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COLETÂNEA 05

NOVOS DIREITOS E ATIVIDADE EMPRESARIAL NO ESTADO

SOLIDÁRIO

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Coordenadores

ViViane Coelho de SélloS-Knoerr

eloete Camilli de oliVeira

Organizadores

Sandro manSur Gibran

JoSé mario tafuri

2013 Curitiba

COLETÂNEA 05

NOVOS DIREITOS E ATIVIDADE EMPRESARIAL NO ESTADO

SOLIDÁRIO

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Equipe Editorial

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

N935Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora. Novos direitos e atividades empresarial no estadoSolidário : coletânea 5.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.

ISBN 978-85-99651-75-9

1. Direito.I. Título.

CDD 342

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

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Apresentação

“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”Cora Coralina

O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e tra-dição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos, mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.

A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se orgu-lha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é: “Educar, para formar pessoas capacitadas e comprometidas com o desenvolvimento social”.

Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Univer-sitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as pesquisas desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o fomento da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.

Danilo ViannaReitor

Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

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Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando Direi-to” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.

Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.

Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas jurí-dicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos profissionais que forma.

A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publica-ção acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o desenvolvimento social, educacional e sustentável.

O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa, como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais especifi-camente em Terras Lusitanas.

A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que estes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As inquietudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos profes-sores resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário aca-dêmico brasileiro.

Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade temá-tica e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação jurídica do Centro Universitário Curitiba.

Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.

ElizabEth acciolyDoutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade de

Direito de Curitiba, Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Facul-dade de Direito da Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora do curso de Estu-dos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professora visitante

da Universidade Católica Portuguesa.

prefácio

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 05

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NA EXTINÇÃO DOS CONTRATOS DE FRANCHISINGAlessandro José Marlangeon e Cleverson José Gusso ........................ 11

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA E O CRÉDITO TRABALHISTAAmanda Del Vechio Dias e Miriam Cipriani Gomes .............................. 31

REGULAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS E (NA) CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOAndré Felipe Portugal e Fernando Previdi Motta .............................. 47

REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA: O DIREITO À INTIMIDADE DO DOADOR DE SÊMEN VERSUS O DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICACamila Maria Campagnaro e Luiz Gustavo de Andrade ..................... 71

RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE TURISMO SOB UMA PERS-PECTIVA EMPRESARIALClaudia Mitie Ando e Sandro Mansur Gibran ....................................... 90

O ABUSO DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR E A CONSEQUENTE-MENTE OCORRÊNCIA DE DANOS PSÍQUICOS AO EMPREGADOJuliane Cristina Molina e Erika Paula de Campos ................................ 118

FUNÇÃO NORMATIVA E PRINCIPAIS DIFICULDADES DE NORMATIZAÇÃO NO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA BRASILEIROMaria Cristina Szpak Swiech e Ana Luiza Chalusnhak ..................... 136

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ANÁLISE DO INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL A PARTIR DOS DANOS CAUSADOS PELA CONSTRUÇÃO DE USINAS HIDRELÉTRICASPaula Camila Baréa e Regina Maria Bueno Bacellar ......................... 158

ANÁLISE DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO: UM PANORAMA À LUZ DA LEI N.º 8884/94 E DA LEI N.º 12.529/11Paula Formighieri Nardi e Eloete Camili Oliveira ............................. 178

A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIAVinícius Frederico Ohde e Alexandre Knopfholz ................................ 200

JUSTIÇA E JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTOS DA CIDADANIAFernando Gustavo Knoerr e Gustavo H. Teixeira de Oliveira ......... 220

A INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES CONTRA O MERCADO DE CAPITAISAlgacir Mikalovski e Fábio André Guaragni ......................................... 230

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A REALIZAÇÃO DO DEVER CONS-TITUCIONAL EM FACE DO MODELO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL BRASILEIROMirian Karla Kmita e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr ................... 254

A PROTEÇÃO LEGAL DA MARCA COMO INSTRUMENTO PROMOTOR DA POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO: UM REFLEXO DO EXER-CÍCIO SOCIALMENTE FUNCIONALIZADO DA ATIVIDADE EMPRESARIALMariana Mendes Cardoso Oikawa e Alysson Hautsch Oikawa ........ 285

TÓPICOS CONCLUSIVOS ...................................................................................... 310

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COLETÂNEA 05 - NOVOS DIREITOS E ATIVIDADES EMPRESARIAL NO ESTADO SOLIDÁRIO

INTRODUÇÃO

A presente coletânea analisa os novos direitos e atividades empresarial no estado solidário. Este tema é objeto de estudo dos autores que se propõem a debater e refletir acerca destas novas mudanças que ocorreram na atividade empresarial.

Reúnem-se nesta obra professores e alunos, os quais em orientação começam a apresentar os resultados de suas investigações. O trabalho conjunto busca, por meio dos preceitos constitucionais, estudar as temáticas propostas.

O primeiro artigo, de autoria de Alessandro José Marlangeon e Cleverson José Gusso, trata do o princípio da boa-fé na extinção dos contratos de franchising, em especial, sua extinção acompanhada de sua motivação, à luz do princípio da Boa-fé.

As autoras Amanda Del Vechio Dias e Miriam Cipriani Gomes objetivam analisar o tratamento dado aos créditos trabalhistas no instituto da recuperação judicial, demonstra-se, para tal, a necessidade da criação e a importância do instituto da recuperação judicial na sociedade atual.

A regulação dos mercados financeiros e (na) concretização do estado democrático de direito é objeto de estudo de André Felipe Portugal e Fernando Previdi Motta. Eles procuraram as respostas às frequentes indagações a respeito do real papel do Estado – do Governo – e do Direito no âmbito dos mercados financeiros.

Camila Maria Campagnaro e o professor Luiz Gustavo de Andrade analisam a reprodução assistida heteróloga, pelo viés do direito à intimidade do doador de sêmen versus o direito à identidade genética.

Analisando sob uma perspectiva empresarial a responsabilidade civil das agências de turismo, Claudia Mitie Ando, com o seu coorientador Sandro Mansur Gibran, possuíram dois objetivos principais ao escrever este artigo: analisar a atividade turística e analisar as relações de consumo no Turismo.

As autoras Juliane Cristina Molina e Erika Paula de Campos trabalham em seu artigo o abuso do poder diretivo do empregador e a consequentemente ocorrência de danos psíquicos ao empregado.

A função normativa e principais dificuldades de normatização no setor de energia elétrica brasileiro foi abordado por Maria Cristina Szpak Swiech e Ana Luiza Chalusnhak, apresentando o estudo da função normativa constitucionalmente estabelecida para o provimento do ordenamento brasileiro e sua correspondente evolução considerando a expansão desta atribuição no interior da Administração Pública.

Paula Camila Baréa e Regina Maria Bueno Bacelar, ao analisar o instituto da responsabilidade civil a partir dos danos causados pela construção de usinas hidrelétricas, objetivaram estudar a eficiência responsabilidade Civil e se ele é realmente uma solução para o bem jurídico afetado, considerando os benefícios e malefícios da construção de Usinas Hidrelétricas no meio ambiente.

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Através de um panorama à luz da lei n.º 8884/94 e da lei n.º 12.529/11, Paula Formighieri Nardi, com a sua coorientadora Eloete Camili Oliveira, analisam os atos de concentração no direito brasileiro, com ênfase na inserção da análise prévia dos atos de concentração pelo CADE.

A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a ordem tributária é o objeto de estudo de Vinícius Frederico Ohde e Alexandre Knopfholz, tenedo como proposta verificar o que é o princípio da Insignificância e a sua aplicação em relação aos Crimes contra a Ordem Tributária, analisando sua incidência de forma específica para cada delito tributário.

Os autores Fernando Gustavo Knoerr e Gustavo Henrique Teixeira de Oliveira estudam a justiça e a jurisdição e seu poder na defesa e proteção dos direitos materiais previstos pela Constituição e pela legislação.

Algacir Mikalovski e Fábio André Guaragni investigam os crimes contra o mercado de capitais, como instrumento a ser utilizado pelos operadores do mercado, sob uma ótica majoritariamente protetora da malha econômica.

Em “A dignidade da pessoa humana e o problema da concretização constitucional em face do modelo assistencialista brasileiro”, Mirian Karla Kmita e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr, trabalham seu tema expondo termos como Estado Social, Democracia Participativa, Dignidade Humana, Estado Solidário, concretização constitucional.

A proteção legal da marca como instrumento promotor da política nacional das relações de consumo, vista como um reflexo do exercício socialmente funcionalizado da atividade empresarial é estudada pelos autores Alysson Hautsch Oikawa e Mariana Mendes Cardoso Oikawa.

A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.

Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.

ViVianE coêlho DE SélloS KnoErr

Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa “Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.

EloEtE camilli oliVEira

Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE

-UNICURITIBA, Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.

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O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NA EXTINÇÃO DOS CONTRATOS DE FRANCHISING

THE PRINCIPLE OF GOOD FAITH IN CONTRACT TERMINATION OF FRANCHISING

alESSanDro JoSé marlangEon

Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

clEVErSon JoSé guSSo

Mestre em Direito Empresarial pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Cursando Master em Derecho Patrimonial Privado na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Aperfeiçoa-mento em Direito Contratual pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR. Integrante do Grupo de Pesquisas “Liberdade de Ini-ciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade”. Atua como Advogado autônomo, como Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Internacional - Uninter, como professor do Centro Universitário Curitiba - Unicuritiba (graduação), como professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR (pós-graduação) e como professor orientador da Escola da Magis-tratura do Trabalho - EMATRA (pós-graduação)

RESUMO

O estudo ora realizado tem como escopo a análise dos contratos de franquia, em especial, sua extinção acompanhada de sua motivação, à luz do princípio da Boa-fé. Dessa forma, inicia-se a pesquisa específica do contrato de franchising, aonde são explanados a origem do contrato, seu conceito, bem como vantagens e desvantagens do instituto. Por fim, realiza-se o estudo do Princípio da Boa-fé e sua incidência na extinção do contrato de franchising. O trabalho foi realizado mediante apreciação teórico-doutrinária, legal e jurisprudencial.

Palavras-chave: Boa-fé, Contratos, Extinção, Franchising.

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ABSTRACT

The study has now developed as scope analysis of franchise contracts, in particular, its extinction accompanied by his motivation in the light of the principle of good faith. Thus begins the search specific franchising contract, where are explained the origin of the contract, its concept as well as advantages and disadvantages of the institute. Finally, we make the study of the Principle of Good Faith and its impact on the termination of the franchise. The study was performed by assessing theoretical and doctrinal, legal and jurisprudential.

Keywords: Good Faith, Contracts, Extinction and Franchising.

1 INTRODUÇÃO

A economia brasileira vem se consolidando no cenário mundial. Emergente, o País percebe um desenvolvimento econômico contínuo que o faz figurar como uma futura potência mundial. Nesse contexto, de economia estabilizada, vê-se o brasileiro, com maior poder econômico e de crédito, buscando alternativas para investir suas receitas.

Tais condições propiciam uma notável ascensão do espírito empreendedor do brasileiro, inobstante isso, a recente formação de condições econômico-sociais favoráveis, não gera a segurança necessária a esses novos investidores.

É neste panorama, que o Brasileiro encontrou no Franchising, um ponto de equilíbrio entre a efetivação de seu espírito empreendedor e uma razoável segurança de investimento. Isto porque ao optar por investir em uma franquia, o novo franqueado disporá de vários benefícios, na medida em que iniciará seu negócio com o Know-how já construído. Aproveitará o fato de trabalhar com uma marca já estabelecida, dentre outras vantagens advindas dessa condição.

O Franchising no Brasil está em constante crescimento, sendo que tal constatação fica cristalina na medida em que acompanhamos essa evolução por meio de pesquisas da Associação Brasileira de Franchising, nas quais se nota o quão relevante é o franchising para o comércio, a economia, a geração de empregos diretos e indiretos.

O presente estudo analisa o contrato de franchising, no qual é verificado sua origem, conceito, elementos, natureza jurídica, além de suas vantagens e desvantagens.

Após a análise do contrato de franchising, passa-se a abordagem do princípio da boa-fé e a extinção do contrato de franquia.

Dessa forma, o foco da pesquisa se dará da análise do Princípio da Boa-fé na extinção dos contratos de franchising. Tais proposições visam esclarecer o seguinte questionamento: Quais as implicações jurídicas que decorreram da

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aplicação do princípio da Boa-fé na extinção dos contratos de franchising? Eis, o que se passa a discorrer de agora em diante.

2 CONTRATO DE FRANCHISING

2.1 BREVE HISTÓRICO

Oriundo de uma mescla de institutos, o Franchising, como é conhecido hoje, teve sua criação nos Estados Unidos, sendo que o momento de criação do franchising, é ponto de discussão entre a doutrina. Para Marcelo Raposo CHERTO, o franchising surgiu na Europa, durante a Idade Média (CHERTO, Marcelo Raposo. 1998. p. 02.).

O referido autor traz, ainda, que o contrato de franquia teve maior publicidade e consequente crescimento após o período da 2ª Guerra Mundial (CHERTO, Marcelo Raposo. 1998. pg. 13.).

Fran MARTINS atribui o surgimento do contrato de franquia aos norte-americanos, todavia, após a 2ª Guerra Mundial, “quando inúmeras pessoas, desmobilizadas de suas atividades ou nos campos de batalha ou nas indústrias, procuravam novas oportunidades para firmar-se economicamente” (MARTINS, 2010. p. 439.).

Mais coerente, parece o entendimento de Marcela Pinheiro da SILVA que explana, por meio de dados históricos, que a criação do contrato de franquia se deu em 1.860, com uma empresa de máquinas de costura,

A primeira notícia que se tem da franquia surgiu nos EUA, atribuindo-se constantemente a sua primeira aparição à empresa Singer Sewing Machine Company, quando, por volta de 1860, após o término da Guerra de Secessão americana, pretendeu ampliar sua rede de distribuição sem incorrer nos ônus de criar novas filiais. Para tanto, utilizou-se de pequenos comerciantes que arcaram com as despesas e os riscos de abrir um novo estabelecimento comercial. Esta empresa passou a credenciar diversas outras de pequeno porte com o fim de expandir seus negócios, concedendo-lhes o uso de sua marca e tecnologia, em suma, de sua estrutura já estabelecida e reconhecida ao longo do tempo, transferindo para estes os riscos inerentes ao mercado1.Ao analisar o motivo da criação do contrato de franchising, afirma Luiz

Felizardo BARROSO,

1 SILVA, Marcela Pinheiro da. Franchising: Repercussões Trabalhistas do Contrato de Franquia. Magister, Porto Alegre, n. 25, p. 81-82.

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O contrato de franchising não foi mera elaboração doutrinária, idealizada por juristas, nem tampouco inovação legislativa visando ao desenvolvimento e à regulamentação econômica de determinado setor da atividade empresarial privada, e sim fruto das necessidades do próprio mercado, que requeria um instrumento jurídico adequado a viabilizar um tipo de operação comercial descentralizada, dinâmica, e dirigida à satisfação do consumidor final2.

Na mesma esteira de pensamento, temos Irineu STRENGER abordando o nascimento do sistema de franchising,

Trata-se de verdadeira criação da lexmercatoria, originária das exigências do comércio interno e internacional, como mecanismo para satisfazer as necessidades de desenvolvimento de certas atividades cujo processo expansionista encontrava, por vezes, obstáculos econômicos e técnicos3.

Para Alexandre SCHNEIDER, a intenção do sistema era viabilizar o crescimento do número de pontos de venda de uma marca sem que os valores a serem despendidos para se efetivar o aumento do número de pontos, fosse capital próprio do proprietário da marca4.

No Brasil, temos o surgimento do contrato de franquia, consoante Ana Cláudia REDECKER, com a empresa “Calçados Stella”, no ano de 1910. (REDECKER, apud VENOSA, 2007, p. 524).

Em detrimento do grande número de vantagens encontradas nesse sistema tanto para o franqueador5 como para o franqueado6, houve uma crescente e célere expansão do instituto em todo os Estados Unidos e posteriormente em todos os cantos do mundo.

Atualmente, temos o franchising como um dos setores que mais crescem no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Franchising - ABF, o setor da franquia brasileira gerou mais de 837.000 (oitocentos e trinta e sete mil) empregos diretos, aumentou seu número de redes para 2.031(duas mil e trinta e um), seu número

2 BARROSO, Luiz Felizardo. Franquia da Atividade Securitária, p.183 apud CRETELLA NETO,José. DoContrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.16.3 SRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio, 4. Ed. – São Paulo: LTr, 2003. p.382834 SCHNEIDER, Alexandre. Franchising: da prática à teoria. São Paulo: Maltese, 1991.p.12 5 Franqueador é aquele que concede o direito de uso de sua marca, bem como a possibilidade de distribuição de seus produtos, know-how técnico de sua atividade, assistência técnica, treinamento de funcionários, tendo em contra-prestação, por parte do franqueado o pagamento de uma taxa. 6 Franqueado é aquele que representará a marca do franqueador, distribuindo seus produtos ou utilizando sua forma de prestação de serviços.

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de unidades para mais de 93.000(noventa e três mil) e obteve um faturamento de quase R$ 89.000.000.000,00 (oitenta e nove bilhões de reais) no ano de 20117.

2.2 ELEMENTOS DO CONTRATO DE FRANQUIA

O franchising apresenta como elementos, no entendimento de Leonardo Gonçalves TESSLER: o elemento distintivo, o know-how, e assistência técnica. (TESSLER, 2005, p. 141.) Para o autor, há uma ligação direta entre os elementos essenciais e a imagem empresarial do franqueador. Consoante seus ensinamentos:

O que se dá com o contrato é, exatamente, a reiteração, por parte do franqueado, da imagem empresarial do franqueador. Uma verdadeira encarnação da empresa por parte do franqueado, posto que, para o público, não há diferença entre a empresa franqueada e a franqueadora – ambas transparecem a idéia de uma única empresa8.

Desse modo, verifica-se que franqueador e franqueado devem aparentar ser uma única empresa, sendo necessário que ocorra a cumulação dos elementos constitutivos da franquia, para a ocorrência de tal fim.

2.2.1 ELEMENTO DISTINTIVO

Os elementos distintivos se mostram como peça chave para que ocorra a idéia de reiteração da imagem empresarial do franqueador.

A Lei que trata sobre a franquia(8.955/94), elenca como elementos distintivos a marca e a patente.

Tal definição é rechaçada por parte da doutrina, que entende, nos dizeres de TESSLER, como dúbio e que possibilita uma série de interpretações(TESSLER, 2005, p. 141.).

Ao analisarmos o art. 2º da lei 8.955/94, verifica-se que a cessão de direitos estaria restrita ao uso de marca e de patente, sendo excluídos, outros direitos industriais como insígnia, sinal, logomarca. Além disso, pode-se entender que a lei, ao utilizar o vocábulo “ou” estaria restringindo a utilização de um único elemento distintivo, ou seja, não se poderia utilizar mais de um elemento distintivo concomitantemente, o que ao analisarmos a prática torna tal entendimento completamente equivocado.

7 ABF. Associação Brasileira de Franchisig. Disponível em: <http://www.portaldofranchising.com.br/site/content/interna/index.asp?codA=11&codC=4&origem=sobreosetor>. Acesso em: 19 de setembro de 2012.8 TESSLER, 2005, p. 141.

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Dessa maneira, entende-se fundamental a presença de todos os elementos distintivos do franqueador para que se mantenha a idéia do consumidor de unicidade empresarial.

2.2.2 KNOW-HOW

O know-how, é um dos principais motivos que levam alguém a se interessar em ser franqueado. O receio de empreender sem possuir conhecimento de como gerir um negócio específico, faz com que muitas pessoas procurem em uma marca, não só a notoriedade da mesma, mas que esta lhe respalde com seus ensinamentos acerca da gestão daquele negocio específico, por meio da celebração do contrato de franquia.

Segundo MARTINS, o know-how, se fundamenta em alguns conhecimentos, secretos e originais, que devidamente aplicados, trazem como resultado uma benesse aquele que o utilizou. Em se tratando da utilização do know-how no contrato de franchising, TESSLER argumenta:

Um dos fatores que permitem a empresa do franqueador possuir uma imagem de sucesso, uma distinção em seu setor de atuação é justamente a atividade estar embasada numa série de conhecimentos técnicos que os demais concorrentes não possuem. Ora, parece lógico que, para se efetivar a reiteração da imagem empresarial do franqueador, faz-se necessário que ele forneça ao franqueado seu know-how. Sem isso, torna-se impossível ao franqueado exercer sua atividade9.

Assim, no entendimento do mencionado autor, o know-how é imprescindível ao franchising, em decorrência da impossibilidade de repetição da imagem empresarial do franqueador, sem a devida transmissão do know-how por parte deste.

2.2.3 ASSISTÊNCIA TÉCNICA

A assistência técnica é considerada por parte da doutrina como elemento formador do contrato de franchising10.

Nessa toada é o pensamento de TESSLER, Muitas vezes, ocorre de o franqueado não ter qualquer experiência na

área em que vai atuar. Aliás, experiência não é requisito para a celebração do contrato de franquia. O franqueado simplesmente tem capital para investir e

9 TESSLER, 2005, p. 147.10 Nesse sentido, vide SIMÃO FILHO, apud MARIANI, 2007, p. 365-366

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pretende integrar-se à empresa franqueadora, a fim de entrar no mercado com certa vantagem concorrencial. Ora, naturalmente que a ele não basta possuir o know-how ou os produtos do franqueador. Como bem afirmou Saugy (1970): “[...] entre o fato de se conhecer uma fórmula e de saber aplicá-la, vai um oceano de suor.” Os produtos e serviços estão sempre à mostra, não é difícil encontrá-los. A questão é saber como são feitos ou prestados. Essa aplicação, cabe também ao franqueador prestar11.

Assim entende-se que a assistência técnica é elemento constitutivo do contrato de franquia e necessita ser continua em detrimento da própria duração do contrato12.

Dessa maneira, temos que os elementos distintivos, o know-how e a prestação de assistência técnica, são os elementos obrigatoriamente fundamentam o franchising.

2.3 CONCEITO

Após a explanação da evolução do Sistema de Franchising em seu país de origem e posteriormente internacionalmente, bem como a apresentação dos elementos que constituem o franchising, se faz necessária a conceituação do respeitado instituto.

Primeiramente, é fundamental destacar que a doutrina não é uníssona quanto às origens do contrato de franquia. O legislador brasileiro estabeleceu, na Lei sob o nº. 8.955/1994, como conceito, o disposto no art. 2º da lei de franquia empresarial13.

Fran MARTINS traz uma visão menos detalhada não abordando questões trazidas na lei como a exclusividade ou não de distribuição de produtos e o direito de uso de tecnologia, para ele o contrato de franchising é definido:

uma pessoa a uma empresa, para que esta, mediante condições especiais, conceda à primeira o direito de comercializar marcas ou produtos de sua propriedade sem que, contudo, a esses estejam ligadas por vínculo de subordinação14.

11 TESSLER, 2005, p. 14912 Nesse Sentido, vide: ANDRADE, 1993, p. 20.13 Art. 2º, da Lei nº 8955/1994:” Franquia Empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício”14 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.440

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Com uma conceituação semelhante, porém com uma abordagem diversa, mais focada à marca, Modesto CARVALHOSA também traz uma conceituação sintética do que considera como contrato de franquia:

Contrato de distribuição de bens com uma determinada marca, ou de realização de serviços específicos, padronizados por um comerciante independente que adota como nome de seu estabelecimento o do franqueador, ou que omite para o público o seu nome comercial operando mercadologicamente (e não juridicamente) apenas com a marca do produto franqueado15.

Já Carlos Roberto GONÇALVES, traz a conceituação do contrato de franquia funcionando como uma concessão de direito ao uso de marca do franqueador, juntamente com uma prestação de serviço de organização empresarial, mediante remuneração(GONÇALVES, Carlos Roberto. 2004. P.662.).

Jorge ANDRADE busca conceituar o contrato de franquia sem se olvidar de aspectos importantes como o modo de administração formatado da franquia e algumas características do referido contrato como a estrita colaboração, agregação à concessão de um conjunto de métodos e meio de venda e distribuição de bens e prestação de serviços com assistência técnica e administrativa, para ele,

O franchising é o contrato pela qual uma empresa industrial, comercial ou de serviços, detentora de uma atividade mercadológica vitoriosa, com marca ou nome comercial notórios, permite a uma pessoa física ou jurídica, por tempo e área geográfica exclusivas e determinadas, o uso de sua marca, para venda ou fabricação de seus produtos /ou serviço, mediante uma taxa inicial e porcentagem mensal sobre o movimento de vendas16.

Para Waldo FAZZIO JÚNIOR, é clara a idéia de um contrato de prestações recíprocas e sucessivas, mescla de vários outros institutos como a cessão de direitos, licença de marca, prestação de serviços, compra e venda e distribuição; tendo como objetivo aumentar a comercialização de determinados produtos e serviços17.

Jorge LOBO traz uma conceituação mais detalhada do que venha a ser o contrato de franchising, procurando estabelecer de maneira específica algumas das obrigações das partes, principalmente aquelas que dizem respeito ao franqueador, segundo ele,

15 CARVALHOSA, Modesto. O contrato de franchising, p.218 apud CRETELLA NETO,José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.25.16 ANDRADE, Jorge. Contrato de franquia e leasing. São Paulo: Atlas, 1993. P. 22.17 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Direito Comercial. 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2008. P.186.

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Franchising é o contrato de cessão temporária de uso de marca, para fabricação ou venda de produtos ou serviços, que o franqueador faz ao franqueado, com ou sem exclusividade em determinada zona geográfica, mediante remuneração, que pode consistir numa taxa inicial de ingresso, num percentual sobre o faturamento, ou de ambos, conforme o tipo de atividade, a elaboração de um projeto para construção e reforma das instalações do estabelecimento, mobiliário, cores, maquinaria, etc; o treinamento do pessoal do franqueado e montagem da organização contábil e administrativa e o estudo do mercado em potencial, publicidade, vendas promocionais e lançamento de produtos18.

Porém verifica-se no entendimento de LOBO, que este restringe em seus ensinamentos a cessão de outros elementos distintivos. Dessa forma, adota-se como conceituação do contrato de franquia o conceito descrito por TESSLER, que descreve o franchising como contrato de integração, no qual o franqueado se integra ao complexo empresarial do franqueador, já que o para haver a reiteração da imagem empresarial, o franqueador necessita ceder temporariamente seus elementos distintivos, seu know-how e sua assistência técnica(TESSLER, 2005, p. 149-159.).

2.4 FASES DO CONTRATO DE FRANCHISING

O contrato de franchising costuma ser respaldado de muita segurança jurídica. Porém, para que esta segurança se efetive, as partes contratantes, franqueador e franqueado, passam por um profundo estudo da parte contrária a fim de evitar transtornos futuros.

Nesse sentido, inicia-se a análise das principais fases da formação dos contratos de franchising.

2.4.1 FASE DE NEGOCIAÇÃO OU PRÉ-CONTRATUAL

Ao iniciarem as tratativas da negociação, franqueador e franqueado se vêm diante de vários pontos que, em ambos, causam uma profunda preocupação; questionamentos do gênero, essa empresa é mesmo rentável? A forma de administração do franqueador possibilita que a franquia gere alta quantia de lucros? Estarei bem representado por esse franqueado? São situações que se vem a todo o momento. Sobre essa fase de negociação diz CRETELLA NETO,

A fase de negociação é, portanto, o período de tempo em que os negociadores praticam uma séria de atos concatenados, que refletem a convergência

18 LOBO, Jorge. Contrato de franchising. Rio de Janeiro: Forense, 1994. P. 26.

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de seus interesses, dentro das possibilidades oferecidas, e das limitações existente, com o objetivo de concluir um contrato entre eles19.

Ao observar a fragilidade que o franqueado tem perante o franqueador nessa relação negocial, o legislador brasileiro tomou a preocupação de incluir na lei n°. 8.955, promulgada no ano 1.994, alguns itens compulsórios para a realização do contrato de franchising, como é o caso da entrega da Circular de Oferta de Franquia em até 10 dias antes do prazo de assinatura da referida forma contratual.

Esse último documento é imprescindível para a finalização do contrato e é explanado por SIMÃO FILHO:

A Circular de Oferta de franquia, na realidade, é o elemento mais expressivo da relação existente entre as partes, resultando, em termos obrigacionais, mais forte até do que o próprio contrato. Este fator se deve a possível intelecção do legislador de ter o franchising não como um contrato, mas como um sistema. Nesta visão, o contrato é mero integrante da Circular de Oferta20.

Bastante utilizado numa segunda fase da negociação temos uma espécie de pré-contrato de franchising que, de forma geral, estabelece os principais pontos do contrato definitivo e cria uma relação contratual que pode ter impactos mais adiante, caso haja a desistência de uma das partes.

Para evitar que haja essa obrigação que vincula as partes, ainda no período de negociação, são utilizadas outras figuras como a carta de intenções que é definida por Paulo Borba CASELLA,

Mecanismo pré-contratual de expressão dos objetivos e da disponibilidade das partes em assumir compromissos no limiar do processo, cujo resultado será – normalmente, em caso de sucesso nas negociações – a celebração do contrato principal21.Estes mecanismos, apesar de não obrigatórios, são corriqueiros nas

contratações envolvendo franquia, em detrimento da segurança que os entes contratantes recebem de tal instituto.

Em relação às fases de celebração, desistência e extinção do contrato de franquia, tais tópicos serão abordados no capítulo subseqüente, em detrimento de serem o cerne deste artigo científico.

19 CRETELLA NETO,José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.109.20 SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising: aspectos jurídicos e contratuais.São Paulo: Atlas, 2000. p.103.21 CASELLA, Paulo Borba. Negociação e Formação de Contratos Internacionais em Direito francês e Inglês p. 84/85 apud CRETELLA NETO, José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.113.

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2.5 NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE FRANCHISING

Devido às características que o assemelham, em muito, com outros institutos, é importante que se faça a distinção do franchising com tais espécies de contrato como é o caso da Compra e venda Especial, Licença para exploração de marcas, contrato de Agência e Concessão comercial.

Inicia-se tal distinção com o contrato de compra e venda especial que tem como um dos fatores de diferenciação para o contrato de franchising o simples fato de que enquanto no contrato de compra e venda, as obrigações das partes se encerram após o pagamento da mercadoria, o contrato de franchising se mostra de uma complexidade superior visto que as obrigações vão além do momento da venda da mercadoria, sendo o franqueado sujeito à oferecer o produto ou a prestação de serviço para o consumidor final por valor e formato de vendas pré-estabelecido pelo franqueador.

Já o contrato de Licença para exploração de marcas, se assemelha ao contrato de franchising somente no tocante, à autorização para utilização da marca, não tratando da comercialização de produtos, transferência de Know-how e prestação de assistência técnica, características fundamentais no contrato de franquia. (SIMÃO FILHO, Adalberto. 2000. p.37.).

Passando a análise do contrato de agência temos a similitude entre os dois contratos, em função de ambos terem uma concessão dada para comercializar em nome do comitente, no contrato de agência ou do franqueador no formato de franquia; sua diferenciação é apresentada por SIMÃO FILHO,

Assim, o franqueado comercia em nome próprio e obriga-se diante de terceiros da mesma foram, assumindo em caráter autônomo os riscos de seu empreendimento, fato eu significa mais do que um mandato mercantil22.

Dentre todos os formatos contratuais aquele que mais se assemelha ao contrato de franchising é o contrato de Concessão comercial. Sua similitude é tão grande que muitos doutrinadores, como é o caso de Rubens REQUIÃO, já se manifestaram no sentido de que franchising e concessão comercial tratam-se da mesma forma contratual. (REQUIÃO apud SIMÃO FILHO, Adalberto. Atlas, 2000. p.39.).

Segundo ele, “e franchising nada mais é do que a mesmíssima técnica de comercialização há tempos conhecida de nosso comércio como concessão de vendas comercial com exclusividade ou simplesmente concessão comercial”

22 SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising: aspectos jurídicos e contratuais.São Paulo: Atlas, 2000. p.38.

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(REQUIÃO apud SIMÃO FILHO, Adalberto. 2000. p.39.).Porém, ao fazer uma análise mais apurada do contrato de franchising,

percebemos que existem algumas características que o diferenciam da concessão comercial, dentre as quais, destacamos a obrigatoriedade de se manter um padrão visual que seja fator para distinção da marca e a forma de pagamento diferenciada que no caso da concessão é fruto de percentagens de vendas ou de serviços prestados pelo concessionário.

No franchising a formatação utilizada para recebimento de valores por parte do franqueador inclui uma taxa inicial somado a pagamentos mensais à título de royalties sobre as vendas ou serviços prestados.

Após a distinção do contrato de franchising com outros institutos, faz-se obrigatória a classificação dessa forma contratual.

O franchising é uma compilação de diversos outros contratos, dentre eles, os já citados contrato de compra e venda, licença para uso da marca, dentre outros, que faz com que a franquia empresarial tenha como característica ser um contrato misto; também encontramos no franchising a figura da bilateralidade em detrimento da necessária participação de duas partes na relação contratual, franqueador e franqueado, sendo que além dessas características encontramos no contrato de franchising a existência de prestações recíprocas a serem cumpridas pelas partes, com a intenção de atingir o objeto do contrato consubstanciado na distribuição ou comercialização de produtos, mercadorias ou serviços(SIMÃO FILHO, Adalberto. 2000. p.42.).

2.6 VANTAGENS E DESVANTAGENS DO CONTRATO DE FRANCHISING

2.6.1 VANTAGENS PARA AS PARTES CONTRATANTES E CONSUMIDOR

O franqueador ao celebrar um contrato de franchising tem como principais pontos vantajosos, segundo Roberto Cintra LEITE (LEITE, Roberto Cintra. 1990. p. 43.): rapidez na expansão da rede, podendo expandir seus pontos de venda, sem que isso reflita em gastos adicionais, em virtude de ser o franqueado a pessoa responsável por arcar com todas as despesas pertinentes ao negócio; aumento de rentabilidade, já que receberá uma remuneração das vendas dessa nova franquia, redução de custos, maior participação no mercado, maior cobertura geográfica, melhor publicidade, menores responsabilidades e melhores representantes.

Em relação ao franqueado, verifica-se como pontos que fazem com que a relação seja vantajosa para este, em conformidade com os ensinamentos de Jorge LOBO, o maior alcance do sucesso, em decorrência da utilização de um sistema que já foi testado e aprovado pelo comércio, o que minimiza os riscos de uma

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administração errônea; plano de negócio definido, maior garantia de mercado, maior credibilidade perante terceiros, maior lucratividade e independência do negócio, já que se trata de pessoa jurídica distinta do franqueador(LOBO, Jorge. 1994. p. 35-36.). Além dessas vantagens, destacamos a possibilidade de contar com a assistência técnica prestada pelo franqueador, o que torna tal procedimento muito mais eficaz devido à similitude de problemas vividos entre franqueador e franqueado.

O consumidor, por sua vez, apesar de não ser parte do contrato de franquia, também usufrui das benesses do sistema, dentre elas, o aumento de opção de consumo, advindo, da abertura de novos pontos de venda próximos aos consumidores; a garantia de preço compatível, ou seja, independente da franquia que o cliente vá dentro de uma rede de lojas da mesma marca, ele pagará o mesmo valor de um produto ofertado pelo franqueador.

2.6.2 DESVANTAGENS PARA AS PARTES CONTRATANTES E CONSUMIDOR

O franqueador terá que arcar, em alguns casos, com algumas desvantagens geradas pelo sistema, quais sejam: a indisciplina do franqueado, ocasionada em virtude da não subordinação existente entre os entes; problemas de inadequação ocasionados por inaptidão do franqueado para administrar o negócio; rentabilidade baixa em determinada franquia, que possa determinar abandono, por parte do franqueado, da metodologia implementada pelo franqueador sobre como gerir a franquia, o que pode ocasionar sérios danos à imagem do franqueador.

Com relação ao franqueado, alguns pontos desfavoráveis devem ser levados em consideração antes da efetiva aquisição dos direitos à uma franquia, quais sejam: a perda de autonomia empresarial, em decorrência de um formato de administração já utilizado pelo franqueador e que deve ser cumprido; o controle externo do franqueador devido a complexidade operacional de algumas franquias; a compra forçada de produtos, devido à cláusulas contratuais fazendo com que haja uma espécie de amarra no franqueado que, por mais que consiga um valor para compra de determinado produto inferior aos preços praticados pelo franqueador, aquele fica impedido de efetuar a compra dos produtos por força do contrato estabelecido entre as partes.

No que atine aos pontos desfavoráveis do consumidor, observa-se que este sofre reflexos da relação contratual entre franqueador e franqueado, como à possibilidade de engano, em decorrência de o cliente conhecer uma marca, saber os principais aspectos que a tornam diferenciada no mercado e não encontrar na franquia as mesmas características que o fizeram optar pela escolha daquele local.

Após a análise do contrato de franquia, suas origens, características, conceito, inicia-se o estudo do Princípio da Boa-fé na extinção dos contratos de franchising e as implicações que a observância ou não do fundamental

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princípio podem acarretam quando do encerramento das relações contratuais entre franqueador e franqueado.

3 EXTINÇÃO DO CONTRATO DE FRANQUIA E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

Após a explanação do contrato de franchising, passa-se à analisar especificamente a extinção do contrato de franquia e suas consequências no mundo fático.

3.1 CELEBRAÇÃO E DESISTÊNCIA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE FRANQUIA

Após todas as tratativas envolvendo as partes, o envio da Circular de Oferta de Franquia, para o franqueado, no prazo de até 10 dias antes da celebração do contrato e permanecendo a vontade das partes, o contrato será celebrado, surgindo naquele momento vínculo entre as partes, bem como deveres e direitos para ambos.

Sabendo que quando se está diante de uma negociação entre dois entes dispostos a transacionar, entende-se que tanto o futuro franqueador como o futuro franqueado tenham suas condutas pautadas no princípio da boa-fé objetiva, e celebrem o contrato(CRETELLA NETO, José. 2002. p.129.).

Contudo, por diversos motivos, seja de caráter pessoal ou profissional, muitas vezes tais negociações restam frustradas, cabendo a indagação acerca de uma possível responsabilidade da parte responsável pela não celebração do contrato.

Na doutrina brasileira, existem posicionamentos semelhantes quanto à não responsabilidade das partes nas negociações preliminares, sendo nesse sentido o entendimento de DINIZ, que leciona,

Das negociações preliminares as partes podem passar à minuta, reduzindo a escrito alguns pontos constitutivos do conteúdo do contrato, para que sirva de modelo ao contrato que depois realizarão, mesmo que nem todos os detalhes tenham sido acertados. Ainda assim não se tem vínculo jurídico entre as partes. Somente quando se obtiver o completo acordo sobre todos os pontos essenciais da relação contratual é que surgirá o contrato; portanto, acordos parciais, que forem eventualmente estabelecidos, carecem de valor e obrigatoriedade23.

23 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 13ª ed. P. 44 apud CRETELLA NETO,José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.131.

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Na mesma esteira de pensamento, são as lições de GOMES,

Por mais completas que sejam, não têm as negociações preliminares força vinculante, delas não advindo obrigação de contratar. A responsabilidade pré-contratual não surge, na verdade, de acordos escritos ou verbais, e sim da expectativa que um dos interessados tenha criado no outro, que pode ser induzido a realizar despesas para possibilitar a realização do contrato. Desistindo o interessado que gerou a expectativa, poderá ser obrigado a ressarcir despesas efetuadas ou o custo de não ter o outro contratado com terceiros24.

Conforme se constata na opinião destes doutrinadores, não haverá responsabilidade em relação à obrigatoriedade da celebração do contrato, porém deve ser responsabilizado o indivíduo que teve frustradas as negociações e que teve despesas advindas dessa expectativa.

Contudo, para Carlyle POPP é preciso verificar quais foram os alcances da conduta do desistente, e saber se foram atendidos os deveres laterais, que são: dever de conselho, de informação e de recomendação; dever de guarda e de restituição; dever de segredo; dever de clareza; dever de lealdade; e dever de proteção e conservação(POPP, Carlyle. 2006. p. 197.).

Daniela Moura Ferreira CUNHA, aduz que deve pelo rompimento das tratativas, a parte lesada tem direito à indenização por Danos morais, bem como reparação de eventuais danos materiais, além de ressarcimento pelos danos emergentes e lucros cessantes(CUNHA, Daniela Moura Ferreira. 2006. p. 170-204.).

Assim, entende-se que com a desistência da celebração do contrato, vários são os ônus, a serem suportados, pela parte desistente, e que tais ônus, serão mensurados de acordo com o alcance que a conduta do desistente teve no mundo fático.

3.2 EXTINÇÃO DO CONTRATO À LUZ DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

Ao tratar da rescisão dos contratos em geral no 2º capítulo do presente, foi trazido à baila a diferenciação e conceituação das diferentes formas de Extinção do contrato.

Assim, inicia-se a abordagem específica da extinção do contrato de franquia que no entendimento de MARTINS25, pode ocorrer pelo término do prazo estabelecido no contrato, ou ainda estando o presente contrato em

24 GOMES, Orlando. Contratos, 18ª ed. P. 61 apud CRETELLA NETO, José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 131.25 MARTINS, Fran. 2010. p.448/449.

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vigência, pela manifestação unilateral ou bilateral das partes, sendo que quando a causa advêm de um descumprimento de cláusulas contratuais que utiliza a terminologia resilição (MARTINS, Fran. 2010. p.448/449.).

MARTINS aduz, também, sobre a possibilidade de que haja a resilição do contrato sem uma causa, bastando a comunicação à outra parte da intenção de desfazimento do contrato, porém não se eximindo de possível indenização à parte.

Já GONÇALVES complementa no sentido da possibilidade de extinção do contrato por conduta inapropriada do franqueado que possa comprometer a boa conceituação da marca(GONÇALVES, Carlos Roberto. 2004. p. 666.), sendo tal conduta denominada resolução, que de maneira mais sucinta e clara é explicitada por DINIZ, como a extinção do contrato pela inexecução voluntária do contrato ou pela onerosidade excessiva do referido instituto (DINIZ, Maria Helena. 2006. p. 202-210.).

Ao tratarmos da resilição, mister trazer os ensinamentos de VENOSA, sendo que, para ele resilição é ato de vontade de uma ou de ambas as partes de forma voluntária(VENOSA, Sílvio de Salvo. 2007. p. 465.).

Presente em nosso ordenamento jurídico no Código Civil em seus artigos 113, 187 e 422, o princípio da boa-fé preceitua, nos dizeres de GONÇALVES:

O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza26.

O autor, ainda, preocupa-se em conceituar o vocábulo probidade, trazido na redação do art. 422, Código Civil, aduzindo de maneira generalista que probidade é um aspecto objetivo do referido princípio, caracterizada na honestidade de proceder e cumprir seus deveres27.

Ainda, cabe informar que a boa-fé contratual se subdivide em boa-fé objetiva e subjetiva. Estas são abordadas de maneira ímpar por VENOSA,

Na boa-fé subjetiva, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui do negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado. A boa-fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem

26 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume III: Contratos e Atos Unilaterais. 3 fed. São Paulo, Saraiva, 2007. p. 33.27 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume III: Contratos e Atos Unilaterais. 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2007. p. 34.

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médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos28.

A boa-fé objetiva, é nos dizeres de Daniel USTÁRROZ,

Em sua versão objetiva, a boa-fé é determinada pelos usos e costumes do meio social no qual o ato é praticado, levando-se em conta todas as particularidades das pessoas envolvidas e todo o ineditismo do caso concreto. Não é a vontade de causar mal que é perquirida(visto que o animus nocendi desimporta). Há, na verificação da boa-fé objetiva, um cotejo entre a ação ou omissão existente e a conduta exigida de um homem odinário: leal, prudente, cauteloso, responsável etc29.

Para THEODORO JÚNIOR, no princípio da Boa- fé deve prevalecer a intenção sobre a literalidade, sempre de acordo com os ditames da lealdade e confiança30.

Karina Nunes FRITZ, explana com propriedade os fundamentos do princípio da Boa-fé objetiva,

A boa-fé objetiva, enquanto mandamento de atuação leal, reta e honesta na vida jurídica, considerando o outro como pessoa e respeitando seus interesses legítimos, é uma decorrência lógica do reconhecimento da dignidade e da personalidade humana como núcleo fundamental de toda a ordem jurídica, pois na própria idéia de boa-fé está ínsita a necessidade de respeitar a dignidade e a personalidade do parceiro, não se podendo pensar em total respeito à pessoa e sua dignidade sem uma atuação honesta e leal para com a mesma31.

Dessa forma, temos que o princípio da boa-fé objetiva estará presente em todas as relações contratuais, e especialmente no contrato de franquia, sendo pautado pela honestidade e lealdade dos entes contratantes.

Dessa maneira, percebe-se que terá julgamento favorável, à parte que durante

28 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos 7 ed. São Paulo, Atlas, 2007. p. 34729 USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Contratual. São Paulo. Editora revista dos tribunais, 2007 p. 73.30 THEDORO JÚNIOR. Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro. Aide. 1999, p. 32.31 FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé Objetiva na fase pré-contratual. Curitiba. Juruá. 2009. p. 118.

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todo o pacto contratual agiu com postura correta, de forma digna e irreparável com a outra parte contratante, respeitando o Princípio da Boa-Fé Objetiva.

4 CONCLUSÃO

Da análise do contrato de franchising, foram explicitadas questões como o surgimento do franchising, quais são seus elementos constitutivos, sua conceituação atual, além de sua natureza jurídica e outros pontos de relevância dentro deste instituto jurídico.

Ao final, foi abordado o Princípio da Boa-fé na extinção do contrato de franchising.

Diante do panorama apresentado neste último capítulo, foram postas à discussão questões acerca de possíveis implicações jurídicas às partes que agem em desacordo com o princípio da Boa-fé.

Antes de responder o questionamento, mister lembrar que é necessário saber o motivo da rescisão do contrato, e posteriormente verificar se as partes agiram de boa-fé ou não.

Isso se deve, ao fato de que somente sabendo os motivos que levaram a resilição(extinção voluntária) ou a resolução(extinção por descumprimento) do contrato, podemos passar a verificar as consequências que geradas por tal ato no mundo fático para posteriormente, se ater a utilização pelas partes do princípio da Boa-fé.

Sabendo que o princípio da Boa-fé, é um dos pilares do contrato, e que determina que as partes atuem sempre com lealdade e honestidade para com o outro ente contratante, verifica-se que nos casos de extinção do contrato de franquia, a parte que agiu de boa-fé, terá relevantes benefícios ou prejuízos mais suaves, quando for ela a responsável pelo rompimento das tratativas.

Em contrapartida, a parte que age de má-fé, deverá arcar com todos os prejuízos que a parte adversa vier a sofrer.

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A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA E O CRÉDITO TRABALHISTA

amanDa DEl VEchio DiaS

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

miriam cipriani gomES

Possui Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Uni-versitário Curitiba (2008). Atualmente é professora de Direito do Tra-balho e Direito Processual do Trabalho da UNICURITIBA

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar o tratamento dado aos créditos trabalhistas no instituto da recuperação judicial. Demonstra-se, para tal, a necessidade da criação e a importância do instituto da recuperação judicial na sociedade atual, em que é vigente o modelo socioeconômico do capitalismo liberal, destacando-se a livre concorrência que, aliada a fatores internos da administração, pode levar a sociedade empresária ao estado de crise. Discriminam-se os requisitos para que uma empresa mereça o deferimento e processamento de sua recuperação, assim como os princípios presentes no artigo 47 da Lei 11.101/2005 que norteiam o instituto, que devem ser seguidos à risca, tendo em vista a onerosidade do processo para os credores, sociedade e Estado. Nesta seara, inserem-se os créditos trabalhistas, de natureza alimentar e de titularidade da classe de credores com menos poder. Discorre-se sobre o conceito e constituição deste, assim como o Juízo competente para a sua liquidação e execução. Finalmente, aborda-se a preferência dada a estes créditos no processo de recuperação judicial, terminando-se por exemplificar a teoria estudada com dois casos concretos: empresas de grande relevância no território nacional à que foram concedidas a recuperação e a oportunidade de reinserção no mercado.

Palavras-Chave: empresa em crise, recuperação judicial, princípios norteadores, crédito trabalhista, natureza alimentar.

ABSTRACT

This study aims to analyze the treatment of labor credits at the Institute of bankruptcy. It is shown, for such, the need and importance of the creation of the Institute of bankruptcy in today’s society, it is the prevailing socioeconomic model of liberal capitalism, emphasizing that free competition, coupled with the administration’s internal factors, can lead liability company to a state of crisis.

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To discriminate the requirements for a company deserves the acceptance and processing of your recovery, as well as the principles laid down in Article 47 of Law 11.101/2005 that guide the institute, which must be followed exactly in order to burden the process for creditors, society and state. In this harvest, fall labor credits, food and nature of ownership of the class of creditors with less power. It talks over the concept and creation of this as well as the competent Court for its winding up and running. Finally, we address the preference given to such claims in the bankruptcy process, ending up by exemplifying the theory studied in two specific cases: enterprises of great relevance in the country to have been granted the opportunity of rehabilitation and reintegration into the market.

Keywords: company in crisis, bankruptcy, guiding principles, labor credit, maintenance nature.

O capitalismo liberal, modelo econômico que impera na grande maioria dos países, e se caracteriza pela livre iniciativa, livre concorrência e, logo, por uma quase ausência de tutela estatal nas relações privadas, é responsável pelo fato não raro de empresas entrarem em quadro de crise, seja por falhas na gestão, falta de investimentos tecnológicos ou mudanças no mercado externo.

No Brasil, a superação dos fatores internos e externos que atingem a empresa, permitindo-a sanar suas inadimplências e sobreviver no mercado como fonte de tributos, prestação de serviços, postos de emprego, entre outras funções inclusive exigidas pela Lei, está prevista na Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, Lei 11.101/2005, e é fundamentada por uma série de princípios consagrados na Carta Magna. Logo, não é toda empresa que merece esta alternativa à decretação à falência. A onerosidade do processo exige que as empresas honrem os princípios inseridos na Lei para serem beneficiadas por tal instituto.

O estado de crise pode ser caracterizado por fatores que impedem o empresário de perseguir seu objeto social, incluindo a insuficiência de recursos para o pagamento das obrigações assumidas.

Na maioria das vezes, os vícios que podem desencadear uma crise estão na origem, na formação da empresa. A escolha do tipo societário inadequado, a estruturação administrativa insuficiente, a estimação imprópria do capital social, e a obsolescência do objeto social eleito são mencionados como “sementes da moléstia de que padecerão” as empresas (FAZZIO JÚNIOR, 2006, p. 21).

Waldo Fazzio Júnior, tratando a empresa como um organismo, também expõe que “os males causadores da patologia do organismo empresarial” podem ser adquiridos, supervenientes, sendo o caso das restrições de crédito bancário, de prioridades adversas resultantes da política econômica nacional, elevação da taxa de juros, crise de abastecimento (FAZZIO JÚNIOR, 2006, p. 21).

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Ricardo Negrão, cita fatores que podem atingir o desempenho de uma empresa: mudanças climáticas, quedas de pontes, estradas com má conservação, acidentes que provocam contaminação do meio ambiente, atos de terrorismo, revoluções, distúrbios políticos, como fatores externos; e como internos, a má gestão e outras causas de índole pessoal ligadas ao titular da atividade, como enfermidade pessoal ou de integrante da família, assim como gastos exagerados dos mesmos (NEGRÃO, 2011, p. 156).

Assim se pronuncia Maria Bernadete Miranda.

Os fatores que provocam a perda do crédito são uns de ordem geral, econômicos, financeiros, políticos com influência em todos ou alguns dos ramos da atividade humana; outros, de ordem particular, dizem respeito ao devedor, ao modo como administrou seus negócios. As conseqüências são sempre desastrosas (MIRANDA, 1993, p. 26).

Outro aspecto a ser considerado no colapso empresarial é a relevância e a resposta que o mercado oferece aos sinais negativos emitidos pela empresa.

Conforme ensinamento de Admir Roque Teló:

Aos primeiros sinais externos da isquemia da empresa, o mercado logo interpreta a informação ‘fechando as portas’. O mesmo mercado que ajudou a empresa a promover suas atividades agora encurta sua sobrevida, considerando-a um organismo em coma (TELÓ, 2003).

A crise geralmente conduzia a empresa a um estágio terminal, à falência ou à concordata. A partir de 2005, adveio um instituto alternativo, concedido a empresas enquadradas nos requisitos estabelecidos, como será visto adiante.

O Decreto-Lei nº 7.661/1945, que caracterizava e regulamentava a falência no Brasil até o ano de 2005, estabelecia em seu artigo 139 que “A concordata é preventiva ou suspensiva, conforme for pedida em juízo antes ou depois da declaração da falência.”

Ao longo do desenvolvimento do Direito brasileiro, a concordata, na percepção dos juristas, não se mostrava apta a concretizar de maneira satisfatória a recuperação. Nas palavras de Osvaldo Biolchi:

Efetivamente, a conjuntura normativa do diploma de 7.661/1945 permitia a continuação do negócio, a pedido do devedor, ou a concordata suspensiva, mas ambos os institutos se revelaram inócuos, por causa da responsabilidade trabalhista e a sucessão tributária, afora as incertezas de percurso (BIOLCHI, 2005, p. x.).

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Ainda sobre a concordata, esclarece Osvaldo Biolchi, Relator do Projeto da Lei de 2005:

A própria concordata preventiva, conforme assinalamos, que subordinava em seu art. 147 do Decreto-Lei n° 7.661/1945 somente os créditos quirografários, era inviável, especialmente se considerarmos que quase 90% destas empresas concordatárias teriam sua falência decretada (BIOLCHI, 2005, p. xii.).

A ineficiência da concordata como medida viável para o empresário recuperar sua atividade econômica fica evidenciada na omissão do dispositivo quanto aos débitos reais e trabalhistas, tratando apenas dos quirografários, ou seja, os créditos simples, sem qualquer vantagem. Por exemplo, caso o devedor resolvesse vender seu empreendimento para se recuperar, mas não quitasse seus débitos trabalhistas e tributários, o adquirente, mesmo que de boa-fé, deveria fazê-lo. Além disso, as únicas alternativas disponibilizadas à empresa em dificuldades eram o desconto e a dilação dos prazos de vencimento, configurando uma tutela fraca, em que devedores e credores deveriam usar da própria criatividade para encontrar soluções alternativas (MARTINS, 2005).

Portanto, enquanto na concordata ficava estabelecida a sujeição apenas dos créditos quirografários, no instituto trazido pela Lei de 2005 há maior detalhamento quanto à situação de créditos de outras naturezas, trabalhistas e tributários, por exemplo.

O instituto da concordata já não atendia os interesses dos credores e não resolvia o problema da empresa. A reforma decorrente da Lei n° 11.101/2005 foi imprescindível, uma vez que permitiu ao legislador corrigir o descompasso entre as normas falimentares e a realidade (WAISBERG, 2009, p. 314).

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

A regra do artigo 47 da Lei 11.101/2005 definiu o instituto da recuperação judicial e, principalmente, reconheceu princípios que, com as modificações políticas, econômicas e sociais, fizeram-se necessários para a sobrevivência e manutenção de empreendimentos que oferecem serviços essenciais à sociedade, geram empregos, tributos ao Estado, colaboram para a sustentabilidade.

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Disso decorre que não é toda e qualquer empresa que enfrenta um período de crise que, a partir de um pedido formulado ao juízo competente, deve ou merece ser recuperada. O processo de recuperação é custoso e, como é a sociedade brasileira como um todo que arca com esse custo, seja pagando tributos, perdendo postos de emprego ou deixando de usufruir de produtos e serviços no mercado de consumo, é necessário que o Judiciário seja criterioso ao definir quais empresas merecem ser recuperadas (COELHO, 2012, p. 420).

“Sem dúvida que a empresa, enquanto organização com fim de desenvolver atividade econômica, ultrapassa o liame de mero instrumento utilizado para obter instrumentos privados” (WALD, 2005, p. 21).

Portanto, faz-se imprescindível um juízo de valorização sobre a empresa, que compete ao Poder Judiciário, verificando-se se esta cumpre sua função social, quais os benefícios que proporciona à sociedade e, como conseqüência, se merece ser preservada. Uma empresa que, por exemplo, gera empregos, mas despeja dejetos químicos em um rio, não cumpre plenamente sua função social. É inviável, não podendo a comunidade arcar com as despesas de sua recuperação (MEDEIROS, 2009).

A viabilidade da empresa a ser recuperada não é questão meramente técnica, que possa ser resolvida apenas pelos economistas e administradores da empresa. Quer dizer, o exame da viabilidade deve compatibilizar necessariamente dois aspectos da questão: não pode ignorar nem as condições econômicas a partir das quais é possível programar-se o reerguimento do negócio, nem a relevância que a empresa tem para a economia local, regional ou nacional (COELHO, 2005, p. 127).

Além dos princípios da preservação da empresa, da função social, da viabilidade da empresa e da participação ativa dos credores no processo, o princípio da proteção ao trabalhador também norteia o instituto da recuperação judicial. A Lei 11.101/2005 concedeu um tratamento diferenciado aos créditos de natureza trabalhista, especialmente ao recebimento das verbas de natureza salarial.

O crédito trabalhista é aquele que decorre da legislação do trabalho, por exemplo, as indenizações por acidente de trabalho que tenham ocorrido com culpa ou dolo do empregador. É todo aquele crédito de caráter econômico-financeiro devido ao empregado, oriundo da relação de trabalho. Tem natureza alimentar, e, enquanto tal, constitui crédito superprivilegiado frente aos demais créditos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, preferindo, inclusive, o crédito de natureza fiscal (ALVES, 2005).

Classificar os créditos num processo que se funda no tratamento paritário dos credores significa, em última análise, reconhecer a necessidade de proteção a direitos justos e reequilibrar situações de desigualdade. O intento da lei é

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sempre a primazia do equilíbrio dos interesses em jogo na concorrência dos credores sobre o ativo disponível do devedor (FAZZIO JÚNIOR, 2006, p.89).

Assim, estabelece o artigo 54 da Lei 11.101/2005:

Art. 54. O plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial.

Parágrafo único. O plano não poderá, ainda, prever prazo superior a 30 (trinta) dias para o pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial.

Indiscutível é, portanto, o privilégio estabelecido em relação ao pagamento dos créditos de natureza trabalhista em processos de recuperação judicial, não cabendo a discussão comumente adotada na falência, em que a lei limita os créditos privilegiados à importância de 150 salários mínimos.

Tal privilégio, como dito acima, tem razão de ser, visto que os trabalhadores, diferentemente do que ocorre com os demais credores, não injetaram capital financeiro na sociedade empresária, mas sim suas forças físicas e mentais de trabalho, esperando, como contraprestação, os meios que disponibilizariam sua subsistência (DOMINGOS, 2009, p.85).

Ensina Carlos Eduardo Quadros Domingos que “o caráter alimentar e humanístico se sobrepõe a qualquer tipo de crédito representativo de capital diverso do que retrata a contraprestação de trabalho realizado” (DOMINGOS, 2009, p.85).

Em que pese seja inegável a preferência dada aos créditos trabalhistas pela atual lei, parte da doutrina ainda defende que o que se materializa é uma “proteção em termos”.

A lei, forte no interesse do crédito, dá com uma mão e tira com a outra. Condiciona, por exemplo, a quitação dos salários atrasados ao deferimento da recuperação. Mas, em contrapartida, transfere o saldo de crédito trabalhista para a classe dos quirografários, o que é um absurdo, inclusive para efeitos de composição do comitê dos credores (FILHO, 2005).Nesse ponto, ao dispor sobre alguns meios de recuperação judicial, a

Lei 11.101/2005 elencou, em seu artigo 50, inciso VIII, a redução salarial, compensação de honorários e redução da jornada mediante acordo ou convenção

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coletiva, acabando por cercear alguns direitos dos trabalhadores (OLIVEIRA, 2008, p. 1543) e, consequentemente, gerar discussões sobre essas questões.

Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas;II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente;III – alteração do controle societário;IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos;V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar;VI – aumento de capital social;VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados;VIII – redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva;IX – dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro;X – constituição de sociedade de credores;XI – venda parcial dos bens;XII – equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica;XIII – usufruto da empresa;XIV – administração compartilhada;XV – emissão de valores mobiliários;XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.

O inciso VIII do referido artigo é dotado de grande profundidade e alcance social, tendo em vista que em dada situação de crise financeira, a redução do quadro pessoal, a diminuição da jornada de trabalho e a proposta de redução de salários, com vistas à redução das despesas, estão entre as primeiras medidas adotadas (ALONSO, 2005, p. 262).

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Pode-se, assim, alterar as condições de trabalho pela via da negociação coletiva, mas os direitos trabalhistas serão, salvo os referidos, alterados via acordos ou convenções coletivas, preservados, e terão prosseguimento normal, como também terá a atividade empresarial (NASCIMENTO, 2009, p. 715).

Em relação a tais alterações concretizadas mediante negociação coletiva, afirma Manoel Alonso:

Para maior segurança jurídica nos acordos trabalhistas entre a empresa e seus obreiros, estes deverão ser sempre assistidos pelo Sindicato a que pertencem. Também porque o legislador assegurou aos trabalhadores o direito de integrar o trio das classes votantes na Assembleia Geral dos Credores (ALONSO, 2005, p.262).

Olavo Rigon Filho acusa a possibilidade de manutenção do emprego como uma proteção questionável, visto que a empresa pode ser objeto de fusão, incorporação ou alienação. Além, considera o aumento da carga horária e a redução salarial, opções legítimas para composição do plano de recuperação, como sacrifícios não isonômicos, em que o ônus é exclusivo da classe de trabalhadores (FILHO, 2005).

Outra questão a ser discutida, que encontra diferentes posicionamentos, com seus respectivos fundamentos, na doutrina e na jurisprudência, é a competência para a execução dos créditos trabalhistas.

A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial produzem efeitos sobre a execução trabalhista, que resultam na concentração de todas as execuções em uma só, ou seja, num processo de execução coletiva falimentar (NASCIMENTO, 2009, p. 712), consoante artigo 23 da revogada Lei de Falências, que dispõe que “ao juízo da falência devem concorrer todos os credores do devedor comum, comerciais ou civis.”

Essa regra geral prevalece no processo trabalhista, de modo que, sendo constituída a falência ou sendo aprovado o plano de recuperação judicial, a prestação jurisdicional trabalhista termina com a sentença proferida na fase de conhecimento, que liquida o crédito trabalhista, não competindo a este juízo a execução dessa sentença (NASCIMENTO, 2009, p. 712).

O art. 768 da CLT mostra que os créditos trabalhistas são executados na falência e não no próprio processo trabalhista. O juízo universal falimentar atrai todos os valores devidos pela massa para si. No processo trabalhista os créditos contra a massa são julgados pela Justiça do Trabalho até o momento em que houver a liquidação de sentença e seja definido o valor devido ao empregado. Terminada a fase de liquidação,

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o empregado habilita seu crédito na falência (MARTINS, 2011, p. 787).

Assim, pode-se dizer que o processo prossegue na Justiça do Trabalho até ser tornado o crédito líquido. Uma vez individualizado o crédito, o empregado deve se habilitar perante o juízo falimentar. O credor poderá apenas pedir ao juiz do trabalho o envio de ofício ao juízo em que tramita a falência ou a recuperação para a reserva do valor do crédito já líquido.

O interessado deve habilitar o seu crédito no juízo falimentar, e é pago de acordo com as prescrições da lei falimentar. Se a sentença é ilíquida, cabe a fase preambular executória da liquidação da sentença na Justiça do Trabalho, porque é evidente que o crédito a ser habilitado na falência deve ter o seu valor estabelecido pela sentença trabalhista. Após a liquidação, cessa a atuação do juízo especial, e o empregado, de posse de certidão da sentença ou por ofício expedido pelo juiz presidente da Vara, dirigido ao juízo falimentar, tem o seu crédito examinado (NASCIMENTO, 2009, p. 712). Logo, a competência é do juízo falimentar para executar os créditos

definidos no processo trabalhista, apresentando Sergio Martins Pinto a justificativa de que “se entendesse o contrário, haveria várias execuções individuais em diversos juízos, sem que existisse uma unidade e também o privilégio do crédito trabalhista sobre outros e a isonomia entre os próprios créditos” (MARTINS, 2011, p. 787).

