro de referência interior, em que o lugar da

linguagem na cultura e na sociedade pode ser avaliado32 (tradução nossa).

(10) existe enquanto uma necessidade de uma teoria [...] que representa a função da

comunicação e da variabilidade linguística na relação com os falantes, sem se

reportar a suposições funcionais não testáveis em consonância ou não com sistemas

de normas padrão33 (tradução nossa).

(11) [...] busca abordar as grandes questões da Linguística, como determinar a

estrutura da linguagem — suas formas e organizações subjacentes — e conhecer o

mecanismo e as causas da mudança linguística. Os estudos da linguagem usada no

32“It is not linguistics, but ethnography, not language, but communication, which must provide the

frame of reference within which the place of language in culture and society is to be assessed” (HYMES,

1974, apud FIGUEROA, 1994, p.31). 33

“There is a need for a sociolinguistic theory which accounts for the communicative function of

linguistic variability and for its relation to speakers goals without reference to untestable functionalist

assumptions about conformity or nonconformance to closed systems of norms. Since speaking is interacting,

such a theory must ultimately draw its basic postulates from what we know about interaction” (GUMPERZ,

1982, apud FIGUEROA, 1994, p.111).

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dia-a-dia podem ser bastante úteis para alcançar esses objetivos (LABOV, 2007,

p.2).

Face à leitura dessas três outras definições de sociolinguística, sublinhamos — como faz

Figueroa (1994) — que, respectivamente, o ponto nodal das lucubrações sociolinguísticas parece

(con)centrar-se “no significado linguístico”, “na interação social dos falantes” e “na parole”34, o

uso (ou expressão) da linguagem. Em vista disso — apesar da existência de divergências na forma

de delimitar ali qual seja o escopo de investigação (comum) da sociolinguística idealizada pelos três

sociolinguistas aludidos —, notamos pelas definições em questão que, genericamente, há uma

preocupação em desenvolver uma teoria social para tratar de fatos da língua[gem]. Porém, é mister

que sublinhemos que essa teoria não compartilha dos mesmos fins propostos no bojo de suas

inquietações. Em Hymes (apud FIGUEROA, 1994), por exemplo, a noção de social procura

resgatar algo do significado cultural supostamente evidenciado em contextos de uso da linguagem

ordinária. Em Gumperz (apud Figueroa, ibidem), por sua vez, essa noção, que não permite ser

significada por um texto ou por uma instituição, procura abarcar aspectos de linguagem que sejam

negociados na interação construída entre falantes — aspectos que, por sinal, são bastante intuitivos.

Já em Labov (apud FIGUEROA, ibidem), diferentemente, a noção de social responde (algumas

vezes) ao que ele compreende por linguagem enquanto “fato social”, isto é, em linhas gerais, um

tipo de comportamento exterior aos fatos linguísticos (por exemplo, fatos ligados à classe social,

gênero e idade da espécie humana), mas que se impõe a todos os indivíduos pertencentes a uma

dada sociedade, exercendo ali restrições sobre eles; nessas condições, o fato social poderá ser/estar

refletido na competência linguística dos falantes.

Enfim, perante todos os posicionamentos arrolados nesta terceira seção de nosso trabalho,

temos somente uma observação a fazer. Esta diz respeito à importância que todas as definições de

sociolinguística aqui aventadas reconhecem para si. Ora, a proposta de desenvolvermos dois tópicos

com algumas notas esclarecedoras acerca de aspectos caracterizadores — sejam estes de natureza

teórica seja metodológica, conforme olhares de alguns estudiosos aqui citados — de uma proposta

de estudo da linguagem pautada na sua relação com questões sociais não pode ser vista pelo leitor

como um meio de demarcar fronteiras claras para diferentes abordagens sociolinguísticas. Ao

contrário, está presente ali nosso gesto em querer fixar duas posições: uma delas que tem em mente

a importância do termo sociolinguística quando identificado “como uma perspectiva e uma teoria da

34 No que toca à ênfase que os estudos de Labov (1972, apud FIGUEROA, 1994, cf., p.73) a priori

dão aos aspectos da parole — aspectos relativos à linguagem que as pessoas realmente executam —, cumpre

salientar que a tônica de suas lucubrações não se limita por excelência a isso. Há, ao contrário, um

movimento teórico que é singular a esse (socio)linguista. Tal movimento busca demonstrar certa relação

entre fatos de natureza social da linguagem (comuns, assistemáticos) e fatos de natureza linguística

(abstratos, sistemáticos), a fim de produzir alguma compreensão acerca do que o estudo do uso da linguagem

pode revelar sobre estruturas linguísticas.

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linguagem” (FIGUEROA, 1994, p.183) e, outra que (com)partilha da ideia de que a empreitada

sociolinguística somente se fundou, porque sempre existiram abordagens diversas (em competição)

re-analisando os “mesmos” fatos linguísticos — nada ali consegue, pois, ser uniforme àquilo que as

movimentam: o caráter social constitutivo da língua.

No tópico seguinte, re(a)presentamos, semelhante à Figueroa (1994), uma síntese de ideias

centrais das teorias “sociolinguística” (particularmente, a laboviana) e “linguística”35.

Enfim, seria a sociolinguística laboviana uma síntese de abordagens standards?

Ante o questionamento em tela, é preciso, inicialmente, reconhecer fatos que se mostram

como caros na formulação de sua resposta, seja esta positiva seja negativa. Em sendo assim, urge

trazer em cena pelo menos um dos motivos que certamente conduziu Labov à elaboração de (suas)

questões (socio)linguísticas. Tal motivo, sem muitas delongas, relaciona-se à concordância desse

estudioso com a demanda de um novo método científico que as ciências em geral —

particularmente, a partir da segunda metade do século XIX — passaram a aderir como parte de suas

pesquisas, o empirismo. Esse método assimila bem muitas das questões doutrinadas pelo chamado

“realismo científico”, a saber, a possibilidade de se ter uma ciência bastante instrumentalizada e, em

decorrência, capacitada para descrever fielmente o real.

Desse prisma, faz todo sentido fixar a seguinte avaliação de Labov (2008, p.233), a qual nos

avisa de que “[...] os linguistas não podem continuar a produzir ao mesmo tempo dados e teoria”,

posto que, agindo assim, muitos deles, presos em (seus) ideais de ciência, estariam a produzir

explicações limitadas acerca da organização e do funcionamento do complexo fenômeno da

linguagem, o qual não só não carece ser explicado por motivações internas a priori tomadas como

objeto de discussão, mas também pelo que lhe é constitutivo: certos fatos ali indicadores de sua

realidade social.

Foi desse método, com efeito, que Labov partiu para problematizar aspectos de natureza

heterogênea inerentes à língua[gem]. Nesse caso, há que se ressaltar — conforme elucida Figueroa

(1994) — que, na visão de Labov, a possibilidade de se assumir uma linguística realista se justifica

face a um conjunto de fatores que, na relação mantida com o mundo cotidiano, em particular aqui,

com o modo como as pessoas vivem/falam, permitem refletir melhor sobre fatos linguísticos

35 Aqui, ressaltamos que, para o tópico que estamos por abrir, não se apregoa uma separação

estanque entre sociolinguística e linguística — ora, isso invalidaria questões que estamos apostando com este

trabalho. Nesse sentido, reiteramos o posicionamento de Labov (2008, p.216) o qual defende ser a

designação sociolinguística “[...] um uso um tanto enganador de um estranho termo redundante”;

“enganador”, porque faria supor que há uma sociolinguística com escopo diferente do da linguística e

“redundante”, porque implicaria a existência de uma linguística que fosse desligada de questões

concernentes ao caráter social inerente à linguagem (idem).

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semelhantes àqueles que, efetivamente, são compartilhados por grupos humanos. É por isso, então,

que Labov assevera que o objeto da linguística deve ser “[...] ao fim e ao cabo, o instrumento usado

pela comunidade de fala [...]”36 (LABOV, 2008, p.220).

No entanto, para que esse objeto fosse assim (re)visto — à maneira laboviana — por

estudiosos de língua[gem], foi preciso que o próprio Labov (2008) promovesse uma discussão

intrateórica de premissas aceitas como padrão para a descrição de fatos linguísticos. Ora, desde a

fundação da linguística, em 1916 (exatamente com a publicação do CLG), até 1960, os estudos ali

frutificados tiveram como escopo a realização de descrições puramente objetivas das línguas,

descrições que ignoraram contingências relativas à indissociável relação língua[gem]-sujeito. Por

esse motivo, a língua, objeto de estudo da linguística, não era investigada face a uma possível

relação com a fala, com aquilo que lhe é exterior.

Em vista do que o parágrafo anterior formula, sublinhamos que Labov se interessou bastante

em investigar aquilo que ali estava encoberto: a heterogeneidade constitutiva do sistema linguístico.

Neste caso, para proceder às suas lucubrações, Labov, primeiramente, retomou premissas

defendidas pelas teses saussurianas e pelas teses chomskyanas, as quais, em suma, trazem

particulares análises e descrições, respectivamente, para o objeto língua enquanto “fato objetivo” e

enquanto “fato intuitivo”, uma faculdade inata aos falantes. No que tange a esse retorno, então, não

hesitamos em também asseverar que

Labov pode ser notado como a tentativa de algum tipo de síntese entre abordagens

diferentes dentro do estudo da estrutura da linguagem. Tal síntese pode ser vista

também como uma tentativa de relacionar parole com langue de forma mais

sintética, mostrando uma relação sistemática entre o fenômeno observável, a

parole, e o sistema abstrato, a langue37 (tradução nossa).

Perante o que a citação em tela pontua, consideramos, por conseguinte, que a sociolinguista

laboviana, identificada ali como sendo uma síntese de abordagens linguísticas, se constitui e institui

enquanto um ousado gesto de Labov, gesto que, em geral, é motivado pela possibilidade de se

produzir (e de se ter) uma versão melhorada de teorias desenvolvidas pela chamada linguística

padrão. Sua empreitada, nesse sentido, não chega a fundar um novo paradigma científico para a

prática da ciência linguística, conforme adiante destacaremos.

36 Aqui, gostaríamos de apenas ressaltar que a noção laboviana de “comunidade de fala” produz

alguma “certeza” de que dado comportamento linguístico esteja/seja sempre determinado pelo grupo que o

realiza. Acerca disso, reiteramos o crítico questionamento de Figueroa (1994, p.89), o qual nos faz notar os

seguintes pontos: “como sustentar que a língua se realiza na comunidade de fala, quando o comportamento

linguístico estudado é extraído dos indivíduos?” (Tradução nossa). Sob perspectiva figueroana, então, não há

como discordar que aspectos linguísticos da ordem individual foram extirpados dos estudos de Labov. 37

“Labov may be seen as attempting a synthesis between these rival factions in received linguistics.

It is a synthesis which is seen as building upon past accomplishments, making improvements where

necessary but not fundamentally challenging basic tenets” (FIGUEROA, 1994, p.74).

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A fim de melhor explicitar posicionamentos dessa “síntese de abordagens linguísticas” que

Labov (pro)move para o erigir de sua perspectiva teórica, a sociolinguística, (re)formulamos, nos

dois subtópicos seguintes — respaldados em estudos de Figueroa (1994) —, algumas semelhanças e

divergências teóricas que as abordagens estruturalista (saussuriana), gerativista (chomskyanana) e

sociolinguista (laboviana) conservam entre si (ou não) no que constroem como orientação para

possíveis análises e descrições do objeto língua.

Na sequência, passemos a observar essas outras questões.

Considerações acerca de algumas premissas da linguística padrão e da teoria sociolinguística

labovina38

a. Algumas semelhanças e divergências entre as linguísticas de Saussure e de Labov

Todos os pontos abaixo destacados acerca do que aproxima e também do que distancia o

pensamento teórico de Labov do pensamento teórico de Saussure exemplificam aspectos

importantes do trabalho metateórico realizado por Figueroa (1994), que, comedidamente, se lançou

à tarefa de investigar questões cruciais de linguística padrão na relação com questões ali

reconhecidas como “periféricas”, neste caso, questões de (socio)linguística.

Em sendo assim, para que melhor percebamos as elucidações de Figueroa (1994), propomos

o seguinte quadro ilustrativo, o qual identifica algumas semelhanças e diferenças entre questões

concernentes às lucubrações saussurianas e labovianas tomadas sob algum tratamento teórico-

metodológico para fatos linguísticos.

Observemos, então, por meio do quadro a seguir, indicações disso:

38 O leitor, após a leitura desse título, poderá se questionar acerca da designação “teoria

sociolinguística”. Ora, tendo em vista outras de nossas discussões aqui arroladas, uma possível objeção sua

seria esta: a pesquisa sociolinguística identifica-se como um método de análise e de descrição de fatos

linguísticos, e não exatamente como uma teoria linguística. Não obstante questionamentos assim, optamos

por tomar emprestado parte do título que Figueroa (1994) também formula, em especial, quando aduz pontos

de semelhança e de divergência entre o que é pressuposto no âmbito de questões de linguística padrão e o

que Labov dali produziu para demonstrar posicionamentos relativos à sua perspectiva (socio)linguística.

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Quadro n.1: Contrastando aspectos teóricos das teorias linguísticas de Labov e de Saussure

LABOV E SAUSSURE: semelhanças LABOV E SAUSSURE: Divergências

1. Labov e Saussure não estão interessados em

perscrutar questões de (variação) linguística que

não possam ser explicadas no/pelo sistema

linguístico.

2. Labov e Saussure rejeitam descrições ou

explicações de natureza

psicológica/individualista para o tratamento de

fatos de língua[gem]; ambos procuram localizar

a língua[gem] como um fato social.

3. Labov e Saussure afirmam que o objeto de

investigação da linguística é a langue, e não a

parole — a despeito de haver estudos

inadvertidos que afirmam ser a parole o objeto

de estudo da sociolinguística.

1. Para Labov, diferente do que apregoa Saussure,

o sistema linguístico não é homogêneo, mas

heterogêneo39. Na óptica laboviana, com efeito, a

comunidade de fala — isto é, as atitudes que os

falantes compartilham em relação à língua — é

aquilo que constitui, realisticamente, um dado

homogêneo.

2. Para Labov, o estudo científico da língua não

deve ignorar, como apregou Saussure, sua

heterogeneidade real. Ora, da perspectiva

laboviana, a parole não é caótica, nem menos

desmotivada40.

3. Para Labov, diferentemente de Saussure, as

pesquisas de língua[gem] são capazes de mostrar

a mudança linguística em curso.

No que tange aos aspectos que o quadro em tela exibe, nota-se dali que alguns dos

fundamentos da sociolinguística laboviana são, em sua maioria, semelhantes àqueles que Saussure

elaborou como orientação básica para suas análises estruturais de fatos linguísticos. Com efeito,

temos somente a dizer que a empreitada de Labov demonstra, tal qual ressalta Figueroa (1994), um

esmerado trabalho de revisão das premissas saussurianas como um novo modo de fazer linguística.

Tal qual procedemos nessas análises anteriores e fundamentos da sociolinguística laboviana

na relação que a aproxima (e, também a distancia) de particularidades da ciência de Saussure,

propomos, abaixo, outro quadro — também, respaldado na pesquisa metateórica de Figueroa (1994)

— que enfatiza movimentos teóricos de Labov perante premissas do programa de investigação

científica (abreviadamente, PIC)41 apresentado à linguística pelo estudioso N. Chomsky (1972).

b. Algumas semelhanças e divergências entre as linguísticas de Chomsky e de Labov

Inicialmente, pode parece estranha ao leitor a afirmação de que a sociolinguística laboviana

contém elementos em seu escopo que sejam familiares a um e/ou a outro elemento(s) do PIC

39 Saussure não defende a homogeneidade do sistema, mas da língua em si, tomada como construção

coletiva. E somente nesse sentido (de saber coletivo) que a língua é entendida como homogênea. 40

Quando, da perspectiva laboviana, apontamos que a fala não é caótica, não se deve entender dali

que, na perspectiva saussureana, ela o seja — de fato, na produção saussuriana não há afirmação textual

disso. 41

Expressão formulada por Lakatos (1978), ao tratar de fatos relativos à história das ciências em

geral.

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chomskyano. Todavia, isso é possível de ser percebido, sobremaneira, se não nos furtarmos daquilo

que dali precisa ser compreendido: a linguística, em sua forma singular de (se) fazer ciência, é,

verdadeiramente, um tipo de orientação teórica para a investigação de muitos fenômenos de

linguagem que, em si mesmos, nos permitem determinar princípios gerais (princípios de natureza

formal) reguladores de estruturas das línguas (cf., LABOV, 2008, p.217).

Quanto a isso, notemos o que o quadro seguinte nos esclarece:

Quadro n.2: Contrastando aspectos teóricos das teorias linguísticas de Labov e de Chomsky

LABOV E CHOMSKY: semelhanças LABOV E CHOMSKY: divergências

1. Labov e Chomsky são seguidores de

preceitos da doutrina científica nomeada de

“realismo científico” (a única diferença está

no tipo de realismo adotado: o de Labov é o

mundano, já o de Chomsky é o psicológico).

2. Labov e Chomsky estão empenhados no

estudo geral da estrutura da linguagem —

daí, também, ser possível asseverar que os

estudos labovianos visam a compreender

questões relativas à criação de fatos do

sistema linguístico pela espécie humana (a

única diferença está no fato de que Labov

estuda a estrutura linguística como

incorporada à estrutura social e Chomsky à

faculdade mental da linguagem).

1. Em Labov, diferente de Chomsky, que considera

a linguagem uma propriedade mental, o indivíduo

não é a fonte de dados linguísticos, mas a

comunidade em geral.

2. Em Labov, também diferente de Chomsky, a

intuição não é um meio aceitável para se tratar da

realidade de fatos linguísticos, já que ela é interna e,

nesse sentido, possui caráter subjetivo (não pode

ser, com efeito, replicada).

3. A noção de gramática em Labov não corresponde

a uma construção idealizada a partir do que

conjetura um linguista, mas àquilo que, de fato,

revela fatos linguísticos particulares de uma

comunidade de fala, sendo, para todo caso,

observáveis.

4. O método empregado por Labov para analisar o

objeto língua é o indutivo; são os dados, na

perspectiva laboviana, o elemento que induz uma

teoria. Em Chomsky, ao contrário, devido ao uso

que faz do método dedutivo, é a teoria que conduz

os dados.

Em vista do que os dois quadros construídos nos expõem, cumpre apenas ressaltar, uma vez

mais, que há ali fortes indícios de que Labov realizou uma revisão de pressupostos teóricos da

linguística constituída/padrão, neste caso, referimo-nos aos pressupostos teóricos das linguísticas

saussuriana e chomskyana, respectivamente. Perante então a esse fazer metateórico de Labov,

diríamos que é próprio de toda teoria científica refutar uma e/ou outra premissa(s) já (re)conhecidas

por estudiosos. Porém, somos prudentes em lembrar que existem pressupostos basilares em

qualquer teoria que serão sempre irrefutáveis. Exemplo disso pode ser corroborado naquilo que

Labov tentou fazer das teorias de Saussure e de Chomsky; mesmo que ele tenha se desligado de

pontos singulares dos dois linguistas em questão, muitos argumentos ali construídos foram

retomados em sua (socio)linguística.

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A seguir, exibimos alguns posicionamentos do físico e filósofo estadunidense Thomas Kuhn

(2009) acerca do que compreende por “atividade científica”; em particular, posicionamentos que ele

abordou em sua conhecida obra A estrutura das revoluções científicas (2009). Ante variadas

questões que Kuhn desenvolve nessa obra, com efeito, destacamos dali duas, a saber, a de “normal

science” e a de “revolutionary science” — noções que nos permitem compreender o papel dos

estudos do (socio)linguista William Labov para a ciência linguística.

Abaixo, antes de encerrar este trabalho, observemos alguns desses posicionamentos de Kuhn

(2009).

A sociolinguística laboviana: “a normal science” ou “a revolutionary science”?

Do que acabamos de expor resulta que, se Labov, de fato, retoma questões de linguística

geral para estruturar sua perspectiva sociolinguística, há em atitude assim provas de que ele é

tributário de premissas científicas padrões — as premissas científicas clássicas elaboradas por

Saussure e Chomsky.

No que então toca à contribuição de Labov à ciência linguística, sobremaneira, à sua

proposta de estudo de estruturas linguísticas em suas relações com aspectos de natureza social, é

possível compreender melhor essa constatação a partir de duas observações desenvolvidas por Kuhn

(2009). Neste caso, trata-se da noção de “paradigma científico” 42 e da distinção que promove entre

“ciência normal” e “ciência revolucionária”. Essas observações tanto nos permitem aqui um pontuar

de aspectos relativos ao lugar teórico de que Labov fala, quanto a confirmação de algum fim

alcançado por seu empreendimento sociolinguístico.

Em sendo assim, primeiramente, é necessário sublinhar que o esforço de Kuhn (2009) em

problematizar a noção de “paradigma científico” se justifica perante a própria tese defendida por ele

em A estrutura das revoluções científicas. Em linhas gerais, sua tese assevera haver uma nova

imagem de ciência que precisa ser (re)conhecida hoje. Ora, sob a óptica kuhniana, a própria noção

de ciência — que não se (re)faz a partir de uma suposta linearidade de conhecimentos “já sabidos”,

mas a partir de conflitos que se dão entre teorias padrões — compreende um todo de relações

sistemáticas regido por regras construídas por cientistas, com o intuito de fundamentar campos

42 Em Kuhn (2009), encontramos diferentes definições dessa noção, podendo, por exemplo, significar

uma espécie de “matriz” para se fazer/praticar ciência; uma “concepção de mundo” que reúne teorias,

instrumentos, conceitos e métodos de investigação para o perscrutar de fenômenos no/do mundo; um

“conjunto de realizações científicas concretas” (universalmente (re)conhecidas) que, em uma dada

conjuntura histórica, fornecem modelos para o trabalho de estudiosos/cientistas. No que tange a todas essas

tradicionais significações de paradigmas, vale lembrar que todas atendem àquilo que se compreende por

“ciência normal”, isto é, nos termos do próprio Kuhn (idem, p.29), uma “[...] pesquisa firmemente baseada

em uma ou mais realizações científicas passadas”.

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científicos, dotando-os, consequentemente, de certa coerência. Essas regras, com efeito, os

paradigmas, equivalem, genericamente, a algo (um instrumento) que, durante algum tempo, é

(com)partilhado por toda uma comunidade científica. Como então os conhecimentos e valores

imputados a certo fazer científico tendem sempre a ser contingenciais, isso certamente levará o

irromper de um novo paradigma para explicação de fenômenos antes ali desconhecidos.

Para o caso da linguística, em especial, esse argumento que o parágrafo precedente coloca

em xeque não se configura em sua exatidão. Em nosso campo de estudo, diferentes paradigmas são,

ao mesmo tempo, utilizados por linguistas, os quais adotam formas completamente variadas de se

compreender o multifacetado fenômeno da linguagem — no âmbito dos estudos linguísticos, não

temos, pois, um paradigma vigente comandando todos os trabalhos com foco único: o objeto língua.

Nesse sentido, reconhecendo agora a segunda das observações a que nos propusemos a

fazer, a distinção que Kuhn (2009) pontua para as noções de “ciência normal” e de “ciência

revolucionária”, podemos, inclusive, responder à questão suscitada no título deste trabalho: afinal,

qual desses dois tipos de ciência pode servir para caracterizar a sociolinguística laboviana?Antes de

uma possível resposta para esta pergunta, reconhecemos que, diante dos propósitos da ciência de

Saussure e da perspectiva sociolinguística de Labov, a possibilidade de que uma revolução

científica tenha advindo dali é inválida. Dessa forma, somos ainda legionários de muitos

ensinamentos saussurianos, já que as regras que governam a prática das pesquisas linguísticas atuais

continuam quase que exclusivamente as mesmas: (con)centradas em fatos que se ligam ao objeto

língua.

No que então toca à questão anterior, concordamos em dizer, conforme reconhece Figueroa

(1994), que a sociolinguística laboviana, por retomar muitas questões da linguística de Saussure

aqui pontuadas, identifica-se com as exigências do que Kuhn (2009) designou de “ciência normal”;

exigências tais como a necessidade de se ter entidades teóricas ordenadas, replicáveis e

generalizáveis para fazer funcionar uma prática científica foram (per)seguidas por Labov. Sua

sociolinguística, por conseguinte, representa, se vista sob uma perspectiva metateórica, um trabalho

atento àquilo que precisa ser verdadeiramente investigado: fatos do objeto comum (a “parole”) na

relação com fatos sistematicamente verificáveis pelo objeto abstrato (a “langue”).

Arrematando alguns pontos

O objetivo central perfilhado neste estudo foi discutir questões de natureza metateórica que

nos permitissem asseverar que a sociolinguística laboviana corresponde a um estágio de “ciência

normal”, “a normal science”, nos termos de Kuhn (2009). Para chegarmos a essa conclusão,

apoiamo-nos em posicionamentos desenvolvidos por Figueroa (1994), em especial, aqueles que

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enfatizam bastante o fato de o discurso de Labov ser um continuum de questões de linguística geral,

de sorte que, aqui, fosse possível refletir sobre o que efetivamente representa uma proposta de

estudo que reivindica para si uma metodologia e um escopo definidos a partir de fatos da “parole”.

Disso, com efeito, pudemos notar que a perspectiva sociolinguística de vertente laboviana

parece se justificar ante a necessária relação que, metateoricamente, se estabelece com fatos de

linguística padrão, a saber, fatos de fonologia, de morfologia, de sintaxe e de semântica, como bem

ressalta o próprio Labov (2008). Tal perspectiva, portanto, caracteriza-se, conforme Figueroa

(1994), como uma “metateoria”, que, se vista do prisma de questões preconizadas por Saussure

(2006), procura realçar (como unidade de análise) aspectos relativos ao objeto língua.

Referências

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FIGUEROA, Esther. Sociolinguistic metatheory. Oxford: Pergamon, 1994.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.

______. Sociolinguística: uma entrevista com William Labov. Revista Virtual de Estudos da

Linguagem - ReVEL. Vol. 5, n. 9, agosto de 2007. Tradução de Gabriel de Ávila Othero.

LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. A crítica e o desenvolvimento do onhecimento. São

Paulo: Editora Cultrix, 1979.

PONCHIROLLI Mardeli; PONCHIROLLI, Osmar. Métodos para a produção do conhecimento.

São Paulo: Atlas, 2012.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

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AÇÕES PEDAGÓGICAS DO CURSO TÉCNICO A DISTÂNCIA DA REDE e -Tec BRASIL

CEFET-MG E AS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE

Aline Moraes LOPES43

Márcia Gorett Ribeiro GROSSI44

Resumo: O objetivo dessa pesquisa foi verificar se as ações pedagógicas do curso técnico de

eletrônica a distância da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG utilizam as concepções de Paulo Freire

no que se refere à dialogicidade, autonomia e contextualização do saber como ato de cidadania no

processo de ensino. Foi realizado um estudo de caso, cujos resultados revelam que há ações

pedagógicas pautadas nas concepções de Paulo Freire. Contudo, esse resultado apresenta ressalvas,

pois inúmeras possibilidades pedagógicas poderiam ser otimizadas pelo uso pleno das ferramentas

de interatividade e mídias integradas ao Ambiente virtual de aprendizagem.

Palavras-chave: Educação a distância. Rede e-Tec Brasil. Ações pedagógicas. Paulo Freire

Abstract: The objective of this research was to verify if the pedagogical practices of the electronic

technical distance course of e-Tec Brazil CEFET-MG network make use of the conceptions of Paulo

Freire, regarding the dialogical, autonomy and contextualization of knowledge as an act of

citizenship in the teaching process. A case study was conducted and the results revealed that there

are pedagogical actions based on the conceptions of Paulo Freire. However, this result presents

exceptions, because numerous pedagogical possibilities could be optimized by full use of the tools

of interactivity and VTLE-integrated media.

Keywords: Distance education. e-Tec Brasil network. Pedagogical actions. Paulo Freire.

Introdução

As últimas décadas do século XX revelaram períodos de constantes mudanças e evoluções

nos cenários econômicos, políticos, culturais, tecnológicos, assim como na área educacional. O

avanço científico-tecnológico assinalou reconfigurações no modos operandi social, anunciando e

43 Mestre em Educação Tecnológica. Membro do Grupo de pesquisa AVACEFETMG do Centro

Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. E-

mail: [email protected] 44

Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica do Centro Federal de

Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Doutora em Ciência da Informação. Líder do Grupo

de pesquisa AVACEFETMG. Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected]

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efetivando mudanças, visto que “uma revolução tecnológica das últimas décadas da informação

começa a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado” (CASTELLS, 1999, p.39).

Assim, as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) fortemente presentes

na sociedade informacional possibilitam novas dinâmicas sociais que também influenciam o

contexto educacional, possibilitando que educadores (re)pensem suas práticas pedagógicas e

otimizem os processos de ensino e aprendizagem, por meio das tecnologias digitais, principalmente

a internet.

Então, pode se afirmar que a introdução das TDICs na educação, em especial na Educação a

Distância (EaD) pode ser vista como uma promissora oportunidade de se oferecer um ensino de

qualidade, já que esta modalidade tem como preceitos a interatividade, a autonomia e a

aprendizagem colaborativa. Portanto, a EaD tem-se afirmado cada vez mais a partir do uso das

TDICs, configurando novas dinâmicas para o processo de ensino e aprendizagem.

Dessa forma, essa modalidade de ensino representa uma alternativa que permite oportunizar

diferentes experiências educacionais e práticas educativas progressistas, em busca de se devolver

propostas que visem à emancipação e transformação social que também podem ser efetuadas por

meio da educação profissional. Dentre essas possibilidades, pode-se citar no cenário educacional

brasileiro a Escola Técnica Aberta do Brasil que se apresentou como um programa de educação a

distância lançado pelo Ministério da Educação do Brasil em 2007 (Decreto n 6.301 de 12 de

dezembro de 2007), com a finalidade de "ampliar a oferta e democratizar o acesso a cursos técnicos

de nível médio, públicos e gratuitos no País" (Brasil, 2007 online), modificado pelo Decreto n

7.589 de 26 de outubro de 2011, passando a ser nomeado como Rede e-Tec Brasil.

A oferta de programas de EaD, como a Rede e-Tec Brasil, representa uma profícua alteração

na maneira de pensar e praticar a educação, requerendo mudança de paradigmas dos profissionais

envolvidos nesta modalidade de ensino e capacitação apropriada, com o intuito de usar

adequadamente as TDICs disponibilizadas e necessárias para a concretização das expectativas em

melhorar todo o processo de aprendizagem dos alunos, bem como a autoaprendizagem por parte dos

próprios profissionais da EaD.

A proposta de uma educação problematizadora converge para em uma pedagogia engajada

nos processos de emancipação social e, como tal, tem como preceito intervenções e modificações

do status quo vigente. Uma educação humanista-libertadora, na perspectiva do educador Paulo

Freire, necessita ter como ponto de partida a concepção do diálogo como um processo dialético

problematizador.

De acordo com o pensamento freiriano, ser autônomo é a capacidade de libertar o ser

humano do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades,

sendo um processo de humanização que se constrói historicamente através de decisões, ou seja, a

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autonomia é a experiência da liberdade, impulsionada pelo pensar crítico- problematizador que

permite consequentemente a transformação social, onde o diálogo impulsiona o pensar crítico

problematizador em relação à condição e ao universo existencial do oprimido.

Nesse contexto o objetivo dessa pesquisa foi verificar se as ações pedagógicas do curso

técnico de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas

Gerais (Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG) utilizam as concepções de Paulo Freire, no que se refere

à dialogicidade, autonomia e contextualização do saber (apropriação da realidade) como ato de

cidadania no processo de ensino a partir da perspectiva dos professores e tutores do curso.

Para alcançar esse objetivo foi realizada uma pesquisa descritiva e exploratória, cujos

procedimentos técnicos foram o estudo de caso e a pesquisa bibliográfica.

Do ponto de vista teórico - Concepções de Paulo Freire

Segundo Almeida (2009), no contexto social brasileiro, pode-se dizer que Paulo Freire foi

um dos educadores mais sensíveis aos problemas sociais e seu espírito criativo lhe propiciou ações

educativas de grande valia à educação. Dentre estas, destaca-se o Método de Alfabetização de

Adultos, desenvolvendo um novo conceito de leitura e escrita e, ao mesmo tempo, proporcionando

práticas de politização.

De acordo com Freire, A. (2006), são estabelecidas considerações sobre o Método de

alfabetização Paulo Freire: O “Método Paulo Freire, foi por ele entendido não como passos a seguir,

diretrizes a perseguir, caminhos a trilhar. Ao contrário, a natureza mesma do ‘Método’ é em si uma

compreensão de como ensinar-aprender” (FREIRE, A. 2006, p.332).

Para Paulo Freire, descrito em Torres (2003), o método tinha como pressuposto de

aprendizagem que a força motivadora deveria decorrer da resolução de uma situação problema,

sendo que a assimilação inicialmente ocorre a partir do campo semântico vocabular do aluno,

também denominado como “temas geradores”, por meio do método de grupos de discussão no qual

incidiria a efetuação da comunicação entre indivíduos ativamente envolvidos no processo,

intermediados pelo contexto no qual estavam inseridos, com vistas a um posicionamento crítico

diante da realidade e à transformação social. A preocupação de Paulo Freire centrava-se na

educação das classes populares, na qual visava a atingir um nível de consciência da realidade em

que vivem na busca da transformação social. Sua pedagogia concebe a educação na qual o

educando, apropriando-se do conhecimento, passa a ser sujeito de sua própria história, ele é um ser

histórico, autêntico, e capaz de criticar, isto é, de optar e intervir socialmente.

A “dialogação” é fundamental na pedagogia de Paulo Freire, é o traço essencial para o

desenvolvimento da consciência crítica, também denominada como transitividade crítica, e tem

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papel de destaque no processo educacional, pois educador-educando são considerados sujeitos do

ato de conhecer, ambos almejando desvelar o objeto cognoscível. Com isso, a pedagogia proposta

preza pelo diálogo: “uma pedagogia que elimina pela raiz as relações autoritárias, onde não há

“escola” nem “professor”, mas círculos de leitura e um coordenador cuja tarefa essencial é o

diálogo” (FREIRE, 1967, p.26).

A principal ideia do pensamento desse educador refere-se à existência de dois tipos de

pedagogia: a pedagogia dos dominantes e a pedagogia do oprimido. A pedagogia dos dominantes

refere-se ao ensino a partir da visão da didática tradicional, constituída como uma disciplina

normativa, centrada no ato de ensinar pelo professor, utilizando como recurso pedagógico principal

a transmissão oral, sendo este o detentor exclusivo do saber a ser recebido passivamente pelo aluno,

também denominado como ensino bancário.

A pedagogia do oprimido propõe oposição a esta realidade em que a educação deveria ser

assumida como prática da liberdade, necessitando se originar dos próprios sujeitos oprimidos. Para

Paulo Freire, no contexto da luta de classes, o saber mais relevante para o oprimido é a descoberta

da sua situação e a condição para se libertar da exploração pela qual é submetido, através da

elaboração da consciência crítica individual com a sua organização de classe. Assim, o processo de

ensino e aprendizagem na pedagogia do oprimido requer fazer do reconhecimento da opressão e das

suas causas o objetivo de sua reflexão, resultando assim o engajamento do homem na luta por sua

libertação. Tal libertação tem de ter caráter político e não se limitar à ação contra um partido

político ou governo. Ela deve começar nas relações e ações entre os indivíduos, sejam na família, na

escola e/ou no trabalho.

Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação na Educação (TDICs)

O uso marcante das TDICs tem alterado relevantemente as ações e práticas sociais. Sendo

assim, distintas instituições foram influenciadas pelo seu desenvolvimento, dentre elas a educação.

O uso de técnicas, práticas, modos de pensamento e valores que se ampliam em um ambiente de

conexão entre indivíduos e máquinas instigam múltiplos questionamentos sobre seus

desdobramentos no universo educacional. Contudo, ressalta-se que a tecnologia sempre esteve

presente nas ações educacionais. O livro, o rádio, a televisão, a lousa, o giz, o pincel, o vídeo, o

retroprojetor, o data show e, mais recentemente, o computador e a internet são utilizados como

tecnologias educacionais, fazendo com que professores e estudantes, antes restritos às delimitações

geográficas, passem hoje a conviver legitimamente com dimensões sociais e de convivência mais

extensas, integrando-se em vivências coletivas via sociedade em rede.

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Coll, Mauri e Onrubia (2010) alertam para não se cometer o equívoco de incorrer no

determinismo pedagógico ou didático, no sentido de que o potencial das TDICs para transformar,

inovar e melhorar as práticas educacionais depende diretamente do enfoque ou da postura

pedagógica em que está inserida sua utilização.

As tendências atuais de estudo são pelas criações de novos moldes educacionais amparados

a priori pelos usos de recursos tecnológicos. No entanto, de acordo com Coll e Monereo (2010),

este tema é complexo e passível de discussão:

O impacto das TDICs sobre o aparecimento dessas necessidades educacionais e a

importância de novas competências que precisamos adquirir e desenvolver no

marco da Sociedade da Informação é um tema complexo, uma vez que, por um

lado, ambos os fatores estão na origem das novas necessidades educacionais e de

formação, mas, por outro, parecem destinados a desempenhar um papel decisivo na

satisfação dessas mesmas necessidades (COLL; MONEREO, 2010, p.33).

Assim, se a sociedade informacional é marcada pelo uso expressivo das tecnologias, estas,

se bem utilizadas, podem ter um papel fundamental como facilitadoras da interação necessária para

o processo educativo. Sendo assim, é importante refletir se as TDICs pensadas em uma proposta de

educação freiriana podem vir a contribuir para a modalidade EaD.

A Educação a Distância e a rede e-Tec Brasil

A revolução das TDICs propiciou novas formas de organização social e difusão do

conhecimento. A apropriação delas no cenário da EaD proporcionou ressignificar o conceito e as

relações com o conhecimento. É por meio da utilização de ferramentas tecnológicas e a partir de

mediações atuantes e eficientes que as potencialidades pedagógicas emergem, oferecendo uma

educação sem distâncias a um espaço de formação inclusivo e democrático.

Segundo Moran (2002), a EaD pode ser definida como o processo de ensino e aprendizagem

mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados espacial e/ou temporalmente. O

autor diferencia o termo em relação à expressão ensino a distância pelo foco que a segunda atribui:

“Na expressão ‘ensino a distância’ a ênfase é dada ao papel do professor como alguém que ensina a

distância”. Todavia, o autor ressalta que nenhuma das expressões está adequada. Outros autores

também discutiram a respeito da dificuldade na definição de uma terminologia mais adequada que

melhor expressasse essa modalidade de ensino. Dentre eles, pode-se destacar Chaves (1999):

Já argumentei, em vários locais, que considero as duas primeiras expressões --

"Educação a Distância" e "Aprendizagem a Distância"-- totalmente inadequadas. A

educação e a aprendizagem são processos que acontecem, de certo modo, dentro da

pessoa -- não há como ser realizados a distância. Tanto a educação como a

aprendizagem (com a qual a educação está conceitualmente vinculada) acontecem

onde quer que esteja o indivíduo que está se educando ou aprendendo, não há como

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fazer, nem sequer entender, "teleeducação" e "teleaprendizagem” (CHAVES, 1999,

online).

Neste estudo, adotou-se a nomenclatura educação a distância enfatizando o processo

educativo como um todo, em que as relações entre o estudante e a edificação compartilhada do

conhecimento efetuam-se por meio de interações dialógicas, não somente com o conteúdo ao qual

está exposto, mas também com professor, tutor e os colegas do ambiente virtual de ensino e

aprendizagem.

No que se refere à contextualização histórica da EaD, essa teve sua fase inicial delimitada

como cenário no século XIX. À medida que avançava o processo de industrialização da sociedade,

fazia-se necessário alfabetizar grande parte da população que se via excluída da escola e, assim,

obter uma mão de obra melhor qualificada que atendesse aos anseios dessa sociedade que se

formava e que se pretendia consolidar.

De acordo com Saraiva (1996), o processo de desenvolvimento da EaD deve ser analisado a

partir da ótica da evolução dos processos comunicativos na sociedade. Assim, pode-se destacar a

importância da criação da prensa móvel por Johannes Guttenberg em 1440 como um marco para o

desenvolvimento do processo da escrita, possibilitando uma nova forma das pessoas se

comunicarem, já que, até então, a comunicação era realizada exclusivamente pela linguagem oral e

corporal.

Saraiva (1996) ressalta que o desenvolvimento de uma ação institucionalizada de educação a

distância teve início a partir da metade do século XIX. Entretanto, é somente no século XX, após a

2º Grande Guerra Mundial, que a EaD passa a ser vista como mais uma possibilidade de se realizar

o processo de ensino e aprendizagem. Assim, com o aprimoramento dos serviços dos correios, dos

meios de transporte, e do desenvolvimento tecnológico por meio das TDICs houve um crescimento

mundialmente notável da EaD. Diante dessa trajetória, conclui-se que o desenvolvimento desta

modalidade educacional só foi possível pelo avanço de tecnologias disponibilizadas, segundo

determinados momentos históricos. Moore e Kearsley (2007) identificam cinco gerações ao longo

da história da EaD, as quais são classificadas em ordem de aparecimento no tempo, ressaltando que,

atualmente, continuam existindo em paralelo. São elas: o estudo por correspondência; transmissão

por rádio e televisão; a universidade aberta; a teleconferência e, finalmente, as aulas virtuais

baseadas no computador e na internet.

Atualmente a EaD vem crescendo cada vez mais, como apresenta o Relatório Analítico da

Aprendizagem a Distância no Brasil 2011, realizado pelo Associação Brasileira de Educação a

Distância (ABED), que aponta um crescimento de 58% de alunos que estudam nessa modalidade de

ensino, bem como um aumento de 28% na oferta de cursos a distância autorizados e reconhecidos

pelo Ministério da Educação (MEC). Para expandir ainda mais essa modalidade de ensino,

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interiorizá-la, democratizá-la, o governo federal lançou o projeto rede e-Tec Brasil para ofertar

cursos de educação profissional técnica de nível médio presencial e a distância e de cursos e

programas de formação inicial e continuada ou qualificação profissional a distância gratuitos.

O programa e-Tec foi instituído por meio do Decreto nº 7.589 de 26 de outubro de 2011 e

lançado em 2007 por meio do Decreto n 6.301 de 12 de dezembro de 2007, com a finalidade de

"ampliar a oferta e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e gratuitos no

País" (Brasil, 2007, online), modificado pelo Decreto n 7.589 de 26 de outubro de 2011, intitulado

atualmente como Rede e-Tec Brasil e não mais como um programa. Assim, a Rede e-Tec

Brasil compreende o desenvolvimento de atividades letivas concentradas em polos de apoio

presencial, onde os alunos se reúnem para assistirem às aulas transmitidas ao vivo ou pré-gravadas,

com maior ou menor interação, dependendo das tecnologias disponíveis.

Já a gestão de pessoas inclui tutores presenciais que atuam nos polos e tutores a distância,

que auxiliam os professores e são tutores de conteúdo. Os coordenadores de polo e professores,

eventualmente, visitam os polos para aulas presenciais e atividades de laboratório assistidas. Como

o programa tem abrangência nacional e visa a chegar a parcelas da população que não têm acesso a

cursos presenciais nas modalidades ofertadas, os polos localizam-se em cidades pequenas e médias,

em comunidades rurais e em locais onde os recursos de comunicação são reduzidos em função da

grande disparidade de inclusão digital ainda existente no país.

Metodologia

Neste trabalho optou-se pela pesquisa científica de natureza qualitativa. Quanto ao tipo de

pesquisa, ela foi exploratória e descritiva. Em relação a procedimentos técnicos, adotou-se o estudo

de caso e a pesquisa bibliográfica.

A pesquisa foi realizada no CEFET-MG, que desde 2010 vem oferecendo cursos técnicos de

nível médio a distância, por meio da rede e-Tec Brasil. Atualmente, a instituição oferece três cursos

técnicos a distância: Eletrônica, Meio ambiente, Planejamento e Gestão das Tecnologias da

Informação. Para o desenvolvimento deste trabalho, foi contemplado como amostra apenas o curso

de Eletrônica oferecido nas cidades mineiras: Almenara, Campo Belo, Porteirinha, Timóteo,

Curvelo e Nepomuceno, que são os polos presenciais.

