Edipo 3 x 4 - 3º Capitulo - (texto...
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Freud, Marlowe & Cia -
franklin goldgrub
2º Capítulo - (texto parcial)
A afasia e a questão da delimitação entre o psíquico e o orgânico
O múltiplo interesse da afasia
Se o impacto da primeira frase vale o risco da boutade inglória, este
capítulo procura acertar com o subtítulo alegórico supra. Além da
cumplicidade na sutileza que toda paródia ameaça ou promete angariar, a
alusão ao conhecido frontispício freudiano pode justificar-se através da
intenção de apontar para uma área cujo esquecimento deve-se sobretudo
ao cerco protetor de tabus que ameaçam o intruso (não-médico) com
toda força de seu arsenal anatêmico.
Há muito estabeleceu-se um acordo tácito entre a psiquiatria e a
psicanálise, ou, melhor dito, entre suas respectivas cúpulas, lembrando
um pouco a divisão do mundo em áreas de influência que sucedeu à
segunda grande guerra. Famílias aliadas, não surpreende que entre
colóquios, debates e congressos tenha acontecido algo mais sério. Seja
como for, a psicodinâmica está aí e não caiu exatamente do céu. Nem
todos os bastardos são párias, ensina a história da aristocracia. As velhas
dinastias decadentes sabem socorrer-se onde é necessário, e, por outro
lado, reconheça-se que não é fácil ignorar os acenos de um brasão
prestigiado como o da medicina.
Os poderes se atraem na razão direta do peso de suas elites. Entretanto,
este texto não pleiteia minimamente as atribuições da crítica social, menos
por discordância que por sabê-la suficientemente empreendida, dentro e
fora dos círculos psicanalíticos, oficiais ou dissidentes. Assim, do
casamento por interesse entre psicanálise e psiquiatria só se tratará na
medida em que for necessário demonstrar sua impossibilidade de gerar
senão híbridos estéreis, por mistura de pressupostos incompatíveis.
A pretensão é outra; trata-se de levar o foco a um terreno vizinho à
epistemologia, palavra excessiva para designar a seriedade modesta dos
temas que se quer discutir. A afasia e sua história, rica em debates cujo
interesse excede amplamente o âmbito clínico, permite, mais do que
qualquer outra via, percorrer os sinuosos labirintos de uma questão não
menos fundamental porque abandonada em represália à dificuldade de
resolvê-la.
Está em pauta mais uma vez a questão das relações entre o neurológico e
o psicológico, o substrato orgânico e a subjetividade, questão que em
época não tão remota recebia a marca eloqüente de duas palavras ora
repudiadas devido a uma imprecisão que hoje nos parece inaceitável:
cérebro e mente. A lamentar, uma perda de sonoridade.
Acrescente-se, retomando a primeira argumentação, que às dificuldades
inerentes a um tema tão complexo, soma-se o peso de algo conhecido
como interesses adquiridos. A psicanálise oficial tornou-se adaptacionista,
logo não se precisa quebrar a cabeça para saber com quem anda.
Quando o paciente ou analisando resiste aos bons ofícios da Circe
cuidadosamente escolhida/recomendada, só resta enviá-lo ao Procusto
de Plantão nas encruzilhadas psiquiátricas, em cujo leito, graças a
exercícios de alongamento, prótese e amputação, todos acharão a
medida exata. Talvez soe muito denunciativo; o problema é que,
ressalvas à parte, parece difícil conseguir um ângulo mais fotogênico.
O acima exposto está longe de constituir um inventário exaustivo das
dificuldades a enfrentar. Há também o que poderíamos chamar de clinch
neurológico. Cansado de bater num joão-teimoso, o organicista passa a
evitar a resposta abraçando o contedor ou aproximando-se tanto dele que
a distinção entre ambos fica difícil. De fato, parte imersa do iceberg, a
recente literatura neurológica sobre o assunto tem ares de confissão:
todos os autores recenseados parecem concordar finalmente com algo
que Hughlings Jackson proclamava há muito, quando os exércitos da
ciência só ouviam as fanfarras que anunciavam sua vitória iminente. As
atuais concessões centram-se na admissão de que os conhecimentos
adquiridos sobre a anatomia e fisiologia do cérebro, bem como suas
relações com as chamadas funções psíquicas superiores, são
insuficientes para reduzir a significação do repertório humano ao
substrato orgânico.