Entretanto, há entendimentos na linha de que, nos dissídios contra a massa falida e sociedades em regime de recuperação, a execução poderia prosseguir no próprio processo do trabalho, até que o crédito do empregado fosse satisfeito. Isso porque o crédito trabalhista goza de um “superprivilégio”, que preferiria a qualquer outro, inclusive aos falimentares (MARTINS, 2011, p. 787).

O doutrinador cita em sua obra o parecer de Calmon de Passos, no sentido que:

O credor trabalhista não está sujeito ao juízo universal da falência, visto como só a Justiça do Trabalho é competente para julgar os dissídios individuais de trabalho e executar as decisões que neles profira. Destarte, execução trabalhista iniciada não tem seu curso suspenso por força de decretação da falência do executado. Nem se pode obstar a venda em hasta pública de bem que seria arrecadável ou foi arrecadado pela massa, por força do que vem de ser afirmado. O único incidente possível seria o da suspensão prejudicial da entrega do produto, se dependesse de definição, no juízo da falência, a posição do crédito trabalhista no quadro geral dos credores. Isso, entretanto, hoje, no direito brasileiro,

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se fez despiciendo, visto como ao crédito trabalhista se concedeu, por sua própria natureza e independentemente de qualquer acertamento jurisdicional, posição eminente e incontrastável em relação a outro qualquer crédito, seja provido de garantia real, seja beneficiado com privilégio geral ou especial (CALMON DE PASSOS apud TEIXEIRA FILHO, 2009, p. 2015).

Clóvis Salgado também contribui para o argumento de que compete à Justiça do Trabalho a execução, “até o último ato da sequência legal”, apontando duas relevantes razões, uma de ordem lógica, e outra social.

Razão de ordem lógica porque gozando aquele crédito (trabalhista) de um privilégio especialíssimo, batizado pelo Dr. Barreto Filho até de superprivilégio (Martins Catarino, obra cit., pág. 74), feriria o bom senso remeter-se o mesmo para o quadro geral dos credores e esperar-se morosíssimo processo falimentar. Por que esperar se serão pagos logo a seguir aos acidentados em serviço, preterindo todos os demais? Qual o prejuízo de ação prosseguir no Juízo especializado, indiscutivelmente mais rápido do que o falimentar por razões óbvias, se o síndico terá a mais ampla e total possibilidade de, nesse mesmo Juízo especializado, defender os interesses da Massa, dando as informações que desejar aos demais credores? E, afinal, a celeridade, a distribuição da Justiça de maneira mais rápida, desde que não haja cerceamento de defesa, não é uma das preocupações máximas da moderna processualística? Razões de ordem social porque, como já se disse, os empregados têm nos seus salários, na grande maioria das vezes, o seu normal e único meio de subsistência (SALGADO apud TEIXEIRA FILHO, 2009, p. 2015).

Existe ainda uma terceira corrente, eclética, que se posiciona no sentido de definir a competência para a execução de acordo com o momento dos atos de constrição, ou seja, se os bens do devedor forem penhorados antes da decretação da falência ou aprovação do plano de recuperação, eles não serão alcançáveis pelo juízo falimentar. Entretanto, se a penhora acontecer após a falência ou recuperação judicial, cessa a competência da Justiça do Trabalho com a liquidação do crédito, devendo o juiz da Vara do Trabalho expedir certidão de habilitação legal do crédito trabalhista junto ao juízo universal da falência (BEZERRA LEITE, 2009, p. 885).

Paulo Sérgio Basílio afirma nesse sentido que:

De fato, o permissivo constitucional do art. 114 no tocante a Justiça

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do Trabalho executar os seus julgados não implica em prorrogação da competência da Justiça do Trabalho quanto à habilitação dos créditos trabalhistas junto à massa falida. Se porventura a execução dos créditos trabalhistas já se iniciou em sede trabalhista deve a mesma prosseguir até o seu final, revertendo ao Juízo universal da falência o montante que eventualmente remanescer (BASÍLIO, 2009).

O que se conclui, é que não se chegou a um entendimento plenamente pacífico na doutrina, o que pode trazer insegurança às partes envolvidas neste tipo de relação jurídica. A jurisprudência, apesar de apresentar divergência quanto ao assunto, comumente apresenta que a competência da Justiça do Trabalho cessa com a liquidez do crédito, devendo este ser habilitado no juízo universal da falência, como observado nos julgados abaixo apresentados:

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. CRÉDITO TRA-BALHISTA. HABILITAÇÃO NO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. A competência da justiça do trabalho para processar e julgar as reclamações trabalhistas envolvendo empregadores em recuperação judicial cessa a partir da constituição do título judicial líquido. Dessa forma, uma vez apurado o crédito trabalhista, com a expedição da respec-tiva certidão, como ocorreu na hipótese em análise, incumbe ao credor habilitar-se perante o juízo da recuperação judicial, conforme dispõe o art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.101/2005. (TRT 08ª R.; AP 00598-2008-001-08-00-5; Quarta Turma; Rel. Des. Fed. Julianes Moraes das Chagas; DJEPA 22/05/2009; Pág. 47)

CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. VASP. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO APROVADO E HOMOLOGADO. EXECUÇÃO TRABALHISTA. SUSPENSÃO POR 180 DIAS. ART. 6º, CAPUT E PARÁGRAFOS DA LEI Nº 11.101/05. MANUTENÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA. INCOMPATIBILIDADE ENTRE O CUMPRIMENTO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO E A MANUTENÇÃO DE EXECUÇÕES INDIVIDUAIS. PRECEDENTE DO CASO VARIG. CC 61.272/RJ. CONFLITO PARCIALMENTE CONHECIDO. 1. A execução individual trabalhista e a recuperação judicial apresentam nítida incompatibilidade concreta, porque uma não pode ser executada sem prejuízo da outra. 2. A novel legislação busca a preservação da sociedade empresária e a manutenção da atividade econômica, em benefício da função social da empresa. 3.

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A aparente clareza do art. 6º, §§ 4º e 5º, da Lei nº 11.101/05 esconde uma questão de ordem prática: a incompatibilidade entre as várias execuções individuais e o cumprimento do plano de recuperação. 4. “A Lei nº 11.101, de 2005, não terá operacionalidade alguma se sua aplicação puder ser partilhada por juízes de direito e por juízes do trabalho. “ (CC 61.272/RJ, Segunda Seção, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 25.06.07). 5. Conflito parcialmente conhecido para declarar a competência do Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo. (Superior Tribunal de Justiça STJ; CC 73.380; Proc. 2006/0249940-3; SP; Segunda Seção; Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa; Julg. 28/11/2007; DJE 21/11/2008)

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO TRABALHISTA VERSUS RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Há conflito positivo de competência quando dois ou mais juízes entendem que o destino de determinado bem está subordinado às suas decisões; se o bem constrito na execução trabalhista dá suporte ao plano da recuperação judicial, prevalece o Juízo desta. Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. (Superior Tribunal de Justiça STJ; CC 72.661; Proc. 2006/0244241-1; SP; Segunda Seção; Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; Julg. 12/03/2008; DJE 16/10/2008)

Ressalte-se que o crédito trabalhista apurado na Justiça do Trabalho não está sujeito à impugnação no processo de habilitação perante o juízo de falência, já que a este não é atribuída competência para reformar sentença proferida na esfera trabalhista.

Sentença trabalhista com trânsito em julgado - impugnação do respectivo quantum - Inadmissibilidade - Coisa julgada - Sentença confirmada.

Tratando-se de crédito trabalhista reconhecido definitivamente pela Justiça do Trabalho, ao ser ele habilitado em falência não poderá sofrer impugnação alguma quanto ao seu valor (ALMEIDA, 2005).

Por todo o exposto, pode-se concluir que o instituto da recuperação judicial veio para suprir uma lacuna nos anseios da sociedade, não suprida mais pelo instituto da concordata.

Os fatores que levam uma empresa a entrar em estado de crise, sejam eles internos ou externos, podem ser menos significantes que sua relevância social, ou seja, da contribuição que traz para a sociedade, seja pelos produtos

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ou serviços que presta, cuja falta desencadearia insatisfação, seja pelos projetos sociais que realiza, como, por exemplo, o incentivo à sustentabilidade.

Logo, veio em hora certa a Lei que permite “uma segunda chance” a sociedade empresária ou empresário que cumprir com sua função social e os demais princípios decorrentes do artigo 47 da Lei 11.101/2005, e, obviamente, for viável de restabelecer-se no mercado.

Dentro desta seara, já demonstrada a desigualdade de forças entre os credores, conclui-se que nada além de justo foi o tratamento preferencial dado aos créditos trabalhistas inseridos em processo de recuperação judicial. Este deve ser liquidado e executado na Justiça do Trabalho, com a maior celeridade possível.

E finalmente, o artigo 54 da Nova Lei de Falência e Recuperação Judicial reflete, sim, a dualidade limite e privilégio, mas num sentido diferente do que se encontra na falência: solidifica a inquestionável preferência da garantia do crédito trabalhista nesse processo na medida em que impõe uma limitação à ampla liberdade do devedor de propor os prazos e condições de pagamento.

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REGULAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS NA CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

REGULATION OF THE FINANCIAL MARKETS IN THE DEMOCRATIC RULE OF LAW’S CONCRETIZATION

anDré FElipE portugal

Graduando em Direito – UNICURITBA. Estagiário

FErnanDo prEViDi motta

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (1996) e Mestrado em Direito Empresarial pela Universidade de Lisboa - FDUL (2005). Atualmente é professor adjunto de direito empresarial e da propriedade intelectual do Centro Universitário Curi-tiba - UNICURITIBA e titular do escritório de advocacia FERNANDO MOTTA ADVOGADOS, atuando principalmente nos seguintes temas: contratos, direito societário, propriedade intelectual, direito do consu-midor, direito da internet

SUMÁRIO: 1 Considerações iniciais – 2 As funções do estado na concretização da cons-tituição e do estado democrático de direito – 3 Liberalismo econômico, Crises financeiras (econômicas) e seus efeitos à concretização do estado democrático de direito – 4 Conside-rações finais – Referências

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo a análise crítica da atual situação verificada na regulação dos mercados financeiros, tema amplamente discutido nos debates jurídicos e econômicos mundiais. Procuraremos respostas às frequentes indagações a respeito do real papel do Estado – do Governo – e do Direito no âmbito dos referidos mercados. A partir de uma análise jurídica zetética, trataremos, pois, de questões como crises financeiras, econômicas e sociais, que serão analisadas à luz do Direito, principalmente, do Estado Democrático de Direito, de modo não comumente realizado na dogmática jurídica brasileira, com vistas à desmistificação de vários aspectos da teoria liberal, cujos adeptos exercem forte influência até o cenário atual. Assim, o artigo tratará de duas áreas extremamente complexas do conhecimento humano, quais sejam: o direito e a economia. Destarte, espera-se ter o trabalho alcançado o resultado da inovação jurídica, no que se refere ao tema da intevenção do Estado nos mercados financeiros.

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Palavras-chave: regulação, mercados financeiro e de capitais, teoria liberal, Estado Democrático de Direito, crises.

ABSTRACT

This article has as objective the critical analysis of the present situation verified on the financial market regulation, a largely discussed theme on world juridical and economic debates. We’ll search for answers to the common questions about the State – and Government – and Law’s real functions on those markets. From a zetetic juridical analysis, we’ll treat questions such as financial, economic and social crisis, that will be analyzed according to Law, mainly, and Democratic Rule of Law, not usually realized on Brazilian juridical dogmatic, aiming at demystifying various aspects of liberal theory, whose adherents have a strong influence up to the present scenario. Thus, the article will address two areas of highly complex human knowledge, namely: the right and the economy .By this mean, it is hoped to have reached the result of juridical innovation, referring to the State intervention on financial markets theme.

Keywords: regulation; financial markets; liberal theory; Democratic Rule of Law, crisis.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A incredulidade com relação ao sistema financeiro capitalista é crescente, especialmente nos Estados Unidos e no Continente Europeu. Tal ocorre em razão dos elevados índices de desemprego e do insignificante crescimento socioeconômico ora verificados, ambos derivados da recente crise econômica mundial – cujas raízes se encontram no próprio sistema financeiro. Acrescenta-se a isso o alto padrão de vida de que desfrutam os banqueiros, gestores e demais agentes fundantes da estrutura capitalista, fato que desperta um elevado senso de injustiça naqueles desprovidos das melhores condições econômicas e sociais. Todavia, ainda que se deva reconhecer as imperfeições capitalistas, sua continuidade se faz necessária (obviamente, com as devidas correções). Afinal, não fosse o criticado sistema, e seu incentivo à iniciativa privada, o progresso científico e socioeconômico jamais teria sido possível. Apenas a título de exemplo, pode-se fazer referência ao sistema de financiamento bancário e à abertura de capital, pelas empresas, os quais concretizam projetos empresariais que, antes, jamais sairiam do papel. É o capitalismo (desde que com o reconhecimento, por todo o plexo regulatório, de suas imperfeições) o sistema efetivamente garantidor dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito.

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A atual crise econômica (dantes, somente financeira) põe em evidência as consequências da absoluta liberalização no que se refere à atuação de tais agentes. Fica igualmente evidente, pois, a necessidade de alterações nos paradigmas regulatórios e, ademais, na própria interpretação dos sinais emitidos pela (e na) ordem socioeconômica. Assim sendo, visando-se a concretização da Constituição (e do Estado Democrático de Direito), cabe a legisladores e a intérpretes do Direito, antes mesmo de colocarem em prática as funções que lhe são inerentes – quais sejam, a legislação e a interpretação -, a compreensão da ordem do ser (e de todas as suas facetas, dentre as quais as questões socioeconômicas, de relevância extrema para a efetivação dos fins buscados pela democracia). Trata-se da transformação no procedimento hermenêutico, citada por Lenio Streck, ao que diz respeito à inversão de suas fases: não mais se interpreta para compreender; pelo contrário, compreende-se (a ordem fática – pré-jurídica) para interpretar – e legislar (STRECK, 2010). Em corroboração, Friedrich Muller afirma o caráter obrigatório – para a verdadeira concretização da Constituição - de considerações sobre o âmbito da norma (sobre o qual adentrariam questões sociais, econômicas, políticas, culturais, etc., que reflitam a realidade na qual o texto se insere) no processo hermenêutico (MULLER, 2009, p. 60).

De fato, em última instância, legislação e interpretação jurídicas devem ser orientadas à concretização do Estado Democrático de Direito. Aí reside a relevância de questões a respeito do âmbito da norma. Evidentemente, no que se refere aos mercados financeiros, a liberalização (em caráter absoluto) do capital não é a via de concretização deste cenário, ao contrário do que afirmavam seus mais relevantes defensores, tais quais Smith (2009, p. 15), Hayek (1987, p. 43), Mises (2010, p. 52), Rothbard (2012, p. 21) e, mais recentemente, Friedman (1985, p. 18). De um modo geral, os liberais atribuíam à iniciativa privada (e aos mercados, considerados racionais), exclusivamente, a responsabilidade pela maior eficiência socioeconômica possível; assim, em última análise, estaria garantida a efetividade democrática. Quanto aos mercados, deve-se ressaltar, tal eficiência também estaria garantida na precificação de produtos e serviços, através do resultado da lei da oferta e demanda, supostamente responsável por levar aos agentes de mercado todas as informações referentes a tais (produtos e serviços). No plano jurídico, dever-se-ia garantir conceitos de igualdade e liberdade formal (afinal, a lei deveria ser a mesma para todos). Por óbvio, qualquer atuação positiva do Estado no sentido de maximizar tais conceitos (e trazê-los para o âmbito material) e a eficiência econômica eram imediatamente refutados. Segundo Mises, inclusive, o fornecimento de tais aparatos ao Estado, inevitavelmente, proporcionaria a insurreição do Socialismo (MISES, 2010, p. 101).

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Diante da maciça intensificação das discussões jurídicas, econômicas, sociais e políticas a respeito da atuação do Estado no âmbito dos mercados (e, a propósito, das discussões sobre a função social, econômica, jurídica e política dos mercados financeiros), é imperiosa a análise aprofundada da verdadeira função do Estado (e do Direito) – também no âmbito dos mercados. Ademais, por serem evidentes as falhas do sistema capitalista (e dos próprios mercados financeiros, quando deixados ao seu próprio alvedrio), é interessante a exposição das reais causas das crises financeiras (que, no panorama atual, atingem o âmbito econômico com elevada facilidade) e de seus efeitos negativos ao Estado Democrático de Direito.

2 AS FUNÇÕES DO ESTADO NA CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E DO ES-TADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Na elaboração do trabalho no qual se baseia este artigo, demonstramos de forma detalhada a inviabilidade social (e jurídica) do absoluto liberalismo econômico. Ao mesmo tempo, expusemos a impraticabilidade das teorias socialista e marxista, seja por sua ineficiência econômica e social, seja pela extrema violação a direitos fundamentais que lhe fundamenta.

De se dizer, é nítida a necessidade de um Estado que garanta a livre iniciativa e promova o desenvolvimento de toda a Nação, não somente das classes mais favorecidas, como ocorre na implementação do liberalismo. É, portanto, imperiosa a atuação positiva do Estado, no intuito de garantir a todos os cidadãos direitos de subsistência, através da maior equiparação possível de oportunidades, mas – deve-se frisar - sem extinguir a ordem econômica capitalista.

Afinal, como enaltece Canotilho (2009, p. 19):

A articulação da socialidade com democraticidade torna-se, assim, clara: só há verdadeira democracia quando todos têm iguais possibilidades de participar do governo da polis. Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ignorância, analfabetismo e exclusão. A democracia só é um processo ou procedimento justo de participação política se existir uma justiça distributiva no plano dos bens sociais. A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõem, assim, uma base jusfundamental incontornável, que começa nos direitos fundamentais da pessoa e acaba nos direitos sociais.

A imprescindibilidade de se analisar os conceitos de liberdade e igualdade de modo mais amplo é defendida por Amartya Sen. Destarte, de acordo com o autor, não há como se restringir a análise de tais conceitos aos chamados procedimentos apropriados, como fazem os liberais, ao ignorarem a privação

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sistemática de oportunidades materiais, sofrida por algumas (várias) pessoas desfavorecidas (SEN, 2010, p. 32).

Sen analisa o desenvolvimento das nações tomando por base o nível de capacidade das pessoas, no sentido da possibilidade de concretização do tipo de vida desejado. Devem ser valorizadas, pois, as liberdades substantivas dos indivíduos. Para o autor, somente deste modo é possível atribuir às pessoas a condição de agente, com capacidade potencial de cuidar de si mesmas e influenciar o mundo, algo essencial para o desenvolvimento (SEN, 2010, p. 33) . Neste cenário, é considerado demasiado relevante o papel da política pública, sem ocultar, no entanto, a iniciativa privada.

Ora, seguindo a ótica inovadora de Sen, a análise do desenvolvimento de uma nação não deve considerar somente indicadores de cunho econômico, tais quais o Produto Interno Bruto. Estes são considerados parte integrante do processo, somente. É imperiosa a inclusão de indicadores dos níveis das supracitadas capacitações ao que diz respeito à generalidade da população, levando-se em conta a expectativa de vida, a disponibilidade de seguridade social, a qualidade e efetividade do serviço público (como saúde e educação) e os níveis de desemprego. Neste aspecto é que reside o verdadeiro desenvolvimento (SEN, 2010, p. 67). Aliás, por certo, o aumento da inclusão social, através de melhorias na prestação do serviço público (principalmente, a educação), o que, como é sabido, exige a participação do Estado, tem participação indireta no próprio desenvolvimento econômico da nação, através do aumento potencial da renda geral (SEN, 2010, p. 124).

Falamos, assim, de um Estado que enalteça as virtudes do capitalismo, como o sistema que melhor se adequa ao progresso socioeconômico geral, mas que reconheça as suas falhas - aliás, como ensina Carnellutti, a Economia, por ser naturalmente egoística, opõe-se à moralidade (CARNELLUTTI, 2010, p. 39) -, e, por isso, visando suprimi-las, determina a sua regulação, através da atuação positiva; um Estado que reconheça a relação inversamente proporcional entre desenvolvimento geral e privações de capacitações (liberdade e igualdade materiais), de acordo com Sen. Desta perspectiva é que surgiram algumas das mais relevantes limitações à autonomia individual, como, p. ex., a determinação do cumprimento da função social nos contratos, na atividade empresária e no exercício do direito de propriedade.

A crítica liberal à intervenção se fundamenta justamente na suposta tendência do Estado a se apropriar, de modo ilimitado, do poder que lhe é atribuído, restringindo sobremodo a liberdade dos cidadãos (FRIEDMAN, 1985, p. 105). De fato, haveria tal possibilidade, não fosse o estabelecimento de diretrizes constitucionais, fundadas em direitos fundamentais, invioláveis por natureza, que materializam e validam o próprio conceito de Direito. Ou

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seja, ainda que não houvesse a positivação dos ditos preceitos, normas desta estirpe não poderiam ser validadas. Desse modo, fazendo-se, é verdade, uma análise não positivista, de acordo com Alexy e Radbruch, não há que se falar em Direito (quanto menos, em Direito válido) quando a norma ou o sistema jurídico forem manifestamente injustos, a ponto de provocar a supracitada restrição a direitos fundamentais (ALEXY, 2011, p. 34). Deve-se, portanto, partir de uma análise jurídica zetética – ao lado de (mas não limitada a) disposições jurídicas dogmáticas (afinal, não se pode perder de vista o poder diretivo do Direito) -, ou seja, é necessário que seja considerada a possibilidade de alteração de premissas básicas em decorrência de modificações na realidade fática (FERRAZ JR., 2012, p. 20). Na mesma linha se situa a exposição de Dworkin a respeito da consubstanciação de direitos (dos cidadãos) contra o Estado, território impenetrável e ponto de extrema relevância na efetiva concretização do Estado Democrático de Direito (DWORKIN, 2010, p. 284). Daí se conclui pela invalidade do argumento liberal, por falta de uma análise coerente do conceito de Direito e da limitação constitucional à legislação infraconstitucional.

Neste sentido, é interessante o ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet, a respeito da proibição ao retrocesso social nas alterações ou revogações de dispositivos constitucionais e legais, quando a situação daí decorrente exclua o núcleo essencial do direito anteriormente garantido. Visa-se, com a adoção da referida teoria, a maior garantia dos direitos fundamentais e sociais e da segurança jurídica (SARLET, 2010, p. 74).

A intervenção estatal, portanto, deve se limitar ao que lhe foi prescrito constitucionalmente. Por certo, tais limitações englobam, em uma economia descentralizada, o direito à iniciativa privada, corolário da ordem econômica capitalista. Assim, reconhece-se a essencialidade socioeconômica do setor privado e da empresa, ao mesmo tempo em que é admitida a impraticabilidade do Estado centralizador e responsável por todas as ações dantes incumbidas àqueles. Aí reside, pois, a grande diferença entre o Estado Social (Gerencial) e o Estado Socialista.

De fato, o conceito de Estado Social é variável na doutrina nacional. André Ramos Tavares, Eros Roberto Grau, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Paulo Bonavides o definem atribuindo-lhe essencial relevância à iniciativa privada e à economia capitalista. José Afonso da Silva (DA SILVA, 2010, p. 789) e Pinto Ferreira (FERREIRA, 2001, p. 84), no entanto, partem para uma seara mais voltada para o estatismo e para o socialismo, respectivamente.

André Ramos Tavares propõe o modelo de Estado Gerencial, em contrariedade ao chamado Estado Burocrático, este caracterizado pela intensa intervenção, em todo e qualquer ramo do mercado, com vistas a corrigir os equívocos gerados pelo setor privado. Destarte, deve ser reconhecida a sujeição

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estatal às mesmas falhas encontradas no âmbito privado, no que se refere ao planejamento econômico - acrescente-se a isto a possibilidade do Estado sucumbir à corrupção e ao clientelismo. Portanto, deve a atuação estatal direta ser diminuída; passa-se de um Estado administrador para um Estado fiscalizador (TAVARES, 2011, p. 323 e 324).

Para Paulo Bonavides, o Estado Social engloba relevantes traços do socialismo, embora (somente) no que se refere ao reconhecimento e à proteção de direitos à classe proletária, algo que não se via no Estado Liberal. Todavia, daquele se difere em um ponto específico: “é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia” (BONAVIDES, 2011, p. 184) Propõe, então, uma conciliação entre o individualismo liberal e o reconhecimento dos direitos do proletariado. Ao Estado, pois, cabe interferir, via de regra, indiretamente no âmbito econômico (BONAVIDES, 2011, p. 186).

Na mesma linha se situa a lição de Eros Grau, que enfatiza a relevância da atuação positiva do Estado à própria continuidade do sistema capitalista (GRAU, 2009, p. 27).

O Direito, neste sentido, é utilizado pelo sistema capitalista como elemento “domesticador” de seus determinismos econômicos; assim é que ocorre a estruturação do direito posto pelo Estado (capitalista) moderno (GRAU, 2007, p. 36). Deve-se considerar, a esse respeito, que “o neoliberalismo é fundamentalmente anti-social, gerando consequências que unicamente as unanimidades cegas não reconhecem” (GRAU, 2007, p. 50).

Consoante os ensinamentos do autor, a passagem do sistema liberal para o intervencionista traz consigo a modificação do papel das constituintes, que não mais atuam somente na simples positivação da ordem política; as falhas do liberalismo tornam imperiosa a atuação dirigente do Direito e, por conseguinte, das Constituições. Assim, quando ao Estado passa a ser incumbida a promoção de políticas públicas no sentido de defesa dos direitos fundamentais inerentes à totalidade dos cidadãos, altera-se a tarefa do Direito e da Constituição. No âmbito da ordem econômica, tal se concretiza com a inclusão de dispositivos próprios (referentes, pois, à ordem econômica) na constituinte, definindo princípios e diretrizes a serem observadas pelo legislador e pela jurisprudência, com vistas à institucionalização e ao aprimoramento da ordem verificada no mundo do ser, atribuindo-lhe, ademais, conteúdo de justiça social (GRAU, 2007, p. 72) Aliás, não é diverso o ensinamento de Konrad Hesse, ao asseverar que a institucionalização do mundo do ser, por estar imbuído de notória pretensão à eficácia (caracterização do dever ser), confere o caráter normativo e dirigente da Constituição (HESSE, 1991, p. 16).

Canotilho, ademais das considerações até aqui expostas, enfatiza a exigibilidade de quatro requisitos para a constituição e continuidade do Estado

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Social, quais sejam: (i) adequação das provisões financeiras, por parte dos cofres públicos, através de um sistema fiscal eficiente e capaz de exercer coação tributária; (ii) orientação da despesa pública para o financiamento dos serviços sociais e para investimentos produtivos; (iii) déficit público controlado, a partir do atingimento de um equilíbrio no orçamento público, evitando-se, assim, altos índices de inflação e variações exageradas no valor da moeda e; (iv) rendimento nacional em taxa de crescimento elevado (CANOTILHO, 2010, p. 21).

A distribuição igualitária de riqueza, como expusemos pormenorizadamente no trabalho que fundamenta este artigo, mostra-se totalmente ineficiente no sentido de eventuais melhorias nas condições dos proletários e na concretização do progresso socioeconômico da Nação. Ao mesmo tempo, um regime estatista ou socialista restringiria sobremaneira a iniciativa privada e o direito de propriedade, princípios basilares em qualquer constituinte democrática.

Outra crítica derradeiramente feita pelos liberais à atuação positiva do Estado se refere ao aumento do déficit público, que, se não efetuado de maneira calculada, pode chegar a níveis insustentáveis. De fato, sem um controle rígido do déficit fiscal, isso pode ocorrer. Todavia, como se observa na análise da teoria de Keynes, através de políticas contracíclicas (analisaremos o conceito adiante), é possível usá-lo e mantê-lo em adequação ao permitido, de modo a se combater crises econômicas - através do aquecimento da demanda geral – e, assim, a se garantir a efetivação do Estado Democrático de Direito.

Colocamo-nos, pois, favoráveis a um modelo de Estado que intervenha, primordialmente, de modo indireto na economia, nos moldes propostos por Bonavides, Ferreira Filho e Tavares, através da regulação normativa do mercado, com vistas ao desenvolvimento socioeconômico geral, utilizando-se de técnicas de incentivo, fiscalização e punição dos agentes econômicos, sempre respeitando os limites atinentes às esferas constitucional e legal. Assim sendo, pela busca da justiça social, cabe ao Estado prevenir crises econômicas, fixar salários mínimos, estabelecer as diretrizes da previdência social, etc. A intervenção direta (tenha-se, aqui, a exploração de atividade econômica ou de prestação de serviço público pelo Estado), por seu turno, somente deve ocorrer nos casos previstos em lei. Aliás, visando garantir a própria ordem econômica capitalista, a própria Constituinte de 1988 previu a excepcionalidade de tal medida (TAVARES, 2009, p. 276). Assim sendo, somente pode o Estado intervir diretamente na economia nos casos de relevante interesse público e de segurança nacional.

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3 LIBERALISMO ECONÔMICO, CRISES FINANCEIRAS (ECONÔMICAS) E SEUS EFEITOS À CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Diante do que expusemos, fica comprovado o viés social da exigibilidade da atuação positiva do Estado no âmbito dos mercados. Neste tópico, nos atentaremos à análise da relação entre o Estado, o Direito e os mercados financeiros. Serão, pois, abordados aspectos ainda mais específicos no que se refere à regulação dos mercados, conceituada como a limitação à atuação dos agentes econômicos, através de imposições positivas e negativas, o que inexiste em um mercado voltado às égides exclusivamente liberais (EIZIRIK, 2011, p. 15). Do mesmo modo, é possível fazer referência à regulação, no aspecto ora analisado, como o conjunto de atos praticados (e textos editados) pelo Estado, com vistas à proteção dos agentes ali envolvidos, ao desenvolvimento de tais mercados (e, consequentemente, o desenvolvimento socioeconômico do país) e, em última – e primordial - análise, à concretização do Estado Democrático de Direito.

Cabe-nos tratar dos fundamentos econômicos da regulação, e de toda a sua influência na sociedade. Iniciaremos com a desmistificação da racionalidade dos mercados, aspecto principal da teoria (liberal) cuja influência se faz determinante na eclosão de crises econômicas, para, então, passarmos aos outros aspectos que justificam a atuação estatal (e do Direito) nestes mercados, como as assimetrias informacionais e as externalidades negativas.

A doutrina liberal pautava-se em premissas positivas a respeito (i) da eficiência do modus operandi dos mercados e (ii) da racionalidade de seus agentes.

As evidências empíricas, porém, demonstram a inviabilidade e os equívocos do liberalismo. Assim foi em 1929, na Grande Depressão, quando a irracionalidade da quase totalidade de agentes do mercado comprometeu todo o desenvolvimento econômico americano daquela época. Caía por terra, desse modo, a mística da mão invisível, de Adam Smith, e se iniciava, com Keynes, o reconhecimento da exigibilidade da interferência estatal no mercado. Assim também foi em 2008, na eclosão da crise das hipotecas subprime, nos Estados Unidos, e o é na recente crise fiscal europeia, em que a excessiva relevância atribuída ao capitalismo financeiro, fato gerador de sua excessiva desregulação, impede que a economia de países como Portugal, Grécia, Espanha e Itália volte ao ritmo normal, com o eminente sacrifício de direitos sociais, tudo em nome da austeridade financeira. Portanto, é interessante que façamos a análise detalhada da relação da irracionalidade e ineficiência dos mercados com as referidas e com as futuras crises financeiras que obviamente advirão, sob pena de sermos acusados da utilização de argumentos vazios na crítica do liberalismo.

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A Grande Depressão, em 1929, pôs em cheque toda a cega credibilidade depositada no laissez-faire, oriunda, como se viu, da Economia Clássica. Ficava, pois, latente a impossibilidade de se deixar os mercados em total liberdade, seguindo seus próprios caminhos, sem qualquer interferência do Estado. Foi o que Keynes, em Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, expôs com inegável genialidade. Partindo de uma análise revolucionária do desemprego, o autor justificou a necessidade de atuação do Estado, como aliado da iniciativa privada, para a própria continuidade do sistema capitalista.

Keynes percebeu o que a teoria clássica ignorou por todos os séculos em que dominou o mundo acadêmico: a existência do desemprego involuntário, não desejado, o que, pode-se dizer, tem relação de inversa proporcionalidade com os níveis de expectativa do mercado em geral. Em outras palavras, o volume de emprego é afetado pela motivação do empresário no sentido de buscar a maximização do lucro e pelas (daí decorrentes) expectativas relativas à demanda agregada sobre seu produto. Esta, por certo, reflete os níveis de consumo, poupança e investimento da população, o que, por seu turno, sofre influência de quatro variáveis, quais sejam: (i) renda agregada, (ii) circunstâncias objetivas que acompanham a renda, como taxa de juros e variação nominal nos valores dos bens das classes proprietárias de riquezas, (iii) necessidades subjetivas dos indivíduos e, por fim, (iv) o modo de distribuição de riquezas entre eles (KEYNES, 1982, p. 128).

Daí se conclui que a expectativa dos empresários, no que se refere ao comportamento do mercado em determinado período futuro, determina os níveis gerais de investimento; ademais, destes depende o volume de emprego e, consequentemente, de consumo, completando o ciclo.

Keynes percebeu, contudo, que o desenvolvimento dos mercados financeiros alterou a origem da formação de expectativas sobre o mercado, com a intensa participação de investidores e especuladores. Não eram mais os empresários os principais responsáveis pela alteração nos índices de expectativa nos negócios, pois os preços das ações das empresas, fundamentais para o procedimento de levantamento de capital e, consequentemente, de novos investimentos, dependia da avaliação dos investidores (e especuladores) quanto à sua movimentação futura (KEYNES, 1982, p. 128).

A maior divergência entre Keynes e a teoria liberal, todavia, ocorre na qualificação das expectativas advindas dos agentes do mercado, sejam eles empreendedores, investidores ou especuladores. De acordo com os liberais, estes agentes, através do conhecimento, transmitem para suas expectativas a racionalidade que, supostamente, lhes é inerente a todo tempo. Para Keynes (KEYNES, 1982, p. 125), porém, é evidente a precariedade da base do (desprezível) conhecimento sobre o qual os agentes econômicos realizam os cálculos das rendas esperadas, decorrentes de investimentos.

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As variações extremas nas expectativas e, por conseguinte, na confiança dos agentes de mercado constituíam o que Keynes chamou de Espírito Animal. Destarte, comprova-se a existência de ciclos de prosperidade e depressão na economia capitalista, responsáveis pela alternância entre períodos de afrouxamento e de escassez de crédito, estas responsáveis pelas frequentes e intensas corridas bancárias observadas na História Econômica. A bem da verdade, de acordo com Kenneth Arrow, “a história do capitalismo é marcada por repetidas quebras no sistema financeiro, situações nas quais os mercados para empréstimos desaparecem por longos períodos de tempo” (ARROW, 2010, p. 178).

Na prosperidade, os investimentos privados cresceriam a ponto de desobrigar qualquer investimento público; nas depressões, o investimento público deveria suprir a falta de investimento privado, estimulando, assim, a demanda agregada. Nesta linha, vale observar a transcrição da visão keynesiana, segundo a qual, em tais ciclos, o que se verifica na análise corriqueira de investimentos é (KEYNES, 1982, p. 128):

uma avaliação convencional, fruto da psicologia de massa de grande numero de indivíduos ignorantes, esta sujeita a modificações violentas em consequência de repentinas mudanças na opinião suscitada por certos fatores que na realidade pouco significam para a renda provável, já que essa avaliação carece de raízes profundas que permitam sua sustentação. Em períodos anormais em particular, quando a hipótese de uma continuação indefinida do estado atual dos negócios é menos plausível do que usualmente, mesmo que não existam motivos concretos para prever determinada mudança, o mercado estará sujeito a ondas de sentimentos otimistas ou pessimistas, que são pouco razoáveis e ainda assim legítimos na ausência de uma base solida para cálculos satisfatórios.

Ocorre que, em alguns casos, os ciclos de prosperidade, aliados à especulação financeira, se expandem a níveis insustentáveis. Formam-se, assim, as bolhas especulativas, com a consequente distorção do papel dos mercados financeiros. Os prejuízos daí decorrentes podem envolver não somente os mercados financeiros, mas a Economia como um todo (CASSIDY, 2011, p. 91) - aliás, foi o que ocorreu em 1929 e em 2008. É interessante destacar a doutrina de George Soros, no que se refere ao reconhecimento da falibilidade das expectativas dos agentes de mercado, e a participação ativa destas no panorama do real acontecimento dos fatos, lança mão do conceito de reflexividade. Pois, em razão do papel reflexivo desta função participativa dos agentes no meio em que se veem inseridos, oriunda do processo de decisão (este, por certo, baseado nas expectativas, no mais das vezes equivocadas,

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quanto aos fatos futuros, por ser derivado de informações incompletas), pode-se afirmar que as falhas humanas são inerentes ao sistema de mercado (SOROS, 1999, p. 41). A peculiaridade inerente aos eventos econômicos, diz Soros, refere-se à participação de agentes, pensantes, capazes de alterar as regras dos sistemas socioeconômicos, justamente em razão de suas próprias interpretações a respeito de tais regras (SOROS, 1999, p. 68).

Ora, por demais evidente, a totalidade de agentes econômicos (antes, seres humanos) baseia suas decisões na confiança, em crenças sobre a rentabilidade futura do ativo selecionado. Igualmente evidente, o crente por vezes desconta ou descarta certas informações, no único objetivo de alimentar o conteúdo de “verdade” da crença. De acordo com Akerlof e Shiller (2009, p. 13), o agente “talvez nem processe as informações disponíveis, em termos racionais; e, mesmo que as processe racionalmente, ainda assim pode não agir racionalmente. Nesse caso, age de acordo com o que crê ser verdadeiro”.

Em momentos de euforia do mercado, o que se vê é a formação de uma massa completamente irracional, que age baseada em crenças igualmente insustentáveis. Neste sentido, não há como não fazer referência a Le Bon, segundo o qual tal situação (a psicologia de massa) é fruto da perda da personalidade consciente dos agentes, os quais, agindo como verdadeiros autômatos cuja vontade se tornara impotente para guia-los, passam a obedecer todas as sugestões dos “hipnotizadores” (FREUD, 2011, p. 23), e a Freud, para quem (FREUD, 2011, p. 27):

A massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela. Pensa em imagens que evocam umas às outras associativamente, como no indivíduo em estado de livre devaneio, e que não têm sua coincidência com a realidade medida por uma instância razoável. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza. Ela vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem. Inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa.

É válido ressaltar, as bolhas especulativas (oriundas da psicologia de massa) são constituídas em cenários de afrouxamento da regulação do mercado. São, pois, consequências da crença na possibilidade de se deixa-lo à própria sorte, como querem os liberais. Para Avelãs Nunes (2012, p. 46), inclusive, não há como aliviar “a pesada responsabilidade desta política neoliberal de fomento

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e garantia das liberdades do capital financeiro no desencadear da grave crise financeira que anunciou e desencadeou a crise económica profunda e global que hoje se vive no mundo capitalista”.

De se dizer, a especulação financeira, por si só, não representa algo ruim para a Economia, como parece querer afirmar Avelãs Nunes. Afinal, não fossem os especuladores, não haveria liquidez suficiente nos mercados financeiros; não fosse a liquidez, o mercado primário de títulos e valores mobiliários perderia a razão de ser, e o financiamento através destes mercados restaria, por óbvio, inviabilizado. O esgotamento do mercado secundário de títulos públicos se traduziria no aumento da dificuldade de financiamento dos países; por certo, com relação aos valores mobiliários, o mesmo ocorreria com as empresas, que não mais teriam a abertura de capital como uma alternativa interessante e rentável de levantamento de fundos. Portanto, a regulação não deve visar o extermínio do mercado (mesmo o especulativo), não obstante pretenda impor limitações à liberdade dos agentes, seja com relação às condutas, seja com relação ao nível de acesso ao mercado, seja quanto ao índice do exercício da atividade econômica (EIZIRIK, 2011, p. 16).

Há que se reconhecer, todavia, a especulação não é (ao menos, não deve ser) o fundamento de existência dos mercados financeiros. Estes, por certo, foram criados como meios de alocação de risco e como novas opções de financiamento.

Através da especulação, a liberdade econômica, em sua forma absoluta, inevitavelmente distorce o fim buscado pelos mercados, conforme salientamos acima. Destarte, tomam conta do mercado expectativas de curto prazo dos investidores (vale dizer, nas bolhas, quase todos se transformam em especuladores), em razão do reconhecimento, pelos agentes, da alta probabilidade de erro em tentativas de previsões que envolvam prazos maiores (KEYNES, 1982, p. 130 e AVELÃS NUNES, 2012, p. 41).

Como se verificou acima, a caracterização de expectativas de curto prazo não pode ser considerada, por si só, prejudicial ao mercado; pois, até certo nível, a especulação é aceitável, e, até mesmo, benéfica.

Porém, quando a psicologia de massa toma conta das finanças; quando a quase totalidade de pessoas passa a acreditar não mais nos fundamentos dos títulos e valores mobiliários pretendidos, mas em sua potencial valorização dali alguns dias; quando o fim real buscado pelos mercados é manifestamente distorcido, e se está, portanto, diante de uma bolha especulativa, a situação (e seus efeitos) foge do controle dos próprios agentes do mercado.

No mundo da especulação excessiva, afirma Keynes (1982, p. 129):

O investidor profissional sente-se forçado a estar alerta para antecipar essas variações eminentes nas noticias ou na atmosfera que, como demonstra

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a experiência, são as que exercem maior influencia sobre a psicologia coletiva do mercado. (...) O objetivo real e secreto dos investimentos mais habilmente efetuados em nossos dias é ‘sair disparado na frente’ como se diz coloquialmente, estimular a multidão e transferir adiante a moeda falsa ou em depreciação.Assim sendo, conclui:

Esta luta de esperteza para prever com alguns meses de antecedência as bases da avaliação convencional, muito mais do que a renda provável de um investimento durante anos, nem sequer exige que haja idiotas no publico para encher a pança dos profissionais: a partida pode ser jogada entre estes mesmos. Também não é necessário que alguns continuem acreditando, ingenuamente, que a base convencional de avaliação tenha qualquer validez real a longo prazo. Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o anel ao vizinho antes de o jogo acabar, agarrar o outro para ser por este substituído, encontrar uma cadeira vaga antes que a música pare. Estes passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está dando voltas a esmo ou que, quando a música para, alguém ficará sem assento.

Não restam dúvidas a respeito da influência da originalidade da teoria keynesiana, quanto à percepção e descrição dos ciclos econômicos, na discussão acerca da interferência do Estado no âmbito dos mercados financeiros. Em outro trecho singular de sua Teoria Geral, o autor dita as especificidades presentes nos estouros de bolhas especulativas (KEYNES, 1982, p. 245):

As últimas etapas da expansão são caracterizadas por expectativas otimistas relativas ao rendimento futuro dos bens de capital suficientemente fortes para compensar a abundância crescente desses bens, a alta de seus custos de produção e, provavelmente, também, a alta da taxa de juros. É próprio da natureza dos mercados financeiros organizados, sob a influencia de compradores em sua maioria ignorantes do que compram e de especuladores mais interessados nas previsões da próxima mudança de opinião do mercado do que numa estimativa racional do futuro rendimento dos bens de capital, que, quando a decepção advém a um desses mercados otimistas em demasia e superabastecidos, as cotações desçam em movimento súbito e mesmo catastrófico.Akerlof e Shiller apontam para três fontes de feedback entre mercados

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de ativos e economia real. A primeira delas, denominada efeito riqueza sobre o consumo, reflete o aumento do consumo, pelos investidores, quando os preços de seus investimentos passam por alguma tendência altista. A segunda fonte de feedback se dá no plano dos investimentos empresariais: há, neste ponto, uma relação diretamente proporcional entre os valores dos ativos e os níveis de despesas de capital, como com novos equipamentos, fábricas, etc. Deve-se ressaltar, a desvalorização dos ativos exerce influência nos níveis de inadimplência – afinal, quando os ativos se desvalorizam, as dívidas não são pagas -, o que, obviamente, é sentido pelas instituições financeiras, fontes naturais de financiamento. As consequências deste ciclo não são difíceis de se imaginar: queda na confiança geral do mercado e acentuação na desvalorização dos ativos, seguidas de diminuições nos níveis de investimento e de aumentos nos níveis de desemprego e desigualdade social. O terceiro feedback, por fim, ocorre nos índices de alavancagem, referente aos valores permitidos em empréstimos bancários, em ciclos de prosperidade e depressão: na prosperidade, com o aumento do preço dos ativos, ocorre o aumento do capital das instituições financeiras em relação às exigências mínimas regulatórias, o que as permite comprar ainda mais ativos e, assim, estimular a alta dos preços; na depressão, pelo contrário, a desvalorização dos ativos pode exigir que tais instituições passem para o lado dos vendedores, intensificando a queda geral de seus respectivos preços (AKERLOF; SHILLER, 2009, p. 145, 146 e 147).

Neste sentido, ainda mais pormenorizadamente, postulam Akerlof e Shiller (2009, p. XX):

As teorias econômicas convencionais desprezam as mudanças nos padrões de pensamento e nas maneiras de fazer negócios, que geram ou acirram crises; ignoram até a perda de confiança e de segurança; excluem o senso de iniquidade que limita a flexibilidade dos salários e dos preços, o que talvez contribuísse para estabilizar a economia; menosprezam o papel da corrupção e da venda de maus produtos durante os surtos de prosperidade, assim como o impacto da revelação dessas falhas quando as bolhas estouram; negligenciam a influência das histórias que interpretam a economia.

Na medida em que os ciclos no mercado financeiro afetam o nível geral de investimentos, é certo que o fazem com o volume de emprego. Ademais, quando boa parte das pessoas se vê envolvida com o capital da bolha especulativa, seu inevitável estouro adquire relevância suficiente para atingir todos os setores da economia, justamente em razão dos inúmeros prejuízos pessoais e falências empresariais daí decorrentes.

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Com efeito, conclui Keynes sobre a impraticabilidade do livre mercado (laissez-faire), em seu modo absoluto, nas finanças. Não se pode, ademais, “com segurança, abandonar à iniciativa privada o cuidado de regular o volume corrente de investimento” (KEYNES, 1982, p. 247), em corroboração ao que expõem Akerlof e Shiller, segundo os quais, além da imprescindibilidade da regulação dos mercados financeiros devem ser projetadas políticas ponderadas de seguro financeiro, como proteção ao consumidor dos produtos fornecidos naquele âmbito (AKERLOF; SHILLER, 2009, p. 159). Avelãs Nunes vai além, afirmando ser a recente crise própria do neoliberalismo e da financeirização da economia (e dos efeitos daí decorrentes, tais quais a plena liberdade de circulação de capitais – à escala mundial -, a desregulamentação do setor financeiro, o livro processo de inovação financeira – principalmente através de novos instrumentos derivativos -, a prioridade da estabilidade de preços, em prejuízo do pleno emprego, a distribuição de bônus alarmantes aos lucros de curto prazo, trazendo o incentivo à assunção impensada de riscos, etc.) (AVELÃS NUNES, 2012, p. 54).

A teoria econômica clássica atribui à eficiência dos mercados, e à já tratada racionalidade, conteúdo de dogma e força de obviedade. Dizem os liberais (vide Hayek), o mercado, formado por agentes que agem racionalmente e municiados de todas as informações disponíveis, atinge, sempre, os resultados mais favoráveis à sociedade. Ademais, a extrema impessoalidade que lhe é peculiar, supõe-se, impede sua manipulação; assim sendo, afirma-se, os agentes, habituados com um sistema de concorrência perfeita, são obrigados a fornecer os produtos e serviços ao menor preço possível, sob pena de serem excluídos daquele âmbito de atuação.

Todavia, a suposta eficiência dos mercados, mais ainda dos mercados financeiros, é tão falaciosa quanto a racionalidade de seus agentes.

O âmbito dos mercados financeiros é dominado pela incerteza; esta, por sua vez, é pautada pela aversão natural dos agentes ao risco. Assim, surgem os diversos meios de alocação de riscos, pelo próprio mercado, como se vê nos contratos derivativos, de seguros, de securitização de recebíveis, etc., causadores de vários dos últimos ciclos de prosperidade na especulação. Em decorrência das falhas inerentes aos mecanismos de alocação a mercado, passou-se a reconhecer a exigibilidade de se adotá-la por outras formas: as leis (YAZBEK, 2009, p. 20).

Feitas tais considerações, cumpre-nos passar à análise das falhas de mercado que comprometem o argumento da eficiência, atribuindo-lhe o caráter de mera falácia. Afinal, consoante ensina Vital Moreira, a economia de mercado é, antes de tudo, um produto jurídico-institucional; a (natural) “mão invisível” carece da mão visível da regulação estatal. (MOREIRA; LEITÃO MARQUES, 2003, p. 174).

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Trataremos, assim, da questão das (i) assimetrias informacionais entre os variados agentes e das (ii) externalidades negativas oriundas de determinados atos no mercado. De fato, os mercados apresentam uma terceira falha, a concentração do poder, que consiste na formação de oligopólios, aspecto amplamente reconhecido por Galbraith (GALBRAITH, 2008, p. 37), mas que é devidamente regulamentado pelos órgãos que definem as diretrizes para o Direito Concorrencial, que, apesar de extremamente relevante, foge do tema do presente trabalho.

As assimetrias nas informações do mercado são derivadas da desigualdade e dos métodos de sua distribuição (ARROW, 2010, p. 182). De fato, cada agente é provido de uma rede peculiar de informações (ademais, cada agente interpreta, de acordo com seu conhecimento a respeito de teorias e fatos, as informações que lhes são fornecidas). Na percepção deste nicho, surgem agentes privados encarregados de transmitir (vender) ao mercado informações, sobre (a qualidade de) títulos e valores mobiliários.

Pode-se citar como exemplo de mercado próprio de fornecimento de informações ao mercado o das agências de rating, dominado por Standard & Poors, Moody’s e Fitch, às quais se imputa boa parte da responsabilidade pela crise das hipotecas subprime (AVELÃS NUNES, 2012, p. 46). Vale dizer, tais agências são pagas por seus pareceres a respeito das condições creditícias de países e empresas, e, em 2008, classificaram com o tão ambicionado “triplo A” (a nota de crédito mais alta entre todas, que, supõe-se, garante a segurança do investimento aplicado naquele título ou valor mobiliário) os créditos lastreados nas referidas dívidas hipotecárias. Todos conhecem as consequências que daí advieram.

Das evidências empíricas, pois, se pode confirmar a tendência à manipulação das informações, caso o mercado seja deixado ao seu próprio alvedrio.

A questão das assimetrias informacionais, além do que se discutiu, deve ser analisada com fulcro na geração de quatro efeitos potenciais que inevitavelmente são originados da desregulação dos mercados, quais sejam: a relação principal-agent, o moral hazard, a seleção adversa e a sinalização (YAZBEK, 2009, p. 40).

A relação principal-agent é verificada nos casos em que são outorgados poderes a determinados agentes para a defesa os interesses do principal, mais comumente, alguma instituição (uma sociedade anônima aberta, por exemplo). Eventuais conflitos de interesses podem surgir desta relação, principalmente quando benefícios de cunho financeiro podem vir a ser auferidos pelo agente, que, já num primeiro momento, toma posse das informações relevantes. Assim, surgem estímulos ao agente para agir em interesse próprio, em prejuízo dos interesses do principal (YAZBEK, 2009, p. 41).

Por sua vez, constitui-se o moral hazard (risco moral), aspecto comumente tratado pelo Direito Civil, com relação aos contratos de seguro, nas relações

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jurídicas em que não seja possível a uma das partes fiscalizar as ações da outra (YAZBEK, 2009, p. 40); deve-se dizer, no exemplo dos contratos de seguro, a alocação de risco financeiro para a seguradora, mediante o pagamento de um prêmio, supostamente induz o segurado a atos de negligência ou imprudência, quanto ao objeto do contrato de seguro.

A seleção adversa, por sua vez, é verificada nos casos em que o principal não dispõe de toda a informação relevante a respeito daquele com quem irá contratar. Há, assim, um estímulo do contratado para se beneficiar de tal situação; ao mesmo tempo, o contratante, sabendo deste estímulo, procura garantias, oferta preços mais baixos ou, simplesmente, deixa de contratar. (YAZBEK, 2009, p. 40).

Por fim, trataremos do problema da sinalização, traduzida na transmissão indireta de informações, através de determinados atos (como a compra ou venda de determinados valores mobiliários, por exemplo) caracterizada em situações nas quais se presuma a posse de informações privilegiadas por determinado agente. Assim, podem surgir oportunidades para benefícios dos mais diversos para os agentes possuidores das informações, através da possibilidade de direcionamento do comportamento de terceiros e, até mesmo, a manipulação de mercado (YAZBEK, 2009, p. 121).

As externalidades, por seu turno, podem ser definidas como o efeito externo, a terceiros, proporcionado por relações produtivas. Assim, quando determinado ato oriundo de relações do mercado tem seus efeitos ampliados para pessoas que delas não participaram, a situação é caracterizada. As externalidades, de se ressaltar, podem ser positivas (como o desenvolvimento socioeconômico proporcionado pela construção de indústrias em determinada cidade) ou negativas (vide a poluição ambiental, gerada por fábricas que despejam resíduos em rios, e, na seara dos mercados financeiros, o contágio sistêmico decorrente de crises financeiras, sobre o quê falaremos adiante). Estas últimas, quando verificadas no mercado, são responsáveis por intensos custos sociais e, por isso, justificantes de sua regulação.

É evidente que, se deixados em absoluta liberdade, os mercados, na incessante busca pelo lucro, obtêm o aval para a prática de atos sem qualquer eficiência social. Obviamente, como acima expusemos, não se deve eliminar a liberdade privada e seu consequente fim lucrativo; entretanto, não se deve permitir que, em nome do interesse privado, seja anulado o interesse público.

Assim, quando se tornam elevados os custos sociais decorrentes de relações privadas, deve haver a repressão estatal, através de dispositivos legais que punam condutas através de multas, por exemplo; àqueles que reduzirem ou eliminarem os referidos custos, vale dizer, faz-se interessante o fornecimento de subsídios, através de reduções ou isenções tributárias, por exemplo.

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Deve-se dizer, a eficiência social, e a redução das externalidades negativas, somente ocorre quando os custos do descumprimento das normas são inevitavelmente maiores do que os inerentes ao cumprimento; assim, as multas devem ser expressivas, tais quais os subsídios.

No sistema financeiro, como se falou acima, as externalidades passaram a surgir com a centralização das instituições financeiras no âmbito econômico e com a complexa cadeia de interdependência entre tais. Assim, riscos de liquidez em determinada instituição podem afetar os mercados interbancário e bancário, considerando-se o risco de corridas bancárias decorrentes de situações de incerteza quanto à sua solvabilidade. Ademais disto, na atual Economia “financeirizada”, a exposição de instituições financeiras ao risco oriundo de ativos com volatilidade elevada pode ter consequências que ultrapassam as fronteiras das relações privadas; em situações de instabilidade financeira, como no estouro de bolhas especulativas, tema abordado anteriormente, tal cenário não é incomum.

O rápido e gradual desenvolvimento dos mercados financeiros e a consequente globalização das relações econômicas, frutos da política neoliberal aplicada em quase todo o sistema financeiro mundial, trouxeram consigo a inevitável sistematização dos riscos dali originados. Com efeito, em outros termos, através da financeirização da Economia (fenômeno que denota a centralização do papel do mercado financeiro), os riscos assumidos por seus agentes, assim como os benefícios por eles proporcionados, assumiram caráter sistêmico e global, sendo sentidos pelos mais variados setores econômicos e pela totalidade de países na esfera mundial. Ademais disto, neste cenário, são criados novos riscos, através do processo de inovação dos instrumentos financeiros e do aumento da complexidade das relações que daí se desenvolvem (YAZBEK, 2009, p. 175).

Diante desta nova perspectiva, Ulrich Beck afirma que toda a sociedade deve (mais ainda nos tempos modernos) ser projetada considerando a existência dos riscos, sejam eles econômicos, sociais ou políticos. Ademais, de acordo com Beck, há evidente desigualdade na distribuição de riscos, em relação de inversa proporcionalidade com a distribuição de riqueza; em outros termos, os riscos, na maioria das vezes produzidos no âmbito das classes mais favorecidas – vide os mercados financeiros, e a atuação de banqueiros, gestores, etc., - são distribuídos às classes menos favorecidas (e sentidos por estas) (BECK, 2010, p. 41). Do mesmo modo, são sentidos pelos países mais desfavorecidos os efeitos da assunção de riscos por países desenvolvidos, consequência lógica da globalização neoliberal. Porém, de acordo com o autor, socialmente os riscos apresentam um efeito bumerangue: “cedo ou tarde, eles alcançam inclusive aqueles que o produziram ou que lucraram com eles” (BECK, 2010, p. 44).

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De fato, as evidências empíricas comprovam a aplicabilidade prática dos ensinamentos de Beck, ainda mais em se tratando da complexa seara dos mercados financeiros. Destarte, as recentes turbulências financeiras puderam comprovar que os sofisticados procedimentos de alocação (leia-se, distribuição) de riscos, comumente utilizados pelas instituições financeiras – pois, agentes centralizadores do risco -, não foram suficientes para evitar que os efeitos dali resultantes não fossem sentidos, por tais agentes, em níveis inaceitáveis – apenas a título de exemplo, pode-se fazer referência à exposição de todo o sistema financeiro norte-americano (e boa parte do sistema europeu) ao mercado de títulos podres, em 2008, o que resultou na quebra do Banco Lehman Brothers, na demissão de inúmeros gestores de outros bancos e no desaquecimento contínuo da economia mundial; daí, como é sabido, decorre a imensa rede de prejuízos trimestrais por parte de empresas, além de sequenciais aumentos no número de falências e nos índices de endividamento familiar, etc. Demais disto, são várias as dívidas com garantias atreladas valores mobiliários e a bens cujos preços são influenciados por variações do mercado.

A inovação nos instrumentos financeiros, portanto, deve ser sucedida pela inovação na estrutura regulatória; assim, todo instrumento financeiro inovador deve, antes de lançado à bandeja de opções fornecidas aos investidores, ser criteriosamente analisado e aprovado pela entidade normativa responsável por operações no mercado (no caso brasileiro, a Comissão de Valores Mobiliários, em se tratando de instrumentos lançados no mercado de valores mobiliários).

CONCLUSÃO

À época da publicação de A Riqueza das Nações, Adam Smith não imaginava as alterações no cenário econômico que adviriam da liberalização do capital, amplamente pregada em sua obra. Naquelas circunstâncias, de fato, o liberalismo apresentava certa aplicabilidade, pois todo o ciclo produtivo se dividia entre inúmeros produtores, cujos atos deveriam ser pautados na máxima eficiência no repasse de custos aos consumidores, sob pena de serem excluídos do mercado. Ademais, o recente processo de “financeirização” econômica estava longe de se desenvolver. Evidentemente, a especulação já existia - muitas vezes, inclusive, atrelada a instrumentos derivativos -, mas a centralização das finanças no cenário econômico não habitava, sequer, o plano da imaginação de juristas, economistas e sociólogos. Desse modo, como pregavam os liberais, era possível defender a desregulamentação do capital financeiro, ainda que o próprio Smith a contestasse (SMITH, 2009, p. 249). As crises financeiras, pois, não eram sentidas macroeconomicamente, na maneira em que o são atualmente. Não se reconhecia os (dali decorrentes) elevados aumentos nos índices de desemprego

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involuntário – aliás, o próprio desemprego involuntário (e as intensas violações a direitos fundamentais proporcionadas por tal situação) era(m) ignorado(s). Ao Estado, cabiam as funções de zelar pelos direitos de propriedade, defender a nação, utilizando-se do poder militar, e administrar a justiça. Assim, somente com a eclosão das inúmeras crises do capitalismo, sentidas, cada vez mais, por agentes alheios às relações que lhes deram causa, passou-se a reconhecer a relevância da intervenção estatal, através da positivação de um novo plano jurídico-normativo que possibilitasse a bancos centrais, reguladoras setoriais, etc., a atuação preventiva e repressiva naquele plano.

Pois, a nova perspectiva à qual passaram a se inserir os mercados – principalmente, os mercados financeiros -, torna imperiosa a adequação da ordem jurídica. Evidentemente, deve-se reconhecer a complexidade do sistema financeiro, e todas as suas falhas. Destarte, não se pode reconhecer validade às propostas liberais atuais, que sugerem a simplificação do quadro regulatório referente às finanças; pois, um sistema que, no plano do ser, demonstra elevada complexidade exige o mesmo no plano regulatório – do dever ser. A esse respeito, os resultados empíricos demonstraram os equívocos da simplificação normativa (regulatória) no que diz respeito aos mercados financeiros, tanto na Grande Depressão, de 1929, como na crise das hipotecas subprime, em 2008.

Os debates são intensos; busca-se, ao máximo, evitar a regulação dos mercados. Empresários, banqueiros, investidores, gestores, todos míopes com relação aos desastres, de ocorrência inevitável, oriundos da desregulação financeira. De fato, o capital é essencial à riqueza de toda nação. Todavia, na busca pelo desenvolvimento econômico e pela concretização do Estado Democrático de Direito (fim de todo sistema definido como jurídico e no qual deve se pautar todo o processo hermenêutico), deve o Estado, através do Direito, regular as atividades financeiras; são necessárias, neste sentido, restrições à liberdade do capital.

Ora, políticas não devem violar princípios, como bem observou Dworkin. Assim, não se deve permitir que peculiaridades originadas nos mercados financeiros possibilitem (imponham) violações a direitos fundamentais; políticas implementadas pelos Estados devem se submeter a princípios constitucionais. Jamais podem ir contra eles. Pois, ao Direito devem atribuídas funções inerentes a seu próprio conceito, dentre as quais a pretensão à correção – leia-se: pretensão à justiça, consoante ensina Alexy - no que se refere ao desenvolvimento da ordem do ser e de suas facetas, precedentes à ordem jurídica, como a ordem socioeconômica.

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REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA: O DIREITO À INTIMIDADE DO DOADOR DE SÊMEN VERSUS O DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

camila maria campagnaro

Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Professora

luiz guStaVo DE anDraDE

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advoga-do militante no Paraná.

SUMÁRIO: Resumo. Palavras Chave. Introdução. 1. Direito fundamental à intimidade e à vida privada. 2. Direito à intimidade à vida privada e à privacidade: diferenciação. 3. Doação de sêmen: direito à intimidade do doador. 4. Direito à identidade genética. 5. Con-siderações finais.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar ao leitor os conflitos de direitos gerados pela reprodução assistida heteróloga entre o doador do material genético e a criança gerada deste procedimento; de forma mais específica, no que concerne ao direito à intimidade do doador e o direito à identidade genética. Para tanto, será realizada uma breve análise sobre os principais aspectos do direito à intimidade, fazendo uma diferenciação ente o direito à intimidade, privacidade e vida privada, bem como, sobre como tal direito se relaciona com a reprodução assistida e qual é o tratamento jurídico que tal direito recebe nesse âmbito. Ainda, buscar-se-á verificar qual é o regulamento jurídico do direito à identidade genética pelos atos normativos que regulamentam a reprodução assistida no Brasil e em alguns países. Desta forma, com base no que debate a doutrina e no que determina a jurisprudência, pretende-se fazer um cotejo sobre quais direitos prevalecem.

Palavras-chave: Reprodução assistida heteróloga, doação de material genético, direito a intimidade, identidade genética.

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ABSTRACT

This paper aims to introduce the reader to the conflicts generated by the reproduction rights of heterologous watched between the donor of the genetic material and the child generated from this procedure, more specifically, regarding the donor’s right to privacy and the right to genetic identity. Thus, we conducted a brief analysis of the main aspects of the right to privacy, making a differentiation entity the right to intimacy, privacy and private life as well, about how such right relates to assisted reproduction and what is the legal treatment that receives such a right in this context. Still, search will find what is the legal regulation of the right to genetic identity by normative acts that regulate assisted reproduction in Brazil and some other countries. Thus, based on the doctrine that debates and what determines the jurisprudence, we intend to make a comparison about which rights prevail.

Keywords: Heterologous assisted reproduction, genetic material donation, right to privacy, genetic identity.

INTRODUÇÃO

Com o avanço das biociências, novos direitos e conflitos não regulados pelo ordenamento pátrio surgiram: clonagens, modificações genéticas, reproduções assistidas, entre outras inúmeras possibilidades.

A reprodução assistida heteróloga, a depender da interpretação dada pela doutrina, pode vir a dar origem à uma criança com dois pais, ou mesmo sem nem um, uma vez que os embates jurídicos giram em torno da determinação do vínculo de paternidade biológica e afetiva da criança.

A Resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina, que é o que atualmente regulamenta o tema da reprodução assistida, determina que não existe qualquer vínculo entre o doador e aquele que nasce das técnicas de reprodução assistida, sequer se garante o direito à identidade genética. Já parte da doutrina e o projeto de lei 90/99 que tramita no senado, entendem ser direito da criança o conhecimento de todos os dados do doador do material genético, inclusive sua identidade civil. Dilacerando-se por completo o direito à intimidade do doador em prol do direito da criança.

Outra parcela de estudiosos defende a tese de que seria direito da criança ter acesso ao conhecimento de seus dados genéticos e fisiológicos tão somente, desta forma, resguardando a identidade civil em sigilo.

Assim, ao final, pretende-se realizar um confronto entre esses dois direitos, especificando qual deve prevalecer diante deste conflito.

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1 DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA

Os debates jurídicos que permeiam a inseminação artificial estão contidos dentro do campo do biodireito. Este novo ramo do direito, embora possua alguns princípios e conceitos próprios, busca subsídios em outras áreas, tais como sociologia, antropologia e em especial, no direito constitucional.

A dignidade da pessoa humana seria um dos princípios apontados como pertencente tanto ao direito constitucional quanto ao biodireito, esse princípio não foi incluso na Carta Constitucional como um dos direitos fundamentais, mas sim como o próprio fundamento de toda a Constituição, algo como um princípio norteador do todo ordenamento jurídico.

Essa orientação hermenêutica serve tanto como base de criação, como norte de interpretação de todo o sistema jurídico brasileiro, e, ainda, como uma orientação mundial de conduta a todos os países. Portanto, este princípio da dignidade da pessoa humana não seria um dos direitos fundamentais, mas sim aquele do qual todos nascem, pois é essa norma que dá origem à todos os direitos fundamentais, dentre eles o direito à intimidade (SOROMENHO-PIRES, 2011, p. 164).

O direito à intimidade pode ser resumido, de maneira geral, pela frase “direito de ser deixado em paz” (SAMPAIO, 1998, p.363), ou seja, o direito que o homem tem de não ter sua vida investigada e divulgada.

Este direito à intimidade também está relacionado com o exercício do direito à liberdade, garantindo à possibilidade de que o indivíduo expresse suas ideias sem a necessidade de justificação (DOURADO, 2008, p. 79).

A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5°, inciso X determina que fica garantido aos brasileiros e estrangeiros residentes no solo pátrio a inviolabilidade de sua intimidade e vida privada, sendo que diante da transgressão deste direito, garante-se a reparação pelos danos morais ou materiais eventualmente causados.

A determinação expressa da legislação pátria só veio a corroborar entendimentos internacionais relacionados com o tema, uma vez que em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XII determinava o seguinte: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

Essa norma positivada na Constituição é voltada tanto para o indivíduo como para o Estado, pois possui tanto eficácia horizontal como vertical, uma vez que se pode lançar mão da proteção de sua privacidade contra o Estado, como contra qualquer outro cidadão que venha a violar seu direito (NETO, 2012, p. 66).

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O Tribunal Constitucional Alemão entende ser o direito à intimidade e a vida privada como sendo um direito à “autodeterminação, abrangendo o direito de fazer suas escolhas essenciais numa esfera de intimidade e comportando também um direito ao segredo” (NETO, 2012, p. 66).

Além de estar elencado na Carta Magna em seu artigo 5°, esta garantia também está prevista no Código Civil Brasileiro em seu artigo 21, desta forma, além de direito fundamental, e portanto, carregar consigo todas as características próprias destes, a intimidade também se apresenta como um direito da personalidade.

O objeto de proteção dos direitos da personalidade “são os bens de maior valor jurídico, sem os quais os outros perdem o valor” (LOTUFO, 2002, p.325). Justamente por este motivo é que não são numerus clausus, estão em permanente desenvolvimento e expansão. A medida que a sociedade, e seus meio tecnológicos progridem, novas situações de agressões e risco à personalidade dos indivíduos vão se criando, e desta forma, também é necessária a evolução e o aperfeiçoamento dos direitos da personalidade com a intenção de continuarem a possuir a eficácia de resguardar o ser humano (LOTUFO, 2002, p.325).

O direito à intimidade é algo que aparenta ser tão básico ao ser humano que não se concebe vislumbrar uma sociedade sem esta garantia, entretanto não é uma garantia que sempre esteve positivada. A primeira proteção à este direito está presente na Magna Carta das Liberdades da Inglaterra, escrita por João Sem Terra em 1215; esta carta veio com o intuito de resguardar as liberdades públicas, e para tanto, trouxe em seu bojo o habeas corpus (NOBRE, 1988, p. 50).

2 DIREITO À INTIMIDADE, À VIDA PRIVADA E À PRIVACIDADE: DIFERENCIAÇÃO

A busca dos juristas e doutrinadores em se delimitar e traduzir o significado dos conceitos de intimidade, vida privada e privacidade é bastante antiga. Em 1873 o Juiz Cooley, que foi presidente da Interstate Commerce Commission (CAVALCANTI, 1900, p. 294), trouxe a definição de privacidade “como `o direito de ser deixado só` (the right to be let alone)” (SILVA, E, 2003, p. 46), tendo sido uma das primeiras tentativas noticiadas de se tentar conceituar esse direito.

Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt (2007. p. 66) compreende o direito à privacidade como algo amplo que englobaria o direito à vida privada e o direito à intimidade. Este fica compreendido como algo relacionado à esfera mais intima da pessoa, enquanto que a vida privada está ligada à honra e a imagem do ser humano.

José Tarcízio de Almeida Melo (2008. p. 335), em consonância com o Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, entende que a intimidade é o domínio ao qual o indivíduo se reserva com exclusividade, sem que dele haja qualquer

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repercussão na sociedade, seria algo, ao qual somente a pessoa tivesse acesso.Esta seria a diferença entre a intimidade e a vida privada. Pois, esta

última, por mais pessoal que seja, gera certa repercussão social, mesmo que de foro íntimo e com alguns selecionados. Portanto, para estes dois doutrinadores, a intimidade seria algo que como a vida “secreta” do indivíduo, enquanto que a vida privada seria a convivência familiar, no trabalho ou com os amigos (ALMEIDA MELO, 2008, p. 335).

Por sua vez, Gilmar Mandes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco (2008. p. 377) entendem que o direito à intimidade estaria contido no direito à privacidade. Este estaria relacionado à vida pessoal daquele indivíduo de uma forma geral, tais como suas relações pessoais e profissionais; tudo aquilo que a pessoa não deseja que se torne público. Já o direito à intimidade teria por objeto algo mais íntimo do que do que o direito à privacidade, suas relações pessoais, familiares e amizades mais reservadas.

Portanto, é possível perceber que não é trazida a nomenclatura “vida privada”, sendo substituída por privacidade. Outra diferença se dá no momento em que não especifica qual seria a esfera mais íntima do indivíduo, aquela à que somente ele possui acesso.

Para esses três doutrinadores, seria justamente no direito à privacidade que estaria o amparo para o direito ao anonimato, o respeito ao impedimento de identificação e qualificação; pois o direito ao anonimato seria correlato ao direito à privacidade (MANDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 379). Cabe ressaltar, ainda, que além do direito ao anonimato, de acordo com José Sampaio (1998, p. 126), a proteção de dados pessoais também estaria amparada pelo respeito da vida privada.

Com o amparo do direito ao anonimato no direito à privacidade, esses doutrinadores acabam por basear essa proteção na forma mais genérica, no círculo mais amplo dessa subdivisão, portanto, a depender do caso concerto, poderia se encontrar baseada tanto do direito à privacidade quanto naqueles que estão contidos em seu interior.

Paulo José da Costa Júnior ilustra a questão fazendo menção à teoria dos círculos concêntricos da esfera privada, segundo esta teoria

um círculo externo [...] seria abrangido pela esfera privada strictu sensu (Privatsphare), compreendendo todos aqueles acontecimentos que a pessoa não deseja que se tornem do domínio público; uma esfera da intimidade (Ventrauenssphara) ou da confiança (Ventraulichkeitssphara), da qual participam apenas as pessoas nas quais o indivíduo deposita certa confiança e com as quais mantém certa familiaridade; e no âmago da esfera privada, o menor dos círculos concêntricos [...]: “a esfera do segredo” (Geheimsphare) (SILVA, E, 2003, p. 45).

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Para fora deste círculo da esfera da vida privada, encontra-se tudo aquilo que diz respeito à vida pública do indivíduo. Portanto, pode-se notar que, segundo esta teoria, não existem apenas duas esferas, a privada e a pública; no que concerne à vida íntima da pessoa é possível fazer mais uma subdivisão, a esfera do segredo, da intimidade e a esfera privada.

Em qualquer dos casos é grande a dificuldade de se realizar uma demarcação, uma linha, para separar cada um dos círculos tendo em vista ser tão volátil o conteúdo de cada uma destas esferas (SILVA, E, 2003, p. 45). Portanto, se faz necessário analisar o caso concreto e a época em que está inserido para mensurar em qual desses campos se encontra o direito a ser tutelado.

Embora a teoria dos círculos concêntricos traga uma nova nomenclatura - a esfera do segredo - os doutrinadores no âmbito do direito, de maneira geral, não a citam de forma expressa.

Conforme já relatado, doutrinadores tais como Luiz David Araujo, José Tarcízio de Almeida Melo, e Tércio Sampaio Júnior denominam de intimidade esta esfera a qual somente o indivíduo tem acesso (o que na teoria dos círculos seria esta esfera do segredo); enquanto que outros, tais como Gilmar Mandes, Inocêncio Coelho, Paulo Branco e Marcus Vinicius Bittencourt citam o direito à intimidade como sendo uma proteção às relações mais próximas deste, e assim, algumas seletas pessoas poderiam acessá-la.

Estes que não vislumbram essa dimensão secreta do indivíduo e não realizam esta terceira diferenciação no direito à intimidade englobam tanto as relações mais íntimas quanto os segredos em uma única esfera.

Diante de tantas divergências e imprecisões de conceitos, José Afonso da Silva (2010, p. 206), prefere utilizar a nomenclatura direito à privacidade para tratar de forma geral destes direitos tutelados pela Carta Magna, pois a privacidade seria o direito que agruparia todos aqueles relacionados à proteção da vida íntima e privada do indivíduo.

Entretanto, o doutrinador entende ser possível uma distinção entre esses direitos, uma vez que o próprio artigo dedicado ao tema realiza essa separação. Em conformidade com o penalista René Ariel Dotti, a intimidade seria a parte reservada, íntima da pessoa; e nesta indivíduo teria a possibilidade, legalmente garantida, de evitar quem não desejasse (SILVA, J, p. 206).

Já a vida privada, também chamada pelo autor de vida interior, seria relacionada à sua convivência com família e amigos, tal como um direito de poder viver a sua vida como desejasse (SILVA, J, 2010, p. 206).

Tendo em vista ser o anonimato do doador de sêmen algo extremamente restrito, deve estar resguardado por aquele direito que se refere aos segredos mais íntimos do indivíduo. Portanto, conforme diversos doutrinadores, tais como José Afonso da Silva, René Ariel Dotti, Luiz Alberto Araujo, José de Almeida Melo, Tércio Ferraz Júnior e Marcus Vinicius Bittencourt, o amparo à este anonimato se encontraria no direito constitucional à intimidade.

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3 DOAÇÃO DE SÊMEN: DIREITO À INTIMIDADE DO DOADOR

O direito ao anonimato do doador de material genético, ou seja, o direito de não possui seus dados revelados, está amparado no ordenamento jurídico brasileiro de diversas formas. De forma expressa se encontra na resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina conforme a seguinte disposição:

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Portanto, segundo a referida disposição esse sigilo só é relativizado em casos específicos, por motivos médicos, sendo que, da mesma forma, as informações só serão prestadas a terceiros, de modo que o receptor e o fruto da inseminação não tomam contato com qualquer informação.

As outras duas formas de proteção, mais genéricas, que constam no ordenamento são as presentes no Código Civil, em seu artigo 21 e na Constituição Federal em seu artigo 5° inciso X. Estes dois artigos tratam do tema intimidade e vida privada, conferindo a esses dois direitos o status de direito fundamental e direito da personalidade. Portanto, sendo o anonimato do doador um direito “correlato ao direito fundamental à privacidade, e por assim ser identificado, é um direito subjetivo fundamental” (MOREIRA, 2010, p. 360).

Embora existam países, tal como a Checoslováquia, onde é permitida a venda de material genético, no Brasil, assim como na Espanha, não é permitida a remuneração por este material, da mesma forma como não se admite a compra de qualquer órgão do corpo humano. Na Suécia é autorizado o pagamento de um valor em pecúnia com o intuito de cobrir os gastos do doador em realizar o procedimento, mas não com caráter de remuneração (BARBOSA, 2009, p. 25, 26).

Com o progresso cada dia mais acelerado, o direito se deparou diante desta desenfreada máquina que é a ciência, e contatou-se a necessidade de se revisar e criar conceitos com a finalidade de se estudar e regular o grande reflexo gerado pelas práticas desmedidas e, muitas vezes inconsequentes que resultam dos laboratórios de todo o mundo; e foi justamente com esse intuito que os juristas foram desenvolvendo a bioética e o biodireito.

Ao buscar a reprodução assistida, um casal pode optar por utilizar-se do seu próprio material genético, não envolvendo terceiros, este é o caso da inseminação artificial homóloga.

Caso se trate de uma mulher solteira ou de um casal em que um dos futuros pais afetivos seja estéril, é possível a utilização do material genético de

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um terceiro doador; este é o caso da reprodução assistida heteróloga.O Código Civil em seu artigo 1597 determina à paternidade ao marido

que autorizou a reprodução assistida da esposa com sêmen de terceiro, sendo que tal paternidade não pode ser contestada após realizado o procedimento.

Ocorre que, no momento em que se procura uma clínica de reprodução assistida e se compromete a não buscar a identidade civil do doador de material genético e requerer os direitos garantidos à todo filho, se está abrindo mão de um direito que não lhe pertence, e sim, é de titularidade de alguém que sequer foi gerado.

Este é um dos grandes dilemas da reprodução assistida, uma vez que ao realizar um ato generoso e gratuito, que possibilita o sonho de conceber uma criança a diversos casais, estaria correndo-se o risco de acabar por ter sua intimidade violada e, até mesmo enfrentar uma futura ação de paternidade.

Na Itália, a lei que atualmente disciplina a reprodução assistida é a Norme in materia di procreazione medicalmente assistita (a lei 40/2004) que foi regulamentada em 2008 pelo ministério da saúde. Este lei restringe a utilização da técnica por casais que tenham problemas de fertilidade, a inda, veda a reprodução assistida heteróloga. Desta forma, sequer abre precedentes para a discussão acerca de temas como o direito à identidade genética ou demais discussões acerca da paternidade.

Legislação bastante diversa é a da Espanha que, só evidenciando o atraso legislativo do Brasil, já possuía uma lei sobre o assunto em 1998 (a lei 35/1988); sendo que esta já foi superada pela lei 14/2006.

Esta lei, por sua vez, determina que os dados dos envolvidos devem ser mantidos de forma confidencial, sendo que existe a possibilidade de se relativizar essa diretriz, passada pelo artigo terceiro da lei, nos seguintes casos: quando determina que as crianças e os beneficiários da técnica possuem o direito de obter informações gerais sobre o procedimento, ressalvadas as informações sobre a identidade do doador; e de forma excepcional, quando a situação envolver risco à vida ou saudade da criança; ou quando for necessário, de acordo com as leis de processo penal para evitar perigo ou alcançar a finalidade legal a que se propõe. Ou seja, o direito à intimidade do doador fica bastante amparado por tal normativa.

No Brasil, conforme a resolução vigente, o doador deve manifestar sua vontade de forma livre e escrita, estando ciente de que não tomará conhecimento de quem é a receptora ou a criança que nascerá deste procedimento; e, portanto, terá seu sigilo resguardado.

Ocorre que no memento que os envolvidos assinam os documentos garantindo o sigilo do doador do material genético, acaba-se abrindo mão de direitos que pertencem à criança que ainda está por ser gerada, e, portanto, que pode vir a reclamá-los no futuro. Dentre esses direitos, pode-se citar o direito à identidade genética e os diversos direitos que decorrem com a

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paternidade, tais como, alimentos e sucessão hereditária.Cabe ressaltar que se determinar o sigilo absoluto do doador acaba

por ser inviável, uma vez que esta determinação pode vir a possibilitar um casamento consangüíneo (DINIS, J, 1992, p. 49), ou mesmo, pode acabar por impossibilitar o conhecimento do histórico genético completo da criança, algo que eventualmente pode ser fundamental no diagnóstico de uma doença.

Portanto, resta evidente que o sigilo absoluto entre os envolvidos não só é perigoso para a criança nascida desta técnica, como para os demais filhos deste doador (sejam filhos concebidos por meios naturais ou outros nascidos deste procedimento médico).

Essa possibilidade foi vislumbrada tanto por aqueles que elaboraram a resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina que regula o tema, quanto pelo legislador brasileiro no projeto de lei 90/1999, em seu artigo 9°, que está em trâmite; uma vez que ambas estabelecem que o sigilo será relativizado, possibilitando o fornecimento de dados nos caso em que em houverem razões médicas à justificar a quebra, sendo que as informações devem ser fornecidas aos médicos responsáveis. Desta forma, alguns dados do doador são revelados, mas não chegam ao conhecimento da criança e dos familiares desta.

Conforme pesquisa realizada em Estocomo, quatro entre doze dos doadores daquele hospital aceitariam continuar doado mesmo diante da possibilidade de não serem anônimos (BARBOSA, 2009, p. 30). Portanto, uma redução significativa diante da simples possibilidade de se ter dados revelados; o que por certo, seria bem mais expressiva diante de outras implicações, como a possibilidade de vir a sofrer uma ação pleiteando o reconhecimento de paternidade.

Por este motivo, alguns autores entendem que, mesmo diante dos direitos do nascido do procedimento de produção assistida, deve prevalecer o direito à intimidade do doador, uma vez que, revelar a identidade deste não seria somente prejudicial ao cedente do material, mas, também à criança e seus familiares.

Nesta linha de entendimento segue Eduardo de Oliveira Leite, pois, segundo o autor, “o anonimato respeita o princípio dominante no direito de família, ou seja, não dissocia as estruturas naturais do parentesco, isto é, não permite que a criança tenha um pai biológico e um pai afetivo” (1995, p. 341). Ainda, a doação do material genético é um ato que não tem qualquer pretensão futura, um gesto de generosidade, e não “uma doação de paternidade jurídica ou afetiva” (LEITE, 1995, p. 341).

Ressalta-se ainda, que os tribunais brasileiros têm entendido por privilegiar o vínculo afetivo em detrimento do biológico, fazendo prevalecer o ditado popular “pai é aquele que cria”:

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO

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CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativa à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. [...]. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1087163/RJ. Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI. Diário de Justiça, Brasília, 31 ago. 2011.) (grifo nosso)

Assim, justamente em prol da harmonia familiar, evitando diversos conflitos e discriminação entre irmãos e parentes é que se busca privilegiar a paternidade afetiva.

Segundo estudos psicológicos, quando uma criança é esperada e desejada,

como ocorre na inseminação artificial, e plenamente inserida na malha familiar, dificilmente (ou excepcionalmente) se preocupará ‘em querer conhecer sua origem genética’. Excepcionalidade da hipótese não justifica o afastamento de uma regra que tem se revelar altamente benéfica, tanto aos pais, quanto aos doadores, como também aos interesses maiores da criança (LEITE, 1995, p. 341).

Uma alternativa para que se permaneça resguardada a intimidade do doador de material genético e satisfazer o anseio da criança gerada seria a de fornecer algumas informações referentes ao seu pai biológico; tais como dados genéticos, fisiológicos e psicológicos sem revelar seu nome; e, desta forma, preservar a identidade civil (ALMARAZ, 1988, p. 101).

Ainda, há autores que preveem a possibilidade de que o doador venha a abrir mão de sua intimidade e busque estabelecer vínculos de paternidade com o filho, pois, segundo Paulo Luiz Netto Lobo,

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o vínculo biológico somente poderá prevalecer se inexistisse vínculo afetivo do menor com alguma figura paterna. Deste modo, interessante destacar que, na hipótese proposta, apenas se não estiver constituído tal vínculo, poderá o doador reivindicar a paternidade (VILELA, 2008, p. 67).

Desta forma, é possível visualizar, que além de uma proteção para o doador de sêmen, o direito ao sigilo das informações, é uma via de mão dupla, uma vez que também ampara a intimidade civil da criança e de sua família afetiva.

Este é mais um dos motivos elencados por Eduardo de Oliveira Leite no sentido de defender a intimidade do doador, uma vez que, em se resguardando tais dados, se impossibilita que doador ou filho nascido desta técnica busquem criar vínculos com intuitos meramente pecuniários (LEITE, 1995, p. 341), transformando assim, o direito à filiação de relação tão sublime entre pai e filho em uma situação mercenária.

Todavia, este não é o entendimento pacífico na doutrina, uma vez que o próprio artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê o direito ao conhecimento da identidade genética.

4 DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

Ter acesso às informações genéticas relacionadas com sí mesmo é um direito “derivado de um forte interesse pessoal, vez que permite ao indivíduo dispor de informações importantes (particularmente sobre sua saúde) ao tomar decisões relativas à sua própria vida” (DIAS, 2008, p. 163).

A identidade está relacionada com a integridade do ser humano, algo intocável e pode ser concebida de duas formas, identidade genética e a pessoal. Esta última está ligada com a convivência do indivíduo em sociedade e com os demais. Já a identidade genética é a essência fundamental da identidade da pessoa e está relacionada com o código genético desta (TEIXEIRA, 2000, p. 98).

Preliminarmente, cabe ressaltar que o reconhecimento à identidade genética do doador é um direito que não se vincula ao demais que decorrem do reconhecimento da paternidade por parte do doador de material genético, uma vez que o direito à identidade genética se refere tão somente à possibilidade de se obter informações referentes ao doador, mas, de forma alguma, está ligada ao estabelecimento de qualquer vínculo entre o progenitor e a criança gerada.

Paulo Luiz Netto Lôbo bem assenta que “uma coisa é vindicar a origem genética, outra, a investigação de paternidade” (FARIAS, 2004. p. 342). A paternidade é uma consequência, algo que surge por meio do estado de filiação, que não é necessariamente biológico, podendo também se tratar de uma vinculação afetiva.

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Embora a resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina vede a divulgação da identidade do doador, o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente determina o seguinte: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.

Portanto, ainda que exista vedação pela resolução, está expresso neste artigo 27 o direito ao conhecimento da identidade genética. Esse direito foi reconhecido pelo projeto de lei substitutivo 90/99; este passou a autorizar a criança a ter acesso a todos os dados sobre o processo em que foi gerada, inclusive a identidade civil do doador.

Além da previsão expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente, Tiago Duarte (2003, p. 40) entende não ser possível manter o sigilo, uma vez que não teria o amparo da própria Constituição Federal um sistema que não refletisse a realidade sobre a filiação da criança; justamente em um critério tão essencial, a ascendência genética, algo que diferencia um ser humano dos demais.

Antunes Varela faz alusão ao princípio do direito à verdade, pois, embora não expresso na Constituição Federal ou em qualquer lei do ordenamento, é o amparo de toda legislação evoluída. Esse princípio fundamentaria, portanto, a possibilidade de que a criança viesse a saber sua origem (DUARTE, 2003, p. 41).

Neste mesmo sentido está Helena de Azeredo Orselli, pois,

diante da teoria acerca dos direitos personalíssimos na atualidade, em face do princípios constitucional da igualdade, tem-se defendido que toda pessoa, inclusive a concebida de forma artificial com utilização de material genético de doador, tem direito de saber quem são seus ascendentes. O direito ao conhecimento da ascendência genética seria um direito fundamental da personalidade, portanto, indisponível (ORSELLI, 2007, p. 145).

As professoras Clarissa Bottega (2006 p. 77), Maria Helena Diniz (2011, p. 624) e Álvaro Villaça Azevedo (DINIZ, M; LISBOA, 2003, p. 68), compartilham deste mesmo entendimento, acreditando que o direito ao conhecimento da origem genética é indispensável, uma vez que encontra amparo nos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana e por ser um direito natural.

Clarissa Bottega (2006, p. 77) ainda alerta para uma prática de alguns laboratórios responsáveis por realizar o procedimento da reprodução assistida, que, no intuito de garantir o direito ao anonimato dos doadores,

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se utilizam da técnica chamada de cocktail de sêmen. Neste procedimento é realizada uma combinação de material proveniente de diversos doadores e, desta forma, só seria possível se identificar o doador com uma série de exames de DNA, uma vez que não seria possível identificar qual foi o espermatozóide que fertilizou o óvulo.

Portanto, para que não fosse necessário submeter diversas pessoas a realizar compulsoriamente um exame de DNA, tal prática deveria ser expressamente vedada. Uma vez que se manter um cadastro de doadores completo e atualizado por si só não garantiria a facilidade na identificação diante desta mistura de materiais.

Ainda, conforme esclarece Maria Helena Diniz (2011, p. 625), é preciso que se mantenham em registro de forma permanente todas as informações, bem como amostras dos materiais genéticos dos doadores e dos concebidos de tais técnicas além das “provas diagnósticas a que foi submetido o material biológico humano transferido a paciente de técnica de reprodução assistida para evitar transmissão de doença” (2011, p. 625). Desta forma, não é necessário somente um banco de dados com informações físicas do doador, mas, também com amostras de materiais genéticos, e dados dos testes realizados.

Os ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso, Francisco Rezek e Sepúlveda Pertence (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 76060/SC. Relator: Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE. Diário de Justiça, Brasília, 15 maio. 1998, p. 44), ao proferirem seu voto em uma ação que buscava estabelecer a paternidade da criança, entenderam ser possível até mesmo submeter de forma compulsória o pai biológico a realizar exame de DNA, uma vez que simplesmente determinar a presunção de paternidade sem a realização do exame não traria a segurança à criança de que aquele seria seu verdadeiro pai, privando-a, portanto, de sua origem genética.

Os ministros entendem que a violação à integridade física do ofendido seria ínfima frente à transgressão gerada pela impossibilidade do conhecimento de sua origem; e, embora votos vencidos no julgamento, ainda em 1998 trouxeram um importante precedente ao direito brasileiro.

Entretanto, embora não seja possível determinar a obrigatoriedade de se fazer o exame, neste mesmo julgamento esta corte se posicionou no sentido de reconhecer o direito da criança o conhecimento de sua origem genética, desde que seja possível sua averiguação sem a necessidade de se compelir a realização do exame. Isto fica ilustrado pela seguinte ementa:

EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSU-AL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECO-NHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DE-

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CLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGA-DA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZA-ÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEI-TO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE [...] 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade respon-sável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho bio-lógico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhe-cimento de paternidade com relação a pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos. (BRASIL. Supremo Tribunal Fe-deral. Habeas Corpus 76060/SC. Relator: Ministro SEPÚLVEDA PER-TENCE. Diário de Justiça, Brasília, 15 maio. 1998, p. 44) (grifo nosso)

Neste mesmo ano de 1998 na Alemanha, o Tribunal Regional de Münster determinou que uma “mãe revelasse à filha quadragenária a identidade do todos os homens com os quais mantivera relações sexuais durante o período da concepção” (MARTINS-COSTA, 2009, p. 379). Pouco tempo depois, no ano de 2000, o Tribunal Regional de Bremen determinou, sob pena de prisão ou multa, que a mãe revelasse à sua filha o nome de seu pai biológico.

Segundo a professora Ana Cláudia Scalquette (2010, p. 232), realizando-se uma interpretação em conformidade com o instituto da doação, é possível que a criança, elo mais fraco de toda a relação, tenha acesso às informações genéticas. Apesar de vislumbrar esta quebra do sigilo, a autora entende que só deve ocorrer mediante um processo judicial em que se apresentem argumentos que demonstrem a necessidade.

Roxana Cardoso Brasileiro Borgues (LOTUFO, 2002, p. 331) acredita que o direito à identidade genética estaria dissociado dos direitos da personalidade, pois estes seriam aqueles que lhes são próprios, dos quais não se dependeria

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de outro. “O direito à origem genética não é inerente à pessoa e, além disso, para a revelação de tal origem, necessário seria a intervenção em personalidade alheia” (LOTUFO, 2002, p. 331).

Desta forma, a jurista não é favorável ao reconhecimento do direito à origem genética, bem como acredita que, caso seja necessário revelar qualquer informação sobre os dados do doador, tais dados só deverão ser fornecidos a terceiros, que não à família envolvida na reprodução assistida ou a criança gerada (LOTUFO, 2002, p. 332, 333).

O professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003, p. 803) entende que seria fundamental o sigilo das informações em todo o procedimento, sendo que os futuros pais (a mãe biológica e o pai afetivo) não devem tomar conhecimento de qualquer informação do doador do material genético, e também, este não pode ter acesso a dados dos familiares e da criança. Entretanto, em prol do melhor interesse da criança deve ser possível que se forneçam as informações a esta, “não por simples curiosidade, mas para o resguardo de sua existência, e a proteção contra possíveis doenças hereditárias (ou genéticas) que pudesse vir a contrair diante da ascendência biológica” (GAMA, 2003, p. 803).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível perceber que a doutrina se divide em três pontos: Somente fornecer informações fisiológicas e genéticas a médicos quando for necessário; fornecer à criança tais dados; e ainda, há aqueles que sustentam fornecer todos os dados do doador à criança, inclusive sua identidade civil.

Entretanto, alguns doutrinadores se posicionam tão somente como favoráveis a garantir o conhecimento da identidade genética, mas não especificam se entendem por estar neste direito compreendida a divulgação do nome civil do doador.

Garantir o direito à identidade genética é tão somente garantir a divulgação de dados genéticos e fisiológicos uma vez que aquilo que realmente é inerente à personalidade da criança fica compreendido naquilo que lhe é próprio e afeta diretamente seu modo de ser e sua vida. Assim, divulgar o nome do doador seria apenas mais um dado que aguçaria sua curiosidade e lhe abriria margem a vasculhar a vida de uma família de completos estranhos, alem é claro, de possibilitar uma “corrida do ouro” aos tribunais de crianças buscando direitos alimentares e sucessórios.

Ressalta-se que os vínculos parentais entre o doador e a criança jamais existiram ou virão a existir, portanto, levando-se em conta a, já bem sucedida, experiência da adoção, não se deve possibilitar o reconhecimento de qualquer vínculo. O doador do material genético, após realizar um ato de pura caridade e

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amor ao próximo, doando material genético com o único intuito de possibilitar o sonho de uma família em conceber um filho, não pode ser penalizado.

Assim, garantir o anonimato visa proteger tanto o doador e seus familiares como toda a família desta criança, pois não deve ser tolerada a possibilidade de que, a qualquer tempo, o doador venha a ser surpreendido por uma investigação de paternidade, e tendo com isso, toda uma desestruturação familiar. Ainda, para que se possa garantir uma convivência familiar saudável com a família afetiva, é necessário que não exista qualquer contato com a família biológica.

Desta forma, se compreendesse pela divulgação da identidade civil do doador, o que não obstaria a necessidade de divulgação de outros dados de parentes genéticos, como irmãos de sangue, tios e avós? Nada. Isto só evidencia o caráter ilógico desta disposição, se é possível o conhecimento do nome do pai, também deveria ser possível o conhecimento do nome civil de toda a família até uma progressão que tende ao infinito.

Outrossim, resta evidente a necessidade de que a criança venha a ter acesso a informações genéticas e biológicas no intuito de vir a prevenir-se de doenças hereditárias, e, ainda, não é possível descartar a hipótese em que, caso aquele que nasceu por intermédio de técnicas de reprodução assistida heteróloga venha à manter um relacionamento, averigúe-se se existe algum grau de parentesco entre ambos, mas de forma alguma divulgue-se a identidade civil do doador.

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REFERÊNCIAS

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BARBOSA, Camilo de Lelis. Aspectos Jurídicos da Doação de Sêmen. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre, n 07, n.28, dez-jan/2009.

BITTENCOURT, Marcus Vinicius Correa. Curso de direito constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

BOTTEGA, Clarissa. Reprodução humana medicamente assistida e o direito à origem genética. Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá, Cuiabá , v. 8, n. 2, jul.2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 76060/SC. Relator: Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE. Diário de Justiça, Brasília, 15 maio 1998, p. 44.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE TURISMO SOB UMA PERSPECTIVA EMPRESARIAL

CIVIL RESPONSIBILITY OF THE TRAVEL AGENCIES UNDER A EMPRESARIAL PERSPECTIVE

clauDia mitiE anDo

Bacharel em Turismo e bacharelanda do curso de Direito

SanDro manSur gibran

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996), Mes-tre em Direito Social e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003) e é Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2009). Atualmente é professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba, também de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba -, de Direito Empresarial junto ao Centro de Estudos Jurí-dicos do Paraná e junto à Escola da Magistratura Federal do Paraná, além de coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba - e advogado - Roberto Fer-raz Advogados. Tem experiência na área de Direito Empresarial

RESUMO

As discussões a respeito das relações de consumo no Turismo são um assunto recente que tem ganhado cada vez mais destaque com o aumento da demanda por viagens e, consequentemente, pelo crescimento da atividade.

A possibilidade de viajar tem permitido a diversas classes sociais o acesso às viagens que antes só eram possíveis para pessoas com maior poder aquisitivo. Com isso o número de pessoas viajando ou com intenção de viajar tem aumentado significativamente nos últimos anos.

No entanto com o crescimento da atividade começam a ocorrer diversas falhas nos serviços revelando inúmeras dificuldades. Devido a isso começaram a surgir diversos litígios judiciais a fim de responsabilizar civilmente as empresas de turismo. Diante disso surgiu o seguinte questionamento: como são as relações de consumo no turismo e como elas têm sido aplicadas pelos operadores de Direito?

Portanto, tem-se aqui dois objetivos principais: o primeiro é o de analisar a atividade turística para que juristas, doutrinadores e operadores do Direito tenham uma melhor compreensão da atividade e possam buscar soluções mais

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justas na resolução dos litígios judiciais envolvendo turistas e empresas de turismo e em segundo, analisar as relações de consumo no Turismo a fim de auxiliar os operadores do Turismo a compreenderem sua responsabilização civil no caso de falhas na prestação dos serviços.

Palavras-chave: Direito e Turismo, Responsabilidade Civil das agências de turismo.

ABSTRACT

The discussions about the costumers relations in Tourism are a recent subject that has gained more importance with the growth of the demand for travels and, consequently, for the growth of the Tourism industry.

The possibility of traveling has allowed many social classes the access to travel, that in past times were possible only for the upper class. With that the number of people travelling or with the intentions to travel has increased significantly in the past years.

However the with the growth of the activity, started to occur many fails in the service revealing countless difficulties. In consequence oh that, started to emerge many judicial litigations in order to charge civilly the travel companies. Consequently emerged the follow questioning: how are the consume relations in the Tourism and how they have been applied by the lawyers and judges?

This work has two main objectives: The first is to analyze the touristic activity so that jurists, indoctrinators and attorneys have a better comprehension of the activity and seek fairer solutions on the resolution of the judicial litigations involving tourists and tourism business and, in background, analyze the relations of consume on tourism to auxiliary the tour operators to understand his civil accountability in case of failure of service.

Keywords: Law and Tourism, Civil Responsibility of travel agencies

1 INTRODUÇÃO

O Turismo, conforme definido pela Organização Mundial de Turismo, são todas as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens em locais distintos aos que vivem.

A partir dessa afirmação pode-se notar que a atividade é superabrangente e, em uma reflexão mais profunda, é uma atividade complexa, pois envolve pessoas em cada área em que atua, desde o atendimento na hora de pegar um transporte para chegar a uma determinada localidade até o momento de comprar uma mercadoria em uma loja. Seja para pedir informação a um habitante local,

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seja para adquirir ingressos para uma atração, o turismo lida com pessoas – tanto as que visitam as localidades como as que moram nela.

Diante de toda essa complexidade, surge o profissional do turismo, que tem que buscar o melhor para o seu cliente e, ao mesmo tempo, tem que estar ciente de todos os detalhes da atividade e deve buscar sempre o que é melhor para turistas e autóctones.

Com o passar dos anos, o Turismo tem evoluído e crescido de maneira exponencial e representa economicamente uma grande forma de geração de emprego e renda.

Outrossim, com esses grandes resultados, começam a aparecer muitas dificuldades, sejam elas indicando a falta de estrutura de determinada localidade, seja com a geração de conflitos entre turistas e os habitantes locais, seja na seara do Direito, que pouco trata a respeito desse assunto.

Já o Direito, embora seja uma ciência, também encontra algumas dificuldades por estar inserido na área de humanas; ou seja, ele precisa evoluir conforme a sociedade em que está inserido, e, por ser uma ciência, essa capacidade de mudança é lenta e progressiva enquanto que, em alguns casos, precisa ser mais célere.

Então quando se fala em direito do turismo, pouca coisa se tem definida. Os profissionais e empresas do turismo são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, são os chamados fornecedores de serviços. E, embora se trate de uma relação consumerista, é complicado aplicar a norma sem maiores reflexões a respeito da atividade em si.

Não se fala em subtrair direitos dos consumidores, o que se busca com uma reflexão mais aprofundada são soluções para uma atividade tão complexa e cheia de vicissitudes que deve ser respeitada pelo Direito, pois, em sua essência, busca através de seus princípios, tais como o da livre iniciativa e o princípio de igualdade, estabelecer regras mais justas e corretas de forma a buscar o equilíbrio nas relações que são regidas em seu manto.

Este é o objetivo deste trabalho: instigar para uma reflexão um pouco mais aprofundada, além do mero Direito em si.

O que se busca aqui é compreender o Turismo com todas as suas faces, todas as suas dimensões e todas as suas dificuldades para então analisar o Direito e definir o que seria o mais correto ou o mais justo para a aplicação da norma.

Far-se-á uma exposição da atividade para que juristas e doutrinadores compreendam a atividade turística e possam ter uma visão mais clara e ampla das excludentes de responsabilidade dessas empresas.

Além disso, as empresas de turismo estão sujeitas a uma série de deveres que muitas vezes são desconhecidos e podem acarretar uma série de problemas. O que também se busca com esse estudo é instigar a uma reflexão mais

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aprofundada a respeito da responsabilidade civil das agências de viagens que, por suas características peculiares, merecem maior destaque.

2 O FENÔMENO DO TURISMO

O turismo é essencial a qualquer pessoa, as experiências vividas em uma viagem ajudam a compreender e respeitar as diferenças, tornam as pessoas mais tolerantes e, vivenciando culturas diferentes, estas passam a enxergar a diversidade existente no mundo e até mesmo a valorizar ainda mais a sua própria cultura.

O turismo vai além do simples deslocamento de pessoas e envolve muito mais do que a compra de uma passagem de um determinado transportador para se chegar até o destino ou o meio de hospedagem escolhido. A atividade é, na verdade, algo muito mais complexo, que depende da interação de diversos fatores para que se proporcione uma experiência de viagem.

Para que se possa compreender o Turismo e suas complexidades é necessário aprofundar o estudo da atividade e suas implicações.

2.1 CONCEITO DE TURISMO

A Organização Mundial de Turismo (OMT, 2003) define o Turismo como: “as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e permanência em lugares distintos dos que vivem, por um período de tempo inferior a um ano consecutivo, com fins de lazer, negócios e outros.”

As atividades envolvidas durante uma viagem englobam desde transporte para o destino como o transporte dentro dele, hospedagem, alimentação e até mesmo as compras realizadas durante a viagem.

Além dessa definição da OMT, cabe ressaltar a explicação de Beni (2001, p.18), que consegue demonstrar a complexidade da atividade:

A atividade do Turismo surge em razão da existência prévia do fenômeno turístico, que é um processo cuja ocorrência exige a interação simultânea de vários sistemas com atuações que se somam para levar ao efeito final.

O Turismo, portanto, como resultado do somatório de recursos naturais do meio ambiente, culturais, sociais e econômicos, tem campo de estudo superabrangente, complexíssimo e pluricasual.A partir dessas duas definições pode-se perceber a amplitude da atividade

turística e tudo o que ela envolve para que um turista possa desfrutar de sua permanência em determinado destino turístico.

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Para a experiência completa da viagem é preciso que todos os setores/sistemas envolvidos na atividade turística aconteçam de forma perfeita e plena para atender aos desejos do turista. Não basta ter um sistema que funcione perfeitamente se o outro não o fizer também. Por exemplo, de nada adianta um sistema de transporte perfeitamente em funcionamento se o atrativo turístico a ser visitado não tem a estrutura necessária para atender ao turista e, por isso, acaba decepcionando-o na sua experiência em geral.

Além de todos esses sistemas envolvidos, o turismo tem características singulares e que são importantes destacar. São elas: a intangibilidade, a inseparabilidade, a heterogeneidade e a perecibilidade (DAVIES e WAGEN, 2001).

Na intangibilidade, os consumidores precisam assumir riscos ao comprar o produto uma vez que os serviços não podem ser vistos, tocados ou degustados antes da compra.

A inseparabilidade – também definido como simultaneidade – é uma característica em que os serviços são produzidos e realizados num mesmo momento, o que leva a sua heterogeneidade, ou seja, não há uma garantia de que a prestação de serviço será sempre igual ou padronizada.

E a perecibilidade é a característica de que os produtos turísticos não podem ser estocados. Se um quarto de hotel permanecer desocupado um pernoite, não terá como recuperar o valor que poderia ter sido ganho com ele.

Diante disso, percebe-se que o turismo além de ser dependente de diversos setores, tem, por si só, características muito peculiares que o tornam ainda mais imprevisível.

Cooper et al. (2001, p.41) explicam: “O turismo é uma atividade multidimensional e multifacetada, que tem contato com muitas vidas e atividades econômicas diferentes.” Por isso mesmo a atividade se torna imprevisível e, por envolver custos relativamente altos, muitas pessoas têm algum receio ao optar por realizar uma viagem.

A viagem não traz um retorno material/tangível para as pessoas que a realizam e, por isso, a atividade acaba concorrendo com o setor de produtos materiais, pois, muitas vezes, com os valores envolvidos em uma viagem pode-se adquirir um bem material em que se terá um retorno e uma satisfação garantida. Além do mais, terá a possibilidade de ter o objeto concreto em suas mãos, percebendo a validade de seu investimento. Algo que nem sempre é tão perceptível com o turismo.

Quando uma pessoa opta por viajar, o investimento realizado nem sempre terá o seu retorno percebido de maneira satisfatória. Pois, com um bem material a pessoa sabe o que estará adquirindo e terá suas expectativas atendidas na íntegra, e na viagem, não. É possível que a viagem não atenda na íntegra aos anseios e expectativas das pessoas.

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Swarbrooke e Horner (2002, p.83) ressaltam que há dois fatores que influenciam o turista na compra de um determinado produto do turismo: motivadores, que motivam o turista a desejar adquirir determinado produto; e determinantes, que determinam até que ponto o turista é capaz de adquirir o produto desejado. Os autores ainda comentam que o turista compra uma experiência integral e essa experiência tem algumas fases bem delineadas que são: a fase da antecipação (antes do início da viagem); a fase do consumo (durante a viagem) e a fase da memória (após a viagem).

Portanto, quando o turista opta por realizar uma viagem, ele já passou por diversas considerações a respeito da realização da mesma. E ele espera ter suas expectativas atendidas por completo quando escolhe comprá-la.

2.2 SETORES ENVOLVIDOS

A partir do conceito exposto, pode-se notar que o turismo é uma atividade complexa porque lida com todo o processo de deslocamento, de uma ou várias pessoas, envolvendo diversos setores de prestação de serviços. É uma atividade de pessoas para pessoas, não sendo algo previsível que tenha um método concreto para se chegar a um resultado ideal.

Para compreender todas as atividades integrantes do turismo é necessário uma visão multi e interdisciplinar. Através disso, pode-se dizer que o turismo é um sistema que, para melhor compreensão da estrutura da atividade, pode ser analisado por diferentes perspectivas – sejam elas econômica, geográfica etc.

Beni (2001, p.18) construiu o Sistema de Turismo (Sistur), “a fim de conhecer a estrutura dessa atividade, que compreende diversos e complexos conjuntos de causas e efeitos que devem ser considerados.” Em seu estudo, o autor aborda os mais diversos e variados setores que influenciam e fazem parte da estrutura da atividade e analisa desde os meios de hospedagem disponíveis em determinada localidade até a própria estrutura local.

Nota-se, na figura proposta por Lickorish e Jenkins, a amplitude dos setores envolvidos com a atividade turística e que proporcionam a experiência de viagem.

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Negócios da indústria do turismo

Fonte: Lickorish e Jenkins, 2000, p.135

Além das atividades diretamente relacionadas com o turismo, várias outras acabam fazendo parte de um processo de deslocamento, não sendo necessariamente uma área puramente turística.

Vários setores utilizados acabam sendo setores usufruídos pela própria população local e por isso é interessante observar que nem sempre o turismo se reserva para atividades ou setores unicamente turísticos e, sim, se utiliza de toda a infraestrutura de uma localidade (observe-se os setores secundário e terciário da figura proposta acima).

2.3 A EXPERIÊNCIA DE VIAGEM

A atividade turística está sempre ligada a algo prazeroso, ou seja, lida com expectativas, em muitos casos são pessoas que estão realizando uma viagem que planejaram por muito tempo e estão dispondo de seu tempo livre para conhecer um novo local, seja para atender um desejo de fuga da realidade, seja para realizar um sonho de muito tempo.

Os turistas “estão distribuídos na sociedade e procuram algo intangível, que é o prazer de uma viagem, muitas vezes tão sonhada. É por isso que o turismo é chamado de “indústria do sonho.” (PETROCCHI; BONA, 2003, p.15).

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As pessoas buscam em sua viagem atender desejos e necessidades que vão surgindo através de hobbies ou de uma rotina maçante sendo vista como um escape de sua realidade. Elas buscam em suas viagens coisas novas, que lhes deem prazer e que lhes permitam fazer coisas das quais realmente gostem.

O turismo é a “indústria dos sonhos” porque busca atingir muito mais do que a satisfação dos turistas, ele é o responsável por realizar sonhos através de viagens tão sonhadas e planejadas, e desejadas por um longo período.

Muito além do valor material de uma viagem, o profissional do turismo carrega consigo a responsabilidade de fazer o possível para que tudo corra bem, mesmo não tendo nenhum controle sobre a série de serviços que serão prestados ao turista no decorrer de uma viagem.

2.4 FATORES QUE INFLUENCIAM NA ATIVIDADE

Além de atender as expectativas dos viajantes, o turismo também tem que ser realizado de forma sustentável, ou seja, de maneira consciente para que a localidade visitada sofra o mínimo de impacto possível e seja preservada para as futuras gerações, uma vez que ele depende de atrativos naturais e culturais para continuar existindo.

Para que o turismo realize sua função é fundamental que se tenha pessoas preparadas para conseguir trabalhar com todos esses fatores e, assim, formatarem um produto sustentável que obtenha a satisfação do cliente.

Como ressaltam Cooper et al. (2001, p.37): “o turismo exige padrões muito altos de profissionalismo, conhecimento e dedicação de todos os envolvidos.”

A atividade não gera simplesmente uma profissão cuja ação leva a um resultado em especial, mas gera impactos profundos e amplos estendendo-se a todos os envolvidos, seja a localidade turística em questão, sejam as pessoas envolvidas com a localidade ou que estão realizando o deslocamento.

A dedicação e o profissionalismo são essenciais porque exigem das pessoas um comportamento gerado pelo conhecimento da atividade como um todo.

É importante perceber que o conceito de sustentabilidade está fortemente ligado à capacidade de carga e quando se refere a ela, não se deve pensar unicamente nos aspectos ambientais, mas também nos aspectos físicos, psicológicos e sociais (COOPER et al., 2001).

As pessoas ligadas à atividade turística precisam respeitar a capacidade de carga imposta pelas localidades e perceber quando haverá uma possível incompatibilidade de demandas turísticas e fazer o máximo possível para evitar qualquer conflito ou insatisfação do turista.

A sustentabilidade psicológica é não permitir que o turista, ao chegar na localidade turística, se sinta desconfortável com o que encontrar nela. É

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preciso estar atento a uma possível incompatibilidade de demandas turísticas no momento em que ele estará em uma certa localidade ou até mesmo um evento que esteja ocorrendo que não é de acordo com o perfil do turista.

Já os aspectos sociais da sustentabilidade se referem à população autóctone, que precisa estar preparada para receber uma determinada quantidade de turistas que estarão no local. Muitas vezes, a população não tem interesse em receber um número muito elevado de visitantes em sua cidade e isso deve ser respeitado. O turismo não visa somente aos turistas que estão se deslocando, mas também à população que estará recebendo esses turistas, uma vez que o turismo precisa levar em conta todos os envolvidos para que se obtenha a satisfação integral.

Já a sustentabilidade biológica ou ambiental se refere à capacidade de carga do meio ambiente. Em locais onde o ecoturismo, o turismo de aventura ou onde o meio ambiente de maneira geral, é o maior atrativo turístico, faz-se mister medidas governamentais e privadas para criar meios de preservar as áreas naturais que recebem visitantes para que essas áreas não sofram degradações e até mesmo para evitar qualquer alteração no ecossistema local.

Portanto, os profissionais do turismo têm uma ampla responsabilidade tanto de agradar e conquistar clientes como de ter uma preocupação com o ambiente (seja ele natural, cultural ou psicológico) da localidade receptora.

2.5 A ATIVIDADE TURÍSTICA

A partir dessas reflexões, pode-se perceber o quão complexa é a atividade turística e qual é o nível de profissionalismo exigido dos operadores da atividade. Não basta ter o simples conhecimento da atividade para que se possa exercê-la. É preciso atualização constante, preocupação com o meio ambiente e com a população autóctone, e preocupação com o turista que busca seus serviços para obter uma experiência de viagem. Juntando todos esses fatores com outros prestadores de serviços que entram em cada etapa do processo pode-se visualizar como é difícil prever os resultados de uma viagem.

2.5 CENÁRIO MUNDIAL E CENÁRIO NACIONAL

O Turismo cresce no Brasil e no mundo. De acordo com as pesquisas divulgadas tanto pelo Ministério do Turismo como pela Organização Mundial do Turismo (OMT), o número de turistas cresce a cada ano. E não só isso, as expectativas para o setor estão cada vez mais otimistas.

Segundo dados da OMT, esta é uma das indústrias que mais crescem no mundo. Em 2012, a OMT estima que o mundo atingirá,

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pela primeira vez, a marca histórica de 1 (um) bilhão de chegadas internacionais de turistas.

Além dessas expectativas, ainda é importante ressaltar que, de acordo com a análise da OMT,

nas últimas seis décadas, o turismo tem experienciado contínua expansão e diversificação, tornando-se um dos maiores setores da economia e de maior crescimento no mundo. Muitos destinos surgiram juntamente com os tradicionais da Europa e América do Norte (tradução nossa).

E o cenário nacional segue essas tendências de maneira ainda mais otimista. O turismo no Brasil cresce com números acima da média mundial.

De acordo com pesquisas divulgadas pelo Ministério do Turismo em 2009 o número de turistas que chegaram ao Brasil foi de 4,8 milhões e a receita cambial gerada pelo turismo no país foi de 5,30 bilhões de dólares.

Em um comparativo, também divulgado pelo Ministério do Turismo, dos meses de janeiro e fevereiro dos últimos anos resta demonstrado que a atividade cresce a cada ano. O número de desembarques internacionais nos aeroportos brasileiros em 2010 foi de 1.383.281 passageiros, em 2011 subiu para 1.565.248 e em 2012 chegou-se a 1.749.322. Quanto aos desembarques domésticos dos meses de janeiro e fevereiro em 2010 foi de 10.728.949, em 2011 chegou a 12.497.020, e em 2012 atingiu a marca de 13.710.020 passageiros. E não é somente o número de turistas que aumenta, a receita gerada pela atividade também cresce significativamente. Em 2010 a receita de turistas no Brasil era, em milhões de dólares, de 1.077, em 2011 subiu para 1.172 e em 2012 foi de 1.278.

Esses são apenas alguns números para demonstrar a força da atividade no país. O turismo cresce e com investimentos públicos e privados continuará a crescer cada vez mais.

A cada ano o Brasil vem se tornando opção de destino turístico para muitos turistas estrangeiros e o brasileiro tem sido estimulado e é lhe dado oportunidade para viajar e conhecer seu próprio país.

2.6 INTENÇÃO DE VIAJAR

De acordo com uma pesquisa realizada em 2011, maior o número de brasileiros com intenção de viajar, o que confirma o otimismo dos operadores de turismo em relação ao crescimento da atividade.

Conforme a pesquisa realizada pela FGV a intenção de viajar nos seis meses subsequentes à data da pesquisa, cresceu 14,5% em relação a 2010, o que decorre

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da situação econômica das famílias e da maior facilidade para fazer turismo. De acordo com o ministro Gastão Vieira:

“Isso se deve aos números positivos da economia brasileira. Além do nível de renda muito melhorado, tivemos a incorporação de quase 60 milhões de pessoas - que estamos chamando de a nova classe média brasileira - que, agora, estão consumindo turismo. A pesquisa demonstra que a cada três famílias, uma demonstra o desejo de viajar e quase 50% das pessoas que viajaram desejam repetir a viagem dentro do mesmo ano”, disse o ministro.

A pesquisa revelou que 34% das famílias entrevistadas desejou fazer turismo em 2011 e essa foi a maior média desde o início da pesquisa que é realizada mensalmente desde 2008.

Através dessa pesquisa, pode-se concluir que o turismo é uma atividade forte na economia brasileira e que cresce a cada ano devido à economia do país e às facilidades para viajar.

2.7 INFLUÊNCIA DA ATIVIDADE NA ECONOMIA

Diante dos números expostos e do otimismo em relação à atividade é importante ressaltar que a atividade deve ser valorizada e estimulada, pois gera renda e empregos e tem grande influência nos números da economia nacional.

Segundo dados da Fecomercio/SP (Junho/2011):

Em 2010, cerca de R$ 130 bilhões do PIB brasileiro foram gerados diretamente no setor de turismo, o que, de forma direta e indireta, contribuiu com R$ 357 bilhões no total da produção do País. Ou seja, para cada real gerado no setor de turismo, foram gerados R$ 2,75 de PIB. Com relação ao emprego, a cada posto criado pelo setor, mais 1,9 empregos indiretos são gerados, ou seja, um total de 2,9 empregos.

Uma outra forma de olhar para o segmento do turismo é aprofundar análise sobre a geração de empregos. São R$ 130 bilhões de PIB criando 2,8 milhões de ocupações. Portanto, a cada R$ 46,5 mil do PIB, surge um emprego. Vale ressaltar que os empregos diretos e indiretos do setor guardam uma qualidade acima da média, envolvendo principalmente o setor de serviços, que é hoje o mais dinâmico na economia. O potencial absoluto do setor é certamente muito maior do que se vem aproveitando, principalmente no momento histórico em que o Brasil, juntamente a

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outros emergentes, é apontado como uma das cinco maiores economias do mundo dentro de dez ou 20 anos. Esse fenômeno, agregado às dimensões continentais, enorme patrimônio histórico e cultural, tende a alavancar o turismo brasileiro.

O crescimento significativo do Turismo no Brasil já é uma realidade e é indiscutível a sua importância no cenário econômico nacional e mundial; no entanto, à medida que os números de geração de renda e empregos aumentam devido à evolução da atividade no país, começam a surgir inúmeras dificuldades – seja pela falta de profissionais qualificados, seja pela falta de infra-estrutura adequada para atender esses turistas, seja pelo desconhecimento ou indefinição dos direitos e deveres de cada uma das partes envolvidas nesse processo – e questionamentos nunca feitos anteriormente.

O turismo tem grande importância para a economia brasileira, e tem muito potencial para se desenvolver ainda mais, por isso se faz tão necessário uma reflexão aprofundada a respeito da atividade.

2.8 DAS VICISSITUDES DA ATIVIDADE

Diante de todo o exposto, só se pode chegar a uma conclusão: a atividade turística cresce, mas com seu crescimento grandes falhas começam a surgir e ser apontadas: como foi o caso do apagão aéreo em 2006. E não só isso, através disso pode-se notar que a atividade não é algo fácil de se prever. Qualquer acontecimento pode interferir na viagem dos sonhos de uma pessoa – seja um atraso no voo, seja mau atendimento em algum atrativo turístico que ela visite.

A função do operador de turismo é assegurar por todos os meios possíveis que a viagem contratada pelo viajante seja perfeita e de acordo com os seus interesses. No entanto, as vicissitudes da atividade – por tudo o que envolve – acaba dificultando a previsibilidade do resultado.

Enquanto a viagem de uma família pode sair perfeita, exatamente como planejada, outra família pode ter uma viagem com todas as falhas possíveis de ocorrerem. E os esforços e cuidados empregados pelo profissional de turismo foram exatamente os mesmos para ambas as viagens.

No entanto, como isso pode ser visto de maneira única pelo Direito? Não deveria o Direito buscar soluções para que não ocorressem decisões meramente legalistas?

Diante de tantos problemas e tantas dificuldades enfrentadas por uma das maiores indústrias do mundo, que cresce a cada ano e auxilia na economia do país, faz-se necessário um estudo cuidadoso para que não ocorram “injustiças” que desestimulem o crescimento do turismo no Brasil e também dos investimentos do setor privado para o desenvolvimento da área.

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3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE VIAGENS

Após ampla exposição da atividade, neste capítulo será realizado um estudo mais aprofundado a respeito da responsabilidade civil das agências de viagens.

É importante destacar que o conceito de agência de viagens não se confunde com o de operadora de viagens e, embora essas duas possuam características similares, elas atuam de maneira bem diversa.

Grande parte da doutrina confunde o conceito de ambas e, em seus textos, defendem teorias a respeito da responsabilização das agências quando na verdade estão tratando de operadoras e vice versa.

As agências de viagens são meras intermediárias e vendem produtos e pacotes turísticos previamente selecionados pelas operadoras. Isto implica em afirmar que a operadora é quem decide com qual empresa de transporte irá trabalhar, quais os melhores hotéis para atenderem sua demanda, quais serão as empresas que irão realizar os serviços em determinadas localidades e assim por diante. Às agências compete apenas comercializar esses produtos. Até mesmo quando se trata de forfaits, se a agência optar por determinado hotel, por exemplo, a operadora é quem decide se comercializa ou não esse serviço.

Optou-se por abordar e focar unicamente neste setor em específico da atividade turística porque as agências de viagens possuem características muito peculiares, como brevemente relatado acima, e que são alvo de grande discussão tanto na atividade quanto na doutrina e jurisprudência a respeito da sua responsabilidade civil.

3.1 DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Primeiramente, cabe discorrer brevemente a respeito do conceito da responsabilidade civil de maneira ampla.

Explica Venosa (2006, p.1):

Em princípio, toda atividade que acarreta um prejuízo gera responsabilidade ou dever de indenizar. Haverá, por vezes, excludentes, que impedem a indenização, como veremos. O termo responsabilidade é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou negócio jurídico danoso. Sob essa noção, toda atividade humana, portanto, pode acarretar o dever de indenizar. Desse modo, o estudo da responsabilidade civil abrange todo o conjunto de princípios e normas que regem a obrigação de indenizar.

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Ressalta ainda Noronha (2003, p.429):

A responsabilidade civil é sempre uma obrigação de reparar danos: danos causados à pessoa ou ao patrimônio de outrem, ou danos causados a interesses coletivos, ou transindividuais, sejam estes difusos, sejam coletivos strictu sensu.

Diante dessas definições, pode-se perceber que a responsabilidade civil é, na verdade, o dever de reparar um dano causado devido a uma falta de cuidado – uma ação ou omissão – que causou prejuízo a outrem.

3.1.1 DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Para que nasça o dever de indenizar é preciso atender a três pressupostos: culpa, dano e nexo de causalidade.

A culpa refere-se à conduta do ser humano que, omissiva ou comissivamente, deixou de observar um dever de cuidado e ocasionou danos a terceiros, ou seja, a atuação indevida do agente que causou o dano. Aqui pode-se falar na culpa propriamente dita (negligência, imprudência e imperícia) e no dolo.

Por negligência se entende uma falta de cuidado, uma omissão na hora de executar uma certa diligência, é a falta de atenção. A imprudência é agir com falta de precaução. E a imperícia é agir com inaptidão ou falta de conhecimento técnico para tal.

É correto afirmar que na culpa há um erro de conduta onde não há intenção de gerar um resultado lesivo, no entanto, ele é previsível. Caso não seja possível prever o resultado danoso, inexiste o dever se reparar.

Assim afirma Gonçalves (2011, p.34)

É consenso geral de que não se pode prescindir, para a correta conceituação de culpa, dos elementos “previsibilidade” e comportamento do homo medius. Só se pode, com efeito, cogitar de culpa quando o evento é previsível. Se, ao contrário, é imprevisível, não há cogitar de culpa.

No dolo, a grande diferença para a culpa é o caráter subjetivo do agente onde este tem a intenção de causar o dano, ou seja, o agente “tem pleno conhecimento do mal e perfeita intenção de praticá-lo.”(GONÇALVES, 2011, p. 35)

O segundo pressuposto para a responsabilização civil é o dano, o prejuízo causado a um terceiro, e se refere a uma ofensa a qualquer bem jurídico, seja ele patrimonial ou não.

E, por fim, o nexo de causalidade é a “verificação de uma relação, ou um liame, entre o dano e o causador, o que torna possível sua imputação a um indivíduo.” (RIZZARDO, 2009, p.71)

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O nexo causal nada mais é do que a ligação entre o dano e a conduta do agente. Se a conduta do agente não causou dano ao terceiro, não se pode falar em responsabilização.

Portanto, em regra, atendidos esses três pressupostos, pode-se falar em dever de indenizar ou reparar um dano.

3.1.2 TIPOS DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Existem dois tipos de responsabilidade civil: a objetiva e a subjetiva. A responsabilidade civil objetiva é aquela em que o dano deve ser reparado independente da prova de culpa do agente bastando a prova do nexo de causalidade. Já a subjetiva é aquela em que o dever de reparar o dano só surge com a prova da culpa – em seu sentido amplo – do agente causador do dano, isto é, negligência, imprudência, imperícia ou dolo.

O Código de Defesa do Consumidor adota a responsabilidade civil objetiva, ou seja, diante de um dano ocorrido, o fornecedor de produtos ou serviços tem o dever de indenizar o consumidor independente de culpa.

Excepciona-se, no entanto, quando o fornecedor de serviços se enquadra na categoria de profissional liberal, que nesse caso, de acordo com o art. 14, parágrafo 4º, CDC, só tem o dever de indenizar mediante a prova de culpa ou dolo – responsabilidade civil subjetiva.

Além disso, responsabilidade civil também pode ser solidária ou subsidiária.

Fala-se em responsabilidade civil solidária quando todos os envolvidos no processo de fornecimento do serviço são responsáveis pelo resultado final. Explica Reinaldo Filho (2011) que “a solidariedade implica que todos os intermediários da cadeia de fornecimento de um produto ou serviço respondam por dano causado por apenas um deles, podendo o lesado escolher contra quem quer demandar”, ou seja, no caso de falha no serviço por parte de um dos envolvidos em um pacote turístico todos os fornecedores envolvidos podem ser responsabilizados.

A responsabilidade civil subsidiária é aquela em que existe uma ordem de preferência, chamada de benefício de ordem, em que o responsável secundário responderá apenas após a insuficiência do primário e o terciário na falta do secundário e assim sucessivamente. O que se busca esclarecer aqui é que na responsabilidade subsidiária existe uma ordem de cobrança que deve ser obrigatoriamente respeitada. Um exemplo clássico é a responsabilidade do fiador sobre os aluguéis do locatário: o fiador apenas poderá ser obrigado a pagar o valor dos aluguéis em atraso quando todas as vias para obrigar o locatário a realizar o pagamento forem frustradas.

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Diante dessas reflexões a respeito da responsabilidade civil, cabe destacar que o código consumerista prevê a responsabilidade civil objetiva (art. 14, CDC) e solidária (art. 7º, parágrafo único, CDC) para os fornecedores de produtos e serviços, de maneira a buscar equilibrar a relação de consumo onde o consumidor é a parte vulnerável da relação e, portanto, a busca pelo ressarcimento dos fatos e vícios dos produtos e serviços deve ser simples e fácil para o consumidor (art. 6º, VI e VIII, CDC).