A escolha pelo curso ocorreu em função do papel de destaque que a Eletrônica possui na

sociedade informacional tanto na ordem social como produtiva, pois se sabe que ela é a base da

moderna tecnologia, da informática, dos sistemas de telecomunicações, dos sistemas de automação,

bem como pelo fato de oferecer ainda várias aulas práticas em laboratórios específicos, que é um

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desafio nos cursos a distância. O corpus da pesquisa foi composto por professores e tutores

presenciais e a distância deste curso.

No que concerne à coleta de dados, foi realizado o levantamento através dos instrumentos

de coletas, observação e questionário online e, essa pesquisa foi dividida em três etapas:

1ª etapa: Identificação dos pressupostos de Paulo Freire no que concerne à dialogicidade,

autonomia e contextualização do saber, buscando analisar se estes têm sido aplicados nas interações

e mediações que são realizadas nas ferramentas de interatividade e mídias identificadas na primeira

etapa dessa pesquisa. Essa etapa ocorreu durante 2012 e 2013.

2ª etapa: Levantamento das ferramentas de interatividade e as mídias e hiperlinks presentes no

Moodle utilizadas pelo curso de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, no segundo

semestre de 2013, através da concessão de um usuário para o manuseio do Moodle, autorizado pela

coordenação pedagógica do curso. Durante esse período, foi possível observar o uso das

ferramentas e mídias utilizadas nas seguintes disciplinas: Eletrônica Embarcada (90 horas),

Empreendedorismo (60 horas), Arquitetura de Computadores, (60 horas), Circuitos Elétricos II (60

horas) e Eletrônica Analógica II (90 horas).

3ª etapa: Verificação das concepções de Paulo Freire que podem favorecer a edificação do

processo de ensino quando utilizadas pelos professores e tutores. Essa etapa foi realizada no

segundo semestre de 2013. Para isso, foram adotados os seguintes procedimentos:

a)Escolha da população: A população selecionada incluiu tutores presenciais, tutores a distância e

professores das disciplinas do 3º módulo da turma de 2012 do curso de eletrônica da Rede e-Tec

Brasil do CEFET-MG. O convite foi feito por meio de mensagem enviada através do Moodle

utilizado no curso durante o período de 11 de dezembro até o término de 2013. Foram enviados 11

questionários. Desses 11 questionários enviados, 10 foram respondidos, o que corresponde a 90,9%

de retorno.

b)Coleta de dados: A pesquisa teve como instrumento de coleta de dados o questionário composto

por 24 perguntas direcionadas aos tutores presenciais, tutores a distância e professores que estavam

mediando uma ou mais disciplinas no semestre. Antes do envio do questionário, foi enviada uma

mensagem aos respondentes contendo os seguintes dados: uma mensagem via plataforma

informando sobre a pesquisa e solicitando a participação em um questionário, fornecendo as

instruções e o link para acesso ao mesmo. A partir deste link, o usuário tinha acesso ao questionário,

que se encontrava no aplicativo Googledocs. Por meio desse instrumento de coleta de dados,

buscou-se verificar se as concepções de Paulo Freire sobre dialogicidade, autonomia e

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contextualização do saber podem favorecer a edificação do processo de ensino do curso de

eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG. O questionário foi dividido em quatro partes:

identificação do perfil dos respondentes, tais como: idade, gênero e grau de instrução.

Levantamento do conhecimento prévio dos respondentes em relação à utilização de recursos

tecnológicos, formação e capacitação. Abordagem das questões relacionadas aos conhecimentos

pedagógicos do curso e as questões referentes ao uso do AVEA pelos tutores e professores.

Apresentação e análise dos resultados

Os resultados e as análises foram apresentados de acordo com cada etapa da pesquisa:

1ª etapa: Esta etapa foi subdividida de acordo com a apresentação e análise das três concepções de

Paulo Freire estudadas nesta pesquisa: dialogicidade, autonomia e contextualização do saber nas

ferramentas de interatividade e mídias presentes no curso:

Dialogicidade nas ferramentas de interatividade: A partir da observação do Moodle que hospeda o

curso de eletrônica, foi possível realizar a análise das ferramentas de interatividade. Sob o ponto de

vista da dialogicidade, pode-se perceber que algumas delas se limitavam a interações apenas

receptivas, nas quais apenas um polo do processo comunicativo estabeleceu a função de comunicar

sobre um determinado assunto, condicionando a uma relação pautada na recepção passiva. Essa

característica foi observada nas ferramentas de interatividade calendário, onde os lembretes, os

eventos, os encontros presenciais ou as observações importantes são postados unilateralmente pelo

professor ou tutor do curso; em últimas notícias que tem como preceito a mesma concepção do

calendário; tarefa ou atividade, os alunos apenas postam as atividades e recebem uma avaliação

quantitativa, pois nessas postagens não se identificou feedbacks qualitativos; aula virtual;

questionários, perguntas respondidas automaticamente, estabelecendo assim, um tipo de educação

criticada por Paulo Freire denominada de educação bancária.

Ainda foram identificadas algumas mídias integradas às ferramentas de interatividade como,

por exemplo, links para textos ou para vídeos, mas nestas a concepção foi a mesma das ferramentas

de interatividade a comunicação unilateral, cabendo ao aluno apenas clicar para poder visualizar o

conteúdo proposto.

No entanto, há no Moodle outras ferramentas que permitiam interações mais profícuas e

mútuas, como pode ser verificado o caso das ferramentas aulas online e fóruns, a primeira

possibilitando uma discussão síncrona e a segunda, discussão assíncrona entre os participantes. Em

ambas as ferramentas os participantes podem intervir nas interações uns dos outros e a interação vai

sendo edificada de forma gradativa durante o processo educacional, sem previsibilidade, nascendo

assim novos elos comunicativos motivados pela provocação inicial.

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Contudo, cabe ressaltar que o fórum teve um uso diferenciado dependendo do tutor e/ou do

professor de cada disciplina. Em algumas disciplinas, as interações promoveram uma progressão e

um crescimento (seguindo os preceitos freirianos) da questão ou dúvida postada inicialmente.

Verificou-se isso em todos os tipos de fóruns temáticos. Já em determinadas disciplinas, nem os

mediadores e nem os alunos provocaram o surgimento de novas indagações e reflexões, e os

comentários se resumiram a respostas finalizadoras como bom, muito bom ou concordo.

Em relação à ferramenta mensagem, não foi possível realizar uma análise, visto que ela,

assim como um e-mail pessoal, só pode ser lida por um destinatário previamente selecionado. No

que diz respeito à ferramenta chat e ponto de encontro, a utilização de ambas foi distinta em cada

disciplina. A ferramenta chat, por sua vez, oferece a possibilidade de uma discussão síncrona, o que

intensifica a sensação de presencialidade nas interações entre os sujeitos, em função do imediatismo

das respostas, podendo energizar assim o sentimento de pertença ao grupo. Em algumas disciplinas,

o uso do chat foi muito proveitoso tendo como parâmetro a concepção de Paulo Freire sobre

dialogicidade. Já em algumas disciplinas, os sujeitos apenas entraram no bate-papo e não efetuaram

nenhuma comunicação; e os mediadores também não promoveram estratégias para se conseguir a

progressão do que se pretendia discutir naquela sessão.

A promoção da autonomia através da utilização das ferramentas de interatividade: Uma

postura fundamental nas práxis pedagógicas consiste em dar ao estudante a autonomia do

pensamento, demonstrando-lhe a importância do ato da pesquisa para o desenvolvimento e

crescimento pessoal, do saber metodológico; despertando-lhe a curiosidade e o pensamento crítico.

Essa autonomia, com ressalvas, está presente no curso de eletrônica.

Em uma das tarefas da disciplina de Empreendedorismo, foi solicitado aos estudantes, a

partir da leitura de um texto motivacional, pesquisar entre as pessoas do mesmo grupo de

convivência quem já tinha vivenciado ações de empreendedorismo, seja porque tinham sido

motivadas a empreender por uma necessidade ou por uma oportunidade. Essa experiência foi um

grande aprendizado para todos, tanto para quem pode relatar sua história, como para quem pode

aprender com ela. A partir desse tipo de atividade, pode-se inferir a ideia da autonomia e da

contextualização do saber, pois para Paulo Freire a educação pode contribuir para que as pessoas se

acomodem ao mundo ou se envolvam na transformação dele. Quando parte-se de tipos de tarefa na

qual se envolve o educando para compreender, investigar e até intervir no seu espaço social,

pratica-se a educação libertadora.

Outro ponto de destaque refere-se às mídias em formato de vídeos muito utilizadas em

todas as disciplinas. Nelas também se verificaram marcas das concepções de Paulo Freire, em

especial a autonomia; contudo, cabe ressaltar que a identificação dessa concepção efetuou-se pela

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preocupação do professor em sugerir um vídeo mais adequado, a tecnologia por si só não garante o

sucesso da aprendizagem.

Um dos vídeos sugeridos aos alunos relaciona-se a empreendedorismo social. Se o

empreendedorismo social tem como objetivo desenvolver iniciativas empreendedoras visando à

mudança da realidade na qual está inserido, buscando soluções inovadoras e sustentáveis para

problemas locais e o bem-estar da população, pode-se afirmar que tanto a mídia como a ferramenta

tarefa foram ao encontro das concepções do educador.

Ensinar a distância também pode ser um processo de democratização e os AVEAs podem

ser um espaço para esse “ensinar a pensar certo” discutido por Paulo Freire na obra Pedagogia da

Autonomia. Esse “ensinar certo” tem como um dos princípios a ideia de se respeitar a realidade do

educando e por meio dela superar os seus saberes de experiências feitos com o intuito de promover

transformações sociais. Essa superação não está atrelada à exclusão dos saberes edificados no senso

comum, mas está com o intuito de se promover o caminho da curiosidade ingênua à curiosidade

crítica. Em um fórum da disciplina Eletrônica Analógica, o professor uniu em sua apresentação dois

preceitos importantes que dizem respeito à noção da autonomia e da contextualização do saber.

Com o intuito de exemplificar por meio também de outras disciplinas, observou-se, em um

fórum geral, essa ideia de autonomia e democracia. De acordo com Freire (1996), “A autonomia vai

se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vamos tomando” (FREIRE, 1996,

p.120). Se o educador promove em sua prática pedagógica a decisão de questionar seus alunos

sobre a qualidade do material por ele sugerido, pode-se afirmar que esse educador está exercitando

e fomentando o exercício da autonomia, pois a sua edificação está pautada na democracia e na

liberdade.

Já na disciplina Eletrônica Analógica II, a percepção da autonomia e estímulo, o despertar a

curiosidade e ainda o saber metodológico, podem ser inferidos por meio da utilização da ferramenta

chat. O professor ressalta: “[...] dos altos dos meus 48 anos vi que as escolas e os livros só mostram

parte. O restante do conhecimento conquistamos com nossos esforços e ao longo do tempo” (Rede

e-Tec Brasil do CEFET-MG, 2013, online). Nesse sentido, observa-se que o professor reforça a

ideia de que o conhecimento deve ser uma conquista, logo essa ideia vai ao encontro dos

parâmetros de Paulo Freire; de uma educação para a autonomia, na qual ela deve ser edificada a

partir das decisões, das vivências, da própria liberdade.

O conhecimento a partir dos saberes e vivência dos indivíduos: Em um fórum de

apresentação da disciplina de Empreendedorismo identificou-se uma preocupação da professora em

conhecer, mesmo que em um espaço limitado, os seus alunos e procurando por meio desse

diagnóstico conhecer a histórica do educando, bem como levá-lo a pensar em uma possível relação

entre o que ele já sabe e o que se espera conhecer da disciplina.

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Espero que vocês tenham lido minha apresentação no tópico inicial do curso. Gostaria

também de conhecê-los para trocarmos experiências durante o semestre. Respondam

algumas perguntas e fiquem à vontade para fazer suas questões. Espero contribuir com o

aprendizado de vocês durante esta disciplina e trocarmos experiências. 1) Nome, idade,

qual sua ocupação? (trabalha e estuda ou só estuda). 2) Qual o seu objetivo ao fazer este

curso? Você já fez outro curso técnico ou superior? 3) O que você espera da disciplina de

Empreendedorismo? 4) Para você, qual é a importância da disciplina no curso? (Rede e-Tec

Brasil do CEFET-MG, 2013, online).

Outro ponto fundamental verificado nesse texto escrito da professora é a noção de que os

saberes são vivenciados e experienciados por todos os sujeitos que compõem o processo

educacional. De acordo com Paulo Freire, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.

Para ele, a educação é um processo social que ocorre na escola, no seio familiar, enfim, entre

pessoas que partilham de um mesmo contexto social.

Na disciplina Eletrônica Analógica II, o professor também sinaliza aos seus alunos uma

postura crítica e não neutra. Em outras palavras, em uma sociedade em que convivem segmentos da

população com interesses opostos e contraditórios, nem todos os indivíduos têm acesso, por

exemplo, à educação e às TDICs. Assim, faz-se fundamental que a educação contribua para que os

indivíduos não se acomodem e/ou aceitem os discursos “neoliberais” como verdades universais,

mas que se envolvam na transformação do mundo.

E, por fim, visualizaram-se links que direcionam alunos para vídeos como: “Netuno” e

“Magnetismo na Terra”, possibilitando uma leitura para além das concepções teóricas descritas no

material de apoio, e verificando com isso a importância de se agregar mídias ao processo educativo.

Assim, as várias estratégias de ensino associadas a diferentes ferramentas de interatividade e/ou a

mídias podem permitir a significação da aprendizagem, e a contextualização manifesta-se como

uma possibilidade de dinamizar o ensino, envolvendo mais os alunos com o conhecimento

científico, inserindo-os nas suas realidades locais.

Na Tabela 1 pode-se observar uma sintetização dos resultados mensurando por graus se

houve ou não as três concepções de Paulo Freire contempladas nesta pesquisa.

A proposta de escala visa classificar as ferramentas e as mídias a partir das concepções do

educador e pela promoção da interatividade em ordem crescente; sendo o grau 0: não permitindo a

interatividade de forma significativa do conteúdo, não favorecendo a interação com o professor ou

tutor, comprometendo com isso o preceito dialógico, a autonomia e a contextualização do saber das

três concepções em estudo. O grau 1 caracteriza-se pela pouca promoção das três concepções, o

grau 2 pela boa promoção das três concepções, e o grau 3 atende de forma excelente a utilização das

ferramentas ou mídias.

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Tabela 1 - Ferramentas de interatividade e mídias associadas às concepções de Paulo Freire no curso de eletrônica

Ferramenta ou mídia Dialogicidade Autonomia Contextualização

do saber

Chat

Ponto de Encontro

Tarefa ou Atividade

Aula online

Fórum notícias e avisos/ Fórum de dúvidas

Fórum de atividades

Aula Virtual

Calendário/ Últimas notícias

Vídeos/ links – Mídias

1

1

1

3

3

2

0

1

0

1

0

1

1

1

2

1

0

0

1

0

2

1

0

2

1

0

3

2ª etapa: Verificou-se que vários recursos midiáticos e ferramentas podem favorecer o ensino no

curso de eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, destacando o uso expressivo da

ferramenta fórum e aula online pelos professores. Já os tutores utilizam com maior frequência as

ferramentas: tarefa, fórum atividade e de notícia. Professores e tutores fazem uso em suas práticas

pedagógicas das ferramentas de interatividade dispostas no AVEA Moodle, e explicitadas no

Quadro 1.

Quadro 1 - Ferramentas de interatividade síncronas

Ferramentas de interatividade síncronas

Tipo Função

Chat Conversação em tempo real. Para a sua realização, geralmente é definido previamente o dia, horário,

temática a ser discutida; e há a presença de um mediador que coordena as discussões.

Ponto de

encontro

Conversação em tempo real com temática livre para contato entre os participantes da disciplina. A

sua realização é livre.

Aula online Exposição de uma temática pelo professor por meio de um programa que possibilita acesso remoto.

As aulas são marcadas em dias e horário pré-definidos. O uso do programa possibilita o acesso e o

compartilhamento de dados entre dois ou mais computadores conectados pela internet, sendo possível

também participar de apresentações já realizadas anteriormente.

Essas ferramentas podem ser, basicamente, divididas em síncronas e assíncronas. As

ferramentas síncronas são definidas por Moore e Kearsley (2007) como:

[...] comunicação interativa sem defasagem de tempo. É também um sistema no quais

eventos que ocorrem regularmente em intervalos de tempo são mantidos em sintonia

usando alguma forma de mecanismo eletrônico de registros de tempo (MOORE;

KEARSLEY, 2007, p.356).

O uso das ferramentas síncronas demanda uma maior preparação por parte do professor e/ou

tutor em relação às ferramentas assíncronas, considerando que a proposta pedagógica e os objetivos

devam estar bem claros durante todo o processo de ensino. As ferramentas síncronas são mais

adequadas às ações em que se privilegiam as respostas imediatas, em que o aluno terá de responder

a partir do conhecimento que foi edificado ao longo do processo. As ferramentas assíncronas são

agrupadas no Quadro 2.

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Quadro 2 - Ferramentas de interatividade assíncrona

Ferramentas de interatividade assíncrona

Tipo Função

Tarefa ou

Atividade

Envio de tarefas pelos alunos. A especificidade do curso pluraliza o envio de arquivos em

diversos formatos.

Fórum

Atividade

Promover discussões sobre uma temática pré-definida pelo professor (a). A sua duração é

determinada pelo professor (a), bem como os critérios de avaliação e participação.

Fórum de

notícias e

avisos

Expor informações gerais tais como: calendário, informações sobre material didático,

cancelamento de aula virtual, boas-vindas, entre outros. O uso desse fórum não tem como

objetivo a avaliação do educando, sua função é de apenas transmitir informações relevantes sobre

o curso ou assuntos correlatos.

Questionário Questionário fechado com opções de respostas de múltipla escolha ou ainda questões

dissertativas.

Fórum de

dúvidas

Espaço no qual professores, tutores e alunos socializam dúvidas no que concerne aos conteúdos,

avaliações, problemas técnicos e pessoais.

Aula Virtual Aula gravada pelos professores em formato de vídeo digital referente ao conteúdo da quinzena,

disponibilizada por meio de um link que remete a um site o qual permite que seus usuários

carreguem, compartilhem e comentem vídeos em formato digital.

Calendário Contém informações denominadas eventos sobre as atividades do curso, tais como: encontros

presenciais, período de recuperação, entrega de tarefas, entre outros.

Últimas notícias Possui informações e funções compatíveis com a da ferramenta calendário.

Mensagem Possui o formato de um e-mail pessoal e tem como função enviar mensagens privadas ou para um

grupo de pessoas selecionadas previamente.

Perfil Esta ferramenta permite que o usuário apresente-se, coloque foto e descreva informações que

julgue necessário. Caso o usuário possua uma página pessoal na internet, este pode inserir um link

para acesso a ela.

Em relação às ferramentas assíncronas Moore e Kearsley (2007) afirmam:

[...] literalmente, não síncrono; em outras palavras, não ocorrendo ao mesmo tempo

e criando, portanto, uma comunicação com uma defasagem que permite aos

participantes responder em uma ocasião diferente daquela em que a mensagem é

enviada (MOORE; KEARSLEY, 2007, p.353).

O uso das ferramentas assíncronas propõe respostas mais elaboradas, ou seja, permite ao

educando realizar reflexões sobre a temática antes da postagem final. E, as ferramentas assíncronas

podem ser acessadas a qualquer momento, o que oferece ao educando uma flexibilização temporal.

Outro aspecto relevante refere-se em especial aos fóruns de atividades. Os professores e

tutores, ao proporem uma discussão, devem estar atentos ao tipo de questão postada, pois o objetivo

dos fóruns é estimular o diálogo e a aprendizagem colaborativa. Nesse sentido, o mediador deve

propor questões que favoreçam múltiplas respostas, pois do contrário os educandos não terão a

oportunidade de interagir. Sendo assim, percebe-se que para a escolha por determinada ferramenta

de interatividade, sejam as síncronas ou assíncronas, deve-se levar em consideração a eficácia da

receptividade, transmissão, possibilidade de construção do conhecimento e interações necessárias

no processo educativo.

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Resultados e análise da 3ª etapa.

Para a organização e apresentação da análise, realizou-se a demonstração de tabelas

seguindo a mesma lógica de divisão temática do questionário:

1)Perfil dos atores envolvidos na pesquisa: Seis são do gênero masculino e quatro do gênero

feminino. Esse resultado permitiu perceber que há uma diferença de gêneros que atuam na área de

eletrônica no setor educacional, contudo essa diferença não é tão expressiva. Para apresentar a

idade dos respondentes foi elaborada uma tabela, dois, que descreve a distribuição dos respondentes

por faixa etária.

Tabela 2 - Idade dos respondentes

Faixa Etária Quantidade

Abaixo de 25 anos

Entre 26 e 35 anos

Entre 36 e 45 anos

Entre 46 e 55 anos

Acima de 56 anos

6

0

3

1

0

Total 10

Na tabela 3 estão apresentadas as informações sobre o Grau de escolaridade dos

respondentes. Percebe-se que metade dos respondentes possui mais do que a escolaridade mínima

exigida nos editais. Para o processo seletivo de tutores pede-se no mínimo que esteja graduando, e

para atuar como professor pede-se no mínimo a graduação completa. A metade dos respondentes

possui pós-graduação, o que permite inferir que há um equilíbrio na formação, mas também há por

parte de alguns atores uma preocupação com aperfeiçoamento da sua formação profissional, o que

vai ao encontro das notações da sociedade informacional que atribui um valor expressivo à

informação, ao conhecimento e a formação continuada.

Tabela 3 - Grau de Escolaridade

Grau de Escolaridade Quantidade

Graduando na área de Engenharia Elétrica

Graduando em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins

Curso Superior completo na área de Engenharia Elétrica

Curso Superior completo em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins

Pós-Graduação em andamento na área de Engenharia Elétrica

Pós-Graduação em andamento nas áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins

Pós-Graduação completa na área de Engenharia Elétrica

Pós-Graduação completa em áreas da Engenharia, Computação, Física ou áreas afins

5

0

0

0

0

1

4

0

Total 10

Em relação ao uso de recursos tecnológicos pelos tutores e professores, nove informaram

que já tinham experiência com recursos tecnológicos e um respondeu que não tinha. Sobre a

formação acadêmica básica para a atuação, sete possuíam formação e capacitação antes de iniciar as

suas atividades no curso e três declararam não possui essa formação ou capacitação. A partir disso,

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entende-se que há uma preocupação da instituição na capacitação e até na escolha desses

profissionais, tendo em vista que nos editais para seleção desses profissionais uns dos critérios de

desempate está relacionado ao grau de escolaridade.

Quanto à parte de análise do questionário que se refere à utilização do AVEA pelos tutores e

professores, verificou-se o tempo de uso do AVEA. De acordo com os editais do processo de

seleção para o 2 º semestre de 2013, a disponibilidade tanto dos tutores quanto de professores é de

20 horas semanais; essa informação é confirmada pela tabela 4.

Tabela 4 - Tempo de uso do AVAE pelos tutores e professores do curso

Horas semanais Quantidade

Apenas 20 horas semanais

De 21 a 30 horas semanais

De 31 a 40 horas semanais

Acima de 40 horas semanais

8

2

0

0

Total 10

A partir da leitura dos dados da tabela 4, pode-se inferir que as horas destinadas para o

cumprimento das propostas pedagógicas estão dentro do previsto, contudo um dos aspectos a serem

ressaltados nesta pesquisa está relacionado ao uso das ferramentas de interatividade e mídias nessas

20 horas mínimas de dedicação ao curso. No que concerne ao uso das ferramentas, será mostrado a

seguir, por meio das tabelas 5 e 6, quais as mais usadas e a sua adequabilidade a EaD.

A partir da análise das tabelas 5 e 6, pode-se verificar o predomínio da utilização das

ferramentas assíncronas para aquelas explicitadas no questionário, que são as de uso mais comum

nos cursos de EaD, todavia na opção outras poderiam entrar também as ferramentas ou mídias

utilizadas no curso e que não foram citadas no questionário, como: perfil, calendário, últimas

notícias, biblioteca, ponto de encontro, aula virtual, aula online, questionário.

Os resultados apresentados na tabela 6 revelam outro aspecto fundamental, para 50% dos

respondentes as ferramentas utilizadas no curso são adequadas à modalidade a distância e para 30%

dos respondentes são parcialmente adequadas. Contudo, muitas ferramentas e/ou mídias poderiam

ter seu uso potencializado no que concerne às concepções de Paulo Freire.

Tabela 5 - Utilização das ferramentas de interatividade por professores e tutores

Avaliação Quantidade

Fórum

Chat

Wiki

Tarefa

Enquetes

Agenda/Mural

Biblioteca

Glossário

Mensagem/Correio

Outras

9

3

1

5

0

2

0

0

4

2

Total 10

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Tabela 6 - Adequação das ferramentas de interatividade na EaD

As ferramentas são adequadas a EaD Quantidade

Sim

Não

Parcialmente

5

2

3

Total 10

Nas próximas tabelas procurou-se evidenciar a relação entre o uso dessas ferramentas de

interatividade ou mídias com as concepções do educador, e ainda verificar se há presença ou

ausência da aprendizagem colaborativa a partir dos usos delas. Cabe ressaltar que a aprendizagem

colaborativa, conforme exposto no referencial teórico, não é um termo de Paulo Freire, entretanto a

sua noção também está interligada já que a pedagogia do educador é coletiva, inovadora e

libertadora.

Tabela 7- As ferramentas disponibilizadas favorecem o desenvolvimento da aprendizagem

colaborativa e do diálogo entre os estudantes e entre estudantes, professores e tutores

Aprendizagem Colaborativa e Diálogo Estudantes Porcentagem (%)

Sim, todas as ferramentas de interatividade

Sim, algumas ferramentas de interatividade

Não

40

60

0

Total 100

A partir da leitura desses dados apresentados nas tabelas 7 e 8, entende-se que a maioria dos

respondentes acredita que as ferramentas favorecem a aprendizagem colaborativa e o diálogo entre

os estudantes, todavia quando se amplia essas mesmas concepções para o uso das ferramentas,

pode-se inferir que os respondentes creem que de alguma forma todas ou algumas ferramentas de

interatividade possibilitam por si só a aprendizagem colaborativa.

Tabela 8 - As ferramentas disponibilizadas favorecem o desenvolvimento do diálogo entre os estudantes e

entre estudantes, professores e tutores

Aprendizagem Colaborativa Estudantes, Professores e Tutores Porcentagem (%)

- Sim, todas as ferramentas por si só já possibilitam a aprendizagem colaborativa entre os

estudantes e professores/ tutores

- Sim, algumas ferramentas por si só possibilitam a aprendizagem colaborativa entre os

estudantes e professores

- Não, as ferramentas por si só não garantem a aprendizagem colaborativa, faz-se

necessário estratégias de mediações

- Os próprios alunos e professores possuem autonomia para edificar as aprendizagens e

muitos não utilizam as ferramentas do AVA utilizando outros recursos externos

40

50

10

0

Total 100

No que se refere ao desenvolvimento da autonomia 90% dos respondentes afirmaram que

ela é propiciada pelo uso das ferramentas de interatividade do AVEA e para 10% dos respondentes

a autonomia não é propiciada.

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Considerações finais

Nessa pesquisa foi possível verificar que as ações pedagógicas pautadas no desenvolvimento

de práticas dialógicas e colaborativas, na autonomia e na contextualização do saber, conferem-se

como atos de cidadania ao processo de ensino nas práticas dos professores e tutores do curso de

Eletrônica da Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG, e também nos princípios pedagógicos do curso

descritos no site da instituição.

Embora tenha sido verificado que para a maioria dos respondentes as ferramentas do curso

são adequadas, observou-se que seus usos poderiam ser otimizados no que diz respeito às

concepções de Paulo Freire, analisadas nesta pesquisa. Além disso, esses respondentes acreditam

que as ferramentas por si só promovem uma aprendizagem colaborativa e os diálogos entre os

estudantes.

Nesse sentido, um dos grandes desafios referentes à atuação dos professores e tutores do

curso analisado nessa pesquisa diz respeito ao fato de eles não responderem de modo adequado ao

uso dessas diversas ferramentas de interatividade. No caso do universo populacional estudado, essa

dificuldade não está relacionada à falta de conhecimentos técnicos ou formação acadêmica, pois,

como se verificou neste estudo, eles já possuíam inclusive cursos de pós-graduação na área e, ainda,

a maioria destacou que a instituição oferece capacitações técnicas antes e durante a atuação no

curso. Faltando, portanto, a instituição oferecer uma base de conhecimentos pedagógicos em suas

capacitações.

Observou-se também que em muitas circunstâncias a utilização das ferramentas de

interatividade em práticas pedagógicas, os tutores e professores não assumiram a postura de

mediadores, ou seja, não promoveram plenamente ações interativas; aspecto fundamental nos

cursos de EaD e que fomentam uma aprendizagem colaborativa entre os pares.

E as ferramentas de interatividade do Moodle bem como a utilização de mídias oferecem

expressivas possibilidades e configurações, todavia nesta pesquisa foram encontradas metodologias

de ensino utilizadas de maneira repetida nas disciplinas do curso, ou seja, observou-se uma única

abordagem, sendo esta pouco promissora no que se refere à edificação de debates e reflexões;

comprometendo assim, além da dialogicidade entre os pares, a autonomia e a contextualização do

saber no processo de ensino.

Além disso, percebeu-se que a maioria dos respondentes acha que pelo menos algumas

ferramentas utilizadas no AVEA favorecem a aprendizagem colaborativa e o diálogo, porém o

grande problema evidenciado está no número expressivo de respondentes afirmarem que as

ferramentas de interatividade por si só já garantem a aprendizagem. Entretanto, cabe ressaltar que o

simples fato de os professores e tutores utilizarem as ferramentas de interatividade ou se

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apropriarem das TDICs não garante por si só um ensino exitoso. Faz-se necessário planejar e

reinventar a forma como esses dispositivos serão utilizados e em que situações, a fim de que eles

possam efetivamente contribuir no processo de ensino.

Portanto, ressalta-se a importância de que a equipe pedagógica utilize juntamente com

coordenadores as ferramentas de interatividade do AVEA, bem como de outras mídias com o

intuito de melhorar as formações oferecidas, seja no início da atuação, seja durante a atuação dos

tutores e professores no curso de eletrônica.

Neste contexto, percebeu-se um cenário muito profícuo para que a coordenação pedagógica

e coordenadores de curso façam as intervenções necessárias, pois a maioria dos respondentes

declarou que participam das capacitações de forma voluntária, com o objetivo de melhorar as suas

medições e que as consideram de boa a excelente, o que já é um ponto de partida para se otimizar as

promoções das ações dialógicas, a autonomia e a contextualização do saber e diagnosticar outras

questões importantes para o aprimoramento das atuações dos respondentes.

Contudo, mais da metade dos respondentes considera essas formações pautadas

exclusivamente em habilidades técnicas. Esse resultado elucida duas propostas a serem

apresentadas: a primeira é que as capacitações contemplem conhecimentos pedagógicos, visto que

não é comum os cursos de engenharias e áreas correlatas (perfil dos tutores e professores que estão

no curso) terem contato com conhecimentos das áreas de didática ou teorias da educação; e a

segunda proposta é verificar, seja por meio de pesquisa de clima ou outro instrumento, a origem

desse fenômeno, pois os resultados demonstram uma receptividade de tutores e professores em

participar das formações e até conhecer as formações previstas no curso.

A pesquisa demonstrou que a existência de mediações pedagógicas através das ferramentas

de interatividade, mas sempre podem ser otimizadas, e esse fator é o que precisa ser tratado com

mais atenção: os professores sabem da importância do diálogo, da autonomia e da contextualização

do conhecimento, todavia apresentam dificuldades em mediar, mesmo possuindo um grau de

escolaridade satisfatório e apesar de possuírem identificação com o uso de tecnologias. Apenas

professores seguros e capazes de utilizarem as ferramentas do AVEA, usufruindo o que de melhor

elas têm a proporcionar ao processo de ensino e aprendizagem, serão capazes de interferir de forma

satisfatória e exitosa nas práticas pedagógicas.

Referências

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BRASIL. Lei No 5.692 de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º

graus. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/l5692_71.htm>. Acesso em: 09 fev.

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COLL, César; MONEREO, Carles. Psicologia da Educação Virtual: aprender e ensinar com as

tecnologias da informação e comunicação. Tradução de Naila Freitas. Porto Alegre: Artmed,

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baseados na análise de casos e na resolução de problemas. In: COLL Cesar; MONEREO Carles

(Org.). Psicologia da Educação Virtual: aprender e ensinar com as Tecnologias da Informação e

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DE FORMIGA A DRAGA: METÁFORAS CONCEPTUAIS E AUTODEFINIÇÃO.

Ane Cristina THUROW45

Liliane da Silva PRESTES-RODRIGUES46

Resumo: A metáfora perpassa a linguagem: as pessoas compartilham esse conhecimento cognitivo

e utilizam-no sem perceber, através de experiências sócio-históricas e culturais. Este trabalho visa a

analisar expressões metafóricas (e metáforas conceptuais) de autoidentificação pela verificação de

postagens em blogs com a temática “gordinha”. A teoria utilizada é a Metáfora Conceptual

(LAKOFF e JOHNSON, 1980), segundo a qual as metáforas são convencionais, culturais e

inconscientes, refletindo ideologias e modos de ver o mundo. O trabalho apresenta o levantamento

das expressões metafóricas presentes em quatro blogs. A análise versou pela explicação e

caracterização das expressões metafóricas, possibilitando revelar as metáforas conceptuais

correspondentes.

Palavras-chave: Metáfora. Linguagem. Convenção. Cultura. Blog.

Abstract: Metaphors span language: people have shared this cognitive knowledge and have used it

without noticing throughout socio-historical and cultural experiences. This study aims at analyzing

metaphorical expressions (and conceptual metaphors) of self-identification by checking blog posts

with the theme “chubby”. Theoretical support is given by the Conceptual Metaphor theory

(LAKOFF e JOHNSON, 1980) which states that metaphors are conventional, cultural and

unconscious; thus, they reflect ideologies and ways of seeing the world. This study reports the

metaphorical expressions found in four blogs. The analysis deals with the explanation and

characterization of the metaphorical expressions and enables the correspondent conceptual

metaphors to be revealed.

Keywords: Metaphor. Language. Convention. Culture. Blog.

Introdução

A Internet tem facilitado e possibilitado um grande fluxo de informações. Estas informações

estão vinculadas às redes sociais que conectam pessoas com interesses comuns. O ambiente virtual

serve de suporte à comunicação, mas também permitem a visualização de material pessoal. Assim,

45 Mestranda em Letras do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Católica

de Pelotas (UCPel), Pelotas – RS, Brasil; [email protected] 46

Docente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), Centro de Educação e Comunicação

da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Pelotas – RS, Brasil; [email protected]

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uma das formas de interação no ambiente virtual é usando o blog. O blog é uma ferramenta que

proporciona visibilidade e popularidade na Internet, possibilitando formas de interagir e manter

relações interpessoais. O foco deste trabalho é constituído por blogs que apresentam informações

pessoais e mantêm a popularidade de sua autora através do número da audiência, do número de

visitas no perfil e pela quantidade de links postados e comentados na rede.

O objetivo geral deste trabalho é analisar a utilização de expressões metafóricas, e das

metáforas conceptuais que lhes embasam, através da análise de algumas postagens em blogs cuja

temática insere-se no contexto “gordinha”, isto é, blogs cujas autoras tem como objetivo buscar,

atingir e manter uma aparência física considerada ideal. O quadro teórico-metodológico utilizado é

o da Metáfora Conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 1980), que preconiza que as metáforas são

convencionais, culturais e inconscientes, refletindo, deste modo, a ideologia e o modo de ver o

mundo de um determinado grupo de pessoas. A partir do entendimento de que as metáforas

conceptuais são uma representação mental dando base para a configuração desse tipo de estrutura

cognitiva, os objetivos específicos deste trabalho são: (i) verificar os diferentes usos das expressões

metafóricas que constam nas postagens dos blogs selecionados; (ii) relacionar essas expressões às

metáforas conceptuais correspondentes; (iii) analisar os efeitos de sentido das expressões

metafóricas.

Referencial Teórico

No decorrer do tempo, o estudo da metáfora vem sendo ampliado e aprofundado.

Tradicionalmente vista como figura de linguagem, ligada, portanto, à estilística e à linguagem

literária, posteriormente passou a ser foco de interesse de pesquisa de diferentes áreas. A

Linguística Cognitiva (LC) aborda-a como um processo cognitivo fundamental não só no uso da

linguagem, mas na compreensão e apreensão do mundo, como uma maneira de conceptualizar as

experiências cotidianas.

A teoria sobre o pensamento metafórico teve como marco inicial o livro Metaphors we live

by, de Lakoff e Johnson (1980). Os autores tratam as metáforas como um recurso que está atrelado

ao pensamento e à ação, de maneira que o sistema conceptual é fundamentalmente metafórico

(LAKOFF, 1993). Deste modo, os autores expõem:

Nosso sistema conceptual desempenha, assim, um papel central na definição das

nossas realidades cotidianas. Se estivermos certos em sugerir que nosso sistema

conceptual é em grande parte metafórico, então o modo como pensamos, o que nós

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experimentamos, e o que fazemos todos os dias é muito mais uma questão de

metáfora. (LAKOFF e JOHNSON, 1980, p.3)47

Essa visão de metáfora concebe-a como uma forma esquemática resultante de uma

comparação não explícita entre categorias (EVANS e GREEN, 2006). Uma delas, designada

domínio-fonte (ou domínio-origem) fornecerá elementos, características, atributos para a

compreensão do domínio-alvo, mais abstrato. É a chamada metáfora conceptual.

A título de exemplo, Lakoff e Johnson (1980) citam metáforas como DISCUSSÃO É

GUERRA e TEMPO É DINHEIRO48

, que são empiricamente demonstradas através de várias

ocorrências encontradas na língua portuguesa. Para o primeiro tipo, são expostas as expressões

metafóricas49

“Você está desperdiçando meu tempo./ Você tem muito tempo de sobra?”50

e, no

segundo, “Suas reivindicações são indefensáveis./Eu nunca ganhei uma discussão com ele.”51

No primeiro exemplo, o ato de argumentar é evidenciado como guerra, visto que, em uma

discussão, posições de ataque e defesa, planejamento e estratégias podem ser utilizados para

convencer o outro/adversário de algo. Essas posições podem ser percebidas na cultura e na estrutura

das ações que se realiza ao discutir. No segundo, o foco está no tempo, isto porque na cultura

ocidental ele é um recurso valioso e limitado, que permite alcançar os objetivos pretendidos.

Também associado ao tempo está o trabalho que é quantificado através de salários, horários, tarifas

e orçamentos anuais, necessários para a dinâmica típica de uma sociedade capitalista (LAKOFF e

JOHNSON, 1980).

As metáforas existem na cultura ocidental e não há como interagir e entender o mundo sem

vivenciá-las. Assim, uma metáfora conceptual é uma maneira convencional de conceptualizar um

domínio de experiência em termos de outro, ou seja, é uma forma de estabelecer uma definição para

alguma coisa e isso ocorre normalmente de modo inconsciente. Na medida em que são elas

culturais, refletem a ideologia e o modo de ver o mundo de um determinado grupo de pessoas em

uma cultura (SARDINHA, 2007).

Destarte, as “metáforas como expressões linguísticas são possíveis precisamente porque

existem metáforas no sistema conceptual de uma pessoa”52

(LAKOFF e JOHNSON, 1980, p.7).

47 Our conceptual system thus plays a central role in defining our everyday realities. If we are right in

suggesting that our conceptual system is largely metaphorical, then the way we think, what we experience,

and what we do every day is very much a matter of metaphor. 48

Estudos anteriores têm convencionado apresentar as metáforas conceptuais grafadas em letras

maiúsculas. 49

Dá-se o nome de expressão metafórica às construções linguísticas produzidas pelos falantes no

contexto comunicativo, na linguagem cotidiana. A expressão metafórica é a concretização da metáfora

conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 1980). 50

You're wasting my time./ Do you have much time left? 51

Your claims are indefensible./I've never won an argument with him. 52

Metaphors as linguistic expressions are possible precisely because there are metaphors in a

person's conceptual system.

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Elas são consideradas produtivas quando os falantes criam um amplo conjunto de expressões que as

realizem. Com isso, elas são de acesso automático e seu mecanismo envolve a conceptualização de

um domínio de experiência em termos de outro, de maneira que não é preciso esforço para

compreender e produzir as expressões metafóricas.

Os estudiosos da teoria da Metáfora Conceptual notaram, conforme já referido, que as

metáforas estabelecem mapeamentos entre domínio-fonte e domínio-alvo em um sistema

conceptual (LAKOFF, 1993; KÖVECSES, 2010), o que expressa que uma das propriedades do

processo é a unidirecionalidade53

. As metáforas são consideradas como relações estáveis e

sistemáticas entre dois domínios. De tal modo que

“Há um padrão de unidireccionalidade da metáfora conceptual que vai do concreto

ao abstrato: o domínio-origem é concreto e pode ser experienciado ou percebido

‘directamente’, ao passo que o domínio-alvo é mais abstracto e diz respeito a

experiências subjectivas.” (SILVA, 2006, p.131)

A metáfora envolve tanto questões da linguagem como do pensamento e raciocínio que se

constroem na interação social. Um dos exemplos mais conhecidos e citados refere-se à metáfora

AMOR É VIAGEM, que esquematicamente estabelece projeções entre o domínio-fonte VIAGEM e

o domínio-alvo AMOR. Essa construção metafórica, por sua vez, herda “a estrutura da projecção

mais esquemática VIDA É VIAGEM, cujas correspondências ontológicas incluem pessoa é

viajante, nascimento é ponto de partida” (SILVA, 2006, p.127), etc.. Deste modo, elementos

cognitivos e socioculturais são integrados, mostrando a noção cultural de fases diferentes da vida e

a noção de transição temporal como transição espacial. E assim, as projeções de experiências

culturais possibilitam o uso do conhecimento sobre viagem aos relacionamentos amorosos e até

mesmo à vida.

A partir de experiências compartilhadas, as pessoas podem interpretar algumas expressões

como “no meio do caminho” e “tinha uma pedra”, de maneira a relacioná-las a metáfora AMOR É

VIAGEM. E com isso, as projeções das vivências geram correspondências por meio de padrões

inferenciais relacionados aos contextos comunicativos e socioculturais. Além de ancorada a esses

fatores, a metáfora conceptual tem uma forte relação com a experiência corpórea, com as

características do corpo humano e o conjunto de experiências físicas que este proporciona. De

acordo com Silva (2006):

O próprio corpo humano é um centro de expansão metafórica bastante produtivo:

são vários os termos de partes do corpo humano que desenvolveram sentidos

metafóricos (mais ou menos) lexicalizados [...]. (idem, p.133)

53 Autores como Cameron e Deignan (2006), entretanto, salientam que a metáfora não se caracteriza

pela unidirecionalidade, mas por uma via de mão dupla em um sistema dinâmico. Esse tipo de abordagem

não faz parte da construção teórica que sustenta a presente pesquisa.

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Nesse sentido, por tudo o que foi exposto, a metáfora não se caracteriza pela arbitrariedade

(SILVA, 2006; YU, 2008), mas pela relação com o corpo (universal), a sociedade e a cultura

(específicos).

Lakoff e Johnson (1980), tomando como critério a função cognitiva, apontam três grandes

tipos de metáforas conceptuais: orientacionais, ontológicas e estruturais.

As metáforas orientacionais envolvem uma direção e tornam um conjunto de conceitos

coerentes dentro de um sistema, ou seja, os “conceitos-alvo tendem a ser conceptualizados de

maneira uniforme54

” (KÖVECSES, 2010, p.40). Assim, as metáforas conceptuais FELIZ É PARA

CIMA/ TRISTE É PARA BAIXO têm como expressões metafóricas, por exemplo, “Ele tem um

alto astral./ Estou me sentindo para baixo.”.

As metáforas ontológicas são as capazes de concretizar algo abstrato em termos de entidade.

Sua função é atribuir um status ontológico a categorias gerais de conceitos mais abstratos

(KÖVECSES, 2010). A metáfora conceptual INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE, nessa perspectiva,

conduz a expressão metafórica “A inflação está diminuindo nosso padrão de vida.55

” (LAKOFF e

JOHNSON, 1980).