Duvidar-se-á da sinceridade dessas declarações? Questão ociosa. Por
uma parte, são o que há de visível. Infinitamente menos divulgadas (salvo
se podem alardear um resultado imponente), as pesquisas prosseguem e
é inevitável que sua direção seja a mesma, reducionista, ainda que a
esperança e a ambição tenha mudado. Em compensação, nos níveis mais
baixos da hie-rarquia científica, os inspetores de quarteirão não deixam de
sonhar com camisas de força químicas feitas sob medida. A elegância no
caso consistiria em descobrir drogas que incidissem apenas sobre o
comportamento que se deseja alterar. A exaustiva demonstração da
impossibilidade desse ideal - o conhecido princípio da solidariedade
cerebral - apenas afeta seus defensores, cuja preocupação com a
integridade do indivíduo não peca exatamente por excesso.
Em outras palavras, se se desiste progressivamente de ver na loucura
uma doença cerebral, o louco, agora definido cada vez mais pelo ângulo
da inadaptação ou dissidência (vide a URSS pré-perestroika, mas não só),
é alvo de uma nova pretensão, não menos ambiciosa do que a de sua
cura, e certamente mais polêmica: trata-se de controlar o comportamento
desviante que tenha escapado às várias formas de persuasão existentes,
da TV ao psicólogo compreensivo, mediante desativação, inibição ou
bloqueio de certos botões neuronais.
Tudo o que não mata engorda mas nem sempre o que engorda deixa de
matar. Na impossibilidade de curar, a psiquiatria aceita humildemente a
sua nova missão a serviço do poder; promover a objetivo principal os
anteriores malefícios secundários do tratamento.
Eis-nos novamente extraviados no terreno da crítica social, à qual parece
condenado todo aquele que resolve falar de psiquiatria...
Os paradoxos não cessam de brotar num terreno tão heterogêneo. Se os
luminares da ciência professam agora uma arrependida humildade, nem
por isso o âmbito profissional fica isento da disputa de mercado. Então,
como se nada tivesse acontecido, o establishment psiquiátrico abaixa
periodicamente o polegar imperial dando sinal verde para que os
conselhos profissionais instruam representantes parlamentares no sentido
de fazer aprovar uma legislação restritiva ao exercício de atividades ditas
clínicas aos não-médicos.
Bem feito! Seríamos tentados a exclamar dirigindo-nos a estes últimos;
quem mandou abusar do pó-de-arroz para freqüentar o baile dos brancos
em vez de bater-se pelo fim do apartheid? Seja como for, Eurídice
continua esperando, talvez não tão impaciente como deveria - ainda não
percebeu que a flauta de Orfeu soa melhor que os atordoantes
megawatts das discotecas. O caminho para o reino de Belzebú, no caso,
está menos calçado de boas intenções do que cuidadosamente minado.
Entende-se: seus construtores perceberam, ao empreender a retirada,
que a via pela qual haviam atacado tornara-os subitamente vulneráveis.
De Gall a Broca
Para o abelhudo, cujo mínimo conhecimento do sistema nervoso e
respectiva nomenclatura remonta à longínqua fase acadêmica, retomar a
essas paragens é o mesmo que soletrar dois adjetivos homófonos, árduo
e árido, com os quais um bom lacaniano brincaria páginas a fio,
embevecido. Mas se por acaso ou necessidade o candidato a paladino
revelar ter bom coração, então o destino irá presenteá-lo com um velhinho
sábio, versado em todos meandros da questão e dotado de uma notável
capacidade analítica que misteriosamente se abstem de prejudicar seu
poder de síntese.
Chama-se André Ombredane; por uma dessas coincidências evocadoras
de augúrios residiu no Brasil e o seu livro tem por título L'Aphasie et l'
élaboration de la pensée explicite [1].
Ombredane tem o dom de atingir o máximo equilíbrio possível entre a
exposição detalhada das diversas teorias propostas para decifrar o
enigma da afasia e a discussão de questões mais ambiciosas, referentes
à relação cérebro/mente, cujas derivações não são menos fundamentais:
a articulação entre linguagem, pensamento, comportamento voluntário,
inteligência e simbolização. Evidentemente, a abordagem de uma
temática com esse pedigree só será profícua se baseada no exaustivo
escrutínio dos dados clínicos disponíveis.