3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE VIAGENS

Tema controverso, a responsabilidade civil das agências de viagens ainda é incerta, pois embora a maioria da jurisprudência e da doutrina defenda a responsabilidade objetiva e solidária, ainda há uma minoria que defenda que essa responsabilização não seja a mais correta ou justa.

Na primeira vertente, temos a responsabilidade civil objetiva e solidária onde CARVALHO (1999) defende que as empresas de turismo devem ser responsabilizadas objetiva e solidariamente, pois estão sob a égide do Código de Defesa do Consumidor.

Como fornecedores, as agências respondem pelos danos causados ao turista pela inadequação e pelos vícios de qualidade dos serviços prestados por qualquer fornecedor da cadeia de serviços, uma vez que é a própria agência que escolhe hotéis e outros estabelecimentos que irão compor o pacote turístico, não podendo o consumidor escolher o estabelecimento que melhor lhe convém.

Destaca, ainda, que o risco da atividade econômica é do fornecedor uma vez que é princípio do Direito: Qui habet comoda, ferre debet onera (quem goza as vantagens também deve suportar as desvantagens).

Cláudia Lima de Marques (1998, p.176) ainda afirma:

A relação contratual do consumidor é com a agência de viagem, podendo exigir desta a qualidade e a adequação da prestação de todos os serviços, que adquiriu no pacote turístico contratado, como se os outros fornecedores seus prepostos fossem[...] tratando-se de um contrato de organização de viagens, responsabilizam a agência de viagens pela conduta de qualquer prestador de serviços envolvido na viagem turística, prestador este que é considerado um auxiliar da agência [...]

Por fim, conclui Carvalho que

a responsabilidade das operadoras de turismo32 compreende a garantia de

32 Vale destacar que a denominação operadora de turismo usada pelo autor se confunde com o

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qualidade dos estabelecimentos hoteleiros, dos serviços de transporte e de alimentação ofertados ao consumidor, o qual, se lesado em seus direitos e expectativas, poderá ingressar em juízo contra a empresa que vendeu o pacote turístico e contra toda a cadeia de fornecedores envolvida, em demanda fundada em responsabilidade solidária e objetiva, independente de culpa, com grandes possibilidades de êxito, de modo a reequilibrar os direitos do consumidor diante do fornecedor no mercado.

Portanto, sob essa vertente, tem-se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor pura e diretamente. As agências de viagens são fornecedoras de serviço e, por isso, são responsáveis objetiva e solidariamente por falha na execução do serviço independentemente de qualquer análise mais aprofundada a respeito do tema.

Todavia, se a reflexão for um pouco mais profunda, respeitando a peculiaridade da atividade exercida pelas agências de viagens, chega-se à conclusão de Reinaldo Filho:

Mesmo atuando essencialmente como intermediárias entre os turistas e os prestadores efetivos dos serviços turísticos, as agências de turismo estão sujeitas a um regime jurídico bastante ampliado (porque não dizer “ilimitado”) de responsabilização. Em outras palavras, respondem diretamente por qualquer dano que o turista (consumidor) venha a sofrer em qualquer momento da cadeia de prestação de serviços. A responsabilidade delas engloba todos os serviços que o consumidor adquire por seu intermédio, mesmo sendo prestado por outra empresa, como, p. ex., serviço de transporte, hotel e outros. Assim, se ocorre uma má-prestação de serviço durante a estada no hotel ou um acidente qualquer durante o transporte, o turista pode reclamar os danos sofridos (materiais ou morais) diretamente contra a agência que lhe vendeu o “pacote” turístico.

E continua o autor:

A responsabilidade objetiva e solidária pelos acidentes e vícios dos serviços que intermedia com a venda dos chamados pacotes turísticos é vista por alguns segmentos como um excessivo ônus para as agências de turismo. Um pacote turístico abrange uma cadeia de fornecedores, na qual um número indeterminado de agentes está vinculado a uma parte específica da prestação. Se a responsabilidade envolve a garantia de qualidade de todos os serviços

conceito de agência de viagem.

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integrantes do programa turístico, pode comprometer a própria viabilidade da atividade, argumenta-se. A classe dos prestadores de serviços turísticos que atuam intermediando a venda de “pacotes” ou organizando excursões geralmente é formada por pequenas e micro-empresas (com capital reduzido) e que, portanto, não suportam indenizar o consumidor lesado por falha de serviço executado por outro prestador da cadeia de serviços. Nesse sentido, a responsabilização deve ser imputada somente àquele fornecedor que introduz e presta o serviço no mercado, e não à agência de turismo, que somente faz a representação/intermediação do negócio.

Com esse pensamento, houve algumas tentativas legislativas de tentar minimizar ou limitar a responsabilidade civil das agências de viagens, como foi o caso do art. 27, parágrafo 6º, da Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/08) que previa a responsabilização solidária das agências de viagens somente nos casos em que o fornecedor direto não pudesse ser identificado ou não possuísse representante no Brasil.33

No entanto tal dispositivo foi vetado pelo Presidente à época sob o fundamento de que “poderia enfraquecer o sistema de proteção delineado no CDC e fundado na responsabilidade solidária, criando uma exceção colidente com a política de defesa do consumidor aplicável a todos os setores da atividade econômica”.

Acredita-se, porém, que a limitação parcial da responsabilidade das agências de viagens não ofenderia aos princípios do Código de Defesa do Consumidor uma vez que, com todos os outros envolvidos na cadeia de fornecimento do serviço, isso não impossibilitaria ou dificultaria que o consumidor viesse a ser ressarcido e, caso assim fosse, as agências de viagens poderiam ser responsabilizadas objetiva e subsidiariamente.

Defende-se esse entendimento pois, sendo possível identificar o fornecedor que atuou com falha na prestação de determinado serviço e sendo possível acioná-lo judicialmente sem prejuízo ao direito do consumidor, assim deveria ser.

Se o Código de Defesa do Consumidor abriu exceções aos profissionais liberais e aos comerciantes por terem características peculiares e que por isso mereceriam um regramento diferente na sua responsabilização, é justo pensar em um tratamento diferenciado para as agências de viagens que atuam como meras intermediárias.

33 “Art. 27. ....................................§ 6º A agência de turismo é responsável objetivamente pela intermediação ou execução direta dos serviços ofertados e solidariamente pelos serviços de fornecedores que não puderem ser identificados, ou, se estrangeiros, não possuírem representantes no País.”

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Apesar da grande maioria da doutrina e da jurisprudência entender a responsabilidade das agências de viagens objetiva e solidariamente, é preciso uma reflexão mais aprofundada para definir a responsabilização das mesmas, pois estes fornecedores de serviços possuem características muito distintas e que devem ser levadas em consideração no momento de definir se são ou não responsáveis por determinadas falhas nos serviços dos pacotes turísticos.

Diante desse posicionamento, defende-se que a agência de viagens, enquanto intermediária, deve ser responsável subsidiária no caso de eventuais falhas nas prestações de serviços pelas demais empresas eleitas para o pacote de viagens, assemelhando-se à responsabilidade concedida ao comerciante no art. 13 do CDC.

Responsabilizar as agências de viagens para além disso é como tornar o nexo causal, necessário ser comprovado para fins de indenização, infinito. Se uma agência pode ser responsabilizada por um objeto furtado nas dependências de determinado hotel ou ser responsabilizada por ter indicado um restaurante onde o cliente veio a ter uma infecção alimentar, seria como que tornar possível responsabilizar civilmente a mãe que gerou um filho que veio a cometer homicídio.

Não se quer aqui eximir as agências de viagens de qualquer responsabi-lidade, como sabiamente ressalta Paulo Roberto Wiedmann

As operadoras e as agências de viagens, quando for o caso, respondem por culpa in elegendo e in vigilando, razão porque a boa escolha do prestador dos serviços e a vigilância, no sentido de que o mesmo realmente preste bons serviços, é fundamental.

Como empresas atuantes no ramo do Turismo e que possuem conhecimento da atividade, as agências têm a obrigação de selecionar bons prestadores de serviços, trabalhar com boas operadoras de viagens e assim por diante. Porém, mesmo tomando todas as precauções necessárias, se ainda assim houver a falha na prestação dos serviços, não é justo falar em responsabilidade solidária.

É importante ressaltar aqui que está se tratando unicamente da responsabilidade civil das agências de viagens e que não se inclui aqui as operadoras de viagens como muitos autores confundem em suas reflexões no conceito de ambas.

Note-se que as operadoras de viagens montam e ofertam os pacotes turísticos e escolhem livremente quais empresas irão compor sua oferta. As agências de viagens apenas repassam esses pacotes para o consumidor final sem ter qualquer poder de escolha na eleição dos demais fornecedores do pacote. Em alguns casos, no momento da elaboração de forfaits, as agências de viagens exercem um papel um pouco mais ativo na definição de quais fornecedores irão

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compor a cadeia de serviços que serão ofertados, porém, as operadoras ainda podem filtrar e se negar a vender determinados fornecedores.

O que se defende aqui é que quando os pacotes de viagens são montados por operadoras de turismo, as agências de viagens teriam responsabilização subsidiária no caso de falha na prestação de serviços aplicando-se as restrições impostas ao comerciante no art. 13 do CDC, por analogia. Já quando a agência de viagens seleciona e trata direto com os seus fornecedores, assumindo o papel de “operadora”, aí sim é possível se falar em responsabilização objetiva e solidária.

4 EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS DE TURISMO

Para que haja a responsabilização civil dos fornecedores assim caracterizados no CDC é preciso que dois pressupostos sejam atendidos: é preciso ter ocorrido um dano e é preciso a comprovação do nexo causal. Em regra, atendidos esses requisitos nasce o dever de indenizar. Porém, em alguns casos muito específicos, é possível eximir as empresas de turismo do dever de indenizar determinado dano.

O Código de Defesa do Consumidor admite essa exclusão no art. 14, parágrafo 3º, onde elenca taxativamente duas possibilidades: a inexistência do defeito no caso de prestação do serviço e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

No caso da prestação de serviço, é necessário provar que o defeito existe, caso contrário, não há que se falar em responsabilidade. Exemplifica Rizzardo (2009, p.429) que

em relação à inexistência do defeito, demonstra-se que o serviço foi realizado a contento, devendo-se o precário funcionamento ao estado das peças do bem, como no veículo e nos eletrodomésticos; igualmente, que a falta de durabilidade se deve ao material de baixa qualidade entregue pelo que encomendou o serviço.

Porém, nota-se que a prova de que o defeito inexiste deve ser do fornecedor. Conforme ressalta Ferreira (2006, p. 48)

Para que ocorra a excludente de responsabilidade disposta no art. 14, par. 3º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, deve o fornecedor comprovar que seu serviço era dotado de toda segurança que legitimamente se espera e que não havia defeitos juridicamente relevantes. Só assim conseguirá romper o nexo de causalidade entre o serviço e o dano produzido.

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E, para Rizzardo (2009, p.429), no caso da culpa exclusiva do consumidor, a responsabilidade do fornecedor é afastada quando desobedecidas as recomendações fornecidas pelo prestador de serviço. Se o consumidor utiliza o bem para finalidades diversas daquelas a que este se destina ou desobedece qualquer instrução que lhe foi passada, não há que se falar em responsabilização.

Destaca-se que a culpa deve ser exclusiva do consumidor, se esta for concorrente não há que se falar em exclusão de responsabilidade. Assim explica Ferreira (2006, p.48):

Para que haja a exclusão de responsabilidade por culpa do terceiro ou do consumidor, deve ela ser exclusiva. Se tiver a mínima participação do fornecedor, a responsabilidade será inteiramente sua, mesmo que o consumidor participe culposamente na produção do dano.

Ainda é possível falar em exclusão de responsabilidade no caso de culpa exclusiva de terceiro, isto é, “a irresponsabilização ocorrerá se o agente provar que o acidente se deu por culpa de terceiro – pessoa estranha à relação existente entre o consumidor e o agente produtor.” (Nunes, 2011, p.331)

O terceiro, neste caso, tem de ser alguém que não tenha nenhum vínculo com a relação jurídica que está estabelecida; se o dano for causado por empregado, preposto ou representante comercial, o fornecedor continua respondendo pelo dano.

Assim exemplifica Nunes (2011, p.331): “o agente produtor só não responde se o acidente for causado por terceiro autêntico. Por exemplo, foi um terceiro que causou a colisão do veículo, e não o problema no sistema de freio.”

O Código Civil afirma ser uma excludente de responsabilidade o caso fortuito e a força maior, excludente essa que não foi citada no código consumerista. Porém, apesar de não ter sido elencado no CDC, acredita-se que caso um serviço não possa ser prestado por caso fortuito e força maior também não se pode falar em responsabilização da empresa de turismo.

Ressalta Rizzardo (2009, p.429) que “o caso fortuito ou de força maior também se constitui em causa de isenção.”

Esse entendimento já foi aceito pelo Superior Tribunal de Justiça que acolheu esta causa como excludente de responsabilidade:

O fato de o art. 14, par. 3º, do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito ou à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. A inevitabilidade, e não a imprevisibilidade, é que efetivamente mais importa para caracterizar o

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fortuito. E aquela há de entender-se dentro de certa relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigir-se.

Todavia, quando se trata da responsabilização das empresas de turismo, essas excludentes são, em muitos casos, ignoradas.

Embora haja o entendimento doutrinário e jurisprudencial que acolhe essa excludente de responsabilidade, ainda há os que defendam que, por não ter sido elencada no CDC, ela não é uma possível causa de exclusão.

Assim explica Nunes (2011, p. 330)

O risco do fornecedor é mesmo integral, tanto que a lei não prevê como excludente do dever de indenizar o caso fortuito e força maior. E, como a norma não estabelece, não pode o agente responsável alegar em sua defesa essas duas excludentes.

Ora, esse entendimento não parece ser o mais correto pois, ao afirmar que caso fortuito e força maior não podem ser alegadas como excludentes de responsabilidade nas relações consumeristas, seria o mesmo que afirmar que o nexo de causalidade adquire extensão praticamente infinita.

Seria como responsabilizar o fornecedor de serviços por algo que está além do seu alcance, devendo este não apenas garantir a prestação adequada do seu serviço mas também tendo que adivinhar o que deve ser feito para garantir a satisfação do seu cliente.

Isso rejeita completamente o que foi ilustremente ressaltado na decisão do Desembargador Antonio de Padua, do TJ/MG, a respeito da responsabilidade dos estabelecimentos de Alimentos e Bebidas:

Mas, é absolutamente certo que tais indenizações não podem, de um lado, ter o escopo de enriquecer uma das partes e, de outro, empobrecer a outra, mas ter sempre em mente o objetivo de servir de advertência para que tais erros não venham a ser novamente praticados.

A responsabilização tem como objetivo servir de advertência para evitar que novos erros sejam praticados, o que significa afirmar que tem cunho educativo para o fornecedor e é uma maneira de restabelecer o status quo do consumidor que foi prejudicado.

No entanto, ao não acolher o caso fortuito ou força maior como uma excludente de responsabilidade, seria como permitir que o fornecedor assuma todos os riscos, previsíveis ou não, no momento da prestação do serviço, e a responsabilização deixaria de ter seu cunho educativo para ser um fator meramente enriquecedor para os consumidores.

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Portanto, como excludentes de responsabilidade para as empresas atuantes na atividade turística pode-se citar a inexistência de defeito no caso de prestação do serviço; a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro; e o caso fortuito e a força maior.

5 CONCLUSÃO

Através desse estudo pôde-se perceber que a atividade turística é superabrangente e complexa. Segundo a definição da Organização Mundial do Turismo, o Turismo são todas as atividades realizadas pelas pessoas durante suas viagens e permanência em lugares distintos dos que vivem.

É uma atividade muito ampla e que possui características que tornam impossível prever o seu resultado final. Ao contrário de uma indústria que fabrica um bem material onde todo um processo leva a um resultado final, o Turismo – mesmo que siga todo um procedimento estabelecido – não tem o mesmo resultado.

Ao mesmo tempo que dois passageiros viajando pela mesma agência e para o mesmo destino, com o mesmo pacote, cada um pode ter experiências completamente diferentes. Ao mesmo tempo em que um terá uma viagem perfeita o outro, poderá ter uma viagem completamente fora do esperado.

Isso ocorre porque o turismo possui como características a perecibilidade e a simultaneidade, ou seja, os produtos não podem ser estocados como um bem tangível e, portanto, a geração e produção do serviço são gerados ao mesmo tempo.

Então, enquanto um passageiro encontra com determinado funcionário de hotel e tem todas as suas necessidades atendidas, ao mesmo tempo o segundo passageiro pode encontrar o mesmo funcionário tendo um dia ruim e não ter o atendimento mais adequado para as suas necessidades.

Quando ocorrem falhas ou vícios nos serviços, pode-se falar em responsabilidade civil das empresas de turismo que, pelo fato de estarem abrangidas pelo Código de Defesa do Consumidor, possuem responsabilidade objetiva e solidária.

E grande parte da doutrina e das jurisprudências aplica essa teoria sem maiores reflexões. Basta alegar a teoria do risco da atividade que afirma que todo aquele que explora atividade econômica lucrativa deverá suportar os prejuízos sofridos por outrem em decorrência do seu exercício.

Diante de toda a complexidade da atividade turística, considere-se a responsabilidade civil das agências de viagens. Elas respondem objetiva e solidariamente por todos os seus prepostos, ou seja, uma falha no serviço de transporte, hospedagem, no atrativo turístico indicado e incluído no pacote, tudo isso é motivo para que a agência seja responsabilizada.

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No entanto, o grande questionamento é se isso seria o mais correto uma vez que é possível identificar o fornecedor do serviço e responsabilizá-lo. A agência tem que responder solidariamente pelas falhas na execução de serviços por outros fornecedores?

Com isso, pode-se concluir que a atividade turística é complexa e a aplicação do CDC nas relações de consumo envolvendo turistas tem sido extremamente favorável aos consumidores dificultando a atuação das empresas de turismo e, além disso, a falta de conhecimento dos direitos e deveres dos turistas e empresas acabam dificultando a atuação dos profissionais do turismo que acabam sendo responsabilizados pelo desconhecimento da legislação aplicável a eles.

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REFERÊNCIAS

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O ABUSO DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR E A CONSEQUENTE OCORRÊNCIA DE DANOS PSÍQUICOS AO EMPREGADO

THE DIRECTIVE POWER ABUSE BY THE EMPLOYER AND THE CONSEQUENT PSYCHICAL DAMAGES TO THE EMPLOYEE

JulianE criStina molina

Bacharelanda de Direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

EriKa paula DE campoS

Formada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1990. Possui mestrado(2000) e doutorado (2005), em Direito, na área de relações sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e orientadora na graduação e pós-graduação de Direito do Trabalho no Centro Universitário Curitiba e na pós-gra-duação na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba/PR. Professora convidada de várias instituições de ensino. Advogada sócia do escri-tório Campos e Advogados Associados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Civil.

SUMÁRIO: Resumo. Abstract. 1. Introdução. 2. Revisão da Literatura. 3. Procedimentos Metodológicos. 4. Considerações Finais. Referências.

RESUMO

O presente trabalho traça as principais características do poder diretivo do empregador, dividido em poder de organização, de controle e disciplinar, além de definir seus limites em prol do bem-estar do empregado. Define princípios gerais de direito, ressaltando o princípio da dignidade da pessoa humana, e princípios especiais de direito do trabalho, os quais visam tutelar amplamente o empregado. Demonstra aspectos do meio ambiente laboral e da saúde do trabalhador como fatores indispensáveis ao maior rendimento e produtividade, devendo-lhe ser verificados e concedidos de forma positiva e integral. De forma não rara, muitas vezes o poder concedido àquele que comanda as atividades da empresa é exercido de forma abusiva, atingindo o empregado mentalmente e causando consequências no âmbito de sua saúde psíquica. Nesse sentido, o estudo aborda as patologias mentais relacionadas ao trabalho como resultado do mal-estar ocasionado pelo empregador, entre elas as consequências do assédio moral provocado, o mal-estar,

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o estresse, a depressão e a síndrome de burnout, além dos acidentes de trabalho que podem vir a ocasionar prejuízos mentais. Por fim, são apresentadas algumas decisões proferidas por tribunais brasileiros com a finalidade de demonstrar a indenização que é devida ao dano e a forma adotada pelos magistrados a fim de evitar a ocorrência dessas condutas prejudiciais.

Palavras-chave: empregador, poder diretivo, abuso, consequências, saúde mental.

ABSTRACT

The following work outlines the main characteristics of the employer’s directive power, divided into power of organization, of control and disciplinary, besides defining its limits in order to preserve the wellbeing of the employee. It defines general principles of law, highlighting the dignity principle of the human being, and special principles of the labour law, which aim to widely protect the employee. It demostrates aspects of the labour environment and of the employee’s health as indispensable factors to a better efficiency and productivity, which have to be provided and verifyed in a positive and integral way. In a non rare way, many times the power provided to the individual commanding the company’s activities is used in an abusive way, affecting the employees mentally and having consequences within their psychical health. In these terms, the study approaches the mental pathologies related to work as a result of the ill-being caused by the employer, among those: the consequences of the moral harassment, ill-being, stress, depression, and burnout syndrome, besides work-related accidents that can cause mental damages. Finally, some decisions issued by Brazilian courts are shown with the intention of demonstrating the damages indemnity due and the form that the magistrates embrace in order to prevent the occurrence of these harmful behaviors.

Keywords: employer; directive power; abuse; consequences; mental health.

1 INTRODUÇÃO

É de fundamental importância no ambiente de trabalho a presença de um superior, o empregador, ditando as regras a serem seguidas pelos seus empregados com o objetivo de manter a organização do trabalho, o controle e a disciplina. Para tanto, existe a célere divisão do poder diretivo do empregador em poder de organização, controle e disciplinar.

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Todavia, o poder do empregador, que envolve a subordinação do empregado, deve ser legítimo, assegurado em lei, adequado aos princípios e aos contratos individuais de trabalho, uma vez que não é ilimitado e nem absoluto.

Deve o empregador, sobretudo, proporcionar um meio ambiente saudável ao empregado, e evitar situações abusivas de poder. Uma vez exercido o poder de forma exacerbada e descomedida, as consequências podem ser no âmbito da queda de produtividade, da reputação da empresa e na qualidade do serviço, o que vem a causar um prejuízo significativo ao mercado de trabalho.

Ademais, todo cidadão deve ter o direito a uma vida digna, da mesma forma que todo trabalhador tem o direito de exercer um ofício e de ser respeitado no ambiente laboral. Por esse princípio será protegido de humilhações e de possíveis abusos do poder do empregador e deverá ter um ambiente de trabalho equilibrado e saudável.

Os danos provenientes do abuso praticado atinge o ser humano em sua integridade, principalmente emocional, e no âmbito de sua personalidade, gerando como principal resultado a incapacidade para o trabalho. As patologias mentais relacionadas ao abuso e as más condições do meio ambiente de trabalho pode englobar sintomas que vão desde a tristeza e a depressão até pensamentos suicidas e consumo de drogas.

A relação saudável entre empregador e empregado é, entretanto, fundamental para o exercício da empresa, de forma que havendo qualquer comprometimento de ordem abusiva no ambiente laboral, a motivação para a realização do trabalho, o progresso da empresa e a estabilidade dos empregados causam danos graves a diversos setores da sociedade.

2 REVISÃO DA LITERATURA

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental norteador de todo o sistema jurídico. Está previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal e tem como objetivo fundamental dar aos indivíduos uma adequada qualidade de vida. Nesse sentido, o princípio pode ser invocado em diversos ramos do direito, inclusive no direito do trabalho, de forma que pode vir a solucionar conflitos provenientes da relação capital versus trabalho, ou seja, na medida em que a produção e os rendimentos da empresa tornam-se objetivos do empregador, o empregado encontra-se inserido nesse propósito, devendo ter seus direitos, inclusive e, sobretudo, o direito de uma vida digna, protegidos.

Dentro desse tema, Maurício Godinho Delgado faz uma relação muito interessante entre a valorização do trabalho e a valorização do indivíduo, ressaltando a valorização do trabalho como sendo o principal meio de valorização do próprio individuo, uma vez que encontra-se a maior parte do

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tempo inserido no ambiente laboral, e tem ainda, o trabalho como seu meio de subsistência. Logo, da mesma forma em que o trabalho deve ser valorizado, o empregado também deve ser (DELGADO, 2005, p. 76).

Partindo desse contexto, o trabalhador deve ser devidamente respeitado em seu ambiente de trabalho e ser considerado, pelo empregador, como um fator de dignificação, crescimento e valorização pessoal e não de deterioração. Ainda, é dever do empregador e direito de seu empregado, um ambiente saudável e seguro, de forma a estimular a atividade exercida pelo empregado e, ao mesmo tempo, o crescimento da própria empresa.

Logo, como forma de organizar as atividades exercidas pelos empregados, além da tentativa de criar um ambiente preparado e harmônico, existe o poder diretivo do empregador, que tem por funções o poder de organização, de fiscalização e disciplinar.

O poder diretivo do empregador está previsto no artigo 2º, caput da CLT e tem como finalidade conduzir a prestação pessoal do serviço executado, podendo ser definido como o conjunto de prerrogativas dada ao empregador com a finalidade de organizar as atividades laborais e determinar a forma pela qual ocorrerá a prestação de serviços (OLIVEIRA, 2002, p. 153). Deve ainda atender o que está assegurado em lei, ser legítimo e respeitar os princípios gerais do direito como o da vedação ao abuso de direito, e a princípios especiais do direito do trabalho, como o da continuidade da relação de emprego.

O poder de organização, que engloba esse poder diretivo, consiste do detalhamento das funções e tarefas que serão realizadas pelo empregado. Logo, o empregador tem o direito de criar regras que deverão ser obedecidas pelo empregado, todavia, observando os limites previstos pelos princípios, principalmente da dignidade e de condições decentes de trabalho. Nesse sentido, Amauri Mascaro Nascimento define (NASCIMENTO, 2006, p. 664):

O poder de organização da atividade do empregado, combinando-a em função dos demais fatores da produção, tendo em vista os fins objetivados pela empresa, pertence ao empregador, uma vez que é da própria natureza da empresa a coordenação desses fatores. Empresa é a organização complexa que combina os fatores de produção, de modo que ao empregador cabe dar a unidade no empreendimento, moldando-a para que cumpra as diretrizes a que se propõe. [...] Sendo detentor do poder de organização, cabe ao empregador determinar as normas de caráter técnico às quais o empregado está subordinado e que são expedidas por mero contrato verbal, individual ou geral, ou por comunicados escritos, avisos, memorandos, portarias etc.

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O poder de controle ou de fiscalização tem por objetivo verificar se os empregados estão desenvolvendo corretamente as atividades que lhes são impostas. O empregador tem então o direito de fiscalizar as atividades realizadas pelo empregado e controlar seus comportamentos por meio de revistas, instrumentos visuais e eletrônicos, dentro dos limites assegurados em lei.

O intuito dessa forma frequente do poder é, sobretudo, proteger o patrimônio da empresa de forma a não ferir a dignidade do empregado, aplicando métodos considerados razoáveis para as revistas pessoais e todos os outros meios de controle admitidos (BARROS, 2009, p. 588).

Por fim, o poder disciplinar consiste no poder do empregador em impor sanções ao empregado que deixa de cumprir ordens legítimas emanadas do empregador. Diante disso, o empregador pode advertir o empregado, suspender do exercício de sua atividade ou até mesmo despedi-lo por justa causa. A finalidade deste poder, assim como dos outros, é manter a ordem e a harmonia do ambiente de trabalho.

Na definição de Alice Monteiro de Barros (BARROS, 2009, p. 609):

O poder disciplinar traduz a capacidade concedida ao empregador de aplicar sanções ao empregado infrator dos deveres a que está sujeito por força de lei, de norma coletiva ou do contrato. O exercício desse poder tem por fim manter a ordem e a harmonia no ambiente de trabalho.

Ainda, é válido ressaltar que o poder disciplinar é fundado no próprio contrato de trabalho e que não pode ser considerado nem ilimitado e nem discricionário, visto que o empregador tem por obrigação seguir alguns princípios básicos, tal qual a proporcionalidade, como também de submeter-se à decisão da Justiça do Trabalho em aplicar ou não a penalidade prevista (BARROS, 2009, p. 611).

Com o intuito de coibir possíveis abusos aos princípios constitucionais, trabalhistas e aos direitos de personalidade, existem limites aos poderes exercidos e concebidos ao empregador, uma vez que o contrato de trabalho obriga tanto o empregado quanto o empregador com direitos e deveres recíprocos.

Os limites aos poderes do empregador estão relacionados a determinados princípios, tais como o da boa-fé e da proporcionalidade, estes relacionados diretamente ao seu poder disciplinar, como também o da razoabilidade que está intimamente ligado ao poder de controle exercido pelo empregador. Ademais, o empregado está protegido pelos direitos fundamentais emanados do princípio da dignidade da pessoa humana, contidos em nosso ordenamento jurídico.

Existem alguns limites impostos especificamente ao empregador no exercício poder diretivo, como as circunstâncias e atividades que se distanciam

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do poder hierárquico, as quais não estão submetidas ao controle do superior, uma vez que fora do trabalho não existe vínculo de subordinação.

Neste contexto, apesar de haver a possibilidade de alteração de forma unilateral do contrato de trabalho pelo empregador, os limites impostos ao poder de organização, além de atenderem necessariamente a dignidade do trabalhador, devem objetivar um emprego em condições decentes.

Ao poder de controle, a principal limitação é dada na medida em que qualquer forma de fiscalização ao empregado deve ser feita respeitando sua dignidade como pessoa humana, bem como sua intimidade como condição de cidadão.

Deve haver uma revista razoável aos empregados, partindo do princípio de que todos devem ter o conhecimento do uso dessa técnica na empresa; deve ser dirigida à todos os trabalhadores, sem discriminação; dentro da empresa, deve existir um grupo especializado para a realização da revista ao empregado, e deve ainda, haver regulamentação em norma coletiva para a prática desse ato (OLIVEIRA, 2002, p. 155).

Ainda, o exercício desse poder praticado pelo empregador não deve ir além do local de trabalho, ou seja, o empregado só terá que ser revistado no período em que se mantiver na empresa, desde a sua entrada, até a sua saída. Com relação ao disposto, Alice Monteiro de Barros ensina: “O exercício do poder diretivo conferido ao empregador, no caso, não se estende para fora do estabelecimento da empresa, ainda que haja fundadas suspeitas contra o obreiro” (BARROS, 2009, p. 591-592).

A revista deve ser realizada somente uma vez ao dia, e quando necessário, de modo excepcional ao empregado individualmente. Já com relação aos instrumentos audiovisuais, estes têm seus limites na sua própria utilização, ou seja, só poderão ser eficazes quando o uso não implique em utilização indevida a ponto de ferir a intimidade do empregado, como, por exemplo, colocar câmeras no banheiro ou vestiários (BARROS, 2009, p. 599).

O poder disciplinar restringe-se à própria sujeição ao controle da Justiça, situação em que o empregado terá seu direito à defesa, e ainda, para que o poder possa ser exercido de maneira razoável, deve haver proporção entre a falta cometida pelo empregado a sanção que lhe será imposta.

O empregado pode, e deve agir, perante a Justiça do Trabalho, quando a atitude do empregador for injusta, ou então, quando deixar de cumprir o que consta no contrato de trabalho. O empregado não está sujeito a ordens que acarretem perigo à vida, que sejam consideradas ilegais, ou que atentem a sua dignidade. Os limites dado ao poder diretivo são os próprios princípios previstos no artigo 5.o da Constituição da República de 1988, e só de forma excepcional, o empregador pode intervir na vida íntima do empregado, quando,

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por exemplo, a atitude dele for prejudicial ao intuito da empresa (BARROS, 2009, p. 585-586).

Logo, em contrapartida ao direito do empregador em exercer esses poderes que lhe são cabíveis, é dever essencial então, respeitar os direitos da personalidade, da dignidade, da proteção do empregado, além de oferecer um ambiente equilibrado, com a preservação da segurança e saúde no trabalho. Da mesma forma, a fim de obter um ambiente harmônico e saudável, cabe ao empregado agir de forma a cumprir com seus deveres de obediência às regras licitas emanadas pelo empregador, com diligência, executando com zelo suas tarefas e com fidelidade, manifestando suas condutas da forma mais transparente possível (BARROS, 2009, p. 613-616).

Fica clara e evidente a relação do ambiente do trabalho com a saúde, tanto física quanto mental do trabalhador. Os direitos fundamentais ao meio ambiente de trabalho estão previstos no artigo 7o da Constituição da República de 1988, assim como no artigo 9o. Tais dispositivos prevêem o dever de reduzir qualquer risco que lesione a saúde do trabalhador, a obrigatoriedade de não exceder os limites impostos pela Carta Magna no que tange às jornadas de trabalha máximas, e o direito que os empregados têm de greve.

Maria José Giannella Cataldi, sobre o tema, ensina (CATALDI, 2002, p. 43):

O local de trabalho deve transcorrer num ambiente onde o inescusável direito à saúde deve ser garantido. Também é imprescindível a observância de normas de higiene, segurança e medicina do trabalho, no local onde as atividades fabris são desenvolvidas. Deve-se o local atender condições mínimas de meio ambiente, como direito fundamental de preservação de vida e da saúde dos empregados e da vizinhança.

A fim de manter um ambiente equilibrado e saudável então, o autor Fábio Freitas Minardi cita alguns princípios fundamentais que vem a colaborar com esse objetivo, sendo o do desenvolvimento sustentável que assegura a qualidade de vida; o poluidor-pagador que visa coibir condutas que possam ferir um bem de difícil reparação, como acidentes de trabalho; o da preservação e precaução do meio ambiente; da participação de todos por um ambiente de trabalho seguro e equilibrado e da ubiquidade que significa proteção à integridade psicofísica do trabalhador (MINARDI, 2010, p. 76).

Conforme o artigo 225 mais especificamente, e o artigo 220, VIII, cumpre ressaltar que a Constituição assegura à todos o direito ao meio ambiente equilibrado, essencial à uma boa qualidade de vida ao trabalhador. Desta forma, é necessário elementos como condições de segurança e de saúde no trabalho; preservação da autoestima e valorização dos atributos profissionais e

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pessoais do trabalhador; o devido respeito e tratamento digno, como também o cumprimento de deveres exigíveis; oportunidade de crescimento contínuo e seguro do empregado e de sua capacidade como humano, entre outros (ALKIMIN, 2006 apud MINARDI, 2010, p. 76).

Logo, apesar da exigência de rendimentos acelerados e da produtividade cada vez maior que é exigida, o empregador não pode abusar de seu direito diretivo, criando más condições no trabalho e deixando de seguir princípios fundamentais. Até porque, agindo desta forma, ele atinge os limites assegurados em lei e pode vir a acarretar ao empregado inúmeras doenças mentais.

Como uma forma de desencadear as patologias mentais relacionadas ao trabalho, está o conceito de assédio moral, que pode ser definido como sendo a exposição dos trabalhadores em seu ambiente de trabalho, de forma vexatória e humilhante, por alguém de nível superior hierárquico, desestabilizando a vítima e afrontando o direito à saúde mental do empregado.

Hirigoyen conceitua assédio moral como (HIRIGOYEN, 2009, p. 65):

[...] toda e qualquer conduta abusiva, que se manifesta por comportamentos, palavras, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, por em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.

É por meio do assédio moral vertical descendente (entre superior e subordinado), que o empregador dispõe de seu poder direito de forma abusiva, desestabilizando a vítima e infringindo sua dignidade, fazendo surgir sentimentos de insegurança e falta de perspectivas. O empregador faz isso por meio de comportamentos, palavras, escritos e gestos, devendo ser habituais, com a finalidade de intimidar, discriminar e afastar o indivíduo do trabalho.

As consequências de tal conduta podem variar entre homens e mulheres, sendo que eles têm uma tendência maior às bebidas e sentimentos de fracasso e elas tendem a ter tonturas, falta de apetite entre outras (BARRETO, 2000, p. 217). O importante mesmo é ressaltar que o resultado final, tanto de homens, quanto de mulheres, é o desemprego, ou por vontade própria do empregado em não suportar trabalhar em um ambiente com essas condições, ou por consequência da invalidez ocasionada pelo desgaste emocional sofrido.

A gravidade disso atinge não somente o estado mental do indivíduo, mas também a sua vida social, econômica e jurídica, podendo dar surgimento a doenças em níveis mais graves como o mal estar exacerbado, estresse em suas modalidades, a depressão e o acidente de trabalho.

O sentimento de mal-estar no trabalho é agravado diante do silêncio por parte do empregado, situação na qual prefere agir desse modo porque visa à

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conservação de seu emprego diante a responsabilidade de sustentar a si e a sua família. Agindo dessa forma, porém, acaba colaborando com esse mal e essa conduta pode acarretar doenças ainda mais graves. Da mesma forma, Tallita Massucci Toledo cita a existência de empregados que ignoram este sentimento, de forma a assentir com o mal (TOLEDO, 2011, p. 79):

A insensibilidade manifestada por essas pessoas, contra aquilo que as faz sofrer, acaba por gerar ainda mais uma forma de sofrimento, o sofrimento ético, que se instala ao lado do sofrimento psíquico e decorre do fato de, em razão do trabalho, cometer-se atos que moralmente são condenados.

Para se obter um bem-estar no ambiente laboral, é necessário um conjunto de fatores como a boa organização, condições favoráveis, posto de trabalho com bons equipamento quando for o caso, e, sobretudo, uma relação social de trabalho positiva. A partir disso, pode-se ter maior segurança com relação a saúde física e mental dos trabalhadores.

O estresse é definido como um estado de tensão e esforço do organismo ligado ao sistema nervoso, ou até mesmo como uma doença ocupacional. É dividido em eustress e distress, sendo o eustress a forma positiva do estresse, que envolve uma sensação boa em virtude de algum resultado esperado. Já o distress é a forma negativa do estresse decorrente de alterações no trabalho e problemas até mesmo no relacionamento com a chefia, podendo trazer consequências que vão desde a simples ansiedade até o surgimento de câncer e a morte.

O estresse negativo no ambiente de trabalho provém de fatores como exigência pessoal elevada, frustação e medo. Exemplos de agentes estressores são trabalhos em turnos, tempo e ritmo de produção, rivalidades, papéis indefinidos, questões extraorganizacionais como o desemprego e insegurança no emprego, questões sociais que circundam o trabalhador e seus agentes familiares (TOLEDO, 2011, p. 93).

Como uma forma de caracterizar os vários níveis de estresse existe a chamada Síndrome Geral de Adaptação, definida como o “conjunto de modificações não específicas que ocorrem no organismo diante de situações de stress” (SELYE, 1965 apud FRANÇA; RODRIGUES, 1999, p. 32). Diante disso, cumpre ressaltar as três fases que compõem essa síndrome: a fase de alarme, de resistência e a então chamada fase de exaustão.

A fase da reação de alarme é caracterizada pelo aumento da frequência cardíaca, ansiedade, aumento da frequência respiratória, da pressão arterial, entre outras reações. Pode ser definida como sendo uma situação em que o organismo do indivíduo se põem em estado de emergência e tenta se proteger do perigo (FRANÇA;RODRIGUES, 1999, p. 34).

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A segunda fase é definida como reação de resistência, situação na qual o indivíduo sente irritabilidade, insônia, mudanças de humor, diminuição do desejo sexual, entre outros. Nesta fase há a característica da continuação do organismo ao estimulo dado pela fase de alarme, situação na qual o organismo vai em busca do equilíbrio psíquico e físico (FRANÇA; RODRIGUES, 1999, p. 35).

Por fim, a terceira fase representa a exaustão, em que o organismo falha em seus mecanismos de adaptação; há um retorno à fase de alarme caracterizado pelas dores no corpo, irritação, insônia e, posteriormente, se o estímulo estressor permanecer potente, o organismo pode morrer (FRANÇA; RODRIGUES, 1999, p. 35).

Pode-se afirmar que o estresse (negativo), na situação em que causa prejuízos elevados, vai depender da intensidade das condutas, da forma como o meio em que o indivíduo esta inserido interfere em sua saúde e ainda, em fatores que determinam o estresse, os quais são variáveis conforme a personalidade de cada um.

Outra forma de estresse negativo é o High Tech ou tecnostresse que decorre do uso excessivo da tecnologia, fazendo surgir um sentimento de inutilidade ao empregado, de forma a não servir mais para a produção acelerada da sociedade, além de gera a fadiga e a falta de concentração.

Uma vez desencadeado o problema, os danos à saúde do empregado são apresentados, causando o inverso do esperado pelo abuso cometido, diminuindo a produtividade e a falta de interesse do empregado em colaborar. Assim sendo, a demissão pode vir a ser uma das consequências de todo esse processo.

A depressão pode ser considerada uma consequência do estresse em um nível mais grave, podendo levar a atos suicidas. Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 121 milhões de pessoas no mundo e mais de 17 milhões no Brasil sofrem dessa doença por causa de más condições e falta de organização no trabalho (VEJA ON LINE, 2012).

Pode então ser considerada a consequência do estresse causado no ambiente de trabalho. A pressão desgastante que o trabalho por si só causa, atrelada a produtividade cada vez mais exigida pela sociedade atual, já pode ser considerada um requisito inicial do sintoma depressivo. Quando a exigência diante das atividades exercida é exacerbada, ou até mesmo quando há o mal-estar laboral gerando o estresse nos trabalhadores, sobrepõem-se a figura da depressão de forma, muitas vezes, irreversível, podendo gerar a perda de vida.

Na medida em que o trabalhador apresenta sinais de tristeza, desinteresse pela atividade que exerce dentro da empresa, e até mesmo o desinteresse pelos seus próprios valores, os sinais de depressão vão se aprimorando, passando pela sensação de fadiga e cansaço, baixa concentração e autoestima até chegar em sintomas mais graves como atos suicidas.

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Contudo, no ambiente de trabalho, as duas determinantes do sintoma depressivo são as condições em que o trabalhador se encontra e a organização do trabalho, de forma que, quanto maior for a desvantagem encontrada nestes aspectos, maior será o número de pessoas improdutivas no mercado de trabalho, e, consequentemente, maior será o número de desempregados no mundo.

Os sintomas observados no trabalho resumem-se na redução do nível de energia, perda do interesse, dificuldade em iniciar atividades, angustia, diminuição da autoestima, pessimismo, sentimento de desesperança, preocupação maior que a habitual, crises de choro, lentificação do pensamento, pensamento de que a morte seria a solução (FRANÇA; RODRIGUES, 1999, p. 86).

A depressão é então considerada uma patologia grave com efeitos danificadores na vida das pessoas, e embora necessite do nexo causal para auferir a existência ou não da doença, merece a devida atenção e cuidado. Já que o mundo capitalista exige dos indivíduos, cada vez mais, metas impossíveis, o ambiente de trabalho deve preencher condições saudáveis a fim de não criar cargas psíquicas ainda maiores ao indivíduo.

Ainda, como uma forma de estresse crônico e prolongado, de perda de energia em estado grave, está a Síndrome de Burnout. É caracterizada por uma pressão intensa, com pouco reconhecimento e sentimento de perda de expectativas, situação na qual o empregado sente-se desmotivado para continuar a exercer suas atividades.

Tallita Massucci Toledo, sobre o tema ilustra (TOLEDO, 2011, p. 99):

[...] a síndrome de burnout representa o resultado da cronificação do estresse coditiado no ambiente laboral, principalmente quando este é caracterizado por excessiva pressão, conflitos, poucas recompensas emocionais e pouco reconhecimento. Contudo, ao contrário do estresse (eustress), é incapaz de representar um aspecto positivo para a vítima.

Com relação aos aspectos básicos que compõem a síndrome, a exaustão emocional é uma delas e é caracterizada quando o empregado sente-se desmotivado, esgotado e sem energia física e mental. Tal aspecto surge a partir de situações na qual, muitas vezes, o ambiente de trabalho já se vê afetado pelo mal-estar entre os trabalhadores, uma vez que a exaustão emocional surge a partir do contato intenso com pessoas, principalmente com aquelas que já estão enquadradas em uma situação de sofrimento (FRANÇA; RODRIGUES, 1999, p. 49).

Neste caso, as consequências são o aparecimento da intolerância exacerbada no empregado, nervosismo, comportamento rígido e inflexível, pensamentos pessimistas e uma vida insatisfatória.

O segundo aspecto que integra a síndrome de burnout é a alteração de personalidade adotada pelo indivíduo como consequência da quebra

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de expectativa profissional e social. Neste sentido, o empregado age de forma impessoal, indiferente, fria, irônica e cínica. Como consequência há a baixo autoestima e a insatisfação com o trabalho, além de considerar o contato com as outras pessoas algo intolerado.

O terceiro aspecto diz respeito à redução da realização pessoal e profissional caso em que, diante dos acontecimentos frustrantes e do sentimento de não reconhecimento, a qualidade da atividade do empregado fica extremamente comprometida.

Por fim, e não menos importante, os acidentes de trabalho que tem consequências tanto físicas quanto psicológicas e estudos comprovam que 80% dos acidentes de trabalho estão atrelados a fatores emocionais. Contudo, o estresse, as más condições e o controle rígido da produtividade, vêm a trazer consequências mentais no indivíduo.

O art. 19 da Lei n.o 8.213 de 24 de julho de 1991 que trata dos Planos de Benefícios conceitua acidente do trabalho como sendo “o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho” (BRASIL, Lei 8.213/91).

O gênero acidente de trabalho abrange o acidente-tipo; doenças ocupacionais e acidentes por equiparação legal. Desta forma, o estresse e o desgaste ocasionado pelas más condições no trabalho podem favorecer a ocorrência de acidentes de trabalho.

Como consta no artigo 19, o acidente tipo pode ser caracterizado (DALLEGRAVE NETO, 2008, p. 223):

[...] pela existência de evento único, súbito, imprevisto e bem configurado no espaço e no tempo. Nesses acidentes típicos as consequências geralmente são imediatas ao contrário das doenças ocupacionais que se caracterizam por um resultado mediato, porém evolutivo.

Decorre, portanto, do exercício do trabalho e pode gerar tanto uma lesão corporal como uma perturbação funcional a partir de um evento único que resulta em consequências imediatas. Isso ocorre uma vez que o indivíduo já se encontra diante de uma situação de perturbação mental decorrente de problemas no próprio ambiente de trabalho, os sintomas podem vir a facilitar a ocorrência de algum dano ainda maior, tanto mentalmente, como até mesmo fisicamente, ao empregado.

Já a doença profissional é conceituada (DALLEGRAVE NETO, 2008, p. 224):

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As doenças profissionais, também chamadas tecnopatias ou ergopatias, tem no trabalho a sua causa única e eficiente por sua própria natureza. São, pois, as doenças típicas de algumas atividades laborativas como, por exemplo, a silicose em relação ao trabalhador em contato direto com a sílica.

O risco existente no local de trabalho, no entanto, é o fator que origina essa modalidade de doença. O empregado que é exposto ao elemento prejudicial a sua saúde, por tempo inadequado e superior ao que a sua atividade exige, tem como causa de agir a má organização do trabalho. A partir disso, as consequências são do mesmo grau que as relacionadas com as doenças derivadas diretamente do abuso do poder do empregador e das más condições de trabalho, quais são a perda da capacidade laboral e até a morte.

A fim de prevenir a doença profissional, a rotatividade das tarefas; a redução da carga horária; as pausas; exames médicos e o conhecimento do perigo são aspectos essenciais para proteger a saúde do empregado.

A doença do trabalho também chamada de mesopatia ou doença profissional atípica, diferentemente da doença profissional, é caracterizada pelas condições especiais em que o trabalho é realizado. Logo, o desencadear da doença não têm no trabalho a causa única e exclusiva, porém pode aparecer na vida do empregado conforme as condições do ambiente de trabalho ou pela forma como o serviço é executado.

Da mesma forma, os fatores de risco provocam danos psicológicos nos trabalhadores que podem prejudicar não apenas sua produtividade, como também sua segurança. “Quando a carga de trabalho supera a capacidade do empregado e ele não consegue modificá-la, ocorre o aumento do número de acidentes de trabalho” (MINISTÉRIO DO TRABALHO).

Além de consequências de ordem material para o trabalhador, o acidente de trabalho gera consequências sociais, representando um prejuízo para toda a sociedade, uma vez que a redução do desenvolvimento é importante para todos, não apenas para a própria empresa ou somente seu empregador.

Deve, no entanto, em primeiro lugar, proteger o trabalhador com medidas adequadas, adaptando, contudo, o trabalho ao homem que irá exercê-la a fim de continuar realizando a principal meta do trabalho que é a produção, porém esta exercida com segurança.

Ainda, como tentativa de prevenir as doenças e acidentes do trabalho, deve ser realizado o planejamento e o controle das condições de trabalho existentes nas empresas, através da identificação, avaliação e eliminação dos riscos presentes no local. Para essa finalidade, existem programas como a comissão interna de prevenção de acidentes (CIPA); controle médico de saúde ocupacional (PCMSO) e de prevenção de riscos ambientais (PPRA). Estes

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órgãos têm como medidas principais a preservação da saúde e integridade dos trabalhadores, orientar os demais trabalhadores quanto a prevenção de acidentes e investigar as causas de circunstâncias dos acidentes e doenças ocupacional.

Diante da complexidade em comprovar a vinculação dos elementos psicológicos e das manifestações das patologias ligadas ao ambiente de trabalho, o artigo 2º da Resolução do Conselho Federal de Medicina dispõe (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Resolução 1.488/88):

Art. 2.o Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além do exame clínico (físico e mental) e os exames complementares, quando necessários, deve o médico considerar: I - a história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; II - o estudo do local de trabalho; III - o estudo da organização do trabalho; IV - os dados epidemiológicos; V - a literatura atualizada; VI - a ocorrência de quadro clínico ou sub-clínico em trabalhador exposto a condições agressivas; VII - a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; VIII - o depoimento e a experiência dos trabalhadores; IX - os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.

Deve-se buscar o nexo de causalidade entre o dano ocorrido e o consequente abalo na saúde do trabalhador. É preciso saber se os problemas mentais do indivíduo têm como causa o abuso do empregador, uma vez que, não comprovada a idoneidade da causa que produziu o dano, não haverá responsabilidade.

Em contrapartida, uma vez reconhecida a dor e a angústia do empregado ligados à conduta ilícita do empregador, deve haver a reparação do dano, de forma objetiva pelo empregador, a fim de amenizar o sofrimento, caracterizando uma função satisfatória.

Logo, a valorização da boa qualidade de vida deve ser buscada mesmo em ambientes em que a finalidade vai de encontro com o que a sociedade globalizada exige. Apesar da dificuldade encontrada em provar o nexo causal entre o fato, o prejuízo causado e o causador, este é imprescindível, como transcreve o seguinte julgado:

Responsabilidade civil. Ação de indenização por acidente do trabalho fundada no direito comum. Ausência de nexo causal. Indenização descabida. Culpa da empregadora não comprovada. Recurso Improvido. Não havendo simetria entre as perdas de cada ouvido do trabalhador

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que adquiriu disacusia, não resta caracterizada a culpabilidade da empregadora, e consequentemente, o nexo causal necessário para a indenização no âmbito do direito comum deve vir acompanhada da efetiva prova de culpa da empresa.

(BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso Ordinário 2276/2001/ES. Relator(a): Sônia das Dores Dionízio. 3.a Turma. Julgado em: 20 agosto 2002).

O dever de reparar os danos morais é considerado hoje um dever de reconhecimento dos direitos da personalidade. O abuso do poder diretivo do empregador, assim como as más condições encontradas causa uma ofensa à imagem, à integridade física e moral do indivíduo e atinge, sobretudo, a sua dignidade. Nesse sentido, a fim de provar o dano ocasionado é preciso demonstrar a ocorrência do fato em si, uma vez que a dor resultante não passa de mera presunção fática.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa foi essencialmente bibliográfica, a qual consistiu em análise e resenha de textos de obras pertinentes ao assunto pesquisado, tal qual do abuso do poder diretivo, assédio moral e patologias relacionadas. Ainda, baseou-se em leituras dos textos legais e revistas de mestrado e LTr que dispõem a respeito do tema de forma crítica e completa. Priorizou-se a Consolidação das Leis Trabalhistas e a Constituição da República Federativa do Brasil nos artigos relacionados aos princípios que englobam o tema, como também aos que fundamentam a proposta analisada. Por fim, cumpre ressaltar a importância jurisprudencial acerca do assunto, a qual traz consigo inúmeras questões que merecem destaque nos tribunais do trabalho.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma disparidade imensa entre o que a doutrina defende e o que ocorre na prática. São raras as vezes em que os tribunais adotam, nas demandas trabalhistas, uma fundamentação teórica a respeito dos direitos fundamentais atrelados à saúde mental do empregado. O problema está em provar o nexo causal, a vinculação dos elementos psicológicos e das manifestações das patologias ligadas ao ambiente de trabalho. É somente com a existência do nexo causal, entretanto, que se pode verificar quem praticou a conduta ilícita que tem relação com o dano, cabendo dessa forma, indenização por dano moral. Ainda,

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conforme entendimento jurisprudencial, o empregador responde objetivamente pelo dano causado, ou seja, independentemente de culpa e tendo em vista que assume os riscos da atividade econômica.

A existência de um superior hierárquico comandando e supervisionando as atividades de seus empregados é de fundamental importância, uma vez que exerça seus poderes de forma que suas ordens não extrapolem o limite daquilo que é justo, decente e conveniente. Isso porque uma vez acarretada a degradação das condições de trabalho, a ocorrência de conflitos de ordem material e moral incidem nos mais variados graus.

O empregador deve então, exercer seu poder diretivo de forma consciente e razoável, a fim de respeitar a figura do empregado como pessoa digna de ter seus direitos resguardados. Deve-se agir em prol de condições mínimas para uma vida saudável com o devido equilíbrio mental, físico e social, com um ambiente sadio e respeitoso, de forma que assim, todos ganham e a produtividade, que deve ser estimulada de forma segura, tende a aumentar.

O investimento na prevenção é o meio prático de redução de custos na empresa. Existindo a possibilidade de prevenir problemas judiciais e gastos excessivos, deve-se tomar essas medidas a fim de evitá-los. Ainda, o combate de acidentes e doenças provindas do abuso do empregador, deve ser feito a partir da análise das decisões proferidas pelos tribunais competentes, uma vez que a indenização do dano visa a tentar evitar a ocorrência dessas condutas prejudiciais.

Para tanto, cabe aos empregados uma indenização do dano moral com caráter compensatório e preventivo a fim de tentar evitar a ocorrência descomedida dessas condutas abusivas. Devem os tribunais continuar a proferir decisões baseadas no bom senso e na razoabilidade com a finalidade de evitar uma concepção patrimonialista da responsabilidade civil e partir, cada vez mais para uma concepção existencialista baseada no principio da dignidade da pessoa humana, com sentido de fazer o empregador e a própria empresa com más condições, perceberem que o mal não está na indenização a ser paga ou na responsabilidade por si só, mas sim, nos problemas e nas doenças que foram causadas aos seus empregados.

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_____ Tribunal Regional do Trabalho. Recurso Ordinário n.o 2276/2001-ES. Relatora: Juíza Sônia das Dores Dionízio, Espírito Santo, 20 ago. 2002. Revista LTR, n.66-10/1237. Disponível em: <www.trtes.jus.br>. Acesso em: 11 set. 2012.

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FUNÇÃO NORMATIVA E PRINCIPAIS DIFICULDADES DE NORMATIZAÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA BRASILEIRO

maria criStina SzpaK SwiEch

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITI-BA Engenheira Eletricista

ana luiza chaluSnhaK

Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2004). Foi assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná por dez anos. Atualmente é advogada - atuando na área de Direito Público. Pro-fessora de Direito Administrativo no Centro Universitário Curitiba e orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Função Normativa 3 O Setor de Energia Elétrica

Principais dificuldades normativas 4 Conclusão

RESUMO

O presente trabalho apresenta o estudo da função normativa constitucionalmente estabelecida para o provimento do ordenamento brasileiro e sua correspondente evolução considerando a expansão desta atribuição no interior da Administração Pública. Este estudo é dirigido ao setor de energia elétrica brasileiro cuja atividade de exploração sofreu significativas alterações em anos recentes, após o implemento do modelo de Estado Regulador em substituição ao Estado Provedor como forma de prestação dos serviços à sociedade de acordo com os preceitos sociais de nossa Constituição. São apresentados o levantamento da evolução histórica do setor de energia elétrica brasileiro, o apontamento das principais alterações do modelo de exploração da atividade e suas implicações, as características da base normativa vigente, e as principais dificuldades de normatização.

Palavras-chave: função normativa, legislação do setor de energia elétrica brasileiro, problemas de normatização.

INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro sofreu significativas alterações em sua estrutura de prestação de serviços durante a década de noventa, sendo a política de

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desestatização um dos pontos importantes deste novo modelo. Paralelamente a estas alterações, a função normativa da Administração Pública sofreu ampliação para provimento da demanda regulatória que então se determinava crescente.

O setor de energia elétrica foi uma das atividades econômicas que sofreu grande número de intervenções do Estado que atingiram tanto a sua estruturação quanto o seu disciplinamento. Novos agentes e organizações setoriais foram inseridos, alterações nas estruturas das empresas estatais foram determinadas, e um novo balizamento do papel da iniciativa privada foi traçado. Além disto, ocorreram mudanças na forma de gestão e comercialização dos serviços de disponibilização de energia elétrica.

Todas estas alterações, além de recentes, ocorreram em uma velocidade que pode ser considerada demasiada quando se observa a extensão da abrangência destas e o número excessivo de entes subordinados, como também a importância da matéria por se tratar de um serviço público essencial, além do fato do controle da fonte energética ser estratégico ao Estado. Diversas questões efetuadas por profissionais de direito, como também por profissionais de engenharia, foram levantadas e muitas destas ainda não foram concluídas de forma a se obter consenso.

Contraditoriamente à velocidade da inclusão do mais recente modelo, denominado Novíssimo Modelo do setor de energia elétrica, a totalidade da base legislativa também é formada por diplomas criados de forma dispersa no tempo e sem o tratamento suficiente que propiciasse uma otimização das informações dos diversos diplomas que a compõe.

Atualmente, a base normativa do setor de energia elétrica brasileiro é extensa e pouco organizada, pois possui carência de ordem interna em determinados diplomas, além de falta de coordenação entre as diversas leis e atos equivalentes que foram editados em momentos históricos distintos sob também distintos pressupostos constitucionais, sociais e econômicos. Além da quantidade significativa e da pouca articulação entre os diversos diplomas, esta legislação setorial também apresenta problemas em certos textos legais, como falta de plenitude no tratamento de determinados tópicos, escassez de correta aplicação das separações relativas a seções e títulos, com consequente mistura de diferentes assuntos.

Essas deficiências tornam a sua consulta, como também, sua correta interpretação e aplicação prejudicadas. Tais questões atingem, não somente os profissionais de direito que constroem a doutrina brasileira - a partir de seus apontamentos, críticas e linhas hermenêuticas - mas também os profissionais de diferentes áreas que utilizam a base jurídica em seus meios de atuação e dela precisam obter não apenas informação, mas correta compreensão como meio garantidor de boa prática.

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Outra questão significativa é a falta de consenso doutrinário a respeito da legitimidade das agências reguladoras para emissão de normas. Esta é uma discussão relativamente recente que surgiu paralelamente à concessão de função normativa a autarquias que possuem como finalidade a regulação setorial.

O apontamento das dificuldades relacionadas pode balizar novas alterações legislativas que possibilitem a simplificação e otimização dos diversos documentos que carregam a normatização do setor. Esta possível intervenção poderia tornar a base jurídica melhor acessível, o que, conseqüentemente, tornaria mais próximo os resultados adequados buscados pelos ordenamentos.

FUNÇÃO NORMATIVA

O constitucionalismo no Brasil tem como um dos seus principais embasamentos a separação de Poderes, que consiste na divisão organizacional do exercício das funções estatais.

As Funções Legislativa, Executiva e Judiciária são exercidas de modo especializado por determinado órgão estatal, constitucionalmente instituído, ou conjunto destes, como forma de se observar o pressuposto ideológico, que tomou força após a Revolução Francesa, de que as atribuições do Estado não deveriam ser concentradas em uma única personalidade, pois esta concentração seria característica de um Estado Absolutista.

A teoria da Tripartição dos Poderes foi introduzida por Aristóteles que considerava que o exercício do poder seria mais justo se não houvesse centralização. Posteriormente, este tema foi tratado por Kant, John Locke e Rousseau, porém, foi Montesquieu que o sistematizou nos moldes que foram adotados em diversos Estados, como no Brasil, e o complementou com o mecanismo de Freios e Contrapesos (SILVA, 2007, p.109).

Este mecanismo determina que, além da necessária separação, cada Poder não deveria ser exercido de forma individual e independente ao extremo, mas, sim, perante a possibilidade de obstrução de seu respectivo exercício típico pela manifestação dos demais, como forma de se obter equilíbrio de forças e equilíbrio de atuação entre todos. Com relação a este tema, Motta (2007, p. 30) dispõe:

O controle do exercício do poder político é o principal alvo da concepção em tela. Cada poder corresponde a um limite ao exercício das atividades do outro, compondo o teoricamente harmonioso conjunto de freios e contrapesos (checks and balances), destinado a proteger o cidadão da tirania que representaria a junção dessas funções em uma só autoridade. Nesse sentido, com fundamento na sempre invocada formulação de Montesquieu, um Estado é livre quando nele o poder limita o poder, visto que a condição para o estabelecimento do respeito às leis e da segurança dos cidadãos é a de que nenhum poder seja ilimitado.

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Na teoria clássica da separação dos Poderes, o Legislativo é dotado de uma importância maior que o Executivo e o Judiciário, pois o Poder que elabora as leis, que são expressão livre e solene da vontade geral do povo, deveria ter precedência sobre os Poderes que a executam (MOTTA, 2007, p. 31).

No ordenamento brasileiro, as funções estatais – os Poderes - são compostas por atribuições denominadas típicas, que são exercidas preponderantemente, e por atribuições denominadas atípicas, que são exercidas secundariamente. As típicas são aquelas relacionadas diretamente com o verbo retirado da denominação da respectiva Função, e as atípicas, são aquelas relacionadas ao verbo retirado da denominação das outras duas Funções.

A função normativa, portanto, não é exclusiva de apenas um dos Poderes. Sua esfera abrange tanto o processo legislativo que estabelece leis; como também a função normativa em sentido estrito, que é executada em decorrência do exercício do poder originário ou do poder derivado, e que emana estabelecimentos primários com preceitos abstratos ou genéricos (MOTTA, 2007, p. 133, 134).

Ou seja, a função normativa não se resume apenas ao estabelecimento de leis pelo Legislativo, mas contempla também o estabelecimento de conteúdo normativo produzido por órgãos não pertencentes ao Legislativo.

Conforme apresentado por Motta (2007, p. 45), a teoria de Montesquieu apresenta ambigüidade nas relações entre os Poderes Legislativo e Executivo, pois ao Executivo é atribuída participação na atividade legislativa e, em casos excepcionais de perigo contra a segurança do Estado, substituição desta atividade legislativa. Desta forma, verifica-se que já na origem da concepção desta teoria, estas duas funções políticas possuíam fortes enlaces.

Desta forma, verifica-se que a função normativa é delineada pela Constituição Federal que determina as respectivas competências, com a previsão da atuação típica do Legislativo e a limitação da atuação atípica do Executivo.

Porém, atualmente, existe um protagonismo do Executivo que, além da produção de normas em sentido estrito, também interfere no processo de estabelecimento de leis, portanto, não é mais possível afirmar que esta atividade é conduzida com independência e exclusividade do Legislativo. Uma das formas do Executivo comandar processos jurídico-formais de decisão é a participação ativa na elaboração de projetos de lei, por meio das estruturas administrativas que possuem maior capacidade técnica para a diversidade de matérias tratadas (MOTTA, 2007, p. 48).

Assim, é possível constatar que atualmente os Poderes parecem estar mais harmônicos e menos independentes (MOTTA, 2007, p. 49).

Essa situação começou ser formada quando surgiu a necessidade de adaptação da teoria clássica da separação de Poderes ao surgimento do Estado

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Social, que substituiu o Estado Liberal cuja atuação era bastante restrita. Desta forma, o Estado passou a ser intervencionista e a exercer maior atuação de forma a buscar fins econômicos, sociais e culturais beneficiando os indivíduos que antes contavam apenas com sua própria iniciativa (MOTTA, 2007, p. 49).