Assim como as experiências básicas de orientações espaciais humanas dão origem

a metáforas orientacionais, também as nossas experiências com objetos físicos

(especialmente os nossos próprios corpos) fornecem a base para uma extraordinária

variedade de metáforas ontológicas, isto é, formas de visualização de eventos,

atividades, emoções, ideias, etc., como entidades e substâncias. (LAKOFF e

JOHNSON, 1980, p.26)56

Já as metáforas estruturais ocorrem quando o domínio-fonte fornece uma estrutura de

comportamento relativamente rica para o domínio-alvo, permitindo que os falantes, via

mapeamentos, compreendam este a partir dos elementos fornecidos por aquele. É o caso das

metáforas conceptuais DISCUSSÃO É GUERRA, TEMPO É DINHEIRO e AMOR É VIAGEM,

citadas anteriormente, e suas respectivas expressões metafóricas.

Além dos tipos abrangidos anteriormente, há, ainda, as metáforas de personificação e

primárias. As metáforas de personificação mostram uma entidade atrelada a uma pessoa, ou seja,

através dela são atribuídas características essencialmente humanas a seres não-humanos. É o caso

da metáfora conceptual UMA TEORIA É UMA PESSOA, que tem exemplo de expressão

metafórica “os fatos revelam que...”. As mais básicas, porém, são as primárias, que são motivadas

54 [...] target concepts tend to be conceptualized in a uniform manner.

55 Inflation is lowering our standard of living.

56 Just as the basic experiences of human spatial orientations give rise to orientational metaphors, so

our experiences with physical objects (especially our own bodies) provide the basis for an extraordinarily

wide variety of ontological metaphors, that is, ways of viewing events, activities, emotions, ideas, etc., as

entities and substances.

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por aspectos físicos do corpo humano e bastante comuns em muitas culturas: BOM É PARA CIMA,

AFEIÇÃO É CALOR. Para esse tipo, é comum o uso da expressão “pessoa fria” (SARDINHA,

2007).

Segundo Sardinha (2007, p.34) “o corpo humano é a origem de muitas metáforas

conceptuais”. Desta forma, uma experiência humana física como demonstrar o afeto e carinho a

alguém está ligada à metáfora conceptual primária AFEIÇÃO É CALOR, porque o corpo humano é

quente e, ao se aproximar de uma pessoa, transmite e sente calor. Com isso, “as metáforas

conceptuais são, em maior ou menor grau, corporificadas, ou seja, possuem uma base no corpo

humano” (idem, p.34)

Lakoff e Johnson (1980), no livro Metaphors we live by, na edição publicada em 2003,

apresentam um posfácio abordando a sua tentativa de explicitar a natureza do pensamento

metafórico e sua relação com a linguagem, além de esclarecimentos sobre algumas revisões dos

tipos de metáforas conceptuais.

A divisão de metáforas em três tipos - de orientação, ontológica, e estrutural - era

artificial. Todas as metáforas são estruturais (na medida em que mapeiam

estruturas de estruturas); todas são ontológicas (na medida em que elas criam

entidades - entidades principais); e muitos são orientacionais (na medida em que

mapeiam orientação de esquemas imagéticos). (LAKOFF e JOHNSON, 1980,

p.265)57

Ainda, foi explorada a ideia de que determinados conceitos decorrem de esquemas

imagéticos, sendo que tais esquemas podem servir de domínio-fonte para a correspondência

metafórica (LAKOFF, 1987). À vista disso, “os esquemas imagéticos são estruturas de

conhecimento que emergem diretamente da experiência corpórea pré-conceptual” (FERRARI,

2010, p.99), sendo que estas estruturas derivam de experiências cotidianas. Por isso, salienta-se que

uma das características da metáfora é a sua natureza enciclopédica e experiencial, que está

relacionada aos contextos comunicativos apreendidos durante a vida.

Metodologia

A pesquisa tem por objetivo identificar e analisar (à luz da teoria da Metáfora Conceptual)

metáforas conceptuais e expressões metafóricas utilizadas para autodefinição por blogueiras em

blogs relacionados ao contexto geral “gordinha”, tratando de temas como excesso de peso, forma e

aparência física, alimentação e dietas. Como hipótese, as pesquisadoras cogitaram encontrar

57 The division of metaphors into three types — orientational, ontological, and structural — was

artificial. All metaphors are structural (in that they map structures to structures); all are ontological (in that

they create target do - main entities); and many are orientational (in that they map orientational image-

schemas).

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regularidades na autodefinição tanto da aparência física quanto do comportamento dessas

blogueiras, via metáforas estruturais, revelando certo grau de convencionalidade ao tratarem da

autoimagem. Com isso, a metodologia que norteia este estudo evidencia os aspectos sócio-

históricos e culturais envolvidos nos domínios linguísticos dos falantes de uma determinada região.

Para a coleta dos dados, inicialmente fez-se uma leitura das postagens de treze blogs. Destes,

foram selecionados os quatro nos quais foram encontrados os maiores números de ocorrências de

metáforas de autodefinição (Ex.: Eu sou um bolo fofo.). Todos os blogs têm, assim, aspectos

importantes em comum: através deles, suas autoras relatam suas experiências com os temas citados,

revelando a intenção de buscar, atingir e manter uma forma física considerada ideal, ou seja, ser

magra.

A observação inicial dos blogs selecionados revelou o uso constante de expressões

metafóricas abordando relatos da vida diária. Até a elaboração do presente texto, os quatro blogs

continham 1621 postagens, que foram lidas em sua totalidade, e das quais foram extraídas as

expressões metafóricas, um total de 40 dados. Em seguida, fez-se a leitura atenta e minuciosa dos

dados, considerando o contexto em que ocorreram. Estes foram inicialmente categorizados de

acordo com sua relação com aparência física ou comportamento. Em seguida, passou-se à

formulação das metáforas conceptuais correspondentes, discutindo-as em articulação com a base

teórica.

Na seção a seguir, passa-se à análise da referida peça à luz do referencial teórico.

Da teoria à análise

O recorte escolhido para a análise deste artigo foi guiado pela leitura e busca minuciosa de

expressões metafóricas atreladas à imagem de si e ao comportamento. Através dessas expressões,

observaram-se os usos e efeitos de sentido que eram atribuídos pelas autoras na escrita dos blogs.

A partir do levantamento e observação das construções linguísticas, foram identificadas

algumas expressões metafóricas recorrentes como: “sou uma formiga” e “estou uma bola”, que

permitiram buscar outras construções que estivessem relacionadas às metáforas conceptuais

encontradas. O uso da expressão metafórica “sou uma formiga” remete a um tom crítico quanto ao

seu desejo de comer doces, enquanto que “estou uma bola” relaciona-se ao formato corporal

arredondado que a autora do blog se atribui.

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Desta forma, no que se refere à imagem de si, alguns padrões foram identificados. A

classificação das expressões metafóricas considera o contexto em que estão inseridas. O QUADRO

158

, a seguir, sistematiza os achados:

QUADRO 1: Expressões metafóricas relacionadas à imagem de si59

:

Expressões metafóricas

Positivas Negativas Forma arredondada

Eu sou uma diva! [...] estou um trapo! Estou uma bola de tão

gorda.

[...] sou praticamente aquela

última coca-cola gelada no

deserto.

[...] estou um ogrozinho

[...] a bolinha-fofa que

estou.

Estou uma bola de tão

gorda.

[...] estou uma porpeta!

Estou jacando. [...] eu sou Miss Coxinha

As expressões metafóricas relacionadas à aparência física foram classificadas em três

categorias. Foram identificadas expressões que refletem uma postura positiva em relação à imagem

de si. Na construção “Eu sou uma diva!”, a autora equipara-se a uma deusa, uma figura feminina

muito bela e formosa. Na construção “sou praticamente aquela última coca-cola gelada no deserto”,

fica evidente o sentimento de autovalorização que, inserido em seu contexto, relaciona-se à beleza

física. Assim, são os atributos de deusa e o caráter de exclusividade, respectivamente, as

características dos domínios-fonte mapeados para a definição do domínio-alvo.

Também foram encontradas expressões metafóricas que refletem uma postura negativa em

relação à autoimagem. “Estou um trapo!”, “estou um ogrozinho”; “estou uma bola de tão gorda” e

“estou jacando” revelam insatisfação com a aparência física na medida em que projetam no

domínio-alvo aspectos ruins (a aparência enxovalhada do trapo; a feiura do ogro; a circunferência

da bola; a forma da fruta).

Foram identificadas, ainda, expressões metafóricas relacionadas às formas arredondadas do

corpo. Em “estou uma bola de tão gorda” e “a bolinha fofa que estou”, é o formato arredondado da

bola que é projetado para a definição do sujeito que se concebe como gordo. Já em “estou uma

porpeta!” e “eu sou Miss Coxinha”, além do formato arredondado, é a própria comida que contribui

para essa definição.

58 O Quadro sintetiza as expressões metafóricas encontradas. Algumas delas repetiram-se.

59 A apresentação dos dados obedece a forma de escrita utilizada pelas autoras. Por isso, algumas

expressões aparecem grafadas com letras maiúsculas e pontuação diferenciada.

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A partir da identificação, classificação e análise dos sentidos das expressões metafóricas

estudadas, foi possível chegar à metáfora conceptual correspondente. Entende-se que a formulação

adequada seja SUJEITO É FIGURA, na medida em que aquilo que domínio-fonte fornece ao

domínio-alvo, o sujeito que se autodefine via expressão metafórica, é a sua forma exterior, seu

formato ou imagem, o delineamento de limites físicos e superfície.

No que se refere à autodefinição do sujeito através de seu comportamento, foram

encontradas algumas expressões metafóricas, todas consideradas em seus contextos. O Quadro 260

,

a seguir, apresenta os resultados.

QUADRO 2: Expressões metafóricas relacionadas ao comportamento61

:

Expressões metafóricas

Avaliação positiva Avaliação negativa

Em relação ao consumo de

comida

Estou ligada no 220!!!! [...] quase um cupim

ambulante.

Sou uma fraude!

[...] estou a todo vapor, gás

total [...]!

Sou muito formiga!

(formigona)

[...] estou atolada até o pescoço.

SOU MAIS MACHO QUE

MUITO HOMEM.

Eu estou uma draga! [...] eu sou uma palhaça!

Já sou palhaça e malabarista [...].

As expressões metafóricas encontradas mostram que o sujeito se define através de posturas

positivas e negativas. Quando se revela uma avaliação positiva, o sujeito se define através das

expressões “ligada no 220”; “a todo vapor, gás total” e “macho”. Assim, para a autodefinição, toma

do domínio-fonte, respectivamente, as características de energia; atividade e agitação; de valentia e

coragem.

Quando se revela uma avaliação negativa, os dados foram categorizados considerando-se o

fato de haver ou não, no contexto, referência ao comportamento ligado ao consumo de comida.

Salienta-se que todas as vezes em que veio à tona o assunto comida, a autodefinição foi negativa.

Assim, as expressões metafóricas encontradas foram “sou praticamente um cupim ambulante”; “eu

estou uma draga”; “sou uma formiga (formigona)”. As características projetadas no domínio-alvo

relacionam-se à maneira como o sujeito que se define lida com a comida. No primeiro caso, é ato de

60 O Quadro sintetiza as expressões metafóricas encontradas. Algumas delas repetiram-se.

61 A apresentação dos dados obedece a forma de escrita utilizada pelas autoras. Por isso, algumas

expressões aparecem grafadas com letras maiúsculas e pontuação diferenciada.

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devorar seu alimento até destruí-lo ou descaracterizá-lo; no segundo, é o ato de consumir grande

quantidade de uma só vez; no terceiro, é a predileção por doces, comumente associada à formiga.

No que se refere às expressões metafóricas em que constam avaliações negativas de si,

porém não ligadas ao consumo de comida, foram encontradas “sou uma fraude”; “estou atolada até

o pescoço”; “eu sou uma palhaça!” e “já sou palhaça e malabarista”. As características projetadas

no domínio-alvo são: a enganação promovida pela fraude; a falta de alternativas de quem está

atolado até o pescoço; o estar à mercê do riso alheio (atributo da palhaça) e de ser capaz de oferecer

divertimento aos outros (atributo do malabarista).

Analisados os sentidos das expressões metafóricas que definem o sujeito através de seus

comportamentos, chegou-se à formulação da metáfora conceptual correspondente: SUJEITO É

AÇÃO. Em todos os casos, o sujeito se define por aquilo que ele faz, a maneira como age, seja em

relação ao consumo de comida (alguém que destrói o alimento; que consome grandes quantidades;

que prefere alimentos tidos como “engordantes”), seja em relação a outros aspectos (agitação e

atividade; coragem e valentia; capacidade de enganar, de proporcionar aos demais diversão e riso).

Os resultados apontam, portanto, para mapeamentos do domínio-fonte para o domínio-alvo

(LAKOFF e JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1993; KÖVECSES, 2010) que constroem a

autodefinição do sujeito. As avaliações tanto da aparência física quanto do comportamento, via

expressões metafóricas, são muito reveladoras. Primeiramente, deve-se lembrar de que um dos

princípios fundamentais dos estudos em LC postula que a cognição é corporificada, no sentido de

que é o corpo que define as possibilidades de contato com o mundo de um modo geral. Nessa

perspectiva, o corpo do sujeito mostra-se presente na autodefinição. Foram encontradas expressões

metafóricas ligadas à aparência física – especialmente “ogrozinho”, “porpeta”, “coxinha” –, em que

as formas relacionam-se com uma configuração corporal mais robusta e arredondada, com

conotação negativa. Nos dois últimos exemplos, é a própria comida que o sujeito come que lhe

fornece atributos definidores. Nesse sentido, a metáfora conforme Silva (2006) e Yu (2008),

caracteriza-se pela forte relação com o corpo, a sociedade e a cultura, já que a gastronomia de um

modo geral é essencialmente cultural.

Pode-se afirmar que esse dado sociocultural se revela por dois aspectos: o primeiro diz

respeito à repetição das ocorrências, visto que diversas vezes os sujeitos se definiram como

“formiga”, por exemplo, o que mostra o quanto certas expressões metafóricas são já consolidadas

pelo uso, convencionalizadas pela repetição. Além disso, tanto avaliações positivas quanto

negativas, no que diz respeito à aparência física e ao comportamento, apontam para sentimentos de

autoafirmação ou reprovação também presentes na cultura ocidental. Assim, a mulher que se insere

no contexto “gordinha”, para se autoafirmar, define-se como uma diva, como a última Coca-cola

gelada no deserto, etc. Essa mesma mulher, quando reprova sua aparência, se define como um

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trapo; um ogro; uma bola, apontando para uma visão também já consolidada dos gordos em geral.

Quanto ao comportamento, ou mostra-se decidida e motivada (ligada no 220, a todo vapor, gás

total) em contextos relacionados a projetos de emagrecimento; ou mostra-se indignada com sua

falta de controle, definindo-se como cupim; fraude; draga, etc. Essas conceptualizações são

convencionais, no sentido de que revelam a ideologia e o modo de ver o mundo de um determinado

grupo de pessoas (LAKOFF e JOHNSON, 1980).

Considerações Finais

O presente trabalho tinha por objetivo analisar a utilização de expressões metafóricas e das

respectivas metáforas conceptuais ligadas à autodefinição em postagens de blogs contendo a

temática “gordinha”. Os dados coletados revelaram posturas positivas e negativas tanto em relação

à aparência física quanto ao comportamento. Tais dados permitiram que se formulassem as

metáforas conceptuais SUJEITO É FIGURA e SUJEITO É AÇÃO. Em ambos os casos, a

autodefinição toma do domínio-fonte atributos que auxiliam na conceptualização. Mais do que

localizar expressões metafóricas e apresentar metáforas conceptuais, constatou-se através dos dados

que as metáforas conceptuais estão presentes de maneira inconsciente na mente do sujeito e fazem

parte do caráter dinâmico da linguagem, que se constitui a partir das vivências, das memórias

consolidadas individual e coletivamente, por isso, são também construções culturais.

Referências

EVANS, Vyvyan; GREEN, Melanie. Cognitive Linguistics: An introduction. Hillsdale, NJ and

Edinburgh: Lawrence Erlbaum Associates/Edinburgh University Press, 2006.

FERRARI, Lilian. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

KÖVECSES, Zoltán. Metaphors: a practical introduction. 2. ed. New York: Oxford University

Press, 2010.

LAKOFF, George. The contemporary theory of metaphor. IN: Ortony, A. Metaphor and tought. 2.

ed. Cambridge: Cambridge University press, 1993.

_____. Women, fire, and dangerous things: What categories reveal about the mind. Chicago:

University of Chicago Press., 1987.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago Press, 1980.

SARDINHA, Tony Beber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

SILVA, Augusto S. O mundo dos sentidos em português: polissemia, semântica e cognição.

Coimbra: Almedina, 2006.

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YU, Ning. Metaphors from body and culture. IN: Gibbs, R. W. The Cambridge handbook of

metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

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DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA MIDIÁTICA PARA CRIANÇAS E A VISADA DE

CAPTAÇÃO

Maria Eduarda GIERING62

Resumo: Este artigo trata da divulgação científica destinada a crianças na mídia brasileira.

Estudam-se características linguístico-discursivas de artigos publicados nas versões digitais das

revistas Ciência Hoje das Crianças, Mundo Estranho e do Caderno Folhinha da Folha de S. Paulo.

O objetivo é verificar como se apresentam títulos e subtítulos e ocorrências na introdução do corpo

do texto que evidenciam a preocupação do produtor em aproximar-se do leitor, a fim de informar ou

explicar questões do mundo sob a perspectiva científica. Adotam-se, para análise, a noção de

contrato de comunicação midiática e a ideia de restrições discursivas impostas pelo contrato de

midiatização da ciência (CHARAUDEAU, 2008).

Palavras-chave: Divulgação científica. Discurso. Contrato de comunicação. Informar. Captar

Abstract: This paper deals with scientific propagation intended to children in the Brazilian media.

Linguistic-discursive characteristics of texts published in the digital versions of the magazines

Ciência Hoje da Crianças, Mundo Estranho and Folha de S. Paulo are studied. The aim is to verify

how headings and subheadings are presented, as well as aspects in the text body introduction which

evidence the producer’s concern about approaching the reader, in order to inform or explain world

issues under a scientific perspective. The notion of mediatic communication contract and the idea of

discursive restrictions imposed by the contract of science mediatization (CHARAUDEAU, 2008)

are adopted for the analysis.

Keywords: Scientific propagation.Discourse. Communication contrac. Inform. Catch.

Introdução

A divulgação científica midiática tem conquistado diferentes espaços sociais, inclusive as

escolas, e há um aumento significativo de ações da mídia com o objetivo de aproximar os saberes

produzidos pelas ciências de um público amplo. Nesse contexto, cresceu muito a divulgação

científica publicada na mídia endereçada a crianças. Poucos estudos discursivos, entretanto,

investigam quais as características dessas publicações no Brasil. Com esse intuito, publica-se o

62 Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PPGLA), Universidade do Vale do Rio dos

Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. [email protected]

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presente artigo, que se dedica à exposição de resultados de pesquisa sobre divulgação científica em

textos de revistas e cadernos de ciência direcionados aos jovens.

Este trabalho mostra algumas peculiaridades do discurso de midiatização científica dirigido ao

público entre 7 e 12 anos. O corpus, formado por 62 textos de diferentes gêneros discursivos, foi

retirado das revistas eletrônicas Ciência Hoje das Crianças e Mundo Estranho e no caderno

Folhinha do jornal Folha de S. Paulo on-line. O critério básico para seleção dos textos foi

tematizarem a ciência.

Os artigos foram analisados seguindo-se a proposta semiolinguística de Patrick Charaudeau

(2008). Adotou-se especialmente a noção de contrato de comunicação da midiatização da ciência e

a postulação de características peculiares deste contrato, as quais se traduzem em certa organização

discursiva e em procedimentos linguísticos.

A investigação procurou verificar como se revela, em publicações para o público infanto-

juvenil, a dupla finalidade dos discursos de divulgação científica midiática, conforme Charaudeau

(2006), a de informar (fazer saber) e a de captar o leitor (suscitar o interesse), considerando-se o

contrato de comunicação específico da divulgação midiática da ciência (CHARAUDEAU, 2008).

Para isso, estudaram-se características dos títulos e subtítulos e ocorrências na introdução do

corpo do texto que evidenciam a preocupação do produtor em aproximar-se do leitor, a fim de

informar ou explicar questões do mundo sob a perspectiva científica.

O contrato de divulgação científica midiático

É importante neste estudo a noção de contrato de comunicação postulado por Patrick

Charaudeau (2006). Ela pressupõe que todos os indivíduos, ao se comunicarem entre si, levam em

conta os dados da situação de comunicação, que determina a identidade social e psicológica dos

interlocutores. Explica o linguista: “a situação de comunicação é como um palco, com suas

restrições de espaço, de tempo, de relações, de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e

aquilo que constitui o seu valor simbólico” (CHARAUDEAU, 2006, p.67). Indivíduos que

pertencem a um mesmo corpo de práticas sociais constroem um jogo de regulação dessas práticas a

fim de justificá-las e de valorizá-las.

Por meio do contrato de comunicação, os parceiros de uma troca de linguagem reconhecem-

se um ao outro com os traços identitários que os definem como sujeitos desse ato (identidade),

reconhecem o objetivo do ato que os sobredetermina (finalidade), entendem-se sobre o que constitui

o objeto temático da troca (propósito) e consideram a relevância das coerções materiais que

determinam esse ato (circunstâncias).

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Focalizando o discurso de divulgação científica, Charaudeau (2008) salienta, em seus

estudos sobre midiatização da ciência, que esse discurso aparece em situações de comunicação

didáticas ou midiáticas. Por isso é fácil compreender que ele toma emprestado características de

uma e de outra, e, às vezes, das duas ao mesmo tempo. Explica o linguista:

É preciso distinguir aquilo que se inscreve numa situação de ensino daquilo que se

inscreve numa situação midiática. Pode-se até mesmo dizer que, no primeiro caso,

ele se confunde com o discurso didático, partilhando da mesma finalidade, das

mesmas posições identitárias dos sujeitos e do mesmo tipo de tema. Em

contrapartida, aparecendo em uma situação midiática, o discurso de divulgação tem

características próprias (CHARAUDEAU, 2008, p.17).

Em vista disso, Charaudeau propõe a distinção entre discurso de divulgação científica e

discurso de midiatização científica, sustentando que o primeiro, ao passar pelas mídias de

informação

não é a tradução de um discurso científico de origem, escrito por autores

especialistas em uma disciplina endereçada aos pares, mas um discurso construído

pelo órgão midiático em função da finalidade de seu contrato de comunicação

(CHARAUDEAU, 2008, p.19).

Em consequência, é possível determinar as situações específicas como variantes da situação

global midiática, caso se leve em conta a identidade dos interlocutores, cuja especificidade

repercute sobre a finalidade, o que privilegiará mais a credibilidade ou a captação.

As características particulares do discurso de divulgação científica em situação midiática,

conforme Charaudeau (2008, p.12), podem ser verificadas por meio dos componentes do contrato

de comunicação que se estabelece na interação. A identidade dos parceiros em relação à posição de

saber, contrariamente àquela do discurso científico, é acentuadamente assimétrica. Quanto ao tema

do discurso de midiatização da ciência, embora ele corresponda a um objeto de saber como nos

discursos científico e didático, vem, muito frequentemente, desatrelado da disciplina a que

normalmente se liga, pois se supõe que o público não possua um corpo de referências. Isso produz

um discurso explicativo sem possibilidade de estabelecer as marcas do domínio de conhecimento ao

qual ele pertence, destaca o linguista (CHARAUDEAU, 2008).

As circunstâncias materiais são constituídas pelos suportes por meio dos quais se faz a

transmissão da informação. No caso do corpus em estudo, trata-se de suportes em que se realiza o

escrito-visual, circunstância que coloca em cena a informação de maneira diferente da que seria se o

suporte fosse audio-oral, como é o caso do rádio, ou audiovisual, como a televisão.

Em relação à finalidade do discurso de divulgação científica midiática, ele apresenta uma

dupla finalidade discursiva, a de informar e a de captar o leitor (suscitar seu interesse), “numa

relação contraditória”, segundo Charaudeau (2008, p.17). Assim, o discurso de midiatização da

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ciência dá a conhecer ao público-leitor fatos já estabelecidos, o que faz com que o discurso

produzido procure ser explicativo (discurso didático), ao mesmo tempo em que busque produzir

suas próprias estratégias de captação (discurso midiático). Para Charaudeau (2008), a credibilidade

do discurso de divulgação científica midiática dependerá do modo como se dá o manejo dessas

estratégias.

Devido à necessidade de satisfazer a condição de captação midiática, o objeto de saber dos

artigos de divulgação científica é transformado num acontecimento e de imediato tratado segundo

as mesmas estratégias discursivas de dramatização, como um acontecimento qualquer da mídia em

geral. Procede-se, então, conforme Charaudeau (2008, p.19), a uma “dessacralização” do discurso

científico.

As características do contrato de divulgação científica midiática (doravante DCM) se

traduzem em certa organização discursiva e procedimentos linguísticos. Dessa forma, para o

linguista, os discursos DCM se submetem a quatro restrições gerais: de visibilidade, de legibilidade,

de seriedade e de emocionalidade. A restrição de visibilidade é a que leva a mídia a dramatizar os

acontecimentos. A legibilidade se caracteriza pela simplicidade sintática e lexical e pela

figurabilidade63

, que se traduz “nos procedimentos escrito-visuais de composição semiológica

paratextual” (CHARAUDEAU, 2008, p.20). A restrição de seriedade leva o discurso de

midiatização da ciência a se valer de procedimentos que buscam autentificar a instância de

produção: emprego de elementos iconográficos (gráficos, mapas, etc.), da citação, de torneios

metalinguísticos, de modos de organização descritivo e explicativo de discurso, entre outros, a fim

de mediar a passagem do discurso científico para a linguagem cotidiana do leitor. Já a restrição de

emocionalidade é marcada por todo procedimento que busca provocar efeitos afetivos. A opção por

uma organização descritiva e narrativa, por exemplo, pode apresentar a pesquisa científica como

“uma aventura em busca da verdade” (CHARAUDEAU, 2008, p.21), assim como o uso de um

vocabulário metafórico e metonímico.

O contrato midiático que envolve o corpus desta pesquisa remete fortemente à condição de

captação. Constata-se que os textos colocam em cena a informação de tal forma que essa participe

de um espetáculo que, como todo espetáculo, deve sensibilizar o leitor, conforme prevê Charaudeau

(2008) ao tratar dos discursos DCM.

Nos artigos de divulgação científica para crianças a condição de captação se apresenta de

forma contundente, pois o jornalista ou o cientista que escreve para essa faixa etária está numa

situação bastante desfavorável em relação ao seu leitor. Se o adulto precisa ser conquistado, mais

ainda essa necessidade se impõe quando o leitor é uma criança, principalmente ao se considerar que

63 O termo “figurabilidade” é tomado de Jacobi (2005, p.66), que assim denomina as características

iconográficas abundantes nos documentos de divulgação científica.

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as temáticas ligadas ao domínio das ciências (devido muito à forma como a ciência é tratada

normalmente nas escolas) são de antemão alheias aos interesses imediatos dos leitores infantis, sem

falar das dificuldades que se colocam em relação ao léxico próprio do discurso científico ou à

complexidade do tema envolvido. A instância midiática, devido a essa delicada situação, conforme

Charaudeau (2006, p.92), acha-se “condenada”, mais do que nunca, a “procurar emocionar seu

público, a mobilizar sua afetividade, a fim de desencadear o interesse e a paixão pela informação

que lhe é transmitida”.

A pesquisa

Considerando essa base teórica semiolinguística, investigou-se o corpus para identificar

elementos do contrato de comunicação. Das estratégias textuais-discursivas, estudaram-se os textos

quanto às escolhas dos produtores textuais por formas de aproximação do leitor leigo. Neste artigo,

enfocamos as formulações de títulos, subtítulos e partes do corpo do texto.

Características das publicações dirigidas ao público infantil

O corpus dirigido às crianças se caracteriza por diferentes visadas: fazer-crer (2 textos),

fazer-saber (20 textos) e fazer-compreender (35 textos).

Os artigos de fim discursivo fazer-compreender focalizam fenômenos do cotidiano do leitor

ou fatos curiosos cujas características ou funcionamento são desconhecidos dele. Os fenômenos são

desvendados pelo texto, fazendo o leitor compreender o “enigma” (Por que temos que tomar

banho?/ Por que os paleontólogos adoram encontrar excrementos petrificados de animais?). Como

afirma Coltier (1986, p.8) sobre a explicação, neste caso “o questionamento é ocasionado pela

vontade de ir além das aparências, lançando-se em busca de informações a respeito de um

fenômeno que não se deixa decifrar imediatamente”. O leitor, a partir da explicação, encara o

fenômeno sob uma perspectiva diferente. Saliente-se que os textos de fim discursivo fazer-

compreender, quanto a sua composição, organizam-se de acordo com a sequência explicativa (fase

de questionamento – fase de resolução – fase de avaliação), conforme Adam (2011).

Nos artigos de fim fazer-saber, o produtor informa sobre os resultados de uma pesquisa ou

descoberta (Sabia mais sobre o estudo que encontrou no Brasil dez espécies de fungo que produzem

luz!/ Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos atrás), valendo-

se da estrutura da notícia. Aqui, o modo de organização narrativo predomina na composição do

discurso.

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A seguir, apresentam-se exemplos de estratégias linguístico-discursivas predominantes no

corpus. Nessa exposição, após cada exemplo, acrescenta-se o fim discursivo almejado pelo texto, a

fim de esclarecer o que estava na mira do produtor em termos de informação ou explicação

científica. Ei-los:

- Títulos que remetem a conhecimentos populares:

(a) Cara de um, focinho do outro (dito) (FIGUEIRA, CHC64

)

Fim discursivo: divulgar pesquisa que deu origem ao primeiro cão clonado do

mundo.

(b) Chove chuva, chove sem parar (música) (FIGUEIRA, CHC)

Fim discursivo: divulgar pesquisa que aponta o lugar mais chuvoso do Brasil.

(c) Espelho, espelho meu (literatura infantil) (MATTOS, CHC)

Fim discursivo: divulgar pesquisa que comprovou que os elefantes se reconhecem

diante do espelho.

(d) Na segunda divisão (futebol) (LOPES, FSP)

Fim discursivo: explicar por que Plutão perdeu o título de planeta

- Títulos (ou subtítulos) com questionamento – direto ou indireto –, correspondendo

à fase de questionamento do par problema-solução dos textos cujo fim é explicar um fato ou

fenômeno do mundo pelo viés da ciência:

(a) Por que o biscoito fica mole? (SILVA, CHC)

Fim discursivo: explicar o processo químico que faz com que os biscoitos amoleçam

(c) Por que os paleontólogos adoram encontrar excrementos petrificados de

animais? (SOUTO, CHC)

Fim discursivo: explicar o objeto e a metodologia de estudo dos paleontólogos

(d) Por que o bafo é quente e o sopro é frio? (VASCONCELOS, ME)

Fim discursivo: explicar o processo biofísico do bafo e do sopro

(e) Por que as girafas fedem? (LOPES, CHC)

Fim discursivo: explicar a função biológica do mau cheiro das girafas

(f) Saiba como várias espécies produzem som e por que só alguns podem ser

ouvidos pelo homem (MEWS, C.M.; SZINWELSKI – CHC)

Fim discursivo: informar sobre como várias espécies de insetos produzem sons e o

porquê de apenas alguns se tornarem audíveis pelo homem.

64 Na exposição dos exemplos, para melhor identificação, após o sobrenome do autor, faz-se

referência ao veículo do qual foi extraído: Ciência Hoje das Crianças (CHC), Mundo Estranho (ME), Folha

de S. Paulo (FSP).

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- Títulos com frases exclamativas que afetam emocionalmente o leitor

(a) Não pise no co...prólito! (SOUTO, CHC)

Fim discursivo: explicar o objeto e a metodologia de estudo dos paleontólogos

(b) Descoberta de gente grande! (CHAGAS, CHC)

Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na

Ilha do Marajó

(c) Estrelas não caem! (GONÇALVES, CHC)

Fim discursivo: explicar como os meteoros se desintegram ao entrar na superfície

terrestre

(d) Raios! (MAGALHÃES, CHC)

Fim discursivo: explicar o que são os raios e como se proteger deles.

- Subtítulos que enfocam uma dramatização, seguido de uma narrativa

(a) Senhoras e senhores, com vocês o papa-vento, um novo lagarto descoberto aqui

no Brasil! (MATTOS, CHC)

Fim discursivo: divulgar a descoberta de um tipo de lagarto no serrado brasileiro.

(b) Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos

atrás! (CHAGAS, CHC)

Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na

Ilha do Marajó

(c) Com vocês...um dinossauro com penas e plumas! (MOLICA, CHC)

Fim discursivo: divulgar a descoberta no Brasil de um fóssil que apresenta tanto

características de aves quanto de dinossauros.

(d) Naves invadem solo marciano (NOGUEIRA, FSP)

Fim discursivo: informar sobre envio de robôs ao planeta Marte.

- Subtítulos com o emprego do verbo no modo imperativo, implicando especialmente uma demanda

cognitiva do leitor:

(a) Entenda o que são os meteoros e como eles se desintegram ao entrar na

atmosfera (GONÇALVES, CHC)

(b) Descubra como a nata se forma e do que ela é feita (SILVA, CHC)

(c) Aprenda mais sobre as funções desse ato (piscar) que não serve só para

paquerar (CORREA, CHC)

- No corpo do texto, introduções que caracterizam uma fase de “preparação” do leitor, cujo

objetivo é fazê-lo interessar-se pelo tema ou pela leitura do texto por meio de:

(a) Relato de história pessoal

Estrelas não caem!

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Entenda o que são os meteoros e como eles se desintegram ao entrar na atmosfera

Quando morava em S. Paulo e acordava cedo, bem de madrugada, lá pelas 5h30,

para correr um pouco sem o intuito de competir, eu reparava muitas vezes, quando

olhava para o céu, que de repente uma estrela “caía”. E eu, todo contente, na

hora fazia um pedido: na maioria das vezes, o meu desejo era ver outro desses

objetos.

Aí vinha-me uma pergunta: por que uma estrela cai? O que são as “estrelas

cadentes”? Uma estrela que não aguentou seu peso e de repente caiu? Ou será

que Deus pegou uma estrela, pois estava sobrando no céu, e a “jogou”? Ou talvez

fosse um controle de população de estrelas, para não ficarem muitas por aí

atrapalhando as constelações… É só de vez em quando que vemos umas dessas

cruzar o céu… Mas será que são mesmo estrelas? E o nosso Sol, será que um dia

vai “cair”? [...] (GONÇALVES, CHC)

Fim discursivo: explicar como os meteoros se desintegram ao entrar na superfície

terrestre

(b) Relato de história em que o leitor é colocado como protagonista:

Descoberta de gente grande!

Crianças encontram pedaços de urnas funerárias indígenas de muitos séculos

atrás

Imagine a cena: você está brincando com seus amigos em um rio, quando encontra

alguns pedaços de cerâmica com desenhos indígenas. Como eles parecem meio

velhos e desgastados para você dar de presente à sua mãe, a melhor opção, à

primeira vista, é devolvê-los ao lugar de onde vieram. Você faz isso várias e várias

vezes e já está até ficando intrigado com as descobertas. Resolve, então, levar os

pedacinhos para a escola.

Desconfiado, o diretor pede para que você comece a guardar tudo o que pegar nos

rios. Pouco tempo depois, um geólogo (profissional que estuda a origem e

constituição da Terra) passa por lá e descobre que os pequenos pedaços faziam

parte de urnas mortuárias ‐ usadas para enterrar os mortos ‐ produzidas por

índios de centenas de anos atrás! Parece um filme ou história em quadrinhos? Mas

é verdade! Aconteceu com alguns meninos da ilha de Marajó, no Pará, que

costumavam brincar às margens do rio Araramã. [...] (CHAGAS, CHC)

Fim discursivo: divulgar a descoberta de urnas funerárias indígenas por meninos na

Ilha do Marajó

(c) Questionamento da validade de saberes anteriores:

Por que conhecer os dinos?

Estudar essas criaturas hoje ajuda a entender o mistério da vida no planeta em

que vivemos

Tá bom, dinossauros são legais, impressionantes, mas não passam de um monte de

ossos velhos, certo? Bem, até alguns anos atrás, era mais ou menos isso, sim. Mas,

hoje, os pesquisadores olham para os dinos de outro jeito. Estudar esses bichos

extintos é uma das tarefas mais emocionantes da ciência.

[...] (ANGELO, FSP)

Fim discursivo: explicar porque é importante para a ciência estudar os dinossauros

(d) Referência a temas e situações supostamente já conhecidas do leitor:

Cara de um, focinho do outro

Conheça Snuppy, o primeiro cachorro clonado do mundo

Snoopy, você conhece: é o cachorro do Charlie Brown, um beagle que tem como

melhor amigo um pássaro chamado Woodstock. Mas será que já ouviu falar no

Snuppy (repare na grafia diferente do nome)? É provável. Esse simpático filhote

da raça afghan hound virou notícia. Adivinhe por quê! [...] (FIGUEIRA, CHC)

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Fim discursivo: divulgar pesquisa que deu origem ao primeiro cão clonado do mundo

Ciência para fazer bolo

Três xícaras de farinha de trigo, três xícaras de açúcar, três ovos, um copo de

leite, uma colher de manteiga e uma colher de fermento. Bata a manteiga com o

açúcar até formar uma pasta. Depois, acrescente as gemas. Vá adicionando a

farinha, o fermento e o leite sem parar de mexer. Como última etapa, bata as

claras em neve e misture tudo. Coloque a massa em um tabuleiro e leve-a ao forno

pré-aquecido. Em alguns minutos você poderá saborear um apetitoso bolo! Mas

como foi que aquela massa viscosa mudou de aparência, transformando-se numa

delícia de dar água na boca? [...] (MAGALHÃES, CHC)

Fim discursivo: explicar o processo químico que transforma ingredientes em um bolo

- Avaliações emotivas de um objeto ou ser ou de uma ação, com frequente uso de frases

exclamativas:

(a) Com uma bússola no bico

[...] É, os pombos-correios são mesmo bichos incríveis. Vai dizer que você não

ficou com vontade de trocar seu carteiro ou e-mail por um animal desses?!

(PEGORIM, CHC)

Fim discursivo: divulgar pesquisa que descobriu como os pombos-correios se

orientam

(b) Por que conhecer os dinos?

Tá bom, dinossauros são legais, impressionantes, mas não passam de um monte de

ossos velhos, certo? Bem, até alguns anos atrás, era mais ou menos isso, sim. Mas,

hoje, os pesquisadores olham para os dinos de outro jeito. Estudar esses bichos

extintos é uma das tarefas mais emocionantes da ciência. (ANGELO, FSP)

Fim discursivo: explicar por que é importante para a ciência estudar os dinossauros

(c) Não pise no co…prólito!

[...] Aqui no Brasil, já foram encontrados vários coprólitos de diferentes animais,

como dinossauros e mamíferos extintos. Eles variam de um a 20 centímetros e têm

as mais variadas formas e cores. Agora, abra o olho para não pisar num coprólito!

Se encontrar algum por aí, anote o local onde ele está enterrado e avise a um

paleontólogo. Acredite, ele vai adorar! (SOUTO, CHC)

Fim discursivo: explicar o objeto de estudo e a metodologia de pesquisa dos

paleontólogos

- Emprego do pronome você, visando ao reconhecimento do leitor como alvo do apelo do produtor:

(a) Vamos supor que você seja contratado para investigar a vida de algum animal.

Qual seria seu primeiro passo? Procurar pegadas? Ossos? Se você permite que eu

dê uma sugestão... Que tal tentar encontrar os excrementos desses animais? É isso

mesmo, o cocô! (SOUTO, CHC)

(b) […] Se, depois de ouvir essa história, você ficou interessado em procurar esse

pesquisador para clonar o seu cachorro... Esqueça! […] (FIGUEIRA, CHC)

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- Uso do recurso do humor no contexto das vivências infato-juvenis

(a) Por que as girafas fedem?

[…] Mas lembre-se bem: o mau-cheiro das girafas pode trazer benefícios para

elas, mas isso não significa que vá fazer bem pra você também! Portanto, nem

adianta dizer pra sua mãe que leu no site da Ciência Hoje das Crianças que o

fedor protege, porque o exemplo das girafas não é desculpa pra fugir do banho...

(LOPES, G., CHC)

Fim discursivo: explicar a função biológica do mau cheiro das girafas

(b) Por que piscamos?

Aprenda mais sobre as funções desse ato que não serve só para paquerar

[…] Se você vai responder que pisca para paquerar, saiba que existem outros

motivos que justificam esse abrir e fechar de olhos que realizamos naturalmente.

Com esse simples reflexo, lubrificamos nossos olhos e os protegemos de corpos

estranhos presentes no ar. (CORREA, CHC)

Fim discursivo: explicar as funções biológicas do reflexo de piscar

Observando-se os trechos transcritos dos artigos destinados ao público infantil, nota-se que

os produtores, especialmente os da Ciência Hoje das Crianças, recorrem a variadas estratégias de

aproximação do leitor, nas quais buscam, antes de mais nada, despertar-lhe o interesse pelo tema.

Às vezes, inclusive, implicam diretamente seu destinatário por meio de marcas linguísticas

específicas. Destaca-se também a recorrência de frases interrogativas e exclamativas, que objetivam

principalmente a demanda de informação ou de conhecimento. Salienta-se ainda a preocupação em

assinalar avaliações emotivas de ações empreendidas pelo cientista ou dos objetos que investiga.

Considerações finais

É importante considerar que prevalece atualmente a ideia, como destaca Jacobi (2005), de

que os leitores não são absolutamente ignorantes em relação aos temas postos. Na verdade, segundo

esse linguista, os textos de divulgação científica costumam estabelecer dois modos de relação com

os saberes anteriores dos leitores. “Eles buscam, por um lado, apoiar-se sobre as representações dos

destinatários e, por outro, confirmar ou contradizer essas representações” (JACOBI, 2005, p.33).

Para Jacobi, a divulgação científica estabelece um jogo ambíguo frente às representações populares:

“De um lado, ela pretende destruí-las ao afirmar que elas são errôneas; de outro, a divulgação

científica não se priva de se apoiar nelas, na verdade, de se utilizar delas nas comparações,

metáforas, no recurso de registro familiar da língua” (JACOBI, 2005, p.35). É o que se constata nas

opções de aproximação projetadas pelos produtores nos artigos do corpus.

Quando se relacionam as estratégias descritas às restrições do contrato de midiatização da

ciência postulados por Charaudeau, verifica-se que a restrição de emocionalidade se impõe em

maior grau.

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Nos artigos DC dirigidos ao público adulto (GIERING, 2008), a relação com o leitor se dá

diferentemente. Por exemplo, o produtor raramente implica o leitor por meio do pronome você, ou

pelo uso de verbos no imperativo. Ele raramente faz uso da primeira pessoa para o relato de uma

experiência pessoal, tampouco assinala no texto avaliações emotivas de um objeto ou ser ou de uma

ação, como acontece no corpus infantil. Na verdade, nos artigos endereçados ao público adulto, o

discurso acadêmico exerce influência mais forte do que nos artigos para crianças, embora também

se observe a pressão da condição de captação, como não poderia deixar de ser já que se trata de

discurso midiático. Mas a condição de seriedade prevalece, e informação é privilegiada.

Ao se comparar o corpus de artigos dirigidos a adultos com o direcionado ao público

infantil, constata-se que escrever sobre ciência para crianças “dá mais trabalho” ao produtor, pois

ele precisa mobilizar estratégias peculiares, muitas delas dispensáveis quando se trata de público

adulto. É o caso das avaliações emotivas de objetos ou fenômenos do mundo natural ou de ações

investigativas de cientistas. Esse tipo de estratégia assim como as demais descritas na análise se

justificam pela necessidade de captar o leitor para ganhar credibilidade. Charaudeau (2010) explica:

É preciso que os sujeitos falantes ganhem em credibilidade e saibam captar o

interlocutor ou o público. Ele65

é, então, levado a apostar na influência, se valendo de

estratégias discursivas em quatro direções: 1) o modo de estabelecimento de

contato com o outro e o modo de relação que se instaura entre eles; 2) a construção

da imagem do sujeito falante (seu ethos); 3) a maneira de tocar o afeto do outro para

seduzi-lo ou persuadi-lo (o pathos) e 4) os modos de organização do discurso que

permitem descrever o mundo e explicá-lo segundo os princípios da veracidade (o

logos).