Eis-nos portanto atentos como bons alunos, seguindo o passo seguro de
mais um mestre francês, dando graças a Deus por ser um pré-lacaniano,
imune às obrigações estilísticas do hermetismo. Elegante mas funcional,
seu trajeto pode lateralizar-se em obediência aos obstáculos, nunca pelo
prazer de andar em círculo.
Antes de capinar em torno ao marco inaugural devido a Broca,
Ombredane conduz-nos ao clima mental (traduzir zeitgeist pode ser pior
ainda do que tentar pronunciá-la...) das primeiras décadas do século XIX,
quando os espíritos mais audazes da pesquisa científica perpetravam a
tomada da cidadela espiritual mediante a conquista do sistema nervoso,
com a finalidade de inviabilizar de vez qualquer pretensão ao benefício da
dúvida e impedir as reincidências do pensamento religioso ou filosófico.
A doutrina de Gall (a frenologia) ilustra os exageros de um ataque
precipitado, mas seria injusto negar-lhe algum mérito, apesar da anatomia
cerebral algo fantástica que propõe. O cérebro, para Gall, sedia desde
funções responsáveis pela tendência a prover-se de bens materiais - algo
como um instinto da propriedade que certamente deixaria os marxistas
apopléticos - até o sentimento da existência de Deus, posto em marcha
por neurônios especializados em celebrar rituais religiosos.
A sua teoria desemboca numa craniologia, ou seja, a suposição de que a
forma do crânio "...deve-se à ação centrífuga que exerce sobre ele, e que,
nas circunstâncias ordinárias da vida, o cérebro preenche de tal forma a
cavidade craniana que a forma desta reproduzirá exatamente a superfície
cerebral"[2].Conclui então que bastaria aferir as reentrâncias ou
protuberâncias cranianas para julgar do estado de desenvolvimento das
estruturas subjacentes. Não é de estranhar a severidade do julgamento a
que tal doutrina será submetida quando a neurologia houver decolado.
Ombredane clementemente evoca um testemunho mais equânime, e
talvez surpreenda a quem o imagine um fanático da parcimônia científica
que seu autor seja o próprio Paul Broca:
Gall teve o incontestável mérito de proclamar o grande principio das
localizações cerebrais que foi, pode-se dizer, o ponto de partida de todas
as descobertas de nosso século sobre a fisiologia do encéfalo...
Esquecemo-nos muito facilmente hoje que Gall e Spurzheim foram
anatomistas de primeira ordem... Mas constatamos que negligenciaram,
como aconteceu com todos os seus antecessores, e como aconteceria
durante muito tempo com todos os seus sucessores, a anatomia
descritiva das circunvoluções; ora, aí precisamente jaz o nó da questão,
pois justamente nas circunvoluções é que eles situavam a sede da maior
parte das faculdades intelectuais. O seu sistema repousava portanto
numa base anatômica notoriamente insuficiente. As outras bases, a base
fisiológica e, se quisermos, a psicológica, eram ainda mais insuficientes
[3].
É-se levado a pensar, lendo a descrição de Ombredane, que além das
insuficiências em anatomia, fisiologia e psicologia apontadas por Broca,
Gall revelou-se capaz de uma confusão dir-se-ia típica a julgar pela
frequência com que comparece na história da afasia, justamente a
decorrente da indistinção entre esses três campos. A sua causa principal
talvez resida no afã de pretender derivar as "faculdades intelectuais" do
substrato neuroanatômico.
Os seus sucessores serão mais cuidadosos. De fato, a precipitação de
Gall, seguida de uma controvérsia onde as vozes leigas se misturaram às
do mundo científico, não poderia deixar de desagradar os guardiães da
lei. As emoções, crenças e desejos haviam usurpado o trono dos fatos.
Gall defendera tão mal a tese de anatomização do espírito quanto um
evolucionista que se limitasse a argumentar a favor de nossa
ancestralidade símia apelando para a semelhança entre homens e
macacos.
Antes do debate assumir a devida circunspecção, a candência do tema
reserva o primeiro plano a controvérsias onde as opiniões - mais do que
as teorias - em choque ressentem-se da falta de dados. Entretanto, já
existe alguma evidência para emprestar certa verossimilhança às
pretensões de ancorar a mente no porto seguro do cérebro. Em 1822,
Thomas Hood havia relatado um caso de afasia em cuja autópsia
revelara-se uma lesão do lobo frontal esquerdo. Bouillaud aventurara-se a
propor uma localização cerebral para a linguagem em seu Traité clinique
et physiologique de l'encéphalite. No mesmo ano de 1825, ele resume
suas opiniões numa comunicação à Academia Real de Medicina sob o
título: Pesquisas clínicas destinadas a demonstrar que a perda da palavra
corresponde à lesão dos lóbulos anteriores do cérebro e a confirmar a
opinião do Sr. Gall sobre a sede do órgão da linguagem articulada.