Devido a esta nova característica do Estado, Motta (2007, p. 55) apresenta opiniões doutrinárias que reconhecem um novo sentido, ou uma nova adaptação à teoria clássica da separação de Poderes, pois, a concepção original, por ter maior rigidez, poderia obstruir ou dificultar o progresso das instituições que pretendem perseguir a democracia social. Além disso, a partir do momento em que foi inserida a eleição direta para os principais cargos do Executivo, não se justificaria mais a supremacia do Legislativo, pois haveria representação popular em ambas as Funções. Atualmente, instituições prestigiadas como o Ministério Público e os Tribunais de Contas não foram instituídos sob a rigidez da Tripartição.

Silva (2007, p. 109) também reconhecesse uma adequação da teoria da Tripartição dos Poderes ao dispor:

Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se pretende falar em colaboração de poderes.

Esta evolução da concepção clássica ocorre no sentido de desconstituir a rígida separação, porém, manter a consideração da limitação dos Poderes. Nem uma das três funções de estado é autora de seu próprio poder, pois, o ato superior de poder é o constituinte. Desta forma, Legislativo, Executivo e Judiciário estão vinculados aos direitos fundamentais consagrados e, cada uma destas Funções deve permanecer fiscalizando as demais, de forma a inibir eventual violação destes (MOTTA, 2007, p. 56).

De acordo com Motta (2007, p. 57):

A separação de poderes sofreu considerável mudança com o novo constitucionalismo pautado, entre outras características, pelo primado dos direitos fundamentais, de forma que permaneceu o sentido original da limitação ao poder, embora não como um fim em si mesmo ou como uma luz para o brilho da lei. Ao contrário, a dimensão instrumental do princípio deve prevalecer como esteio para a realização dos direitos fundamentais e dos objetivos de cada Estado. Isso exige que as concepções originais do princípio sejam confrontadas com o ordenamento de cada Estado, não mais prevalecendo como valor dogmático e receita universal.

Assim, essa nova dimensão da Tripartição dos Poderes asseguraria a organização do poder do Estado voltado a decisões funcionalmente mais eficazes e materialmente mais justas (MOTTA, 2007, p. 57).

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O novo modelo de Estado então instaurado trouxe o crescimento da atuação da Administração Pública devido à necessidade de maior estrutura para possibilitar a maior atuação do Executivo. Parte da doutrina considera que uma das conseqüências negativas deste novo cenário seria o rompimento do equilíbrio entre as Funções Legislativa, Executiva e Judiciária, devido ao acúmulo de atribuições por parte do Executivo que gera seu fortalecimento em detrimento dos demais (MOTTA, 2007, p. 50).

Nesse momento de expansão das atividades da Função Executiva, a Administração Pública passa a ter maior relevância na sociedade.

A Administração Pública, integrando a Função Executiva que executa as disposições legais, insere-se em uma posição de contato direto com a sociedade, tendo, como um de seus Princípios principais, a Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Essa característica se enlaça com a separação de Funções que carrega de forma inerente o Princípio da Legalidade que é uma manifestação da importância da soberania popular; e se materializa com o fato da Lei possuir como concepção a emanação da vontade geral, que deve ser necessariamente respeitada pela Administração Pública (MOTTA, 2007, p. 25, 26).

O aumento das atividades da Administração Pública, devido ao caráter social do Estado, teve reflexos no conteúdo constitucional brasileiro que passou a dispor sobre princípios e regras voltados ao Direito Administrativo. Este ramo do direito deixou de ser apenas mero executor de leis, e passou a extravasar o âmbito da Função Executiva, e desta forma, passou a se submeter não mais à este, mas sim, à Constituição e aos princípios fundamentais consagrados (MOTTA, 2007, p. 80, 81).

Com relação a este tema, Motta (2007, p. 81) dispõe:

A submissão da Administração à Constituição, no caso brasileiro, foi feita com intensidade antes inimaginável, a ponto de transformar a Constituição na maior fonte do Direito Administrativo pátrio. Tal submissão aproximou o Direito Administrativo do Direito Constitucional, trazendo como conseqüência a necessária vinculação da Administração Pública à força normativa da Constituição.

A Constituição substituiria a lei como fonte maior e fundamento principal da atuação da Administração Pública, por meio da habilitação direta de competências administrativas e também por ser o critério de balizamento das decisões administrativas. A Constituição prevê a possibilidade de produção de normas em sentido estrito, que são produzidos por órgãos distintos do Legislativo, e tais normas, portanto, retirariam seu fundamento de validade diretamente desta origem (MOTTA, 2007, p. 83, 134, 135).

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O Estado brasileiro, no início da década de 90, sofreu intervenções que pretenderam modificar a forma de atuação de seu modelo social e intervencionista. Um dos principais objetivos impostos foi a diminuição da abrangência de execução direta de serviços públicos por parte do Estado, de acordo com o Princípio da Subsidiariedade, que apenas passou a exercer regulação do exercício das mesmas devido à importância destas atividades.

O Princípio da Subsidiariedade, que respalda o Estado Regulador, é um princípio político de organização social, sob o qual o Estado mantém sob seu domínio a execução apenas do que é essencial, transferindo a terceiros funções, que poderiam ser desenvolvidas com maior eficiência pelos particulares, porém sob regulação (MOTTA, 2007, p. 51).

É importante ressaltar que aparentemente este princípio apresenta dois pontos críticos que são a ele inerentes: primeiro, a determinação do que seria ou não essencial é uma questão aberta, não vinculada, o que acarreta a possibilidade de ser preenchida com objetivos diversos ao bem comum. Segundo, a afirmação de que particulares poderiam exercer a atividade de forma mais eficiente é apenas teórica, e, mesmo assim, passível de crítica. Uma correta administração das empresas públicas e sociedades de economia mista, entre outras, possibilita uma adequada eficiência na prestação dos serviços, e o Estado tem poder para tal. Existem exemplos atuais de empresas estatais que além do adequado atendimento à população contabilizam lucros importantes. Além disto, a iniciativa privada é conduzida de acordo com os interesses e objetivos de seus dirigentes que não, necessariamente, serão públicos.

Apesar destas considerações, o Estado Regulador mostra-se atualmente presente em alguns setores brasileiros, como é o caso do setor de energia elétrica.

Com o advento do Estado Regulador, foram inseridas na Administração Pública indireta, as denominadas agências reguladoras, cujo objetivo fundamental consiste em regular atividades setoriais. Justen Filho (2008, p. 554) apresenta definição para agência reguladora índependente: “é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face da Administração direta e investida de competência para a regulação setorial.”

O termo regulação significa o estabelecimento de regras que pode ser executado tanto pelo Legislativo, como pelo Executivo e seus órgãos da Administração Pública direta ou indireta. Regulação não deve ser confundida com o termo regulamentação, que também significa determinar regras, porém, trata-se de atividade normativa exclusiva do Chefe do Executivo que visa assegurar a fiel execução das leis (DI PIETRO, 1999, p. 140).

Na regulamentação, não é possível inovar na ordem jurídica, o Chefe do Executivo - federal, estadual, distrital ou municipal - por meio da edição de decretos, limita-se a explicitar matérias previamente previstas em lei. Na regulação,

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além da disciplina que vise a fiel execução de uma lei, é possível também criar direitos e obrigações novos. Os meios normalmente utilizados não são apenas decretos, mas leis, emendas constitucionais, portarias, medidas provisórias, entre outros. Ou seja, regular é o gênero: estabelecer regras jurídicas; e regulamentar é a espécie: estabelecimento de regras jurídicas pelo Chefe do Executivo, por meio de decreto, para a fiel observância da lei (PAIXÃO, 2009, p. 349).

Para Motta (2007, p. 176), regulação deve ser entendida como integração de diversas funções estatais que contemplam as seguintes atividades: o estabelecimento de regras de conduta; o controle de atividades privadas pelo Estado (que equivale à idéia de polícia administrativa); e a finalidade de proteger o interesse público.

A regulação é utilizada, portanto, para que sejam editadas regras de conduta para o estabelecimento dos parâmetros que o Estado determina aos prestadores dos serviços que lhes foram repassados. Após a implementação do modelo regulatório, verifica-se a existência de uma demanda de normatização, cuja forma de supressão seria especificamente a função normativa da Administração Pública indireta.

Existem diversas discussões doutrinárias a respeito da legitimidade das agências reguladoras para o exercício do estabelecimento de normas. Essas divergências serão analisadas adiante.

A evolução do modelo de Estado de Liberal para Social, como também, a ainda mais recente evolução do formato de intervenção estatal, de execução direta da prestação de serviços para regulação desta prestação, demandou uma atuação mais significativa do Executivo que, por sua vez, determinou o surgimento de uma função normativa da Administração Pública com mais expressividade. Ou seja, essa referente atribuição atípica do Executivo obteve uma abrangência maior, cujo reconhecimento ainda está sob discussão, mas que pode ser obtido ao se aproximar o exercício desta competência aos princípios constitucionais consagrados.

Assim, verifica-se que a função normativa atualmente é, principalmente no que se refere à prestação de serviços essenciais à sociedade, conforme o modelo de Estado Social requer, compartilhada entre o Legislativo e o Executivo de forma a consumar melhor efetividade no estabelecimento de normas setoriais.

O SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA

A cadeia produtiva de energia elétrica é composta basicamente por três distintas atividades: geração, transmissão e distribuição.

A etapa de geração consiste na conversão de fontes primárias de energia - que são as fontes de energia captadas diretamente da natureza como a energia hídrica, solar, eólica, de biomassa, oceânica e geotérmica - em energia elétrica.

Uma vez produzida, a etapa de transmissão consiste no transporte da energia elétrica das usinas geradoras até as proximidades dos centros

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de consumo. A transmissão é feita por meio de sistemas de alta e extra-alta tensão que possibilitam a minimização de perdas que são importantes devido à distância percorrida.

Nos centros de consumo, a distribuição fornece a energia para cada um dos consumidores existentes. A distribuição é composta por um sistema ramificado que contempla extensas áreas urbanas e rurais.

Após essas três etapas que disponibilizam a energia elétrica aos consumidores finais, o produto entra na última fase que é a comercialização.

O sistema de produção e transmissão de energia elétrica no Brasil é considerado como único no mundo devido a seu porte e características34.

É composto preponderantemente por usinas hidroelétricas de múltiplos proprietários e linhas de transmissão que interligam mais de 95% da capacidade de produção de energia, formando a rede denominada Sistema Interligado Nacional (SIN). Apenas 3,4% da potência total instalada do país pertencem a usinas não inseridas no sistema interligado por estarem localizadas em pequenos sistemas isolados principalmente na região amazônica.

A potência instalada total no Brasil é de pouco mais de 96.000 Megawatts e a rede de transmissão que compõe o Sistema Interligado Nacional possui mais de 98 mil quilômetros de extensão cobrindo praticamente todo o país. Apenas o Amazonas, Roraima, Acre, Amapá, Rondônia ainda não estão integrados.

Este amplo sistema de transmissão possibilita melhor aproveitamento das diferentes sazonalidades do país, pois é possível às diferentes regiões permutarem energia entre si, da localidade que se encontra em período de cheia de rios para as demais. Considerando que as geradoras de energia são na absoluta maioria usinas hidrelétricas distantes dos centros consumidores, o Sistema Interligado Nacional é uma solução de engenharia para prover energia constante a todos os centros independentemente dos respectivos regimes pluviométricos regionais.

PRINCIPAIS DIFICULDADES NORMATIVAS

O material normativo do setor de energia elétrica brasileiro apresenta deficiências que tornam a sua consulta, como também, sua correta interpretação e aplicação prejudicadas. As dificuldades encontram-se no número excessivo de diplomas, na pouca sistematização e coordenação entre eles, na escassa organização textual interna, na falta de estrutura e divisões entre capítulos e títulos de determinadas leis.

O setor de energia elétrica tem sua normatização dispersa em uma

34 Todas as informações relacionadas aos dados técnicos e características do Sistema Interligado Nacional descritas neste capítulo foram retiradas do site do Operador Nacional do Sistema: www.ons.com.br

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excessiva quantidade de diplomas - Leis, Decretos e Atos Administrativos Normativos - que possuem diferentes posições dentro da hierarquia legislativa e que são poucos articulados entre si. Diferentemente do âmbito de telecomunicações, que possui uma lei geral (Lei 9.472 de 16 de julho de 1997) que dispõe sobre a organização deste, o setor de energia elétrica, carente de uma melhor estruturação em sua legislação, pode apresentar problemas referentes a incertezas no momento da aplicação do material normativo ao caso concreto.

De acordo com Loureiro (2007, p. 1, 2), existem, aproximadamente quarenta leis ordinárias que são aplicáveis à indústria elétrica. O número de decretos supera a centena, e resoluções, portarias e outros atos administrativos normativos têm um número ainda maior.

Além da quantidade expressiva de material normativo, que dificulta não apenas a consulta, mas também o levantamento e obtenção de todo o conjunto, existem duas outras problemáticas importantes: a primeira delas é a vigência de leis escritas há várias décadas e que não foram completamente atualizadas ou revogadas; a segunda é a falta de plenitude no tratamento de determinados tópicos do setor.

Com relação à primeira questão, o material normativo vigente foi editado em um período de tempo bastante extenso, comportando mais de 70 anos. O Código de Águas, decreto com força de lei criado em 1934, foi a primeira norma legal que disciplinou o aproveitamento industrial das águas e exploração da energia hidráulica, é utilizado ainda hoje por agentes setoriais. Comporta mais de duzentos artigos e estruturalmente é dividido em duas partes: a primeira trata das águas em geral e de seu domínio, a segunda dispõe sobre o aproveitamento dos potenciais hidráulicos e estabelece uma disciplina legal para geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

A segunda problemática a ser apontada é o fato de que muitos tópicos relativos ao setor não são abordados de forma completa nos dispositivos legais, e, não havendo abrangência plena de cada ponto significativo, o número de lacunas torna ainda mais dificultosa a regulação.

Loureiro (2007, p. 2) tratando sobre o tratamento parcial e fragmentado de determinados objetos do setor de energia elétrica, dispõe:

É freqüente que uma Lei trate de um tema sem que se tenham lançado, antes, os pressupostos para sua plena compreensão, ou, o que dá no mesmo, que trate apenas parcialmente de certas figuras jurídicas, fazendo com que a complementação venha a posteriori, no bojo de outra Lei que “resgata” os assuntos pendentes, também ela, por isso, forçada a assumir uma forma tortuosa, fragmentária.

[...]Em um panorama como o descrito acima, é inevitável que existam na

legislação alterações, revogações totais ou mesmo revogações parciais de

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um dispositivo por outro mais novo, com uma velocidade e freqüência que muitíssimo prejudicam a estabilidade regulatória e a compreensão do intérprete. Não é incomum que grande parte de uma Lei seja dedicada a alterar e a revogar dispositivos precedentes.

Camargo (2009, p. 1, 2) apresenta esta problemática da seguinte forma:

A indústria brasileira de energia elétrica é regida por uma expressiva quantidade de atos normativos de diferentes hierarquias, tão complexos quanto numerosos, cuja organização se mostra indispensável à desmistificação e democratização dos serviços de energia elétrica, uma vez que disseminará uma percepção geral da extensão do ordenamento que vai além do conhecimento individual possível, obviamente restrito.

Pimenta (2010, p. 263) também apresenta consenso com relação à existência destas dificuldades normativas expondo que tal condição dificulta excessivamente o trabalho de sistematização do intérprete.

Loureiro (2007, p. 1), frente à vigência desta desestruturação, descreve algumas das principais conseqüências:

Em face dessa situação que prejudica uma compreensão segura do marco jurídico do setor elétrico, desnecessariamente nascem disputas, retraem-se investimentos, torna-se complexo o exercício de competências públicas e não se logra obter o pleno entendimento, por parte dos consumidores, de seus direitos e deveres. Em síntese: perdem o Estado e a Sociedade.

Desta forma, verifica-se que as discussões em torno da base normativa do setor de energia elétrica têm importante relevância, pois tratam de aspectos que atingem de maneira indireta o direito à informação assegurado no artigo 5o, XIV, CR35. Este direito à informação não é respeitando quando os meios utilizados para sua viabilização apresentam características que dificultam a interpretação e a consequente compreensão das previsões legais. É da essência da democracia que os cidadãos tenham acesso ao conteúdo dos atos da Administração Pública.

É relevante destacar que a Lei Complementar 95 de 1.99836, criada

35 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;36 Prefácio: “Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”.

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devido à existência de previsão constitucional, dispõe sobre diretrizes para a confecção de atos normativos que prevêem como objetivo a compreensão do conteúdo legislativo, conforme se observa em seu artigo 11, II, a, entre outros que buscam a mesma finalidade:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

[...]II - para a obtenção de precisão:a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita

compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;

Observa-se, portanto, que as deficiências relacionadas às estruturas e aos textos da base normativa do setor de energia elétrica podem comprometer o objetivo atual de sua vigência: regulação. Pois tal objetivo só será alcançado se houver compreensão e consenso de interpretação entre os operadores deste material.

Outro aspecto que se destaca entre os que discutem a legislação atual, do denominado Novíssimo Modelo, é uma questão concomitante à criação das agências reguladoras e ao estabelecimento de normas por estas. Trata-se do debate a respeito do exercício do poder normativo deste tipo de ente, que não é plenamente reconhecido na doutrina brasileira.

A legitimidade das agências reguladoras para o desenvolvimento de determinados atos é contestada, como também defendida, entre diferentes autores que explicitam a falta de unanimidade a respeito desta questão, que é uma questão primordial. Esta problemática encontra escopo nas palavras de Araujo (2008, p. 3):

[...] o mero exercício de poder normativo pelas agências reguladoras já representa uma polêmica de grandes proporções, como se vê da divergência doutrinária existente no Brasil e dos debates já ocorridos em outros países, dificilmente se podendo chegar a um consenso.

Assim, contata-se que existe uma questão ainda não superada que tem grande interferência no modelo regulatório brasileiro.

As agências reguladoras, no sistema jurídico brasileiro, possuem natureza de autarquia, sendo, portanto, integrantes da Administração Pública indireta, e por isso sujeitas aos princípios dispostos do artigo 37 da Constituição da República: Legalidade: determinação por lei das ações dos agentes públicos; Impessoalidade: isonomia perante a sociedade, vedação ao trato diferenciado; Moralidade: responsabilidade e probidade na atuação, Publicidade: direito de conhecimento da coletividade perante as ações da administração; Eficiência: economicidade e celeridade na execução dos serviços.

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Barroso (2002, p. 2) dispõe que as agências reguladoras são regidas por um regime jurídico especial porque possuem determinadas prerrogativas em relação ao poder público. Este denominado regime jurídico especial não possui definição específica. A lei de instituição de cada agência reguladora deverá apresentar os parâmetros próprios de cada caso.

O regime especial propicia autonomia político-administrativa e autonomia econômico-financeira, que são justificadas, segundo Barroso pela necessidade de preservação dos objetivos essenciais de cada agência:

A instituição de um regime jurídico especial visa a preservar as agências reguladoras de ingerências indevidas, inclusive e sobretudo, como assinalado, por parte do Estado e de seus agentes. Procurou-se demarcar, por esta razão, um espaço de legítima discricionariedade, com predomínio de juízos técnicos sobre as valorações políticas. Constatada a necessidade de se resguardarem essas autarquias especiais de injunções externas inadequadas, foram-lhes outorgadas autonomia político-administrativa e autonomia econômico-financeira.

A autonomia político-administrativa é assegurada devido à inserção nas leis instituidoras de cada agência de um estatuto jurídico próprio para os diretores destas autarquias, cujas principais características são (BARROSO, 2002, p. 4): nomeação com lastro político (no âmbito federal a nomeação é feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado); mandato fixo de três ou quatro anos; impossibilidade de demissão (exceto frente falta grave apurada mediante devido processo legal); impossibilidade de prestação de serviços às empresas sob sua regulamentação durante período de tempo pré-fixado, após término do mandato.

A autonomia econômico-financeira é obtida por meio da arrecadação de receitas provenientes de outras fontes além das dotações orçamentárias gerais, como de taxas de fiscalização e regulação, e participações em contratos e convênios (BARROSO, 2002, p. 2).

Assim, o regime jurídico especial proporciona independência decisória no direcionamento das atribuições das agências, pois dificulta a influência de interesses políticos.

Porém, a concessão de autonomia às agências reguladoras no nosso ordenamento também pode ser justificada pela necessidade do Estado em atrair investimentos internacionais para tornar possível a política de desestatização e o modelo competitivo que tenta ser implantado no Brasil (GROTTI, 2006, p. 8):

Busca-se assegurar uma regulação imparcial, decisões mais técnicas, dotadas de maior proteção contra ingerências meramente políticas, que poderiam prejudicar o funcionamento ideal de um modelo competitivo. São exigências dos investidores internacionais, para dar credibilidade às políticas estatais de privatização da exploração dos serviços públicos e segurança a investidores estrangeiros, atraindo-os para a compra de ativos estatais.

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A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL)37 e a Agência Nacional de Petróleo (ANP)38 são as únicas agências reguladoras que possuem previsão em texto constitucional. As demais agências foram criadas por meio de leis específicas, como é o caso da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), autarquia em regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e Energia – MME, e instituída pela Lei 9.427 de 26 de dezembro de 1996, que dispõe, em seu artigo segundo, as referentes atribuições desta:

Art. 2º A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

O artigo indica como uma das finalidades desta agência a regulação da cadeia energética que se origina na geração e se finaliza no consumo.

Há discussões importantes a respeito da regulação, ou seja, do exercício do poder normativo atribuído às agências reguladoras que se referem principalmente à estrita submissão do referente poder ao Princípio da Legalidade. Sobre este princípio, Di Pietro (2005, p. 67) dispõe:

(O Princípio da Legalidade), juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.

O Princípio da Legalidade determina que os atos da Administração Pública estão condicionados à observação das previsões legais. Não há ato sem lei anterior que o autorize e o delimite. A lei estabelece o Poder Vinculado e o Poder Discricionário da Administração Pública. O primeiro prevê que toda ação do agente público deve constar em lei, e, o segundo prevê o estabelecimento por lei de diretrizes perante as quais a administração tem margem de ação buscando uma finalidade que deve sempre ser pública.

Desta forma, ao observar-se que a função reguladora, entendida como ato de ditar norma com força de lei, está sendo outorgada às agências cuja criação não foi prevista em texto constitucional, mas foi executada por meio de lei instituidora, como é o caso da ANEEL, pode-se considerar, segundo alguns doutrinadores, a existência de uma inconstitucionalidade. Di Pietro (2005, p. 419) trata desta questão da seguinte forma:

[...] a função normativa que exercem não pode, sob pena de inconstitucionalidade, ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão administrativo ou entidade da Administração Indireta. Elas nem podem regular

37 Previsão constitucional no artigo 21, XI, CR.38 Previsão constitucional no artigo 177, § 2º, III, CR.

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matéria não disciplinada em lei, porque os regulamentos autônomos não têm fundamento constitucional no direito brasileiro, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do Chefe do Poder Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade que detém o Poder Regulamentar e não pelo legislador.

As normas que podem baixar resumem-se ao seguinte: (a) regular a própria atividade da agência por meio de normas de efeitos internos; (b) conceituar, interpretar, explicitar conceitos jurídicos indeterminados contidos em lei, sem inovar na ordem jurídica. Essa segunda função explica-se pela natureza técnica e especializada das agências. [...] Se, ao exercer essa função, for além do previsto em lei, estará infringindo o princípio da legalidade.

Di Pietro (2005, p. 419, 420) reconhece que com relação às agências cuja criação como órgãos reguladores foi prevista em texto constitucional, pode-se reconhecer uma função normativa mais ampla. Porém, a possibilidade de inovar na ordem jurídica a estas também é vedada, pois o exercício da função legislativa propriamente dita por agências reguladoras contrariaria o princípio da Tripartição de Poderes.

Assim, as agências reguladoras não deveriam exercer a atividade legislativa de forma ampla, ilimitada, porém, verifica-se que esta proibição não é observada em determinadas situações, conforme dispõe Barroso (2002, p. 2):

(...) embora em alguns casos seja possível dizer que a lei apenas atribui um espaço discricionário amplo aos agentes administrativos, em outros há verdadeira delegação de funções do Legislativo para a agência, transferindo-se quase inteiramente a competência para disciplinar determinadas questões.

Ao analisar-se essa transferência de competência entre as Funções Legislativa e Executiva, verifica-se que é necessário buscar fundamentos que amparem essa prática para se evitar o apontamento de inconstitucionalidades que podem futuramente anular o exercício desenvolvido por essas autarquias atualmente. Barroso sintetiza a questão da seguinte forma:

A grande dificuldade que envolve a discussão sobre o poder normativo das agências reguladoras, portanto, diz respeito ao seu convívio com o princípio da legalidade. É preciso determinar os limites dentro dos quais é legítima a sua flexibilização, sem que se perca sua identidade como uma norma válida e eficaz.

Existem diversos doutrinadores que procuram fundamentar a função normativa das agências. De acordo com Araújo (2008, p. 3), existem basicamente duas linhas que apresentam entendimentos opostos. A primeira delas reconhece a exclusiva possibilidade das agências reguladoras utilizarem o poder normativo a elas conferido para o desenvolvimento do Poder Regulamentar previsto para o Presidente da República, conforme limites definidos no artigo 84, IV, CR, a seguir:

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Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:[...]IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir

decretos e regulamentos para sua fiel execução;Desta forma, a primeira linha doutrinária admite apenas que as agências

reguladoras expeçam regulamentos executivos, não aceitando a possibilidade da disciplina de matérias relativas à liberdade ou à propriedade de pessoas. Não se considera a diferenciação entre regulação e regulamentação nesta forma de embasamento, ou seja, a regulação confunde-se com o Poder Regulamentar do Chefe do Executivo.

Porém, existe uma ressalva considerada nesta linha doutrinária: o Poder Regulamentar não pode ser considerado às agências reguladoras cuja criação não foi prevista em texto constitucional, conforme conclusão a seguir (PAIXÃO, 2009, p. 356):

[...] as agências reguladoras que não estão previstas na Constituição não podem dispor de Poder Regulamentar, isto é, não podem elaborar norma para fiel execução das leis, ainda que a própria lei lhes confira expressamente esta prerrogativa, porque a lei estaria, neste caso, violando a repartição de competências estabelecida na Constituição e usurpando parte do Poder Regulamentar do Presidente da República.

A segunda linha doutrinária, por sua vez, determina que a atribuição de poder normativo às agências ocorre devido à necessidade de se promover a chamada deslegalização de determinadas matérias com intuito de obtenção de adaptabilidade e flexibilidade das soluções técnicas a serem expedidas na regulação. Segundo Barroso (2002, p. 2), deslegalização seria a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias do domínio da lei, para atribuí-las à disciplina das agências.

De acordo com este entendimento, a Legalidade, apesar de ter sua origem na necessidade de delimitação do poder estatal, não é adequada nos instrumentos de intervenção do Estado no domínio econômico, pois a dinâmica da economia capitalista apenas pode ser acompanhada se houver margem de liberdade ao Executivo para editar normas complementares à lei. Desta forma, a lei fixaria apenas princípios gerais a serem observados na edição de regulamentos autorizados ou delegados a autoridades administrativas específicas.

Motta (2007, p. 177, 178) aproxima-se dessa segunda linha ao reconhecer a função normativa da Administração Pública como necessária ao exercício das atribuições do Estado Social que deve exercer interferência em diversos setores da sociedade. A observação rígida da clássica divisão das funções Legislativo, Executivo e Judiciário poderia engessar e comprometer essa atuação, portanto, o reconhecimento da legitimidade das agências é devido à competência para

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regular a prestação dos serviços à sociedade, como também devido à observação fiel dos princípios constitucionais que determinam a função social do Estado:

No tocante às concessões de serviços públicos, em razão da própria configuração clássica do instituto (que consagra a oposição entre interesses públicos e privados), reconhece-se a existência de função normativa atribuída à Administração para regular a forma de prestação dos serviços. Com fundamento na lei e no contrato de concessão, trava-se uma relação específica entre Administração e concessionário em que é atribuída àquela a competência para disciplinar a prestação dos serviços, aplicar penalidades, fiscalizar, etc. Essa competência, tradicionalmente atribuída ao poder concedente, tem sido atribuída aos entes reguladores.

Estas duas linhas básicas apresentadas não esgotam as possibilidades de tentativas teóricas que procuram estabelecer fundamentos de legitimação da função normativa das agências reguladoras. Outros doutrinadores apresentam posições pouco distintas a respeito deste tema, mas ainda não se encontrou um fundamento suficientemente adequado ao nosso ordenamento.

Apesar da doutrina não apresentar solução adequada para esta questão, na prática, a delegação da função normativa às agências reguladoras tem ocorrido independentemente de reconhecimento de legitimação ou base doutrinária que a sustente. Com relação especificamente à ANEEL, Paixão (2009, p. 360) dispõe:

A ANEEL possui competência outorgada pelas leis para exercer uma função reguladora que ora parece idêntica ao Poder Regulamentar do Presidente da República, ora parece idêntica à própria função legislativa do Congresso Nacional. E, de qualquer modo, sem autorização expressa na Constituição para exercer qualquer destas tarefas.

Diante do exposto, verifica-se que a discussão em busca de fundamentação para a outorga do exercício de função legislativa às agências reguladoras não foi completamente superada pela doutrina e também não tem sido observada na edição das leis instituidoras das agências, pois nestas, simplesmente ocorre a determinação para que a função normativa seja executada.

É importante ressaltar que o modelo internacional que inspirou a criação das agências reguladoras em nosso país sofreu revisões no que se refere à função de elaboração de normas (PAIXÃO, 2009, p. 352):

Nos Estados Unidos o papel das agências passou por uma evolução, principalmente no que se refere ao exercício da função reguladora, no sentido de submetê-la cada vez mais a controles efetivos por parte dos Poderes Legislativo e Executivo e por parte da população. A sua característica marcante, de independência em relação a esses Poderes, passou e passa por revisão nos Estados Unidos, justamente quando o modelo original está sendo introduzido em

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outros sistemas jurídicos europeus e latino-americanos a pretexto de favorecer a eficiência da atividade dos órgãos estatais.

Nas democracias, são os representantes eleitos pelo povo que possuem legitimidade para o estabelecimento de regras, Portanto, devido à falta de expressa autorização constitucional para o desempenho da função normativa pelas agências reguladoras, a ANEEL, como possível meio de obtenção de legitimidade, determinou a necessidade de consultas públicas no processo de elaboração de normas cujo conteúdo seja considerado relevante pelos seus diretores, conforme Resolução normativa número 273, de 10 de julho de 2007:

Art. 15. A Audiência Pública, realizada para dar subsídios ao processo decisório que implique efetiva afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, decorrente de ato administrativo ou de anteprojeto de lei proposto pela ANEEL, terá seu processo instaurado pelo Diretor-Geral, após deliberação da Diretoria da Agência.

§ 1º Audiência Pública é um instrumento de apoio ao processo decisório da ANEEL,

Desde 1998, a ANEEL realizou mais de cinquenta audiências públicas como instrumento de apoio ao processo decisório. As audiências são instauradas sempre que um assunto implicar em alterações ou ajustes na legislação da agência que interfiram diretamente nos interesses da sociedade e dos agentes do setor de energia elétrica39. A participação de pessoas interessadas também pode ser realizada por meio dos Conselhos de Consumidores de Energia Elétrica, conforme Resolução normativa 451, de 27 de setembro de 2011.

Porém, verifica-se que no caso da ANEEL, nem todos os temas são levados à interferência da sociedade, apenas os que são definidos para este fim por uma cúpula, que não foi eleita pelos cidadãos, e, portanto, também requer legitimidade. Além disso, os procedimentos observados nestas consultas podem não garantir participação popular realmente efetiva, devido a diversos fatores, sendo os mais recorrentes: a dificuldade em se avaliar possível excesso de considerações e opiniões; a burocracia necessária para a organização do encaminhamento destas; a extensão territorial brasileira que compromete a participação de todos os interessados nos eventos de consulta; além do pouco conhecimento da maior parte da população sobre assuntos cujo objetos são inerentemente técnicos. A respeito desta última dificuldade, Grotti (2006, p. 22) dispõe:

Reconhece-se, porém, que a participação dos usuários é extremamente dificultosa, em vista da crescente complexidade dos serviços, eis que são leigos em assuntos eminentemente técnicos postos nas pautas decisórias adotadas em matéria de serviços públicos.

[...]Portanto, a validade do ato normativo somente deve ser reconhecida

39 Informações retiradas do site da ANEEL: www.aneel.gov.br

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quando a participação dos interessados tenha sido provida de significado prático, o que ocorre quando tenham sido efetivamente apreciados os principais argumentos apresentados durante o procedimento de consulta pública, por uma autoridade que fundamenta sua decisão [....]

O suprimento do reconhecimento da legitimidade da função normativa das agências reguladoras é uma questão de importante relevância por integrar o atual modelo regulatório do setor de energia elétrica brasileiro. Verifica-se que o Estado, no que diz respeito à prestação de determinados serviços públicos, como a energia elétrica, tem caminhado à frente do direito. Decisões têm sido tomadas e executadas, instituições com funções normativas têm sido criadas, e os fundamentos jurídicos que possam amparar o novo modelo instituído não têm sido apresentados com a precisão adequada e no tempo oportuno.

A participação popular no desenvolvimento das cartas normativas mostra-se um caminho congruente para a legitimação desta atividade inserida dentro das agências reguladoras. Porém, para uma efetiva participação dos cidadãos, os instrumentais para este fim precisariam ser em muito melhorados, e as características do setor de energia elétrica brasileiro possuem uma extensão tão significativa que talvez seja inalcançável a realização da participação da sociedade com a plenitude que poderia legitimar a função normativa destas agências.

Portanto, outras formas que promovam solução devem ser buscadas. Este tema necessariamente permanecerá em questionamento até que se forme consenso sobre um posicionamento que traga fundamento adequado e suficiente às atribuições destas instituições. A doutrina jurídica deverá necessariamente construir uma sustentação a estas específicas determinações da função Executiva, pois a existência das agências reguladoras já é um fato, como também o referente estabelecimento de normas por estas.

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou apresentar as características do exercício da função normativa para provimento do ordenamento jurídico brasileiro - demonstrando a possibilidade desta atribuição ser exercida não apenas de forma ordinária pelos integrantes da Função Legislativa, mas também, de forma especial por meio do Chefe do Executivo e por membros da Administração Pública - paralelamente à apresentação das dificuldades de normatização do setor de energia elétrica que têm como origem, não apenas uma única fonte, mas um conjunto de fatores cujo rol é bastante expressivo.

Apresentou-se a evolução das clássicas teorias de Tripartição dos Poderes e de Freios e Contrapesos para um novo balizamento que é vigente atualmente.

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A origem destas concepções buscava a fundamentação do Estado Democrático de Direito, que possui, de forma inerente, a proteção aos interesses individuais e a destituição de centralização de poder. Seus pressupostos clássicos foram observados na elaboração de diversas Constituições após a Revolução Francesa. Porém, com a instituição do modelo de Estado Social, outras delineações precisaram ser introduzidas nas concepções originais, como forma de possibilitar a atuação do Estado sem obstruções ou dificuldades que poderiam existir caso os novos contornos não fossem estabelecidos. Atualmente, a produção de normas pelo Estado, mais precisamente, pela Função Legislativa, é ordinariamente conferida aos órgãos de representação democrática da sociedade que a compõe. Porém, o estabelecimento de normas também pode ser exercido por meio da função atípica do Executivo em casos específicos. No que tange o objeto deste trabalho, a ampliação da função normativa da Administração Pública foi uma das inovações necessárias para assegurar uma atuação estatal efetiva, principalmente após a recente introdução de um modelo regulatório para a prestação de serviços públicos.

Alguns dos principais aspectos que fazem parte do conjunto de dificuldades de normatização do setor de energia elétrica são: a vigência de ordenamentos instituídos gradualmente em uma grande extensão temporal, sob pressupostos diversos de acordo com o momento histórico respectivo; o número excessivo de diplomas legais, muitos deles com revogação parcial não expressa, e a falta de integração ou coordenação entre os documentos; a escassez de organização e coerência de divisões de temas no conteúdo das leis setoriais; a falta de plenitude no tratamento de diversos tópicos devido à abordagem fragmentada e disposta em diferentes diplomas, que além de dispersar informações, não abrange a totalidade das questões; a tentativa de migração estipulada por lei, portanto, não natural, do modelo setorial antes cooperativo para competitivo, que ainda encontra-se em fase de implementação sob críticas de diversos profissionais da área de energia; a existência de discussão doutrinária a respeito da legalidade e consequente legitimidade da função normativa das agências reguladoras que já foram instituídas e que já dispuseram normas no ordenamento, e, por fim, porém sem objetivo de exaurir o conjunto de fatores que tornam o estabelecimento de normas do setor extremamente dificultoso, considera-se a complexidade das questões de engenharia inerentes à atividade.

De acordo com o Principio da Continuidade do serviço público, a essencialidade do produto energia elétrica determina que as empresas que compõe a cadeia produtiva composta pelas atividades geração, transmissão e distribuição não poderiam deixar de prestar suas atribuições. É importante ressaltar que a essencialidade deste produto diz respeito tanto à vida particular e individual de cada cidadão, quanto ao amparo ao desenvolvimento das diversas atividades econômicas do país.

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Estudos de viabilidade do novo modelo de exploração precisariam ser executados e analisados de forma mais criteriosa. Eventuais erros deveriam ser corrigidos para que o futuro não seja atingido por possível crise energética devido a falhas no molde da atividade que é estratégica ao país.

Após a determinação de um modelo suficientemente adequado às características nacionais, o estabelecimento de normas deveria ser mais criterioso. Cada dispositivo deveria ser melhor questionado, tanto tecnicamente, como juridicamente. Os temas não deveriam ser positivados antes do tempo necessário à discussão completa que é inerentemente complexa. Toda a análise deveria se dar anteriormente a referente inclusão no ordenamento vigente. E, cada inclusão ou inovação, deveria trazer explicitamente as revogações então oriundas, e as modificações conseqüentes de forma clara, objetiva, e sistematizada. A adoção de metodologia para a produção normativa que torne todo o processo de criação, como também, todo o processo editorial otimizados, seria relevante.

Além disso, importante seria a visualização, durante a edição de normas, de que não apenas profissionais do direito operam este material, mas outros, cujo esforço deveria voltar-se apenas para as questões físicas da prestação do serviço.

A discussão do reconhecimento da legitimidade das agências reguladoras para edição de normas é uma questão imprescindível e que é tratada com a devida atenção pelos operadores do direito que publicam artigos e partes de livros sobre o tema. Porém, a origem da normatização do setor de energia elétrica não poderia ser um fator de entrave do desenvolvimento da atividade. Portanto, o direito, neste caso, poderia atentar-se com mais precisão ao objeto final, e prover consenso com maior rapidez, considerando-se principalmente que esta questão encontra-se defasada, pois a referida situação já foi instaurada.

Assim, conclui-se o presente trabalho com a consideração de que o setor de energia elétrica brasileiro encontra-se sem o adequado respaldo normativo que reflita a importância desta atividade, tanto essencial, quanto estratégica ao Estado.

Melhorias são necessárias para que o setor de energia elétrica possa ser adequadamente conduzido e propicie resultados compatíveis com as necessidades brasileiras. Da mesma maneira que novos contornos às teorias clássicas de Montesquieu foram introduzidos devido à necessidade de assegurar a presença mais efetiva do Estado, novos balizamentos no exercício da produção de normas - tanto estrito, quanto amplo - deveriam ser estudados e efetivados para que as atividades de prestação de serviços públicos possam acompanhar a evolução da sociedade e suas demandas.

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MOTTA, Fabrício. Função normativa da administração pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

PAIXÃO, Leonardo André. Aspectos jurídico-institucionais do setor elétrico brasileiro. In: Direito regulatório: temas polêmicos / Coordenado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

PIMENTA, André Patrus Ayres. Serviços de energia elétrica explorados em regime jurídico de direito Privado, in: Direito da Energia Elétrica no Brasil: aspectos institucionais, regulatórios e sócio-ambientais. Brasília. ANEEL, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007.

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ANÁLISE DO INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL A PARTIR DOS DANOS CAUSADOS PELA CONSTRUÇÃO DE USINAS HIDRELÉTRICAS

ANALYSIS OF THE INSTITUTE OF LIABILITY FROM HARM CAUSED BY THE CONSTRUCTION OF HIDROPOWER PLANTS

paula camila baréa

Acadêmica de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba

rEgina maria buEno bacEllar

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambien-tal. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direi-to de Energia/Regulatório

RESUMO

A responsabilidade Civil é o instituto encontrado no Direito Ambiental para que haja a reparação ao estado anterior do bem ambiental afetado ou, não havendo essa possibilidade, a reparação pecuniária satisfatória. No caso da construção de Usinas Hidrelétricas, procura-se utilizar o instituto para restaurar o bem jurídico afetado e trazer benefícios para ambas as partes: empreendedores e a comunidade local próxima da área de construção das Usinas. O presente trabalho objetiva analisar a eficiência de tal instituto e se ele é realmente uma solução para o bem jurídico afetado, considerando os benefícios e malefícios da construção de Usinas Hidrelétricas no meio ambiente.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil, dano ambiental, Usinas Hidrelétricas, bem jurídico.

ABSTRACT

Civil liability is the Environmental Law Institute found in order to have repair to the previous state of good environmental affected or, if no such possibility, satisfactory financial compensation. In case of the construction of

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hydropower plants seek to use institute to restore affected legal interest and beneficial to both parties: entrepreneurs and the local community near the construction area of Plants. This study aims to analyze the efficiency of such institute and if it is really a solution to the legal affected, considering the benefits and detriments of the construction of Hidropower Plants on the environment.

Keywords: Liability, environmental damage, Hidropower Plants, legal interest.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Meio Ambiente e sua necessidade para existência de vida. 3 Prin-cípio da Prevenção e Precaução. 4 Dano e Responsabilidade Ambiental. 5 Responsabilidade do empreendedor frente aos danos causados pela construção de Usinas Hidrelétricas. 6 Consi-derações Finais. 7 Referências.

1 INTRODUÇÃO

O Direito Ambiental, atualmente, protege o meio ambiente de uma maneira ampla, sendo consagrado como direito fundamental da pessoa humana. Para isso encontra amparo em instrumentos cada vez mais eficazes como a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/1981; a Lei dos Crimes Ambientais, nº 9.605/1998, além da proteção constitucional (art. 225) e dos diversos princípios concernentes ao Direito Ambiental.

Dessa forma, garante-se a preservação ambiental, espírito de preservação e reparação em relação ao meio ambiente natural e artificial.

Infelizmente, nem sempre se pode falar em uma afeição coletiva relativa ao meio ambiente. Ainda há a falta de consciência ecológica de algumas pessoas que acreditam que os recursos ambientais são eternos. Nesse contexto, a responsabilidade ambiental se estabelece quando são ultrapassados todos os limites possíveis que o Direito Ambiental possa suportar. A atenção especial dada ao instituto da responsabilidade civil vem pelo fato de que é ele que assegura o restabelecimento ao estado anterior ao dano ou então, a reparação pecuniária satisfatória.

A escolha do tema partiu do interesse em questionar se a responsabilidade civil realmente é uma alternativa viável a reparação ambiental. Para se chegar a uma conclusão, usar-se-á uma obra de grande impacto, as Usinas Hidrelétricas. Para tanto, torna-se necessário verificar se há mais malefícios do que benefícios na realização da obra e como conseqüência refletir se a consagração constitucional ao direito a um meio-ambiente sadio e o instituto da responsabilidade civil suprem o que foi afetado e possibilitam a reparação do dano, inclusive a reparação pecuniária.

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2 MEIO AMBIENTE E SUA NECESSIDADE PARA EXISTÊNCIA DE VIDA

A expressão “meio ambiente” objetiva atingir o maior número de elementos possíveis, haja vista que é considerada pelo art. 225 da Constituição Federal como um direito inerente a todos, bem de uso comum do povo, necessário para que haja a sadia qualidade de vida e inclusive há a imposição ao Poder Público e à coletividade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

No art. 3º, inciso I, da Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6.938/1981), o meio ambiente é definido como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Silva (1998, p. 20), sugere que:

o conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (1972, p. 1), celebrada em Estocolmo, em 1972, proclama-se que:

a proteção e o melhoramento do meio ambiente humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro, um desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os governos.

Através do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello (1995, p. 19), percebe-se a amplitude do meio ambiente e sua importância frente a população:

Direito ao meio ambiente é um típico direito de terceira geração que assiste de modo subjetivamente indeterminado, a todo gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em beneficio das presentes e das futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social.

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Reflete-se que o meio ambiente é um direito fundamental. Não deve ser visto como de caráter individual, mas deve ter uma abordagem social como patrimônio da coletividade. Sendo o meio ambiente um conceito jurídico indeterminado, para facilitar a responsabilização quando do bem agredido ele é classificado em: Meio Ambiente Natural ou Físico, Meio Ambiente Artificial, Meio Ambiente Cultural e Meio Ambiente do Trabalho.

A partir dessa classificação, observa-se a interligação dos meios e sua importante integração para que se possa efetivamente garantir o direito ao meio ecologicamente equilibrado a toda população, inclusive as gerações futuras.

A tutela do meio é tão importante que a questão ambiental se encontra relacionada ao direito à vida e à saúde, o direito de propriedade e função social e também como condicionante da atividade econômica. Atualmente pode-se dizer que a questão ambiental está diretamente inserida na vida das pessoas. A legislação ambiental acompanha essa evolução e confirma a dependência do direito ambiental com outros ramos do direito, inclusive colocando o mesmo como direito fundamental. Antunes (2005, p. 5) faz uma importante análise da necessidade da consciência jurídico ecológica e educação ambiental:

existe um direito da proteção da Diversidade Biológica, um direito de proteção dos mares, um direito referente aos produtos tóxicos, outros sobre espécies ameaçadas de extinção e daí por diante. O nosso direito interno, por igual, vem se ‘especializando’ em muitas áreas diferentes, ‘recursos hídricos’, ‘diversidade biológica’, ‘resíduos sólidos’, ‘produtos perigosos’, e muitos outros. Infelizmente, no Brasil ainda estamos muito aquém do desejado quando falamos em estudo do Direito Ambiental, pois se por um lado é correto afirmar que o Direito Ambiental precisava ser ‘subdividido’, de maneira que pudéssemos aprofundar os estudos sobre proteção da diversidade biológica, recursos hídricos, poluição marítima, poluição por resíduos sólidos, etc; por outro lado não podemos esquecer que o Direito Ambiental ainda é uma matéria optativa na maioria das faculdades brasileiras e que a imensa maioria dos cursos de direito não a possuem em seus curricula básicos. Estes são elementos que, evidentemente, servem de obstáculos concretos ao florescimento dos estudos jurídicos ambientais.

É certo que a consagração da questão ambiental como direito fundamental é um passo grandioso, mas deve-se observar os avanços realizados desde a Constituição Imperial, onde os temas ambientais eram tratados de maneira extremamente ampla; até a Constituição de 1988, a qual incluiu o meio ambiente num capítulo próprio (capítulo VI), estabeleceu um novo conceito ao meio

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ambiente, consagrou o meio como um direito coletivo, essencial a qualidade de vida, impondo a preservação e proteção inclusive as gerações futuras, sendo que hoje se fala em tutela da preservação do patrimônio genético, estrutura básica da vida humana; exigência de Estudo de Impacto Ambiental para as atividades de grande porte e possibilidade da publicidade dos mesmos; incentivo a educação ambiental e a conscientização pública; controle da produção, comercialização e emprego de técnicas que comportem risco de vida das pessoas e do meio ambiente; estabelecimento de diretrizes governamentais e consideração dos bens ambientais como bens difusos, inerentes a todos e desvinculados do instituto da posse e da propriedade.

Além da proteção constitucional, ressalta-se outro importante instrumento: a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº. 6.938/1981), a qual objetiva estabelecer padrões que tornem possível o desenvolvimento sustentável através de mecanismos capazes de conferir ao meio ambiente maior proteção. Também é uma forma de conscientização pública sobre a preservação do meio ambiente e qualidade ambiental, além do estabelecimento de meios racionais de utilização da água, ar, subsolo, etc. e também o estabelecimento de multas e sanções para quem poluir ou degradar o meio, responsabilizando o agente em três esferas: civil, penal e administrativa.

A Lei que disciplina a Ação Civil Pública de Responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (nº 7.347/1985) e a Lei que se refere ao Estudo de Impacto Ambiental (nº 6.803/1980) também são importantes instrumentos para a tutela do meio ambiente e para refletir sobre a sua necessidade para a existência de vida. Junto com isso, lembra-se dos princípios inerentes ao Direito Ambiental, Declaração de Estocolmo e recentemente a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, apelidada de Rio + 20: evento realizado no Rio de Janeiro, em Junho de 2012 com a participação de líderes dos 193 Estados que fazem parte da ONU para a discussão de questões como a economia verde e governança internacional. A partir dessa análise da evolução do Direito Ambiental, não resta dúvidas que ele é um instrumento apto e interdisciplinar para a proteção de um meio equilibrado e garantia de uma vida sadia a toda população mundial.

3 PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO

Dentre os inúmeros princípios do Direito Ambiental, os princípios da Prevenção e Precaução destacam-se como instrumentos que servem para evitar danos que se sabe que irão ocorrer ou se tem o dever de evitá-los.

O princípio da Prevenção apóia-se na certeza jurídica que o impacto ambiental possa causar em determinada atividade e objetiva então a impossibilidade da produção do dano.

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O Estado tem papel fundamental na prevenção do dano através de incentivos fiscais, como a utilização de tecnologias limpas e punição correta do poluidor além de multas mais severas, observando o lucro que o poluidor obteve com a atividade e impondo uma multa proporcional ao seu poder econômico. Educação ambiental e consciência ecológica são fatores importantes a serem desenvolvidos para obter resultados positivos no controle ao dano ambiental. Manejo ecológico, tombamento, sanções administrativas, estudo prévio de impacto ambiental também são fatores que contribuem para prevenir os danos.

Antunes (2005, p. 35) sustenta a idéia, ressaltando que:

o princípio da prevenção aplica-se a impactos ambientais já conhecidos e dos quais se possa, com segurança, estabelecer um conjunto de nexos de causalidade que seja suficiente para a identificação dos impactos futuros mais prováveis. Com base no princípio da prevenção que o licenciamento ambiental e, até mesmo, os estudos de impacto ambiental podem ser realizados e são solicitados pela autoridade pública.

Importante enfatizar que a prevenção dos danos possibilita um estudo prévio que indique os malefícios e benefícios gerados pelo empreendimento e, a partir daí, a decisão de efetivação ou não da obra.

O princípio da Precaução difere-se do anterior, pois há incerteza sobre os malefícios da obra causada, sendo necessário o estudo preliminar e o planejamento adequado da intervenção pretendida, mesmo que a possibilidade de ocorrência de danos seja quase nula.

Sob a ótica de Antunes (2005, p. 31), o princípio da Precaução é,

o princípio jurídico ambiental apto a lidar com situações nas quais o meio ambiente venha a sofrer impactos causados por novos produtos e tecnologias que ainda não possuam uma acumulação histórica de informações que assegurem, claramente, em relação ao conhecimento de um determinado tempo, quais as conseqüências que poderão advir de sua liberação no ambiente.

A falta de certeza sobre determinado evento negativo não pode servir de desculpa para que nenhuma medida seja adotada, pois a mínima alteração no meio ambiente pode acarretar conseqüências irreparáveis. Nesse sentido, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (1992, p. 3), reunida no Rio de Janeiro em 1992, estabeleceu a “Declaração do Rio de Janeiro”, a qual no seu princípio nº 15 enuncia que:

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Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

Através do estudo dos dois princípios, mais uma vez reporta-se a importância da proteção ao meio ambiente quando da construção de não somente grandes, mas qualquer empreendimento impactante através da realização de estudos prévios. Também se reflete a bagagem fundamental que o Direito Ambiental proporciona, visando indicar um caminho adequado para se alcançar uma ecologia equilibrada em conformidade com as complexidades sociais e culturais de cada região. Junto com os princípios da prevenção e precaução deve-se levar em conta os outros princípios concernentes ao Direito Ambiental: Princípio do Desenvolvimento Sustentável, Princípios Usuário-Pagador e Poluidor-Pagador, Princípio da Obrigatoriedade da Intervenção do Poder Público, Princípio Democrático, Princípio da Informação, Princípio da Educação Ambiental, Princípio da Cooperação entre os Povos, Princípio do Limite, Princípio da Vedação do Retrocesso Ecológico (ou non cliquet ambiental) e Princípio do Direito Humano Fundamental.

Antigamente, quando se falava em dano, referia-se somente aos bens patrimoniais, não levando em conta o moral. Hoje, a doutrina conceitua o dano de maneiras diferentes.

Silva (2005, p. 702), acredita que “quando se fala em dano, o que se quer significar é o resultado da lesão ou da injúria sobre o patrimônio moral ou material”. Sirvinskas (2008, p. 39) observa que:

pode-se conceituar dano como toda a lesão causada a um bem jurídico tutelado. Dano ambiental, por sua vez, é toda agressão contra o meio ambiente causada por atividade econômica potencialmente poluidora, por ato comissivo praticado por qualquer pessoa ou pela omissão voluntária decorrente da negligência. Esse dano, por seu turno, pode ser economicamente reparado ou ressarcido. Aquele decorre da obrigação de reparar a lesão causada a terceiro, procurando recuperar ou recompor o bem danificado.

Antunes (2011, p. 286-287), caracteriza o dano como:

o prejuízo causado a alguém por um terceiro que se vê obrigado ao ressarcimento. É juridicamente irrelevante o prejuízo que tenha por

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origem um ato ou uma omissão imputável ao próprio prejudicado. A ação ou omissão de um terceiro é essencial (...). A noção de dano, originariamente, tinha um conteúdo eminentemente patrimonial, na medida em que não se considerava prejuízo o menoscabo de um valor de ordem íntima, uma vez que esta não tem conteúdo econômico imediato.

Sendo o dano a conseqüência da degradação ambiental, ele atinge toda a coletividade. A partir do conceito de dano começa-se a pensar na quantificação dos danos ambientais. A quantia pecuniária paga pelo dano causado ao bem ambiental supre os prejuízos causados? Há efetividade nesse quantia pecuniária? Sendo os recursos ambientais na sua maioria limitados, torna-se complicado pensar na pecúnia de forma satisfatória. Nesse contexto parece que o dano equipara-se com sua antiga definição: como se a lesão ao meio ambiente fosse algo meramente patrimonial, já que o tratamento dado a ele é semelhante ao de uma mercadoria.

Antunes (2011, p. 288) salienta que,

o bem jurídico meio ambiente não é um simples somatório de flora e fauna, de recursos hídricos e recursos minerais. O bem jurídico ambiente resulta da supressão de todos os componentes que, isoladamente, podem ser identificados, tais como florestas, animais, ar, etc. Este conjunto de bens adquire uma particularidade jurídica que é derivada da própria integração ecológica de seus elementos componentes. Tal qual ocorre com o conceito de ecossistema, que não pode ser compreendido como se fosse um simples aglomerado de seus componentes, o bem jurídico meio ambiente não pode ser decomposto, sob pena de desaparecer no mundo jurídico.

No caso do bem ambiental afetado não voltar ao seu estado anterior, o Poder Judiciário fixa uma sanção, um valor indenizatório que reverterá para um fundo gerido por um Conselho Federal ou Conselhos Estaduais, os quais poderão contar com a participação de representantes da sociedade e o Ministério Público. Trata-se do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), que como enuncia o §1º do art. 1º da Lei nº 9.008, de 21 de Março de 1995,

tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos.

Refletindo-se sobre a limitação dos bens ambientais, imagina-se a dificuldade em se estabelecer uma quantificação para o dano ambiental e ainda apurá-lo. Por

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outro lado deve-se levar em conta o avanço do legislador no sentido da indenização para fins de proteção do meio ambiente. Essa indenização pode ser uma alternativa do sujeito causador do dano pensar melhor antes de cometê-lo.

O dano liga-se diretamente ao instituto da responsabilidade, pois é este que acarreta o dever do sujeito recuperar ou reparar o estrago causado por meio de uma indenização imputada ou recomposição mais aproximada possível do bem ambiental afetado. Portanto, o custo pela conduta ou omissão do responsável pelo dano pode ser moral ou pecuniário.

A responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, encontra amparo na Constituição Federal, no art. 225, §3º:

Art. 225 – (...). § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

A responsabilidade pode ser atribuída a pessoas físicas e jurídicas e subdivide-se em três esferas: responsabilidade civil, penal e administrativa. A responsabilidade é o instituto que o Direito proporciona para a parte reafirmar o direito de ter suas pretensões satisfeitas. Cada Estado possui autonomia para desenvolver uma legislação relativa à responsabilidade e à indenização referente a danos causados ao meio ambiente.

O dilema da responsabilidade é a questão da compensação, quando são grandes as chances de impossibilidade de reconstrução do que foi danificado. Com base nessa questão, Antunes (2011, p. 247), exemplifica:

existem bens que são únicos e, nesta qualidade, são insubstituíveis. Um pai é único para seu filho, assim como um filho é único para seu pai. Não há indenização capaz de substituí-los. Em termos de reparação de danos ambientais, não raras vezes, questões similares colocam-se com extrema dramaticidade.

Tanto no Direito Civil como Administrativo, a responsabilidade é objetiva, ou seja, não é necessário a demonstração de culpa. Basta a demonstração da ocorrência do fato, dano e nexo causal para o agente responder pelos danos que causou. Calmon (2010, p. 337-347), explica que a responsabilidade objetiva é “fundada no simples risco ou no simples fato da atividade danosa, independentemente da culpa do agente causador da dano”.

Diferente do Direito Civil e Administrativo, no Direito Penal vigora a responsabilidade subjetiva, personalíssima, que atenda à Teoria Geral do

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Delito, ou seja, é necessária a comprovação de culpa. A tutela penal do meio ambiente é considerada a ultima ratio, ou seja, somente quando se esgotarem os mecanismos civil e administrativo é que a responsabilidade penal ambiental deverá ser invocada. A partir do § 1º do art. 14 da Política Nacional do Meio Ambiente, percebe-se a adoção do legislador pela teoria objetiva:

Art. 14 - (...) § 1º. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

5 RESPONSABILIDADE DO EMPREENDEDOR FRENTE AOS DANOS CAUSADOS PELA CONSTRUÇÃO DE USINAS HIDRELÉTRICAS

Quando se fala em Usinas Hidrelétricas, pensa-se nas inúmeras vantagens ecológicas e econômicas prestadas através do aproveitamento gratuito dos cursos d’água.

A energia obtida através do aproveitamento do potencial hidráulico existente em um rio é a energia limpa, considerada renovável, mais barata e menos perigosa que a nuclear. Além disso, é considerada ambientalmente mais favorável, pois produz pequenas quantidades de gases de efeito estufa, diferentemente das usinas movidas a gás ou petróleo.

As Usinas Hidrelétricas são enormes obras que obtem apoio na engenharia civil, ambiental, mecânica, hidráulica além da biologia, geografia, geologia, geomorfologia, matemática, física, etc. Cada projeto comporta suas especificidades, o volume de água dos reservatórios são imensos exigindo estudos denominados hidro-energéticos. Além disso, a construção desses reservatórios depende de todas as medidas e programas ambientais estabelecidos no EIA/RIMA para assim comprovar que os impactos ambientais a serem causados são justificáveis quanto aos benefícios que serão ofertados.

Um sistema elétrico de energia contém redes de transmissão e a partir dessas redes, pontos de consumo de energia (cargas) e pontos de produção de energia (geradores). Em uma central hidrelétrica ocorre a instalação ligada à rede de transporte que distribui a energia solicitada pelas cargas.

No Brasil, pode-se citar como exemplo a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, localizada no rio Tocantins, no município de Tucuruí, no Estado do Pará. A construção da Usina foi iniciada no final de 1974. Sua inauguração ocorreu

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em 1984 pelo presidente João Figueiredo sendo que na época comportava uma capacidade geradora instalada de 4.000 MW. Em 2010 foi ampliada para 8.370 MW. A Usina abastece grande parte das redes da Central Elétrica do Pará (Celpa), Companhia Energética do Maranhão (Cemar) e a Companhia de Energia Elétrica do Estado de Tocantins (Celtins).

A construção de Tucuruí ocorreu numa época em que acontecia a ditadura militar: 1974 e 1985. As questões ambientais nessa época não eram exaltadas, muito menos alguma possibilidade de intervenção em questões ambientais. O projeto inicial já previa o desmatamento da região que fosse alagada. A perda de madeira possível para a comercialização chegou a 2,5 milhões de m³. A cidade conseguiu o segundo maior orçamento do Pará, depois de Belém por receber royalties pela produção de energia elétrica, fazendo-a progredir imensamente a partir dos anos 90 em infra-estrutura e urbanização. No que diz respeito aos impactos ambientais e sociais, verifica-se que houve perda de algumas espécies de peixes, pelo fato de não ter sido construída uma escada de peixes. Além disso, alega-se que algumas tribos como a Gavião da Montanha e os índios Assurini não receberam nenhum tipo de indenização.

A Usina Hidrelétrica de Itaipu é uma usina binacional localizada na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, no Rio Paraná. Foi construída pelos dois países no período de 1975 a 1982. É considerada uma das maiores geradoras de energia elétrica do mundo. Possui 20 unidades geradoras e 14.000 MW de potência instalada. Fornece cerca de 16,99% de energia consumível no Brasil e abastece 72,91% do consumo paraguaio. Em 2008, bateu o recorde de produção de energia: 94.684.781 megawatts-hora (MWh).

O tamanho do empreendimento da Usina, contribui para que Foz do Iguaçu seja conhecida no mundo inteiro como um dos principais destinos turísticos a ser visitado. A Itaipu já recebeu mais de 16 milhões de habitantes, tornando-se centro de referência em turismo além da formação de mão-de-obra qualificada.

Estima-se que uma área de 1500 km² de florestas e terras consideráveis agriculturáveis foram inundadas. O Salto de Sete quedas, considerada a maior cachoeira do mundo em volume de água desapareceu com a formação do lago da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Às vésperas da inundação, várias pessoas se reuniram no parque nacional das Sete Quedas em memória das mesmas.

Semanas antes do abastecimento dos reservatórios, houve uma operação para salvar animais selvagens os quais foram levados para regiões próximas protegidas das águas. No que diz respeito a desapropriação, mais de 42 mil pessoas foram desapropriadas, sendo que a maioria eram trabalhadores do campo. Vários problemas sociais foram gerados, inclusive a maioria dos trabalhadores passou a ser membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

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A Itaipu alega que conduz o maior projeto de reflorestamento prestado por uma Usina Hidrelétrica, realizando o plantio de mais de 44 milhões de mudas nas margens brasileira e paraguaia. Além disso, ressalta que uma área inferior a 2% da faixa de proteção do reservatório falta ser reflorestada. No que concerne aos produtores rurais, a Itaipu apóia os produtores que desejam recompor a mata ciliar em suas propriedades. Para isso, desenvolveu um programa denominado “Cultivando Água Boa”, o qual fornece mudas para a recomposição da vegetação além de arames e postes para a construção de cercas de isolamento. O Pacto Global é um Pacto Mundial criado para rediscutir questões como a defesa dos direitos humanos, condições de trabalho e meio ambiente. A Usina de Itaipu aderiu a esse Pacto para a observância desses princípios na sua área de atuação diariamente, objetivando a construção de uma sociedade mais sustentável e justa.

Os rios são recursos ambientais “construídos” ao longo de vários anos. Fornecem equilíbrio climático, estabilidade de temperatura, recarga do lençol freático, alimentos, limpeza da água, agricultura, atividades como pesca além de serem considerados meios de transporte. Alterar esse recurso ambiental caracteriza mudanças na vida das pessoas e de animais que dependem dos serviços ofertados pelos rios. A partir daí nascem conflitos e interesses diversos sobre os impactos ambientais, culturais, sociais e econômicos causados pela construção do empreendimento. Inicia-se um processo paradoxal, no qual as próprias pessoas que devem ser beneficiadas com esse tipo de obra, muitas vezes defendem diferentes pontos de vista em relação aos empreendedores ou não tem nenhum tipo de comunicação com os mesmos.