Os exemplos demonstram a opção por estratégias que buscam influenciar o leitor, a fim de

provocar-lhe emoção e de seduzi-lo para a leitura do restante do texto. É intuito, além disso,

sensibilizá-lo para os temas científicos, que, afinal, são mostrados à criança como não tão distantes

de seu mundo. Trata-se, segundo Charaudeau (2010), de um processo de dramatização. Destaca-se

também o empenho dos produtores em construir uma imagem de si como alguém que é carismático,

que conhece o mundo do leitor, e que, por isso, merece sua atenção.

Para o produtor do artigo DC midiático dirigido às crianças, o empenho em envolvê-las por

meio de estratégias de captação coloca-se como tarefa crucial, pois as características desse parceiro

exigem escolhas linguístico-discursivas adequadas aos efeitos pretendidos para a satisfação do

princípio de emoção, visando à descrição credível de um mundo inusitado a partir do universo de

conhecimento e de vivência do leitor. O produtor precisa construir uma relação com seu destinatário

em que se coloca como aquele que conhece o mundo de uma perspectiva nova e que convida o

leitor a compreender esse mundo extraordinário e a desvendar ele mesmo seus mistérios.

65 Charaudeau refere-se, aqui, ao enunciador.

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Pode-se dizer que a divulgação científica midiática para crianças tem características muito

particulares, constituindo um contrato de comunicação peculiar, de forma a seduzir os pequenos

para o mundo da ciência e seus desafios.

Referências

ADAM. Jean-Michel. A linguística textual. Introdução à análise textual dos discursos. 2. ed. S.

Paulo: Cortez, 2011.

ANGELO, Claudio. Por que conhecer os dinos? Caderno Folhinha. Folha de S. Paulo on line.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/dicas/di21010607.htm Acesso em: 26 nov

2007.

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ESTEREÓTIPOS DO BRASILEIRO EM PIADAS

Ana Cristina CARMELINO66

Resumo: Partindo da premissa de que existe piada de brasileiro, assim como ocorre com algumas

nacionalidades, este artigo objetiva demonstrar que estereótipos ou traços identitários são

construídos pelo (para o) brasileiro nesse tipo de produção textual que envolve o tema e que circula

no Brasil em diferentes mídias (impressa e virtual). O referencial teórico que fundamenta as

análises advém da Análise do Discurso, especialmente a partir das noções de identidade e

estereótipo tratadas por Penna (1997), Possenti (1998, 2010) e Amossy e Pierrot (2001).

Palavras-Chave: Identidade. Estereótipo. Piada de brasileiro.

Abstract: Assuming that there is joke about the Brazilian people, as well as about some other

nationalities, this article aims at demonstrating that stereotypes or identifying features are

constructed by (for) the Brazilian in this type of textual production that involves the theme and

circulates in Brazil in different media (print and virtual). The theoretical framework underlying the

analysis comes from the Discourse Analysis, especially from notions of identity and stereotype used

by Penna (1997), Possenti (1998, 2010) and Amossy e Pierrot (2001).

Keywords: Identity. Stereotype. Joke about the Brazilian people.

Em questão a piada e a nacionalidade

Peculiarmente anônima, a piada caracteriza-se por ser um texto narrativo (seja num diálogo, seja

num par pergunta/resposta) de humor, que traz como traços a brevidade e o final inesperado. De acordo

com Brewer (2000, p.133), tratando de “contingências e tensões da vida comum”, essa produção

aborda “alguma adversidade curiosa, incongruência ou réplica inteligente, personificando e atraindo

um grupo de pessoas de gostos parecidos”.

Além de integrar a cultura mais geral do humor em uma sociedade, constituindo-se (até

certo ponto) um indicador do que nela se entende como engraçado, as piadas – conforme atestam os

estudos de Possenti (1998, 2010) e Carmelino (2009, 2011, 2013) – podem (i) escancarar

comportamentos não admitidos pelas normas sociais explícitas, mas praticados graças à hipocrisia;

66 Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Guarulhos,

São Paulo, Brasil. Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo

(UFES), Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: [email protected].

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(ii) dissimular, expressando efeitos de verdade; e (iii) levar a reflexões sobre práticas socialmente

enraizadas na cultura de um povo, sobre modos de ser, sobre representações identitárias.

O fato de as piadas servirem como fonte de veiculação de traços identitários (e serem,

portanto, um material rico para se estudar a representação) não é novidade. Sabe-se que as piadas

frequentemente operam com estereótipos. Essas considerações são claras quando se observa a

forma como algumas nacionalidades são refletidas (simbolicamente) nesse tipo de produção:

a) O francês é sujo

(1) _ Quantas roupas íntimas os franceses têm no guarda roupa?

_ 12. Uma pra cada mês. Fonte: Piadas Engraçadas. Disponível em: <http://www.piadasnet.com/piada771franceses.htm>. Acesso em:

25/09/2014

b) O argentino é arrogante

(2) _ Qual o melhor negócio do mundo?

_ Comprar um argentino pelo que ele vale e depois vendê-lo pelo que ele pensa que vale. Fonte: Clickgrátis piadas. Disponível em:

<http://www.clickgratis.com.br/piadas/nacionalidades/argentino/melhor-negocio.html>. Acesso em: 25 set.

2014.

c) O japonês tem pênis pequeno

(3) _ Por que todo japonês é inteligente?

_ Porque eles têm um micro entre as pernas. Fonte: Piadas curtas. Disponível em: <http://www.piadascurtas.com.br/piadas-de-japones>. Acesso em: 25 set.

2014.

d) O português é burro

(4) _ Por que o Manuel só usa roupa molhada?

_ Porque na etiqueta vem escrito: “lave e use”. Fonte: Amor e paixão. Disponível em: <http://www.amorepaixao.com.br/piadas.htm>. Acesso em:

25 set. 2014.

e) O turco é avarento

(5) _ O cara diz pro turco:

_ Seu Nassib, por que o senhor chama seu filho de Par, se o nome dele é Gaspar?

E o turco:

_ Pra economizar o gás, senhor! Fonte: Piadas do dia. Disponível em: <http://www.piadasdodia.com.br/mostrapiada.asp?id–piada=6265>.

Acesso em 25 set. 2014.

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Os exemplos mostram nitidamente traços identitários estereotipados de cada país posto em

questão (França, Argentina, Japão, Portugal e Turquia). Considerando-se que aspectos da

nacionalidade (amparados ou não no real) são comumente explorados em produções humorísticas,

busca-se, neste texto, demonstrar quais traços identitários são construídos para o (pelo) brasileiro

em piadas que envolvem tal tema e que circulam no país em diferentes meios de difusão (mídia

impressa e virtual).

Embora não seja atribuído ao brasileiro um rótulo, nota-se que a população do país é

representada com características que evidenciam aspectos socioculturais. Dados que certamente

refletem manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados no país. Veja-se a piada que

segue:

(6) Incêndio

Incêndio no edifício da multinacional. Executivos de diversos países estão em reunião no

vigésimo oitavo andar. Tomado pelo desespero, o executivo inglês grita, em cima do

parapeito da janela:

_ Pela Inglaterra! E pula.

Momentos após, o executivo alemão entra em pânico também e pula, não sem antes

proclamar:

_ Pela Alemanha!

O executivo brasileiro, ao verificar que ainda há energia elétrica no prédio, lança o seu

brado:

_ Pelo elevador! Fonte: SARRUMOR, L. Mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 1998. p.82.

Nesse exemplo, observa-se que (numa comparação com as outras duas nacionalidades) o

brasileiro é construído como esperto, sagaz (no sentido de ser o mais atento, inteligente), por isso

leva vantagem em relação ao inglês e ao alemão, garantindo-se vivo.

Não há dúvida de que se trata de uma anedota que envolve o brasileiro. Nesse caso (e em

outros do mesmo tipo), tem-se defendido (CARMELINO, 2014) que se está diante de uma “piada

de brasileiro”. A questão parece óbvia, porém não insignificante. Piada de brasileiro pode se referir

a piada contada/criada por brasileiro ou a piada contada/criada por não brasileiros. Na verdade, o

que deve ficar claro aqui é que o importante não é a origem geográfica de quem conta ou cria a

piada, mas o tipo de discurso que nela é veiculado. O que de fato interessa é a posição em relação à

brasilidade que as piadas materializam, ou seja, os discursos aí veiculados.

Como base nisso, o referencial teórico que fundamenta as análises empreendidas, neste

texto, é discursivo. Busca-se discutir o caso das piadas que envolvem o brasileiro especialmente a

partir das noções de identidade (PENNA, 1997), estereótipo (AMOSSY; HERSCHBERG-

PIERROT, 2001) e identidade-estereotipada (POSSENTI, 2010). Dados explorados no item que

segue.

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Identidade, estereótipo ou identidade-estereotipada: o caso da piada

Embora abordada por diferentes áreas do conhecimento, a noção de identidade que interessa

às reflexões aqui propostas foi formulada por Penna (1997), que busca atribuir à questão um

tratamento discursivo. Compartilhando do conceito de identidade social proposto por Gumperz

(1982)67

, Penna considera não apenas que a identidade se relaciona aos processos de apreensão do

mundo social e é constituída por meio da linguagem, mas, também, que ela é representada

(imaginária).

Em oposição à proposta de Gumperz – que, além de centrada a uma concepção de

linguagem restrita à interação verbal, limita a pesquisa identitária apenas a traços culturais: o

estudioso entende que a realidade social modifica-se apenas em um contexto marcado por

diferenças culturais, pois estas afetam diretamente o processo comunicativo –, Penna assume a

necessidade de extrapolar elementos que se situam somente em práticas culturais, já que, além

deles, é importante considerar aspectos históricos na questão da identidade.

Assim, ao reformular e ampliar a definição de identidade proposta por Gumperz (1982),

considerando que os traços identitários bem como a representação da própria identidade são

construídos historicamente, Penna delimita seu próprio conceito de identidade social, que, segundo

ela, está ligado à noção de representação e a uma forma de classificação.

Entender a identidade como representação significa considerá-la uma construção simbólica

(imaginária), que – tendo ou não amparo no real – leva em conta aspectos que refletem indivíduos

ou grupos. Tal construção é direcionada de acordo com interesses, valores e referenciais sociais

disponíveis; constitui-se na própria sociedade, ao longo da história, sendo moldada conforme as

características culturais do grupo ou sociedade. Não se trata, contudo, de uma condição, espécie de

essência do indivíduo, da sociedade.

Com relação à forma de classificação, Penna (1997) destaca que o fato de se considerar a

existência de identidades sociais já delimita grupos, cria espaços específicos. Nesse cenário,

percebe-se um jogo de reconhecimento social que leva em conta o valor que é atribuído a uma

determinada classe ou grupo e o caminho para fazer ou não parte dela/dele.

Tal qual a noção de identidade – proposta por Penna (1997) e assumida aqui –, o conceito de

estereótipo também pode ser concebido como social, imaginário, construído. Segundo Amossy e

Herschberg-Pierrot (2001), os estereótipos são “representações cristalizadas, esquemas culturais

preexistentes, através dos quais cada um filtra a realidade que o envolve”68

(p.32 – tradução nossa).

67 Conceito desenvolvido na perspectiva da Sociolinguística Interativa.

68 “Se trata de representaciones cristalizadas, esquemas culturales preexistentes, a través de los

cuales cada uno filtra la realidad del entorno” (p.32)

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Definido como uma imagem coletiva, simplificada e rígida (cristalizada) de algo (pessoa,

grupo, assunto) – imagem esta que resulta de expectativas, hábitos de julgamento ou falsas

generalizações recorrentes na sociedade –, o estereótipo geralmente é relacionado à noção de

preconceito, sendo tratado de um ponto de vista negativo.

Retomando-se algumas piadas de nacionalidades mencionadas no início deste texto, nota-se

o rótulo negativo que se instaura em moradores de certos países: o francês é considerado sujo, o

português é tido como desprovido de inteligência, o argentino é mostrado como arrogante.

No entanto, essa não é a única leitura que se faz do termo. Os estereótipos também podem

promover a categorização valorativa (rápida e fácil) de grupos sociais. Segundo Amossy e

Herschberg-Pierrot (2001), que tomam como base os estudos da Psicologia Social, os estereótipos

podem cumprir funções importantes na vida social. Desse modo,

[...] seria um equívoco considerar apenas o lado negativo do estereótipo [...], os

psicólogos sociais reconhecem o caráter inevitável, inclusive indispensável, do

estereótipo, o qual não é apenas uma fonte de erros e preconceitos, mas também

um fator de coesão social, um elemento construtivo na relação do homem consigo

mesmo e com o outro69

(p.47 – tradução nossa).

Como se vê, o estereótipo tem um impacto na identidade social. Ao mostrar uma

categorização valorativa de um grupo, ele pode funcionar como um fator de identificação do

indivíduo com esse grupo: o indivíduo adere ao estereótipo, “expressa de alguma forma

simbolicamente sua identificação a uma coletividade” (p.48 – tradução nossa)70

. Nesse sentido, o

estereótipo é um fator preponderante de identificação do indivíduo com um grupo, e por isso, de sua

própria identidade. É o que se verifica em:

A adesão a uma opinião estabelecida, a uma imagem compartilhada, permite, além

disso, que o indivíduo indiretamente anuncie a adesão ao grupo de que deseja

participar. [...] Ao fazer isso, substitui a tarefa de julgamento pelos modos de

pensar do grupo de que quer fazer parte. Reivindica implicitamente, em troca, o

reconhecimento de seu pertencimento71

(p.48 – tradução nossa).

69 “[…] sería equivocado considerar sólo el lado negativo del estereotipo. [....] los psicólogos

sociales terminan por reconocer el carácter inevitable, e incluso indispensable, del estereotipo, que no sólo es

fuente de errores y de prejuicios, sino también un factor de cohesión social, um elemento constructivo en la

relación del ser humano consigo mismo y con el otro” (p.47) 70

“expresa de algún modo simbólicamente su identificación a uma colectividad” (p.48). 71

“La adhesión a una opinión establecida, una imagen compartida, permite además al individuo

proclamar indirectamente su adhesión al grupo del que desea formar parte. [...] Al hacerlo, sustituye el

ejercicio de su propio juicio por las formas de pensar del grupo al que le importa integrarse. Reivindica

implícitamente como contrapartida el reconocimiento de su pertenencia” (p.48).

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Das anedotas citadas, a esperteza do brasileiro pode ser considerada como uma valoração

positiva na representação estereotípica. Outro caso é a piada de japonês. Apesar de posta ao lado de

uma categorização negativa (ter pênis pequeno), a inteligência é um traço explicitamente ressaltado

na construção do japonês (“Por que todo japonês é inteligente?”).

Amossy e Herschberg-Pierrot (2001) assinalam também que, assim como o estereótipo pode

servir para integrar socialmente o indivíduo, ele também pode ser um fator de diferenciação entre

grupos. A partir de uma categoria específica, um grupo distingue o que é dele próprio e o que está

fora dele. Essa consideração se aproxima da de Penna (1997), quando a autora trata da classificação

como um elemento constituinte da noção de identidade.

Esse dado é notável nos discursos em geral, mas adquire maior destaque no discurso

humorístico, tendo em vista que, nesse caso, as marcas estereotípicas pejorativas são

exageradamente assinaladas, constituindo, muitas vezes, a causa do riso. A título de exemplo,

retoma-se o caso do turco, caracterizado nas piadas como avarento, mesquinho (ou, como se diz no

Brasil, “mão de vaca”, “pão-duro”, “canguinho”).

Ainda no que tange à relação entre identidade e estereótipo, especialmente no discurso

humorístico, Possenti (2010) defende a hipótese de que a identidade (ou a representação identitária)

é “sempre representada nas piadas através de estereótipos” (p.39). Nesse sentido, como bem ressalta

o autor, as piadas e anedotas constituem uma forma (extremamente rica) de abordagem da questão

da identidade-estereotipada.

A essas considerações, Possenti acrescenta que as piadas geralmente opõem dois discursos:

um positivo e um negativo. Isso também pode ser visto em relação aos estereótipos. Nas anedotas,

ao lado de um estereótipo básico (assumido pelo grupo), há um oposto (atribuído pelos outros). Os

estereótipos opostos, para o autor, “são construtos produzidos por aquele(s) que funciona(m) como

o(s) Outro(s) para algum grupo” (p.41); trata-se, geralmente, de um simulacro, um efeito necessário

da relação interdiscursiva.

Assim, nas piadas que refletem aspectos da nacionalidade, como as citadas, haveria sempre

discursos e estereótipos em oposição: (1) sujo/asseado; (2) arrogante/modesto, (3) pênis pequeno/

pênis grande/normal, (4) burro/inteligente, (5) avarento/generoso, esbanjador, (6) esperto/bobo.

No entanto, essa relação interdiscursiva geralmente é ofuscada ou apagada, criando-se o

efeito de que “o estereótipo é universal, que não tem condições históricas de produção, ou pelo

menos, que essas condições não incluem as efetivas relações de confronto com uma alteridade”

(POSSENTI, 2010, p.41).

Admitindo-se que as condições para a construção da representação identitária e os elementos

nela articulados estão intimamente vinculados às condições de existência, à cultura, à História e às

relações sociais nas quais o indivíduo (ou o grupo) encontra-se inserido, tanto as considerações

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sobre identidade, tecidas por Penna (1997), quanto às sobre estereótipo, tratadas por Amossy e

Herschberg-Pierrot (2001), e as de identidade-estereotipada, refletidas por Possenti (2010), ajudam

a entender melhor os traços identitários do brasileiro que se refletem nas piadas sobre o tema.

Traços identitários estereotipados do brasileiro: um estudo em piadas

A presença do brasileiro em piadas é uma constante. No entanto, não se vê em obras

especializadas e sites de humor o rótulo “piada de brasileiro”, como ocorre com algumas

nacionalidades (“piada de português”, “piada de argentino”, “piada de turco”). A explicação para

isso talvez esteja no fato de que certas nacionalidades veiculam no imaginário um traço identitário

mais saliente (argentino > arrogante; português > burro; turco > avarento), capaz de estereotipá-las.

Embora não haja um estereótipo do brasileiro em piadas, verifica-se que a população do país

é retratada com traços que evidenciam certas marcas socioculturais. Um levantamento feito nesse

tipo de produção humorística revela o brasileiro como: alto, atento, calculista, contador de

vantagem, contraventor, corajoso, corrupto, dissimulado, eficiente (quente) sexualmente,

engraçado (gozador), esperto (saga), folgado, ganancioso, golpista, incrédulo, inteligente,

interesseiro, leva vantagem, malandro, malicioso, não leva desaforo, obcecado por sexo,

oportunista e só pensa em sacanagem (Cf. Carmelino, 2014). Vejam-se algumas dessas

representações nos exemplos que seguem.

(7) Argentino, boliviano e brasileiro

_ Ontem à noite fiz amor com a minha mulher quatro vezes seguidas, disse o argentino e, de

manhã, ela me disse que me amava muito!

_ Ah, ontem à noite fiz amor com a minha seis vezes, disse o boliviano, e de manhã ela fez

um delicioso café da manhã e disse que eu era o homem da vida dela...

Como o brasileiro ficou calado, o argentino perguntou:

_ Quantas vezes é que fez amor com a sua mulher ontem à noite?

_ Uma. Respondeu o brasileiro.

_ Só uma? Exclamou o boliviano. – E de manhã, o que é que ela disse?

_ Fica aí, não para não, que tá muito bom! Fonte: Os Vigaristas. Disponível em: <http: www.osvigaristas.com.br/piadas/argentino-o-boliviano-e-o-

brasileiro-3141.html>. Acesso em: 25 set. 2014.

No caso acima, o brasileiro é construído como um amante fogoso e eficiente. Diga-se mais

disposto sexualmente que outros, no caso o argentino e o boliviano. Se o argentino e o boliviano se

mostram capazes de fazer amor com suas esposas algumas vezes em uma mesma noite (quatro e

seis vezes), o brasileiro surpreende (e supera as expectativas), visto que faz amor apenas uma única

vez com sua mulher, no entanto o ato dura toda a noite.

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A eficiência e a disposição sexual do brasileiro, salientadas no final da piada, são atestadas

diretamente pela esposa que diz “Fica aí, não para não, que tá muito bom!”. Nesse sentido, o que

está em jogo para o brasileiro não é quantidade de vezes que se faz amor, mas, sim, a intensidade e

a duração do ato.

Além da brasilidade estar associada ao vigor sexual, nessa piada se depreendem outros

aspectos identitários: a constituição de um brasileiro esperto (que se sai melhor que o argentino e o

boliviano) e, de certa forma, contador de vantagem (dado visto no exagero da duração do ato

sexual, a noite toda). Esses traços constroem para o brasileiro um tipo com características bem

definidas, o estereótipo do “bom de cama”.

(8) Aposta

Próximo a um lago de água geladíssima estavam um brasileiro, um americano e um francês.

Na outra margem, dois amigos conversavam:

_ Eu te dou cem pratas se você conseguir fazer com que aquelas três pessoas pulem nessa

água gelada.

O outro, sem perder tempo, foi logo falar com os três turistas.

Após algum tempo, os três pularam na água.

Aí o outro perguntou.

_ Tudo bem, eu te pago os cem, mas me conta: como você fez pra eles pularem?

_ Fácil! Pro americano, eu disse que era lei. Pro francês, que era moda. E pro brasileiro, eu

disse que era proibido! Fonte: AVIZ, L. As melhores piadas que circulam na internet e as que ainda vão circular. Rio de Janeiro:

Record, 2001. p.57.

Nessa anedota, o brasileiro é mostrado como contraventor (infrator, violador das regras), já

que o motivo que o leva a pular na água gelada é justamente o fato de ser esta uma ação proibida.

Esse texto de humor funciona como uma espécie de arma de denúncia. Busca –

simbolicamente a partir de uma ação (“pular na água gelada”) – desvelar posicionamentos (modos

de ver, de se comportar) arraigados em três culturas: o americano segue rigorosamente as leis, o

francês segue a moda e o brasileiro desrespeita as regras. O brasileiro é estereotipado como

malandro.

(9) Pane

O avião está em pane, prestes a cair. A tripulação, composta por um francês, um português,

um americano e um brasileiro, dispõe apenas de três paraquedas.

O primeiro a saltar é o francês. Logo em seguida, o português coloca o paraquedas e pula

também. O brasileiro, rapidamente vai colocando o outro paraquedas, quando o americano

lhe diz:

_ Escute, eu sou um alto-executivo de uma multinacional, eu não posso morrer agora. Eu lhe

ofereço cem mil dólares, agora, em dinheiro, por esse paraquedas.

_ Negócio fechado! – concorda o brasileiro, sorrindo, e apanha o dinheiro.

O americano, colocando o paraquedas, comenta:

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_ Você nem parece que vai morrer. Por que está tão sorridente?

_ Porque hoje eu lucrei cento e cinquenta mil dólares!

_ Como assim?

_ Antes de você, eu havia vendido a minha mochila por cinquenta mil ao português! ... Fonte: SARRUMOR, L. Mil piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 1998. p.153-154.

No exemplo (9), o brasileiro é visto como malandro/esperto (sai-se bem quando o avião

entra em pane: além de manter-se vivo, ganha com o ocorrido), calculista (interesseiro, leva

vantagem sobre o português e o americano), ganancioso/ambicioso (lucra em exagero ao vender um

paraquedas por cem mil dólares e uma mochila, por cinquenta), golpista (engana o português ao

vender-lhe uma mochila no lugar de um paraquedas). Os traços identitários em conjunto levam à

construção estereotipada do brasileiro como oportunista: o que sabe tirar proveito em determinadas

circunstâncias em benefício de seus interesses.

(10) Último pedido

Um italiano, um francês e um brasileiro, foram condenados à morte. Chegaram perto do

Italiano e perguntaram:

_ Antes de morrer, qual é o seu último pedido? O italiano respondeu:

_ Quero comer pizza!

Deram a pizza pro italiano e ele comeu. Quando ele terminou, mataram ele.

_ E você francês, qual é o seu pedido? O francês disse:

_ Quero filé mion! Deram o filé mion pro francês, depois que ele comeu, também

mataram o francês.

Chegou a vez do brasileiro.

_ E você brasileiro, qual o seu pedido?

_ Morango!

_ Morango? Mais não tá nem na época! E o brasileiro respondeu:

_ Eu espero! Fonte: Piadas de Nathaly. Disponível em:

<https://www.facebook.com/PiadasDeNathaly/posts/439328746113698>. Acesso em: 25 set. 2014.

No exemplo (10), se a proposta era realizar um último desejo de três condenados à morte

(um italiano, um francês e um brasileiro) e o desejo de cada um deles referia-se a um tipo de comida

(pizza, filé mion e morango), ao escolher algo fora de época (morango), o brasileiro, espertamente,

tenta se beneficiar, ganhando mais tempo de vida. Mais uma vez, nota-se que o brasileiro é

estereotipado como esperto, sagaz.

Em síntese, observa-se que há piadas que envolvem o brasileiro e que ele é ridicularizado de

alguma forma (contraventor, contador de vantagem, calculista, ganancioso, golpista). Tais casos

colocariam em questão sua brasilidade? Se sim, em que consiste essa brasilidade? Para caracterizá-

la, é necessário verificar melhor qual(is) é(são) o(s) traço(s) que constitui(em) o imaginário sobre o

brasileiro, o(s) lugar(es) comum(ns).

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A amostra de piadas apresentada aqui revela a recorrência à construção do brasileiro como

esperto (o malandro que se beneficia por sua sagacidade). Constituiria este um indício da

representação identitária dessa população? Segundo se entende, sim. Mais ainda, defende-se aqui a

hipótese de que este é o estereótipo (ou identidade-estereotipada) do brasileiro nesse tipo de

produção humorística. Tais considerações se confirmam nas piadas (6), (7), (9) e (10).

A construção do brasileiro nas piadas como esperto comprova, de certo modo, as

considerações de Amossy e Herschberg-Pierrot (2001) sobre o conceito de estereótipo. As

representações coletivas, simplificadas e rígidas (cristalizadas) podem promover também a

categorização valorativa de um grupo.

Considerando, juntamente com Penna (1997), que a representação identitária não pode ser

vista apenas sob o prisma cultural, sendo necessário levar em conta, em sua constituição, aspectos

históricos, é possível aventar algumas explicações para a caracterização do brasileiro como esperto,

sagaz.

Amparada ou não no real, a sagacidade (malandragem) atribuída ao brasileiro ganha eco

dentro e fora do país. Trata-se de um discurso do senso comum, que pode ter origem na história da

população desse país, especialmente ligada a determinados casos (pessoas/figuras/personagens) que

simbolicamente representam o brasileiro. As manifestações artísticas nacionais reúnem diferentes

exemplos desse comportamento, refletido em suas narrativas.

Nas histórias em quadrinhos, tornou quase lugar-comum vincular Zé Carioca ao jeito

malandro. Nesse caso, a associação é feita especificamente a uma das marcas estereotípicas centrais

dos moradores do Rio de Janeiro. Embora criado nos Estados Unidos pelos estúdios de Walt

Disney, o papagaio adquiriu traços bem brasileiros ao ter suas histórias produzidas por autores

nacionais a partir da segunda metade dos anos 1960.

Na década seguinte, um conjunto de criadores consolidou seu “DNA” associado ao país,

com especial atenção ao trabalho feito por Renato Canini (1936-2013). O personagem passou a

morar nos morros cariocas, a ser mostrado como preguiçoso e avesso ao trabalho, a gostar da

boemia e a driblar as pessoas a quem devia dinheiro – a ponto de existir até uma associação de

credores, a Anacozeca (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca).

A brasilidade explicitada nas histórias destoava das demais criações Disney publicadas no

país pela editora Abril – a empresa iniciou a veiculação em 1950. O contraste levou os estúdios

norte-americanos a pedirem o afastamento de Canini da criação do personagem, o que ocorreu em

fins da década de 1970. Na leitura de Guazzelli (2009), o desenhista desenvolveu em Zé Carioca

uma inversão de estereótipos, substituindo o modo como os norte-americanos enxergavam o

brasileiro pela forma como os próprios moradores do país viam a si próprios.

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No teatro, ficou conhecida a “Ópera do Malandro”, peça musical composta por Chico

Buarque e encenada no teatro (1978) e no cinema (1986). Ambientada na década de 1940, no bairro

carioca de Copacabana, a peça mostra o universo da prostituição e como a malandragem pode ser

aplicada a esse ambiente.

Na letra da canção “O Malandro”, os versos iniciais escritos por Buarque descrevem o

personagem central como um bon vivant às custas do jeitinho brasileiro: “O malandro, na dureza,

senta à mesa do café. Bebe um gole de cachaça, acha graça e dá no pé. O garçom, no prejuízo, sem

sorriso, sem freguês, de passagem pela caixa dá uma baixa no português”.

Além da adaptação de “Ópera do Malandro”, o cinema brasileiro é plural nos exemplos na

construção de personagens malandros, sagazes. Para ficarmos em um caso mais recente, pode ser

destacado o longa-metragem “Os Penetras”, de 2012, estrelado por Marcelo Adnet e Eduardo

Sterblitch, dois dos representantes de uma nova geração de humoristas brasileiros. O personagem

interpretado por Adnet é o típico malandro, que procura levar vantagem em tudo. Tanto que procura

se aproveitar da ingenuidade do suposto parceiro (Sterblitch), que vai, aos poucos, sendo também

inserido nesse modus vivendi.

Considerando, por outro lado, a tese proposta por Possenti (2010, p.40) – que o estereótipo

seria uma manifestação do simulacro, ou seja, “uma espécie de identidade pelo avesso [...], que um

grupo em princípio não assume, mas que lhe é atribuído de um outro lugar, eventualmente pelo seu

outro” –, verifica-se que, no caso das piadas de brasileiro, a representação do esperto (malandro) é

oposta. Trata-se de um simulacro atribuído pelo Outro.

Ainda que possa parecer complexa, a questão tem uma boa explicação histórica. Há um

imaginário sobre o povo brasileiro que o concebe como inferior, incapaz, com baixa autoestima e,

portanto, de certa forma, bobo, ingênuo. A expressão “complexo de vira-latas”72

, criada pelo

escritor brasileiro Nelson Rodrigues em 1958 e retomada ao longo do tempo por outras pessoas,

elucida esse sentimento inoculado no brasileiro.

Várias são as causas do complexo de inferioridade do brasileiro. Numa rápida abordagem à

questão, destacam-se:

a) a origem mestiça que leva a população a ser alvo de preconceito racial constantemente. Segundo

Schwarcz (1998), em 1845, o conde francês Arthur de Gobineau, ao desembarcar no Rio de Janeiro,

72 A expressão “complexo de vira-latas” – definida como “a inferioridade em que o brasileiro se

coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”

(RODRIGUES, 1993, p.52) – foi citada na última crônica do autor antes da estreia do Brasil na Copa de

1958 (a primeira vencida pela seleção brasileira) referindo-se ao trauma sofrido pelos brasileiros na Copa de

1950, quando a seleção perdeu, na final, para o Uruguai. Ainda que ligada ao futebol, o termo se estende a

outros campos do país como um todo.

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disse que os cariocas “pareciam-se com macacos”. Mais de um século depois, percebe-se que a

associação a macacos perdura. Em 27 de abril de 2014, o jogador brasileiro Daniel Alves foi

hostilizado em campo durante partida no Campeonato Espanhol de futebol – Alves atua no time do

Barcelona. Quando ia cobrar um escanteio, um torcedor jogou uma banana em campo. A fruta caiu

próxima ao atleta. A reação dele foi a de pegar a banana, descascá-la e comê-la, tudo em segundos.

Somente depois, cobrou o escanteio. A atitude foi vista como um claro sinal de protesto, tanto na

Europa quanto no Brasil, onde ecoou fortemente via imprensa;

b) o fato de os brasileiros viverem nos trópicos, onde o clima predispõe os habitantes à preguiça. A

questão é refletida na figura de Jeca Tatu, na obra Urupês, de Monteiro Lobato (1957), que,

originalmente publicada em 1918, retrata o estereótipo do homem do campo, simbolizando o

caboclo analfabeto que vivia na extrema pobreza, sem saber muito bem de onde vinha e para onde

ia;

c) a falta de reconhecimento no campo científico e profissional: Humberto Mariotti (2014) afirma

que “trabalhador brasileiro é sinônimo de garçom ou peão de construção civil. Nossa única

profissão exportável, mesmo não qualificada pela educação formal é, como todos sabem, a de

futebolista”; e

d) os sucessivos escândalos de corrupção nos quais o governo brasileiro esteve envolvido: os

governos do período pós-Ditadura Militar (depois de 1985), eleitos pelo voto direto, passaram por

escândalos de alguma ordem: Collor foi acusado de tráfico de influência, o que levou à sua

renúncia, em 2 de outubro de 1992; Fernando Henrique foi envolvido no escândalo de compra de

votos para aprovação na Câmara e no Senado de lei que permite a reeleição (dele, inclusive); Lula,

suspeito de participar do esquema do mensalão, em que integrantes do governo federal pagaram

verbas regulares a integrantes da Câmara dos Deputados; e Dilma, acusada do suposto

superfaturamento em compras de áreas por parte da Petrobras.

O sentimento de inferioridade também é atestado na literatura do próprio país. A exemplo,

em 1903, o autor Monteiro Lobato revela-se profundamente pessimista com o potencial do povo

brasileiro, por ele assim definido na obra abaixo consultada:

O Brasil, filho de pais inferiores – destituídos desses caracteres fortíssimos que

imprimem – um cunho inconfundível em certos indivíduos, como acontece com o

alemão, com o inglês, cresceu tristemente – dando como resultado um tipo

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imprestável, incapaz de continuar a se desenvolver sem o concurso vivificador do

sangue de alguma raça original (LOBATO, 1959, p.110).

As piadas, por meio de uma estratégia discursiva, opõem esse discurso público (das

conversas cotidianas, da mídia, de uma parcela da elite brasileira, do estrangeiro) negativo, a um

discurso contrário ao anterior, enaltecendo o brasileiro como esperto, sagaz, capaz, inteligente para

se safar das situações e se beneficiar.

Desse modo, se as piadas não dizem apenas o oposto, mas o oposto da forma mais exagerada

possível (POSSENTI, 2010), o estereótipo do brasileiro “esperto, sagaz, malandro” (caso recorrente

na maior parte dos exemplos) seria um simulacro do brasileiro bobo, ingênuo.

Nesse sentido deveria ser evidente que os estereótipos são construtos produzidos por aqueles

que funcionam como o(s) Outro(s) para algum grupo. Entretanto, essa relação interdiscursiva é

ofuscada. O efeito é de que o estereótipo é universal, que não tem condições históricas de produção,

ou pelo menos que essas condições não incluem efetivas relações de confronto com uma alteridade.

No caso das “piadas de brasileiro”, a hipótese é de que o Outro ou o estereótipo oposto, como

apontado por Possenti (2010), seja o discurso de uma parcela da elite brasileira, dos estrangeiros, da

mídia.

Considerações finais

Neste texto, buscou-se mostrar que, embora não circule na mídia impressa ou virtual a

existência de uma piada de brasileiro, essa nacionalidade é representada de forma recorrente, com

marcas socioculturais, nesse tipo de produção humorística.

Dentre os vários traços identitários observados (e que se confirmam nas piadas aqui citadas

– esperto, sagaz, “bom de cama”, contador de vantagem, contraventor), um é mais saliente: o que

identifica o brasileiro como esperto (sagaz, malandro).

Para a construção dessa identidade-estereotipada, aventaram-se duas explicações:

a) trata-se de um discurso do senso comum, que pode ter origem na história da população desse

país, especialmente ligada a determinados casos (pessoas/figuras/personagens) que

simbolicamente representam o brasileiro;

b) trata-se de um simulacro, uma vez que as piadas geralmente dizem o oposto; nesse caso, o

revelado “esperto” seria no fundo “bobo, ingênuo”.

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Além disso, convém ressaltar que as piadas de brasileiro geralmente são construídas

colocando essa nacionalidade em oposição a outras e que nem sempre, nessa produção, o brasileiro

é estereotipado de forma pejorativa.

Referências

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INTRODUÇÃO AO ENSINO DE RETÓRICA EM CURSOS TECNOLÓGICOS:

METODOLOGIA E RESULTADOS ALCANÇADOS

Ana Lúcia MAGALHÃES73

Resumo: Por definição, cursos de exatas, em geral, não costumam privilegiar o ensino de Humanas.

No entanto, as FATECs, Faculdades de Tecnologia do Centro Paula Souza, autarquia ligada ao

Estado de São Paulo, incluem disciplinas não-tecnológicas: Comunicação e Expressão, por

exemplo. A ementa trata, principalmente, de correção gramatical e das diversas formas de

comunicação na empresa. A introdução de aulas de Retórica para alunos desses cursos tem

suscitado resposta positiva dos alunos: conceitos retóricos como ethos, pathos e logos, e

argumentação (convencimento e persuasão) são aprendidos com relativa facilidade e têm sido bem

aplicados nas atividades. Há indícios de melhoria na comunicação oral e escrita como resultado da

compreensão de técnicas discursivas aplicadas a diversos gêneros.

Palavras-chave: Argumentação; Comunicação; Retórica; Tecnologia.

Abstract: Exact science courses are not usually keen on humanities. In the State of Sao Paulo

Technological College, however, technological majors study non-technological disciplines as part

of their preparation. Business Communication is one of them. The official syllabus is loose and

instructors usually choose grammar reinforcement and teaching of ways to communicate within

organizations. Rhetoric was introduced in some classes in the last four years and student response

has been positive. Concepts like ethos, pathos and logos, convincing and persuasion are learned

without hassle and well applied in exercises. There are also signs of improvement in oral and

written communication skills.

Keywords: Argumentation, Communication, Rhetoric, Technology

Introdução

A proposta desse trabalho é apresentar uma experiência com introdução do ensino de

Retórica em escola tecnológica de nível superior, cujos cursos são tipicamente voltados para o

mercado de trabalho e envolvem essencialmente matérias da área das ciências exatas. Os alunos

esperam do curso o desenvolvimento de competência e habilidades próprias e boa parte deles

costuma considerar as disciplinas que não fornecem formação específica como perda de tempo.

73 MAGALHÃES, Ana Lúcia. Doutora em Língua Portuguesa. Pesquisadora do Grupo de Estudos

Argumentativos e Retóricos, PUC-SP – Brasil, [email protected]

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No entanto, é esperado de qualquer profissional competência em se comunicar, entendida

não apenas como capacidade de troca de informações, mas também o domínio de habilidades

argumentativas, sob pena de ter seu progresso dificultado. À medida que o profissional se

desenvolve na carreira, as habilidades não técnicas aumentam de importância.

Em recente visita ao Brasil para treinamento de docentes sobre metodologia de ensino, dois

professores de Harward mantiveram reunião com empresários da região do Vale do Paraíba

histórico. Após exposição, durante as questões abertas, os gestores dessas empresas foram unânimes

em apontar como maiores dificuldades observadas nos recém-formados a comunicação escrita e, em

seguida, a própria comunicação oral. Segundo esses gestores, os ex-alunos chegam ao mercado na

expectativa de conseguir cargos de gestor, mas apresentam grande dificuldade em expor seus

pensamentos com lógica e propriedade, tanto oralmente quanto na escrita, destaque para a segunda

modalidade.

A experiência com alunos de Análise e Desenvolvimento de Sistemas, curso típico, mostrou

fortes indícios de que a Retórica pode ser introduzida por meio de alguma disciplina relacionada nas

escolas tecnológicas e contribui para o desenvolvimento dessas capacidades consideradas essenciais

e reforçadas pelos gestores.

A estrutura deste texto inicia-se com uma contextualização sobre as escolas de cunho

tecnológico no estado de São Paulo – FATEC; especifica alguns conceitos de retórica trabalhados;

esclarece, em detalhe, o tipo de auditório (PERELMAN Y TYTECA, 1999, p.22), objeto de análise;

insere o conteúdo programático a partir do qual se percebeu a possibilidade de inclusão de Retórica

e apresenta a metodologia das aulas específicas. Ao final, mostra alguns dos resultados obtidos.

Perfil dos estudantes da FATEC

Segundo informações divulgadas no site da FATEC de Guaratinguetá,

O Tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas analisa, projeta,

documenta, especifica, testa, implanta e mantém sistemas computacionais de

informação. Esse profissional trabalha, também, com ferramentas computacionais,

equipamentos de informática e metodologia de projetos na produção de sistemas.

Raciocínio lógico, emprego de linguagens de programação e de metodologias de

construção de projetos, preocupação com a qualidade, usabilidade, robustez,

integridade e segurança de programas computacionais são fundamentais à atuação

desse profissional (FATEC Guaratinguetá, 201374

).

De acordo com o perfil desenhado pela instituição, os tecnólogos em Análise e

Desenvolvimento de Sistemas têm como função analisar, projetar, documentar, especificar,

74 http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, acesso em 04/12/2013

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implantar e manter sistemas computacionais de informação. Assim, a grade é configurada para

atender as exigências específicas de mercado.

Para isso, é esperado que esse profissional, ao lado de uma qualificação técnica no emprego

de linguagens específicas, desenvolva raciocínio lógico e apresente habilidade linguística. Esta

última, necessária basicamente em qualquer profissão, é particularmente importante àquele que

precisa tratar diretamente com públicos, internos ou externos à organização, caso do analista de

sistemas, preparado especificamente para funções de gestão. Além do contato com tais públicos, ele

constantemente necessitará elaborar relatórios, projetos e mesmo textos diversos, em que o domínio

da língua é certamente exigido. Enquanto a qualificação técnica pode ser adquirida por meio das

disciplinas oferecidas e o raciocínio lógico possa ser desenvolvido da mesma maneira — e

efetivamente isso se dá ao longo do curso —, percebe-se maior dificuldade na conquista de uma

desenvoltura linguística, principalmente associada à linguagem escrita.

Alunos e professores reconhecem que não raramente experimentam extrema dificuldade em

“colocar as ideias no papel”. É possível que, em algum momento, se questione a necessidade de

desembaraço linguístico por parte de profissionais da área de exatas, porém tal habilidade está

diretamente ligada à capacidade de o indivíduo se colocar no mercado de trabalho e efetivamente

comprovar sua competência.

Ainda que restrições de linguagem possam ter diversas origens, inclusive deficiências do

ensino fundamental, pretende-se mostrar, independentemente de tais reservas, de que modo a

inclusão de aulas de retórica na disciplina elencada tem contribuído para que os alunos se

posicionem e efetivamente melhorem sua capacidade comunicativa.

Retórica e argumentação: conhecimento útil em todas as profissões

Tudo o que se diz da Retórica nessa brevíssima composição histórica, mesmo seus conceitos

mais antigos, podem ser aplicados ainda hoje. A Retórica tem sido definida, sob o ponto de vista da

organização clássica das disciplinas, como a “arte de bem falar” (PLANTIN, 2008, p.9), ou seja, a

arte de utilizar todos os recursos da linguagem com o objetivo de provocar determinado efeito nos

ouvintes. Conforme o autor, para os sofistas – pensadores pragmáticos e utilitaristas –, a Retórica

estava ligada à arte de argumentar, no sentido de debater contra ou a favor de qualquer opinião,

desde que vantajosa.

Essa postura foi debatida por Sócrates nos Diálogos (PLATÃO, in: Os Pensadores, 1995)

que lhe emprestava valor apenas à medida em que participasse da essência da filosofia e, para

Platão (OS PENSADORES, 1995), a retórica poderia convencer os próprios deuses. Tratava-se da

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utilização dos recursos discursivos para obter a adesão dos espíritos, expressão ainda hoje lembrada,

que exprime muito bem seu objetivo.

Aristóteles, ao sistematizar a retórica, define-a como

A faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a

persuasão. [...] parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada

questão, descobrir o que é próprio para persuadir. (ARISTÓTELES, s/d, p.33).

Entre os conceitos explicados pelo filósofo, destacam-se as três provas retórico-discursivas:

ethos que, em linhas gerais refere-se ao caráter, à imagem que o orador transmite por meio do seu

discurso; pathos, que está ligado ao componente emocional que o discurso desperta no auditório e

logos, que se refere também ao orador e à sua capacidade de convencimento, ao seu conhecimento

de mundo.