Já há muito não se duvidava da relação entre cérebro e linguagem. A
natureza dessa relação é que constituía o pomo da discórdia, opondo
globalistas a localizacionistas. Bouillaud filia-se abertamente à última
tendência, seguindo Gall. "A observação", diz Ombredane, "de que as
funções musculares podem ser atingidas de forma dissociada em
conseqüência a lesões localizadas do cérebro"[4] justifica sua adesão.
Por banal que pareça essa formulação, será preciso lembrar, adverte o
historiador, que somente em 1870 Fritsch e Hitzig puderam demonstrá-la
experimentalmente. Um contemporâneo de Bouillaud ainda tinha o direito
de recalcitrar: "...o cérebro não exerce qualquer influência imediata e
direta sobre os fenômenos musculares"[5]. Até prova em contrário,
Bouillaud combaterá decididamente heresias do gênero e de forma
coerente proporá que a palavra, esse "grande fenômeno'", não depende
menos de movimentos musculares do que a locomoção e a preensão,
devendo portanto possuir uma sede cerebral.
O primeiro round do debate é vencido previsivelmente pelos
localizacionistas, malgrando certas deselegâncias de Gall e alguns golpes
baixos de Bouillaud, que dir-se-ia trava um duelo pessoal contra seus
adversários. Tem-se a impressão que os globalistas procuram minimizar o
alcance do mapeamento cerebral, movidos por uma espécie de temeroso
respeito. Nos velhos seriados sobre as pirâmides nunca faltava o cientista
arrependido que no último momento recua diante do mistério presente
nas câmaras milenares onde a múmia repousa protegida por uma
maldição expressamente destinada ao violador de túmulos sagrados...
O combate entre a ciência e a religião desloca-se para o interior do
campo científico, onde vai beneficiar-se pelo menos de um critério comum
aos contendores; a primazia cabe aos fatos.Dificilmente poderá exagerar-
se a importância auferida pela afasia nesse momento inicial do estudo das
funções do córtex. Realmente, se há algo que simultaneamente reúne a
concretude de um comportamento manifesto com a possibilidade de
discriminar entre humanos e outros animais é justamente o fenômeno da
linguagem.
Ao contrário de conceitos como "inteligência", "pensamento" ou
"vontade", portadores do duplo estigma associado às suas origens
filosóficas e/ou psicológicas, a expressão verbal é tão aferível como
qualquer outro estímulo, sem deixar de caracterizar a especifidade do
bípede sem pêlos nem penas em relação a seus companheiros da
Criação - ou assim parece, apesar de todas as descobertas que a
etologia continua fazendo sobre a comunicação entre animais.
Em outras palavras, há um poderoso impulso a subsumir "inteligência",
"pensamento" e "vontade" em "linguagem", depois que se descobre a
possibilidade de situar a última no mapa desse novo mundo intracraniano
cuja exploração se tornara subitamente possível graças ao avanço da
técnica.
É dentro desse quadro que podemos compreender o impacto da
comunicação de Broca à Sociedade de Antropologia. Em 11 de abril de
1861, um certo senhor Leborgne, internado há 21 anos em Bicêtre, é
levado até a enfermaria do hospital com gangrena do membro inferior
direito. Dois ou três meses antes de ingressar no nosocômio. Leborgne já
perdera o uso da palavra. "Era então perfeitamente válido e inteligente e
não diferia de qualquer homem sadio senão pela perda da linguagem
articulada"[6], escreve Broca. Restara-lhe uma única palavra: "tan", origem
do apelido.
Compreendia tudo quanto se lhe dissesse, mas respondia invariavelmente pelo monossílabo resquicial. Quando seus interlocutores
deixavam de compreender a mímica pela qual se comunicava, a irritação
aumentava consideravelmente seu vocabulário: "sacré nom de Dieu"!