Apesar da distribuição de cópias do RIMA e do EIA para o recebimento de críticas e sugestões, vale lembrar que muitas informações são técnicas e somente especialistas na área tem condições de entender. A audiência pública para exposição do RIMA também comporta esse tipo de situação. Considera-se ainda que a maior parte da população que vive ou trabalha próximo da área de construção da obra, são populações ribeirinhas, pescadores, índios e grupos étnicos que não tem conhecimento técnico apurado para conhecer e debater sobre os projetos. Nesse contexto, a participação da sociedade nos aspectos que envolvem a instalação do empreendimento é quase que limitado. Apesar da participação popular nos processos decisórios, é o governo e os empreendedores que decidem o que realmente será feito, gerando um caráter individual das decisões. A influência política nas decisões é forte e pode-se tornar fácil a influência nos estudos e aspectos técnicos. O que resta como alternativa para as populações são o apoio das ONGs, manifestantes, ambientalistas e protestos dos índios para chamar a atenção ao problema.

Podem-se citar alguns aspectos negativos da construção das hidrelétricas: a ocorrência de desmatamentos, abertura de estradas, escavações, alterações no

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clima local, mudança na composição química e temperatura da água, morte de animais e possível extinção de espécies raras, inundação na estrutura dos ambientes aquáticos, modificações nas comunidades vizinhas às hidrelétricas, desalojamento de pessoas, diminuição na quantidade e qualidade dos peixes, muitas vezes única fonte de atividade econômica e alimentação de algumas pessoas; deslocamento forçado de pessoas em troca de uma quantia pecuniária muitas vezes não aceita, etc.

Os pontos positivos desses empreendimentos são o enquadramento dos empreendimentos hidrelétricos em energia renovável, pois utilizam a energia da água para produzir eletricidade; o crescimento da oferta de empregos; a infra-estrutura criada para auxiliar a população, resultando no crescimento da economia; no caso de ocorrência de blecautes, as fontes de geração de energia são rápidas e garantem o restabelecimento do fornecimento de energia; o reservatório das usinas tem uma capacidade enorme para armazenar água da chuva, que poderá ser utilizada posteriormente; a quantidade pequena de emissão de gases de efeito estufa; a possibilidade de utilização das hidrelétricas como forma de turismo, como no caso da Itaipu, melhorando a economia da região; o longo prazo de vida dos empreendimentos hidrelétricos, que podem beneficiar várias gerações com energia barata e segura; a probabilidade da área da obra tornar-se local de desenvolvimento de estudos e projetos de educação ambiental, estudos relacionados a engenharia e a fauna e flora; transformação do local em uma referencia para o mundo com mão de obra qualificada.

A partir da elucidação dos pontos positivos e negativos, nota-se a dificuldade em harmonizar os diferentes aspectos que para cada uma das partes consideradas tem significados próprios. A solução que as pessoas encontram para que haja a reparação dos danos sofridos é a busca pelo Poder Judiciário através de ações de Reparação de Danos. Muitas vezes torna-se necessário relembrar se a indenização é solicitada por fato lícito ou ilícito, se há comprovação de dano e nexo causal, prazo prescricional para propor a ação, etc.

Aí começam questionamentos relativos à comprovação do dano e nexo causal, discussão da indenizabilidade eis que a construção de Usina é um fato lícito, questão do ônus da prova (e em se tratando de recursos ambientais torna-se mais complicada ainda a produção de prova) , possibilidade ou não acerca de dano emergente e lucros cessantes.

Nesse patamar, muitas são as ações ajuizadas solicitando reparação de prejuízos causados a pescadores, ações de indenização por outras empresas que utilizavam matéria prima da área que foi inundada para realização da Usina, ações de danos morais e materiais supostamente causados em razão do alagamento da represa da Usina, responsabilidade civil decorrente da desapropriação de terras, dentre outros diversos tipos de ações.

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A partir disso, praticamente não há possibilidade de acordo entre as partes, os pedidos são deferidos ou indeferidos e consequentemente uma parte sai ganhando e a outra perdendo. Na maioria das vezes nem a reparação pecuniária acontece, o pedido já é indeferido de praxe. Ferreira (2012, p. 708), elucida:

seja na função reparatória, seja na compensatória, que, na realidade, o princípio da reparação integral nunca é efetivamente realizado, especialmente nos casos de danos difusos, como os ambientais, e danos aos direitos da personalidade. O que ocorre, na verdade, é uma transferência do dano para quem deve ressarci-lo.

Esse fato atenta para uma questão que não pode ser deixada de lado: a insatisfação de uma parte frente aos benefícios da outra.

É nesse aspecto que a Responsabilidade Ambiental deve ser ressaltada, respeitando a premissa de que as atitudes empresariais devem ser voltadas para o desenvolvimento sustentável, possibilitando o crescimento econômico juntamente com a proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Gestão ambiental e planejamentos abrangentes sobre responsabilidade socioambiental são fatores essenciais para a prática desse importante instituto.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Ambiental, sendo uma matéria relativamente nova no Direito, alcançou reconhecimento principalmente pela Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981). Essa lei tornou o Direito Ambiental autônomo, pois proporcionou a ele um regime jurídico próprio, conceitos sobre os diversos tipos de meio ambiente, estabelecimento dos princípios concernentes ao Direito Ambiental, objetivos, diretrizes, instrumentos, os órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e o instituto da responsabilidade.

Juntamente com a Lei que se refere o Estudo de Impacto Ambiental (nº 6803/1980), a Lei que disciplina a Ação Civil Pública de Responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (nº 7.347/1985), Lei dos Crimes Ambientais (nº 9.605/1998), a Lei que Dispõe sobre a proteção à Fauna (nº 5.197/1967), a Lei que dispõe sobre a Educação Ambiental e institui a Política Nacional de Educação Ambiental (nº 9.795/1999), a Lei que estabelece medidas de proteção das florestas existentes nas nascentes dos rios (nº 7.754/1989) e uma imensidade de outras leis esparsas, Decretos Leis, Medidas provisórias, princípios do Direito Ambiental, Resoluções e Portarias do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), realização da Avaliação de Impacto Ambiental no qual estão

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abrangidos o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) e o Estado de Impacto Ambiental (EIA) quando da construção de grandes empreendimentos, auxílio do Ministério do Meio Ambiente como órgão federal controlador da política nacional e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente, colaboração do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade como autarquias destinadas a conservação da natureza, Órgãos locais e seccionais, Declaração de Estocolmo como grande marco ambiental para a atenção do mundo para a busca da preservação e melhoria do meio ambiente, mobilização em redes sociais, realização da Rio + 20 em 2012, mobilização frente a aprovação do novo Código Florestal, inclusão do Direito Ambiental como disciplina indispensável em faculdades de Direito, exposição da questão ambiental pela mídia, entre outros aspectos, percebe-se a interdisciplinaridade da questão ambiental pela questão da defesa dos interesses transindividuais ou metaindividuais.

Infelizmente ao contrário do que preceitua o legislador ainda não há por parte das pessoas uma abordagem social do meio ambiente como patrimônio da coletividade. Ainda há um cunho individualista dos bens ambientais.

A evolução do Direito Ambiental, possibilita ao individuo a reavaliação do seu papel como defensor do meio ecologicamente equilibrado, dando ênfase a idéias como desenvolvimento sustentável, meios de transporte alternativos e consumo sustentável. Soma-se a isso o papel do Poder Público em fiscalizar obras, projetos, controlar as técnicas e substâncias utilizadas no meio, realização de estudos e incentivo a educação e consciência ecológica.

Os projetos hidrelétricos são um dos mais importantes paradigmas do Direito e da Economia Ambiental. Viabilizar projetos que simultaneamente produzam energia para a melhoria de qualidade de vida da população, ocasionem a ampliação da oferta de empregos e não prejudiquem a população local nem causem demasiados impactos ambientais, parecem questões difíceis de conciliar devido a divergência de idéias. Quando se fala nos recursos ambientais, pensa-se nos bens ilimitados, que muitas vezes não retornam a natureza como simples mercadorias. A responsabilização objetiva pelo dano ambiental vem como alternativa para suprir a perda causada pelos impactos e também como certo limite à ação desordenada do homem, porém nem sempre é uma alternativa satisfatória, visto que a pecúnia é bem diferente do recurso ambiental, que pode desaparecer para sempre.

Nesse sentido, sabendo do contrassenso que a construção de Usinas Hidrelétricas causa na vida das pessoas, torna-se necessária uma ação efetiva na tomada de decisões, um diálogo entre governo e comunidade local que busque a conciliar os diferentes interesses e aprimorar o beneficio da energia elétrica na

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vida de todos, pois a possibilidade de crescimento econômico do país também é um aspecto que deve ser levado em conta.

O que observa-se muito quando está em pauta uma questão polêmica e paradoxal é o posicionamento da sociedade em “ser contra” ou “a favor”, ou seja, um extremismo exagerado que não aponta para solução alguma, mas apenas criticas, chegando ao ponto de ameaças, utilização de violência, manifestações e ocupações, como por exemplo a ocupação de cerca de 120 indígenas das etnias Xipaia, Kuruaia, Parakanã, Arara, Juruna e Assurini, juntamente com os pescadores de Altamira (PA), os quais paralisaram a obra da Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no estado brasileiro do Pará, desde outubro de 2012, protestando a falta de ações efetivas para compensar os impactos ambientais que tem sido observados desde o início da obra. Para isso, entregaram uma pauta ao governo federal reivindicando:

1. Exigimos nossos direitos de pescar e andar livremente no nosso rio;2. Inclusão das ilhas e a margem do rio Xingu como áreas de subsistência e territórios dos Povos tradicionais;3. Revogação das portarias e decretos do IBAMA sobre a fauna e flora do Rio Xingu. O rio não é mais o mesmo depois das obras;4. Manutenção de um fundo emergencial para as famílias que dependem do Rio Xingu no valor de R$3.000 mil reais/ mês com reajuste. Desde o início das obras ao término;5. Remanejamento das famílias que moram nos bairros atingidos na cidade respeitando a lei habitacional;6. Trocar as embarcações por outras mais potentes que resista à transposição;7. Participação em 10% do lucro da energia produzida no Rio Xingu;8. Presença do Presidente do IBAMA na ensecadeira de Pimental para negociação.

Sem a possibilidade de diálogo, as obras da Usina são iniciadas sem acordo com a população local, já iniciando um processo violento, com detenção de engenheiros, como ocorreu com funcionários da Norte Energia, na aldeia de Muratu, no qual os indígenas só libertaram os funcionários por força de novas negociações para o cumprimento de condicionantes ligadas á Belo Monte.

Os aproveitamentos hídricos para geração de energia são importantes para o crescimento econômico do país e para a qualidade de vida das pessoas. A posição extremista de ser favorável ou contra sem propor solução alguma remete ao pensamento de que a construção da obra muitas vezes é feita causando prejuízo às comunidades indígenas, ao meio ambiente e desrespeitando a

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população local. É possível fazer isso de uma forma sustentável do ponto de vista social, cultural, ambiental.

O Direito Ambiental é uma matéria interdisciplinar, a sua evolução deve ser em prol de questões conflitantes como os empreendimentos hidrelétricos. Há uma bagagem necessária e suficiente para discutir questões ambientais, relacionadas à desapropriação, impactos ambientais, geração de energia, viabilidade econômica do empreendimento, fauna e flora locais, entre outras questões. Juntamente com o Direito Ambiental, a sociedade deve abordar o meio ambiente como patrimônio da coletividade, haja vista que realmente o é de acordo com a proteção constitucional estabelecida.

Torna-se essencial o conhecimento da lei ambiental, o zelo pelas atividades terceirizadas e a realização de um contrato bem estruturado que observe obrigações e responsabilidades de cada parte. Assim, não será necessário recorrer ao instituto da responsabilidade, sendo ele utilizado apenas como um “alerta” para a não degradação ambiental.

No caso da utilização do instituto da Responsabilidade Civil por dano ambiental, o poder Judiciário, como promotor da justiça responsável pela resolução dos problemas existentes na sociedade, também tem o papel primordial de observar caso a caso as suas especificidades, e não apenas de maneira generalizada. Não sendo possível a realização de um diálogo entre as partes que satisfaça suas pretensões, o Poder Judiciário deve vir como um instrumento que possibilite a máxima conciliação possível. O instituto da responsabilidade deve ser utilizado como uma alternativa viável para a resolução dos problemas e não apenas como uma justificativa de que há mais um instrumento para a reparação dos danos, sendo as decisões proferidas a partir de um “copia e cola” uma das outras. Com a adoção de medidas mais rígidas e mais participativas da sociedade, pode-se afirmar que os riscos envolvidos serão bem menores e será possível uma compatibilização de interesses para ambos os lados, mesmo sendo um processo lento, porém extremamente necessário para o desenvolvimento da sociedade.

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ANÁLISE DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO: UM PANORAMA À LUZ DA LEI Nº 8.884/94 E DA LEI Nº 12.529/11

MERGER’S ANALYSIS IN BRAZILIAN LAW: A PERSPECTIVE CONSIDERING LAW N. 8.884/94 AND LAW N. 12.529/11

paula FormighiEri narDi

Aluna do 9º período do Curso de Direito do Centro Universitário Curi-tiba – UNICURITIBA

EloEtE camilli oliVEira

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica do Paraná (1975), Mestrado em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Uni-versidade Católica do Paraná (2001) e Doutorado em Direito pela Uni-versidade Federal do Paraná (2008). Atualmente é professor adjunto nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE - UNICURITIBA, Supervisora do setor de re-gistro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e profes-sor titular - UNICURITIBA. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em DIREITO EMPRESARIAL, ECONÔMICO E SOCIAL.

RESUMO

Atualmente, um dos aspectos de mais destaque no direito da concorrência está nas implicações da alteração legislativa da lei antitruste. Ou seja, o âmbito de atuação está repleto de novidades e de mudanças, o que gera entusiasmo entre os estudiosos do tema. A grande maioria dos países do mundo se preocupa com a defesa e a manutenção da concorrência nos mercados, seja para o benefício da estrutura “concorrência”, seja para o bem estar dos consumidores. Nesse contexto também se encontra o nosso país, que possui o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), cujas diretrizes se encontravam na Lei nº 8.884/1994, recentemente substituída pela Lei nº 12.529/2011. O objetivo da mudança é tornar o SBDC mais eficiente e célere para a prática da concorrência no país. Assim, por meio deste trabalho, será realizada, uma análise comparativa das principais alterações legislativas, com ênfase na inserção da análise prévia dos atos de concentração pelo CADE.

Palavras-chave: direito da concorrência, alteração legislativa, análise prévia, atos de concentração, CADE.

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ABSTRACT

Nowadays one of the most important aspects in antitrust law is implication of the recent change of law. It means the current scheme is full of news and changes, which creates enthusiasm, especially considering people who study antitrust. The great majority of countries in the world worries about the defense and maintenance of competition in markets, in order to protect either the structure competition or the consumers. In this context is also our country with Brazilian System of Competition Defense, whose directions were in Law n. 8.884/1994, recently replaced by Law n. 12.529/2011. The change’s main goal is to bring SBDC more efficiency and speediness, increasing the quality of competition practical in Brazil. So, through this paper a comparison between the law mean changes will be done, with special focus on mergers’ previous analysis performed by CADE.

Keywords: antitrust, law modification, previous analysis, merger, CADE.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, um dos aspectos de mais destaque na matéria antitruste reside nas implicações da recente alteração legislativa aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República. Desse modo, o contexto é de novidade e de mudanças, o que gera entusiasmo entre os estudiosos do tema.

Os países mais desenvolvidos e cuja ordem econômica se encontra mais estruturada se preocupam com a defesa e a manutenção da concorrência nos mercados, seja para o benefício da estrutura “concorrência”, seja para o bem estar dos consumidores. Nesse contexto também se encontra o nosso país, que possui há quase duas décadas o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), cujas diretrizes se encontravam na Lei nº 8.884/1994.

A legislação antitruste brasileira sempre foi referência na América Latina, principalmente no que tange à sua maturidade. Entretanto, como sempre há o que melhorar e há muito havia o imperativo de modernização da legislação, foi aprovada uma nova legislação, com o escopo de tornar o SBDC mais eficiente e célere para a prática da concorrência no país.

Dessa forma, no final de 2011 foi aprovada a Lei nº 12.529/2011, que, em vigência desde 29 de maio de 2012, revoga principalmente disposições da Lei nº 8.884/1994, a antiga legislação brasileira de defesa da concorrência.

Assim, paira a dúvida sobre as implicações práticas da transição entre uma legislação e outra, bem como sobre os possíveis benefícios das alterações, seja para as empresas ou, principalmente, para os consumidores.

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Além de alterar todo o procedimento formal e também o trabalho e estudo dos conselheiros do CADE, outros agentes são atingidos pelas conseqüências dessa alteração. O setor econômico, o setor empresarial, os advogados envolvidos nas operações, enfim, todos sofrem conseqüências – sejam boas ou ruins.

Nesse sentido, acredita-se ser o estudo do tema aqui proposto de grande importância tanto no âmbito acadêmico quanto para a prática empresarial e concorrencial, devido principalmente às conseqüências práticas da alteração na legislação de defesa da concorrência no Brasil.

Com a realização desta pesquisa, pretende-se analisar, basicamente, a alteração à Lei nº 8.884/94 trazida pela aprovação da Lei nº 12.529/11, no ponto específico do procedimento de submissão dos atos de concentração ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

O presente trabalho, não obstante a ciência das limitações que uma pesquisa como esta impõe, pretende expor e contrapor as estruturas – antiga e nova – do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, sempre questionando mais do que respondendo, assim como almeja contribuir para uma compreensão mais clara sobre as alterações propostas, principalmente no que se refere à análise prévia dos atos de concentração.

Assim, o trabalho será dividido em três momentos distintos. No primeiro capítulo, far-se-á uma abordagem relacionada ao Direito da Concorrência e seus princípios e fundamentos. Dentro deste ponto, haverá subcapítulos que envolverão a defesa da concorrência e sua finalidade precípua, os fundamentos constitucionais e legais da defesa da concorrência no ordenamento jurídico brasileiro, e uma demonstração dos diferentes graus de concorrência no mercado.

Em seguida à abordagem das finalidades gerais do antitruste e sua inserção no ordenamento jurídico, no segundo capítulo, será demonstrado o funcionamento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Assim, primeiramente será utilizada a Lei nº 8.884/94, a antiga legislação antitruste, e, por conseguinte, falar-se-á da Lei nº 12.529/11, a nova legislação de defesa da concorrência. Por fim, far-se-á uma análise das principais alterações trazidas com a mudança legislativa.

Neste momento, já com a pesquisa em sua etapa mais madura, chega a hora de abordar realmente o tema central do trabalho, que é análise do procedimento dos atos de concentração pelo CADE. Desse modo, inicialmente, será abordado o procedimento à luz da legislação revogada (Lei nº 8.884/94) e, logo após, a forma do procedimento estruturado pela nova lei (Lei nº 12.529/11). Ao final, será realizada a análise comparativa da alteração legislativa e as consequências práticas de significativa mudança.

No decorrer do trabalho, vislumbrar-se-á que, com a lei recém revogada, o procedimento, apesar de considerado prévio na teoria, não o era efetivamente.

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Ou seja, os agentes econômicos primeiramente celebravam os contratos e realizavam as operações societárias e apenas posteriormente submetiam o ato de concentração ao crivo do CADE. Assim, o órgão de defesa da concorrência deveria analisar os níveis de concentração do mercado e as demais nuances da operação, sabendo que já havia ocorrido o negócio jurídico, para então decidir pela aprovação ou reprovação do ato de concentração.

A grande alteração inserida no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência pela nova legislação é a análise realmente prévia dos atos de concentração. O que significa dizer que o CADE terá que estudar a viabilidade da operação societária antes da realização do ato jurídico entre as empresas. A mudança é importantíssima e trará inúmeros benefícios, no entanto, o órgão antitruste terá muito mais responsabilidade, já que o fator “tempo” será protagonista nessa análise, sob pena de prejuízos irreversíveis aos agentes econômicos e aos consumidores envolvidos.

Assim, analisando primeiramente os fundamentos da defesa da concorrência e o porquê de sua existência nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, procurar-se-á demonstrar detalhadamente as alterações neste procedimento de análise dos atos de concentração, por meio de uma análise comparativa entre as duas legislações – a antiga e a nova.

2 REVISÃO LITERÁRIA

O novo diploma legal entrará em vigor no final do primeiro semestre do corrente ano e será responsável pela reestruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).

A compreensão sobre a necessidade de uma legislação antitruste depende do estudo dos motivos de sua origem, bem como de seu desenvolvimento até os dias de hoje. Inserido no sistema capitalista, o direito antitruste garante o pleno funcionamento do mercado, impedindo que surjam situações permanentes de poder, pois, uma vez eliminada a concorrência, o resultado inevitável é o domínio total do mercado, situação prejudicial aos consumidores e à sociedade.

O ordenamento jurídico brasileiro é referência no que tange à maturidade da legislação antitruste. Entretanto, sempre há o que melhorar, e há muito havia a necessidade de melhorar e, principalmente, contextualizar a legislação na lógica do mundo dos negócios, tornando-a mais eficiente e célere para a prática da concorrência no país, principalmente em relação à análise dos atos de concentração.

No entanto, alguns receios também permeiam essa nova fase do antitruste brasileiro. Ao deixar a presidência do CADE, em janeiro de 2012, o advogado Fernando Furlan, em entrevista à Folha de S. Paulo, externou sua preocupação com “o caos que pode se instalar devido à falta de pessoal para aplicar as regras

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do chamado Super CADE”. Além disso, o ex-conselheiro teme que o órgão seja obrigado a reprovar operações por falta de segurança e de tempo para análises mais profundas, em razão dos prazos exíguos impostos pela nova legislação. Assim, importante mencionar que, basicamente, a defesa da concorrência, no Brasil, é um meio de repressão a atitudes consideradas abusivas e de proteção especialmente ao interesse do consumidor.

O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) tem sua finalidade imediata na aplicação da legislação antitruste pátria, visando, mediatamente, à promoção e à manutenção de um mercado competitivo, por meio da prevenção e da repressão de condutas anticoncorrenciais.

Porém, a doutrina nacional não é unânime; pelo contrário, passeia entre as preocupações da legislação antitruste: desde encorajar a concorrência e tutelar o mercado contra efeitos autodestrutíveis até proteger institucionalmente o sistema competitivo como instrumento de defesa dos consumidores. E é a partir desses pensamentos que se estruturará esta pesquisa.

Calixto Salomão Filho, por exemplo, escolheu a regulamentação do poder econômico no mercado como objetivo central do direito da concorrência, que “funciona como um corpo de regras mínimas de organização da ordem privada”, oferecendo aos agentes possibilidades de escolha e opções de conduta (SALOMÃO FILHO, 2007, p. 60).

Por sua vez, Paula Forgioni destaca o caráter instrumental do antitruste e lhe empresta o desígnio de “técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência” (FORGIONI, 2010, p. 88).

Essa pluralidade de interesses é tutelada pelo ordenamento brasileiro, pois a própria Constituição Federal prevê em seu texto a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor como princípios básicos da ordem econômica. Esta diversidade de interesses continua sendo característica da nova legislação, que entrará em vigor em breve.

Durante os últimos anos foi grande o empenho na aprovação do projeto – que se tornou lei em novembro de 2011 -, para que trouxesse melhoras significativas à legislação concorrencial. Especialmente no que tange à análise dos atos de concentração, o argumento central utilizado sempre foi o da necessidade de se conferir maior celeridade e previsibilidade.

Assim, o objetivo da mais nova lei é melhorar a análise dos atos de concentração, deixando o processo mais célere e compatível com a lógica econômica e empresarial – que difere muito da lógica jurídica, principalmente no que tange ao tempo das transações.

Com ênfase, é nesse sentido que o presente trabalho pretende se desenvolver, buscando averiguar quais são as mudanças atinentes ao

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procedimento de análise dos atos de concentração, trazidas pela nova lei antitruste. Serão trabalhados artigos, bibliografia sobre o assunto e outros materiais que possam surgir ao longo da pesquisa.

2.1 A DEFESA DA CONCORRÊNCIA E SUA FINALIDADE PRECÍPUA

A política de defesa da concorrência está presente na grande maioria dos países, até porque é de conhecimento geral que “o sistema capitalista não consiste apenas em mercados livres” (FORGIONI, 2010, p. 172), sendo necessária a intervenção do Estado na economia. Além disso, as regras de direito antitruste “são essenciais para orientar o comportamento econômico dos agentes” (SALOMÃO FILHO, 2007, p. 22).

Nesse sentido, a compreensão sobre a necessidade de uma legislação antitruste depende do estudo dos motivos de sua origem, bem como de seu desenvolvimento até os dias de hoje.

No caso brasileiro, inclusive, os fundamentos para tal são tanto constitucionais quanto infraconstitucionais, como será detalhadamente exposto no decorrer do presente trabalho. No entanto, são diversos os pensamentos dos doutrinadores sobre a finalidade precípua da defesa da concorrência, isto é, a razão pela qual se defende a manutenção de um mercado competitivo, o motivo pelo qual se justifica a intervenção estatal no âmbito da economia.

Antes de tudo é importante ressaltar o quão importante é o contexto estudado, porque, assim como outras legislações, “a lei antitruste desempenhará, em determinado sistema jurídico e momento histórico, função diversa daquela assumida em outros sistemas, em outros momentos” (FORGIONI, 2010, pp. 154-155). Assim, deve-se prestar atenção nas discussões demasiadamente genéricas, que não aduzem ao local e ao contexto dos acontecimentos, sob pena de se tornarem, de certa forma, discussões inúteis.

Na doutrina norte-americana, precursora da política antitruste, são três correntes, basicamente, que pregam os fundamentos e as finalidades da defesa da concorrência: Escola de Chicago, Escola de Harvard e Escola Pós-Chicago.

A Escola de Chicago40 possui uma visão não intervencionista da política de defesa da concorrência, confiando basicamente no fato de que a entrada de novos concorrentes no mercado resolveria os problemas das condutas anticompetitivas (HOVENKAMP, 2005, p. 32). A ênfase na eficiência

40 “Surgiu nos anos 50”, sendo que “seu trabalho se resumiu à aplicação, ainda bastante simplificada, da price theory, ao direito antitruste, em uma época em que os estudos econômicos sobre a matéria eram assimétricos e descritivos. Nos anos 60 e 70 esse trabalho foi desenvolvido, sobretudo, por R. Bork e R. Posner, com aplicação da teoria marginalista ao estudo do direito antitruste” (SALOMÃO FILHO, 2003, p. 21).

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produtiva (“produção a baixo custo”) é uma das características mais marcantes desta corrente e não só prevalece como elimina qualquer outro propósito do direito concorrencial, inclusive a própria existência da concorrência. Esse valor é associado ao bem-estar do consumidor, de modo que passa a ser o único princípio norteador do sistema antitruste (SALOMÃO FILHO, 2007, p. 23).

Por outro lado, os economistas da Escola de Harvard - grande opositora dos pensamentos da Escola de Chicago na década de 70 (SALOMÃO FILHO, 2003, pp. 21-22) - eram mais estruturalistas, ou seja, os mercados eram vistos como não competitivos, não importando se desviavam dos padrões para as condições de competição (HOVENKAMP, 2005, p. 35). A preocupação dessa escola não estava voltada à eficiência, mas, sim, à existência efetiva da concorrência.

Já a terceira das correntes, a Escola Pós-Chicago, acredita que os mercados são mais complexos do que aqueles entendidos pela Escola de Chicago, além de utilizar em suas análises os modelos da teoria dos jogos, da teoria dos mercados contestáveis e da teoria dos custos de transação, com suas diferentes conseqüências econômicas (HOVENKAMP, 2005, p. 38). Como as novas teorias econômicas são baseadas em métodos econométricos e analíticos, a conseqüência, no plano jurídico, é o deslocamento do controle das estruturas para o controle das condutas, a mudança no foco das atenções (SALOMÃO FILHO, 2003, p. 23).

No entanto, Herbert Hovenkamp afirma que há tempos poucos discutem ou questionam o fato de o propósito do antitruste ser a proteção dos direitos dos consumidores aos benefícios proporcionados pela competição. A divergência acontece, segundo o autor, apenas em relação ao meio pelo qual esses objetivos são atingidos (HOVENKAMP, 2005, p. 31).

Em sentido contrário situa-se a visão européia sobre o tema, cuja política antitruste não objetiva somente a proteção dos interesses dos consumidores ou concorrentes, mas também a tutela da estrutura do mercado, da concorrência.

Já na doutrina brasileira, não existe pacificação a respeito: ainda são diversas e constantes as discussões sobre qual o escopo primordial da defesa da concorrência. Os autores passeiam entre as preocupações da legislação antitruste, desde encorajar a concorrência e tutelar o mercado contra efeitos auto-destrutíveis até proteger institucionalmente o sistema competitivo como instrumento de defesa dos consumidores.

Calixto Salomão Filho escolheu a regulamentação do poder econômico no mercado como objetivo central do direito da concorrência (SALOMÃO FILHO, 2007, p. 60). Por sua vez, Paula Forgioni, para quem “a Constituição do Brasil, em seu todo, persegue objetivos mais amplos e maiores do que, singelamente, o do livre mercado” (FORGIONI, 2010, p. 179), destaca o caráter instrumental do antitruste e o define como “técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência” (FORGIONI, 2010, p. 88).

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Já para Isabel Vaz, o direito da concorrência indica o conjunto de regras e instituições destinadas a investigar e a reprimir as várias formas de abuso de poder econômico e a fomentar a defesa da livre concorrência (VAZ, 1993, p. 243).

Em suma, percebe-se que o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) tem sua finalidade imediata na aplicação da legislação antitruste pátria, visando, mediatamente, à promoção e à manutenção de um mercado competitivo, por meio da prevenção e da repressão de condutas anticoncorrenciais. E, apesar de a doutrina nacional não ser unânime, muito pelo contrário, seu cerne permanece firme e engajado em alguns princípios basilares.

Enfim, sendo a concorrência um instrumento, sendo um fim para se alcançar, o que importa é o extremo benefício gerado aos consumidores com a defesa desse instituto.

E, não obstante a dificuldade natural da existência de um sistema perfeito como o descrito, as autoridades de defesa da concorrência buscam incessantemente a manutenção da competição, impedindo – ou tentando impedir - práticas lesivas à concorrência.

2.2 FUNDAMENTOS DA PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA

2.2.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição da República representa a conquista democrática do povo brasileiro. É a síntese das circunstâncias da nação, é a mistura de diversos interesses, de diferentes classes e grupos. Desse modo, também é conhecida como Constituição Cidadã, em que “todos os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menor relevância” (BARROSO, 2009, p. 360), desde os princípios gerais até as regras mais simples.

Nesse sentido, dentre os princípios norteadores do sistema constitucional, tem-se a livre iniciativa, considerada um dos fundamentos da República, conforme dispõe o art. 1º da Constituição de 1988. Ainda, de uma forma mais específica, a ordem econômica nacional, além da livre iniciativa, deve ser pautada pelo princípio da livre concorrência, de acordo com a redação do art. 170 da Constituição.

Esses dois princípios constitucionais fornecem a base para a defesa da concorrência no Brasil, pois é em defesa da livre iniciativa e da livre concorrência – e por meio delas –, que se mantém a competição no mercado. Por meio deste embasamento constitucional, o legislador foi capaz de editar as leis41 antitruste,

41 Na verdade, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência é disciplinado por apenas uma lei, porém, os diplomas legais estão em transição (razão pela qual, inclusive, o presente trabalho guarda sentido).

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que disciplinam de maneira mais objetiva e detalhada a atuação das autoridades dos órgãos de defesa da concorrência e dos próprios concorrentes.

Ademais, é importante mencionar o art. 173, parágrafo 4º, da Constituição, que diz que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Esse dispositivo fortalece os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, tornando mais firme o embasamento da proteção da competição no mercado. O texto constitucional, além de ditar regras gerais, fez questão de exemplificar, ainda que não exaustivamente, uma forma de exercício de conduta anticompetitiva, como é o abuso do poder econômico.

Por fim, analisando todos os princípios fundamentais da defesa da concorrência, percebe-se que o fim último dessa política de repressão às condutas anticompetitivas está no próprio texto da Constituição. E nesse sentido afirma Paula Forgioni que “a Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto ao fato de a concorrência ser, entre nós, meio, instrumento para o alcance de outro bem maior: assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social” (FORGIONI, 2010, pp. 178-179).

2.2.2 O DIPLOMA LEGAL REVOGADO: A LEI N. 8.884/1994

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica, na verdade, foi criado pelo Decreto-Lei nº 7.666/45 (art. 19). Naquela época já era órgão autônomo, com personalidade jurídica própria e subordinação direta ao Presidente da República. Porém, o referido decreto teve duração curta. Contudo, o CADE foi reativado pela Lei nº 4.137/62 (art. 8º), já com jurisdição em todo o território nacional e vinculação direta à Presidência do Conselho de Ministros.

Com a Lei nº 8.884, de 11 de julho de 1994, houve a sistematização da matéria, com grande aperfeiçoamento legislativo. A partir deste momento, o CADE se tornou autarquia federal, de modo que passou a ter mais autonomia e dotação orçamentária própria, com vinculação ao Ministério da Justiça.

O diploma de 1994 implantou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), que contém a SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico), a SDE (Secretaria de Defesa Econômica), e o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Assim, com um sistema de análise, investigação e julgamento efetivamente estruturado, iniciou-se o progresso da atuação antitruste brasileira, inclusive, para Paula Forgioni, “a atividade do CADE, desde meados dos anos 90, vem se consolidando de forma a não mais se vislumbrarem ‘surtos’ de aplicação da Lei Antitruste, mas uma linha contínua de atuação, embora com altos e baixos” (FORGIONI, 2010, p. 123).

Assim, importante mencionar que, basicamente, a defesa da concorrência, no Brasil, é um meio de repressão a atitudes consideradas abusivas e de proteção especialmente ao interesse do consumidor.

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Porém, reconhece-se que, embora o progresso tenha sido grande, de modo que o CADE atingiu visibilidade e confiança perante a sociedade, ainda havia muito a fazer. Nesse contexto de mudanças e aperfeiçoamentos é que surgiu a nova legislação de defesa da concorrência: a Lei nº 12.529/11, aprovada no final do ano de 2011.

2.2.3 A LEGISLAÇÃO ATUALMENTE VIGENTE: A LEI N. 12.529/2011

O ordenamento jurídico brasileiro é referência no que tange à maturidade da legislação antitruste. Entretanto, sempre há o que melhorar, e há muito havia essa necessidade e exigência de melhoria e, principalmente, de contextualização da legislação na lógica do mundo dos negócios, tornando-a mais eficiente e célere para a prática da concorrência no país, principalmente em relação à análise dos atos de concentração.

Assim, em 30 de novembro de 2011 foi sancionada pela Presidência da República a Lei nº 12.529/2011, que, em vigência, revogou principalmente disposições da Lei nº 8.884/1994, a antiga legislação brasileira de defesa da concorrência.

A nova lei entrou em vigor em maio do corrente ano e será responsável pela reestruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), que contou, dentre outras alterações, com a criação do “Super CADE” e com a análise prévia dos atos de concentração. Durante o primeiro semestre de 2011, o CADE passou por adaptações, vez que as análises ainda foram feitas com base na Lei nº 8.884/96, até o início da vigência da Lei nº 12.529/11.

Em sua longa trajetória, o projeto de lei frequentemente foi tema de debates nas mais diversas instâncias, inclusive o próprio CADE já vinha se preparando para as mudanças antes mesmo da aprovação legislativa. E principalmente durante os últimos anos, foi grande o empenho das autoridades para que trouxesse melhoras significativas à legislação concorrencial, especialmente no que tange à análise dos atos de concentração, que passa a ser efetivamente prévia.

Assim, o objetivo da nova lei é melhorar a análise dos atos de concentração, deixando o processo mais célere e compatível com a lógica econômica e empresarial – que difere muito da lógica jurídica.

No entanto, em sua essência, a nova lei antitruste, apesar de apresentar novos critérios de submissão dos atos de concentração ao CADE, mantém os princípios e os objetivos do atual Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, ou seja, continua pautada, ainda que mediatamente, no bem estar dos consumidores.

2.3 O PROCEDIMENTO DE NOTIFICAÇÃO DOS ATOS NA NOVA LEGISLAÇÃO

Como foi demonstrado, o CADE, reestruturado pela nova lei, passou a ser órgão tripartido composto pela Superintendência-Geral, Departamento de Estudos Econômicos e Tribunal Administrativo.

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Em linhas gerais, o funcionamento do CADE é o seguinte: os casos têm início na Superintendência-Geral, mais propriamente na superintendência de controle de condutas (para casos de processos administrativos) ou na superintendência de controle de estruturas (para casos de atos de concentração). Nesses locais é realizada uma análise técnica da situação, de modo que apenas os casos mais complexos seguirão para o Tribunal Administrativo para julgamento.

Em paralelo, o Departamento de Estudos Econômicos designa um ou mais técnicos, dependendo da situação concreta, para atuar juntamente com cada equipe da Superintendência-Geral. Assim, o Superintendente-Geral deve discutir com o Economista-Chefe os casos mais complexos, antes da apresentação ao Conselho julgador. Por fim, os processos são analisados e julgados pelo Tribunal Administrativo, a quem cabe a decisão final de aprovação ou reprovação da conduta ou concentração em questão (TAUFIK, 2012, p. 75).

A situação de concentração, como já demonstrado, significa perda de autonomia dos partícipes da relação empresarial, surgimento de novas sociedades ou grupos, compartilhamento de poder de controle.

Um ato de concentração, afinal, é uma associação empresarial que provoca a substituição de órgãos decisórios independentes por um sistema unificado de controle. E nesses casos “o Direito Concorrencial entra para corrigir o desequilíbrio de forças econômicas – ou mesmo evitar que tal desequilíbrio ocorra –, visando garantir, com a limitação do poder de mercado, a própria concorrência” (PLAWIAK, 2010, p. 64).

Após analisar alguns conceitos e demonstrar qual é a situação empresarial estudada e submetida ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, convém estudar propriamente o dispositivo da nova legislação que dispõe sobre a submissão dos atos de concentração ao CADE. Para Roberto Taufik, “o art. 88 traz um dos pilares do novo antitruste brasileiro” (TAUFIK, 2012, p. 415).

De acordo com o art. 88, serão submetidos ao CADE os atos de concentração econômica em que, cumulativamente, sejam cumpridos alguns requisitos. Os critérios passaram a ser mais objetivos, sendo eles os seguintes: (i) pelo menos um dos grupos envolvidos na operação deve ter registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no país, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a quatrocentos milhões de reais, e (ii) pelo menos um outro grupo envolvido na operação deve ter registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no país, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a trinta milhões de reais.42

42 Salienta-se que o parágrafo primeiro do art. 88 viabiliza a alteração desse patamar para cima ou para baixo, caso a experiência exija: “os valores mencionados nos incisos I e II do caput deste artigo poderão ser adequados, simultânea ou independentemente, por indicação do Plenário do CADE, por portaria interministerial dos Ministros de Estado da Fazenda e da Justiça”. Em relação a isso,

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É evidente que “o filtro trazido pela nova lei aprimora aquele da Lei 8.884/94” (TAUFIK, 2012, p. 419). Isso porque surge a necessidade de pelo menos duas das partes da operação preencherem o requisito do faturamento mínimo, o que torna a análise mais seletiva e o que, talvez, contribua para uma diminuição nas submissões irrelevantes para a concorrência em grande escala.

Percebe-se que o critério do market share desaparece, de modo que a porcentagem do mercado relevante detido pelas partes não mais influencia a aprovação ou reprovação da operação. É por isso que se afirma que os requisitos passaram a ser mais objetivos, porque para definir parcelas do mercado relevante era necessária uma análise muito subjetiva e fácil de contestar.

Ainda, o controle dos atos de concentração, de acordo com o parágrafo segundo do art. 88, será prévio e realizado em, no máximo, duzentos e quarenta dias, a contar do ato de submissão da operação ao CADE. Para Roberto Taufik, “a estipulação de prazos preclusivos e da previsão de não interrupção ou suspensão (...) foi o principal mecanismo criado pelo legislador para evitar que a análise prévia incrementasse o risco Brasil” (TAUFIK, 2012, p. 428).

Esse posicionamento se coaduna com as preocupações correntes da doutrina e do próprio CADE em relação ao cumprimento desses prazos exíguos impostos pela legislação. Por um lado, a legislação inovou e estipulou prazos para que a análise pelo CADE fosse compatível com a lógica empresarial e econômica do mercado. Mas, por outro lado, se os prazos não forem cumpridos, podem ser gerados enormes prejuízos aos agentes econômicos e a todo o mercado, aos investimentos, enfim, a toda a cadeia econômica envolvida.

Além disso, como a análise passa a ser efetivamente prévia, diz o parágrafo terceiro que os atos não podem ser consumados antes de apreciados, sob pena de nulidade e multa pecuniária. Isso significa que até a decisão final sobre a operação, deverão ser preservadas as condições de competição entre as partes envolvidas. Para Roberto Taufik, “não se trata de nulidade, mas de anulabilidade. Caberá ao CADE definir se, uma vez consumada a operação, é socialmente desejável a separação dos ativos” (TAUFIK, 2012, pp. 439-440). Em verdade, é o que o CADE já fazia pelo sistema de análise a posteriori.

De acordo com o parágrafo quarto do art. 88, “até a decisão final sobre a operação, deverão ser preservadas as condições de concorrência entre as empresas envolvidas”. O objetivo da lei é garantir que os efeitos concorrenciais sejam breves e não impeçam a reversibilidade da operação. E a nova legislação

pondera Roberto Taufik que “andou bem o legislador ao prever a possibilidade de atualização do critério de submissão. Mas foi bastante razoável ao deixar a atualização do valor na competência exclusiva do Poder Executivo. Essa prerrogativa é essencial para que, com a experiência, verifique-se a razoabilidade dos critérios de notificação, alterando-os na medida do necessário” (TAUFIK, 2012, p. 427).

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fornece elementos para tal, vez que as partes são obrigadas a manter física e comercialmente separadas as sociedades envolvidas na operação até que seja autorizada pelo CADE. Na verdade, existem garantias de que essa avaliação será mesmo breve.

Ademais, não serão aprovados pelo órgão defesa da concorrência, de acordo com o parágrafo quinto do art. 88, os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços.

No entanto, alguns atos poderão ser autorizados, desde que sejam observados limites para o alcance de alguns objetivos (cumulada ou alternativamente): aumentar a produtividade ou a competitividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços, propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico, e desde que seja repassada grande parte dos benefícios aos consumidores. Ou seja, existe um nível de tolerância pela CADE em prol de alguns objetivos maiores.

É imperioso mencionar que o prazo de duzentos e quarenta dias somente poderá ser dilatado (i) por até sessenta dias, improrrogáveis, mediante requisição das partes envolvidas na operação, ou (ii) por até noventa dias, mediante decisão fundamentada do Tribunal, em que sejam especificados as razões para a extensão, o prazo da prorrogação, que será não renovável, e as providências cuja realização seja necessária para o julgamento do processo.

Essa redação do parágrafo nono do art. 88 “não admite o parcelamento do prazo de 60 dias entre as diferentes fases processuais e a sua contínua prorrogação até o limite dos 60 dias” (TAUFIK, 2012, p. 457). Na verdade, para Roberto Taufik, o melhor mesmo seria a absoluta impossibilidade de prorrogação.

Em relação ao inciso segundo, a redação deixa claro que o prazo complementar de 90 dias assinalado na decisão de prorrogar não pode ser renovado. A conseqüência disso é que sempre se deve optar por estipular o prazo máximo da lei. Assim, “estaria muito mais de acordo com o espírito da lei fixar um teto, admitindo-se a contínua renovação do prazo dentro desse limite – o que levaria a que, em geral, o limite de 90 dias não fosse alcançado” (TAUFIK, 2012, pp. 458-459).

À guisa de conclusão desta breve análise das concentrações empresariais, é imperioso mencionar quais são as hipóteses em que se realiza um ato de concentração. A legislação se mostra objetiva na redação do art. 90, por meio do qual “o ato de concentração ganhou definição precisa e bastante limitada” (TAUFIK, 2012, p. 460).

Pois bem, realiza-se um ato de concentração quando (i) duas ou mais empresas anteriormente independentes se fundem, quando (ii) uma ou mais

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empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas, quando (iii) uma ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas, ou quando (iv) duas ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture.

Por fim, a redação do art. 91, caput e parágrafo único dispõe sobre a enganosidade em atos de concentração e, mais, dizendo que deve ser punida com maior rigor. Isso se deve ao fato de desvirtuar “o objetivo central da nova lei, que é, justamente, a análise prévia” (TAUFIK, 2012, p. 479).

2.3.1 O PROCESSO ADMINISTRATIVO NA SUPERINTENDÊNCIA-GERAL DO CADE

O processo administrativo de análise do ato de concentração tem início na Superintendência-Geral do CADE, de acordo com o art. 53 da nova legislação, que dispõe que “o pedido de aprovação dos atos de concentração econômica (...) deverá ser endereçado ao CADE e instruído com as informações e documentos indispensáveis à instauração do processo administrativo”, (...) além do “comprovante de recolhimento da taxa respectiva”.

Destaca-se nesse ponto a discricionariedade deixada ao Tribunal, tanto em relação aos prazos de análise quando aos documentos necessários para a submissão dos atos de concentração, que, assim como na antiga lei, dependerão do regulamento interno do órgão de defesa da concorrência. Principalmente no que tange aos prazos, embora exista o limite do art. 88, para Roberto Taufik, “é interessante que haja a regulamentação do prazo a ser adotado em cada fase da instrução e no processo decisório”, isso porque “a ausência de prazos prefixados gera o empecilho de não haver a devida distribuição de prazos entre a Superintendência-Geral e o Tribunal, ou internamente a cada um desses órgãos do CADE” (TAUFIK, 2012, p. 312).

Ainda, conforme o parágrafo primeiro do art. 53, se a Superintendência-Geral verificar que a petição não preenche os requisitos exigidos ou apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, pode determinar, uma única vez, que os requerentes emendem a peça, sob pena de arquivamento. Essa limitação a uma única emenda incentiva os agentes econômicos a fornecerem informações completas e claras. Além disso, a apresentação de informações estranhas e incompatíveis com a lógica do mercado se torna menos freqüente (TAUFIK, 2012, p. 313).

Após o protocolo da apresentação do ato de concentração, conforme a disposição do parágrafo segundo do art. 53, a Superintendência-Geral fará

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publicar edital, indicando o nome dos requerentes, a natureza da operação e os setores econômicos envolvidos. Insta salientar que o prazo só se inicia com a efetiva apresentação do ato de concentração, como dispõe o caput do dispositivo legal; a inépcia da petição inicial impede o decurso do prazo preclusivo de análise pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Em seguida, consoante disposição do art. 54, depois de cumpridas todas as providências legais, a Superintendência-Geral (i) conhecerá diretamente do pedido, proferindo decisão terminativa, quando o processo dispensar novas diligências ou nos casos de menor potencial ofensivo à concorrência, ou então (ii) determinará a realização da instrução complementar, especificando as diligências a serem produzidas.

Se for o caso de instrução complementar, assim que concluída, a Superintendência-Geral deverá manifestar-se sobre seu satisfatório cumprimento, recebendo-a como adequada ao exame de mérito ou determinando que seja refeita, por estar incompleta.

Além disso, conforme o art. 56, a Superintendência-Geral poderá declarar a operação como complexa e determinar a realização de nova instrução complementar, especificando as diligências a serem produzidas. E, o parágrafo único deste artigo diz que no caso de a operação ser considerada complexa, poderá a Superintendência-Geral requerer ao Tribunal a prorrogação do prazo de análise.

Em seguida, o art. 57 dispõe que, concluídas as instruções complementares, a Superintendência-Geral (i) proferirá decisão aprovando o ato sem restrições ou (ii) oferecerá impugnação perante o Tribunal, caso entenda que o ato deva ser rejeitado, aprovado com restrições ou que não existam elementos conclusivos quanto aos seus efeitos no mercado. Ressalta-se que o parágrafo único dispõe que na impugnação do ato perante o Tribunal deverão ser demonstrados o potencial lesivo do ato à concorrência e as razões pelas quais não deve ser aprovado integralmente ou rejeitado

Finalizado o trâmite do processo administrativo referente ao ato de concentração na Superintendência-Geral, passará à análise pelo Tribunal Administrativo, que é o responsável pelo julgamento das operações societárias.

2.3.2 O PROCESSO ADMINISTRATIVO NO TRIBUNAL

Após o trâmite procedimental perante a Superintendência Geral, conforme o art. 58, o requerente poderá oferecer, em trinta dias da data de impugnação, em petição escrita, manifestação expondo as razões de fato e de direito por meio das quais se opõe à impugnação do ato de concentração da Superintendência-Geral e juntando todas as provas, estudos e pareceres que corroboram seu pedido.

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O parágrafo único do mesmo artigo diz que no prazo de quarenta e oito horas da decisão de que trata a impugnação pela Superintendência-Geral, o processo será distribuído, por sorteio, a um conselheiro, que será o relator do caso. Contrariamente ao que ocorre nos Estados Unidos, optou-se no Brasil por conceder automaticamente ao Conselho a prerrogativa de analisar o caso com a operação não consumada. Mas, na prática, a diferença não é essencial, considerando que “os tribunais costumam acreditar que as dúvidas suscitadas pelos órgãos concorrenciais norte-americanos são suficientes (...) para levantar o temor de dano social – que sobressai aos interesses particulares” (TAUFIK, 2012, p. 324).

Continuando, conforme o art. 59, após a manifestação do requerente, o conselheiro relator (i) proferirá decisão determinando a inclusão do processo em pauta para julgamento, caso entenda que se encontre suficientemente instruído, ou (ii) determinará a realização de instrução complementar, se necessário, podendo, a seu critério, solicitar que a Superintendência-Geral a realize, declarando os pontos controversos e especificando as diligências a serem produzidas.

Em relação a essa disposição, Roberto Taufik afirma que “pela praxe, a instrução complementar no gabinete do conselheiro-relator só não é a melhor solução se não servir de complemento, mas como verdadeira reinstrução”, caso em que “o aparato investigador da SDE, herdado pela Superintendência-Geral, tende a ser mais eficiente” (TAUFIK, 2012, p. 328).

De acordo com o parágrafo primeiro do art. 59, o conselheiro-relator poderá autorizar a realização do ato de concentração econômica, impondo as condições que visem à preservação da reversibilidade da operação, quando assim recomendarem as condições do caso concreto. Na verdade, tamanha abrangência não guarda mais sentido ante a implantação da análise prévia, a não ser em situações muito específicas, em que não haja alternativa à consumação imediata da operação. Porém, o uso desse artigo pode ser demasiadamente relevante durante o período de transição entre as duas legislações, “ao admitir que o Tribunal opte por aprovar precariamente os casos mais simples e faça uso da prerrogativa de análise prévia nos casos mais complexos” (TAUFIK, 2012, p. 328).43

Ainda, o parágrafo segundo do mesmo dispositivo diz que o conselheiro relator poderá acompanhar a realização das diligências. Nesse caso, trata-se não de uma prerrogativa do conselheiro, mas, sim, de um poder-dever.

43 Além disso, continua o autor, dizendo que “no Brasil, em casos de cláusulas de não concorrência ou acordos de exclusividade, por exemplo, o CADE poderá, no interesse das partes, aprovar a operação, com exclusão dos pontos de divergência, os quais deverão ser tomados pelos requerentes, até a conclusão da análise, como se tivessem sido reprovados” (TAUFIK, 2012, p. 329).

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Após a instrução processual, ou seja, quando o processo estiver pronto para ser julgado pelo Conselho, o conselheiro-relator determinará a inclusão do processo em pauta para julgamento, conforme redação do art. 60.

Segundo o art. 61, no julgamento do pedido de aprovação do ato de concentração econômica, o Tribunal poderá aprová-lo integralmente, rejeitá-lo ou aprová-lo parcialmente, caso em que determinará as restrições que deverão ser observadas como condição para a validade e eficácia do ato. Em relação ao poder discricionário do Conselho, as faculdades de aprovação, com ou sem ressaltas, ou reprovação permanecem as mesmas da lei anterior.

Ademais, o parágrafo primeiro dispõe que “o Tribunal determinará as restrições cabíveis no sentido de mitigar os eventuais efeitos nocivos do ato de concentração sobre os mercados relevantes afetados”. Em seguida, o parágrafo segundo elenca as restrições possíveis, quais sejam, (i) a venda de ativos ou de um conjunto de ativos que constitua uma atividade empresarial; (ii) a cisão de sociedade; (iii) a alienação de controle societário; (iv) a separação contábil ou jurídica de atividades; (v) o licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual; e (vi) qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

Salienta-se que, em razão do último inciso, a listagem do dispositivo é exemplificativa, ou seja, os acréscimos da lei não se tratam de ganhos à discricionariedade do CADE.

Ainda, é muito importante mencionar que, de acordo com o parágrafo terceiro do art. 61, julgado o processo administrativo no mérito pelo Tribunal, o ato não poderá ser novamente apresentado nem revisto no âmbito do Poder Executivo. Poderá, no entanto, ser apreciado, ao menos formalmente, pelo Poder Judiciário.

Esse dispositivo não representa diminuição do poder de revisão do CADE, mas sim de revisão da decisão do órgão de defesa da concorrência por outro órgão do Executivo. A redação é reforçada pela previsão de revisão pelo CADE constante do art. 91 da nova legislação. Para Roberto Taufik, “esse artigo vai de encontro ao poder de avocar do chefe do Poder Executivo – sendo o recurso hierárquico o seu mais tradicional instrumento –, contrariando a regra a fortiori”.44

Por conseguinte, o art. 62 dispõe que em caso de recusa, omissão, enganosidade, falsidade ou retardamento injustificado, por parte dos requerentes, de informações ou documentos cuja apresentação for determinada pelo CADE,

44 A regra a fortiori significa que o CADE “tomaria a decisão técnica, a qual deveria, ainda, passar pelo crivo político. Caberia ao chefe do Poder Executivo definir, como já o faz nos setores regulados, se a política concorrencial está acima de outros valores, como a política industrial ou questões de defesa nacional” (TAUFIK, 2012, pp. 334-335).

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sem prejuízo das demais sanções cabíveis, poderá o pedido de aprovação do ato de concentração ser rejeitado por falta de provas, caso em que o requerente somente poderá realizar o ato mediante apresentação de novo pedido.

Por fim, conforme o art. 63, os prazos previstos neste capítulo da legislação [do processo administrativo no controle de atos de concentração econômica] não se suspendem ou interrompem por qualquer motivo, ressalvado o disposto no parágrafo quinto do art. 6º da legislação antitruste, quando for o caso.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente trabalho possuirá como fundamento a pesquisa em artigos científicos e obras referentes ao tema, utilizando também dispositivos legais, na maioria os dispositivos da Lei 8.884/94 e da Lei 12.259/11, além dos guias disponibilizados pelo próprio CADE no que tange às análises de atos de concentração.

Assim, primeiramente se pretende elaborar melhor o sumário da pesquisa, com base numa seleção de bibliografia aprofundada, pois se entende que esta é a base para qualquer trabalho bem sucedido.

Após, far-se-á a leitura da bibliografia relacionada ao Direito da Concorrência e seus princípios e fundamentos, para que o primeiro capítulo possa ser redigido. Dentro deste ponto, haverá subcapítulos que envolverão a defesa da concorrência e sua finalidade precípua, os fundamentos constitucionais e legais da defesa da concorrência no ordenamento jurídico brasileiro, e uma demonstração dos diferentes graus de concorrência no mercado.

Em seguida à abordagem das finalidades gerais do antitruste e sua inserção no ordenamento jurídico, é necessário demonstrar o funcionamento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Assim, primeiramente será utilizada a Lei nº 8.884/94, que é a lei antitruste vigente, em seguida falar-se-á da Lei nº 12.529/11, a nova legislação de defesa da concorrência, e, por fim, far-se-á uma análise das principais alterações trazidas com a mudança legislativa.

Neste momento, já com a pesquisa já em sua etapa mais madura, chega a hora de estudar realmente o tema central do trabalho, que é análise do procedimento dos atos de concentração pelo CADE. Inicialmente, será abordado o procedimento à luz da legislação vigente (Lei nº 8.884/94) e, logo após, a forma do procedimento estruturado pela nova lei (Lei nº 12.529/11). Ao final, será realizada a análise comparativa da alteração legislativa e as consequências práticas de significativa mudança.

Depois da realização do cerne da pesquisa, o trabalho encontrar-se-á estruturado, de modo que será possível redigir claramente a introdução (explanando as etapas da monografia) e as considerações finais (demonstrando os resultados do estudo).

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Com tudo pronto, é imprescindível ainda uma revisão precisa na formatação e também em todo conteúdo da monografia. Além disso, haverá tempo reservado para o estudo do trabalho e de sua apresentação para a banca de professores avaliadores e, posteriormente, a entrega da monografia.

Assim, por meio deste trabalho, objetiva-se, de modo geral, analisar as mudanças estruturais e funcionais do órgão administrativo brasileiro de defesa da concorrência. Isso porque, recentemente, houve uma importante alteração legislativa, o que alterará o fundamento legal para a aprovação das operações societárias, assim como as investigações de infrações à ordem econômica.

Basicamente, pretende-se analisar a alteração à Lei nº 8.884/94 trazida pela aprovação da Lei nº 12.529/11, no ponto específico do procedimento de submissão dos atos de concentração ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

No decorrer do trabalho, vislumbrar-se-á que, com a lei vigente, o procedimento, apesar de considerado prévio na teoria, não o era efetivamente. Ou seja, os agentes econômicos primeiramente celebravam os contratos e realizavam as operações societárias e apenas posteriormente (no prazo de quinze dias) submetiam o ato de concentração ao crivo do CADE. Assim, o órgão de defesa da concorrência deveria analisar os níveis de concentração do mercado e as demais nuances da operação, sabendo que já havia ocorrido o negócio jurídico, para então decidir pela aprovação ou reprovação do ato de concentração.

A grande alteração inserida no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência pela nova legislação é a análise realmente prévia dos atos de concentração. O que significa que o CADE terá que estudar a viabilidade da operação societária antes da realização do ato jurídico entre as empresas. A mudança é importantíssima e trará números benefícios, no entanto, o órgão antitruste terá muito mais responsabilidade, já que o fator tempo será protagonista nessa análise, sob pena de prejuízos irreversíveis aos agentes econômicos e aos consumidores envolvidos.

Assim, analisando primeiramente os fundamentos da defesa da concorrência e o porquê de sua existência nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, procurar-se-á demonstrar detalhadamente as alterações neste procedimento de análise dos atos de concentração, por meio de uma análise comparativa entre as duas legislações.

Após, espera-se concluir pela melhora no procedimento de análise, pois, apesar de apresentar novos critérios de submissão ao CADE, a legislação mantém os princípios e os objetivos do atual Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, ou seja, continua pautada, ainda que mediatamente, no bem estar dos consumidores.

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Naturalmente, não se pretende esgotar o tema, ou mesmo responder a todos os questionamentos e solucionar todos os problemas da mudança legislativa. Pelo contrário, a idéia central é abordar as principais alterações, focando principalmente no procedimento de submissão das operações societárias dependentes de autorização do CADE, alteração significativa não só para a teoria antitruste, mas também para a prática societária e econômica dos agentes envolvidos nesses mercados.

4 CONCLUSÃO

Com a realização desta pesquisa, pretendeu-se analisar, basicamente, a alteração à Lei nº 8.884/94 trazida pela aprovação da Lei nº 12.529/11, especificamente no que tange ao procedimento de submissão dos atos de concentração ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

Assim, este trabalho, apesar de suas limitações, pretendeu expor e contrapor as estruturas – antiga e nova – do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, assim como almejou contribuir para uma compreensão mais clara sobre as alterações propostas, principalmente no que se refere à análise prévia dos atos de concentração.

Deste modo, o presente ensaio dividiu-se em três momentos distintos. No primeiro capítulo, fez-se uma abordagem relacionada ao Direito da Concorrência e seus princípios e fundamentos. Dentro deste ponto, os subcapítulos envolveram a defesa da concorrência e sua finalidade precípua, os fundamentos constitucionais e legais da defesa da concorrência no ordenamento jurídico brasileiro, e uma demonstração dos diferentes graus de concorrência no mercado.

Em seguida, no segundo capítulo, demonstrou-se o funcionamento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Primeiramente utilizou-se a Lei nº 8.884/94, a antiga legislação antitruste, e, por conseguinte, falou-se da Lei nº 12.529/11, a nova legislação de defesa da concorrência. Por fim, fez-se uma análise das principais alterações trazidas com a mudança legislativa.

Após, chegou a hora de abordar realmente o tema central do trabalho, que era análise do procedimento dos atos de concentração pelo CADE. Dessa forma, inicialmente, estudou-se o procedimento à luz da legislação revogada (Lei nº 8.884/94) e, logo após, a forma do procedimento estruturado pela lei vigente (Lei nº 12.529/11). Ao final, foi realizada a análise comparativa da alteração legislativa e algumas consequências práticas de significativa mudança.

No transcorrer do trabalho, vislumbrou-se que, com a lei antiga, o procedimento, apesar de considerado prévio na teoria, não o era efetivamente. Ou seja, os agentes econômicos primeiramente celebravam os contratos e realizavam as operações societárias e apenas posteriormente (no prazo de

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quinze dias) submetiam o ato de concentração ao crivo do CADE. Assim, o órgão de defesa da concorrência deveria analisar os níveis de concentração do mercado e as demais nuances da operação, sabendo que já havia ocorrido o negócio jurídico, para então decidir pela aprovação ou reprovação do ato de concentração.

A grande alteração inserida no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência pela nova legislação foi a análise efetivamente prévia dos atos de concentração. Assim, o CADE passa a estudar a viabilidade da operação societária antes da realização do ato jurídico entre as empresas. A mudança é importantíssima e já trouxe vários benefícios, no entanto, o órgão antitruste terá muito mais responsabilidade perante a sociedade.

Assim, analisando os fundamentos da defesa da concorrência e o porquê de sua existência nos sistemas legais, procurou-se demonstrar detalhadamente as alterações neste procedimento de análise dos atos de concentração, por meio de uma análise comparativa entre as legislações.

Portanto, foi possível concluir que houve grandes avanços no procedi-mento de análise, pois, embora com novos critérios de submissão dos atos de concentração ao CADE, a legislação mantém os princípios e os objetivos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência: continua visando ao bem estar dos consumidores e à manutenção da livre concorrência.

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HOVENKAMP. Herbert. The antitrust enterprise: principle and execution. Cambrige: Harvard University Press, 2005.

PLAWIAK, Rainer Belotto. O controle das estruturas no direito concorrencial brasileiro: aspectos teóricos e práticos. In: MOREIRA, Egon Bockmann; MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Direito concorrencial e regulação econômica. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

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TAUFIK, Roberto Domingos. Nova lei antitruste brasileira: a lei 12.529/2011 comentada e a análise prévia no direito da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

(“THE APPLICATION OF THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE IN TAX CRIMES”)

ViniciuS FrEDErico ohDE

Acadêmico de Direito do Centro Universitário Curitiba, estagiário do escritório Schwezz Advogados Associados

alExanDrE KnopFholz

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é profes-sor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando princi-palmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A aplicação do Princípio da Insignificância nos Crimes contra a Ordem Tributária. 2.1 Necessidade de Estabelecimento de Outros Parâmetros. 2.2 Tipos Penais e Aplicação do Princípio. 2.2.1 Crimes Previdenciários. 2.2.2 Contrabando e Des-caminho. 2.2.3 Crimes contra a Ordem Tributária – Artigos 1° a 3° da Lei n° 8.137/90. 2.3 Necessidade de Tutela de Bem Jurídico Supraindividual. 3 Conclusão.

RESUMO

A proposta do presente artigo é verificar, primeiramente, o que é o princípio da Insignificância, para então discutir sua aplicação em relação aos Crimes contra a Ordem Tributária, analisando sua incidência de forma específica para cada delito tributário, tendo em vista que não há como se falar nesta espécie delitiva sem abordar os crimes previdenciários e o descaminho, além daqueles previstos nos artigos 1° a 3° da Lei n° 8.137/90. Neste sentido, serão analisados os parâmetros utilizados pelos Tribunais Superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal, para verificar a insignificância de determinado fato, apontando falhas e indicando algumas soluções práticas ao entendimento atual em relação a este assunto.

Palavras-chave: Princípio da Insignificância, bagatela, crimes contra a Ordem Tributária, delitos tributários, sonegação fiscal.