Da Grécia à Roma antiga, enquanto para Cícero, em três tratados, o orador perfeito era o

homem perfeito, ponto de vista também encontrado em Quintiliano (1865, p.180), para este último a

Retórica, exposta de maneira mais completa e sistemática, era a “arte de falar do que levanta

problemas nos assuntos civis, de forma a persuadir”. Durante a Idade Média e Renascença, a

Retórica foi indispensável na educação, dividindo-se com a Lógica no século XVI. Neste século e

no seguinte, os grandes mestres retóricos foram os jesuítas, membros da Companhia de Jesus, que a

aplicavam aos domínios da crítica. De acordo com Plantin (2008, p.13), no fim do século XIX, a

Retórica foi violentamente criticada como disciplina não científica e eliminada do currículo da

universidade republicana.

Após longo período restrita ao estudo das figuras de linguagem, ressurgiu com Perelman y

Tyteca (1958) em seu Tratado da Argumentação (1999) ligada, efetivamente, aos estudos da

argumentação que, do ponto de vista da organização clássica das disciplinas, está vinculada à lógica

como “arte de pensar corretamente“, à retórica como “arte de bem falar“ e à dialética “arte de bem

dialogar“. Evidentemente esse tripé forma a base do sistema argumentativo de Aristóteles.

Segundo Plantin,

um dos méritos essenciais do Tratado da Argumentação, de Perelman & Olbrechts-

Tyteca, é o de ter fundado o estudo da argumentação sobre o estudo das “técnicas

argumentativas“ [...] e forneceu uma base empírica de esquemas […] (PLANTIN,

2008, p.45).

Ao afirmar que a argumentação eficiente se liga à intensidade da adesão dos ouvintes ou ao

menos à criação de uma disposição para ouvir, Perelman y Tyteca introduziram o conceito de

auditório, que pode ser universal ou particular (PERELMAN Y TYTECA, 1999, p.30). Outra

questão importante comentada no Tratado é a adesão racional e passional, denominadas,

respectivamente, convencimento e persuasão. É preciso mencionar que, em retórica, o racional não

é o demonstrável, pois ela subsiste no campo do provável, do possível, do plausível, do verossímil.

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Persuasão e convencimento aparecem separados apenas para fins didáticos, uma vez que, na

realidade, estão imbricados no discurso e quase não se percebe quando se utiliza um ou outro, assim

como não se decide por um ou outro na prática discursiva. No entanto, foi justamente o estudo e a

exploração dessas duas formas de argumentação, inicialmente separadas, que permitiu uma

aproximação mais efetiva com os alunos dos cursos de tecnologia da FATEC.

Oportunidade de acréscimo de aulas de retórica

A grade dos cursos prevê aulas de Comunicação e Expressão com objetivos e ementa

bastante específicos, voltados quase exclusivamente à correção de textos empresariais.

Ementa: visão geral da noção de texto. Diferenças entre oralidade e escrita, leitura,

análise e produção de textos de interesse geral e da administração: cartas,

relatórios, correios eletrônicos e outras formas de comunicação escrita e oral nas

organizações. Coesão e coerência do texto e diferentes gêneros discursivos.

Embora a FATEC permita ao professor o livre exercício da didática, a ementa de todos os

seus cursos é predeterminada e não pode ser modificada. É possível observar, na citação, mesmo em

uma leitura superficial, que a fragilidade desses itens conduz a uma restrição de conteúdo. Com

isso, existe uma tendência natural à repetição de conceitos ministrados no ensino médio, em parte

talvez porque o docente percebe não terem sido tão bem assimilados pelos alunos, em parte porque

a própria ementa a isso conduz.

Apoiada em alguns vocábulos ali presentes (gêneros discursivos, processos linguísticos,

análise crítica de produção textual), a autora deste texto resolveu inserir conceitos de discurso,

retórica e argumentação na tentativa de expandir os conhecimentos dos alunos e permitir que

repensem seus próprios discursos.

Conteúdo das aulas de retórica

Com a finalidade de proporcionar maior abrangência da área de atuação desses cursos e para

propiciar interação com outras disciplinas, foi elaborado um quadro de competências linguísticas

julgadas importantes. Percebeu-se não apenas a possibilidade de introdução de conceitos retóricos e

argumentativos aplicados, como a necessidade deles para melhorar a compreensão dos processos

comunicativos nos diversos níveis. A partir dessa constatação, como verificar se essa abertura

oferece aos alunos maior percepção daquilo que praticam intuitivamente? Haveria uma maneira de

observar sensíveis modificações na qualidade da escrita ou mesmo na oralidade?

Para responder a tais perguntas foram utilizadas duas estratégias: 1) distribuição de um

questionário com perguntas indiretas aos alunos e 2) exercícios orais e escritos efetuados antes e

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após as aulas de retórica. Esse trabalho foi desenvolvido sempre com uma turma de 40 alunos

aproximadamente, durante dez semestres. Escolheu-se uma turma típica para levantamento de

dados e avaliação de resultados.

Conceitos de texto e discurso (GREIMAS, 2008; KOCH, 1998; MAINGUENEAU, 1997),

objetividade e subjetividade (BENVENISTE, 2002), argumentação – persuasão e convencimento –

e o estudo das três provas retóricas conforme teorizam Aristóteles (s/d), Perelman (1999) e Meyer

(2009) foram tão amplamente discutidos quanto possível e, após, exercitados por meio da aplicação

aos gêneros (BAKHTIN, 2006) jurídico, jornalístico, publicitário e organizacional. Embora algumas

dúvidas possam não ter sido inteiramente sanadas, tendo em vista a complexidade do assunto, os

alunos se mostraram interessados e procuraram sempre se aplicar durante os exercícios. Os autores

citados neste artigo não foram mencionados nas aulas.

Metodologia das aulas

As aulas, com duração de três horas e meia e intervalo de dez minutos, apresentam uma

metodologia diferenciada para cada assunto e se ajustam ao auditório. Dessa forma, se para

determinado grupo de alunos é mais conveniente comentar sobre conceitos e exercitar depois, para

outro, o mais sensato será apresentar e discutir um texto e só então, introduzir e trabalhar o

conceito. Em outros casos, parte-se do repertório do aluno. Assim, não existe uma forma única ou

mais apropriada. Depende sempre da disposição do auditório.

Como ilustração, o tema Retórica e Argumentação é tratado em vários momentos e

retomado sempre que possível, com a finalidade de reforçar o entendimento. Uma das maneiras de

abordar tem sido o método socrático, por meio de perguntas específicas sobre o assunto (o que o

aluno entende por retórica, em que contexto a palavra foi ouvida, o que é argumentação, persuasão,

convencimento, se existe diferença entre persuasão e convencimento). O método é repetido para

cada uma dessas perguntas. Os alunos se manifestam livremente e a professora anota as respostas

— corretas ou não — no quadro, para que todos acompanhem o raciocínio. Como se trata de

conceitos complexos, muitas vezes é necessário considerável esforço mental, mas tem havido

grande participação dos estudantes. Após esse primeiro momento de debate, os alunos são levados a

refinar a lista de respostas e só então os conceitos são ministrados. Em seguida, os discentes são

instados a exemplificar com casos reais, fruto da observação ou mesmo de experiência pessoal.

Caso necessário, são corrigidos e ajustados.

Evidentemente o assunto é retomado em aulas posteriores, embora com abordagem

diferente. Durante o estudo da linguagem jornalística, por exemplo, os alunos são solicitados a

aplicar os conceitos de retórica e argumentação já trabalhados. O mesmo ocorre nas aulas de

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linguagem promocional e organizacional, esta última considerada como foco da disciplina

Comunicação e Expressão para Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Apesar da retomada em

vários momentos e dias diferentes, há sempre cuidado para que o tópico não se torne cansativo,

embora haja necessidade de repetições.

Conceitos de ethos, pathos e logos são introduzidos nas aulas subsequentes, porém de forma

diversa, uma vez que dificilmente alunos de cursos de tecnologia terão tido contato com tais

vocábulos. Nesse caso, um triângulo com os termos é mostrado e o conceito explicado por meio de

várias ilustrações. Só então os estudantes começam a participar com exemplos, experiência e se

posicionar diante dos discursos político, educacional e organizacional. Textos curtos são projetados

em tela para que todos possam ler e analisar. Busca-se sempre a participação do maior número de

alunos. Qualquer que seja a sequência escolhida há, ao final, uma aplicação prática por meio de

exercícios orais ou escritos.

A importância do conhecimento desses conceitos reflete-se diretamente na capacidade de

análise argumentativa para elaboração de discursos oral e escrito. O profissional com tais

conhecimentos tem perspectivas diferenciadas de crescimento na carreira e mesmo como pessoa,

além de preencher, ao menos parcialmente, a carência apontada no início deste artigo, pelos

gestores.

Alguns exercícios e atividades

Uma das proposições é solicitar que os alunos escrevam uma Nota Oficial sobre

determinado acidente em uma empresa real. Uma folha com histórico conciso sobre o acidente é

entregue sem qualquer instrução prévia. Os textos produzidos são recolhidos. Iniciam-se então as

aulas sobre retórica e argumentação que inclui estudos de subjetividade, persuasão, convencimento,

as três provas retóricas e algum outro conceito pertinente. Tais conceitos são trabalhados oralmente

e exercitados, de acordo com a metodologia escolhida conforme aquele auditório. Após algumas

aulas, é solicitado que os alunos reescrevam a Nota Oficial, porém com a preocupação de utilizar os

conceitos sobre argumentação estudados. Os novos textos são recolhidos e comparados com os

anteriores. Esse foi, conforme mostrado adiante, um dos exercícios utilizados para avaliar a fixação

dos conceitos e capacidade de uso em funções práticas.

Outra atividade consiste em dividir a sala em três grupos. Um caso jurídico real ligado a

roubo é distribuído para que os alunos leiam cuidadosamente. A um dos grupos é atribuída a tarefa

da acusação; a outro, a defesa e ao terceiro, grupo defesa e acusação, pois terá como tarefa julgar,

com base nos argumentos apresentados, o grupo que se sair melhor. É determinado um tempo

relativamente curto para que os alunos discutam o caso, elaborem argumentos e elejam um

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representante. Após a discussão, o primeiro grupo acusa e o segundo defende. Há oportunidade de

réplica, pelo primeiro grupo e tréplica, pelo segundo. Em seguida, o terceiro grupo se manifesta,

expressa a análise dos argumentos apresentados por ambos e informa sua escolha com justificativa.

A atividade é bastante movimentada e reforça os conceitos argumentativos estudados. À medida

que o exercício tem sido aplicado em semestres diferentes – a experiência se repete semestralmente

em novas salas –, os alunos têm se mostrado mais conscientes da importância desse conhecimento.

A proposta de leitura de um conto de mistério com poucos personagens é outro exercício

com resultado positivo na compreensão dos conceitos de ethos, pathos e logos. Após leitura

minuciosa e discussão sobre o enredo, os alunos são instados a, oralmente, construir o ethos dos

principais atores discursivos. Após essa fase, verificam os argumentos utilizados e se há

predominância de persuasão ou convencimento, se há mais paixão ou racionalidade. Em seguida, é

solicitado que escrevam um conto de mistério que privilegie a construção do ethos e demonstre

alguma agilidade no domínio de argumentos.

Resultados e rendimento dos alunos

Embora se trate de curso de tecnologia com predomínio de disciplinas da área de exatas, os

alunos têm demonstrado interesse durante as aulas e não se furtam aos exercícios. É interessante

notar que, apesar da dificuldade na aquisição de conceitos e principalmente na necessidade de

seguir raciocínios complexos, há participação de parte considerável das salas e até mesmo

demonstrações de entusiasmo.

A aquisição dos conceitos foi avaliada por meio de uma pequisa quantitativa em duas partes.

Elas foram:

a) Proficiência na aplicação dos conceitos, verificada a partir das duas redações da nota

oficial citada.

b) Identificação de instâncias de ethos, pathos e logos em uma série de afirmações.

Utilizou-se, nos dois casos, o método científico, o que implicou em uso de critérios

objetivos e quantificáveis.

A primeira parte da pesquisa, detalhada a seguir, verificou a capacidade de uso dos

conceitos retóricos em um contexto prático.

Problema-questão: as aulas de Retórica conduziram os alunos a entendimento e utilização

dos conceitos de logos, pathos e ethos?

Hipótese: aulas de Retórica auxiliam alunos a compreender e utilizar os conceitos

mencionados.

Teste: análise de duas redações de uma nota oficial após um acidente, conforme descrito na

seção que trata dos exercícios. Foram marcadas, nos dois textos, as incidências de ethos, pathos e

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logos e, após esse levantamento, elaborou-se um quadro comparativo do primeiro texto, escrito

antes das aulas de Retórica, com o segundo, após as aulas.

A população de teste consistiu da totalidade dos alunos de uma turma, perfazendo 30

estudantes. Os alunos que faltaram quando da aplicação de um dos testes não foram considerados.

Os resultados aparecem na tabela 1 e são ilustrados pelo gráfico da figura 1.

antes das aulas após as aulas variação

incidências de ethos 21 34 + 62%

incidências de pathos 22 11 - 50%

incidências de logos 26 35 + 35%

Tabela 1: comparação das redações antes e após as aulas de Retórica

Figura 1: incidências de ethos, pathos e logos antes e após as aulas de Retórica

A tabela 2, a seguir, fornece uma amostra de textos da redação antes e depois das aulas de

Retórica. Nota-se o deslocamento de pathos para logos e a preocupação com o ethos.

Antes da aula de Retórica Após aula de Retórica

Venho por meio desta informar a toda a

população que a nossa empresa se

responsabiliza pelo ocorrido [...] (P.L.)

A empresa xxx vem a público informar que o

acidente ocorreu em decorrência das fortes

chuvas P.L.)

Nós nos responsabilizamos e iremos cobrir

todas as despesas causadas pelo acidente

provocado pela empresa J.P.M

A empresa se coloca à disposição para os

esclarecimentos necessários e, caso fique

comprovada sua responsabilidade, entrará em

contato (J.P.M)

Informamos que estamos tristes com o

ocorrido e faremos tudo que estiver ao nosso

alcance para cobrir todas as despesas das

famílias atingidas (B.S.M)

A empresa esclarece que o acidente de agora

não tem relação com a ocorrência do ano

anterior e se coloca à disposição para maiores

esclarecimentos (B.S.M)

A empresa cobrirá todos os danos causados

pelo acidente de sua inteira responsabilidade

(J.S.S)

A empresa se coloca à disposição dos órgãos

ambientais para os esclarecimentos que se

fizerem necessários (J.S.S.)

Nós, da empresa xxx, estamos consternados com a mortandade de peixes provocada pelo

rompimento de nossa barreira de contenção.

Assumimos a responsabilidade e arcaremos

A empresa xxx informa que o produto derramado não é tóxico e que a mortandade dos

peixes se deveu ao excesso de argila presente

na água, após rompimento da barragem,

0

10

20

30

40

incidências deethos

incidências depathos

incidências delogos

antes das aulas

após as aulas

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todos os prejuízos (M.L.M) causado pelas fortes chuvas (M.L.M)

Informamos a todos que nossa barragem se

rompeu por causa da falta de manutenção em

nossos equipamentos (A.L.S.P)

A empresa informa que o rompimento da

barragem se deu devido às fortes chuvas em

curto período de tempo (A.L.S.P.)

Como se observa, do primeiro texto, sem conhecimento dos aspectos argumentativos, para o

segundo, há considerável aumento da presença de ethos e logos e uma diminuição substancial do

pathos. Naquele momento, trabalhava-se o discurso organizacional como espaço que privilegia o

aspecto objetivo, factual para construir e reforçar uma boa imagem corporativa em bases sólidas.

O exercício demonstrou que os alunos foram capazes, não apenas de compreender os

argumentos racionais e patéticos ligados às três provas retóricas (ARISTÓTELES, s/d, p.45), mas

também de aplicar tais conhecimentos em um texto escrito. Outras práticas foram experimentadas

com resultados semelhantes.

A segunda parte da pesquisa verificou a capacidade de reconhecimento das provas retóricas

e identificação de incidências de convencimento e persuasão.

Problema-questão: os alunos são capazes de reconhecer instâncias de uso de ethos, pathos e

logos, convencimento e persuasão em textos que façam parte do cotidiano de organizações em

geral?

Hipótese: o ensino de Retórica proporciona aos alunos capacidade de análise rápida desses

componentes do discurso.

Teste: foi distribuído um questionário simples, com duas questões. Na primeira, os alunos

(os mesmos 30 considerados na primeira parte da pesquisa) deveriam identificar ethos, pathos e

logos em uma lista que misturava dezoito afirmações, seis com cada um dos três elementos. Na

segunda, por meio do mesmo critério, identificariam características de argumentos racionais e

passionais em uma lista de vinte afirmações, dez com elementos do primeiro grupo e dez do

segundo.

Embora fosse solicitado que pensassem com calma antes de responder uma vez que as

afirmações eram parecidas, o teste durou menos de quinze minutos e os alunos aparentaram

bastante tranquilidade.

A tabela 3 e a figura 2 sumarizam e ilustram os resultados.

total de respostas respostas certas % acerto

incidências de ethos 180 142 79%

incidências de pathos 180 160 89%

incidências de logos 180 164 91%

frases com persuasão 300 267 89%

frases com convecimento 300 243 81%

Tabela 3: resultados de teste de reconhecimento de ethos, pathos e logos.

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Figura 2: reconhecimento de conceitos

As porcentagens mostram que os alunos, de maneira geral, entenderam os conceitos,

especialmente os de persuasão e convencimento. O que pareceu, a princípio, mais complexo foi a

compreensão do conceito de ethos que, em alguns casos, foi confundido com o de pathos. No

entanto, não se pode considerar exatamente como falha tal ambiguidade, pois trata-se de assunto

subjetivo. Percebeu-se que os estudantes encontraram maior facilidade na identificação do logos.

Uma possível causa se relaciona ao conhecimento prévio do auditório, voltado para exatas.

As análises demonstraram, nos dois casos, que alunos de cursos tecnológicos foram capazes

de compreender conceitos filosóficos complexos e, mais do que isso, houve uma melhora visível na

composição textual, como mostram os textos da tabela 2.

A tabela 4 apresenta indícios de melhora de atenção ao produzir textos, quando os alunos

reescreveram após as aulas de Retórica uma redação de mesmo tema e mesmo número de linhas que

havia sido proposta antes das aulas. Naturalmente, a melhora pode ser atribuída ao conjunto das

atividades da disciplina, porém foi observado que se tornou mais intensa depois das aulas de

Retórica, possivelmente como fruto de, conforme mencionado, mais atenção ao texto. Essa

tendência poderá ser eventualmente confirmada por outros estudos. Como na tabela 2, os textos são

escritos pelos mesmos alunos para cada linha da tabela.

0

100

200

300

incidências deethos

incidências depathos

incidências delogos

frases compersuasão

frases comconvecimento

total de respostas

respostas certas

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Texto Antes das aulas Texto depois das aulas

possui seus cerca de 1,87 com cerca de um metro e oitenta

calçava sandálhas (sic) rasteirinhas que

possuía

usava sandálias de origem humilde

caso algo que não seja ruim aconteça-me caso algo não muito bom me aconteça

mataram as meninas ás jogando para que os

urubus famintos devorem (sic)

mataram as meninas jogando-as aos urubus

para que as devorassem

de família pobre, onde seu pai era... de família pobre, cujo pai era...

Tabela 4: instâncias de aperfeiçoamento de capacidade de expressão.

Conclusão

A introdução de aulas de Retórica na disciplina de Comunicação e Expressão para o curso

de Análise e Desenvolvimento de Sistemas em uma escola superior de tecnologia mostrou efeito

bastante positivo na aquisição de conceitos voltados para a área das ciências humanas, não

consideradas como básicas nesses cursos e por isso objeto de menor empenho pelos alunos.

A pesquisa mostrou que, embora grande parte desses conceitos seja intuitiva, pois

convencimento e persuasão, por exemplo, encontram-se imbricados no discurso e são de uso

corrente, a compreensão de conceitos da Retórica proporciona uma visão mais clara e pragmática

desse conhecimento intuitivo.

Além da aquisição desse conhecimento, há indícios de melhora na compreensão de

conteúdos e na qualidade da produção textual. Os alunos passaram a observar melhor os

argumentos, e a utilizar conscientemente os conhecimentos a eles associados, em textos escritos.

Os estudantes de tecnologia buscam por carreiras e grande parte deles espera atingir

posições de gerência nas organizações em que trabalharem ou estar à frente de seu próprio negócio.

Essas possibilidades de ascensão dependem significativamente da capacidade de se exprimir e de

argumentar.

O ensino de humanidades em geral e particularmente o de Retórica contribuem para

aquisição dessas habilidades. A experiência de dez semestres tem mostrado que os alunos, ao serem

alertados para esse conjunto de fatos, entendem perfeitamente a mensagem e passam a encarar com

muito mais atenção, e mesmo respeito, não apenas os estudos de argumentação como os de

humanidades em geral.

Referências

ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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________. Arte Retórica e Arte Poética. São Paulo: Ediouro Publicações, S.A., 2002.

________. Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1995.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral. 4. ed., vol I, São Paulo: Pontes, 2002.

BRZOVIC, K.; FRAER, L.; LOEWY, D.; VOGT, G. Core Competencies and Assessment in

Business Writing: BUAD 201, 301 and 501. California State University at Fullerton, USA, 2012.

FATEC-Guaratinguetá, Perfil do aluno de Análise de Sistemas,

http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, (acesso em 04/03/2012).

GREIMAS, A.J; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

KOCK, I.V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo, Contexto, 1998.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes Editores,

1997.

MEYER, M., Questões de Retórica: linguagem, razão e sedução. Lisboa, Portugal: Edições 70

Ltd., 2007.

PERELMAN, C.; TYTECA, L. Tratado da argumentação, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

PLANTIN, C. A Argumentação: história, teorias, perspectivas, Tradução Marcos Marcionilo,

São Paulo, Parábola Editorial, 2008.

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NA CIRANDA DOS SENTIDOS: A POLIFONIA DE LOCUTORES NO GÊNERO

REPORTAGEM IMPRESSA

Francisco Vieira da SILVA75

Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA76

Resumo: Esse artigo se propõe a analisar a polifonia de locutores no gênero reportagem impressa.

Para isso, retomamos os pressupostos teóricos da Semântica Argumentativa, conforme postulada

por Ducrot (1988) e colaboradores. Tomamos como corpus para análise cinco reportagens

impressas publicadas na revista Veja. A análise de tais reportagens permitiu-nos evidenciar três

modos de materialização da polifonia, a saber: i) estilo direto com ou sem verbo dicendi, com ou

sem arrozoado por autoridade; ii) estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem

arrozoado por autoridade; iii) aspas de diferenciação.

Palavras-chave: Polifonia de locutores. Reportagem impressa. Argumentação.

Resumen: Este artículo busca analizar la polifonía de locutores en el género reportaje impresa.

Para esto, retomamos los presupuestos teóricos de la semántica Argumentativa, de acuerdo con

Ducrot (1988) y colaboradores. Tomamos como corpus para los análisis cinco reportajes impresas

publicadas en la revista veja. La análisis de tales reportajes nos permitió evidenciar tres modos de

materialización de la polifonía, a conocer: i) estilo directo con o sin verbo dicendi, con o sin

defensa por autoridad; ii) estilo directo con verbo dicendi modalizador con o sin defensa por

autoridad; iii) comillas de diferenciación.

Palabras–llave: Polifonía de locutores. Reportaje impresa. Argumentación.

Introdução

Uma máxima atribuída ao escritor britânico G. K. Chersterton prega que “as pessoas

geralmente brigam porque não sabem argumentar”. Com efeito, seja para apaziguar os ânimos, seja

para inflamá-los, o fato é que a argumentação está presente, em maior ou menor grau, nas diferentes

instâncias que perpassam a atividade humana da comunicação. Com diferentes objetivos, estamos

75 Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutorando do Programa

de Pós-Graduação em Linguística (PROLING). Membro do Círculo de Discussões em Análise do Discurso

(CIDADI), UFPB, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: [email protected]. 76

Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora

do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Pau dos Ferros,

RN, Brasil. E-mail: [email protected].

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sempre tentando persuadir o outro acerca de nosso ponto de vista e, muitas vezes, sequer nos

apercebemos. Assim, Nietzsche (2007) asseverava que ao mesmo tempo que o homem é constituído

pela linguagem, ele é um efeito dela. Arriscamos transpor esse raciocínio para pensarmos a relação

do sujeito por meio da argumentação, uma vez que esta é de fundamental importância na

constituição do sujeito e na relação com o outro, concebendo a linguagem a partir de um viés

dialógico.

Levando em consideração que a língua é constitutivamente argumentativa, conforme

apontam os pressupostos teóricos de Oswald Ducrot e colaboradores, pretendemos neste texto

descrever e analisar os marcadores da polifonia no gênero reportagem impressa, no intuito de

investigar o funcionamento semântico-argumentativo desses marcadores no gênero em estudo. Para

tanto, baseamo-nos teoricamente nos postulados ducrotianos a respeito da argumentatividade e no

redimensionamento dessa noção proposto por Espíndola (2003), para quem não somente a língua é

argumentativa por natureza, como também o uso que dela fazemos. A partir dessa ancoragem

teórica, objetivamos perscrutar ainda o modo como o locutor responsável pela reportagem impressa

se relaciona com os outros locutores, de modo a se engajar ou não com as vozes alheias.

Encontrando eco em trabalhos já desenvolvidos na área, a exemplo dos estudos de

Nascimento (2005; 2012a), nos quais esse autor analisa o fenômeno da polifonia de locutores nos

gêneros notícia jornalística e ata, na perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua (TAL),

tomamos como corpus para essa investigação 05 (cinco) reportagens veiculadas na edição impressa

da revista VEJA, no ano de 201377

. Vislumbramos a possibilidade de estudarmos a polifonia de

locutores, não prescindindo de levar em conta as especificidades do gênero reportagem, as quais,

em alguma medida, incidem sobre a constituição semântico-argumentativa desse gênero.

Esse texto encontra-se estruturado em algumas seções, além desses comentários

introdutórios, quais sejam: na seção a seguir, priorizamos discutir de forma breve acerca dos

principais aspectos da TAL; após esse momento, centramos o foco no conceito de polifonia de

locutores; posteriormente, tratamos de caracterizar o gênero reportagem impressa, situando-o no

cerne do domínio discursivo jornalístico. Na seção seguinte, lançamos nosso olhar sobre o corpus,

tomando como subsídio as teorizações anteriormente expressas para, na seção final, fazermos

algumas considerações mais gerais sobre a análise realizada.

77 A revista VEJA foi criada em 1968 e, atualmente, é publicada pela Editora Abril. Escolhemos essa

revista pelo fato de ela ser a mais vendida do Brasil, “a única revista de informação no mundo a desfrutar de

tal situação. Em outros países, revistas semanais de informação vendem bem, mas nenhuma é a mais vendida

– esse posto geralmente fica com as revistas de tevê” (SCALZO, 2003, p.31).

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A Teoria da Argumentação na Língua

As teorizações de Ducrot e colaboradores (1988), na constituição da denominada Teoria da

Argumentação na Língua (TAL), contrapõem-se de modo fulcral à concepção tradicional do

sentido. Para esses pensadores, normalmente se consideram três indicações do sentido no

enunciado: as indicações objetivas, subjetivas e intersubjetivas. As objetivas descrevem a realidade,

as subjetivas, por sua vez, denotam a atitude do locutor ante a realidade descrita, e as intersubjetivas

englobam as relações do locutor com aqueles para quem endereça seu dizer. As divergências de

Ducrot no que concerne a essa concepção de sentido dizem respeito ao fato de aquele autor

acreditar que “a linguagem ordinária não possui uma parte objetiva, tampouco os enunciados

descrevem a realidade” (NASCIMENTO, 2012b, p.53).

Assim, Ducrot (1988) postula que, se há a possibilidade de a língua ordinária descrever a

realidade, isso ocorre por meio dos elementos subjetivos e intersubjetivos, os quais ele denomina de

valor argumentativo. Esse valor argumentativo está atrelado à orientação que o enunciado dá ao

discurso. A ideia de sentido em Ducrot liga-se inextricavelmente à direção. Noutras palavras, a

argumentação não recobre apenas a significação, mas, sobretudo, a direção que um dado enunciado

imprime ao discurso.

É relevante definir alguns termos utilizados amiúde em diferentes vertentes linguísticas e

que, na ótica da TAL, apresentam uma conotação específica. Trata-se das noções de frase,

enunciado, língua e discurso. Nessa perspectiva teórica, a frase é concebida como uma abstração

que permite a consecução do enunciado. Segundo Ducrot (1988, p.65): “El enunciado es la realidad

empírica, observale, y la frase es la entidad teórica, lingüística, contruida por el lingüista”. Esse

autor compreende a língua como um conjunto de frases, ao passo que o discurso é visto como uma

sucessão de enunciados.

A TAL tem passado por (re)configurações constantes, em consonância com a não-fixidez do

próprio conhecimento científico, confirmando o pensamento de Barthes (1978, p.27), segundo o

qual “as ciências não são eternas”, o que explica, portanto, as diferentes fases que essa teoria

apresenta: Descritivismo Radical, Descritivismo Pressuposicional, Argumentação como

Constituinte da Significação, Argumentatividade Radical e, mais recentemente, presenciamos o

despontar do atual momento da TAL, corporificado na Teoria dos Blocos Semânticos. Não nos

interessa historicizar de modo exaustivo cada uma dessas fases, mas antes considerar, ainda que

sumariamente, a natureza fluida e cambiante da TAL em seu desenvolvimento epistemológico ao

longo do tempo. No entanto, de maneira bem sumária, é possível reconhecer que estas fases

caracterizam-se por um movimento em que ora se não se considera uma relação direta entre língua e

argumentação, na fase do Descritivismo Radical, na qual, segundo Anscombre e Ducrot (1994), as

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contribuições da língua à argumentação não eram propriamente argumentativa, pois se encontravam

ainda no nível da descrição dos fatos, até a fase da Argumentatividade Radical em que se considera

o par língua e argumentação como indissociável.

O sentido do enunciado em Ducrot, conforme defende Nascimento (2009), está relacionado

com a noção de polifonia – concebida como as diferentes vozes mobilizadas pelo locutor que

marcam a enunciação e que se materializam discursivamente por meio de diferentes estratégias.

Essa noção se enxerta no seio de outros marcadores que ativam a argumentatividade na língua,

como os operadores argumentativos, os modificadores, os modalizadores, a pressuposição, dentre

outros.

A noção de polifonia

O conceito de polifonia advém das análises de Bakhtin (2002), a partir do exame da obra de

Doistoévski. Ao estudar tal obra, esse teórico russo distingue dois tipos de literatura: a dogmática e

a polifônica. Enquanto na primeira prevalece apenas a voz do autor, a despeito de existir vários

personagens, na segunda, diversas vozes entram em contato, e a voz do autor se apresenta como

uma delas, não havendo, pois, a emergência de uma voz que controle as demais, como na literatura

dogmática. Nesse sentido, o termo polifonia, proveniente do universo musical, expressa a

multiplicidade de vozes existente nos discursos. No caso da literatura polifônica, “todos os

elementos de sua estrutura são determinados pela tarefa de construir um mundo polifônico e um

herói cuja voz se estrutura do mesmo modo [...] que a voz do autor do romance” (BRAIT, 2009,

p.55).

A inserção da noção de polifonia no âmbito dos estudos linguísticos deve-se,

principalmente, ao fato de Ducrot (1988, p.16) entender que “el autor de un enunciado no se

expresa nunca directamente, sino que pone en escena en mismo enunciado um cierto numero de

personajes”. Com isso, Ducrot desfaz a ideia de uma pretensa unicidade do sujeito falante, segundo

a qual num enunciado encontramos somente uma única voz. Para tanto, Esse autor categoriza o

sujeito em três dimensões: o sujeito empírico, o locutor e o enunciador.

O sujeito empírico (SE), conforme postula Ducrot (1988), refere-se ao autor efetivo,

produtor do enunciado; o locutor (L) é concebido como aquele que se responsabiliza pelo dito, já o

enunciador (E) abrange os diferentes pontos de vista apresentados num enunciado. Refletindo sobre

essa classificação, Silva (2012, p.51) esclarece que “o próprio locutor pode representar um desses

pontos de vista, embora mantenha uma certa distância em relação a eles”.

Ducrot identifica duas formas de polifonia: a polifonia de locutores e a de enunciadores.

Como nosso foco centrar-se-á sobre esta última, descreveremos em seguida os modos através dos

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quais esse tipo de polifonia se materializa. A polifonia de locutores ocorre no discurso relatado,

corporificando-se por meio das aspas, citações, referências, argumentação por autoridade, dentre

outros modos. Essa possibilidade de aparecer múltiplas vozes

permite não somente dar a conhecer o discurso atribuído a alguém como também

produz um eco imitativo, ou ainda organizar um teatro no interior da própria fala,

ou que alguém se torne porta-voz de um outro e empregue, no mesmo discurso, eus

que remetem tanto ao porta-voz quanto à pessoal da qual é porta-voz

(NASCIMENTO, 2009, p.23-24, grifo do autor).

No caso do discurso relatado, a língua oferece uma série de recursos gráficos que o realça,

tais como: dois pontos, travessão, aspas, verbos dicendi, como podemos notar no excerto a seguir,

oriundo do corpus sobre o qual lançaremos nosso olhar.

Excerto 1: Casada há quinze anos, a advogada Letícia Queiroz de Andrade, 39,

teve certeza de que não teria filhos quando, com um mestrado recém-concluído, viu

a chance de engatar um doutorado. Ela tinha 34 anos. “Era ser mãe ou mergulhar

fundo no meu Ph.D. Fiquei com a segunda opção”, conta Letícia, que é hoje

professora universitária e sócia de um dos maiores escritórios de advocacia do país,

em São Paulo (VEJA, 2013, ed.2323 p.114, grifos nossos).

Nesse excerto, é possível identificar dois locutores: L1 – jornalista autor da reportagem, em

terceira pessoa e L2 – voz do sujeito que depôs para a reportagem, em primeira pessoa. A inserção

desse discurso segundo está marcada pelo verbo dicendi contar e pelas aspas. Estas últimas, de

acordo com Authier-Revuz (2004), são designadas pela intenção do locutor de suspender a

responsabilidade pelo dito, isentando-se de sanções futuras. Assim, nesse excerto, o discurso de L2

está no estilo direto, o que pressupõe certo distanciamento de L1 no tocante ao discurso relatado. O

estilo indireto implica um envolvimento maior com a voz alheia. Para Nascimento (2009, p.27):

“[...] trata-se de uma questão de maior ou menor comprometimento, já que no estilo indireto há uma

assimilação e, no direto, um distanciamento das palavras do outro.”

A argumentação por autoridade possui basicamente duas facetas, de acordo com Ducrot

(1987), quais sejam: a autoridade polifônica e arrozoado por autoridade. Interessa-nos esta última,

uma vez que ela se relaciona com a polifonia de locutores. Nesse caso, o locutor responsável pelo

dito (L1) traz para seu discurso a voz de um outro locutor (L2), com a qual estabelece uma relação

de identificação. Essa voz de autoridade legitima a argumentação de L1. Na escrita jornalística, essa

prática é bastante comum, tendo em vista que o locutor precisa imprimir certa confiabilidade ao seu

dizer. O excerto abaixo transcrito, proveniente do corpus desse trabalho, ilustra o que estamos

afirmando.

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Excerto 2: “Direta ou indiretamente, a [vitamina] D está relacionada a pelo menos

2000 genes, o que comprova a sua vasta gama de benefícios”, disse a VEJA o

endocrinologista americano Michael Holick, professor da Universidade de Boston,

o grande pesquisador do assunto e autor do livro Vitamina D – Como um

Tratamento Tão Simples Pode Reverter Doenças Tão Importantes. (VEJA, 2013,

ed.2304, p.66, grifo nosso)

Para referendar o seu ponto de vista, L1, autor da reportagem, cujo tema trata dos benefícios

da vitamina D, traz para o seu discurso a voz de uma autoridade que se encontra identificada pelas

credenciais acadêmicas (publicação na área, universidade na qual leciona). A autoridade mobilizada

por L1 é de substancial importância no sentido de legitimar o seu dizer, uma vez que se trata da voz

de um especialista na área. O arrozoado por autoridade, para que possa constituir-se como tal,

necessita vir indicado, de algum modo, no discurso do locutor responsável pelo dito

(NASCIMENTO, 2005). Não basta somente o sujeito ser reconhecido socialmente como uma

autoridade, é necessário que o locutor responsável assim o identifique.

Um último aspecto a ser discutido nessa seção diz respeito aos verbos dicendi, os quais são

responsáveis pela introdução das vozes alheias. Tais verbos podem se comportar discursivamente

como modalizadores (NASCIMENTO, 2005). Seguindo a classificação proposta por esse autor, os

verbos dicendi são agrupados em duas categorias: os verbos dicendi não-modalizadores e os verbos

dicendi modalizadores. Os primeiros são verbos que apresentam o discurso de L2, sem deixar

marcas de avaliação daquele que o introduz (L1), a exemplo dos verbos perguntar, dizer, dentre

outros. Já os modalizadores, ao mesmo tempo em que inserem o discurso de L2, indicam uma

avaliação, uma orientação conferida por L1, tais como explicar, confirmar, entre outros.

Sobre o gênero reportagem impressa

Objetivamos nesta seção tecer alguns comentários acerca do gênero reportagem impressa,

considerando a noção de gênero do discurso de Bakhtin (2000). Para esse autor, os gêneros

apresentam três critérios que os definem: conteúdo temático, estilo e estrutura composicional. Em

seguida, tangenciaremos o gênero em estudo com tais critérios, mas antes achamos conveniente

relacioná-lo com o domínio jornalístico do qual ele provém.

Em primeiro lugar, é necessário situar a reportagem no âmbito dos gêneros jornalísticos,

incluindo aí as idiossincrasias que os caracterizam. Nesse sentido, atentamos para o fato de as linhas

divisoras que separam um gênero jornalístico de outro serem evanescentes, o que explica a profusão

de gêneros híbridos e, em alguns casos, indefiníveis, inclassificáveis, pois apresentam propriedades

inerentes a outros gêneros. Sobre essa questão, convocamos Bawarshi e Reiff (2013, p.18) que, ao

resenharem o estudo de Bonini (2009) acerca dos gêneros notícia e reportagem veiculados no

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Jornal do Brasil, afirmam: “as fronteiras entre esses gêneros jornalísticos são confusas, havendo

sobreposição de movimentos retóricos”. Entendemos que a natureza miscigenada de tais gêneros

advém da multiplicidade que circunda a práxis jornalística, profundamente ligada ao desejo de

separar nitidamente a informação da opinião. Essa tentativa, muitas vezes frustrante, esbarra na

instabilidade da linguagem, a qual, em alguns momentos, reluta a classificações; assim “não

podemos definir a linguagem em sua totalidade dentro da perspectiva categorizadora, pois o novo

não é categorizável” (BONINI, 2008, p.57).

No caso das reportagens que compõem o corpus desse trabalho, acreditamos que esse

gênero apresenta-se na sua forma mais prototípica, pois se trata de reportagens de capa. As próprias

capas, por seu turno, cumprem um papel comunicativo e um modelo mais ou menos estável de

produção que entrelaça o verbal e o imagético (PEREIRA, 2013). Desse modo, as reportagens de

capa ganham um destaque em relação aos outros gêneros presentes na revista. Em síntese, esse

gênero tem como conteúdo temático, em sintonia com os critérios bakhtinianos já arrolados, “o

relato ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações

que são percebidas pela instituição jornalística” (MELO, 2003, p.66).

Na revista VEJA, tal conteúdo pode se referir tanto a acontecimentos marcantes que

reverberaram no decorrer da semana (com ênfase nos fatos políticos), quanto a assuntos de interesse

mais geral concernentes à saúde, às tecnologias, ao emprego, ao comportamento, dentre outros.

Geralmente, as reportagens de capa de VEJA ocupam de oito a dez páginas da publicação e se

encontram numa relação de homologia com as imagens da capa. Assim, na edição 2315 (maio de

2013), por exemplo, a capa traz um executivo com um avental, como se estivesse defronte a uma

pia de louça suja. Com uma esponja na mão, o pretenso executivo apresenta um semblante

desolador frente à tarefa doméstica que o aguarda e o assusta. A reportagem de capa trata das novas

legislações trabalhistas das empregadas domésticas no país e a imagem vem corroborar os efeitos de

sentido que a revista imprime sobre o tema, qual seja: o desamparo dos patrões em face das

exigências da legislação no que se refere, principalmente, às consequências que isso implica no

orçamento familiar.

A questão do estilo em Bakhtin é o aspecto mais suscetível à mutabilidade: é a um só tempo

a expressão da relação discursiva típica do gênero e a expressão pessoal do autor no âmbito do

gênero (SOBRAL, 2009). No tocante à reportagem, o estilo pode atrelar-se a algumas

peculiaridades presentes nesse gênero como, por exemplo, uma pretensa “objetividade” no relato

dos fatos, a recorrência a outras vozes, uma certa predominância da forma narrativa (SODRÉ e

FERRARI, 1986), além do uso recorrente do argumento de autoridade, conforme delinearemos

posteriormente na análise das reportagens de VEJA.

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Em relação à estrutura composicional, entendemos que a reportagem não possui uma

estrutura fixa identificável, não se trata de um gênero formulaico, mas podemos entrever

determinadas regularidades no que se refere à abertura da reportagem, uma vez que “se destina

basicamente a chamar a atenção do leitor e conquistá-lo para a leitura do texto” (SODRÉ e

FERRARI, 1986, p.67). Antes da abertura, as reportagens impressas de VEJA apresentam uma

espécie de texto-síntese que contém a informação principal a ser esmiuçada no decorrer do texto.

Destaca-se ainda a ampla utilização de imagens, boxes informativos, infográficos e tabelas, os

quais, em alguns casos, didatizam visualmente os conceitos discutidos ao longo da reportagem.

A polifonia na reportagem impressa

Conforme já explicitamos anteriormente, nosso corpus é formado por cinco reportagens

impressas veiculadas na revista VEJA, no ano de 2013. Escolhemos aleatoriamente esse número de

reportagens dentre as edições da VEJA publicadas nesse período, de modo que não nos interessou

evidenciar uma unidade temática para as reportagens coletadas ou quaisquer regularidades que as

tornassem aparentemente homogêneas. Os temas abordados por essas reportagens e a extensão de

cada uma delas encontram-se explicitados no quadro abaixo:

Título da reportagem de capa Nº de

páginas

2013 previsões (ed.2302) 10

D – O que você não sabe

sobre a vitamina do sol (ed.2304)

10

Você amanhã (ed.2315) 08

A escolha de Angelina

(ed.2322)

10

Filhos? Não, obrigada!

(ed.2323)

08

Diante desse corpus, constatamos a recorrência da polifonia de locutores marcada por

algumas formas, as quais discutidas a seguir. Embora este estudo seja de natureza eminentemente

qualitativa, consideramos conveniente quantificar as formas através das quais a polifonia de

locutores se efetua, com o intuito de especificar o efeito de sentido que emerge dessas construções,

além de cotejá-lo com as especificidades do gênero. O quadro a seguir sumariza os modos de

aparição da polifonia na reportagem e a ocorrência com que aparecem no corpus. Posteriormente,

descreveremos, através de excertos, cada um desses modos de apropriação das vozes alheias.

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Modos de materialização da polifonia de locutores na reportagem impressa Oco

rrência

Estilo direto com ou sem verbo dicendi não-modalizador, com ou sem arrozoado

por autoridade

37

Estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem arrozoado de

autoridade

23

Estilo indireto com verbo dicendi (não)modalizador, com ou sem arrozoado de

autoridade

0

Aspas de diferenciação 09

Diante dos dados presentes no quadro acima, podemos depreender que, nas reportagens

coletadas para esse trabalho, a polifonia de locutores se manifesta, principalmente, por meio do

estilo direto, mais precisamente através da utilização de verbos dicendi, ou mesmo sem a aparição

desse verbo introdutor. Os excertos a seguir ilustram o que estamos afirmando:

Excerto 3: A corretora de imóveis Érica Miranda, 39 anos, teve vários

relacionamentos sérios, mas não encontrou ninguém que imaginasse no papel de

pai, e foi empurrando a maternidade. Até que ela própria deixou de ser como mãe.