Seis anos após ter chegado ao hospital, foi atingido por uma hemiplegia
direita que se instalou progressivamente, prejudicando primeiramente o
membro superior e depois o inferior. Broca teve Leborgne a seus
cuidados durante alguns anos; conhecia perfeitamente a sintomatologia
do doente e voltou a examiná-lo cuidadosamente por ocasião da
gangrena, aferindo a motricidade e a sensibilidade, direita e esquerda,
testando a integridade das funções. As observações sobre o
comportamento voluntário revestem-se de especial importância para a
questão das relações entre inteligência e afasia:
Há quanto tempo estava no hospício de Bicêtre? Ele abria a mão quatro
vezes seguidas, depois erguia um só dedo; isto significava 21 anos. e
vimos pelo acima exposto que esta informação era perfeitamente exata...
Ele podia mesmo compreender idéias relativamente complicadas: assim,
se eu lhe perguntasse em que ordem as paralisias haviam se sucedido,
ele fazia de início, com o indicador da mão esquerda, um pequeno gesto
horizontal que queria dizer: saquei! Depois mostrava sucessivamente sua
língua, seu braço direito e sua perna direita, Era perfeitamente exato,
levando em conta que atribuia a perda de expressão verbal à paralisia da
língua, o que é bem compreensível.
Entretanto, diversas questões as quais um homem de inteligência comum
teria encontrado respostas por gestos, mesmo de uma única mão,
permaneceram sem réplica. Outras vezes, não podendo transmitir o
sentido de certas respostas, o doente se impacientava; outras vezes,
enfim, a resposta era clara mas falsa: assim, não tendo filhos, ele
pretendia tê-los. Não é pois, discutível que a inteligência desse homem
tenha sofrido um comprometimento profundo, seja sob a influência de sua
afecção cerebral, seja sob a influência da febre que o devorara; mas ele
era evidentemente muito mais inteligente do que se precisa sê-lo para
falar[7]
Deixemos de lado a oposição (ingênua) entre mentira e inteligência, que
poderia parecer tão óbvia para umcientista; os comentários de Broca
marcam, desde esse momento inaugural, uma postura importante no
debate de um dos temas centrais em pauta: a gravidade do sintoma
afásico motor não é extensível ao que se chama de inteligência, no caso
representada pela capacidade de compreensão e comunicação. Essa
afirmação, entretanto, está longe de ser inabalável; ameaçará soçobrar a
cada vendaval suscitado por uma nova descoberta.
Leborgne expira uma semana após seu ingresso na enfermaria. Para a
autópsia, efetuada decorrido o prazo de 24 horas. Broca convidou um
colega que prometera renegar a tese localizacionista na primeira ocasião
em que os fatos o exigissem:
Em resumo, os órgãos destruídos são os seguintes: a pequena circunvolução marginal inferior (lobo temporo-esfenoidal); as pequenas, circunvoluções do lobo da ínsula e a parte subjacente do corpo estriado;
enfim, sobre o lobo frontal, a parte inferior da circunvolução transversal, e
a metade posterior das duas grandes circunvoluções designadas sob os
nomes de segunda e terceira circunvoluções frontais. Das quatro
circunvoluções que formam o estágio superior do lobo frontal, apenas
uma, a primeira e a mais interna, conservou, não sua integridade, pois
encontrava-se "amolecida" e atrofiada, mas sua continuidade; e se
restabelecermos pelo raciocínio todas as partes que desapareceram,
constataremos que três quartos pelo menos da cavidade foram
perfurados a expensas do lobo frontal.[8]
A partir dessa observação, comenta Ombredane, Broca julga-se
autorizado a associar lobo frontal e linguagem. É lícito atribuir essa
conclusão algo precipitada a considerações de outra ordem; boa ocasião,
aliás, para compreender como preconceitos oriundos de esferas
diferentes podem infiltrar-se no corpo da ciência:
...Constatamos que há uma espécie de oposição entre o desenvolvimento dos lobos anteriores do cérebro e o dos lobos posteriores; que
os últimos predominam nas raças etiópicas, aqueles nas raças
caucásicas; e que, por consequência, o volume dos lobos anteriores está
relacionado com o predomínio das faculdades intelectuais mais altas, as
mesmas que fazem a superioridade ou a inferioridade das raças, aquelas
que dão nascimento à civilização e ao progresso... as faculdades
superiores do entendimento, consideradas na série humana, crescem e
diminuem com os lobos anteriores do cérebro e parece-me difícil deixar
de concluir que as mais altas faculdades têm sua sede nas circunvoluções
frontais[9].