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ABSTRACT

The paper intends to, firstly, discuss the principle of Insignificance and, secondly, its application in Tax Crimes, analyzing the respective incidence, more specifically, in each tax offense, having in mind it is not possible to talk about such misdeeds without mentioning social-security crimes and related misguiding, besides the ones provided in articles 1 and 3 of Law number 8.137/90. In this sense, the parameters used by the Superior Courts will be examined, especially by the Supreme Federal Court, aiming at weighting the significance of a certain fact, pointing out eventual problems and working towards practical solutions as per current understanding, in relation to the matter.

Keywords: Principle of Insignificance, bagatellle, tax crimes, tax misdeeds, tax evasion.

1 INTRODUÇÃO

Considerando que, atualmente, não há entendimento pacífico em relação ao princípio da Insignificância, visto que em um mesmo Juízo pode ser observado o tratamento desigual em relação aos chamados delitos de bagatela, necessário se faz um estudo mais aprofundado em relação a este princípio, principalmente no que tange aos crimes contra a Ordem Tributária, nos quais encaixam-se o delito de descaminho, os crimes previdenciários e os crimes previstos nos artigos 1° a 3° da Lei n° 8.137/90.

Isso porque os Tribunais Superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal, dá tratamento diverso a cada um destes crimes, mesmo tratando-se de delitos tributários em geral. Por este motivo, cabe verificar qual é o entendimento dado para cada espécie delitiva em relação ao princípio da Insignificância, demonstrando que, se existe grande sensação de impunidade das sonegações fiscais no Brasil hoje em dia, é possível uma mudança desse quadro por meio de uma nova interpretação dos diplomas legais existentes, ou ainda através de uma reforma legislativa.

Portanto, ao longo do presente artigo, será analisada a possibilidade de incidência do princípio da Insignificância em cada um dos chamados delitos tributários, verificando se os Tribunais Superiores tem aplicado os pressupostos objetivos estipulados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal para verificação da significância para todo e qualquer delito, para então ao final apontar uma solução prática à divergência de tratamento percebida.

2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Partindo do pressuposto de que a pena imposta pelo Direito Penal é a sanção mais grave presente no ordenamento jurídico pátrio, deve a sua aplicação ser

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restrita aos casos em que a conduta, considerada lesiva a um bem jurídico, cause um dano relevante a este bem, não bastando apenas o preenchimento formal dos elementos descritos no tipo penal, sendo necessário também o cumprimento de alguns aspectos objetivos que justifiquem a aplicação da sanção criminal.

Desta forma, aplicam-se ao Direito Penal os princípios da Intervenção Mínima, da Lesividade, da Fragmentariedade, da Subsidiariedade e da Adequação Social, os quais são interligados e dependentes entre si. Tais princípios estabelecem um limite à atividade punitiva estatal, pois determinarão a incidência das leis penais apenas nos casos em que for estritamente necessário, fazendo assim com que tal ramo do Direito seja a ultima ratio do ordenamento jurídico pátrio.

Disso decorre que o Direito Penal não deve atuar em toda e qualquer lesão aos bens juridicamente tutelados, mas apenas nas infrações aos bens jurídicos de maior relevância, sendo esta “graduação” de bens determinada pelo legislador, com base nas circunstâncias da sociedade que se pretende regular em um determinado período de tempo, as quais indicarão ainda quais são as condutas socialmente aceitáveis, restringindo assim o âmbito de abrangência do tipo penal.

Com base nestas premissas, estes princípios também terão uma função descriminalizadora, pois ao determinar as condutas que merecem ser reprimidas penalmente, acabam por determinar quais condutas não podem ser consideradas infrações penais. Desta forma, por ser o Direito Penal considerado a ultima ratio, deve interferir o mínimo possível na esfera individual, atuando somente nos casos em que for necessário, quando os outros ramos do Direito não foram suficientes para coagir determinado comportamento (GRECO, 2008, p. 44-45).

Neste contexto, o princípio da Insignificância está intimamente ligado aos princípios acima expostos, e por isso deve ser aplicado como seu complemento. Após determinar quais os bens jurídicos devem ser tutelados pelo Direito Penal, e quais condutas merecem ser penalmente reprimidas, o legislador criará o tipo penal, que pode ser entendido como a aplicação concreta do princípio da legalidade, pois, pela edição de determinada lei, o legislador estará descrevendo a conduta proibida, estabelecendo desta forma um modelo de conduta desejado pelo Estado e uma punição a quem não obedecê-lo.

Desta forma, pode-se dizer que o tipo penal gera uma garantia, caracterizada pela previsibilidade, aos cidadãos de determinada sociedade, os quais podem assim saber o limite entre a atuação lícita e ilícita, não sendo permitida a criação de tipos por analogia ou por interpretação extensiva, mas apenas por meio de uma lei penal. Contudo, não será toda e qualquer lesão aos bens penalmente tutelados que merecerão a aplicação da sanção criminal, mas apenas aquelas consideradas penalmente relevantes ou significantes.

Considerando o crime como o fato (e não apenas a conduta, já que o fato engloba a conduta, o resultado e o nexo causal) típico, antijurídico (ou ilícito), e

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culpável (considerada esta elemento do crime em si, já que todos os elementos do crime são pressupostos para a aplicação da pena), entende-se que o princípio da Insignificância afastará a tipicidade do fato, tornando-o atípico. Isso porque não basta o mero preenchimento formal dos elementos presentes no texto do Direito Positivo para que determinada conduta seja considerada típica, pois esta subsunção do fato em concreto àquele fato previsto abstratamente no texto legal é relativa apenas à tipicidade formal.

Em outras palavras, não basta a mera adequação da conduta àquela penalmente proibida no tipo penal para que se justifique a aplicação da pena, sendo ainda exigido que o fato que se pretende punir cause um dano relevante ao bem jurídico tutelado, apto a justificar a punição estatal. Desta forma, caso seja reconhecida a insignificância da conduta, pela desproporção entre o fato delituoso praticado e a pena correspondente, esta será formalmente, mas não materialmente típica, não podendo assim se falar em crime, em face do princípio do nullum crimen sine iniuria.

Neste sentido, destaca-se o entendimento de Francisco de Assis Toledo:

Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, referida inicialmente (supra, n. 123), permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado – se necessário – como ilícito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais. Aqui, mais uma vez, se ressalta a maior amplitude e a anterioridade da ilicitude em relação ao tipo legal de crime. (TOLEDO, 1994, p. 133-134).

Então, para a verificação da tipicidade material de determinado fato, constatando se certa conduta é significantemente lesiva, devem ser levados em conta alguns pressupostos objetivos, estipulados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal e já aplicados pelo Superior Tribunal de Justiça, utilizados como meios de verificar se o dano causado ao bem juridicamente tutelado é relevante o suficiente para merecer a aplicação da sanção criminal, verificando não só a lesão causada à vítima, que é um dos resultados do crime, mas todas as circunstâncias do delito analisado.

Com base em tal entendimento, que pode ser extraído, por exemplo, do HC n° 100367/RS, julgado pelo STF em 09/08/2011, para que seja reconhecida a insignificância de determinada conduta, considerando-a materialmente atípica,

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deverá ser demonstrada a presença, cumulativa, dos seguintes requisitos: a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade, e, por fim, a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Tais requisitos só podem ser verificados no caso concreto, e é por este motivo que se fala que a análise da irrelevância de determinada conduta não pode ocorrer abstratamente e sem analisar caso a caso. Torna-se inaceitável, neste contexto, o estabelecimento de um valor, pré fixado por uma lei não penal, como único parâmetro para dizer se trata-se, ou não, de um delito de bagatela, afastando-o da incidência da lei penal, como faz grande parte da doutrina e da jurisprudência em relação aos crimes contra a Ordem Tributária.

E aplicar o princípio da Insignificância nos crimes tributários significa dizer que o tributo evadido nestas operações criminosas não é relevante o suficiente para ensejar a aplicação da lei penal. Se já existem problemas suficientes de ordem jurídica e prática quanto ao parcelamento e ao pagamento do crédito tributário, para fins de extinção de punibilidade, tendo em vista a divergência de tratamento dado aos demais delitos patrimoniais não violentos, problemas ainda maiores surgem ao analisarmos o atual entendimento dos Tribunais Superiores e da doutrina quanto à aplicação do princípio da Insignificância nos crimes contra a Ordem Tributária, tendo em vista que, no primeiro caso, em que pese as diversas críticas cabíveis, ao menos há a recuperação do objeto do crime.

Com base nesse contexto, propõe-se uma discussão quanto aos parâmetros utilizados para aferição da lesividade da conduta para verificar se é possível a aplicação do referido princípio nos chamados delitos tributários, sendo necessário, tendo em vista o prejuízo público causado pelas sonegações fiscais e previdenciárias, definir o que é significantemente lesivo, qual o valor do tributo que se entende irrelevante, os motivos deste entendimento e, ao longo da abordagem, indicar soluções práticas ao panorama atual.

Ao tratar da significância de determinado fato, deve-se, primeiramente, determinar-se os limites de sua aplicação, e, para estes fins, deve-se ter em mente que o objeto do crime não se confunde com o crédito tributário. O crédito do Fisco será constituído não só do débito referente aos tributos devidos e não pagos, sendo este débito o objeto do ilícito penal, mas também da multa e juros de mora, os quais, por sua vez, são consequências do ilícito tributário, entendidas como sanções administrativas pelo inadimplemento da obrigação de levar dinheiro aos cofres públicos à título de tributo.

Desta forma, por mais que o sujeito, por questões burocráticas e práticas, não possa efetuar isoladamente o pagamento do tributo evadido, devendo também pagar todos os acréscimos legais caso requeira parcelamento ou efetue o pagamento integral da dívida, para a aplicação deste princípio com

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base no valor do tributo evadido deve ser considerado apenas o tributo não pago, desconsiderando-se as sanções administrativas para a determinação da significância da conduta, pois estas, repita-se, são consequências administrativas, mas não objeto do delito em si.

Já quanto ao parâmetro a ser tomado para verificar a possibilidade de reconhecimento da prática dos chamados delitos de bagatela, sempre houve grande discussão doutrinária e jurisprudencial, e o entendimento atual dominante não parece ser o mais correto. Isso porque nos crimes contra a Ordem Tributária o entendimento é no sentido de que a relevância da conduta será analisada apenas com base no tributo evadido em face da atuação ilícita, e por isso deve ficar claro que o objeto do ilícito é apenas o tributo em si, e não os acréscimos legais.

Assim, tem-se utilizado como patamar para a verificação da significância de determinado fato o artigo 20 da Lei n° 10.522/02, o qual estabelecia, primeiramente, que deveriam ser arquivadas as Execuções Fiscais quando o débito inscrito em dívida pública da União não fosse superior a R$ 2.500,00, sendo tal valor alterado posteriormente para R$ 10.000,00. Mesmo já sendo questionável afirmar que o valor de R$ 10.000,00 é insignificante aos cofres públicos, mais recentemente este artigo 20 da referida lei foi alterado pelo artigo 2° da Portaria do Ministério da Fazenda n° 75, de 22 de março de 2012.

Com a nova redação, foi determinado o arquivamento de execuções fiscais cujo valor não seja superior a R$ 20.000,00. Ou seja, o entendimento para os crimes tributários, atualmente, é de que é insignificante o tributo sonegado se o valor decorrente deste ilícito for menor do que R$ 20.000,00. Já existem decisões no âmbito dos Tribunais confirmando a recepção deste novo dispositivo legal, e neste sentido, destacam-se, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Habeas Corpus n° 5004628-75.2012.404.0000 e o Recurso em Sentido Estrito n° 5002025-72.2012.404.7002, ambos julgados pela Sétima Turma daquele Tribunal.

Este entendimento deriva da subsidiariedade do Direito Penal em relação ao Direito Tributário e da assessoriedade administrativa. Isso porque não é admissível que alguém seja punido criminalmente pelo não pagamento de um tributo se não há certeza quanto a constituição do crédito tributário, tornando assim necessária a atuação do órgão Fazendário, visto que este possui aparatos não disponíveis tão facilmente na persecução criminal, para verificar e determinar a ilicitude naquele âmbito.

Assim, ocorre que o Direito Penal dependerá do Direito Tributário, motivo pelo qual se fala que será assessorado administrativamente. Será dependente, então, de todo um aparato estatal, com a confirmação anterior da constituição do ilícito, em procedimento administrativo que respeite os princípios da ampla defesa e do contraditório, para poder ter sua atuação legitimada.

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Com base em tais premissas, o argumento é o seguinte: se nos crimes contra a Ordem Tributária é necessária a formação do ilícito na esfera administrativa, e esta própria esfera decidiu pelo arquivamento do feito de sua competência, não poderia o Direito Penal, em face de sua fragmentariedade, considerado a ultima ratio do ordenamento, punir uma conduta que é insignificante para os demais ramos do Direito. Trata-se, então, de delito de bagatela.

O problema quanto a esta questão é o fato de tal previsão legislativa existir apenas em razão da ineficiência das execuções abaixo deste valor, não significando dizer que tal tributo seja insignificante. Sua cobrança é apenas inviável ao Fisco, pelos custos em se mover a máquina judicial e pelo grande número de demandas infrutíferas, mas o valor é certamente significante, tanto é que o artigo 18, §1°, da mesma lei, prevê a extinção do tributo abaixo de R$ 100,00. Neste último caso sim fala-se em insignificância.

Há, inclusive, diversos julgados no sentido de reconhecer que o princípio aqui tratado só poderia ser aplicado com base neste artigo 18, e não com base no artigo 20 da Lei n° 10.522/02. Isso porque, no caso daquele artigo, não se trata de arquivamento da execução fiscal, tendo em vista que o débito em si foi efetivamente cancelado, não havendo sequer o que executar. Trata-se, efetivamente, de um valor que a Administração Pública considera irrelevante, e não apenas de difícil execução.

Tal posicionamento se firmou em relação ao delito de descaminho, mas nada impede sua aplicação em relação aos delitos contra a Ordem Tributária de maneira geral. Seguindo tal entendimento, podem ser ainda citados o HC 32576/RS, REsp 704892/PR, REsp 742895/PR, HC 38965/RS, HC 41700/RS, todos do Superior Tribunal de Justiça.

Constata-se então, de maneira clara, que a intenção do dispositivo é apenas evitar demandas infrutíferas, e não afirmar que tal valor é irrelevante aos cofres públicos. E ainda, note-se que a nova redação do artigo 20 da Lei n° 10.522/02 trouxe uma inovação em relação à disposição anterior, não apenas em relação ao valor. Extrai-se do novo dispositivo que, havendo garantia do pagamento da dívida, não deverá ser feito o arquivamento do feito. Isso implica em dizer que o arquivamento na esfera administrativa nem sempre deve redundar no reconhecimento da insignificância da conduta.

Contudo, mesmo adotando-se o artigo 18 daquela lei, com valor inferior, ainda estará sendo utilizado apenas o valor do tributo evadido como parâmetro para a verificação quanto à possibilidade de incidência do princípio da Insignificância. E isso pode ser questionável, por desconsiderar as demais circunstâncias do delito, levando em consideração apenas seu objeto.

2.1 NECESSIDADE DE ESTABELECIMENTO DE OUTROS PARÂMETROS

O primeiro problema que surge ao considerar apenas o valor do tributo evadido é: o que se entende por bem jurídico nesta espécie delituosa, de maneira geral? Ao tipificar os crimes contra a Ordem Tributária, o legislador pretendeu

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não só proteger o patrimônio público, mas o poder de arrecadação do Estado e a fé pública, visto que a regra geral é da necessidade de fraude para caracterização deste tipo de ilícito, com exceção da figura aproximada da apropriação indébita, prevista no artigo 2°, II, da Lei n° 8.137/90. Fala-se, assim, que trata-se de bem jurídico complexo protegido pela lei penal tributária.

Desta forma, desconsiderando as demais circunstâncias do delito para determinar a significância de determinada conduta, os Tribunais Superiores acabam por ignorar a lesão à fé pública e ao poder de arrecadação do Estado, tendo em vista que, independentemente do valor do tributo, houve descumprimento de um dever fundamental do particular, mediante artifício ardil, para ao final praticar uma lesão ao patrimônio público, e parece que todo esse contexto é ignorado ao estabelecer um parâmetro geral de significância, com base em um valor estipulado para execuções fiscais, sem analisar cada caso individualmente.

Verifica-se que tomar por base a Lei 10.522/02 pode não ser então a solução mais justa, podendo em muitas vezes causar a impunidade de delitos que deveriam sofrer a sanção estatal. Poderia ser aplicada no Brasil, para afastar dúvidas quanto a esta questão, a Teoria da Acumulação, teoria criada pelo Direito Alemão por Ulrich Beck, da escola de Frankfurt, a qual, de maneira breve, estabelece que um delito isoladamente pode ser insignificante, mas considerando a lesão de todas as pequenas condutas consideradas irrelevantes, pode haver um dano gravíssimo à determinada sociedade.

Tal teoria foi criada para ser aplicada ao Direito Ambiental, mas sua aplicação deveria ser destinada aos crimes em geral, em especial àqueles que afetam a Ordem Tributária e os demais delitos que integram o chamado Direito Penal Econômico. Certo é que o Estado não irá “quebrar” em face da sonegação de valor inferior a R$ 20.000,00, mas ao considerarem-se todas as sonegações consideradas insignificantes em um único período fiscal, certamente se alcançaria valor significativo, que poderia ser revertido em investimentos públicos.

Ao considerar-se não apenas um período fiscal, mas um período de 10 anos, verifica-se que considerar tal valor irrelevante é um equívoco. Tal teoria, contudo, não é aplicada no Brasil e, com isso, surge a necessidade de estabelecimento de um outro parâmetro. Até porque, no cometimento de determinado delito, certamente existirão circunstâncias que podem aumentar ou diminuir o grau de reprovabilidade daquela conduta, sendo que tais circunstâncias devem ser levadas em contas para aferição da lesividade e relevância do fato.

Atentando a tais observações, o Supremo Tribunal Federal, em alguns julgados, vem reconhecendo a existência de alguns pressupostos, de natureza objetiva, para a aplicação do princípio da Insignificância para todo e qualquer delito, devendo tal posicionamento ser aplicado também aos delitos tributários, tendo em vista que a lesão de determinada conduta a certo bem jurídico não

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pode ser estabelecida com base apenas no prejuízo patrimonial, até porque, este pode ser relativizado de acordo com o poder financeiro do sujeito que se trata.

Com base em tal entendimento, para que seja reconhecida a irrelevância de determinada conduta, considerando-a materialmente atípica, deverá ser demonstrada a presença, cumulativa, dos seguintes requisitos, que só podem ser verificados no caso concreto: a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade, e, por fim, a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Neste sentido, destacam-se o RHC 96813/RJ e o HC 92531/RS, julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

Verifica-se que certas condutas, apesar de causarem o mesmo prejuízo financeiro que outras, têm menor ou maior reprovabilidade em face das circunstâncias em que são cometidas, ou ainda em face da ofensividade e da repercussão social da ação que causou aquele prejuízo. Isso tudo influencia de forma direta a irrelevância de determinada conduta, mas o problema é que entendimentos neste sentido são excepcionais atualmente, sendo sempre estabelecido como único parâmetro o valor do tributo evadido.

Não há que se duvidar que, se o sujeito é reincidente naquela prática, apesar da reincidência ser um elemento de natureza subjetiva, a conduta praticada terá maior reprovabilidade, tendo em vista que sua não punição será ainda mais injusta. Também há que se diferenciar a relevância do crime tributário que se analisa com base no modo de atuação do agente, pois existem diversos tipos de fraude, e certamente, algumas são mais lesivas que outras.

Quanto à inexpressividade da lesão jurídica provocada, esta merece melhor atenção. Ao considerar que crimes tributários cujo tributo não supere o valor de R$ 20.000,00 são insignificantes, está a se reconhecer que este valor não causa expressiva lesão jurídica. E é aí que reside o maior problema: como não considerar que um crime que causa R$ 20.000,00 aos cofres públicos não merece a punição estatal, tendo em vista os notórios problemas econômicos e sociais existentes no panorama atual brasileiro? Ademais: ao tomá-lo como único parâmetro, como ficam os demais pressupostos?

Então, respondendo a esta questão e justificando a aplicação de todos os pressupostos objetivos estabelecidos, deve ser levado em consideração que o princípio da Insignificância é criação de Claus Roxin, em face do entendimento de que:

(…) o direito penal é de natureza subsidiária. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público o direito penal deve retirar-se. (...) Consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar. (ROXIN, 1998, P. 28)Com base nessas premissas, merece destaque o artigo escrito por Fernando

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Antônio C. Alves de Souza, no qual é demonstrado o entendimento do próprio Claus Roxin, criador do princípio, quanto aos pressupostos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para possibilitar sua aplicação. A opinião de Roxin pode ser extraída da resposta enviada por ele quando questionado sobre esta questão pelo professor Alves de Souza (SOUZA, 2009). Em face da importância de tal documento quanto a este tema, muito debatido atualmente, será feita a sua transcrição integral, com a respectiva tradução:

Sehr geehrter Herr Alves de Souza,Estimado Sr. Alves de Souza,vielen Dank für Ihre Zuschrift vom 22. April, die ich wegen vieler Reisen erst jetzt beantworten kann.Muito obrigado pela sua mensagem do dia 22.04 que em decorrência de muitas viagens somente consigo responder hoje.Eine quasi offizielle Definition des Geringfügigkeitsprinzips gibt es im deutschen Recht nicht. Die vom Supremo Tribunal Federal angegebenen Kriterien treffen aber im Wesentlichen das, was man unter Geringfügigkeit versteht.Uma definição quase oficial do principio da ¨insignificância¨ não existe no Direito alemão, porém os critérios elencados pelo STF na essência estão de acordo com o que se entende por ¨insignificância¨ .In Deutschland werden geringfügige Taten hauptsächlich im Prozessrecht behandelt und können nach § 153 der Strafprozessordnung zu einer Einstellung des Verfahrens führen, wenn die Schuld des Täters als gering anzusehen wäre und kein öffentliches Interesse an der Verfolgung besteht”.Na Alemanha atos insignificantes são normalmente tratados no Direito Processual e podem segundo Parágrafo 153 CPP levar a um arquivamento(parada) do processo, se a culpa do agente é visto como insignificante e não existe interesse público na perseguição.Manche Länder haben aber eine Regelung im Strafgesetzbuch. So sagt zum Beispiel Artikel 1 § 2 des polnischen Strafgesetzbuchs: Keine Straftat ist eine verbotene Tat, deren Sozialschädlichkeit geringfügig ist.”Alguns países dispõem de uma regra no CP. Assim o artigo 1, parágrafo 2 do CP polonês: ¨Nenhum ato criminoso é ato proibido, cuja prejuizo social é insignificante.Ich halte eine materiell-rechtliche Regelung für vorzugswürdig, weil sie größere Rechtsklarheit schafft. Alles in allem gehört aber das Problem der Bagatellkriminalität zu den am wenigsten geklärten Fragen des Strafrechts.

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Eu prefiro um regulamento de direito material pois cria uma maior segurança jurídica. De uma forma geral o problema da ¨criminalidade insignificante¨ (Bagatellkriminalität) é uma das questões menos esclarecidas do Direito Penal.Sie dürfen von meiner Antwort gerne beliebigen Gebrauch machen.Você pode utilizar a minha resposta.Mit freundlichen GrüßenAtenciosamenteIhrClaus Roxin

Percebe-se assim que o próprio criador do princípio admite que as condições estipuladas pelo nosso Tribunal Superior são adequadas àquelas estabelecidas pelo Direito Alemão, para se verificar a relevância de determinada conduta. A diferença é que naquele ordenamento o princípio terá reflexos processuais, pois determinará a falta de justa causa para a Ação Penal, e os reflexos no Direito Brasileiro são, de certa forma, materiais, pois se entende majoritariamente que a insignificância da conduta não permite a tipicidade material do fato. Contudo, sem esta tipicidade, também não há justa causa para a Ação Penal, e por isso os entendimentos são, de certa forma, semelhantes.

Por essas razões, correto é o entendimento que considera todos os pressupostos para aplicação do princípio da Insignificância, e não apenas toma como parâmetro o valor do tributo ilicitamente não pago. Claro que este valor deve ser considerado para a verificação da relevância da conduta, mas no pressuposto da expressividade da lesão jurídica, pois o que não pode ocorrer é considerá-lo como o único parâmetro a ser tomado.

2.2 TIPOS PENAIS E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO

Cabe, neste momento, verificar qual é a interpretação dada pelos Tribunais Superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal, em relação a cada um dos crimes tributários, analisados de acordo com o tipo legal, verificando qual a interpretação dada em relação ao descaminho, aos crimes previdenciários e aos crimes contra a Ordem Tributária quanto aos pressupostos objetivos estabelecidos e acima explicados.

Ao verificar-se o tratamento dado a estas espécies delitivas, é possível constatar que, ao tratar diferentemente delitos que são muito próximos de si, os Tribunais Superiores acabam por dar certos “privilégios” aos indivíduos que cometem os crimes contra a Ordem Tributária, previstos na Lei n° 8.137/90, principalmente no que diz respeito à sonegação fiscal.

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2.2.1 CRIMES PREVIDENCIÁRIOS

Em relação aos crimes previdenciários, representados pela apropriação indébita e a sonegação previdenciária, previstos respectivamente nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, devem eles ser aqui tratados pois contribuição social também é tributo, podendo pertencer a uma espécie tributária diversa de acordo com a teoria de espécies tributárias adotada, seja a tripartida, quadripartida ou quinquipartida, mas ainda será tributo, e sua sonegação ou apropriação indevida certamente será um crime tributário.

Assim, quanto a estes delitos, já é possível encontrar diversos julgados nos Tribunais Superiores estabelecendo a necessidade de verificação dos pressupostos objetivos para a aplicação do princípio da Insignificância, não considerando apenas o valor do tributo evadido, o qual, neste caso, seria devido à título de contribuição previdenciária.

E, utilizando os pressupostos objetivos, tem-se reconhecido a impossibilidade de reconhecimento do chamado delito de bagatela, já que a Ordem Previdenciária é representada pela Seguridade Social, dividida entre Assistência Social, Previdência Social e Saúde. E, assim, o bem jurídico tutelado seria supraindividual, não podendo se falar em inexpressividade da lesão jurídica tributária e no reduzido grau de reprovabilidade. Tais crimes serão, portanto, sempre significantes, mesmo que o valor sonegado seja inferior a R$ 20.000,00, o que, de certa forma, inibe a prática delituosa pela prevenção geral e oferece maior proteção jurídica à Seguridade Social.

Baseados neste entendimento, destacam-se outros recentes julgamentos do STF, referentes ao HC 98021/SC, HC 102550/PR e HC 107041/SC. Há certamente entendimento diverso, ainda tendo o valor da contribuição previdenciária como patamar para a significância da conduta, desconsiderando os demais elementos. Tal posicionamento pode ser encontrado, por exemplo, no AgRg no REsp 1300666/RS, do Superior Tribunal de Justiça, mas tal entendimento é minoritário e vai contra os pressupostos estabelecidos como parâmetro pelo Supremo Tribunal Federal.

2.2.2 CONTRABANDO E DESCAMINHO

Em relação ao crime de contrabando, previsto na primeira parte do caput do artigo 334 do Código Penal, o entendimento unânime é no sentido de não ser possível aplicar o princípio da Insignificância, tendo em vista a multiplicidade de bens jurídicos tutelados, e em face disso, entende-se não ser possível reconhecer a inexpressividade da lesão jurídica provocada e o baixo grau de reprovabilidade do agente, não preenchendo, assim, os pressupostos estipulados pelo Supremo Tribunal Federal.

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Isso porque nesta espécie delitiva pretende-se proibir o comércio de mercadorias proibidas no país, não sendo tal questão especificamente relativa aos tributos desta operação, os quais acabam sendo protegidos de maneira indireta, já que a proteção principal nesta espécie delitiva é ao mercado interno. Protege-se, assim, bens jurídicos diversos, falando-se em um bem jurídico complexo, e o reconhecimento da insignificância nestes casos poderia desconsiderar a violação à algum deles. Neste sentido, destacam-se alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, como o HC 110964/SC e HC 100367/RS.

Já em relação ao crime de descaminho, previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do Código Penal, constata-se uma aproximação bastante significativa dos crimes contra a Ordem Tributária, pois envolve o não pagamento, total ou parcial, dos tributos relativos à entrada ou à saída de determinado bem no Brasil, sendo este bem não proibido pela legislação brasileira, pois caso seja, tratar-se-á de contrabando.

Assim, de primeiro plano já é possível constatar a lesão ao Poder de Arrecadação do Estado, bem jurídico tutelado nos crimes contra a Ordem Tributária, mas seria equivocado falar que este é o único bem protegido pela tipificação do descaminho, visto que não há como não se reconhecer uma proteção ao mercado interno, da mesma forma como ocorre com o contrabando, já que todos os impostos envolvidos neste delito têm natureza extrafiscal, com a função de regular a economia nacional por meio do comércio exterior.

Por este motivo, grande parte da doutrina e da jurisprudência não considera tal delito como um crime tributário em si, não sendo então, aplicados os institutos de benefício ao infrator constatados nos crimes tributários em geral, como a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido pela operação, pois entende-se que a proteção da Ordem Tributária é secundária, sendo o bem jurídico, portanto, complexo.

Por exemplo, se a alíquota é maior para a importação de determinada mercadoria, entende-se que a entrada de tal produto no mercado interno não deve ser estimulada pois pode ser prejudicial às indústrias nacionais. Então, caso importada tal mercadoria sem o pagamento dos tributos, o mercado interno será ainda mais afetado, pois serão prejudicados, além da indústria nacional, os cofres públicos, afetando-se então, neste contexto, a Ordem Tributária. É por isso que não há como se falar nos crimes tributários sem abordar o descaminho, cabendo então a análise quanto à possibilidade de aplicação do princípio da Insignificância sobre este delito.

Neste sentido, os Tribunais não têm aplicado, de maneira geral, os requisitos objetivos estabelecidos, utilizando como parâmetro ainda o valor de R$ 20.000,00. Há algumas decisões, isoladas, que já reconhecem que a habitualidade da conduta já impede a aplicação do princípio, reconhecendo

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de uma certa forma a impossibilidade de se falar em reduzido grau de reprovabilidade, mas ainda não se aplicam, como deveriam ser aplicados, os pressupostos já explicados. Com este entendimento, destacam-se o HC 104407/DF, o HC 96852/PR e o HC 100692/GO, todos do STF.

E com o mesmo entendimento, já reconhecendo que a habitualidade impede que o valor do tributo seja o único parâmetro tomado para aplicação do princípio, também destaca-se o HC 100942/PR, também do Supremo Tribunal Federal. Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, posicionamento semelhante pode ser encontrado no julgamento do Recurso Especial n° 1322847/SP, de relatoria da Ministra Laurita Vaz. Constata-se, assim, ao menos uma tendência de reconhecimento dos pressupostos estabelecidos pelo STF também neste tipo de delito tributário.

Deve ser ressaltado que, conforme explicado anteriormente, entre 2006 e 2007 surgiram vários julgados no Superior Tribunal de Justiça entendendo pela impossibilidade de aplicação do princípio da Insignificância com base no artigo 20 da Lei 10.522/02, pois tal valor seria relativo apenas ao arquivamento da execução, devendo ser aplicado o artigo 18, este sim referente à extinção do crédito, utilizando como parâmetro o valor de R$ 100,00. Atualmente, contudo, este não é o entendimento majoritário, tomando-se como parâmetro para verificação da lesividade da conduta, de forma equivocada, apenas o valor estabelecido pelo artigo 20 da Lei n° 10.522/02.

2.2.3 CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – ARTIGOS 1° A 3° DA LEI N° 8.137/90

Em relação aos crimes contra a Ordem Tributária em sentido amplo, previstos nos artigos 1° a 3° da Lei n° 8.137/90, o entendimento atual é pelo reconhecimento da insignificância com base apenas no valor sonegado, utilizando o valor de R$ 20.000,00 como parâmetro. E, atualmente, a maioria esmagadora dos julgados ainda é neste sentido, desconsiderando os demais pressupostos, como no julgamento pelo STF do HC 97257/RS, o qual merece destaque pelo fato de já ser ao menos reconhecido, mesmo que como voto vencido naqueles autos, o caráter supraindividual do bem jurídico tutelado, e o não reconhecimento da irrelevância com base no valor sonegado.

E no mesmo sentido, destaca-se também o HC 92438-7/PR, do Supremo Tribunal Federal, e o HC 198520/SP, do Superior Tribunal de Justiça. Tal entendimento, que deve ser superado, a exemplo do que já ocorreu em relação aos crimes contra a ordem previdenciária, se mostra presente não só na jurisprudência, como também é ainda comum encontrar doutrinadores com posicionamento semelhante, como José Paulo Baltazar Júnior (BALTAZAR JUNIOR, 2010, p. 366).

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Apesar de ser ainda muito comum a defesa do posicionamento acima exposto, a intenção é de que, ao longo dos anos, haja a desconsideração do valor estipulado pelo artigo 20 da Lei n° 10.522/02 como única medida para verificação da relevância da conduta nos crimes contra a ordem tributária. Não só pelo fato deste valor não ser realmente insignificante, mas também pelo fato de desconsiderar a periculosidade do agente, a habitualidade e as demais circunstâncias do delito, analisando apenas seu objeto.

Assim, a tendência é, ou ao menos deveria ser, de que sejam aplicados, para todos os casos em que for se verificar a relevância de determinada conduta, os pressupostos estipulados pelo Supremo Tribunal Federal. Como tal entendimento é recente, não estando ainda firmado entre os aplicadores do Direito, são poucos os doutrinadores que compartilham deste posicionamento, tendo em vista que a maioria ainda insiste em considerar apenas o valor do tributo como patamar de insignificância, sem analisar as circunstâncias do caso concreto.

E tal panorama se confirma ao analisarmos o entendimento dado, quanto a este assunto, aos crimes contra a Ordem Previdenciária. Ora, se naquele caso já se reconhece a impossibilidade de se aceitar a inexpressividade da lesão jurídica e o baixo grau de reprovabilidade do agente, já que a conduta terá maior reprovabilidade por afetar a Seguridade Social além do poder de arrecadação, e com isso protege-se bem de caráter supraindividual, o mesmo contexto existe nos crimes contra a ordem tributária, havendo, contudo, diferenciação no tratamento destes crimes.

Fala-se no mesmo contexto pois a arrecadação também é lesada, pelo descumprimento do mesmo dever fundamental, afetando-se a população como um todo da mesma forma. A única diferença é que a contribuição social terá destinação certa, vinculada, enquanto os tributos, de maneira geral, pelo princípio da não afetação, não poderão ter sua destinação comprometida. Mas isso não retira o fato de o bem jurídico ser supraindividual, além de complexo, sendo que a destinação do tributo, em ambos os casos, é para a população de maneira geral, e ambos são, portanto, dinheiro público, que integram o erário, fazem parte dos cofres públicos e portanto, são, ou deveriam ser, voltados ao bem da população.

Entretanto, em que pese a similaridade entre as condutas de ambos os delitos e a natureza pecuniária pública de seu objeto, sendo que em ambos reside o interesse de proteção do bem jurídico supraindividual, existe, talvez pela grande dívida que a Seguridade Social possui hoje em dia, essa diferenciação no tratamento quanto à significância da conduta. E essa diferenciação acaba servindo como um verdadeiro incentivo a quem comete o crime previsto na Lei n° 8.137/90, em face da impunidade.

Então, no caso desta lei, que prevê os crimes tributários em sentido amplo, a conduta não será considerada significante, entendendo-se não ser necessária sua punição, afastando-se a tipicidade do fato e considerando-o um indiferente

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penal. Mas nos crimes previdenciários isso não se verifica, e a conduta será efetivamente punida ou, ao menos, analisada por meio de um processo penal sob a jurisdição do Estado.

Por estes motivos, é necessária a adoção de um novo entendimento, considerando todos os pressupostos estipulados pelo STF em relação aos crime previstos nos artigos 1° a 3° da Lei n° 8.137/90, aplicando-os a estes delitos da mesma forma que são aplicados em relação aos crimes contra a Ordem Previdenciária.

2.3 NECESSIDADE DE TUTELA DE BEM JURÍDICO SUPRAINDIVIDUAL

Por fim, a punição dos crimes tributários, e a não aplicação do princípio da Insignificância nesta espécie delitiva, tal como ocorre nos crimes contra a Ordem Previdenciária, poderia ainda ser defendida sob o argumento da necessidade de proteção deste tipo de delito pelo simples fato de proteger-se bem jurídico supraindividual, em face do surgimento da Sociedade do Risco, teoria criada por Ulrich Beck, teórico da Escola de Frankfurt, na Alemanha.

Tal teoria leva em consideração o surgimento de um novo modelo social, causado pela ruptura da modernidade, em face dos avanços econômicos e tecnológicos percebidos ao longo destas últimas décadas, causando uma evolução sem precedentes na história da humanidade. Ao contrário da Sociedade Industrial, na qual o homem preocupava-se em criar mecanismos de defesa contra a natureza, a evolução foi tamanha que é o próprio homem que pode por a natureza em risco, juntamente com a existência da vida humana.

Tal sociedade, portanto, é caracterizada por ser altamente tecnológica e massificada, com uma maior relação econômica e industrial entre os países, o que faz com que seja uma sociedade global. Diante disso, os riscos e os efeitos de eventual crise, neste tipo social, podem também ter, facilmente, proporções globais, atingindo um número indeterminado de pessoas, fazendo com que um resultado de uma ação ocorra muito distante do local onde foi praticada, sendo que na maioria das vezes sequer é possível acompanhar esse resultado.

Por isso se fala que os riscos são globais e de dimensões imensuráveis, que podem inclusive levar à extinção ou crise profunda do mercado de capitais e do sistema de troca de mercadorias, o que já causaria um colapso de nível globalizado e com consequências imprevisíveis. Portanto, para este novo modelo social, que terá então uma nova maneira de criminalidade, cujos agentes terão poder econômico muito superior e diferentes formas de atuação, necessário se faz um aprimoramento do Direito Penal Clássico, no sentido de especializá-lo, para que não haja a impunidade.

Isso porque o modelo atual não é suficiente para atender as novas demandas, que podem por em risco não apenas a nossa geração, mas gerações

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futuras. Neste sentido, fundamentando o que foi acima exposto, merece destaque a doutrina de Jorge de Figueiredo Dias:

Na verdade, como poderão os “novos” ou “grandes” riscos – que ameaçam grupos indeterminados de pessoas, quando não a generalidade delas ou mesmo a humanidade em seu todo, e têm origem em actuações profundamente diversificadas no espaço e no tempo, ocasionadas no âmbito de uma acentuadíssima repartição de funções, de tarefas e de competências – ser contidos ou obviados por um direito penal que continue a ter na individualização da responsabilidade o seu princípio precípuo e cujo objecto de tutela seja constituído por bens jurídicos individuais reais e tangíveis (e portanto “actuais”), quando o problema posto por aqueles riscos é por essência indeterminado no seu agente e na sua vítima? (DIAS, 2001, p. 160).

Necessária se faz assim uma nova política criminal, com flexibilização de alguns institutos atuais, passando a proteção principal a ser voltada aos bens jurídicos supraindividuais, com uma responsabilização coletiva, punindo-se de forma mais severa delitos negligentes ou omissivos, além de não poder mais ser analisada a insignificância de determinada conduta apenas em uma análise individual, mas sim em uma análise coletiva, baseada no Princípio da Acumulação, já explicado anteriormente.

Neste sentido, a aplicação mais correta do princípio da Insignificância seria no sentido de restringir sua incidência em relação aos crimes contra a Ordem Tributária, restando sua utilização para os casos em que, apenas após a análise da situação em concreto, e depois de ter sido verificada a existência cumulativa dos pressupostos estipulados pelo Supremo Tribunal Federal, a conduta realmente se mostre insignificante, mas sempre levando em consideração que tutela-se um bem jurídico de natureza supraindividual, e a conduta a ser analisada é, antes de um ilícito patrimonial, um dano à fé pública, afastando assim o atual entendimento de verificação da significância apenas com base no tributo evadido.

3 CONCLUSÃO

Com base em tudo o que foi exposto, constata-se que se mostra necessária, para verificar a possibilidade de incidência do princípio da Insignificância, a análise do caso concreto. Fazer uma análise pura e simples acerca do dano provocado, ignorando as demais circunstâncias que levaram a esta lesão e as que decorreram deste, estabelecendo parâmetros abstratos sem analisar as

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condições do agente e do delito, que podem por sua vez demonstrar maior reprovabilidade por aquele fato delituoso, pode levar à má aplicação da lei penal, e consequentemente, à injustiça social.

Fala-se muito que a lei penal tributária não é feita para atingir indivíduos de grande poder econômico, mas apenas a classe mais desfavorecida da sociedade. E considerando que esta espécie delitiva tem em sua elementar a demonstração de uma riqueza, dificilmente a lei penal terá aplicação nestes casos, o que leva à desconfiança por parte da população quanto aos meios legais de punição dos atos ilícitos, principalmente aqueles que atingem os cofres públicos. E tal contexto deve ser mudado, não apenas com uma reforma legislativa, mas com a devida interpretação dos textos legais já existentes, e o presente trabalho propõe um direcionamento neste sentido.

Não se propõe aqui, então, evitar e criticar a aplicação do princípio da Insignificância. Muito pelo contrário, entende-se que sua aplicação, quando correta, além de “desafogar” as Varas Criminais e as Delegacias, resguardam a lei penal aos casos que realmente mereçam sua tutela. E a tendência nos Tribunais Superiores é o reconhecimento cada vez maior da necessidade de aplicação desta princípio em alguns casos.

Neste sentido, já é unânime o entendimento de que é possível sua aplicação no crime de furto, e não de roubo, e, recentemente, também estabeleceu-se a possibilidade de reconhecimento de delito de bagatela em crime ambiental, no julgamento do Habeas Corpus 112563/SC, sendo ainda possível a aplicação do princípio no caso de crime previsto na Lei n° 11.343/06, como já reconhecido no HC 94583/MS, sendo todos os julgados do Supremo Tribunal Federal.

E, apenas à título exemplificativo, em relação ao crime de moeda falsa, previsto no artigo 289 do Código Penal, o entendimento é pela impossibilidade de reconhecimento da insignificância da conduta, independentemente do valor da nota falsificada, tendo em vista que o delito afeta a fé pública, conforme o HC 112708 do Supremo Tribunal Federal. São todos casos da aplicação devida do princípio, que efetivamente levam à justiça social.

A proposta é então, determinar a correta incidência do princípio da Insignificância, para os casos em que for efetivamente necessária. Assim, para que não haja aplicação indevida da lei, favorecendo a impunidade neste tipo de delito, para verificação da relevância da conduta deve sempre ser levada em consideração a conduta no caso concreto, sendo relevantes suas circunstâncias, além das condições do agente, respeitando-se os pressupostos objetivos estipulados pelo Supremo Tribunal Federal em julgados recentes, possibilitando a análise da significância da conduta de acordo com todos os seus elementos, para que a aplicação da lei penal ocorra nos casos em que for realmente necessária.

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E, por fim, uma última solução seria aplicar aos crimes contra a Ordem Tributária, em sentido amplo, o entendimento aplicado aos crimes contra a Ordem Previdenciária, no qual reconhece-se o caráter supraindividual do bem jurídico tutelado, e por isso mesmo não há como se reconhecer que o valor não recolhido em face de conduta delituosa não cause uma lesão expressiva, com base no Direito Penal do Risco. Até porque os tributos, de maneira geral, e não só as contribuições previdenciárias, são voltados à própria população, e não há como não se reconhecer o interesse coletivo nestes casos.

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JUSTIÇA E JURISDIÇÃO COMOINSTRUMENTOS DA CIDADANIA

guStaVo hEnriquE tEixEira DE oliVEira45

FErnanDo guStaVo KnoErr46

INTRODUÇÃO

Embora passados 25 anos da promulgação da Constituição Federal, denota-se que vários dos direitos e garantias fundamentais nela previstos são desrespeitados de forma frequente. Por meio deste artigo pretendemos estudar e compreender a Justiça e a Jurisdição e seu poder na defesa e proteção dos direitos materiais previstos pela Constituição e pela legislação, traduzindo-se em verdadeiros instrumentos de exercício da cidadania e da democracia participativa.

Ivo Dantas explica que o papel jurisdicional “é um poder-dever ou um dever-direito de dizer a lei, aplicando-a ao caso concreto, e em sua perspectiva (dela, a lei), fazer Justiça”47. Hermes Zaneti Junior vai além ao afirmar que “o processo no contexto pós-positivista é uma abertura para a democracia, que também há de ser a finalidade do direito como um todo, já que no marco democrático que existe a possibilidade de um Estado de Direito Constitucional”.48

Para Aristóteles, a justiça é entendida com uma arete49 do espírito romano, ou seja, a justiça para Aristóteles nada mais é do que a própria realização da natureza racional humana. E nesse sentido diz ainda: “A justiça total consiste na observância da lei (νόμoς), no respeito àquilo que é legítimo e que vige para o bem de todos (қоινоνíα)”. 50

Podemos definir cidadania como o “status que qualifica o nacional para gozar direitos políticos ativos (votar) e passivos (ser votado), permitindo-lhe participar da vida do Estado”.51 Vale lembrar que os estrangeiros e apátridas não são cidadãos, ou seja, a nacionalidade é pressuposto para a concessão da

45 Procurador da Fazenda Nacional.46 Procurador Federal. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.47 DANTAS, Ivo. Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. p. 523.48 ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo Constitucional. p. 151.49 ‘αρετή (αreté): substantivo que designa a perfeição, a plena atualização de uma potência, sendo, normalmente, entendido como correspondente à virtude. (BITTAR, Eduardo C. B. A Justiça em Aristóteles. p. 153).50 BITTAR, Eduardo C. B. A Justiça em Aristóteles. pp. 88 e 89.51 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. p. 646.

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cidadania, somente os brasileiros natos e naturalizados é que podem sê-lo, uma vez que apenas o nacional é que pode votar e ser votado.

O ser humano, como ser grupal por natureza, possui vontades e valores, por isso, luta por eles, todavia, nem sempre os alcança espontaneamente, provocando dessa forma o surgimento dos conflitos de interesse. 52

“No entender de CARNELUTTI, os conflitos de interesse podem ser resolvidos pela violência, por uma solução ética, por uma solução econômica ou utilidade e por meio do direito, sendo que nesta última a solução é dada através do processo, que se ‘desenvuelve para la composición justa del litigio’”. 53

1 JUSTIÇA E JURISDIÇÃO

Desde que o Estado reclamou para si o privilégio exclusivo do uso da força (impedindo a autotutela privada), adotou o dever de garantir sempre uma prestação jurisdicional. Trata-se, portanto, do que chamamos de um direito fundamental à prestação jurisdicional efetiva.

Na visão de Daniel Francisco Mitidiero54.:

A jurisdicionalidade de um ato é aferida na medida em que é fruto de um sujeito estatal, dotado de império, investido em garantias funcionais que lhe outorguem imparcialidade e independência, cuja função é aplicar o direito (e não apenas a lei) de forma específica, dotado o seu provimento de irreversibilidade externa.

O sentido clássico do termo jurisdição é o de “dizer o Direito” baseando-se no ordenamento jurídico positivado, para criação de normas individuais aplicados aos casos concretos. Uma nova concepção da direito, instituída a partir da idéia de Estado Constitucional de Direito, aponta a jurisdição como construção de normas jurídicas na qual compreensão da legislação é realizada por meio da análise dos princípios constitucionais da justiça e dos direitos fundamentais.55

Assim, vislumbra-se que a função primordial da jurisdição, antes entendida apenas como criação de normas individuais, passa a ser entendida como a tutela de posições jurídicas protegidas pelo ordenamento sob a ótica das normas constitucionais. Essa é razão pela qual podemos falar na existência de um direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

52 DANTAS, Ivo. Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. p. 519.53 CARNELUTTI. Sistema de Derecho Procesal Civil. Vol. I. Ed. Uthea Argentina, 1944. p. 44 e s. in DANTAS, Ivo. Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. p. 519.54 MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol I. p. 51.55 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol. I. p. 136.

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A Constituição Federal inseriu em seu texto um conjunto de princípios orientadores do exercício da jurisdição, acolhendo-os como direitos e garantias de toda coletividade implantadas no processo, pela extensão dos valores envolvidos no modelo constitucional de solução de conflitos de interesse.

André Ramos Tavares explana que o princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário foi consagrado na Constituição de 1946, sendo a primeira Constituição a prever expressamente que “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. Ante o exposto, podemos dizer que este princípio é um dos pilares sobre o qual se eleva o Estado de Direito, uma vez que nada adiantaria a existência de posições jurídicas protegidas expressamente pela lei, mas que na prática fossem desrespeitadas, sem que houvesse qualquer órgão legitimado que desempenhasse o controle de sua observância.

Vale dizer que o princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário carece ser avaliado em conjunto com o princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional pelo Poder Judiciário. Esse princípio reza que o julgador investido pelo Estado não pode se abster de julgar, seja qual for o motivo alegado. Isto é, ainda que haja falta de norma, o magistrado deve apreciar o pedido e oferecer-lhe solução, utilizando-se dos procedimentos e técnicas idôneas à efetiva tutela do direito material. De tal modo sendo, não adiantaria declarar o princípio da legalidade, o princípio do amplo acesso ao Judiciário e, de outra parte, admitir ao magistrado quedar-se inerte em sua cátedra de proteção do Direito.56

Princípio da Universalidade da Jurisdição ou Inafastabilidade da Jurisdição, Pleno Acesso ou Ampla Proteção Judicial – trata-se de um dos pilares do Estado Democrático e Social de Direito, é a prevenção contra atos ilegítimos e a legislação arbitrária. Este princípio, em conjunto com os demais, representa os meios de garantir a cidadania e o próprio sistema legal, não apenas contra atos executivos de usurpação e tirania, como também contra legislação arbitrária. A Constituição Federal consagra este princípio em seu artigo 52, inciso XXXV.

O Princípio do Juiz Natural que busca assegurar que autor e réu, em qualquer jurisdição, não somente na jurisdição penal, na qual foi presumida, tenham garantido o direito ao Juiz e Tribunal instituídos conforme o regime e a estrutura constitucional do Poder Judiciário.

Este princípio, num primeiro momento, consiste em coibir a instituição de juízos de exceção, “ex posto facto”, isto é, instituídos posteriormente a eclosão do fato para dirimir e apreciar determinado litígio. Numa segunda visão, o princípio do juiz natural garante o direito a qualquer pessoa de ser processada e sentenciada unicamente por juiz constitucionalmente competente, considerando inexistente o ato, seja decisão interlocutória, seja sentença, cometido por juiz incompetente.

Também denominado princípio do juiz legal, este princípio é um desdobramento da regra de igualdade, ou seja, este princípio pode ser resumido

56 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. p. 639.

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na inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, seja para o processo, seja para o julgamento, vetando-se qualquer maneira de denominação de tribunais ou juízos em determinados casos. Em outras palavras, sempre que a competência resultar de preceito constitucional, a sua inobservância causará a violação do juiz natural.

Entretanto, não se considera inconstitucional o deslocamento da jurisdição, como o decorrente da especialização de Juízos e Tribunais, mesmo que posterior à propositura da ação. Assim, a mudança de competência, por iniciativa legal ou mesmo constitucional, não é inconstitucional, pois esta alteração tem por finalidade individualizar o julgamento de uma determinada ação ou pessoa. Este princípio encontra-se disposto no artigo 5º, XXXVII e LIII, da Constituição Federal.

O Princípio da Celeridade e Eficiência na Prestação Jurisdicional – Este princípio encontra-se consagrado no artigo 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. O constituinte derivado procurou assegurar ao cidadão o princípio da celeridade e da eficiência atribuindo como obrigação aos órgãos do Poder Judiciário e, desta forma, também, aos partícipes constitucionais do processo judicial, como advogados, procuradores e membros do Ministério Público. Em suma, esta norma garante ao legislador a adoção de mecanismos processuais de celeridade e eficiência processual, ajustando e simplificando ritos e procedimentos, até mesmo encurtando e eliminando recursos, para garantir a efetividade da tutela jurisdicional e a realização dos direitos materiais protegidos. Todavia, a adoção deste princípio deve ser feita de forma ponderada e razoável.

É importante dizer que, além destes princípios, existem os princípios característicos da jurisdição penal, que determinam, em função da matéria, uma abordagem própria, que tem como função basilar defender a liberdade individual, e ainda, desempenhar a persecução criminal com rigor, defendendo os interesses coletivos e sociais, no entanto, sempre respeitando o princípio do devido processo legal.

2 PÓS-POSITIVISMO E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE JUSTIÇA

O positivismo existente nos Estados Liberais, por meio do princípio da legalidade, pregava que a função jurisdicional estava limitada à aplicação de uma norma geral e abstrata vigente aos casos concretos, reduzindo o direito à lei. Essa corrente foi influenciada, principalmente após a queda dos regimes absolutistas, onde a classe liberal não admitia a existência de magistrados imparciais e independentes, impondo-lhes a obrigação de aplicar o direito exclusivamente dentro dos contornos previstos na lei. Numa época em que

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as relações jurídicas existentes eram muito mais simples, o positivismo e o princípio da legalidade estrita se adequavam perfeitamente, pois diminua o risco da imprevisibilidade das decisões judiciais.

Com advento da diversificação das relações jurídicas as leis não mais eram suficientes para regular todas as peculiaridades dos casos concretos. Somado a isso, a constitucionalização do direito impôs a subordinação das leis aos ditames da Constituição. Diante dessa realidade, o princípio da legalidade assumiu uma nova concepção, segundo o qual a lei deve ser interpretada a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais.

Nesse contexto, “a obrigação do jurista não é mais apenas relevar as palavras da lei, mas de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e dos direitos fundamentais. Alias, quando essa correção ou adequação não for possível, só lhe restará demonstrar a inconstitucionalidade da lei – ou, de forma figurativa, comparando-se a sua atividade com a de um fotógrafo, descartar a película por ser impossível encontrar uma imagem compatível”.57

É válido destacar que, no tocante à aplicação dos princípios, ao contrário do que acontece com as regras, as eventuais colisões ou contradições entre as normas principiológicas concorrentes não implica em revogação, uma vez que a técnica utilizada dever ser a ponderação e a relativização do seu peso. Assim, como verdadeiros mandatos de otimização, os princípios conferem ao magistrado a liberdade para a prestação da tutela jurisdicional mais efetiva conforme as circunstâncias dos casos concretos que lhe são apresentados. É claro que a aplicação dos princípios não dispensa a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais, na medida em que o julgador deve explicar as razões que o levaram a aplicar essa ou aquela norma, segundo as técnicas de ponderação.

Dessa forma, os princípios, apesar de menosprezados pelo positivismo do Estado Liberal em razão do temor de que sua aplicação geraria imprevisibilidade nas decisões judiciais, assumiu um papel fundamental no atual sistema das fontes do direito. Conforme os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, “o Estado contemporâneo, caracterizado pela força normativa da Constituição, obviamente não dispensa a conformação das regras aos princípios constitucionais e sabe que isso apenas pode ser feito com o auxílio da jurisdição”58.

No que diz respeito à questão da justiça, podemos conceituá-la como o valor de dar a cada um o que é seu, deliberando de forma ponderada interesses confrontados. Ulpiano define justiça como “a vontade constante e perpétua que atribui a cada um o que é seu”, justitia est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuens (I. 1, 1). Alterada apenas a última palavra, tribuendi (de

57 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol. I. p. 47.58 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol. I. p. 52.

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atribuir) para tribuens (o que atribui), contida no Digesto, 1, 1, 10”.59

Para Kelsen60, a idéia da justiça como qualidade essencial de Deus é um dos ensinamentos mais relevantes da religião cristã. No entendimento do filósofo, a justiça deve ser justiça absoluta ou seja, eterna e imutável, uma vez que Deus é o absoluto. Somente uma crença em que a sua divindade é considerada justa pode exercer papel na vida social. Confiar a justiça à religião para fazer a justiça aplicável às relações sociais alude determinada tendência para racionalizar algo que por sua própria natureza é irracional: o ser metafísico, a autoridade religiosa e suas características absolutas.

De forma abreviada, podemos conceituar justiça como uma vontade permanente de dar a cada um o que lhe cabe: o seu direito, não se satisfaz apenas com atos e aparências, tem algo de subjetivo.

3 PROTEÇÃO JUDICIAL EFETIVA

O exercício da cidadania, quando dependente da jurisdição, somente acontece quando ocorre a prestação efetiva da tutela jurisdicional para concretização do direito material, referente a uma situação juridicamente protegida. Isso significa que o Estado deve satisfazer da melhor maneira e da forma mais célere a pretensão daquele que se encontra em uma posição juridicamente protegida.

Corolário da proteção judicial efetiva, o princípio da celeridade, que ganhou status constitucional, encontra-se consagrado no artigo 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. É certo que “a duração indefinida ou ilimitada do processo judicial afeta não apenas e de forma direta a proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana, na medida que permite a transformação do ser humano em objeto de processos estatais”.61

Ademais, a edição de normas para regulação da função jurisdicional, bem como a criação de instituições para exercê-la, não garante, por si só, a efetividade da jurisdição. O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva deve contemplar mecanismos capazes de assegurar a realização da direito material relacionado a uma posição juridicamente protegida. Dessa forma, nem mesmo a ausência de norma processual vigente é óbice para a efetivação da prestação jurisdicional, pois o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

59 SÉLLOS DE BARROS, Aldano. Apontamentos de Direito Romano. p. 116.60 KELSEN, Hans. O que é justiça?:A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.p.27.61 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p.500

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incide sobre o Estado que deve providenciar instrumentos para o seu exercício.De todo modo, o direito à tutela jurisdicional remete, em um primeiro

momento, ao legislador para que crie normas direcionadas aos procedimentos para entrega efetiva da prestação jurisdicional. É claro que o legislador não será capaz de prever em normas abstratas todas as possíveis situações que ocorrem no caso concreto. Assim, é necessária a previsão de instrumentos procedimentais idôneos destinados aos magistrados, tais como as normas processuais abertas, que os permitam realizar efetivamente a jurisdição.

As normas processuais abertas viabilizam a realização da chamada “tutela específica” e garantem a efetividade da prestação jurisdicional não obstante a existência das especificidades do caso concreto. Especificamente no ordenamento processual brasileiro podemos citar os artigos 461 e 461-A do CPC que prevêem a possibilidade de concessão de tutelas específicas para o cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer e para entrega de coisa, respectivamente. Além disso, o parágrafo quinto do primeiro artigo mencionado estabelece um rol meramente exemplificativo das medidas necessárias à efetivação da tutela específica ou do resultado prático equivalente.

Isso não quer dizer que o magistrado possa se utilizar as medidas para efetivação da prestação jurisdicional de forma arbitrária, pois o controle desses atos deve ser realizado a partir das normas e princípios constitucionais, sobre tudo dos princípios constitucionais da justiça e dos direitos fundamentais. Nas palavras do ilustre Luiz Guilherme Marinoni62:

A ampliação do poder de execução do juiz, ocorrida para dar maior efetividade à tutela dos direitos, possui, como contrapartida, a necessidade de que o controle da sua atividade seja feito a partir da compreensão do significado das tutelas no plano material, das regras do meio idôneo e da menor restrição e mediante o seu indispensável complemento, a justificação judicial.

Vale ressaltar ainda o papel da jurisprudência, no qual as decisões jurídicas anteriores exercem continuamente uma função importante na decisão relativa a um litígio perante um tribunal. O fato de disputa de caráter análogo precedente se tenha indicado uma determinada regra como fundamento da decisão, estabelece um forte motivo para que o juiz se baseie a decisão na mesma regra. Além de tal método economizar tempo, dificuldades e responsabilidades ao juiz, esse motivo está fortemente vinculado à idéia de justiça formal, justiça essa que parece ter sido um item fundamental da administração de justiça em todos os tempos: a obrigatoriedade de que todos os casos idênticos sejam tratados similarmente, ou

62 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol. I. p. 123.

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de que cada decisão concreta seja fundamentada numa regra geral.63

O importante é que “ao se dizer que a jurisdição tem o dever de tutelar os direitos, deseja-se igualmente pôr às claras que ela tem o dever de viabilizar as tutelas prometidas pelo direito material e pela Constituição. Em termos concretos, o que se deseja evitar é que a inidoneidade técnica do processo ou a falta de compreensão constitucional do juiz impeçam a efetiva proteção das diferentes necessidades do direito material – como por exemplo a tutela preventiva (a tutela inibitória) de um direito da personalidade”.64

63 ROSS, Alf. Direito e Justiça. p. 111.64 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol. I. pp. 141/142.

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A INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS

algacir miKaloVSKi65

Fábio anDré guaragni66

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O mercado de capitais no Brasil; 3. Metodologia da Investi-gação Criminal; 4. A persecução dos crimes contra o mercado de Capitais; 5. Conclusões; 6. Referências.

RESUMO

Hodiernamente, o Estado vem enfrentando desafios que são fruto, em grade medida, de uma sociedade pós-industrial e marcada pelos reflexos do risco globalizado, com impactos marcantes para todos os setores sociais, com destaque para a economia. Nesse quadro, o direito penal não poderia deixar de ter papel protagonista na tentativa de equacionar as situações turbulentas e proporcionar ambiente para melhores panoramas, mormente sob o manto legitimador da proteção. Entretanto, como instrumento de prevenção, repressão e contenção, pari passu com o movimento de expansão do direito penal, localizam-se frentes em prol do direito criminal mínimo, com preponderância para o garantismo extremado. Nesse conturbado quadro tabularam-se modificações na seara penal e processual penal visando à adequação as novas realidades por meio de um movimento em prol da eficiência e da efetividade, com destaque as novas tipificações com perfis mais contemporâneos à tecnologia típica da pós-modernidade, dentre as quais, inclusive, as que ganharam destaque em meio a normas que modificaram diametralmente nossa legislação processual penal e nosso regimento afeto ao mercado de capitais, referindo-se predominantemente ao cunho protetivo da poupança e da economia popular. Nessa senda, este trabalho enquadra-se como um instrumento a ser utilizado pelos operadores do mercado, sob uma ótica majoritariamente protetora da malha econômica.

65 Algacir MIkalovski é Delegado da Polícia Federal e trabalha em Curitiba/PR. Especialista em Ciências Criminais e Segurança Pública. Consultor em Segurança Pública. Autor de livros e artigos. Professor de pós-graduação. Criador, fundador e Coordenador-geral do NPSPP – Núcleo de Pesquisa em Segurança Pública e Privada. Mestrando no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA.66 O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR). É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. É Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG. Atuou neste texto como orientador.

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Palavras-chave: investigação, crimes, mercado, capitais e Brasil.

ABSTRACT

Our times, the state is facing challenges which are fruits, grid extent, a post-industrial society, marked by the effects of the global risk with impacts striking for all social sectors, especially the economy. In this context, the criminal law could not fail to take lead role in trying to balance the turbulent situations and provide the best environment for panoramas, especially under the cloak of legitimizing protection. However, as a means of prevention, deterrence and containment, pari passu with the movement of expansion of criminal law, are located fronts on behalf of criminal law at least, with a preponderance for guaranteeism extreme. In this troubled context tabulated to changes in harvest criminal and criminal procedural law aiming at adapting to new realities by means of a movement in favor of efficiency and effectiveness, highlighting the new typifications with more contemporary technology profiles typical of postmodernity, among which even those who gained prominence in the midst of norms that changed diametrically our criminal procedure law and our bylaws affect the capital market, referring mainly to the protective nature of savings and the local economy. In this vein, this paper classifies itself as an instrument to be used by market participants, under a protective mesh optical largely economic.

Keywords: research, crimes, market, capital and Brazil.

1 INTRODUÇÃO

Indiscutível que o Estado necessita de uma estrutura fortalecida e dotada de meios eficientes de vigilância para cumprimento da sua finalidade precípua da forma mais adequada possível, com vistas à resposta para as demandas constitucionais e expectativas sociais.

Nesse panorama, a economia exerce um papel notório, mormente porque a estabilidade social depende sobremaneira da forma como as pessoas se sentem com relação a sua reserva financeira e sua satisfação como consumidor, em especial ao pleitear o acesso aos produtos e serviços que necessita para viver com dignidade, sentindo-se, portanto, feliz ou infeliz.

Entretanto, a equação visando ao equilibro entre economia/consumo não é tarefa fácil, mesmo porque este instrumento artificial de controle estatal deve merecer atenção constante pelos sistemas de controle estatais.