“Minha vida está completamente preenchida sem filhos. Sinto que o momento

passou”, diz a mineira, que hoje vive imersa em uma rotina de trabalho sem horário

fixo no Rio de Janeiro. (VEJA, 2013, ed. 2323, p.119, grifo nosso)

Excerto 4: “A relação empregada-patroa, que mistura exploração e solidariedade,

tem origem no período da escravidão, quando a senhora da casa não tinha outra

função que não a de acompanhar o serviço da cozinha e passava o dia ao lado das

escravas e dos seus filhos”, diz a historiadora Mary del Priore. (VEJA, 2013, ed.

2315, p.77, grifo nosso)

Em ambos os excertos anteriormente expressos, observamos a presença de dois locutores: o

L1 (responsável pelos discursos) e L2 (Érica Miranda e Mary del Priore), evidenciando, desse

modo, a presença dos personagens mobilizados pelo locutor na constituição de um enunciado

(DUCROT, 1988). Na introdução dos discursos de L2, verificamos a presença do verbo dicendi

dizer. Esse verbo, conforme explicitamos, não é modalizador, ou seja, o locutor, ao utilizá-lo, não

emite nenhum tipo de valor subjetivo. Dessa maneira, o relato em estilo direto pressupõe certo

distanciamento do locutor responsável pelo dito em relação ao discurso de L2.

É preciso registrar ainda a recorrência do arrozoado por autoridade, presente no quarto

excerto, o qual reitera a argumentatividade de L1, ao trazer para seu discurso a voz de um

especialista no assunto (historiador) para dissertar, do ponto de vista histórico, acerca dos novos

desdobramentos provenientes das recentes legislações trabalhistas das empregadas domésticas. Na

escrita jornalística, a utilização do arrozoado por autoridade é uma constante, tendo em vista que

esse campo precisa construir uma imagem de credibilidade frente ao público.

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Já nos excertos a seguir, a introdução dos discursos alheios se dá por meio de verbos dicendi

modalizadores, a partir dos quais o locutor expressa seu relacionamento com o conteúdo

proposicional, “avaliando seu teor de verdade ou expressando seu julgamento sobre a forma

escolhida para a verbalização desse conteúdo” (CASTILHO e CASTILHO, 2002, p.201). No caso

dos verbos que inserem as vozes alheias nas reportagens estudadas, entendemos que o locutor

responsável pelo enunciado como um todo avalia o discurso de L2 e, ao mesmo tempo, instaura

determinado efeito de sentido que poderá funcionar como um protocolo de leitura, de modo a

indicar como esse discurso deve ser lido/entendido. Vejamos os excertos abaixo:

Excerto 5: Ela suspendeu o tratamento, a carreira se deslanchou e o casamento só

se fortaleceu. Não foi fácil. Todos os seus sete irmãos têm filhos – e ela, dezenove

sobrinhos. “Naquele tempo, era mais dura a decisão de não ter filhos”, lembra a

atriz. (VEJA, 2013, p.116, ed. 2323, grifo nosso)

Excerto 6: “Me sinto bem na função de tia. As crianças me adoram”, gaba-se.

(VEJA, 2013, ed. 2323, p.118, grifo nosso)

Excerto 7: Segundo no ranking mundial das neoplasias mais incidentes, o câncer de

mama é, sem dúvida, o mais estudado – e “está entre os mais curáveis, lembra

Paulo Hoff, oncologista do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. (VEJA, 2013,

ed.2322, p.96, grifo nosso)

Excerto 8: “Como a vitamina D é solúvel na gordura, ela é armazenada no tecido

adiposo e liberada mesmo durante o inverno, permitindo níveis suficientes de

vitamina durante o ano todo”, afirma Michael Hollick. (VEJA, 2013, ed. 2304,

p.69, grifo nosso)

Os verbos dicendi responsáveis pela inserção das vozes alheias nos excertos citados trazem

avaliações por parte de L1 em relação aos discursos de L2. Acreditamos que se trata de verbos

modalizadores, concebendo o fenômeno da modalização como “um ato de fala particular que

permite ao locutor, além de deixar marcas de suas intenções, agir em função do seu interlocutor”

(NASCIMENTO e SILVA, 2012, p.63).

No caso dos excertos cinco e sete, observamos que L1 se distancia do discurso de L2,

devido à utilização o estilo direto, deixando registrado, a partir do verbo lembrar como o relato de

L2 deve ser lido. No excerto três, L1, responsável pelo enunciado, lança mão do verbo dicendi

gabar, a fim de introduzir o discurso de L2, denotando certa avaliação em relação a esse discurso.

No último excerto, temos uma modalização epistêmica asseverativa, uma vez que o verbo

introdutor afirmar exprime a noção de certeza. Esse não-engajamento de L1 com o discurso de L2

perpassa de modo efusivo os enunciados presentes nas reportagens analisadas, o que explica, por

exemplo, a inexistência do discurso indireto que, em tese, indicaria um engajamento maior por parte

de L1.

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Nos excertos abaixo transcritos, notamos a presença das aspas de diferenciação. Atentamos

para o funcionamento semântico-argumentativo desse recurso na reportagem.

Excerto 9: No caso de proliferação exagerada das células, ela induziria à apoptose

– mecanismo de defesa no qual células potencialmente malignas “cometem

suicídio”. (VEJA, 2013, ed.2322, p.74)

Excerto 10: Assim, dizer que Maria “é como se fosse da família” pode ser uma

verdade em termos sentimentais, mas pode também ser uma crença que resulta no

escamoteamento de obrigações empregatícias. (VEJA, 2013, ed.2315, p.79)

Excerto 11: A história já provou que leis que aterrisam no vácuo não “pegam.”

(VEJA, 2013, ed.2315, p.81)

Excerto 12: Ocorre que “esse sistema de bondades” esconde problemas. (VEJA,

2013, ed.2315, p.79)

As aspas põem o locutor em posição de juiz e de dono das palavras, capaz de recuar, de

emitir um julgamento sobre as palavras no momento em que as utiliza (AUTHIER-REVUZ, 2004).

Com efeito, quando o locutor lança mão das aspas de diferenciação, ele imputa a responsabilidade

do dizer a um outro locutor, de maneira a isentar-se daquilo que enuncia. Nos excertos citados, o

locutor utiliza as aspas de diferenciação com diferentes asserções: no excerto nove as aspas exercem

a função de vulgarizar um dado conhecimento científico, aproximando do senso comum; no excerto

seguinte, o trecho destacado por aspas circunscreve um lugar comum, uma crença; em “pegam”, as

aspas estão relacionadas a um sentido figurativo do verbo e, por fim, na última ocorrência, o uso das

aspas exprime uma ironia.

Ao relacionarmos o funcionamento dos marcadores da polifonia com as temáticas das

reportagens analisadas, obtivemos os seguintes dados, de acordo com que se observa no quadro

abaixo expresso:

Temática-título da reportagem Esti

lo direto

com ou sem

verbo não-

modalizador

Estilo

direto com

verbo

modalizador

As

pas de

diferencação

2013 previsões (ed.2302) 07 04 02

D – O que você não sabe sobre a

vitamina do sol (ed.2304)

08 04 02

Você amanhã (ed.2315) 08 06 04

A escolha de Angelina (ed.2322) 07 04 __

Filhos? Não, obrigada! (ed.2323) 07 05 01

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A associação entre os modos de materialização da polifonia de locutores e a temáticas das

reportagens evidencia uma equidade do ponto de vista quantitativo, o que assinala o fato de o

funcionamento dos marcadores da polifonia não está vinculado ao conteúdo da reportagem, mas ao

gênero em si, considerado no âmbito da esfera jornalística e das especificidades que a caracterizam.

Nesse sentido, a mobilização de vozes alheias e a forma através da qual o locutor responsável pelo

dito relaciona-se com elas no esteio da reportagem independe do tema que está sendo tratado.

Considerações Finais

Traçamos como objetivo para este texto analisar os marcadores da polifonia de locutores no

gênero reportagem impressa. Para tanto, pautamo-nos na perspectiva da Teoria da Argumentação na

Língua (TAL), conforme postulada por Ducrot (1988) e colaboradores. Segundo esses autores, a

língua é constitutivamente argumentativa, de modo que na sua estrutura subsistem determinados

elementos os quais ativam essa característica que lhe é intrínseca (BARBISAN, 2013). Dentre esses

elementos, tomamos a polifonia de locutores como objeto de análise no gênero reportagem

impressa, por acreditarmos que a recorrência às vozes alheias é uma das principais especificidades

no exercício da escrita jornalística.

A análise das reportagens permitiu-nos evidenciar três modos de materialização da

polifonia, a saber: i) estilo direto com ou sem verbo dicendi, com ou sem arrozoado por autoridade;

ii) estilo direto com verbo dicendi modalizador, com ou sem arrozoado por autoridade; iii) aspas de

diferenciação. Esses modos marcam a polifonia de locutores no gênero estudado e delineiam um

não-engajamento por parte do sujeito responsável pelo enunciado como um todo, tendo em vista a

predominância do estilo direto, bem como a inexistência do estilo indireto, o qual, poderia incitar,

em maior ou menor grau, um engajamento de L1 com o discurso relatado.

Esse distanciamento do locutor responsável pelo dito no gênero reportagem pode vincular-se

a tão propalada objetividade dos textos jornalísticos, e de maneira particular da reportagem

(SODRÉ e FERRARI, 1986), que prevê (ilusoriamente!) o apagamento das marcas de

subjetividade. De qualquer modo, os reflexos do fazer jornalístico incidem sensivelmente sobre os

gêneros produzidos no âmbito desse campo. O estudo de Nascimento (2005) acerca do gênero

notícia, por exemplo, corrobora o que estamos afirmando, na medida em que constatou que as

estratégias de não-engajamento sobressaem-se sobre as de engajamento, em função da necessidade

de criação e manutenção da imagem de neutralidade/objetividade do texto jornalístico.78

78 Numa incursão nos sites de busca da web, não foi possível localizar trabalhos que estudassem a

polifonia de locutores no gênero reportagem. O estudo que mais se assemelha a este, no sentido de tomar

como corpus um gênero presente na revista VEJA e pautar-se nos pressupostos teóricos de Ducrot é o

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No entanto, cabe ressaltar o funcionamento dos verbos dicendi utilizados no discurso direto,

o que denota, à primeira vista, uma objetividade por parte de L1. Todavia, se considerarmos que

estes verbos também exprimem certa subjetividade do sujeito responsável pelo dito, pois ele não

escolhe qualquer verbo e não utiliza despretensiosamente, é possível relativizar o não-engajamento

proclamado no parágrafo anterior.

Ademais, reiteramos a recorrência do arrozoado por autoridade nas reportagens analisadas, o

que assinala a atividade jornalística enquanto uma instância que se caracteriza na incessante busca

de garantir a credibilidade (NAVARRO, 2010). Assim, construir uma imagem crível junto ao

público redunda em lançar mão de vozes de especialistas em diferentes áreas, as quais são

responsáveis por legitimar o discurso da reportagem. Quando o locutor que assume a

responsabilidade pelo dito recorre a uma voz de autoridade, ele o faz, com vistas a endossar a

argumentatividade do seu dizer. Essas vozes especializadas, constantemente retomadas pelo locutor

da reportagem, atrelam-se de modo intrínseco ao conhecimento científico, de modo a notabilizar o

laço incestuoso existente entre a ciência e a mídia, tendo em vista que a primeira confere seriedade

e atualidade à segunda (TUCHERMAN e CAVALCANTI, 2013).

É necessário ressaltar que outras pesquisas, com um corpus mais amplo, incluindo aí as

variações referentes ao suporte, veículo, perfil dos leitores, dentre outras, poderão subsidiar

conclusões distintas destas aqui dispostas, acenando para outras possibilidades de caracterizarmos a

reportagem, a partir da análise e descrição dos marcadores da polifonia de locutores, concebendo

esta última como constitutiva da língua, em conformidade com os pressupostos de Ducrot (1988),

segundo os quais a língua é eminentemente argumentativa, porque na sua própria estrutura contém

marcas que ativam, em alguma medida, a argumentação.

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O GÊNERO TEXTUAL MINICONTO NO ENSINO DE LEITURA E ESCRITA

José Carlos KÖCHE79

Vanilda Salton KÖCHE80

Adiane Fogali MARINELLO81

Resumo: Este artigo aborda o gênero textual miniconto, sua definição, características e estrutura, e

propõe atividades de leitura e escrita para exploração do gênero junto aos alunos do Ensino Médio e

Superior. O trabalho integra a pesquisa-ensino Leitura, escrita e práticas de análise linguística a

partir de gêneros textuais, desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul. A pesquisa apresenta

um enfoque qualitativo-interpretativo e de aplicação didático-pedagógica. Fundamentam este artigo

os PCN+ (2002), e os autores: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza; Souza

(2013) e Spalding (2008).

Palavras-chave: Gênero textual. Miniconto. Leitura e produção textual.

Abstract: This article discusses the flash fiction genre, its definition, characteristics and structure,

and suggests reading and writing activities to explore the genre with students from high school or

college. The work integrates research-teaching of reading, writing and the practices of linguistic

analysis of text genres, developed at University of Caxias do Sul. The research presents a

qualitative-interpretive approach and didactic-pedagogical use. This article is based on the PCN+

(2002) and the following authors: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza;

Souza (2013) and Spalding (2008).

Keywords: Text genre. Flash fiction. Reading and writing.

79 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidad de Salamanca. Professor do Centro de

Ciências Humanas e da Educação, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.

E-mail: [email protected] 80

Mestre em Estudos de Linguagem pela UFRGS. Professora do Centro de Ciências Sociais e

da Educação, Universidade de Caxias do Sul – CARVI, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:

[email protected] 81

Mestre em Letras e Cultura Regional pela UCS. Professora do Centro de Ciências Sociais e

da Educação, Universidade de Caxias do Sul – CARVI, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:

[email protected]

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Introdução

A eficiência no uso da língua materna é uma das principais exigências do mundo

contemporâneo. Para atender a essa necessidade, a disciplina de Língua Portuguesa no Ensino

Médio e a disciplina de Leitura e Produção Textual no Curso de Graduação em Letras buscam

aperfeiçoar a competência discursiva do estudante.

Nesse sentido, os PCN+ Ensino Médio (2002) afirmam que é preciso oportunizar ao aluno

situações de ensino-aprendizagem que propiciem o desenvolvimento do espírito crítico, da

percepção das diversas formas de expressão linguística e da capacidade de ler efetivamente os

diferentes textos. O documento ressalta a necessidade de ampliar e articular competências e

conhecimentos que possam ser mobilizados pelo estudante nas inúmeras situações comunicativas de

seu cotidiano.

Por sua vez, as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Letras preconizam o “domínio do

uso da língua portuguesa, nas suas manifestações oral e escrita, em termos de recepção e produção

de textos” (2001, p.30). Assim, torna-se fundamental o trabalho com gêneros textuais de circulação

social.

Este artigo objetiva caracterizar e analisar o gênero textual miniconto e propor atividades de

leitura, escrita, análise da linguagem e reflexão linguística a partir desse gênero, que poderão

contribuir para a ação pedagógica dos professores. Fundamentam este trabalho os PCN+ Ensino

Médio (2002) e os autores: Capaverde (2004), Lagmanovich (2009), Rodrigues; Souza; Souza

(2013) e Spalding (2008).

O miniconto

O miniconto é um gênero textual narrativo literário conciso, com um só conflito, poucas

personagens e número reduzido de ações, que ocorrem num tempo e espaço limitados. Esse gênero

é escrito em prosa, apresenta narrador e o tempo é indicado especialmente por formas verbais e

adverbiais. Constitui uma narrativa bem mais condensada do que o conto, mas é completa e não um

simples fragmento de texto.

Lagmanovich (2009) afirma que o miniconto possui um título significativo, e este é um

elemento praticamente indispensável do texto. Segundo o autor, o gênero pode expor situações

muito distantes da realidade, apresentar mundos inexistentes e inverter a ordem natural das coisas.

O autor prossegue dizendo que a primeira ação no miniconto não é necessariamente a ação

inicial em ordem cronológica. Acrescenta que o gênero admite diversas estratégias discursivas em

seu breve enredo e termina com um final que, embora não desencadeie obrigatoriamente surpresa

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no leitor, proporciona-lhe certo conhecimento a respeito do fechamento da narrativa.

De acordo com Capaverde (2004), o miniconto não ultrapassa duas páginas de extensão. A

autora destaca que o gênero tem sua origem na tradição oral e o denomina também de microconto,

microrrelato, minificção, conto brevíssimo ou conto em miniatura.

O miniconto possui três características essenciais, conforme Lagmanovich (2009): a

narratividade, a ficcionalidade e a brevidade ou concisão.

A narratividade é inerente aos textos que relatam fatos, envolvendo personagem, ação,

movimento, tempo e espaço. Por sua vez, a ficcionalidade refere-se a fatos oriundos da imaginação

ou invenção.

Lagmanovich (2009), ao caracterizar o miniconto, esclarece que prefere usar a palavra

concisão em vez de brevidade, pois um texto conciso não é o mesmo que um texto curto: um texto

mais extenso também pode ser conciso, se não há excessos, se nada é supérfluo e se são usadas

apenas palavras indispensáveis. Para o autor, uma escrita concisa equivale a dizer muito com

poucas palavras, o que é uma virtude dos grandes escritores.

Nesse sentido, Spalding (2008) faz uma ressalva ao afirmar que o miniconto precisa ter certo

grau de determinação para que o leitor possa preencher os seus vazios a partir da estrutura proposta.

Logo, nesse gênero, o leitor torna-se coautor da produção literária.

Lagmanovich (2009) concebe o miniconto como um produto literário autossuficiente e

autônomo. Ressalta que, apesar da rapidez da escrita e da leitura, o texto mantém significados

diversos e profundos.

O miniconto, conforme Rodrigues, Souza e Souza, requer dos leitores “uma postura

investigatória diante dos mais simples objetos significantes em seus mais recônditos detalhes, o que

culmina, quando de uma bem sucedida leitura, no prazer da descoberta” (2013, p.88). Assim, o

papel do leitor é essencial na construção do sentido desse gênero e as escolhas do autor devem ser

exatas para auxiliar o leitor nesse processo.

Spalding (2008) coloca que, apesar de o miniconto ser curto, produz um efeito no leitor. Ou

seja, pode gerar diferentes reações ou emoções: o leitor se identifica, sonha, ri, chora, se amedronta,

se enfurece e até reflete sobre suas vivências.

Geralmente, o narrador é anônimo e não participa dos fatos narrados, constituindo-se em

mero observador, narra os fatos como se conhecesse tudo o que se passa na trama, mas pode

também ser um narrador personagem que participa das ações.

Spalding (2008) atribui a disseminação do miniconto à internet, em virtude de ele ter o

tamanho adequado para a leitura na tela do computador, uma vez que a objetividade e a rapidez são

características do mundo contemporâneo.

Entre os escritores que produzem minicontos, conforme Capaverde (2004), destacam-se: no

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México, Juan José Arreola, Augusto Monterroso e René Avilés Fabila; na Venezuela, Luis Brito

Garcia, Gabriel Jimenez Emán e Ednodio Quinteros; na Argentina, Julio Cortázar, Marco Denevi e

Ana Maria Shua.

Já na literatura brasileira, sobressaem-se Dalton Trevisan, Luiz Rufatto, Sérgio Sant’Anna,

Tatiana Blum, Miguel Sanches Neto, Antonio Torres, João Gilberto Noll e Millôr Fernandes, entre

outros.

No Brasil, Dalton Trevisan foi o pioneiro na produção do gênero, com o livro Ah, é?.

Spalding (2008) afirma que a partir dessa obra e com a publicação de vários livros com minicontos,

houve uma reinvenção e revitalização do conto na literatura brasileira. Entre os minicontos do autor,

com menos de duas páginas, destacam-se Cemitério de Elefantes (1964), Uma vela para Dario

(1964), Bonde (1968), O ciclista (1968) e Apelo (1968).

O miniconto mais famoso do mundo é do escritor Augusto Monterroso: O dinossauro. É um

miniconto unifrasático, com apenas sete palavras, que gerou muitos estudos e persiste na tradição

literária. Conforme Spalding (2008), não existe nenhum texto unifrásico como O dinossauro, e

também não são comuns os minicontos com menos de um parágrafo.

De acordo com esse autor, o miniconto unifrásico consiste “numa narrativa que se constrói

para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto” (2008, p, 72). Exemplo:

Por que é que eu nunca anotei o número da emergência? (Douglas Ceccagno, Tarde).

O texto de Ceccagno possibilita a cada leitor recriar a situação sugerida pelas onze palavras

que o compõe.

Para Spalding (2008), o miniconto unifrásico mostra que existe sempre algo mais a cortar,

até que se chegue ao núcleo narrativo, em que substituir uma palavra modifica o sentido de todo o

texto e compromete seu efeito sobre o leitor. Segundo o autor, nesse gênero não há espaço para

descrições.

Análise ilustrativa de um miniconto

AS FLORES CRESCERAM

Douglas Ceccagno

As flores cresceram e invadiram o meu espaço, o meu ar; preencheram todos os vazios da

casa, enfeitaram o meu campo de visão, esconderam a sujeira das paredes e os defeitos do carpete.

Na minha cama já não se veem lençóis manchados, na cozinha a louça suja e o fogão engordurado

foram cobertos pelos caules, na sala de estar não há poeira sobre a estante, no banheiro

desapareceram os cabelos da pia e, na privada, não se encontram nem água suja nem restos de

excrementos. Meus sapatos embarrados estão longe do meu alcance, da mesma forma que minhas

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camisas suadas e o ocre de minhas roupas íntimas. As flores reduziram meu espaço ao canto da sala

e tomaram de mim tudo o que era meu: minha casa, meu ar, meus movimentos, meu corpo, minha

liberdade, meu desejo, meu sonho, minha vida e minha morte, meu futuro. Agora são elas que me

fornecem nutrientes para que eu cresça viçoso e alegre e que acredite que tenho ao meu redor todas

as belezas da Terra. E fui eu que, no princípio, as alimentei.

As flores cresceram, do escritor Douglas Ceccagno, constitui-se num miniconto. Diferencia-

se do conto por ser uma narrativa bem mais concisa e condensada. O protagonista é a única

personagem e também o narrador dos fatos. O emprego do adjetivo viçoso, no fragmento [...] para

que eu cresça viçoso [...], mostra que a personagem é do sexo masculino.

No miniconto, há um só conflito: o homem observa as flores tomarem conta de um espaço

que antes ele ocupara.

As ações ocorrem em um único espaço, a casa do protagonista. Este conta os fatos no

ambiente onde vivia: As flores reduziram meu espaço ao canto da sala [...]. As descrições mostram

como era esse ambiente e como ficara: as flores com seus caules invadiram sua casa, quer

enfeitando, quer escondendo a sujeira, os defeitos e a desorganização; os objetos pessoais, tudo o

que era seu e o que ele era cederam lugar às flores.

A escolha lexical do narrador materializa a situação da casa. Para descrevê-la antes de as

flores tomarem conta do ambiente, usa palavras e expressões que remetem ao desleixo, como:

defeitos do carpete, lençóis manchados, louça suja, fogão engordurado, poeira sobre a estante,

sapatos embarrados e camisas suadas. Já para caracterizar a casa em um momento posterior opta

por vocábulos que lembram um ambiente agradável e feliz: flores, enfeitaram, nutrientes, viçoso,

alegre e belezas.

A marcação do tempo ocorre por meio de adjuntos adverbias (a princípio – remete ao

passado; agora – refere-se ao presente). O emprego dos verbos também delimita o tempo. O

narrador usa o presente para caracterizar o ambiente exatamente como o vislumbra no momento da

enunciação. Vale-se também do pretérito perfeito do indicativo para assinalar a relação que existe

entre o ambiente de outrora e o atual.

No final do texto, a personagem conclui que as flores lhe oferecem todas as belezas. Elas

simbolizam o belo, a perfeição, a própria alma, o desapego à vida e a evolução espiritual do

homem.

Alguns elementos do texto podem sugerir que o protagonista narra os fatos após sua morte:

Agora são elas [as flores] que me fornecem nutrientes para que eu cresça viçoso […].

A linguagem figurada está presente no miniconto. Exemplifica-se: As flores […] tomaram de

mim tudo o que era meu: minha casa, meu ar, meus movimentos, meu corpo, minha liberdade, meu

desejo, meu sonho, minha vida e minha morte, meu futuro. Essa metáfora pode representar que, com

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a morte, nada resta do ser humano.

A tipologia textual de base do miniconto em estudo é a narração, pois há um fato com início,

meio e fim, envolvendo uma personagem, tempo e espaço.

Estudo de texto

Nesta parte, propõem-se atividades voltadas para a leitura e escrita do gênero textual

miniconto, direcionadas aos alunos da disciplina de Língua Portuguesa do Ensino Médio e da

disciplina de Leitura e Produção Textual do Curso de Graduação em Letras.

I. Pré-leitura

1) Você já leu minicontos? Cite alguns.

2) Para você, o que é um miniconto?

3) Qual é o título do miniconto que você lerá?

4) Quem é o autor desse texto?

5) Em que obra esse miniconto foi publicado?

6) Qual é o país de origem desse miniconto? Como você chegou a essa conclusão?

7) Você já leu outros textos desse autor? Qual (is)?

8) O que representa matar o Tempo, a partir da primeira frase do miniconto: Como a viatura

atravessava o bosque, ele a fez parar nas proximidades de um estande de tiro ao alvo, dizendo que

lhe era agradável atirar algumas balas para matar o Tempo.

9) A partir do título e da primeira frase do texto, imagine a possível trama do miniconto.

II. Leitura

1) Leitura silenciosa do miniconto.

2) Leitura em voz alta do texto pelo professor ou por um aluno.

O GALANTE ATIRADOR

1 Como a viatura atravessava o bosque, ele a fez parar nas proximidades de um estande de tiro

ao alvo, dizendo que lhe era agradável atirar algumas balas para matar o Tempo. Matar esse

monstro não é a ocupação mais comum e a mais legítima de cada um? E ofereceu galantemente a

mão para sua amada, deliciosa e execrável mulher, a esta misteriosa mulher à qual lhe devia muito

em prazeres, muito em dores, e pode ser também uma grande parte da sua genialidade.

2 Várias balas bateram longe do alvo desejado; uma delas afundou-se ainda no teto. E como a

charmosa criatura ria loucamente, zombando da inabilidade de seu marido, este virou-se

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bruscamente para ela e lhe disse: “Observe esta boneca, lá, à direita, que tem o nariz arrebitado e as

feições tão altivas. Muito bem! Meu anjo querido, eu imagino que seja você.” E ele fechou os olhos

e puxou o gatilho. A boneca foi literalmente decapitada.

3 Depois, inclinando-se sobre sua amada, sua deliciosa, sua execrável mulher, sua inevitável e

implacável Musa, e, beijando-lhe respeitosamente a mão, acrescentou: “Ah! Meu anjo querido,

como lhe agradeço por minha pontaria!”

BAUDELAIRE, Charles. Le galant tireur. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação

dos autores.

III. Atividades orais de interpretação

1) As hipóteses que você levantou a respeito da trama do miniconto se confirmam após a leitura?

Comente.

2) Quem é o protagonista desse miniconto? Como ele é nomeado?

3) Onde ele se encontra? Quem o acompanha?

4) O que o protagonista pretende a princípio?

5) Ele consegue atingir seu objetivo? Por quê?

6) Qual é a reação da mulher diante disso?

7) O texto sugere que ele ficou irritado com a reação da amada? Por quê?

8) O que ocorre no fechamento da narrativa?

9) No miniconto há vazios que precisam ser preenchidos pelo leitor. Com base nisso, o que podem

representar as seguintes ações do protagonista: inclinou-se sobre sua mulher e beijou sua mão?

IV. Atividades escritas de interpretação

1) Substitua as palavras ou expressões por outras de mesmo sentido, considerando o contexto em

que foram empregadas.

a) galante (título):

b) estande de tiro ao alvo (parágrafo 1):

c) legítima (parágrafo 1):

d) execrável (parágrafo 1):

e) altivas (parágrafo 2):

f) decapitada (parágrafo 2):

g) implacável (parágrafo 3):

h) Musa (parágrafo 3):

2) Quais são as personagens envolvidas na trama do miniconto O galante atirador? Caracterize-as.

3) Em torno de que conflito se desenvolve o miniconto?

4) Referindo-se ao Tempo, o narrador questiona o leitor: matar esse monstro não é a ocupação mais

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comum e a mais legítima de cada um? Qual é a sua posição frente a essa pergunta?

5) O que representa o fato de o protagonista imaginar que a boneca com o nariz arrebitado e as

feições tão altivas é a própria esposa?

6) O que sugerem as ações narradas no fechamento do miniconto?

7) Que efeito esse miniconto provoca em você, leitor?

8) Que características contribuem para que O galante atirador se configure como um miniconto?

Práticas de análise da linguagem e reflexão linguística

1) Observe quem narra os fatos no texto.

a) Qual é a posição do narrador em relação aos fatos do miniconto? Comprove sua resposta com um

fragmento do texto.

b) Que tempo verbal prepondera? Exemplifique.

c) Por que o narrador usa esse tempo verbal?

2) No início e no final do miniconto, o narrador repete os adjetivos amada, deliciosa e execrável

para qualificar a mulher.

a) Que efeito o uso desse recurso ocasiona na construção do sentido do texto?

b) Constata-se nesse trecho a presença da figura de linguagem denominada antítese? Explique,

relacionando com o sentido do miniconto.

3) No texto, o narrador afirma que o protagonista devia à sua mulher muito em prazeres, muito em

dores.

a) O que representa a fala do protagonista?

b) Nesse fragmento, observa-se novamente a presença da antítese? Justifique com base no sentido

global do texto.

4) É possível depreender ironia na fala do homem dirigida à sua esposa: “Ah! Meu anjo querido,

como lhe agradeço por minha pontaria!”(parágrafo 3)? Por quê?

5) Conforme o texto, o Tempo é um monstro. O que simboliza essa metáfora?

6) Atente no texto para a transcrição das falas das personagens.

a) Prevalece o discurso direto ou indireto? Exemplifique.

b) Qual é o tempo verbal predominante? Por que há o uso desse tempo verbal?

7) Leia com atenção o fragmento a seguir e faça o que se pede.

[...] ele virou-se bruscamente para ela e lhe disse: “Observe aquela boneca, lá, à direita, que tem o

nariz arrebitado e as feições tão altivas. Muito bem, meu caro anjo, eu imagino que seja você”

(parágrafo 2).

a) Reescreva a fala da personagem, transformando o discurso direto em indireto. Realize os ajustes

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necessários.

b) Na reescrita da fala, que mudança houve em relação ao uso dos tempos verbais? Por que

aconteceu essa alteração?

8) No miniconto em estudo, há várias palavras vinculadas ao campo semântico morte.

a) Destaque cinco vocábulos pertencentes a esse campo semântico.

b) Que relação pode ser estabelecida entre o uso desses vocábulos e o desfecho do miniconto?

Produção textual

1) Produção textual escrita

A seguir, você tem o início de um miniconto escrito por Charles Baudelaire. Use sua

imaginação e dê continuidade à narrativa. Lembre-se de que esse gênero textual preza sobretudo

pela objetividade e concisão.

A SOPA E AS NUVENS

Minha louquinha bem-amada me serviu o jantar, e pela janela aberta da sala eu contemplava

as movediças arquiteturas que Deus faz com as nuvens, as maravilhosas construções do impalpável.

E eu refletia em meio à minha contemplação: “Todas estas fantasmagorias são quase tão belas

quanto os olhos da minha bela bem-amada, a louquinha monstruosa de olhos verdes.”

Subitamente ....

BAUDELAIRE, Charles. La soupe et les nuages. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação

dos autores.

2) Reescrita

A partir das observações de seu professor e mediante as inadequações verificadas por meio

de sua própria leitura, reescreva seu miniconto.

3) Produção oral

Pesquise minicontos de autores brasileiros, como Dalton Trevisan, Luiz Rufatto, Sérgio

Sant’Anna, Tatiana Blum, Miguel Sanches Neto, Antonio Torres, João Gilberto Noll e Millôr

Fernandes. Apresente oralmente um dos textos aos colegas e professor.

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Considerações finais

Este artigo apresentou um estudo do gênero textual miniconto e sugeriu atividades de

leitura, escrita, análise da linguagem e reflexão linguística, voltadas aos estudantes da disciplina de

Língua Portuguesa do Ensino Médio e da disciplina de Leitura e Produção Textual do Curso de

Graduação em Letras. O trabalho proposto pode possibilitar a apropriação do miniconto por parte

dos alunos e a compreensão das condições de produção e recepção desse gênero textual.

Assim, espera-se contribuir para o aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem de

língua materna, com subsídios teórico-práticos que poderão favorecer o desenvolvimento da

competência comunicativa dos alunos.

Referências

Referências teóricas

BRASIL. Parecer CNE/CES 492/2001, de 03 de abril de 2001. Estabelece Diretrizes Curriculares

Nacionais dos cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação Social,

Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Diário Oficial da União,

Brasília, p.50, 09 jul. 2001. Seção 1e. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

BRASIL. PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos parâmetros

curriculares nacionais – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2002.

Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf>. Acesso em: 04 jun.

2013.

CAPAVERDE, Tatiana da Silva. Intersecções possíveis: o miniconto e a série fotográfica. 2004. 98

f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, 2004. Disponível em:

<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/6117/000436913.pdf?sequence=1>. Acesso em:

27 maio 2014.

LAGMANOVICH, David. El microrrelato hispánico: algunas reiteraciones. Iberoamericana:

América Latina – España - Portugal, Berlín; Hamburgo; Frankfurt am Main/Madrid, v. 9, n. 36,

p.85-96, 2009. Disponível em: <http://journals.iai.spk-

berlin.de/index.php/iberoamericana/article/view/735/418>. Acesso em: 26 maio 2014.

RODRIGUES, Elizete; SOUZA, Vanderlei de; SOUZA, Marlene de Almeida Augusto de. O poder

atômico do miniconto: análise de narrativas ultracurtas divulgadas em concursos literários na

Internet. Letras Raras, Campina Grande, v. 2, n. 1, p.73-92, 2013. Disponível em:

<http://150.165.111.246/revistarepol/index.php/RLR/article/view/144/131>. Acesso em: 26 maio

2014.

SPALDING, Marcelo. Os cem menores contos brasileiros do século e a reinvenção do

miniconto na literatura brasileira contemporânea. 2008. 81 f. Dissertação (Mestrado em

Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-africanas) – Instituto de Letras, Universidade Federal do

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Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em:

<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13816/000651683.pdf?sequence=1>. Acesso

em: 28 maio 2014.

Referências de textos literários e não literários na íntegra

BAUDELAIRE, Charles. Le galant tireur. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en prose.

Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso em: 02

jun. 2014. Tradução e adaptação dos autores.

CECAGNO, Douglas. As flores cresceram [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por

<[email protected]> em 15 maio 2014.

_____. Tarde [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 15 maio 2014.

Referências de obras com trechos citados

BAUDELAIRE, Charles. La soupe et les nuages. In: _____. Le Spleen de Paris: petits poèmes en

prose. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ga000040.pdf>. Acesso

em: 02 jun. 2014. Tradução e adaptação dos autores.

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O PRETÉRITO PERFEITO COMPOSTO DO INDICATIVO EM LÍNGUA ESPANHOLA:

VALORES ASPECTUAIS

Valdecy de Oliveira PONTES82

Letícia Joaquina de Castro Rodrigues SOUZA E SOUZA83

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os valores aspectuais presentes no uso de

Pretérito Perfeito Composto do indicativo. Com relação às amostras, selecionamos algumas

entrevistas sociolinguísticas dos seguintes centros urbanos: Buenos Aires, Cidade do México e

Madri. Martínez-Atienza (2008) destaca três subvariedades do aspecto Perfeito: o resultativo, o

experiencial e o continuativo. Descreveremos os valores aspectuais encontrados (resultativo e

experiencial) e analisaremos as seguintes questões relacionadas ao PC em Espanhol: a) os usos,

considerando-se os matizes de significado no discurso; b) as diferenças de uso com base no aspecto;

c) correlação forma-função.

Palavras-chave: Variação Dialetal. Pretérito Perfeito Composto, Valores Aspectuais.

Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo analizar los valores aspectuales presentes en el

uso del Pretérito Perfecto Compuesto de indicativo. En cuanto a las muestras, seleccionamos

algunas entrevistas sociolingüísticas de los siguientes centros urbanos: Buenos Aires, Ciudad de

México y Madrid. Martínez-Atienza (2008) apunta tres subvariedades para el aspecto Perfecto: el

resultativo, el experiencial y el continuativo. Describiremos los valores aspectuales encontrados

(resultativo y experiencial) y analizaremos las siguientes cuestiones relacionadas al PC en

Español: a) los usos, teniendo en cuenta los matices de significado en el discurso; b) las diferencias

de uso a partir del aspecto; c) correlación forma-función

Palabras-clave: Variación Dialectal. Pretérito Perfecto Compuesto. Valores Aspectuales.

Introdução

Neste trabalho, trataremos da noção de tempo e aspecto ao analisar o Pretérito Perfeito

Composto (PC) do espanhol. O PC é uma forma verbal que apresenta grandes divergências de uso

82 Doutor em Linguística – UFC; Professor do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade

Federal do Ceará – UFC; Pesquisador do Grupo SOCIOLIN-CE/UFC. [email protected] 83

Doutoranda em Linguística – UFC; Professora do Departamento de Letras Estrangeiras da

Universidade Federal do Ceará – UFC.

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entre variedades geográficas — e sociais — de uma mesma língua. Pode-se dizer que o PC é uma

categoria temporal-aspectual, uma vez que carrega traços de tempo e aspecto. A princípio, essa

forma composta estaria veiculada ao aspecto Perfeito. Martínez-Atienza (2008) destaca três

subvariedades do aspecto Perfeito: o resultativo, o experiencial e o continuativo. Há a possibilidade,

em espanhol, segundo alguns autores (BARTENS; KEMPAS, 2007; CARRASCO GUTIÉRREZ,

2008), do PC poder, a princípio, na variedade peninsular do espanhol, e no norte da Argentina estar

veiculado a dois aspectos: Perfeito ou Perfectivo.

Há muitos estudos dedicados a debater o uso do PC em espanhol, a descrever os contextos

onde aparecem nas diferentes variantes dessa língua. Entretanto, poucos abordam a questão deste

tempo verbal poder veicular dois diferentes aspectos, o perfectivo (evento concluído) ou o Perfeito

(consequência no presente de um evento passado). O estudo de Harris (1982, apud AKERBERG

2008) analisa o uso do PC nas línguas românicas. Com a evolução dessas línguas, o uso desse

tempo verbal foi se modificando e com isso o valor aspectual veiculado a ele também. O autor

descreve a evolução da categoria do PC em diferentes etapas e propõe que o PC pode estar em 4

estágios. Harris (1982) demonstra o que representa o PC em cada etapa e mostra que ao se

desenvolver e passar para outro estágio, a língua não perderá os valores já existentes. A escala do

autor começa com a etapa onde o PC encontra-se apenas veiculado ao Perfeito resultativo, já a

última fase seria aquela onde o PC fosse utilizado em contexto de aspecto perfectivo.

Este artigo pretende analisar os valores aspectuais resultativo e experiencial atrelados ao uso

do Pretérito Perfeito Composto do Indicativo (PC) em amostras orais das cidades de Madri, Cidade

do México e Buenos Aires. De acordo com García Fernández (1998, 2000, 2004), o PC no espanhol

pode ter duas leituras aspectuais: uma de Perfeito (perfect) e outra de perfectivo. Tomaremos por

base os valores elencados por García Fernández (2006) para o Aspecto Perfeito, experiencial e

resultativo. Analisaremos as seguintes questões relacionadas ao PC em espanhol: a) os usos,

considerando-se os matizes de significado no discurso; b) as diferenças de uso com base no aspecto;

e c) a correlação forma-função.

O aspecto verbal em espanhol

De acordo com Comrie (1990), a diferença entre o pretérito perfeito composto e o

pretérito perfeito simples é também aspectual. Pois, não se estabelece uma relação entre dois pontos

no tempo, e sim a relevância de uma situação passada no momento da enunciação. Por isso, como

usamos esses dois tempos para falar do passado, a diferença é aspectual e não temporal. A diferença

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está no fato de o pretérito perfeito composto apresentar, além do valor de Aspecto perfectivo

(conclusão da ação passada), o valor de Aspecto perfeito, ou seja, de consequência presente de uma

situação passada, ou ainda da relevância para o falante, no momento da enunciação, de uma ação

passada. Vejamos um exemplo em que usamos o pretérito perfeito composto por tratar-se de

consequência presente de uma situação passada:

(1) Pablo se cayó de la bici y se ha roto un brazo. (Pablo caiu da bicicleta e quebrou um braço.)

A diferença fundamental entre Tempo e Aspecto consiste no fato de o primeiro

considerar somente o tempo externo da situação e o Aspecto considerar o que está relacionado com

a ideia de tempo interno da ação. Para Comrie (1976, p 03): “Aspecto são diferentes formas de ver a

constituição interna de uma situação.”84

García Fernández (2006), por sua vez, retoma muitas das

pesquisas recentes e analisa o Aspecto a partir da relação entre o tempo da situação (tempo do

evento) e o tempo do foco (período em que uma determinada afirmação é válida). A partir desses

pressupostos, o autor propõe cinco tipos de Aspecto (p.45):

a) Imperfeito: o tempo do foco (TF) está incluído no tempo da situação (TS). Focaliza a parte

interna da situação sem mencionar o início ou o final.

(2) Hace dos días Juan pintaba su casa./ Faz dois dias que Juan pintava sua casa.

b) Perfectivo ou Aoristo: O tempo do foco (TF) inclui todo o tempo da situação (TS), desde

seu início a sua finalização.

(3) El presidente leyó su discurso a las ocho./ O presidente leu o seu discurso às oito.

Neste exemplo, o Aspecto Perfectivo tem uma interpretação ingressiva, ou seja, sabemos

que a leitura foi iniciada às oito horas, mas não há a inclusão do ponto de finalização da

referida ação. Logo, ela é vista em sua totalidade e com um final implícito.

c) Perfeito: o tempo do foco (TF) é posterior ao tempo da situação (TS). Esta variedade

aspectual enfatiza os resultados do evento.

(4) Hace dos días Juan ya había pintado su casa. /Faz dois dias que Juan já tinha pintado a

casa.

84 Aspects are different ways of viewing the internal constituency of a situation.

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d) Prospectivo: o tempo do foco (TF) é anterior ao tempo da situação (TS).

(5) Hace dos días Juan iba a pintar su casa./ Faz dois dias que Juan ia pintar a sua casa.

e) Continuativo: o tempo do foco (TF) abrange desde o início do tempo da situação (TS) até

um ponto interno de seu desenvolvimento.

(6) Juan lleva dos horas pintando su casa./ Juan gasta duas horas pintando a sua casa.

A seguir, apresentamos o sistema aspectual do Espanhol, proposto por García Fernández

(2006):

a) Prospectivo: a fase ou período prévio, o TF é anterior ao TS.

b) Incoativo: focaliza o início da ação.

c) Continuativo: desde o início até o momento anterior ao final (ponto interno do

desenvolvimento da ação).

d) Imperfeito: posterior ao início e anterior ao final, o TF está incluído no TS.

e) Progressivo: focaliza somente um instante.

f) Habitual: repetição que caracteriza a ação como um costume.

g) Contínuo: focaliza uma situação que se mantém estável durante o intervalo de tempo que

se toma como referência.

h) Aoristo ou Perfectivo: desde o início até o final.

i) Terminativo: focaliza o final da ação.

j) Perfeito: focaliza o período posterior ao evento. Temos dois tipos de Aspecto Perfeito:

1) Resultativo: focaliza o resultado de uma ação anterior.

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2) Experiencial: estado de coisas que supõe ter tido uma experiência anterior:

(7) Yo ya he comido espaguetis./ Eu já comi espaguetis.

Em nossa pesquisa, trataremos da relação entre Tempo e Aspecto ao analisarmos os valores

aspectuais atrelados ao uso do Pretérito Perfeito Composto (PC). Tomaremos por base os valores

elencados por García Fernández (2006) para o Aspecto Perfeito, a saber: experiencial e resultativo.