Essas palavras foram pronunciadas pelo mesmo Broca num debate
realizado naquele ano de 1861, na Sociedade de Antropologia. O exame
post-mortem de Leborgne permite confirmar as teses de Bouillaud ao
mesmo tempo que lhes dá o selo da precisão científica, deixando lugar
apenas a uma pequena dúvida residual: "... nesse lobo frontal ele (Broca)
descobre uma região limitada cuja lesão parece-lhe responsável, em Tan,
pela perda da palavra: a segunda ou a terceira circunvolução frontal, mais
provavelmente esta última"[10].
Que esses debates tenham por palco a Sociedade de Antropologia
mostra por si só o quanto seu interesse excedia o âmbito clínico. Talvez
seja essa a razão pela qual o próprio autor da observação se dedique a
explorar-lhe todas as conseqüências, sempre guiado pelo caráter
paradoxal do fenômeno, por ele batizado de afemia, e cuja característica
principal consiste na surpreendente dissociação entre a expressão verbal
e inteligência, até então somente distingüiíveis nos casos de mudez, ou
seja, um distúrbio do aparelho fonatório.
Não é difícil entender a predileção dos livros de história da ciência por
Broca. Gall faz muito mais o gênero do visionário que combina um
número ínfimo de fatos com conclusões extremamente ambiciosas;
Bouillaud não vai muito além: há uma desproporção notável entre suas
afirmações e os dados de que dispõe.
A atitude correta do cientista diante do que parece ser uma descoberta
importante acha-se plenamente ilustrada por Broca e cinge-se à
circunspecção. Nada de certezas tonitruantes e menos ainda de
extrapolações injustificadas; trata-se de coligir e analisar cuidadosamente
os fatos. O rigoroso Broca dirige seu olhar para as circunvoluções, às
quais o senso comum médico - supondo que se possa usar tal expressão
- atribuía tanta importância como às dobras das tripas.
É possível propor uma espécie de quadro evolutivo da teoria
localizacionista: Gall, a forma do crânio; Bouillaud, a importância dos
lobos cerebrais; Broca, o cuidadoso exame das circunvoluções e a
interrogação de suas funções.
Doravante tudo o que se pede é a multiplicação das autópsias de
afêmicos (o termo afasia ainda está para ser cunhado). O próprio Broca
dá o primeiro passo. Um paciente de 24 anos, Lelong, que perdera a fala
um ano e meio antes de falecer, possui a marca da lesão também no lobo
frontal, "imediatamente abaixo da extremidade anterior da cisura de
Sylvius".
sábado, 13 de Setembro de 2008 21:42:02
"As duas observações princeps de Broca pareciam abrir uma nova era:
elas traziam, com efeito, um método de exame do cérebro mais
preciso..."[11], escreve Ombredane. De fato, eis-nos em pleno terreno
científico; hipóteses claramente enunciáveis, podendo ser confirmadas ou
desmentidas pela observação acurada. Além do lobo frontal, impõe-se
igualmente a constatação de que as lesões "preferem" o hemisfério
esquerdo. Surge uma contraprova: Parrot examina o cérebro de uma
jovem mulher, tuberculosa, hemiplégica esquerda desde a infância, sem
prejuízo da inteligência e cuja fala permanecera intacta, e constata a
destruição da terceira circunvolução frontal do hemisfério direito bem
como a integridade da mesma circunvolução no hemisfério esquerdo.
Ao mesmo tempo, Charcot se debruça sobre os restos mortais de outro
doente, uma mulher de 47 anos, hemiplégica e afêmica a partir de oito
meses antes do óbito, para assombrar-se diante da lotai incolumidade da
terceira circunvolução frontal esquerda. Que a ameaça a uma hipótese
arduamente estabelecida e com perspectivas tão brilhantes não deixa de
afetar os frios cientistas é o que Ombredane mostra com riqueza de
detalhes:
"...as três circunvoluções frontais antero-posteriores, designadas sob os
nomes de primeira, segunda e terceira circunvoluções frontais, foram
examinadas em toda sua extensão, uma a uma, com a maior atenção.
Essas diversas circunvoluções não apresentavam à vista nenhuma
alteração apreciável, seja no volume, seja na cor ou na consistência".
Além disso, estavam separadas do foco da lesão por trechos de tecidos
sadios. "Em desespero de causa, pequenos fragmentos de substância
nervosa extraídos de diversos pontos da 3º circunvolução foram
examinados ao microscópio"[12], novamente com resultado negativo.
Nada havia neles que não se encontrasse no restante do cérebro.