Outra questão, que devemos considerar, reside no fato de os gramáticos apresentarem o

Pretérito Perfeito Composto (PC) com funções e papéis fixos. No entanto, sabemos que a língua não

é um objeto estável e regido por regras fixas e pré-determinadas, ou seja, homogênea. Ao

verificarmos o funcionamento de uma língua, percebemos que, nos diferentes contextos, ela se

apresenta de forma heterogênea, ou seja, apresenta variações. Tarallo (2002), retomando a proposta

de Coseriu (1976), classifica essas variações como: diatópicas (diferenças em função do espaço

geográfico); diastráticas (diferenças em função dos aspectos sociais; como sexo, idade, etnia etc.) e

diafásicas (diferenças em função da utilização dos diversos estilos de linguagem na comunicação).

Há muitos estudos dedicados a debater o uso do PC em espanhol, a descrever os contextos

onde aparecem nas diferentes variantes dessa língua. Entretanto, poucos abordam a questão deste

tempo verbal poder veicular dois diferentes aspectos, o perfectivo (evento concluído) ou o Perfeito

(consequência no presente de um evento passado). Por exemplo, há a possibilidade, em espanhol,

segundo alguns autores (HARRIS, 1982; BARTENS; KEMPAS, 2007; CARRASCO

GUTIÉRREZ, 2008), do PC poder, a princípio, na variedade peninsular do espanhol e no norte da

Argentina estar veiculado a dois aspectos: Perfeito ou Perfectivo. No sentido de resolver essa

lacuna, uma abordagem sociolinguística variacionista (LABOV, 1972, 1994 e 2001), poderia trazer

contribuições bem significativas, pois, nesta perspectiva, analisa-se a língua, a sua variação e os

processos de mudança, considerando-se a função semântico-pragmática das variantes.

Metodologia

O corpus oral está constituído por entrevistas sociolinguísticas transcritas que fazem

parte do Macrocorpus da Norma Linguística Contamos, então, com um total de 3 entrevistas

transcritas, de aproximadamente meia hora de duração com intervenção do entrevistador, uma para

cada centro urbano (Madri, Cidade do México e Buenos Aires). O ideal talvez tivesse sido analisar

mais entrevistas, no entanto, devido à quantidade de dados encontrados nas três entrevistas e à

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quantidade de fatores que selecionamos para a pesquisa, optamos por aprofundar uma análise mais

qualitativa. Ademais, de acordo com Silva (2009), mesmo que, na atualidade, haja uma gama de

bancos de dados orais da Língua Espanhola, há diversidade no que diz respeito à metodologia para

a coleta dos dados, ao estilo e às datas. Ademais, o acesso para os pesquisadores limita-se à consulta

via internet e à aquisição em formato de mídias. Vejamos a descrição dos informantes:

a) Madri:

Mulher de 26 anos (Neurologista)

b) Cidade do México:

Homem de 25 anos (Engenheiro químico)

c) Buenos Aires:

Homem de 35 anos (Advogado e professor universitário)

Devemos destacar que tanto a fala do informante quanto a do entrevistador são tomadas

como objeto de descrição e análise. Optamos por considerar, também, a fala do entrevistador

porque nos interessa analisar os turnos de fala. Tal decisão foi tomada tendo em vista que o

entrevistador possui perfil semelhante aos entrevistados, sendo este do mesmo centro urbano que o

entrevistado.

Grupos de fatores controlados

Nesta seção, faremos uma breve exposição dos fatores de análise que foram utilizados nesta

pesquisa, são eles:

Fatores controlados:

1) grupos de fatores linguísticos:

a) nível semântico-lexical: tipos de verbo, conforme Vendler (1957, 1967);

estados: apresentam uma duração indefinida, são atélicos e estáticos (Él tiene ojos verdes./

Ele tem olhos verdes.);

atividades: são durativas, atélicas e dinâmicas (Ella bailó toda la noche/ Ela dançou a noite

toda.);

processos culminados: são durativos, télicos e dinâmicos (Él construyó una casa./ Ele

construiu uma casa.);

culminações: denotam eventos instantâneos, télicos e dinâmicos (María abrió la puerta./

Maria abriu a porta.).

b) nível sintático-semântico: modificadores aspectuais, polaridade; agentividade e objeto

individuado.

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c) nível textual-discursivo: figura e fundo, conforme Hopper e Thompson (1980), unidades da

narrativa (Labov 1972b).

2) grupos de fatores extralinguísticos:

a) centro urbano: Madri, Cidade do México e Buenos Aires;

b) turno de fala: entrevistador e informante.

Apresentação e análise dos resultados

Para a análise da alternância entre os valores aspectuais experiencial e resultativo do PC,

utilizaremos o programa estatístico GOLDVARB (2005) do pacote computacional VARBRUL.

Este programa foi projetado por David Sankoff especialmente para a análise da variação

sociolinguística. A função principal é a de realizar uma análise de regressão de variáveis

qualitativas. Para os dois valores aspectuais analisados, o programa considerou como relevantes, em

términos estatísticos, somente o centro urbano e o turno de fala. Por isso, para os demais fatores,

analisaremos as porcentagens de ocorrências.

Tabela 01: Atuação do centro urbano na codificação da função resultativa

Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo

Madri 14/60 23,3% 0,413

Cidade do México 08/12 66,7% 0,791

Buenos Aires 6/15 40% 0,586

A partir das probabilidades obtidas, podemos verificar que na Cidade do México há uma

maior probabilidade de uso do PC com o valor aspectual resultativo, com um valor de 0,791, assim

como em Buenos Aires com um valor de 0,586. Por outro lado, conforme a amostra, Madri

apresenta um baixo valor probabilístico para o uso do valor resultativo com somente 0,413. Dessa

forma, conforme os dados analisados, podemos observar que há uma tendência para o uso do valor

resultativo por parte dos centros urbanos da Cidade do México e Buenos Aires. Selecionamos

alguns exemplos que ilustram o uso do PC com valor resultativo, nestas duas capitais:

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(8)… generalmente su base es la que han adquirido en los libros extranjeros./ ... geralmente sua

base é a que adquiriram nos livros estrangeiros. (Cidade do México)

(9) … me he encontrado con profundas dificultades./ ... encontrei profundas dificuldades. (Buenos

Aires)

Em relação ao valor aspectual, podemos verificar nos exemplos 8 e 9 o resultado de uma

ação passada, ou seja, os livros foram adquiridos (8) e o falante encontrou profundas

dificuldades. O resultado estatístico obtido a respeito da Cidade do México está de acordo com o

que propõe Paixão (2011). De acordo com a autora, a variedade mexicana está na terceira etapa do

esquema proposto por Harris (1982, p.42 - 70), ou seja, o falante mexicano utiliza, principalmente,

o PC quando quer marcar que o resultado de uma ação passada é claramente relevante, sem que haja

obrigatoriamente marcas de duração ou repetição, se trata de um presente ampliado.

Tabela 02: Atuação do turno de fala na codificação da função resultativa

Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo

Informante 26/65 40% 0,607

Entrevistador 2/22 9,1% 0,217

Vimos que no turno conversacional dos informantes há uma maior probabilidade de uso do

PC com o valor aspectual resultativo, com um valor de 0, 607. No entanto, por causa do tamanho da

amostra analisada, não podemos considerar que o uso do valor resultativo esteja condicionado ao

turno de fala do informante, no gênero entrevista sociolinguística. Por outro lado, podemos sugerir

que existe uma tendência para tal uso, mas propomos a realização de estudos futuros para que se

confirme ou se refaça tal proposição. Como ilustração deste valor aspectual, selecionamos dois

exemplos:

(10)… se ha desarrollado esta industria./ ... desenvolveu-se esta indústria. (Informante)

(11) … no se ha descubierto que la tenga./ ... não se descobriu que a tenha (Entrevistador)

Para a discussão sobre os resultados obtidos com os demais fatores que o programa não

considerou como relevantes, em termos estatísticos, selecionamos somente o fator que apresentou

porcentagens de ocorrências mais significativas: tipos de verbo.

Tabela 03: Atuação dos tipos de verbo na codificação da função resultativa

Fatores Aplicação/Total Porcentagem

Processo Culminado 20/51 41,2%

Culminações 1/13 7,7%

Estado 5/19 26,3%

Atividades ¼ 25%

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Entre as propostas para classificar os verbos segundo o critério aspectual, a que há

desfrutado de maior influência nos estudos linguísticos é esta classificação proposta por Vendler

(1967). A partir da correlação desta classificação de aspecto léxico com o valor aspectual

resultativo no uso do PC, verificamos que os verbos que indicam processo culminado favorecem o

uso do PC com valor resultativo. Os processos culminados, segundo Morimoto (1998), são eventos

extensos, que se prolongam ao passar do tempo, mas apresentam uma finalização. A porcentagem

de 41,2% para este tipo de verbo confirma o que propõe Givón (2001), ou seja, que os verbos que

indicam processos culminados e culminações estão relacionados com o uso do PC e PS do

indicativo. No entanto, os verbos de atividade e estado favorecem o uso do pretérito imperfeito do

indicativo. Selecionamos, a seguir, um exemplo do valor aspectual resultativo relacionado ao

processo culminado:

(12) Yo he matado a este individuo./ Matei este indivíduo. (Processo Culminado)

Em relação ao valor aspectual experiencial do PC, a partir dos dados apresentados na tabela

04, podemos verificar que somente a cidade de Madri favorece o uso deste valor aspectual com

probabilidade de 0,608 frente aos outros centros urbanos que apresentaram tão somente 0,391

(Buenos Aires) e 0,162 (Cidade do México).

Tabela 04: Atuação do centro urbano na codificação da função experiencial

Fatores Aplicação/Total Porcentagem Peso relativo

Madri 37/60 61,7% 0,608

Cidade do México 2/12 16,7% 0,162

Buenos Aires 6/15 40% 0,391

O resultado estatístico obtido a respeito de Madri está de acordo com o que propõe Akerberg

(2008), ao tratar dos valores do PC, afirma que o uso do PC para o passado recente é muito marcado

no espanhol peninsular. No entanto, esta variedade ainda apresenta os outros valores aspectuais, tais

como: experiencial e resultativo. Para ilustrar o uso do valor aspectual experiencial, na cidade de

Madri, apresentamos o seguinte exemplo:

(13) No ha tenido amor en su vida./ Não teve amor em sua vida. (Experiencial - Madri)

Com relação à discussão sobre os resultados obtidos com os demais fatores que o programa

não considerou como relevantes, em termos estatísticos, selecionamos somente o fator que

apresentou porcentagens de ocorrências mais significativas: polaridade.

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Tabela 05: Atuação da polaridade na codificação da função experiencial

Fatores Aplicação/Total Porcentagem

Positivo 40/78 51,3%

Negativo 5/9 55,6%

No corpus analisado, encontramos mais ocorrências de orações cuja polaridade é positiva

com 78 dados. Destes, 40 estão relacionados com o valor aspectual experiencial com uma

porcentagem de 51,3%. Por outro lado, ainda que haja uma porcentagem de 55, 6 % para as orações

negativas, temos tão somente 5 ocorrências de um total de 9. Com o objetivo de exemplificar a

polaridade nas orações analisadas, apresentamos dois dados, a continuação:

(14) Porque no han tenido nunca un hogar./ Porque nunca teve um lar (Polaridade negativa)

(15) He estado veinte días en los Pirineos./ Estive vinte dias nos Pirineos. (Polaridade positiva)

Considerações finais

Em relação à discussão sobre os resultados obtidos, verificamos que no uso do Pretérito

Perfeito Composto (PC):

a) o valor aspectual resultativo desfruta de uso nos centros urbanos da Cidade de México e

Buenos Aires, o que corrobora os resultados de outros estudos já publicados, tais como:

Paixão (2011) e Harris (1982). Ademais, o turno de conversação do sujeito entrevistado

favorece o uso deste valor aspectual;

b) o valor aspectual experiencial foi encontrado, principalmente, no centro urbano de

Madri, o que ratifica as considerações de Akerberg (2008), ao tratar dos valores do PC,

no espanhol peninsular.

Por fim, destacamos o caráter limitado dos resultados de nossa investigação. Portanto, não

temos a pretensão de tecer generalizações para outros contextos de uso da língua espanhola.

Confiamos que futuras investigações, sobre os valores aspectuais de PC, permitirão corroborar ou

relativizar os resultados e interpretações que aqui esboçamos.

Referências

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.164

QUANDO O AGORA NÃO É AGORA NOS GÊNEROS ACADÊMICOS

João Bosco FIGUEIREDO-GOMES85

Carla Daniele Saraiva BERTULEZA86

Resumo: As gramáticas tradicionais apresentam os advérbios como uma classe fechada, cujos

elementos têm características de circunstanciadores. Entretanto se constata que alguns desses

elementos assumem novos usos, como o agora que, dependendo do gênero, ocorre

diferentemente do uso prototípico como advérbio de tempo. Com base na orientação teórica

da Linguística Funcional Centrada no Uso, este artigo tem como objetivo descrever

sincronicamente os usos do item agora em gêneros acadêmicos. Os resultados empíricos

demonstram uma tendência de trajetória de mudança construcional do agora: TEMPO >

TEXTO, funcionando, além do uso prototípico, como sequenciador textual e como marcador

discursivo em gêneros acadêmicos.

Palavras-chave: Funcionalismo. Linguística Funcional Centrada no Uso. Gramaticalização.

Agora. Gêneros Acadêmicos.

Abstract: Traditional grammars present the adverbs as a closed class whose elements have

characteristics of circumstance. However, it has been verified that some of those elements

assume new uses such as the use of “now” that, depending on the genre, occurs differently

from its prototypical use as an adverb of time. Based on the theoretical orientation of Usage-

Centered Functional Linguistics, the present article aims at synchronically describing the

uses of the item “now” in academic genres. The empirical results demonstrate a tendency of

constructional change of “now”: TIME > TEXT, functioning, in addition to its prototypical

use, as a textual sequencer and as a discourse marker in academic genres.

Keywords: Functionalism. Usage-Centered Functional Linguistics. Grammaticalization.

Now. Academic Genres.

85 Doutor em Linguística, professor do Programa de Pós-graduação em Letras e do

Departamento de Letras do Câmpus Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão, da Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte, em Açu/RN - Brasil. [email protected] 86

Mestre em Letras, professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia –IFRN, Câmpus Pau dos Ferros/RN – Brasil. [email protected]

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.165

Introdução

Sabemos que os advérbios são tratados pela tradição gramatical como uma classe

fechada, cujos elementos têm características de circunstanciadores, como tempo, modo,

dúvida, intensidade, entre outros. Entretanto sabemos também que se trata de uma classe

heterogênea que não se prende somente a um núcleo, mas também ao conteúdo semântico-

discursivo da oração, podendo alguns de seus elementos assumirem novas funções. É o caso

do agora que, dependendo do gênero, ocorre diferentemente do uso prototípico como

advérbio de tempo.

Com base na orientação teórica da Linguística Funcional Centrada no Uso

(FURTADO DA CUNHA et al., 2013), este artigo tem como objetivo descrever

sincronicamente os usos do item agora nos gêneros acadêmicos dissertação de mestrado e

tese de doutorado.

O artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente, apresentamos os

achados de trabalhos funcionalistas sobre o item agora em outros gêneros que não os

acadêmicos; em seguida, discorremos sobre a orientação teórica desta investigação que reside

na proposição denominada pelo grupo Discurso & Gramática como Linguística Funcional

Centrada no Uso – LFCU; depois, vem a metodologia, seguida da análise e discussão dos usos

do item agora nos gêneros acadêmicos, mostrando os resultados e as tendências de seus

diferentes usos.

ESTUDOS FUNCIONALISTAS SOBRE O ITEM AGORA

Nesta seção, apresentamos alguns significados/funções do item agora resultantes dos

estudos funcionalistas de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues

(2009) e Philippsen (2011).

Niedzieluk (2004) estuda o item agora no discurso oral de Florianópolis, cujos dados

foram extraídos de 24 entrevistas do Banco de Dados do Projeto Variação Linguística Urbana

na Região Sul do Brasil – VARSUL. Buscando descrever a multiplicidade de funções que o

agora exerce, a autora apresenta duas macrofunções: a de advérbio temporal, que contém

cinco microfunções, e a de conector/elo discursivo, que contém quatros microfunções.

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.166

Segundo Niedzieluk (2004), o agora possui a propriedade dêitica enquanto advérbio

referenciador da circunstância de tempo, estruturalmente vinculado ao plano sentencial. A

macrofunção advérbio temporal está dividida nas seguintes microfunções: a) momento atual:

o agora é empregado aludindo ao momento atual da enunciação do falante; b) época atual: o

agora é empregado aludindo à época atual, ou seja, o momento de enunciação refere-se à

época atual/contemporânea; c) tempo de contraste: o agora é empregado para contrastar com

a época passada e isto é mencionado no discurso precedente do informante; d) tempo de

referência ao passado: o agora é empregado aludindo a um tempo referido pelo falante com

relação ao passado; e) tempo de referência ao futuro: o agora é empregado aludindo a um

tempo referido pelo falante com relação ao futuro.

Niedzieluk (2004) afirma que o item agora possui também uma característica

específica de conector/elo discursivo, que é a propriedade que permite dar sequencialidade ao

discurso, funcionando como um organizador, ao estabelecer uma relação entre a parte do texto

que ele introduz e a precedente, estabelecendo um elo coesivo. A partir dessa macrofunção de

conector/elo discursivo, o item agora assume as microfunções: a) contrastivo: o agora tem a

função de explicitar uma oposição à ideia anterior; b) retomador: o agora tem a função de

recuperar anaforicamente o tópico da narrativa e dar prosseguimento ao discurso; c)

avaliativo: o agora tem a função de explicitar um ponto de vista e/ou uma opinião do

informante; d) avaliativo de realce: o agora tem também a função de explicitar um ponto de

vista ou opinião, mas atenta para um enfoque especial na informação precedente; e) aditivo: o

agora tem a função de acrescentar outra informação ao já dito.

Desse modo, Niedzieluk (2004) conclui que o item agora parece estar exposto ao

processo de gramaticalização, que se transfere de sua categoria inicial para outra, no caso, de

uma “microfunção puramente dêitica temporal para uma macrofunção de conector/elo

discursivo, passando por uma transição entre essas duas categorias.” (NIEDZIELUK, 2004,

p.04).

Outro trabalho que estuda o item agora é o de Souza Júnior (2005). O autor faz um

estudo sincrônico nas tiras de quadrinhos de “Gatão de Meia idade”, de Miguel Paiva. Souza

Júnior (2005) mostra que o item agora ocorre nas funções de dêitico temporal, na função de

juntivo e na função discursiva. Para Souza Júnior (2005), o agora, quando se apresenta como

dêitico temporal prototípico, equivale semanticamente a “neste momento”, “no momento

presente” que remete ao tempo presente da ação enunciativa. Quando o item agora atua na

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.167

função juntiva, assume a função de conector com o sentido mais abstrato, perdendo o traço de

mobilidade e ganhando o traço de fixação, passa a funcionar como recurso para organização

das ideias e a progressão textual, estabelecendo relações de causalidade, apresentando a noção

de conclusão, de contrajunção com ideia de ressalva e com a ideia de contraste, ao vir

acompanhado de mas, marcando assim a oposição temporal passada. Diferentemente, quando

o item agora assume a função discursiva, ele atua nas funções de introdutor de digressão,

quando o falante (um personagem) insere um segmento tópico no interior de outro, e de

redirecionador de tópico, quando o falante (um personagem) deixa de lado um tópico

principal sobre o qual discorre para dar explicações, opinião sobre o que está sendo tratado.

Desse modo, Souza Júnior (2005) afirma que o item agora está perdendo os traços

presentes no uso temporal e apresentando novos usos e funções como o valor juntivo, agindo

como um conector de sequencialização, estabelecendo relações lógicas e, em outros casos, o

item agora está atuando como marcador discursivo na organização do discurso. Segundo o

autor, o agora está passando, portanto, por uma trajetória crescente de abstratização, passando

de um sentido mais concreto para um mais abstrato.

Também em uma perspectiva sincrônica, Duque (2009) fez um estudo sobre o

processo de gramaticalização do item agora, utilizando o córpus de língua falada do

Programa de Estudos de Usos da Língua/UFRJ – PEUL. O autor encontrou uma diversidade

de ocorrências com o uso do elemento agora e afirma que esse item surgiu da reanálise da

expressão latina hac hora ((n)esta hora). Com base nessa diversidade encontrada, Duque

(2009) defende que o item agora vem cumprindo a trajetória ESPAÇO > TEMPO > TEXTO,

proposta por Heine et al. (1991).

Ancorado na perspectiva funcionalista de vertente norte-americana, Duque (2009)

classificou o agora encontrado nas ocorrências como exofórico (ou dêitico) e endofórico

(juntivo ou discursivo), funções que se assemelham com as apresentadas por Souza Júnior

(2005), pois o uso considerado exofórico por Duque (2009) é aquele que Souza Júnior

denomina de dêitico temporal, em que o item agora equivale a “neste momento” ou “no

momento presente”. A função juntiva do agora é entendida pelos dois autores já mencionados

como um uso em que o item apresenta-se como conector responsável pela organização das

ideias: a de adversidade e a de concessão, que fazem parte da função que Souza Júnior (2005)

chama de contrajunção, em que o elemento articula sequencialmente o texto.

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.168

Outro ponto em comum entre os achados de Duque (2009) e de Souza Júnior (2005) é

o agora discursivo, em que os autores mostram que, nessa função, o item exerce o papel de

marcador discursivo, perdendo características temporais e textuais, passando a atuar na

organização de unidades discursivas, promovendo a abertura, a retomada ou o fechamento de

tópico.

Philippsen (2011) também apresenta um estudo sincrônico sobre o item agora, mas

em textos orais e escritos do Estado de Mato Grosso. Para a autora, o item agora apresenta,

nos textos analisados, as funções de dêitico, conector de sequencialização, conector de

contrajunção, conector de causalidade ou perífrase conjuncional causal/explicativa e marcador

discursivo. Segundo Philippsen (2011), o agora dêitico apresenta traços prototípicos como

mobilidade de colocação na frase e localização de referência temporal de momento presente.

Com base na frequência do item agora conector, Philippsen (2011) observa que o uso dessa

função pode tratar-se de um deslizamento funcional de agora advérbio > conjunção, em que

as velhas formas se revestem de uma nova roupagem, ou seja, uma nova função, fruto do

processo de gramaticalização. Como Souza Júnior (2005), a autora também reconhece o item

agora como conector de contrajunção, cujo efeito discursivo pretendido é mostrar ao

interlocutor a oposição de ideias entre os segmentos textuais. Além da função de conector de

contrajunção, o item agora apresenta também a função de conector de sequencialização, cujo

efeito discursivo pretendido é direcionar o interlocutor para a sequência dos acontecimentos.

Parece-nos que esse uso, reforçado pelo conector e, tem também um aditivo, acrescentando

mais uma informação e funcionando como além disso. Para Philippsen (2011), o agora

também apresenta a função de conector de causalidade ou perífrase conjuncional

causal/explicativa, que, segundo ela, o efeito discursivo apresenta a crença do falante a

respeito do que é dito e a explicação causal atribuída aos fatos. Além disso, a autora

constatou alguns usos do agora na função de marcador discursivo, em que esse item assume

funções argumentativas referentes à organização lógica das ideias, assim “nas velhas formas e

nas novas funções acrescentam-se novos efeitos sintático-pragmáticos”. (PHILIPPSEN,

2011, p.16).

Para Philippsen (2011), a gramaticalização do item agora como conector de

contrajunção ocorre na modalidade oral, pois, na escrita, continua-se utilizando a conjunção

adversativa mas. A autora constatou também que não só os deslizes funcionais se apresentam

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.169

em um contínuo dos usos da língua, mas também que os efeitos sintático-pragmáticos são

mobilizados num processo permanente de gramaticalização.

Devido ao estudo de Rodrigues (2009) ser diferente dos demais já apresentados, não

obedecemos à ordem cronológica. Trata-se, pois, de um estudo pancrônico de textos do latim

até o século XX sobre o item agora. Nos dados analisados, o item agora apresenta usos

temporais, usos de conexão e usos discursivos. Segundo Rodrigues (2009), o item agora

ainda é usado como advérbio, mas deixa de se vincular ao momento presente e passa a ter

traços com mais referência temporal passada em alguns casos e mais referência temporal

futura em outros. Rodrigues (2009) nos mostra que, exercendo o papel de elemento de

conexão, o item agora assume a função de sequencializador, de opositor e de concluidor. No

papel de marcador discursivo, segundo Rodrigues (2009), o item agora funciona como

enfatizador de tópico, localizado em todas as sincronias, e retomador de tópico, encontrado

somente nas sincronias clássica e moderna. Com base nisso, Rodrigues (2009) afirma que o

agora é um item multifuncional que se gramaticalizou, ao longo da trajetória da língua

portuguesa, cujo percurso é TEMPO > TEXTO.

Em síntese, podemos assinalar que, conforme os estudos apresentados, o item agora

assume, nos diferentes gêneros, usos temporais: como advérbio temporal, também chamado

de dêitico temporal ou exofórico; usos de conexão: como retomador, avaliativo, aditivo,

concluidor, sequencializador, conector de causalidade e conector de contrajunção (ou de

contraste); e usos discursivos: como marcador discursivo, introdutor de digressão,

redirecionador de tópico, enfatizador de tópico. Essa multifuncionalidade nos levou a verificar

quais usos do agora podem caracterizar os gêneros acadêmicos, como veremos adiante.

A Linguística Funcional Centrada no Uso

Historicamente, a denominação dessa abordagem provém de usage-based model

(modelo baseado no uso), termo que foi utilizado primeiramente por Langacker (1987) para

designar modelos teóricos que privilegiam o uso da língua. Em Martelotta (2011), o modelo

passou a ser traduzido como “linguística centrada no uso” e, mais recentemente, como

proposição teórico-metodológica do Grupo Discurso e Gramática – D&G, essa vertente

passou a ser designada Linguística Funcional Centrada no Uso – LFCU (FURTADO DA

CUNHA et al. 2013).

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.170

A LFCU é, pois, uma abordagem resultante da junção das tradições de pesquisas de

representantes da Linguística Funcional, como Givón, Hopper, Traugott, Bybee, Heine, entre

outros, como também representantes da Linguística Cognitiva, como Lakoff e Langacker.

Essas correntes apresentam diversos pressupostos teórico-metodológicos em comum, como a

rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às análises, a

não distinção escrita entre léxico e gramática, a relação entre a estrutura das línguas e o uso

que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação.

Segundo Furtado da Cunha et al. (2013), o princípio da Linguística Funcional

Centrada no Uso é que a estrutura da língua emerge a partir dos contextos em que esta é

usada. Assim essa abordagem compreende a regularidade e a instabilidade da língua como

sendo influenciadas e modificadas pelas práticas discursivas dos usuários no cotidiano social

(FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007). A LFCU é também um tipo de abordagem

que, em sua análise, expõe tanto os aspectos formais, das formas pela estrutura social, como

também dados relacionados aos contextos comunicativos, ou seja, dados semânticos,

pragmáticos e discursivos. Desse modo, existe o interesse pela dimensão formal (fonético-

fonológica e morfossintática) e a dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva).

Na dimensão significativa, os fatores discursivo-pragmáticos e semântico-cognitivos

funcionam para satisfazer demandas comunicativas, seguindo da eventualidade discursiva

para a regularização estrutural previsível; nesse processo de regularização acontece um

crescente grau de abstratização. Na dimensão formal, estão os processos de mudança

relacional entre os signos e a transformação da construção na qual eles interagem.

Assim, a Linguística Funcional Centrada no Uso tem como objeto de estudo temas que

estejam relacionados à emergência e à regularização de padrões construcionais no âmbito da

proposição, envolvendo fatores fonológicos, morfológicos e sintáticos, como também o

discurso e os aspectos linguísticos relacionados à organização do texto. Essa abordagem

também leva em conta aspectos relacionados às restrições cognitivas que incluem a captação

de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na memória, como também

aspectos associados à capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão de

acordo com os dados da experiência.

Segundo Martelotta (2011), a habilidade linguística do falante é vista como formada

das regularidades no processamento mental da linguagem em contextos de uso. Os eventos de

uso são primordiais para a continuidade da estruturação do sistema, pois fornecem o input

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.171

para os sistemas de outros falantes, por meio, por exemplo, de reanálises, analogias e outros

processos que sugerem alterações e extensões no uso das expressões linguísticas. Assim, o

sistema tem um caráter eminentemente dinâmico ou emergente, já que surge da adaptação das

habilidades cognitivas humanas em eventos de comunicação específicos e amplia-se a partir

da repetição ou ritualização desses eventos.

A LFCU reconhece a base biológica da linguagem, as estruturas e habilidades inatas

que capacitam os humanos a aprender e usar uma ou mais línguas, mas mostra que os

aspectos culturais têm uma importância mais significativa. Assim, esse paradigma não adota a

noção de sintaxe autônoma, como faz o gerativismo, já que não acredita existir uma gramática

autônoma de base biológica, em que os princípios estejam inseridos na estrutura genética

humana.

A abordagem da LFCU entende a sintaxe, pois, como estando diretamente relacionada

a fenômenos de natureza semântica ou discursivo-pragmática. A sintaxe é vista como uma

estrutura a serviço do discurso e esse é entendido como um uso criativo da língua nos

diferentes contextos de comunicação. Segundo Furtado da Cunha (2012), o discurso e a

gramática interagem e um influencia o outro mutuamente, de tal modo que, no uso real da

língua, um não pode ser acessado, ou até mesmo explicado, sem referência ao outro. Nessa

perspectiva, as línguas são motivadas e moldadas pela interação complexa de princípios

cognitivos e funcionais que exercem um papel na aquisição, no uso e na mudança linguística

(TOMASELLO, 1998).

A gramática é vista pela LFCU como um conjunto de esquemas/processos simbólicos

que são usados na elaboração e na organização de um discurso coerente. Segundo Furtado da

Cunha et al. (2013), a gramática é constituída de categorias morfossintáticas rotinizadas,

apresentando padrões funcionais mais regulares e formas opcionais em processo de mudança

motivada por fatores cognitivo-interacionais. Desse modo, a gramática e o discurso estão

unidas e agem em mútua dependência, em que um (re)modela o outro.

Assim, a gramática é concebida como um “sistema aberto, fortemente suscetível à

mudança e intensamente afetado pelo uso que lhe é dado no dia a dia” (FURTADO DA

CUNHA; TAVARES, 2007, p.18). Considerando o aspecto emergente da gramática, as

regras que regulam o sistema linguístico resultam de um grupo de princípios de adaptação

contextual. A gramática, por esse viés, é um fenômeno sociocultural em que sua estrutura e

sua regularidade vêm do discurso, sendo moldadas em um processo contínuo. Exemplo disso

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.172

é a posição do sujeito na predicação em português: podemos colocar o sujeito antes ou depois

do verbo, mas, ao formular as frases, temos que decidir em que parte vai aparecer, o que não é

arbitrário, já que é o contexto de uso o fator motivador da escolha. Então, dominar uma

gramática de uma língua significa dominar os mecanismos de natureza sintática e os

processos associados a: organização textual (planos discursivos, coesão e coerência, etc.) e

aos fenômenos interacionais (intenções e expectativas dos participantes, leituras de interação,

implicaturas conversacionais, etc.). Existe uma estreita relação entre esses pontos, porque o

texto é organizado contextualmente e o próprio lugar da interação, posto que os interlocutores,

“como sujeitos ativos, negociam o sentido de maneira interativa, tanto respondendo ao

contexto quanto criando contexto.” (TRAUGOTT; DASCHER, 2005).

Em suma, vimos que, na LFCU, os fatores sociocognitivos entram em ação no

processamento das sentenças, ou seja, na interação e que a utilização de informações

contextuais é primordial para a criação e interpretação das sentenças, implicando também em

uma visão adaptativo-funcional do sistema linguístico que serve de base à comunicação

verbal. Assim, temos uma visão de gramática emergente que reflete a criatividade humana

para encontrar a forma ótima e expressiva de comunicação em diferentes contextos.

Resultante dessa gramática emergente é o fenômeno da gramaticalização. Segundo

Furtado da Cunha et al. (2013), a gramaticalização designa fenômenos de variação e mudança

linguística, que se modificam tanto sincrônica como diacronicamente, considerando, como

vimos, aspectos relacionados à dimensão significativa e a dimensão formal.

O processo de gramaticalização tem como princípio cognitivo a exploração de velhas

formas para novas funções (WERNER; KAPLAN, 1963), o que faz com que conceitos

concretos sejam movimentados para o entendimento de um elemento menos concreto.

Assim, os falantes e ouvintes, devido às assimetrias de suas experiências, negociam e adaptam

funções e formas para o sucesso da troca comunicativa, permitindo que a língua altere os seus

padrões discursivos e a sua contraparte mental.

Segundo Heine et al. (1991), torna-se possível expor o processo de gramaticalização

por meio do grupo de categorias conceptuais, de acordo com uma escala de abstração

crescente, em que cada elemento seguindo um percurso unidirecional se liga a outro elemento

a direita por meio de “flechas” (“>” leia-se “passa para”), resultando no que muitos

pesquisadores chamam de “metáforas categoriais”:

PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.173

Para os autores, essas categorias representam um domínio de conceituação relevante

para a estruturação da experiência humana. Martelotta (2008) ilustra essa escala de

abstratização, em português, por meio de exemplos, com a palavra “braço” que indica uma

parte do corpo e passa a designar um objeto como “braço da cadeira”, uma atividade, como

em “braçada”, uma medida de espaço, como em “uma braça” e uma qualidade, como em “Ele

é meu braço direito”. Essas categorias representam uma variedade de conceitos definidos

perceptual e linguisticamente.

Continuando essa perspectiva, mais recentemente, a LFCU, baseada em Traugott

(2012) e Traugott e Trousdale (2013), entende a gramaticalização como uma mudança

construcional que acaba por moldar a gramática da língua e implicar diluição de fronteiras

categoriais mais nítidas. Nessa ótica, um uso qualquer, motivado por fatores de ordem

pragmático-discursiva pode se tornar, via repetição frequente, uma expressão fortemente

esquemática e convencional, em termos de sentido e estrutura, que cumpre uma nova função,

de estatuto mais gramatical. Ou seja, o que era livre escolha passa a ser idiomático e os novos

usos, com maior vinculação entre si, tornam-se mais abstratos e (inter)subjetivos.

(FURTADO DA CUNHA; OLIVEIRA, 2014)

Metodologia

O córpus utilizado na invetigação faz parte do banco de dados de Dissertações e Teses

sobre gramaticalização, organizado por Figueiredo-Gomes e Bertuleza (2013) e intitulado

córpus DISSERTAÇÕES E TESES – DISSERTES.

O córpus DISSERTES constitui um banco de dados que permite uma análise do

Português culto Brasileiro, norma exigida em trabalhos acadêmicos, que contém uma média

de 2.000.000 palavras, dos gêneros acadêmicos Dissertações e Teses, defendidas no período

de 1998 a 2012. Como o córpus é formado por trabalhos de gramaticalização, há muitas

amostras de fala, ilustrando os fenômenos de estudo. Para caracterizar os usos do agora em

gêneros acadêmicos, por razões metodológicas, isolamos todas as amostras de fala, uma vez

que esses usos não caracterizam o gênero em questão.

A fim de analisarmos os usos do item agora nos gêneros acadêmicos, selecionamos as

categorias de análise resultantes dos estudos existentes sobre esse item, quais sejam, os

estudos de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues (2009) e

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.174

Philippsen (2011). Na seleção das variáveis, incluímos todos os usos identificados nos

trabalhos sobre esses itens, embora alguns sejam próprios da língua falada, nós os

mantivemos no levantamento, posto que esses usos podem ter se gramaticalizado na escrita.

Como o córpus deste trabalho é formado por dissertações de Mestrado e teses de

Doutorado, sentimos a necessidade de defini-los enquanto gêneros acadêmicos. Segundo

Swales (1990), o gênero acadêmico é associado a gêneros escritos que apresentam alguma

investigação produzida por seus(suas) autores(as) com interesse de expor suas descobertas ou

discutir questões teóricas e/ou metodológicas. Segundo a ABNT, esses dois gêneros, apesar

de acadêmicos, são diferentes, pois a dissertação evidencia o conhecimento de literatura

existente sobre um assunto e a capacidade de sistematização do candidato ao título de mestre,

já a tese apresenta uma investigação original, constituindo-se em real contribuição para a

especialidade em questão, que concede ao candidato o título de doutor, último título de

escolaridade reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior-CAPES.

Para o tratamento dos dados, obedecemos aos seguintes passos: após selecionarmos as

dissertações e as teses, fizemos a conversão do formato *pdf (Adobe Reader) dos gêneros

acadêmicos para o formato *txt, extensão necessária à aplicação do programa WordSmith

Tools (SCOTT, 2008), uma ferramenta de grande valia para os pesquisadores da Linguística

de Córpus, que possibilita a coleta de amostras de usos da linguagem. O programa

WordSmith Tools apresenta três ferramentas, são elas: o WordList, que permite gerar listas de

palavras, contendo todas as palavras do arquivo ou arquivos selecionados, elencadas em

conjunto com suas frequências absolutas e percentuais; o Concord, que faz concordâncias de

uma palavra específica com partes do texto onde ocorreu; e o KeyWords, que coleta palavras

de acordo com a frequência.

Nesta pesquisa, o programa WordSmith Tools contribuiu para a coleta de amostras em

que ocorrem os usos do item agora e para o cálculo de frequência dos usos desse item. O

programa permitiu também listarmos as concordâncias do item agora com os outros

elementos que são usados no texto e extrairmos as amostras para a análise dos usos em

comum.

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Usos e funções do item agora em gêneros acadêmicos

Sabemos que o item agora etimologicamente provém de hac hora (latim) que significa

‘neste momento’ ou ‘no momento presente’ e tradicionalmente é visto como um simples

advérbio, um dêitico temporal que tem como função situar eventos a que se refere em um

determinado período de tempo. No entanto, esse item pode apresentar um desdobramento da

noção de tempo, que, segundo Neves (1992), ele não revela apenas o momento fisicamente

determinado, mas apresenta variação de alcance que pode referir-se a um mínimo pontual,

como também pode abranger um momento maior ou menor, pertencente à esfera do presente,

do passado ou do futuro, desde que se aproxime do momento da enunciação ou o atinja.

Pudemos ver, na seção “Estudos funcionalistas sobre o item agora”, essa abrangência e outros

achados nos estudos de Niedzieluk (2004), Souza Júnior (2005), Duque (2009), Rodrigues

(2009) e Philippsen (2011).

Com base nesses estudos, encontramos usos temporais prototípicos do agora nos

gêneros acadêmicos segundo os dados do córpus DISSERTES e outros que se desdobraram

com outras funções como podemos ver na Tabela 01.

Como mostra a Tabela 01, o item agora ocorre, no córpus DISSERTES, com usos

mais próximos do seu sentido prototípico, como TEMPO (57%): dêitico temporal, mudança

de estado e divisor de época, e o agora como TEXTO (43%): sequencial e introdutor de

tópico, que apresentamos, a seguir:

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1 AGORA COMO TEMPO

O uso do agora como tempo foi encontrado nos cinco os trabalhos que apresentamos.

É o uso do agora como advérbio temporal, diferenciando apenas as especificações da

referência da circunstância de tempo. Descrevemos, a seguir, os usos temporais assumidos

pelo item agora no córpus DISSERTES, quais sejam: agora dêitico temporal, mudança de

estado e divisor de época.

1.1 AGORA DÊITICO TEMPORAL

O córpus DISSERTES apresentou os usos temporais do item agora que indicam a

noção de tempo, por meio da função de dêitico temporal, função prototípica desse item

equivalente a “neste momento”, em 27,5% de ocorrências, como podemos ver nas amostras

(1) e (2).

(1) Resta agora observar o comportamento das modais introduzidas pela

locução SEM QUE, no que tange à mobilidade posicional. (73-D-21)87

(2) O efeito principal da apassivação é que ela cria, por assim dizer, um

ambiente inacusativo. Por figurar agora em um ambiente inacusativo, o

complemento de considerar passa pelas mesmas transformações descritas em

(6): o sujeito da SC é alçado para o Spec/IP matriz em (8a), mas não em

(8b). (34-T-08)

Conforme (1) e (2), amostras dos gêneros dissertação e tese, respectivamente, sobre

estudos de gramaticalização da língua portuguesa, o item agora ocorre na sua função de

dêitico temporal. Na amostra (1), o item agora em “resta agora observar” equivale

semanticamente a “neste momento”. Já na amostra (2), o item agora em "por figurar agora em

um ambiente inacusativo, o complemento de considerar passa pelas mesmas transformações

descritas em (6):” corresponde ao momento presente da enunciação.

87 As amostras estão codificadas da seguinte maneira: o primeiro número corresponde à

ocorrência no programa Excel; a letra maiúscula indica o gênero (D – Dissertação; T - Tese) e o

número corresponde à identificação do texto no córpus DISSERTES.

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1.2 AGORA MUDANÇA DE ESTADO

Ocorreram 24,7% de usos nos gêneros acadêmicos em que o item agora apresentou a

função temporal de mudança de estado, função que equivale semanticamente a “a partir desse

momento” como mostra (3) e (4). Embora sejam muito próximos da função divisor de época,

diferenciamos estes usos por não sugerirem um cessamento, mas uma mudança de estado que

se inicia.

(3) A contração de para com o artigo a era esperada neste contexto, porque

no registro de fala coloquial este tipo de contração (pra) é usual. O gênero

de Unicamp foi alterado e agora é masculino: Unicampo, mas o seu

determinante continua feminino: a Unicampo. (127-D-30)

(4) No entanto, ressalta-se que sempre se imaginou como principal intenção

de um estudo não o esgotamento das possibilidades de análise ou o

oferecimento de todas as respostas, mas a promoção de reflexão sobre novas

respostas, novos caminhos de investigação que, neste caso, agora estão

submetidos à apreciação e contribuição dos leitores. (94-T-13)

Na amostra (3), a função temporal do item agora apresenta uma noção de mudança de

estado, em que o gênero da palavra Unicamp, a partir daquele momento, foi alterado para o

masculino. Verificamos também uma mudança de estado em (4), em que o item agora

pressupõe que, a partir daquele momento, estão submetidas às reflexões sobre as respostas e

os caminhos da investigação. Salientamos que é um uso que se diferencia da função dêitica do

agora, apesar de temporal, por marcar as mudanças nos eventos a partir de um tempo

específico.

1.3 AGORA DIVISOR DE ÉPOCA

Outro uso temporal, apresentado nos gêneros acadêmicos, embora com 4, 5% de

ocorrências, é o agora divisor de época que se trata de um uso em que o item agora faz

referência a uma situação que era no passado de uma forma e no momento da enunciação não

é mais, como ocorre em (5).

(5) Todavia, diferentemente de (32), em que o operador argumentativo era

apenas o item até, sendo que o que não podia ser retirado da sentença sem

prejuízos sintáticos, por ser uma conjunção integrante, agora o que se

chama de operador argumentativo é o grupo até que, já que ele, em bloco,

serve ao discurso. (26-D-15)

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Na amostra (5), em que a dissertação versa sobre os operadores argumentativos e

mostra que a função era restrita a apenas um elemento, o “até”, não incluindo o “que” como

conjunção integrante, mas, por meio do item agora, marca-se a época atual, em que o

operador argumentativo “até” mudou, passando a constituir as expressões até que e fazendo

parte do grupo já que.

2 AGORA TEXTUAL

Assumindo funções mais textuais e discursivas, o item agora passa a desempenhar

novas funções advindas do seu sentido primeiro (tempo), funcionando, no texto, como

conectivo, apresentando noção de sequenciação; e como marcador discursivo, introduzindo

tópico.

2.1 AGORA SEQUENCIAL

Esse uso está presente nos estudos de Niedzieluk (2004), distribuído nas funções

contrastivo, retomador, avaliativo, avaliativo de realce e aditivo, que coloca no mesmo grupo

as funções discursivas. Souza Júnior (2005) registra apenas como conector o agora juntivo

por contrajunção. Além do agora juntivo adversidade, Duque (2009) encontra o agora juntivo

concessão. Rodrigues (2009) registra os usos do conector sequencializador, opositor e

concluidor. Por fim, Philippsen (2011) inclui na função do agora conector, além da

contrajunção, o conector de sequencialidade e de causalidade (perífrase conjuncional

explicativa/causal). No córpus DISSERTES, o item agora como conectivo apresenta também

a noção de sequenciação.

Na função sequencial, também tipificada por Rodrigues (2009) e Philippsen (2011), o

item agora, com 38,5% de ocorrências, tem, nos gêneros acadêmicos, a função de dar

continuidade à sequência de eventos ou ações dentro do contexto em que está inserido. Trata-

se de um uso em que existe uma fluidez entre o registro escrito e a localização espacial no

texto, como mostra (6) e (7).

(6) Na realidade, o uso dessa sentença tem a função de defender um

argumento contrário ao procedimento em questão, uma vez que a

propriedade resultante já existe. Observe agora o exemplo contido em (2-

23). (07-D-18)

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.179

(7) Uma vez confirmada a capacidade de discriminação e de esquematização

dos informantes, cabe agora discutir o nível dessa granularidade e a força de

coesão entre os grupos. (91- T-23)

Nas amostras (6) e (7), o agora enfraquece sua noção temporal e passa a estabelecer

uma relação de continuidade entre as informações do registro, direcionando o leitor e

indicando o local do conteúdo textual nos dois gêneros acadêmicos. Verificamos uma forma

de chamamento para o leitor do que quer que seja observado, em (7), e um aviso da

organização do processamento textual do autor que reflete também o direcionamento das

reflexões sobre o conteúdo.

2.2 AGORA INTRODUTOR DE TÓPICO

Segundo Risso, Silva e Urbano (1996), qualquer elemento de função textual

desempenha sempre uma função orientadora da interação, mesmo que seja sutilmente, essa

afirmação mostra que é difícil estabelecer uma distinção exata entre os elementos que são de

função absolutamente textual dos elementos interativos, como os marcadores discursivos. No

entanto, consideramos que, em alguns usos ocorridos nos gêneros acadêmicos, o agora, além

de atuar como um direcionador do texto, ocorre desempenhando funções de predominância

discursiva. Embora com função discursiva do agora, Niedzieluk (2004) inclui as funções

retomador e avaliativo e avaliativo de realce como conector. Considerando marcador

discursivo, Souza Júnior (2005) elenca o agora introdutor de digressão e redirecionador de

tópico; Duque (2009) registra o agora introdutor de tópico; Rodrigues (2009) divide os

marcadores, além do agora introdutor de tópico, nas funções de enfatizador de tópico e

retomador de tópico; e, por fim, Philippsen (2011) engloba o agora como marcador discursivo

na função argumentativa de organizador lógica de ideias. Como marcador discursivo, no

córpus DISSERTES, o item agora funciona como introdutor de tópico, como também o

acharam Duque (2009) e Rodrigues (2009) em gêneros diferentes.

Nos gêneros acadêmicos do córpus DISSERTES, tipificamos o agora introdutor de

tópico, com 4,5% de ocorrências, cuja função é introduzir um tópico ou um novo momento do

discurso, por meio de uma mudança no tópico ou no assunto tratado, como segue em (8) e (9).

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.180

(8) Vimos que era preciso, então, excluir as ocorrências com os principais

ser e ter, além dos modais. Com essa nova rodada, obtivemos um percentual

de 24% de ocorrência da forma nova entre os verbos de segunda conjugação,

amalgamando F e P.Agora, com o índice de 60% de ocorrência da forma

entre verbos de 2ª conjugação e de uma sílaba, podemos concluir que, com

exceção dos verbos mais frequentes na língua e de morfologia mais marcada,

a exemplo de ser e ter, o processo de mudança já atingiu essa conjugação na

escrita. (06-D-17)

(9) Agora, conforme foi feito para o verbo achar, são apresentados alguns

cruzamentos entre a categoria ‘sentidos’ e outras categorias. (113-T-10)

Conforme as amostras, o item agora ocorre iniciando tópicos. Na amostra (8), que

apresenta os percentuais obtidos após a exclusão de algumas ocorrências, o agora aparece

iniciando um novo tópico, apresentando o índice de uma nova forma entre verbos de segunda

conjugação e de uma sílaba. Em (9), o agora também introduz um turno/tópico no qual ele

mostra que, a partir daquele trecho, será feito um cruzamento entre categorias.

Com base nessas ocorrências, constatamos que o item agora, embora seja de um uso

mais conservador, formalidade exigida pelos gêneros acadêmicos, quando mais de 50% dos

usos preservam a função prototípica de dêitico temporal, está passando por um

desdobramento do tempo, seguindo como sequenciador textual e, em outros casos, como

marcador discursivo.

Conclusão

Os resultados empíricos revelam que o item agora apresentam novos usos e funções

nos gêneros acadêmicos, como: dêitico temporal, divisor de época, mudança de estado,

sequencial e introdutor de tópico. Os resultados mostram também que o item agora segue a

trajetória: TEMPO > TEXTO nos gêneros acadêmicos dissertação de mestrado e tese de

doutorado.

Com base nesses resultados, concluímos que o item agora é multifuncional e assume

funções específicas, em certos contextos, que contribuem, principalmente, na organização e

na construção de sentido do texto acadêmico, por meio das funções introdutor de tópico e

sequenciador textual, corroborando, assim, os pressupostos da LFCU, sobretudo no que diz

respeito à teoria da gramaticalização.

Desse modo, podemos tomar a variação e a mudança como um processo que pode ser

trabalhado, nos diversos níveis de ensino e mesmo no nível acadêmico, posto que a variação é

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.181

um traço inerente e mesmo constitutivo das línguas, em maior ou menor grau; já a mudança,

embora seja uma tendência nas línguas, não tem que acontecer. Baseados nisso e nos

resultados apresentados, sugerimos, pois, que essa concepção possa ser levada em conta nas

atividades de análise e reflexão linguística nas aulas de língua portuguesa.

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.183

REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE: A POLÊMICA DA

INTERINCOMPREENSÃO EM DISCURSOS SOBRE A MACONHA

Marcio Rogério de Oliveira CANO88

Ricardo CELESTINO 89

Resumo: Em contribuição aos estudos enunciativo-discursivos propostos pela Análise do

Discurso de linha francesa, de Dominique Maingueneau (2006, 2007, 2008, 2012),

analisamos o discurso jornalístico Crônicas do Jornal, de Arnaldo Jabor, veiculados no

telejornal Jornal da Globo, e o discurso de regulamentação da maconha, do presidente

uruguaio José Pepe Mujica. Examinamos a polêmica da interincompreensão que se instaura

nos discursos supracitados, ao problematizarmos a palavra regulamentação, em uma

alternativa política de controle do consumo e venda da maconha no Uruguai. A divergência de

ambos os discursos situa-se na maneira em que um traduz o outro, a partir das formações

discursivas que os institucionalizam politicamente.

Palavras-chave: Polêmica da interincompreensão. regulamentação da maconha. Análise do

Discurso. Arnaldo Jabor. José Pepe Mujica.

Abstract: In contribution to the enunciation-discursive studies proposed by the French-line

Discourse Analysis, by Dominique Maingueneau (2006, 2007, 2008, 2012), we have analyzed

the journalistic discourse Crônicas do Jornal, by Arnaldo Jabor, aired on the TV news Jornal

da Globo, and the marijuana regulation discourse, by the Uruguayan President José Pepe

Mujica. We have examined the controversial interincomprehension which is established in the

above mentioned discourses, when problematising the word regulation, in an alternative

control politics of consumption and sale of marijuana in Uruguay. The divergence of both

discourses lies in the way in which one reflects the other, from the discursive formations that

institutionalize them politically.

Keywords: Interincomprehension polemic; marijuana regulation; Discourse Analysis;

Arnaldo Jabor, José Pepe Mujica.

88 Professor Doutor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Lavras, UFLA, Minas

Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]. 89

Mestrando do Programa de Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa, da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, Brasil. E-mail:

[email protected]

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.184

Considerações Iniciais

Este artigo tem como tema o estudo da polêmica da interincompreensão entre o

discurso jornalístico Crônicas do Jornal, de Arnaldo Jabor, veiculado pelo suporte televisivo

da Rede Globo, no telejornal Jornal da Globo, e o discurso de regulamentação da maconha,

proferido pelo presidente uruguaio José Pepe Mujica nos programas TV Folha e TV Brasil.

A polêmica da interincompreensão, proposta por Maingueneau (2008), consiste em

uma categoria que examina, no espaço discursivo, as diversas possibilidades de posições

enunciativas que, em conflito, geram semas positivos e negativos em um mesmo discurso. Em

outras palavras, para o autor há um embate constante, em alguns discursos, entre o ato de

enunciar em conformidade com as regras da formação discursiva e o ato de traduzir o sentido

dos enunciados do Outro, estabelecendo uma relação de oposição e polêmica.

Compreendemos que o uso de drogas e, especificamente, a regulamentação da

maconha proposta por Uruguai reflete um tema de grande polêmica na sociedade atual, por

reunir diversas formações discursivas distintas. Trata-se de um tema que pode ser

compreendido a partir de diversos campos discursivos, dos quais selecionamos o da política,

em que de um lado há a ideia de que o projeto uruguaio se trata de um populismo do governo

uruguaio que simpatiza com a esquerda latino-americana, enquanto de outro há o sema de que

o projeto é inovador e reflete uma necessidade social mundial que nenhum líder político teve

coragem de discutir com propriedade.

Assim, a análise que propomos, pautada na premissa de que a polêmica se localiza no

interior do discurso de um e de outro, é apenas o início de uma grande vereda, possível de ser

ampliada em estudos futuros, tanto no que diz respeito ao tema selecionado – a questão da

regulamentação da maconha – quanto à categoria selecionada, a polêmica da

interincompreensão na Análise do Discurso de tendência francesa.

A descriminalização das drogas e o projeto de estatização da produção da maconha no

Uruguai.

A questão das drogas no Brasil é um tema de grande polêmica. Pela condição marginal em

que é colocada, muitos discursos são produzidos e outros tantos são calados, o que possibilita

uma observação a partir de vários campos discursivos da política, da economia, da saúde, da

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.185

cultura, dentre outros. Porém, podemos concordar com Silva (2007, p.1) que no contexto da

discussão atual sobre esse assunto, há consenso da existência de dois aspectos levantados em

quaisquer esferas sociais que discutam o tema: de um lado, a produção, a comercialização e a

oferta; de outro o consumo de substâncias e suas consequências.

Para a autora, ambas as facetas convivem em interdependência na sociedade. A produção,

comercialização e oferta de drogas só existem, porque há uma demanda que estimula esse

processo. Assim, para o Estado viabilizar planos no combate às drogas, é necessário observar

essas duas facetas na mesma proporção. Ao considerar criminalização a produção,

comercialização e oferta, além do consumo e, por outro lado, as consequências serem tratadas

como problema de saúde e de dependência, cria-se um hiato entre os dois aspectos, o que

possibilita um fosso de produção discursiva complexa, com posicionamentos vários acerca da

questão.

Dentre os discursos possíveis, podemos citar aqueles relativos às políticas antidrogas, que,

segundo Acserald (2003), precisam ter como pressuposto mais a prevenção do que a

repressão. Para o autor, a repressão pela repressão não previne o uso indevido de drogas, mas

coage os usuários que, ao manterem a mesma prática, acabam assumindo o papel social de

marginalizados.

Silva (2007) compreende que o consumo de drogas pode extrapolar as condições de

decisão e escolha das pessoas. Um determinado usuário pode consumir drogas de forma

ocasional e recreativa, sem comprometimentos no que diz respeito a dependências orgânicas

ou psíquicas. Todavia, também há o usuário que possui dependência e que deve ser

compreendido como um sujeito que sofre de um distúrbio ou uma doença tão comum quanto

o alcoolismo, o tabagismo, dentre outros.

A consciência dos efeitos danosos consequente do uso de drogas, segundo Silva (2007),

levou a sociedade brasileira e internacional a construir, lentamente, uma tendência de

enfrentamento do consumo de drogas na perspectiva de prevenção. A partir da década de

1990, quando estudiosos da área da saúde e de políticas públicas notaram a falta de resultados

positivos em projetos de caráter repressor, deram início, paulatinamente, a projetos que

tinham como fundamento prevenir e tratar o usuário de drogas.

A tendência de prevenção e tratamento aos usuários rompeu com o paradigma social

acerca de como observar a temática drogas. Compreende-se, segundo Silva (2007), que a

questão da prevenção e do tratamento constitui-se hoje como uma construção coletiva, que

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.186

envolve os sujeitos em todas as suas relações sociais. A participação direta ou indireta das

diversas instituições que constituem o sujeito enquanto ser social influenciará no rumo de

quaisquer projetos que almejam o combate aos dependentes químicos. Ainda, segundo o

autor, o fortalecimento de políticas que têm como pressuposto a prevenção e o tratamento é

fundamental para a emancipação da sociedade humana.

Em vista disso, nos deparamos, no segundo semestre de 2013, com projeto proposto pelo

presidente uruguaio José ´´Pepe´´ Mujica sobre a estatização da maconha. Contudo, o projeto

gerou grande polêmica na comunidade internacional, uma vez que a figura de Mujica é

marcada por seu posicionamento político de esquerdista sulamericano, o que possibilitou

vincular a discussão e o projeto a esses traços esquerdistas dele, mobilizando uma resposta de

outros setores políticos enviesados pela possibilidade de discussão política que, muitas vezes,

pode colocar a discussão sobre o projeto para segundo plano.

Ex-guerrilheiro tupamaro, Mujica tornou-se destaque internacional em seu primeiro

mandato, observado como um dos políticos cujas ações rompem com o paradigma de seu

lugar de poder. Segundo a revista Carta Capital, Mujica abriu mão de 90% do salário e

preferiu morar em sua chácara, do que na residência oficial. Para a revista americana Foreign

Policy, Mujica está entre os cem pensadores mais importantes de 2013, por redefinir o papel

da esquerda no mundo. Em plena derrocada da esquerda latino-americana, devido à morte de

Hugo Chávez, Mujica torna-se um novo símbolo de representação da esquerda e de críticas de

movimentos opositores.

As propostas de Mujica mobilizam as mídias e instituições não só nacionais, como

internacionais, devido a sua ousadia em tocar temas tabus de grande polêmica na sociedade.

Apenas em 2013, Mujica propôs projetos de legalização do aborto até o terceiro mês, a

liberação da união civil homoafetiva e a estatização da maconha, que foi aprovada pelo

Senado por 16 votos a favor e 13 contra. Tais medidas elevaram a imagem do presidente

uruguaio como um dos principais progressistas da atualidade, para os grupos da esquerda, e

um neo-chavista populista para os grupos da direita.

O projeto de estatização da maconha no Uruguai tem como objetivo a redução da

criminalidade no país. Não se trata de liberar o consumo da erva, mas regularizá-la, a fim de

substituir um mercado de regras marginalizadas e constituir um mercado estruturado pelo

governo uruguaio. Opositores compreendem que o projeto não tem garantias concretas de

êxito, o que leva a crer que o Uruguai será utilizado como uma espécie de laboratório para o

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.187

mundo. A Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes, órgão das Nações Unidas

responsável por supervisionar as convenções e o cumprimento sobre drogas, afirma que o

projeto viola os tratados internacionais assinados, dentre outros países, pelo Uruguai, que

determina o uso da Cannabis apenas para fins médicos e científicos.

No entanto, inúmeros países, dentre eles a Noruega, o México e a Suíça, questionam os

maus resultados que os atuais projetos de combate e de proibição às drogas apresentam. Para

os suecos, os projetos que têm como pressupostos a repressão e a proibição não têm surtido

efeito para a diminuição do consumo de drogas e contribuem para afastar os consumidores

dos tratamentos médicos que previnam doenças físicas e psicológicas em virtude do consumo

de drogas.

Diante dessa realidade, o projeto de Mujica foi ressaltado como inovador por boa parte da

crítica que deixa de lado o posicionamento político do presidente uruguaio. Em inúmeros

depoimentos, Mujica prevê dificuldades, mas defende a ideia de que se trata de uma forma

diferente de buscar minimizar a quantidade de vidas perdidas pelas drogas: desde ajustes de

contas com traficantes, até questões de saúde física e psicológica. Afirma, ainda, que o projeto

possibilita um caminho de combate não por meio da repressão ou da proibição, mas pela

educação e conscientização do consumo desse tipo de substâncias, como há muito tempo se

busca.

Diante da importância e da referência mundial que esse projeto constrói para si e das

formas como se constituem as polêmicas por meio dos discursos produzidos por essa atitude,

propusemos fazer esse estudo para desvelar a organização de um discurso polêmico e a forma

como se dá o processo de interação discursiva que instaura tal polêmica. Em nossos estudos,

privilegiamos o processo de relações interdiscursivas que se manifestam em vários campos

como o jornalístico, o político, o publicitário, o literário entre outros. No espaço desse artigo,

traremos os dados e sua análise de um dos aspectos da arquitetura discursiva que é a polêmica

da interincompreensão. Tal princípio de análise deve colocar em evidência unidades tópicas

ou atópicas que se localizam em uma mesmo campo ou no embate entre dois campos

discursivos.

Para esse estudo, selecionamos um discurso tópico que pretende responder ao projeto do

presidente do Uruguai, produzido pelo Jornalista Arnaldo Jabor e veiculado no Jornal da

Globo, da emissora de mesmo nome. Levantamos, para isso, os traços que compõem os

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sentidos que Arnaldo Jabor propõe para tal projeto e como deveria ser para tratar e desvelar a

instauração da polêmica.

Para compreendermos melhor o que é a polêmica da interincompreensão, traremos uma

reflexão teórica de partida, respaldados essencialmente em Dominique Maingueneau (2006,

2007, 2008, 2012), expoente da área de Análise do Discurso de linha francesa.

A polêmica da interincompreensão

A polêmica da interincompreensão tem como ponto de partida a reflexão sobre os

semas, terminologia muito utilizada na linguística na área da Análise Sêmica (doravante AS).

Entendemos que os semas são unidades semânticas mínimas de significado e para

compreendê-las, na perspectiva da AS, é necessário partir de um conjunto de semelhanças e

diferenças. Um exemplo disto é associar e dissociar o sentido das palavras cadeira e poltrona.

Observaremos que existem semelhanças entre ambas as palavras que as colocam em um

mesmo grupo de objetos, mas existem particularidades que a tornam diferentes e as

individualizam de alguma maneira. Cada um dos elementos semânticos levantados que se

distoam ou se assemelham constitui um sema.

A partir do que compreende a AS acerca dos estudos dos semas, Maingueneau (2008)

propõe um olhar enunciativo-discursivo sobre o estudo da polêmica dos sentidos em um

discurso. Por se tratar a Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD) uma disciplina

linguística que observa os enunciados em relação com a prática social, o autor compreende

que toda e qualquer manifestação enunciativa está submetida a uma relação interdiscursiva de

construção de sentido. Para o autor, o interdiscurso precede o discurso, já que é impossível

conhecermos a prática social constante em uma prática enunciativa sem conhecer outros

discursos que dialogam com o discurso em análise. Assim, o autor afirma que o interdiscurso

deve ser observado como um sistema de restrições e coerções globais, uma vez que é por

meio da interdiscursividade que encontramos um espaço de embate de diversas formações

discursivas. Esse embate, para o analista, serve de unidade central para o estudo do discurso,

já que pressupõe um processo dialógico, de relação nem sempre explícita, entre um processo

enunciativo com outros processos enunciativos anteriores.

Compreendemos ainda que analisar o discurso pela sua relação interdiscursiva

pressupõe a investigação dos dispositivos que vêm a conduzir a relação de um determinado

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discurso com outro, ou ainda, com um determinado universo de discursos. Para Maingueneau

(2008b), a relação com o Outro é o fundamento da discursividade, partindo do pressuposto de

que uma interação discursiva se constitui a partir do diálogo existente com outros discursos -

base do princípio dialógico e polifônico de Bakhtin (1992). A interação enunciativa, segundo

o autor, é constituída pela forma com que um enunciador conduz diversos olhares de Outros

discursos na constituição de seu próprio discurso. Se retomarmos o exemplo anterior, na

perspectiva da AD, em uma palavra podemos ter efeitos de sentidos divergentes a partir de

quem a observa, pois as coerções que serão realizadas para a construção do sentido são fruto

de posicionamentos e de formações discursivas específicas, inscritas em um espaço histórico e

social de cada indivíduo ou grupo de indivíduos.

A partir dessas reflexões, o autor propõe um quadro metodológico que categoriza o

interdiscurso, a partir de uma tríade composta por: universo discursivo, campo discursivo e

espaço discursivo.

Por universo discursivo, Maingueneau (2008b, p.33) entende um conjunto de

formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada. Por conjuntura

dada compreendemos se tratar de espaços histórico-sociais delimitados que servem de

condições de produção para diversos discursos. Segundo o autor, o universo discursivo é de

pouca utilidade ao analista, pois representa uma extensão máxima [...] de domínios suscetíveis

de ser estudados. Em outras palavras, trata-se de um todo vasto e impossível de ser

apreendido em sua totalidade por um analista, já que este tem como finalidade observar os

efeitos de sentido possíveis de um processo enunciativo, dentro de posicionamentos e

formações discursivas mais delimitadas. Contudo, o universo discursivo possibilita uma

abertura para delimitarmos os campos discursivos.

Maingueneau (2008b, p.34) define campo discursivo como um conjunto de formações

discursivas que se encontram em concorrência. Segundo o autor, devemos compreender

concorrência como um confronto de posicionamentos, ou a aliança destes, nos discursos que

possuem uma mesma função social e divergem do modo como deve ser preenchida - ou da

forma com que deve compreender sua prática social.

O recorte por campos não define zonas insulares, ou seja, não estabelece as fronteiras

de influências que definem as condições de produção de um discurso. Isto nos permite refletir

que se tratam de lugares abstratos que apenas possibilitam a consolidação de redes de trocas

de formações discursivas, sem, ainda, delimitá-las. A noção de campo discursivo só permite

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que notemos a existência de dois campos discursivos distintos que possuem uma mesma

formação discursiva de base. Compreendemos que tais fronteiras incidem no posicionamento

discursivo dos enunciados, bem como nas formas de desenvolvimento da prática social

desempenhada pelo discurso.

Para completar a tríade, Maingueneau ( op.cit.p.35) propõe, também, o espaço

discursivo, delimitado pelo analista, que consiste em subconjuntos de formações discursivas.

Mais delimitado que o campo discursivo, trata-se de um recorte de discursos, realizado pelo

analista, que antecedem o discurso a ser analisado e que influenciam na constituição dos

enunciados do discurso em análise. Embora não represente a totalidade de formações

discursivas que compõem seu interdiscurso, faz parte de todo o território de influências

interdiscursivas que o analista construiu para o desenvolvimento de sua pesquisa. É a partir do

espaço discursivo, que se definem como territórios da AD os espaços de trocas entre os

discursos, que vêm a constituir inúmeras formações discursivas, que possibilitam espaço de

trabalho para o analista.

Assim, Maingueneau (2008) propõe que no espaço discursivo há uma polêmica da

interincompreensão. O autor compreende que em cada discurso há uma rede semântica, fruto

da interação entre enunciador e coenunciador, com possibilidades de diversas posições

enunciativas. Segundo o autor:

[...] não há dissociação entre o fato de enunciar em conformidade com as

regras de sua própria formação discursiva e de ´´não compreender´´ o

sentido dos enunciados do Outro; são duas facetas do mesmo fenômeno.

(MAINGUENEAU, 2008, p.100)

Se levarmos em consideração que um enunciado possui um determinado

posicionamento na prática social, constituído pelas formações discursivas no interdiscurso,

compreendemos, segundo Maingueneau (2008, p.101), que a cada posição discursiva se

associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro, traduzindo-os nas

categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, é como se cada

envolvido na enunciação possuísse um sistema de coerções próprio que constrói um simulacro

do discurso do Outro, segundo um posicionamento e um conjunto de formações discursivas

específicas. Assim, na enunciação, há em cada enunciado um conjunto de semas que são

divididos em positivos e negativos. Essa categorização dos semas é realizada no discurso-

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agente, já que é no posicionamento discursivo que os semas de um enunciado emergem, como

dispositivos que servem de coerção para interpretar o discurso do Outro.

Maingueneau (2008, p.100) denomina discurso-agente aquele que se encontra em

posição de tradutor do discurso do Outro e de discurso-paciente aquele que é traduzido. O ato

de traduzir, para o autor, está relacionado ao fato de no interior de um mesmo sistema

linguístico existirem zonas de interincompreensão recíprocas a determinados campos

discursivos que possuem posicionamentos que se divergem. Em outras palavras, na

enunciação há determinadas regras de passagem previstas no sistema de coerções e nas

formações discursivas, que conduzem a um posicionamento de um grupo. Essas regras de

passagem possibilitam interpretações distintas sem afetar a estabilidade do significante

linguístico. Esse tipo de tradução é um mecanismo regular, relacionado, segundo o autor, à

constituição de formações discursivas que remetem, para além delas mesmas, a

descontinuidades sócio-históricas irredutíveis.

A interincompreensão está no interior do espaço discursivo e inscreve-se na

irredutibilidade e redutibilidade de um posicionamento. Compreendemos que determinados

temas, ao serem abordados por grupos sociais diferentes, são tomados de forma irredutível,

sem que sejam aceitas quaisquer possibilidades de invariância que venha a abalar os

paradigmas que constituem as formações discursivas e o posicionamento daquele grupo.

Dessa maneira, examinaremos, a seguir, como se dá a polêmica da interincompreensão em um

discurso institucionalizado da mídia televisiva, acerca da temática da estatização da maconha

no Uruguai.

Regulamentação ou controle? A polêmica da interincompreensão no discurso de Jabor

sobre José ´´Pepe´´ Mujica.

Como afirmamos anteriormente, o projeto de estatização da maconha gerou grande

polêmica nas mídias e demais instituições internacionais. De um lado, presenciamos aqueles

simpatizantes ao projeto de Mujica, defendendo a ideia de que se trata de um passo nunca

dado por nenhum líder político; por outro lado, instituições que relativizam a competência do

governo uruguaio em possibilitar que o projeto saia do papel sem agravar ainda mais a atual

condição dos consumidores de maconha e do narcotráfico.

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Assim, selecionamos como amostra para nossa análise o artigo de opinião de Arnaldo

Jabor, veiculado na Rede Globo de televisão, no bloco Crônicas do Jornal, no telejornal

Jornal da Globo, que define de maneira explícita seu posicionamento referente ao tema.

Transcrevemos a seguir, o discurso de Jabor:

Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados? Estão estatizando

a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os níveis da economia: o Estado

quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu irmão, ou daquela

Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior. Como são incompetentes e não

resolvem nada de importante, a América Latina só cuida de bobagens: ao invés de

liberar ou proibir, resolvem estatizar, quando o desastre é exatamente o Estado.

Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de drogas.

- Boa tarde, eu queria 300 gramas da boa.

- O senhor já pegou a senha?

- Que senha, cara?

- E além da senha tem de trazer certidão de nascimento original, dois retratos 3x4

com cabelo cortado, e também...

- Mas eu queria California Gold, vocês tem?

- Hermano, aqui não entra maconha imperialista, aqui só temos maconha de

esquerda.

- E da brasileira, tem?

- Imagina! Vem tudo lá do Paraguai. E agora, depois do golpe neo-liberal que

fizeram, aqui não entra mais o Itaipu Special.

- Pô, cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!

- Tá legal! Mas leva maconha estatal.

- Mas essa eu não quero! É tudo palha!

- Hermano, é a maconha nacionalista! Maconha do povo uruguaio!

- Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que vocês tão

vendendo aí, morô. (JABOR, 2014)

A partir da reflexão exposta anteriormente, acerca de que um discurso é constituído

pelo diálogo com outros discursos, somos capazes de identificar que nossa amostra

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selecionada é constituída pelos campos discursivos da economia e das políticas públicas para

fundamentar o posicionamento político do enunciador, como podemos observar no recorte

abaixo:

Recorte I

Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados? Estão estatizando

a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os níveis da economia: o Estado

quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu irmão, ou daquela

Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior.

No enunciado Eu acho que quem ta muito louca é a América Latina, tão ligados?, o

enunciador constrói seu discurso de maneira a ironizar o projeto de Mujica de estatização da

maconha. Ao enunciar quem ta muito louca, o enunciador coloca-se como pertecente a um

estereótipo de grupo social usuários de droga para iniciar seu discurso sobre o projeto de

Mujica. Podemos compreender que a escolha do enunciador em iniciar seu discurso com um

enunciado que o evidencie, mesmo que ironicamente, como pertencente a um determinado

grupo social, possibilita dois efeitos de sentido: primeiro, o enunciador determina qual a

temática que será desenvolvida na enunciação; segundo, determina seu posicionamento de

oposição ao projeto de estatização da maconha, projetando-se na persona de um usuário para

poder falar sobre o projeto, comparando-o como uma possível droga.

Identificamos, ainda, que o enunciador não responsabiliza o presidente uruguaio, nem

a nação uruguaia pelo projeto de estatização da maconha, mas opta por enunciar quem ta

muito louca é a América Latina, colocando todos os países latino-americanos no mesmo lugar

que o Uruguai. A opção em selecionar todas as nações latinas e não apenas a uruguaia nos

possibilita refletir que o Uruguai, assim como grande parte das nações latinas, possui um líder

cujo posicionamento político é marcado - extrema esquerda - o que faz com que o enunciador

pressuponha a adesão de todas as nações latinas ao projeto de Mujica ao mesmo tempo que

transforma essa discussão específica em um espaço de embate entre posicionamentos

políticos. Além disso, a simpatia desse grupo com a política chavista, que, nesta ocasião

oferece a Mujica os holofotes que eram dados ao Chaves, colocando-o como um dos políticos

mais inovadores do mundo, possibilita essa associação realizada pelo enunciador.

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Temos, então, no primeiro enunciado do discurso, a revelação de um posicionamento

acerca do campo discursivo político. Este posicionamento se estabelece no discurso no

enunciado seguinte, Estão estatizando a maconha? É a mesma coisa que fazem em todos os

níveis da economia: o Estado quer controlar a vida, tudo na onda daquele Chaves, meu

irmão, ou daquela Argentina careta que proíbe até viagem pro exterior. O enunciador destaca

Chaves e Argentina careta comparando-os ao Uruguai que decide estatizar a maconha.

Defende, explicitamente, por meio dos enunciados controlar a vida, na onda daquele Chaves

e Argentina careta, como forma de afirmar-se em oposição ao discurso-paciente. Essa

estratégia que procura a adesão do co-enunciador, traz uma representação negativa de países

marcadamente de esquerda como Argentina e Venezuela, transferindo esses traços negativos à

imagem do Uruguai. Antes mesmo de pensar na proposta que o presidente Uruguaio traz, ela

já é introduzida por alguém que tem uma imagem construída negativamente. Assim o

enunciador recorre à estratégia de atacar o sujeito para ironizar qualquer proposta vinda dele.

Representar tanto a Venezuela como a Argentina e toda a América Latina dessa forma

constitui-se como um modo de dizer sobre o outro atravessado por um discurso violento.

Ainda no recorte I, notamos que o enunciador realiza a primeira leitura acerca do

projeto de Mujica: há uma proposta de estatização que tem como interesse o controle do

Estado na economia do país. O projeto que tem como leitura, para Mujica e seus adeptos, de

que se trata de uma inovação nunca tentada em nenhum país do mundo, para o enunciador da

amostra selecionada é compreendido como um populismo chavista, que tem como

pressuposto o controle da economia, da mesma maneira que fazem os países latino-

americanos, destacando a Argentina. Este é o primeiro ponto que selecionamos que marca

uma polêmica da interincompreensão. Identificamos que para o enunciador, um projeto de

estatização da maconha deva caminhar em conformidade com um modelo econômico

descentralizado do Estado, o que compreendemos como sema positivo dentro do sema de

negação que o enunciador possui acerca do discurso paciente de Mujica.

A seguir, identificamos que o enunciador manifesta seu posicionamento acerca do ato

de estatizar a maconha, refletindo sobre competência e controle.

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Recorte II

Como são incompetentes e não resolvem nada de importante, a América Latina só

cuida de bobagens: ao invés de liberar ou proibir, resolvem estatizar, quando o

desastre é exatamente o Estado.

Novamente, o enunciador responsabiliza a América Latina pela irresponsabilidade

política. Compreende que uma proposta coerente deve pautar-se na questão de liberar ou

proibir, e estatizar passa a ser um gesto populista do governo uruguaio, que tem por finalidade

chamar atenção da comunidade nacional. Afirma, ainda, que o Estado é um órgão de

incompetência, estabelecendo uma relação de causa e consequência: resolvem estatizar,

quando o desastre é exatamente o Estado.

Se levarmos em consideração as condições sócio-históricas de produção do discurso-

paciente, identificamos que o projeto de Mujica tem como pressuposto a descriminalização da

maconha, tendo por fim, com a estatização, iniciar uma política de liberação, cuja finalidade

seja cultural e educacional. O fato de estatizar pressupõe que o Estado, ao invés de

marginalizar seus usuários de drogas, passará a atendê-los enquanto indivíduos, seja pela

dependência, seja como consumidores recreativos. O projeto de estatização tem por fim

desencadear outros projetos, cuja finalidade seja a promoção da cultura de uso da maconha,

tal qual há a cultura de uso de drogas lícitas como o álcool. O fato é que poucos projetos na

comunidade mundial atenderam o usuário como indivíduo, ao passo que se preocupavam mais

em combater o uso, marginalizar o usuário e, muitas vezes, até criminalizá-lo.

Esses traços apresentados compõem os sentidos que decorrem do projeto, porém, a

leitura realizada no discurso-agente é outra, sofre uma espécie de tradução dos sentidos do

discurso-paciente. Pelo Estado uruguaio ter um posicionamento político marcadamente de

esquerda e pela simpatia que Mujica gerou em toda comunidade latino-americana esquerdista,

e ainda, pelo posicionamento marcado do enunciador de oposição política ao presidente, a

negação dos argumentos do discurso-paciente advém de que tudo que é enunciado por um

enunciador que coadune com as formações discursivas da esquerda latino-americana será

interpretado com negação. O fato de, no discurso-paciente, estar marcado o sema controle do

consumo e da produção que fundamenta o projeto de estatização da maconha, pressupõe o

sema populismo de extrema esquerda para o discurso-agente, que observa o discurso-paciente

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Intersecções – Edição 13 – Ano 7 – Número 2 – maio/2014 – p.196

como um projeto que tem a finalidade de apenas chamar atenção de eleitores e da comunidade

internacional. A possibilidade de adesão do co-enunciador ao discurso-agente é que,

historicamente, de fato as nações latino-americanas são marcadas com projetos de finalidade

populistas e o enunciador utiliza esse sema como coerção para fundamentar todos os

enunciados do Recorte II e tornar ilegítimo o projeto de Mujica.

Recorte III

Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de drogas.

- Boa tarde, eu queria 300 gramas da boa.

- O senhor já pegou a senha?

- Que senha, cara?

- E além da senha tem de trazer certidão de nascimento original, dois retratos 3x4

com cabelo cortado, e também...

No enunciado Imaginem a cena burocrática. Um viciado chega no departamento de

drogas., o enunciador propõe a cenografia do diálogo entre um viciado e um servidor público

uruguaio, na compra da maconha estatal. Identificamos que o enunciador possui a referência

de que os órgãos públicos executam serviços burocráticos que são sufocantes ao público.

Projeta a imagem do atendimento de um servidor público a um cliente de maneira

estereotipada, pronta na memória coletiva das pessoas que necessitam de serviços públicos no

Brasil. Trata-se de uma generalização presente nas formações discursivas do brasileiro que se

opõe aos serviços públicos nacionais. É uma realidade proposta pelo enunciador que

referencia mais a prática social brasileira do que a uruguaia.

Ao levarmos em consideração o discurso-paciente de Mujica (2014a, 2014b, 2014 c),

identificamos que ainda não foi proposta nenhuma rotina burocrática de como o consumidor

terá contato com a maconha. Trata-se de um projeto que ainda não começou a ser implantado,

cuja distribuição ainda está em estudo pelo governo uruguaio. Contudo, por se tratar de um

projeto governamental, de um grupo político que, sob a classificação do enunciador, se trata

de populista, o discurso-agente constrói o efeito de sentido de que se trata de um projeto

burocrático, pois está contido nas formações discursivas do enunciador o sema de que todo

projeto populista que se diz competente, pressupõe incompetência de execução desse grupo,

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cuja intenção, para o enunciador, é de apenas construir boas ideias, impossíveis de serem

materializadas. Podemos compreender como sema positivo do discurso-agente que tal projeto

só poderia ser eficaz nas mãos de outro grupo político, que revelasse a imagem de um Estado

competente, que detivesse controle de todo o funcionamento do projeto.

Novamente, compreendemos que a impressão do enunciador é fruto de sua

comparação com projetos do passado, que são traduzidos por ele, como iniciativas populistas

que não geraram bons resultados, mas apenas cenas burocráticas que desestimulavam grande

parte da população. Ainda, a referência à burocracia é construída à luz de uma rotina

brasileira e não uruguaia, e o enunciador pressupõe que um projeto de estatização da

maconha, se executado de maneira burocrática, acarretará na contribuição do aumento do

narcotráfico, pois legitimará este como órgão mais competente que o Estado, como

observamos no recorte abaixo:

Recorte IV

- Pô, cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!

- Tá legal! Mas leva maconha estatal.

- Mas essa eu não quero! É tudo palha!

- Hermano, é a maconha nacionalista! Maconha do povo uruguaio!

- Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que vocês tão

vendendo aí, morô.

Nos enunciados Pô cara! Quebra meu galho. Toma aqui um troco ó!, o enunciador

busca informar o co-enunciador de que o funcionalismo público uruguaio e brasileiro é

passível de corrupção. Traduz que é pressuposta a corrupção em um projeto de um Estado

liderado por um grupo que defende o posicionamento político de esquerda, o que reforça a

impressão de descontrole, defendida pelo enunciador no início de seu discurso. Ainda, o

enunciador constrói um estereótipo do consumidor de maconha, que é um indivíduo que

buscará corromper o Estado, que faz uso de gírias como Tô fora, meu irmão! e Morô!,

buscando identificar o consumidor de maconha a um estereótipo social que é marginalizado

por outros grupos sociais como alguém que não detém o saber, os conhecimentos culturais,

valores éticos e morais, dentre outras características que reforçam a imagem negativa desse

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grupo de indivíduos presente na sociedade brasileira. O enunciador ignora o fato de, na

prática social não só brasileira como mundial, o consumo de drogas não ser um hábito

específico apenas de um determinado grupo de pessoas que não detém o saber formal e uma

conduta ética e moral traduzida por ele como adequada, mas estar associada a um grupo vasto

de pessoas, que engloba também intelectuais, artistas, jornalistas, dentre outros tipos sociais

que fazem parte de seu convívio social.

No enunciado Tô fora, meu irmão! Maconha não é droga. Droga é essa coisa que

vocês tão vendendo aí, morô. o enunciador traduz que a maconha que será oferecida pelo

Estado uruguaio é uma maconha sem qualidade e a associa como droga no sentido de sem

valor. Identificamos que o conceito de qualidade é divergente do discurso-paciente para o

discurso-agente. Para o discurso-paciente, a maconha com qualidade é aquela que esteja livre,

o máximo possível, de impurezas que prejudiquem a saúde, o que não é um parâmetro para o

narcotráfico. No narcotráfico, encontra-se a maconha vendida de maneira mesclada com

outras substâncias que podem impulsionar o vício, ou causar problemas na saúde do usuário.

Por outro lado, o discurso-agente compreende qualidade como a maconha que trará o efeito

esperado ao consumidor, em semelhança com a vendida no narcotráfico. O enunciador não

preocupa-se em observar questões de saúde pública, mas em atender as exigências de

qualidade do usuário que, assim como o consumidor de álcool, busca a maconha pelo efeito

psico-motor que ela causa.

A falta de qualidade, traduzida pelo enunciador, é fruto de uma falsificação do próprio

produto oferecido pelo Estado uruguaio. A maconha estatal é feita com palha e não com

maconha. O serviço público irá ludibriar o consumidor, segundo o enunciador, substituindo

maconha por palha. É possível compreendermos que esse é o posicionamento defendido pelo

enunciador acerca do grupo de governa o Estado uruguaio: com propostas populistas, o grupo

político conquista o povo vendendo palha no lugar de maconha. Contudo, essa ação, na visão

do enunciador, potencializa ainda mais a rejeição do consumidor que retornará ao narcotráfico

pela péssima qualidade da maconha comercializada.

Por fim, podemos sintetizar a análise realizada agrupando os semas observados. O

agrupamento permite uma visão mais clara dos efeitos de sentido que geram a polêmica da

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interincompreensão no discurso-agente de Jabor, quando o comparamos com o discurso-

paciente de Mujica90

.

José Mujica Arnaldo Jabor

M+91

M+ M-

Controle Liberação Descontrole

Combate Independe Contribuição

Inovação Descentralização do

Estado

Populismo

Competência Estado esclarecido Incompetência

Qualidade Consumo: maconha é

igual ao álcool

Ineficiência

Considerações finais

Com esse quadro de fechamento da análise, podemos concluir que a polêmica não se

instaura, como sempre se entendeu, no embate entre dois sujeitos que discutem sobre o

assunto, mas se localiza no interior do discurso de um e do discurso do outro. Por meio do

quadro, percebemos que a polêmica se instaura no interior do discurso de Jabor, pois ele

confronta os semas positivos e negativos dentro do seu discurso. Os semas negativos podem

ser vistos como uma “tradução” dos semas positivos retirados do discurso do presidente

Uruguaio, que entram em confronto com os semas positivos do próprio enunciador do

discurso-agente.

Isso ocorre porque o sistema de coerções da formação discursiva onde se projeta o

discurso-agente e os atravessamentos de outros discursos, portanto de outras formações

discursivas advindas da política, economia, violência, humor etc, compõem um

posicionamento do enunciador que refaz os sentidos dos semas e é no interior desse

posicionamento que se deve problematizar a polêmica.

90 Utilizamos a letra M, no quadro, como símbolo representativo dos semas para ficar em

consonância com a forma utilizado por Maingueneau (2006). 91

Utilizamos a letra M como símbolo representativo dos semas para ficar em consonância com

a forma utilizado por Maingueneau (2006)

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A nosso ver, a polêmica da interincompreensão pode esclarecer uma questão muito

debatida em vários setores da sociedade democrática, como por exemplo, ampliar a harmonia

entre os diversos posicionamentos conflitantes existente no mundo. Ela nos mostra que a

eficiência do acordo não está em quem ganha ou quem perde no embate discursivo, mas em

quem consegue refazer os sentidos que circulam no discurso do outro. Pensar nessa estratégia

nos parece bastante produtivo, porém não entramos em uma discussão assumindo o

posicionamento um ou dois, a ou b, mas problematizamos esse conflito que surge dentro do

próprio discurso de um ou de outro. Em nossa pesquisa, a polêmica se mostra não no discurso

do presidente do Uruguai, nem no embate apenas dos dois discursos, mas no interior do

discurso do enunciador que tem como referência Arnaldo Jabor.

Referências

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ONGs e Universidade. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 2003.

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Trad.: Márcio Venício Barbosa e Maria Emília Amarante Torres Lima. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2006.

______. A análise do discurso e suas fronteiras. Revista Matraga. Rio de Janeiro, v.14, n.20,

p.13-17, jan./jun.2007.

______. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.

______. Análise de Textos de Comunicação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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Sites

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no Jornal da Globo. In.: https://www.youtube.com/watch?v=1KLNmuDHGLY. Último

acesso em 17/03/2014. 2014a.

MENEZES, Cynara. A ousadia de Mujica. In.: Carta Capital. publicado em

01/01/2014.http://www.cartacapital.com.br/revista/779/a-ousadia-de-mujica-1404.html.

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MUJICA, José Pepe. Mujica, a maconha uruguaia e a burguesia paulista. In.:

http://www.youtube.com/watch?v=NjrJzWT6xVg. Último acesso em 17/03/2014. 2014b.

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________________. Entrevista de José Pepe Mujica a Emir Sade, da TV Brasil. In:

http://www.youtube.com/watch?v=lEXFhdy6zVI. Último acesso em 17/03/2014. 2014c.