Assim, a hipótese da 3º frontal recebe simultaneamente uma boa e uma
má noticia: a contra-prova de Parrot e a refutação de Charcot. Nos dois
anos seguintes novas observações são relatadas; tem-se a impressão
que todos os casos de afasia passam a ser cuidadosamente observados
nos hospitais da Europa, o comportamento dos pacientes aferido e
registrado, tudo cercado de uma expectativa post-mortem que, caso
fosse percebida pelo paciente, poderia suscitar no afásico uma síndrome
persecutória paralela plenamente justificada...
É a véspera da elaboração de uma vasta estatística que julgará a hipótese
de Broca. Pois bem, há confirmações e desmentidos; as primeiras
prevalecem mas o número de exceções é tão alto que do primeiro
balanço provisório não se pode extrair senão a conclusão de que o
problema da localização não é tão simples como se supunha.
Há evidências suficientes para manter a hipótese do neurólogo de Bicêtre,
entre outros o apoio de três casos de afemia de origem traumática,
associadas, embora não exclusivamente, a uma lesão da 3º frontal
esquerda. Trata-se de um testemunho particularmente valioso, pois até
então todos os focos conhecidos haviam sido causados por doenças
cerebrais, cuja própria natureza degenerativa e dimensão cronológica
prejudicavam a precisão do exame, visto que evidentemente a lesão não
respeitava a divisões anatômicas, esparramando-se secundariamente, por
assim dizer, pelas vizinhanças; ao mesmo tempo, as observações relativas
ao comportamento perdiam nitidez durante os longos anos de sobrevida
do paciente e era difícil relacioná-las com o estado em que se
encontrava o cérebro após o óbito.
Em compensação, as lesões traumáticas, repentinas, circunscritas e
freqüentemente fatais em prazo breve, remediavam essa situação. As
mortes brutais associadas a acidentes de trabalho, criminalidade e
intensificação dos conflitos nas grandes cidades constituem como que
experimentos indiretos. A ciência não só forneceu à cirurgia o exato bisturi
mas também a qualquer cidadão a possibilidade de infligir ferimentos mais
sutis do que os provocados pelas grosseiras armas medievais.
No interior desse quadro, quase tão confuso como o combate entre os
exércitos noturnos da metáfora poética, emerge ainda outra questão
destinada a exercer um efeito positivo no ânimo dos soldados da ciência.
Trata-se da lateralidade cerebral, já abordada. Um certo Marc Dax, clínico
em Sommières, apresentara por ocasião de um congresso médico
celebrado em 1836 uma comunicação cuja novidade residia nos dados
surpreendentemente unânimes da estatística utilizada, comportando 140
casos de afasia seguidos de exame do cérebro do doente; sem exceção,
todos apresentavam lesões no hemisfério esquerdo.
Nenhum dos trabalhos oferecidos no referido congresso fôra publicado. É
o filho do autor, Gustave Dax, que entrega à Academia de Medicina, em
março de 1863, o relatório do pai seguido de algumas considerações
pessoais, sob o título: "Observação tendente a provar a coincidência
constante dos distúrbios da palavra com uma lesão no hemisfério
esquerdo do cérebro". Desde 1836 muita água correra e o trabalho dos
Dax desperta interesse suficiente para justificar a nomeação de uma
comissão encarregada de avaliá-lo.
Trata-se do melhor termômetro para medir o estado do debate. O relator
da comissão, Lelut, provavelmente desencaminhado pela adesão do
velho Dax a Gall, condena a conclusão a que chegou o clínico
interiorano com um "basta de frenologia!" Bouillaud, que observava de
uma distância olímpica os últimos acontecimentos, volta ao campo de luta
para massacrar sem dificuldade o imprudente.
Entretanto, a "fecundidade do princípio", segundo Ombredane, é
infinitamente mais importante que os eventuais "erros de aplicação e de
prática". Generoso com Dax, Bouillaud revela sua face menos favorável
quando avalia Broca, talvez ressentido pela precisão que este concedera
à sua vaga hipótese. Não surpreenderá que a competição pela glória crie
divisões até entre aliados. Seja qual for o motivo, Bouillaud objeta que a
hipótese de Broca está ainda longe de poder ser demonstrada. E, de
fato, uma outra estatística, de Trousseau, alinha 32 casos dos quais 14
confirmam e 18 recusam o domicílio broquiano da afemia. Em
compensação, Dax recebe 125 votos a favor do hemisfério esquerdo
contra apenas 10 exceções. Quanto à afirmação de Bouillaud,
estabelecendo a ligação entre linguagem e córtex, não existe agora
qualquer sombra de dúvida quanto à sua validade.
Entretanto, a segurança da afirmação parece inversamente proporcional à
sua precisão... entre outros motivos, pelas perguntas sem resposta, bem
como hipóteses hesitantes e problemas não resolvidos.
Instado pelas circunstâncias, Broca dedica ao problema um último
esforço. Aos 15 de junho de 1865, na Sociedade de Antropologia, ele
reconhece a importância da lateralidade cortical para a afemia e debita as
poucas exceções à proporção existente de canhotos, cuja eventual afasia
será causada por uma lesão correspondente no hemisfério direito.
Trata-se de uma faca de dois gumes, pois os intransigentes da 3º frontal
poderão doravante atribuir ao mancinismo inverificado qualquer
recalcitrância à localização proposta por Broca. Uma outra questão surge
em paralelo: a do significado da persistência dos distúrbios da fala. Tudo
indica que a incolumidade do hemisfério ileso não basta para remediar o
dano sofrido no seu vizinho. Entretanto, Broca não é totalmente
pessimista quanto à recuperação do afásico. Apoiado na proposição
inversa, segundo a qual os canhotos "falam" com o hemisfério direito,
arriscou-se a afirmar que uma criança afásica poderá compensar seu
handicap usando a outra metade do córtex. Em conclusão, apesar das
dificuldades inerentes à reeducação do adulto, pode-se tentá-la com
algumas perspectivas de êxito, mesmo se parcial.
Ombredane resgata da obra de Broca sobretudo as últimas
considerações. Alguns anos mais tarde, Pierre Marie conduzirá um ataque
que não deixará pedra sobre pedra da teoria do localizacionismo estrito.
Mas com respeito à questão do
"...mancinismo cerebral, sobre a possibilidade de problemas afásicos por
lesão do hemisfério direito do canhoto, sobre a dificuldade senão a
impossibilidade de uma substituição de hemisfério a hemisfério no
adulto, sobre a possibilidade, enfim, da mesma substituição na criança
pequena, a opinião atual permanece idêntica à de Broca"[13].
Inteligência, linguagem e afasia
Talvez os irresolutos dados anatômicos tenham contribuído, mas,
fatalmente, por sua própria natureza, o debate sobre a afasia teria rumado
para um terreno minado. De qualquer maneira, e talvez mais cedo do que
se poderia esperar, a discussão resvalou para a necessária e mais do que
complexa questão das relações entre linguagem e inteligência, à luz dos
comprometimentos corticais.
A incerteza provocada pelas observações contraditórias de Charcot e
Parrot foi a ocasião aproveitada por Laborde para assinalar uma
negligência perto da qual a preocupação com a exatidão do foco da lesão
parecia mais uma brincadeira de tiro ao alvo no escuro: "... não nos
preocupamos suficientemente em definir pela análise o distúrbio
funcional muito complexo que constitui a dita lesão da linguagem
articulada"[14] (p. 46).
Na primeira crítica dirigida à posição de Broca sobre a relativa imunidade
da inteligência face às lesões causadoras da afasia, Laborde invoca o
comportamento deficitário do afásico com relação à escrita, e pede mais
prudência no que se refere à crença de que o aparelho fonatório se
encontra intacto. O que nos engana, adverte, é que o afásico demonstra
uma nítida impaciência para com seu estado e em geral é capaz de uma
mímica suficientemente expressiva para comunicar-se. Em resposta,
Broca reafirma a segurança do diagnóstico diferencial que permite
distinguir uma lesão cortical de comprometimentos periféricos, ao mesmo
tempo que admite a seriedade do problema colocado pela ambigüidade
das relações entre linguagem e inteligência. Seja como for, não há como
evitar a conclusão de que a afemia está longe de
[1] PUF, Paris, 1951.
[2] Op.cit., p. 11.
[3] Idem, p. 16.
[4] Idem, p. 17.
[5] Idem, p.18.
[6] Idem, p. 32.
[7] Idem, p. 33.
[8] Idem, p. 34.
[9] Idem, p. 29.
[10] Idem, p. 34.
[11] Pp. 36/7.
[12] Idem, p. 38.
[13] Idem, p. 44.
[14] Idem, p. 46.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
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