Assim, uma das tendências mundiais crescentes na seara econômica tem como foco principal a criação e aperfeiçoamento de mecanismos de segurança do complexo financeiro, surgindo no âmbito interno dos Estados demandas

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por fiscalização mais eficiente e um sistema que tenha a confiança de todos, independentemente da camada social a que pertence.

Nesse contexto, com o fim de reduzir a fragilidade negocial e, ao mesmo tempo, servir de parâmetro condutor no momento em que se adere ao mercado, entra em cena a confiança ou a desconfiança dos investidores e da sociedade em geral, na proporção da clareza das regras do jogo e das eventuais apurações e punições no caso de descumprimento dos mandamentos legais e éticos.

2 O MERCADO DE CAPITAIS NO BRASIL

Com efeito, para melhor compreensão do momento em que nos encontramos, importante analisar o panorama histórico do mercado de capitais no Brasil, dimensionando, assim, a atual situação na busca da sedimentação da ideia de proteção, transparência e segurança.

Anteriormente à década de 60, no Brasil, o investimento limitava-se a compra e venda de ativos reais (imóveis), ao passo que a aplicação em títulos públicos ou privados não fazia parte do cotidiano brasileiro.

Ne verdade, vivia-se um clima de extrema insegurança em razão da crescente inflação que mais arduamente começou a afetar o Brasil a partir do final da década de 1950.

A patir disso, com base na proibição da chamada usura, a legislação brasileira limitava em 12% ao ano a taxa máxima de juros, o que, via de consequência, também limitava o desenvolvimento de um mercado de capitais ativo.

Entretando, esta situação começa a modificar-se por ocasião do Golpe Militar de 1964 por meio de um programa de grandes reformas na economia nacional, com destaque para a reestruturação do mercado financeiro e criação de novas leis com um tom mais protetivo.

Dentre essa malha legislativa, destaca-se a Lei nº 4.537/64, que instituiu a correção monetária, através da criação das ORTN (obrigações reajustáveis do Tesouro Nacional), a Lei nº 4.595/64, o que denominou “lei da reforma bancária” e que reformulou todo o sistema nacional de intermediação financeira, inclusive, com a criação do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central.

Nessa mesma época foi editada a Lei nº 4.728/65, sendo a primeira norma que disciplinou o mercado de capitais, estabelecendo medidas para seu desenvolvimento.

Deste modo, resultaram alterações cruciais no mercado acionário, tais como: a reformulação da legislação sobre Bolsa de Valores, a transformação dos corretores de fundos públicos em sociedades corretoras, forçando a sua profissionalização, e a criação dos bancos de investimento, a quem foi atribuída a principal tarefa de desenvolver a indústria de fundos de investimento.

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Pois bem, com a finalidade específica de regulamentar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários, as bolsas de valores, os intermediários financeiros e as companhias de capital aberto (funções hoje exercidas pela CVM), foi criada a Diretoria de Mercado de Capitais, no Banco Central.

Nesse compasso, introduziram-se alguns incentivos para a aplicação no mercado acionário, dentre as quais os “Fundos 157”, criados pelo Decreto Lei nº 157, de 10.02.1967.

Os “Fundos 157” significavam uma opção dada aos contribuintes, por ocasião da declaração do imposto de renda, de utilizar parte do imposto devido em aquisição de quotas de fundos de ações de companhias abertas administrados por instituições financeiras de livre escolha do aplicador.

Assim, contando com o grande volume de recursos carreados para o mercado de acionário, principalmente em decorrência dos incentivos fiscais criados pelo Governo Federal, formou-se um rápido e pujante crescimento da demanda por ações pelos investidores.

Por outro lado, não ocorreu significativo aumento de novas emissões de ações pelas empresas, gerando, por conseguinte, o chamado “boom” da Bolsa do Rio de Janeiro quando, entre dezembro de 1970 e julho de 1971, com forte onda especulativa e subida das cotações das ações.

Depois de atingir o seu ponto máximo em julho de 1971, como era de se esperar, iniciou-se um processo de realização de lucros pelos investidores com a venda de suas posições, com agravação progressiva até que ocorreram novas emissões e consequente aumento da oferta de ações, em uma fase em que muitos investidores, já “espertos” com a altivez do movimento de baixa, tencionavam vender seus títulos.

Entrementes, o movimento especulativo chamado de “boom de 1971”, em que pese ter tido curta duração, teve consequências que significaram vários anos de depressão no mercado, ao passo que algumas ofertas de ações de companhias menores ocorridas no período, significaram grandes prejuízos e macularam sobremaneira a reputação do mercado acionário brasileiro.

De outra sorte, percebeu-se, a partir de 1975, uma determinada recuperação das cotações, devido a novos aportes de recursos mais expressivamente e face as reservas técnicas das seguradoras, dos recursos do Fundo PIS/PASEP, dos adicionais do “Fundo 157” e da criação das Sociedades de Investimento (Decreto Lei nº 140, criado com fim de captar recursos externos e aplicar no mercado de ações), além de maiores investimentos por parte dos fundos de pensão.

E assim, com o passar dos anos, outros incentivos foram criados com vistas ao incentivo do crescimento do mercado, com destaque para: a isenção fiscal dos ganhos obtidos em bolsa de valores, a possibilidade de abatimento no imposto de renda de parte dos valores aplicados na subscrição pública de ações decorrentes de aumentos de capital e programas de financiamento a juros

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subsidiados efetuados pelo BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social aos subscritores de ações distribuídas publicamente.

Nesse panorama, em face da tentativa de recuperação do mercado acionário, em 1976, foram introduzidas duas novas normas legais ainda em vigor: a Lei nº 6.404/7667 e a Lei nº 6.385/7668.

Todavia, apesar de tais incrementos, o mercado de capitais não cresceu o esperado, mesmo considerando que, em alguns momentos, ocorreu um aumento na quantidade de companhias abrindo seu capital e um volume razoável de recursos captados pelas empresas por meio de ofertas públicas de ações tenha ocorrido durante a década de 1980.

Nessa mão, em que pese a experiência positiva representada pelo Decreto-Lei nº 1.401/76, o processo de internacionalização do mercado chegou ao Brasil no final da década de 1980, tendo como marco inicial a edição da Resolução do CMN nº 1.289/87.

A partir de meados da década de 1990, em um contexto marcado pela aceleração do movimento de abertura da economia brasileira e aumento do volume de investidores estrangeiros atuando no mercado de capitais brasileiro, algumas empresas brasileiras começaram a acessar o mercado externo através da listagem de suas ações em bolsas de valores estrangeiras, principalmente a New York Stock Exchange, sob a forma de ADR’-s - American Depositary Reciepts com o objetivo de se capitalizar por meio do lançamento de valores mobiliários no exterior.

Na busca de know how, ao listar suas ações nas bolsas americanas, as companhias abertas brasileiras foram obrigadas a seguir diversas regras impostas pela SEC (Securities and Exchange Commission), órgão regulador do mercado de capitais norte-americano, relacionadas a aspectos contábeis, de transparência e divulgação de informações, os chamados “princípios de governança corporativa”.

Desde então as empresas brasileiras tiveram contato com acionistas mais exigentes e sofisticados, acostumados a investir em mercados com práticas de governança corporativa mais avançadas que as aplicadas no mercado brasileiro. E mais, ao número crescente de investidores estrangeiros soma-se uma maior participação de investidores institucionais brasileiros de grande porte e mais conscientes de seus direitos.

Em outro sentido, com o decorrer do tempo, o mercado de capitais brasileiro começou a perder espaço para outros mercados em face da falta de

67 Nova Lei das Sociedades Anônimas que tinha por escopo modernizar as regras que regiam as sociedades anônimas, até então reguladas por um antigo Decreto-Lei de 1940.68 Segunda Lei do Mercado de Capitais que, entre outras inovações, criou a CVM e introduziu no mercado uma instituição governamental destinada exclusivamente a regulamentar e desenvolver o mercado de capitais, fiscalizar as Bolsa de Valores e as companhias abertas.

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proteção ao acionista minoritário e das incertezas em relação às aplicações financeiras, tudo somado a falta de transparência na gestão e a ausência de instrumentos adequados de supervisão das companhias, com prejudicial influência na percepção de risco, gerando, consequentemente, aumento do custo de capital das empresas.

Nesse contexo, vislumbraram-se algumas iniciativas institucionais e governamentais nos últimos anos com o objetivo de revitalizar o mercado brasileiro de capitais, visando ao aperfeiçoamento da sua regulamentação, assegurando-se maior proteção ao investidor e à melhoria das práticas de governança das empresas brasileiras, com destaque para a criação do Novo Mercado e dos Níveis 1 e 2 de Governança Corporativa pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa).

Nesse passo histórico em busca da melhoria do sistema brasileiro, a Lei 6.404/76 passou por uma reforma significativa em 2001, empreendida pela Lei 10.303, de 31 de outubro, com relação direta a temas fundamentais do direito societário, em especial no que diz respeito às companhias abertas, tendo, como um dos principais objetivos, o fortalecimento dos direitos das minorias acionárias.

Relembre-se que, já no final dos anos 90 notava-se evidente a crise de grandes proporções pela qual passava o mercado de ações no país, mesmo porque, e.g., o número de companhias listadas na Bovespa tinha caído de 550 em 1996 para 440 em 2001. Com relação ao volume negociado, chegou-se as seguintes cifras: após atingir US$ 191 bilhões em 1997, pairava em US$ 101 bilhões em 2000 e US$ 65 bilhões em 2001. E mais, muitas companhias fechavam o capital e poucas abriam.

Com esse panorama a Bovespa criou o chamado “Novo Mercado”, com traços de um segmento especial de listagem de ações de companhias que se comprometam voluntariamente a adotar as boas práticas de governança corporativa e contando com maior proteção aos acionistas minoritários.

Deste modo, a valorização e a liquidez das ações negociadas no mercado influiram positivamente junto a imagem da bolsa de valores brasileira em face do grau de segurança que os direitos adicionais concedidos aos acionistas poderiam oferecer e pela qualidade das informações prestadas ao mercado pelas empresas.

Pois bem, a evolução do mercado de capitais no Brasil, tendo como suporte uma base fortalecida em termos de segurança jurídica e econômica, aponta para um quadro de imenso otimismo com o bombardeio ininterrupto de boas nótícias com ênfase no crescimento econômico, diminuição da desigualdade social e elevação do patamar do Brasil no cenário mundial: somos a “bola da vez”!

Porém, mesmo contando com um quadro de otimismo e de confiança em dias melhores, deve o Estado continuar aperfeiçoando seus instrumentos de regulação, controle, prevenção e punição aos desvios que possam causar

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riscos e/ou danos particulares, coletivos ou difusos, mormente na ordem econômica, um dos pilares de instabilidade social.

3 METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A investigação criminal no Brasil em que pese ter sua tradição fulcrada preponderantemente nas experiências das instituições policiais que ao longo do tempo deram origem ao atual e indesejável quadro de atraso e certa ineficiência vem atravessando uma fase de transformações e, com isso, pressionando a mudança comportamental em busca de um desejável estado de eficiência e efetividade.

Importante que se destaque que vivemos um quadro de estagnação de um sistema de persecução criminal que passou a ser movido em prol da sua própria existência, sendo um fim em si mesmo e servindo prioritariamente aos interesses dos próprios servidores, mormente a clara evidência sobre o descontentamento da população que não visualiza perspectivas que motivem nem ao menos o mero registro que serve de base para a leitura da situação no campo da segurança pública, na medida em que, e. g., o próprio boletim de ocorrência serve, segundo crença popular, muito mais para se buscar precauções ou direitos em outras searas, afora a criminal, do que para se ver localizado e punido o autor do injusto, alimentando-se assim a cifra negra da violência, uma das principais causas em desfavor do tratamento da segurança pública como ciência.

Era preciso reestruturar o sistema tendo como vetor principal a investigação criminal mais eficiente, solidificando-a por meio da melhoria dos suportes humanos, logísticos e ideológicos a serviço da atividade fim.

A investigação criminal, analisada sob o espectro da ciência ou como resultado puramente da práxis encontra sua gênese em uma realidade humana extremamente complexa, pois já nasce impactada frontalmente pelas vontades humanas, impulsos, interesses, conveniências e regras de diversas naturezas as quais estamos submetidos.

Talvez isso explique o porquê do trabalho investigativo ser tão difícil, o que determina que o ângulo do investigador seja tão amplo que contemple perspectivas de observação e análise focadas na questão do fato social, na necessidade de agir em prol da defesa social (utilizando-se para tanto do aparato do Estado) e na ciência, devido sobremaneira à necessária sistematização teórico-científico. Neste ponto, apropriando-me de algumas das influentes frases de René Descartes, seria bom lembrar que “muitas vezes as coisas que me pareceram verdadeiras quando comecei a concebê-las tornaram-se falsas quando quis colocá-las sobre o papel”. Assim, ao se iniciar o trabalho tendo como objeto a investigação criminal é fundamental ter como premissa fundamental que os fatores humanos podem tentar influenciar

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o resultado tendo em vista que os interesses que permeiam a sociedade são, por vezes, egoísticos e tendenciosos, não visando, portanto, ao bem comum e à manutenção da ordem pública.

Nesta senda, a melhor maneira de combater as indesejáveis influências dos fatores sociais e que tendem a desvirtuar o processo de busca do resultado necessário é a utilização da epistemologia da investigação criminal na busca de sua definição, classificação, objeto e método, no sentido de isolar cientificamente o seu objeto focado (referencial metodológico).

Nesse vetor, ao considerar que a investigação deve sempre ter como fundamento a praticidade, a eficiência e a efetividade, devemos alertar que não há monopólio investigativo por parte do Estado, mesmo porque até as empresas costumam utilizar de meios investigativos para subsidiar as decisões, mormente as estratégicas.

Entretanto, tendo por base o objeto do presente estudo e focando na investigação levada a efeito pelo Estado, enquanto ente organizado e estruturado para provimento do interesse público, importante destacar que há investigações que são desenvolvidas no bojo de apurações administrativas e outras voltadas para a apuração de condutas criminosas.

Entrementes, apesar da divisão procedimental, ontológica, estrutural e focal, ocorre, não raras vezes, o entrelaçamento das apurações administrativa e criminal.

Com a modernidade e com a dificuldade do aparato persecutório tradicional que tem como foco a criminalidade individual, a estrutura de polícia judiciária iniciou uma incessante busca por alternativas para dar resposta ao aumento da criminalidade, porém, sem se desvencilhar das diretrizes constitucionais correspondentes à preservação dos direitos e garantias fundamentais.

Nessa busca pela absorção de novos procedimentos que pudessem mudar a situação de ineficiência do aparato persecutório em face da “nova criminalidade”, buscou-se a conjugação de esforços entre o aparato criminal e os órgãos atuantes em outras searas do aparato público.

Com isso, mudou-se radicalmente o modo de investigar com a adoção de novas medidas que acabaram extrapolando as limitações do sistema criminal e avançando em prol da seara administrativa.

Assim, mesmo antes da instauração de uma investigação, a própria Polícia, o Ministério Público e o Judiciário têm se utilizado de expedientes solicitados ou espontaneamente remetidos pelos órgãos competentes, a depender do objeto da apuração.

Essa tendência também se deve à necessidade de se combater de uma forma eficiente a criminalidade moderna, resultado dos impactos da modernidade, no sentido de devolver a perdida sensação de segurança da sociedade e retomar a legitimidade por parte do Estado como mantenedor da ordem conformadora da paz social.

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Nessa linha, sob o espectro da busca da celeridade, efetividade e da eficiência administrativa, parte das investigações já tem se iniciado instruída por cópias de processos ou procedimentos administrativos, a exemplo dos crimes tributários e lesivos ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), configurando o que hodiernamente chamamos de prova pré-constituída.

Entretanto, na seara da investigação criminal, importante limitar seu objeto por meio da sua conceituação. Para tanto, é possível conceituar a investigação criminal como conjunto de atos majoritariamente administrativos executados antecipadamente e destinados à apuração das infrações penais, a respectiva autoria e as circunstâncias que orbitam em torno do fato apurado, formalizando-se os procedimentos no bojo de um procedimento denominado inquérito policial.

Mesmo considerando que não há monopolização, em razão da estrutura, da tradição e do know how, a polícia judiciária é o ente estatal que possui as melhores condições para proceder à investigação criminal por meio de um trabalho desempenhado pelos agentes, investigadores, peritos, escrivães e coordenado pelo delegado de polícia.

Por esta razão, deve-se focar majoritariamente na formação qualificada e aperfeiçoamento constante do delegado de polícia, dos investigadores e dos demais integrantes do sistema de polícia judiciária, tudo aliado à disponibilização das melhores condições de trabalho, proporcionando o crescimento proveniente da prática profissional por meio da utilização de uma base acadêmica e científica.

4 A PERSECUÇÃO CRIMINAL DOS CRIMES CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS

Como se vem frisando, o Estado deve possuir uma economia estruturada por meio de um sistema financeiro regulado de maneira transparente, proporcionado uma alternativa segura para o destino da economia dos cidadãos.69

Como é cediço, para atingimento de trais desideratos, é necessário que sejam criados e aperfeiçoados mecanismos de segurança e transparência do sistema financeiro, mesmo porque se trata de uma exigência internacional e condição sine qua non para que o País consiga integrar de forma consistente a ciranda mundial.

Por outro lado, sabe-se que os primados clássicos do Direito Penal vêm sendo constante e hodiernamente discutidos com forte clamor pela mudança, na medida em que o modelo de direito penal liberal, prudente e dotado de um arsenal de meios limitadores de sua atuação mostra-se incapaz de atender às atuais e crescentes demandas preventivas.

Assim, tendo em vista as mudanças sociais em face dos novos riscos da sociedade pós-industrial, há uma clara proposta de extensão da intervenção

69 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional & Contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 333.

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estatal sancionatória, de modo a utilizá-la como meio para evitar o maior número possível de resultados indesejáveis.

Para Beck, o potencial destrutivo destes riscos possui uma dimensão inédita, na medida em que é maior do que dos perigos que sempre existiram e que chega até mesmo a ameaçar as condições de vida humana em nosso planeta. Tais danos não respeitam qualquer fronteira nacional, são irreversíveis e de difícil previsibilidade e frente aos quais os métodos conhecidos de prevenção são impotentes. De outra sorte, as complexas relações sociais e a forma como elas se organizam tornam difíceis as responsabilizações pelos danos causados, mormente em fase de caráter difuso. Isso se deve ao fato de que as relações de nexos causais são pouco claras ou desconhecidas e decorrem de grupos de pessoas integradas por meio de sistemas de divisão do trabalho. O que leva a consideração de uma irresponsabilidade organizada como característica deste modelo social.70

Nessa linha, para a Professora MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADO71, é imperioso afirmar que, os deslocamentos mais significativos dão-se em função da ampliação da proteção penal aos bens jurídicos supra-individuais, da antecipação da tutela penal e da flexibilização das regras de causalidade e de imputação de responsabilidades inclusive no sentido de abolir os imperativos da individualização.

De outra senda, é importante que entendamos que os desenvolvimentos do direito penal ainda mantêm uma vigorosa tensão com a concepção pragmática do modelo penal forjado no Estado liberal burguês, denominado direito penal clássico ou direito penal mínimo, que engloba a proposta pautada pela vocação garantista e restritiva da intervenção mínima, nos limites da intervenção subsidiária e de ultima ratio. Assim, prevê a atuação do Estado para a proteção de bens jurídicos individuais e fragmentários contra os mais graves ataques, para os quais a resposta dada pelos demais ramos de ordenamento jurídico apresenta-se insuficiente.

Deste modo, o sistema penal encontra-se em choque, pois há um movimento de expansão do direito penal sobre os novos setores sensíveis aos riscos e de manipulação de certas estruturas de incriminação que atuam voltadas à flexibilização de critérios autorizadores da intervenção penal e à prevenção.

70 BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Tradução de Jesus Alborés Rey. Madrid: Editora Siglo Veintiuno, 2002. Cf. também: BUERGO, Blanca Mendoza. El Derecho Penal en la Sociedae Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 24-34; MACHADO, MARTA Rodrigues de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p 29-90. In Câmara, Luiz Antonio [Coord.]. Crimes Contra a Ordem Econômica e Tutela de Direitos Fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 59.71 Ob. cit.

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Para Silva Sánches72, trata-se do Direito Penal da globalização econômica e da integração supranacional crescentemente unificado, porém, na mesma proporção, menos garantista “no qual se flexibilizarão as regras de imputação e se relativizarão as garantias político-criminais, substantivas e processuais”. Nesse sentido, complementa o autor:

“Nesse ponto, destarte, o Direito Penal da globalização não fará mais a acentuar a tendência que já se percebe nas legislações nacionais, de modo especial nas últimas leis em matéria de luta contra a criminalidade econômica, a criminalidade organizada e a corrupção.”

A resposta para o surgimento de problemas ainda incompreendidos pela nossa sociedade em face principalmente da impossibilidade de dimensioná-los e contê-los, v.g., a crise financeira mundial, talvez esteja justamente no entendimento de que houve um superdesenvolvimento da modernidade industrial, o que acabou acarretando efeitos e ameaças constantes e de dimensões não previsíveis.

Ainda segundo a Professora MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADO, inclusive, com base em um conceito mais amplo, pode-se afirmar que as crises econômicas mundiais modernas são consequências do processo de modernização: a liberação dos riscos da produção industrial, que emergiram como efeitos colaterais indesejados e que assumiram dimensão global; reconhecimento social desses riscos, que passam a ser culturalmente percebidos, construídos, midiatizados e transpostos à agenda político-ambiental global.

Assim, o poderio econômico com capacidade destrutiva das megatecnologias traz imensas dificuldades às ideias de ordem e controle a partir de estratégias estatais de atuação.

Em outro vetor, a busca pela ordem e pelo controle deve ser um dos objetos constantes do Estado, mormente para oferecer um campo fértil para as negociações e criação de regras do sistema financeiro na busca da igualdade de oportunidades do mercado aos investidores, gerando a atração de capital interno e externo e tendo como consequência a redução da desigualdade entre os participantes da negociação.

Pois bem, partindo de uma premissa básica, o mercado financeiro deve possuir uma estruturação capaz de assegurar oportunidades justas, claras e seguras de ganhos ou perdas do capital investido, especialmente por meio de um complexo normativo apto a fornecer aos investidores posições equânimes no momento de realizar uma operação financeira. Essa posição garante que os riscos provenientes do ganho ou perda do capital investido sejam igualmente compartilhados por todos os integrantes da ciranda.

72 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 97 e 98.

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De outra mão, a popularização e consequente aumento no número de pessoas que ingressaram no mercado de capitais trazem a lume questões alusivas à necessidade de evitar especialmente manipulações.

Nesse ponto, remonta à memória o caso “Enron”, quando a manipulação do mercado produziu prejuízos quase incalculáveis suportados por quase toda a comunidade financeira internacional (Breda, 2011).

No caso brasileiro, a manipulação do mercado de capitais começa a adquirir fulcral importância no sistema penal já no ano de 1832, quando, por meio da Lei 3.150, e no Código Penal de 1890, mais precisamente no artigo 340, que penalizava a irregular conduta no trato com ações por parte dos administradores, gerentes ou fiscais de sociedades anônimas73.

Renovou-se a preocupação por ocasião da promulgação do Decreto-Lei nº 669, de 1938, quando, por ocasião da definição dos crimes contra a economia popular, sua guarda e seu emprego, o tipo penal de manipulação do mercado de ações foi previsto no artigo 2º, deste diploma legal74.

Já em 1940, a Lei de Sociedade por ações (artigo 168) voltou a tratar da matéria75. No mesmo ano de 194, o Código Penal vigente previa a manipulação do

mercado no artigo 17776.No ano de 1951, por meio da Lei 1.521, foi promulgada a Lei dos Crimes

contra a Economia Popular repetindo a previsão insculpida no CP77, entretanto, no Brasil, não há registros de aplicabilidade de tal dispositivo, em face da sutileza com que são perpetradas as condutas com tal finalidade (Breda, 2011).

Entrementes, o panorama mudou na medida em que as grandes fraudes corporativas começaram a chamar a atenção e a exigir que os órgãos responsáveis pela regulação, fiscalização, controle e punição adotassem medidas mais enérgicas e efetivas em prol do combate especialmente à manipulação dos mercados, mormente em razão da potencialidade lesiva dos resultados e dos riscos, fazendo com que houvesse árduo estudo e debate com o fim de se definir se a legislação serviria ou não como instrumento de combate e intimidação, chegando-se à conclusão de que o sistema normativo tinha que ser aperfeiçoado.

Isto posto, em 1986, por meio da lei 7.492, regulamentou-se de modo geral o sistema financeiro nacional, com a consequente tipificação das hipóteses de fraude ou simulação no mercado de capitais, porém, deixou-se de criar a modalidade criminosa manipulação.

De outra sorte, essa legislação estabeleceu os tipos penais de tutela de todo o sistema financeiro nacional, disciplinado penalmente os mercados financeiros, de capital e câmbio.

73 Código Penal de 1890, mais precisamente no artigo 34074 Decreto-Lei nº 669, de 1938, artigo 2º75 Lei de Sociedade por ações (artigo 168)76 o Código Penal vigente previa a manipulação do mercado no artigo 17777 ano de 1951, por meio da Lei 1.521

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Porém, de modo saneador, a Lei 10.303/2001 passou a tutelar especificamente a proteção ao mercado de capitais por meio da criação dos tipos penais previstos nos artigos 27, “C”, “D” e “F”, entretanto, sem revogação de qualquer dispositivo da Lei 7.492/1986.

Em verdade, a Lei 6.385/76 passou a vigorar com nova redação, sendo que qualquer fraude ou falsidade no âmbito do mercado de capitais deve obedecer à regulação prevista a partir da Lei 10.303/2001, na medida em que, explique-se, a Lei 7.492/86 não trata unicamente do mercado de capitais (BREDA, 2011).

A modalidade manipulação do mercado de capitais é tratada no ordenamento comparado como market abuse, com a previsão em extensão mundial nos termos aproximados do que estabelece o artigo 27-C.

De outra senda, a doutrina penal brasileira vem trabalhando fortemente na desmistificação do tipo criado pela lei 10.303/2011, pois, as interpretações tendem a considerá-la complexa ao passo que são exigidas, além do dolo, três especiais fins de agir, sendo dois concomitantes o que, segundo parte dos doutrinadores, não se explica, pois, embora o tipo subjetivo possua um dolo de resultado, o crime se coaduna independente da superveniência de qualquer evento.

Vistos estes primados estruturantes, passaremos a estudar os elementos que compõem as tipificações que servem de instrumentos de proteção do direito penal em favor do mercado de capitais: manipulação do mercado de capitais, uso indevido de informação privilegiava e exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função.

4.1 MANIPULAÇÃO DO MERCADO DE CAPITAIS

Art. 27-C. Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas, com a finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros, no mercado de balcão ou no mercado de balcão organizado, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

Segundo Breda (Breda 2011, p. 338), a norma visa, primordialmente, à transparência, regularidade na formação dos preços dos valores mobiliários e igualdade de oportunidades iguais para o ingresso e atuação no mercado e, citando Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, revela que o bem jurídico genericamente protegido com este dispositivo legal é a estabilidade do mercado de capitais, tentando proteger o processo de formação de preços dos valores mobiliários no mercado, evitando uma artificiosa alteração, posto que sua formulação deve ser proveniente do livre jogo da oferta e da procura, com límpida disponibilização de todas as informações sobre os ativos e sobre as companhias emissoras.

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Com essa proteção, a norma visa proteger, além dos investidores e dos aplicadores de pequenas poupanças, toda a economia nacional, com a manutenção de sua integridade com manutenção da confiança do mercado, evitando-se, em um sentido amplo, a prática de operações consideradas simuladas ou provenientes de manobras fraudulentas.

De outra maneira, importante destacar que há diferença na norma inserida pela Lei nº 10.303/2011 e a tipificação insculpida na Lei 7.492/86, na medida em que, neste dispositivo, a tutela era mais genérica e no artigo 27-C há mais especialização dos interesses tutelados.

Importante destaque merece o fato de que o crime de manipulação do mercado de capitais é um crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa, não se exigindo qualquer qualidade especial do sujeito ativo.

Referentemente à proteção exercida sobre o mercado financeiro, é preciso que se diga que, no campo do direito penal econômico, há uma tendência de criação de delitos de perigo abstrato, com a criminalização de condutas independentemente da lesão ou perigo que eventualmente ela possa produzir. Nesse sentido, explica a Professora Marta Rodriguez de Assis Machado que essa tendência tem aproximado o direito penal do direito administrativo, senão vejamos:

Na prática, o que se dá é uma certa aproximação de algumas áreas do direito penal com a estrutura e a finalidade do direito administrativo. Nestas hipóteses, deixa de ser prioritária ao direito penal a proteção direta a bens concretos, em casos concretos. Segundo a danosidade do ato e os padrões individuais de imputação, para, a exemplo da regulamentação administrativa, ordenar, de modo geral, campos de atividades e reforçar, mediante sanções, um determinado modelo de gestão setorial. Isso tudo sem seguir os critérios de lesividade concreta, ma segundo os padrões de oportunidade, diante de uma contemplação geral e estatística de um gênero de condutas (Machado, 2005).

Sobre as condições capazes de alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários, segundo o Advogado Juliano Breda (Breda, 2011), em atenção à análise das normas administrativas, explica que a primeira situação a ser analisada é a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, caracterizadas como aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocarem direta ou indiretamente, alterações nos fluxos de ordens de compra ou venda de valores mobiliários, criando uma falsa realidade no mercado de capitais e induzimento a erro dos investidores por meio da alteração das condições normais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários78.

Assim, o objeto da ação incriminada pode ser tanto o preço da ação, quanto a demanda, a liquidez do título, criada de forma artificial por manobras

78 Ob. cit. p. 349

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fraudulentas, tudo tendo como meta a elevação, manutenção ou baixa da cotação de um valor mobiliário, com induzimento de terceiros a erros gerados pela manipulação do preço do ativo.

Interessante hipótese é citada por Breda consistente na desvalorização do ativo, na contramão da tentativa do autor, o que não impede a tipificação da conduta, ao passo que uma queda mais expressiva pode ter sido evitada, o que, diga-se, pode ser comprovada mediante uma perícia financeira79.

Juliano Pinheiro, citado por Juliano Breda (Breda, 2011), explica o processo de formação dos preços das ações, senão vejamos:

As cotações das ações ou preços das empresas são resultantes das forças de oferta e demanda desses papéis nas negociações diárias realizadas no mercado.

Essas forças são influenciadas pelas expectativas dos compradores e vendedores com relação à empresa e suas perspectivas de geração de resultados. A apuração da cotação de uma ação é feita por meio do valor do último negócio realizado com ela e são dadas por ação (preço unitário) ou por lotes (quantidades múltiplas de 100, 1.000 etc.). O melhor indicador do valor de uma ação é o preço pelo qual está sendo negociada, ou seja, o seu valor de mercado80.

De outra mão, devemos ter em mente que a mera desvalorização artificial de um ativo não configura, necessariamente, indício de crime, sendo indispensável o dolo na conduta de interposição de atos simulados ou fraudulentos, visando ao lucro indevido, por meio de medidas tendentes à manipulação direta ou indireta (alteração do preço do contrato futuro).

Inclusive, a propositada proliferação de notícias falsas sobre a ação, sobre a companhia ou sobre a expectativa dos investidores no processo normal de formação dos valores a serem negociados pode acarretar efeitos de manipulação dos preços, caracterizando-se no texto legal como “outras manobras fraudulentas”.

Deste modo, ao optar pelo termo “outras manobras fraudulentas”, o legislador nacional possibilitou uma grande margem de abertura no sentido de que toda e qualquer ação humana fosse considerada apta a alterar de modo artificial o desenvolvimento do mercado, possibilitando, assim, a consumação do delito em tela.

Entretanto, deve-se ter em mente que a ação deve guardar estreita conexão com o mercado de capitais, com a presença de elementos subjetivos com o condão de formar o necessário nexo de causalidade.

Assim, em que pese a impossibilidade do legislador listar “numerus clausus” os meios utilizados pelo agente, para consumação, não basta somente a transação financeira, sendo indispensável a ação potencialmente manipuladora,

79 Ob. cit. p. 35180 Ob. cit. p. 352.

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ainda que não relacionada propriamente com uma emissão ou compra e venda de valores imobiliários (Breda, 2011).

Em conclusão, se, de um lado, há amplitude de incidência do tipo penal, de outro, há redução, na medida em que deve ser demonstrada a aptidão do meio utilizado (questão de prova).

Nesse espectro, ao utilizar a expressão “operações simuladas” e “outras manobras fraudulentas”, deve ser alertado que se trata de “operações financeiras”, ou seja, atividades típicas das instituições financeiras participantes do mercado de capitais e, além disso, ter a potencialidade para enganar terceiros.

Também deve ser lembrado que o crime de manipulação do mercado de capitais é comissivo na modalidade descrita pelo núcleo típico “realizar”, sendo igualmente possível sua prática mediante ato omissivo do agente, desde que a execução da prática fraudulenta ocorra mediante violação de deveres, e.g., o caso da omissão de comunicação de fato relevante, com a finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado de capitais.

No que tange ao tipo subjetivo, devemos ter em mente que foram instituídos três elementos subjetivos do tipo, sendo, segundo a doutrina (Breda, 2011), dois obrigatoriamente concomitantes: 1) finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários em bolsa de valores, de mercadoria e de futuros, no mercado de balcão ou no balcão organizador e 2) (a) o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou (b) causar dano a terceiro.

Tocando no polêmico tema da consumação e tentativa desta modalidade criminosa, importante que seja destacada novamente a principal distinção entre a regulamentação penal e as normas administrativas da CVM, ao passo que, enquanto na esfera penal o tipo não descreve qualquer resultado, na órbita administrativa há referência à “criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preços, a realização de operações fraudulentas e uso de práticas não equitativas”, tornando possível concluir que, no plano administrativo, o tipo do ilícito descreve um resultado das condutas e verificação objetiva de “condições artificiais de demanda, de oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preço, a realização de operações fraudulentas e uso de práticas não equitativas. Assim, nas situações em que as condutas não produzirem tais resultados, é possível que haja mera punição administrativa a título de tentativa. A “contrario sensu”, na seara penal, não há possibilidade de punição em face de mera tentativa.

Doutrinariamente, a manipulação do mercado trata-se de um crime comum (não se exige qualificação especial do sujeito ativo), formal (não exige resultado naturalístico, bastando a comprovação da ocorrência da ação descrita), doloso (não há a previsão legal para a figura culposa), de forma livre (não há

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previsão de uma forma específica da prática legalmente indesejável), comissivo (o comportamento descrito no tipo implica a realização de uma conduta ativa, pois a norma penal tipificadora é proibitiva e não mandamental), instantâneo (a consumação ocorre em momento determinado), unissubjetivo (pode ser praticado por alguém, de forma individual, admitindo, contudo, o concurso de agentes), plurissubsistente (pode ser desdobrado em vários atos, que, entretanto, devem integrar a mesma conduta) e, por fim, destaca-se que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, cuja competência, apesar de não definida pela Lei 10.303/2001, deve ser estabelecida caso a caso sob o prisma do interesse da União, levando-se em consideração que, por meio de uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, tais crimes que afetam o mercado de capitais como um todo harmônico, por força das alterações produzidas pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001, devem ser processados e julgados pela Justiça Federal, uma vez que todos eles representam crimes contra o sistema financeiro nacional, conforme disposto no art. 109, VI, da Constituição Federal de 1988.

4.2 USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA

Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

Comparativamente, enquanto a manipulação é realizada em regra com a exteriorização de dados falsos ou simulados, no crime de informação privilegiada a notícia é verdadeira, mas a inadequada exposição ao público caracteriza a violação à necessária transparência, na medida em que é omitido ou alterado um dado real por parte de alguém que seja titular do dever de sigilo sobre o dado relevante.

Em verdade, com esta tipificação, pretende-se proteger as relações de confiança, transparência e lealdade entre todos os participantes do mercado de capitais, local que deve se qualificar pela igualdade de oportunidades oferecidas aos investidores, sendo fundamental criar-se uma área de proteção ao processo de livre formação de preços dos valores imobiliários.

Nessa perspectiva, a negociação de um valor mobiliário a partir de uma informação privilegiada, ou seja, ainda não compartilhada com o público, viola, evidentemente, a regra mais básica do jogo: a igual divisão dos riscos entre todos.

Para tanto, hodiernamente, o mercado de capitais é organizado no sentido de que as informações a respeito dos valores mobiliários estejam publicamente disponíveis, com condições de que haja expectativa de que

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todos os operadores possam dispor dos mesmos dados e subsídios a respeito de determinada ação ou empresa.

Por ser um crime próprio, exigi-se que o sujeito ativo seja detentor do dever de sigilo sobre a informação relevante, podendo ser, e.g., os acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal, dentre outros.

Com relação ao sujeito passivo imediato, figura o Estado na medida em que este é o responsável pela tutela dos interesses coletivos e supraindividuais, sendo que a credibilidade e transparência das negociações no mercado de capitais são interesses que transcendem a mera expectativa dos agentes financeiros envolvidos. Assim, há que afirmar que esse interesse é exercido pela atividade de regulamentação e supervisão da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), autarquia federal, detentora do dever de zelar pelo funcionamento adequado do mercado de capitais. Já, como sujeito passivo mediato, figuram os outros investidores atingidos, ao passo que a comercialização contando com a informação privilegiada viola a igual distribuição dos riscos do negócio entre todos os participantes do mercado.

De outra parte, a ação incriminada pelo artigo 27-D visa à punição do ato de utilizar informação relevante, ou seja, o tipo penal é direcionado pelo verbo “utilizar”, sendo que a “informação relevante” acaba caracterizando o objeto material da conduta.

Deste modo, as ações como empregar, usar, aproveitar-se da informação para tomar as decisões a respeito da negociação de um valor mobiliário integram o núcleo central do verbo “utilizar”, desde que haja conjugação com a expressão “mediante negociação”, concluindo-se que, caso a utilização seja em outra circunstância, diversa da negociação, o crime não se realiza (Breda, 2011).

Assim dizendo, caso a utilização da informação relevante tenha como condão a manutenção do ativo, diversamente da negociação, conforme especifica o tipo, não há crime.

Ademais, a norma incriminadora também proíbe que ocorram negociações antes da divulgação das informações dos fatos relevantes ao público, visando impedir influências significativas no processo de formação dos preços no mercado.

Todavia, em outro sentido, a informação somente terá relevância penal se a sua utilização ocorrer enquanto “ainda não divulgada ao mercado”, tendo em vista que todos os fatos relevantes com potencial influência sobre as decisões dos investidores devem ser comunicadas publicamente, como impõe a CVM, na esteira do princípio da transparência e obedecendo à máxima exatidão possível das informações, evitando-se a obscuridade, ambigüidades e omissões, concluindo-se que, de igual modo, nos casos de publicação simulada, o crime de uso indevido de informações privilegiadas pode se caracterizar.

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Avançando nesse sentido, frise-se que a negociação com informação privilegiada deve ser capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, nas linhas delimitadas pelo tipo penal, exigindo-se uma potencial capacidade de produção de vantagem ao agente, na medida em que o crime não é de resultado, não se pressupondo, portanto, a obtenção do benefício patrimonial.

De outra mão, ao mencionar vantagem “indevida”, prevê o tipo que a vantagem tenha um vício na origem por meio da irregular utilização de fato relevante e sigiloso, violando-se as regras do mercado.

O tipo penal do uso indevido de informação privilegiada também exige o dolo delimitado na vontade livre e consciente (vontade e conhecimento) de utilizar informação relevante, ainda não divulgada ao público de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, agregando, ainda, ao elemento subjetivo do injusto o especial fim de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida decorrente da negociação com valores mobiliários. Assim, o agente somente agirá com dolo desde que conheça esse dois aspectos (relevância e sigilo), utilizando a informação em negociação, em nome próprio ou de terceiros, com a inequívoca intenção de obter vantagem indevida (Breda, 2011).

Sobre a consumação, em que pese a divergência na doutrina, pode apontar que o crime de uso indevido de informação privilegiada é de perigo abstrato, exigindo-se apenas a prova da capacidade de lesão (potencialidade lesiva) da informação utilizada ou, melhor dizendo, a demonstração da idoneidade da conduta diante do bem jurídico protegido. Assim, vê-se que a consumação se dá com a celebração da negociação do valor imobiliário, mediante a utilização da informação privilegiada, independentemente da obtenção da vantagem, sendo impossibilitada, portanto, a configuração do crime na modalidade tentada.

Sob o aspecto doutrinário, vislumbra-se um crime próprio (somente o detentor do dever de sigilo pode realizar a conduta tipicamente prevista), formal (não exige resultado naturalístico, bastando a comprovação da ocorrência da ação descrita), doloso (não há a previsão legal para a figura culposa), de forma vinculada (somente há consumação se a utilização da informação privilegiada ocorrer mediante a negociação de valores mobiliários), comissivo (o comportamento descrito no tipo implica a realização de uma conduta ativa, pois a norma penal tipificadora é proibitiva e não mandamental), instantâneo (a consumação ocorre em momento determinado), unissubjetivo (pode ser praticado por alguém, de forma individual, admitindo, contudo, o concurso de agentes), unissubsistente (é realizado mediante apenas um ato, ou seja, mediante negociação de valores mobiliários) e, por fim, como no crime de manipulação do mercado de capitais, frise-se que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, cuja competência, apesar de não definida pela Lei 10.303/2001, deve ser estabelecida caso a caso sob o prisma do interesse da União, levando-

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se em consideração que, por meio de uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, tais crimes que afetam o mercado de capitais como um todo harmônico, por força das alterações produzidas pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001, devem ser processados e julgados pela Justiça Federal, uma vez que todos eles representam crimes contra o sistema financeiro nacional, conforme disposto no art. 109, VI, da Constituição Federal de 1988.

4.3 EXERCÍCIO IRREGULAR DE CARGO, PROFISSÃO ATIVIDADE OU FUNÇÃO

Art. 27-E. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

Preliminarmente, deve-se lembrar que o exercício irregular de profissão ou de qualquer atividade econômica trata-se de contravenção penal insculpida no artigo 47, da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688, de 1941)

Art. 47 - Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:

Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa. Assim dizendo, a norma prevista no artigo 27-E trata-se de uma forma

própria para uma conduta já outrora indesejável sob a ótica penal.E o caráter especial dessa nova incriminação está justamente na atuação

no mercado de valores mobiliários em inobservância das normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Nesse prisma, este preceito protege o acesso ao mercado de capitais, o qual exige, sobremaneira, a intermediação financeira a ser prestada por profissional com capacidade e qualificação técnica que o torne apto a desenvolver importante atividade econômica.

Pois bem, as autorizações para tanto demandam o cumprimento de um procedimento e a adequação a uma série de regras administrativas, pois há diversos interesses em jogo, com destaque para o controle de acesso, fiscalização, qualificação do mercado de valores mobiliários e proteção da poupança popular.

Neste espectro, salienta-se que se trata de crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa), formal (não exige resultado naturalístico, bastando a comprovação da ocorrência da ação descrita), doloso (não há a previsão legal para a figura culposa), de forma livre (o crime se consuma independentemente

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dos meios escolhidos pelo agente), comissivo (o comportamento descrito no tipo implica a realização de uma conduta ativa, pois a norma penal tipificadora é proibitiva e não mandamental), habitual (a consumação ocorre mediante a reiteração de atos), unissubjetivo (pode ser praticado por alguém, de forma individual, admitindo, contudo, o concurso de agentes), plurissubsistente (pode ser realizado mediante uma série de atos distintos) e, por fim, como nas modalidades típicas anteriores importante que se diga que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, cuja competência, apesar de não definida pela Lei 10.303/2001, deve ser estabelecida caso a caso sob o prisma do interesse da União, levando-se em consideração que, por meio de uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, tais crimes que afetam o mercado de capitais como um todo harmônico, por força das alterações produzidas pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001, devem ser processados e julgados pela Justiça Federal, uma vez que todos eles representam crimes contra o sistema financeiro nacional, conforme disposto no art. 109, VI, da Constituição Federal de 1988.

Ganha destaque o fato de ter dois núcleos verbais, sendo o primeiro “atuar” (operar), significando realizar as funções e atividades descritas no tipo, melhor dizendo, trabalhar e agir como “instituição integrante do sistema de distribuição, administrador de carteira coletiva ou individual, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários ou agente fiduciário”. Em um segundo momento, utiliza-se do verbo “exercer”, com a mesma conotação do verbo atuar, entretanto com uma conotação mais direcionada à reiteração de atos daquela natureza.

No que concerne à consumação, há dependência de uma reiteração de atos aptos a caracterizar o agir como profissional do mercado de capitais, não sendo possível, portanto, a tentativa.

Do estudo detalhado das modalidades que integram os crimes contra o mercado de capitais extrai-se a conclusão de que há extrema complexidade nos meandros técnicos o que demanda conhecimento amplo do agente responsável pela investigação, desde o momento do enquadramento como típica, passando pela determinação da autoria e alcançando a adequada colheita probatória.

Por óbvio, não se pode exigir do investigador a desejável amplitude de conhecimentos atinentes ao complexo mercado de capitais, o que direciona necessariamente à imperiosa necessidade de se trabalhar em conjunto, mormente compondo-se equipe de análise com integrantes da Comissão de Valores Mobiliários, da Receita Federal do Brasil, do Banco Central, dentre outros órgãos, possibilitando uma persecução mais eficiente em prol da formação da prova com qualidade suficiente para alcançar objetos concretos, especialmente em termos de punições administrativas e penais, causando um clima protetivo no mercado, abarcando a ótica da prevenção geral e especial.

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5 CONCLUSÕES

De modo marcante e revolucionário, o Brasil vem atravessando um movimento de extremo progresso e visibilidade no cenário internacional, com efeitos históricos para o Governo, para as instituições e para a população.

Entretanto, com muita lógica, nossa pátria materna não está imune aos efeitos de uma sociedade pós-moderna, fruto de um ambiente global de risco, com conseqüências marcantes, e.g., para a realidade social, para a produção legislativa e para as decisões judiciais.

Obviamente, em face de um quadro de expansão de mercados, enriquecimento e modernização em meio a um cenário mundial de incertezas, o Brasil obriga-se a adotar uma postura firme e antecipatória com vistas à eficiente regulação na seara administrativa e modernização adaptativa do mecanismo penal e processual visando ao estabelecimento de um quadro de segurança para os investidores e para a economia como um todo, proporcionando assim o fortalecimento do alicerce de sustentação da economia, marcada como elemento fundamental da estrutura social.

Nesse panorama, a manutenção da ordem pública também passa pela sustentável estabilidade econômica, com a certeza por parte das pessoas de que sua poupança está garantida pelos organismos a serviço do Estado e da população.

Entrementes, para prestação do serviço de regulação, de prevenção e repressão das condutas tidas como indesejáveis, o Estado deve ter em seus quadros servidores com capacidade técnica adequada e que tenham a real consciência de suas competências e atribuições, bem como de suas limitações, o que impende a necessidade da formação de uma consciência de irrestrita colaboração dos órgãos envolvidos na prevenção e na repressão, sem perder, por óbvio, a segurança proporcionada através do sigilo e da compartimentação.

Ao que parece, depois de determinado período de letargia, caminha-se na direção correta, pois, denota-se interessante amadurecimento da estrutura preventiva e combativa do Estado em face da prática de condutas que ameaçam a economia, possibilitando, assim, uma visão geral otimista em direção a um panorama de crescimento, progresso e pujança no que tange à qualidade de vida da população, o que demanda ainda mais atenção estatal.

Nessa senda, importante transitar entre as esferas administrativa e criminal contando com os parâmetros da eficiência, adequação e velocidade, com vistas ao oferecimento de respostas justas e rápidas a partir da detecção de movimentos de descumprimento de regras que devem ser adequadas à proteção do mercado.

Assim, independente de quem vença a batalha entre a expansão ou minimização do direito penal, o instrumento a serviço da persecução policial deve estar sempre preparado para a adequação às novas realidades sociais e

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econômicas na medida em que a estabilidade socioeconômica depende em grande parte da rápida e eficiente resposta em face do descumprimento das normas, razão pela qual deve haver constante especialização dos agentes no sentido de dotá-los de conhecimentos fundamentais desde o enquadramento das condutas como típicas sob a ótica dos crimes contra o mercado de capitais, passando pela difícil determinação da autoria e culminando com a eficaz colheita probatória, elementos fundamentais para a adequada e justa punição dos infratores das normas estabilizadoras do sistema econômico e social.

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6 REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Tradução de Jesus Alborés Rey. Madrid: Editora Siglo Veintiuno, 2002. Cf. também: BUERGO, Blanca Mendoza. El Derecho Penal en la Sociedae Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 24-34; MACHADO, MARTA Rodrigues de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p 29-90. In Câmara, Luiz Antonio [Coord.]. Crimes Contra a Ordem Econômica e Tutela de Direitos Fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009.

BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional & Contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito Penal. São Paulo: IBCrim, 2005. Silva Sánchez, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A REALIZAÇÃO DO DEVER CONSTITUCIONAL EM FACE DO MODELO DE ASSISTÊNCIA

SOCIAL RASILEIRO

irian Karla Kmita

ViVianE coêlho DE SélloS KnoErr

RESUMO

O legislador constituinte de 1988, ao dispor sobre a assistência social não apresentou um conceito sobre o tema, pelo contrário restringiu-se a elencar os objetivos a serem tutelados pelo assistencialismo no Brasil. A ausência de um conceito legal permite ao intérprete a construção doutrinária sobre o tema visando precisar-lhe o conteúdo e alcance, variando de autor para autor a concepção do que vem a ser assistência social. Desse sistema de proteção social, verifica-se relevância para a efetivação dos direitos humanos, sendo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os pactos internacionais de direitos humanos, em âmbito global, reconhecem o direito à assistência social como um direito fundamental. As principais formas de proteção social desenvolvidas pela humanidade, na tentativa de combater eventos danosos que acarretam a indigência, foram a beneficência e a assistência pública.

SUMMARY

The constitutional legislator of 1988, to provide for the welfare not presented a concept on the subject instead restricted to list the objectives to be tutored by welfarism in Brazil. The absence of a legal concept allows the interpreter to build doctrine on the subject seeks to specify its content and scope, ranging from one author to the conception of what is to be social. This system of social protection, there is relevant to the realization of human rights, and the Universal Declaration of Human Rights, the international covenants of human rights globally, recognize the right to social assistance as a fundamental right. The main forms of social protection developed by mankind, in an attempt to combat harmful events that lead to poverty, were charitable and public assistance.

Palavras-chave: Dignidade Humana, Concretização constitucional, estado social, democracia paricipativa, estado solidário.

Keywords: Human Dignity, Delivering constitutional state social democracy paricipativa, solidari state.

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1 REGIME JURÍDICO, CARIDADE E COMPAIXÃO HUMANA

A assistência social em sua dimensão atual lhe confere a natureza de mecanismo de inclusão e justiça sociais, garantindo prestações sociais mínimas, na forma de serviços e benefícios, para a sobrevivência digna daquele que se encontre em situação de desamparo, independentemente de contribuição à seguridade social, na forma disciplinada em lei (MIRANDA, 2007).

A competência para legislar acerca da assistência social é concorrente, compartilhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (arts. 24, incisos XIV e XV, e 30, inciso II, da CF), sendo que suas ações constituem atribuição de todos os entes federativos, com a coordenação da União, por intermédio do Ministério do Bem-estar Social (MIRANDA, 2007).

A assistência social tem específico tratamento constitucional nos arts. 203 e 204. A disciplina da matéria no nível infraconstitucional foi dada pela Lei n.º 8.742 de 1993, denominada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), regulamentada pelo Decreto n.º 1.744 de 1995, e posteriormente pelo Decreto n.º 6.214/2007 (MIRANDA, 2007).

As políticas públicas de assistência social são organizadas em sistema descentralizado e participativo, desenvolvidas pelas entidades e organizações de assistência social e por um conjunto de instâncias deliberativas.

Incumbe a cada ente federativo fixar suas respectivas políticas de assistência social, observados os princípios e diretrizes estabelecidos na Lei Orgânica da Assistência social. A competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na área de assistência social é discriminada nos arts. 12 a 15 da Lei Orgânica da Assistência Social.

Viviane Coêlho de Séllos Knoerr ressalta:

A responsabilidade dos governantes vem se somar à responsabilidade social das empresas do setor privado e à conscientização da sociedade, vez que de interesse comum que se efetivem os direitos fundamentais, permitindo a todos não apenas a busca como também o acesso à felicidade especialmente no que se refere à educação básica de qualidade, saúde pública preventiva e atendimento clínico e hospitalar eficazes e moradia segura, visando a formação de cidadãos comprometidos com a organização da sociedade e trabalhadores capacitados para criar e educar seus filhos sem permitir que os mesmos sejam vítimas de abusos, efetivando a democracia. (SÉLLOS, Viviane Coêlho de. 2006, p. 16)

Integram o quadro de instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social, de caráter permanente e composição

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paritária entre governo e sociedade civil, os seguintes órgãos: o Conselho Nacional de Assistência Social; os Conselhos Estaduais de Assistência Social; o Conselho de Assistência Social no Distrito Federal; os Conselhos Municipais de Assistência Social.

Atuam na assistência social não somente os entes estatais, mas também as entidades e organizações que, sem fins lucrativos, prestam atendimento e assessoramento, bem como trabalham na defesa e garantia de direitos daqueles que são protegidos pela legislação de assistência social (art. 3.º da LOAS). As entidades e organizações de tal espécie, que são de natureza privada, mas têm finalidade de pública, são denominadas de “terceiro setor”, como por exemplo, as organizações não-governamentais (ONG’s). O primeiro setor é o Estado, o segundo setor é o mercado.

2 OS OBJETIVOS DE CONCREÇÃO CONSTITUCIONAL

Os objetivos da assistência social foram fixados no art. 203 da Constituição Federal e repetidos no art. 2.º da Lei n.º 8.742/1993, quais sejam:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição a seguridade social, e tem por objetivos:I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Art. 2º. A assistência social tem por objetivos:I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;V – a garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa

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portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Os objetivos enumerados pela legislação podem ser sintetizados como um conjunto de ações que têm por finalidade o combate à pobreza, a garantia dos mínimos sociais, o provimento de condições para atender a contingências sociais e a universalização dos direitos sociais, devendo a assistência social ser realizada de forma integrada às políticas setoriais. Os objetivos da assistência social, por essa perspectiva, identificam-se como objetivos fundamentais do Estado brasileiro, no que tange a construir uma sociedade livre, justa e solidária, com o enfrentamento da pobreza e da marginalização, em busca da redução das desigualdades sociais e regionais, em benefício de todos e sem preconceito. Assim dispõe o art. 3º da Constituição Federal de 1988:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;II – garantir o desenvolvimento nacional;III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Convém frisar que mínimo social ou mínimo existencial é a garantia de prestações básicas consideradas satisfatórias para atendimento das necessidades sociais do indivíduo que se encontre em situação de risco social, propiciando-lhe existência digna (MIRANDA, 2007).

3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DIRETRIZES VIABILIZADORAS DA VONTADE CONSTI-TUCIONAL

A assistência social é organizada com base nas seguintes diretrizes:

descentralização político-administrativa; participação da população e primazia da responsabilidade do Estado.

A descentralização político-administrativa assegura a formulação e execução de políticas públicas na área de assistência social por todos os entes federativos, de forma articulada, sendo da competência da União a coordenação e a expedição de normas gerais. Cabe aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a coordenação e execução de programas em suas respectivas esferas. Essa diretriz tem por objetivo a agilização e efetividade das ações no âmbito da assistência social.

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A participação da população se dá por meio de organizações representativas, atuando na elaboração das políticas de assistência social e na fiscalização das respectivas ações em todos os níveis, visando a melhor aplicação dos recursos públicos destinados à assistência social.

A primazia da responsabilidade do Estado, como diretriz da assistência social, é relativa à condução da política de assistência social em cada esfera de governo, indicando que, dentre as entidades e organizações que atuam no setor, é de incumbência prioritária de cada esfera de governo desenvolver, direcionar e encaminhar as ações de assistência social. Atuam os entes estatais como protagonistas, enquanto a sociedade e demais organizações funcionam de forma complementar (MIRANDA, 2007).

4 O PROBLEMA DOS RECURSOS ORÇAMENTÁRIOS As ações governamentais na área da assistência social são pagas

com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195 da Constituição Federal, com recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como com recursos do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), sem prejuízo de outras fontes que possam ser instituídas, nos termos do art. 204 da Constituição Federal e do art. 28 da Lei 8.742/1993.

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Art. 28. O financiamento dos benefícios, serviços, programas e projetos estabelecidos nesta lei far-se-á com os recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, das demais contribuições sociais previstas no art. 195 da Constituição Federal, além daqueles que compõem o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).§ 1º Cabe ao órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social gerir o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) sob a orientação e controle do

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Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).2º O Poder Executivo disporá, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data de publicação desta lei, sobre o regulamento e funcionamento do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).

Os Estados e o Distrito Federal poderão vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até 0,5% de sua receita tributária líquida, vedada a aplicação desses recursos para pagamento de despesas com pessoal e encargos sociais, serviço da dívida e qualquer outra despesa corrente que não esteja atrelada diretamente aos investimentos ou ações apoiadas.

Constituem fonte indireta de financiamento da assistência social a isenção de impostos, taxas e contribuições para entidades filantrópicas de assistência social, bem assim as subvenções federais, estaduais e municipais destinadas a essas entidades.

Para o repasse de recursos aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal, é indispensável a efetiva instituição e funcionamento de Conselho de Assistência Social (com composição paritária entre governo e sociedade civil), de Fundo de Assistência Social (com orientação e controle dos respectivos conselhos de assistência social) e de Plano de Assistência Social. O repasse apontado também é condicionado à comprovação orçamentária dos recursos próprios destinados à assistência social, alocados nos Fundos de Assistência Social (FAS) dos respectivos entes estatais, a partir do exercício de 1999 (MIRANDA, 2007).

5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AS PRESTAÇÕES ASSISTENCIAIS As prestações na área de assistência social, para fazer frente às necessidades

sociais, de acordo com o art. 203 da Constituição Federal, são de duas espécies: serviços e benefícios. A diferença entre os serviços e os benefícios é que aqueles constituem ações assistenciais, enquanto estes, em regra, caracterizam-se pela natureza pecuniária (MIRANDA, 2007).

5.1 SERVIÇOS

Os serviços assistenciais são atividades continuadas destinadas à melhoria de vida da população, voltadas ao atendimento das necessidades básicas, observados os objetivos , princípios e diretrizes da assistência social, com destaque aos programas de amparo a criança e ao adolescente em situação de risco pessoal e social e às pessoas que vivem em situação de rua.

É o que estabelece o art. 23 da Lei n.º 8.742 de 1993: Art. 23. Entendem-se por serviços assistenciais as atividades continuadas

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que visem à melhoria de vida da população e cujas ações, voltadas para as necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidas nesta lei.Parágrafo único. Na organização dos serviços da Assistência Social serão criados programas de amparo:I - às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, em cumprimento ao disposto no art. 227 da Constituição Federal e na Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990;II – às pessoas que vivem em situação de rua.

Sem a exclusão do dever da família, o Estado tem a obrigação, de forma prioritária, de promover e executar ações assistenciais que visem assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, protegendo-os de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. É o que preceitua o art. 227 da Constituição Federal:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Nesta esteira, o Estado deverá patrocinar programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais, obedecidos os critérios de aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; de criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. Assim preconiza o art. 24 da Lei 8.742 de 1993:

Art. 24. Os programas de assistência social compreendem ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais.

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§ 1º Os programas de que trata este artigo serão definidos pelos respectivos Conselhos de Assistência Social, obedecidos os objetivos e princípios que regem esta lei, com prioridade para a inserção profissional e social.2º Os programas voltados ao idoso e à integração da pessoa portadora de deficiência serão devidamente articulados com o benefício de prestação continuada estabelecido no art. 20 desta lei.

Questão sensível é a relativa aos moradores de rua, acerca de quem a legislação assistencial fez expressa menção, o que recomenda ao Poder Público adotar programas que promovam a reabilitação e a inclusão social do indivíduo, assegurando-lhe meios de alcançar melhores condições de vida.

5.2 BENEFÍCIOS E BENEFÍCIOS EVENTUAIS Benefícios são prestações eminentemente de natureza pecuniária,

portanto prestações que geralmente são realizadas mediante pagamento em dinheiro e excepcionalmente em bens de consumo, sendo classificados em duas espécies: benefícios eventuais e benefício assistencial ou amparo social, este último objeto da pesquisa, que será analisado no próximo capítulo. Os benefícios assistenciais não podem ser cumulados com qualquer outro tipo de benefício previdenciário.

Benefícios eventuais de que trata a Leio Orgânica da Assistência Social (LOAS) são prestações pagas de forma suplementar e temporária, diante de determinadas situações de vulnerabilidade ocasional, geradora de necessidades sociais. Sendo que estes benefícios já não existem mais (auxílio-funeral, auxílio-natalidade, entre outros) (MIRANDA, 2007).

6 O SIGNIFICADO JURÍDICO E SOCIAL DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL

A Constituição Federal de 1988 prevê em seu art. 203, inciso V: “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.

Após cinco anos da promulgação da Constituição de 1988, a Lei 8.742 de 07/12/1993 regulamentou o dispositivo em caso, sendo denominada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

6.1 AS DENOMINAÇÕES RECEBIDAS

Conforme redação da própria lei 8.742/1993, art. 20, o benefício assistencial regulado por esta, seria o “benefício de prestação continuada”,

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contudo o mesmo é identificado com nomenclaturas diferentes: “amparo social”, “amparo ao portador de deficiência”, “amparo ao idoso”, “benefício da LOAS”, “aposentadoria do mínimo”, e “renda mensal vitalícia”.

As duas últimas denominações representam equívocos, assim leciona Daniel Machado da Rocha e José Antonio Savaris (2007, p. 370):

No primeiro caso – aposentadoria do mínimo – por parte da população que pelo desconhecimento do benefício identifica o mesmo com a aposentadoria ao saber de casos de pessoas que venham a receber do Estado valores sem nunca terem contribuído. ... No segundo caso – renda mensal vitalícia – há uma imprecisão técnico-científica, pois o termo remonta ao benefício de amparo previdenciário instituído pela Lei 6.179/74, que correspondia à metade do salário mínimo da época, que era devido aos maiores de 70 anos de idade ou inválidos, desde que não exercessem atividade remunerada nem auferissem rendimento superior ao próprio valor do benefício (art. 1º), ou seja, ‘metade do maior salário mínimo vigente no País, arredondada para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo ultrapassar 60% (sessenta por cento) do valor do salário mínimo do local do pagamento’, conforme redação do art. 2º, I da Lei 6.179, de 11/2/1974.

Ainda, não poderiam ser mantidos por pessoa de quem dependessem obrigatoriamente, e nem poderiam ter outro meio de prover o próprio sustento – art. 1º. Tudo se tivessem sido filiados por mínimo 12 (doze) meses, consecutivos ou não, ao INPS (art. 1º, I); ou tivessem exercido atividade remunerada, por no mínimo 05 (cinco) anos, consecutivos ou não, atualmente incluída no regime do INPS ou do Funrural – mesmo sem filiação à Previdência Social (art. 1º, II); ou após completar 60 (sessenta) anos de idade, tenham ingressado no regime do INPS, sem direito aos benefícios regulamentares (art. 1º, III).

Com a edição da Lei 8.213 de 1991 os dispositivos pertinentes a Lei 6.179/1974 foram incorporados aos arts. 63 a 70 daquela, passando a ser denominada de renda mensal vitalícia. O mesmo diploma previu, no art. 139, que essa permaneceria sendo paga até que o inc. V, do art. 203 da Constituição Federal de 1988 fosse regulamentado.

A edição do Decreto 1.744/1995, que regulamentou a implantação do benefício de prestação continuada de que trata a Lei 8.742/1993 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) -, extinguiu a renda mensal vitalícia. Desta forma, desde 01/01/1996, não há que se falar em renda mensal vitalícia. Outrossim, não se pode confundir o benefício da Lei Orgânica da Assistência Social com a renda mensal vitalícia, pois esta pressupunha filiação ao regime previdenciário, ao passo que o benefício de prestação continuada é devido às pessoas portadoras

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de deficiência ou idosas, inclusive estrangeiros naturalizados e domiciliados no Brasil, independente de contribuição, filiação ou atividade labora.

O benefício mensal, regulamentado no art. 20 da Lei n.º 8.742/1993, recebeu a imprópria denominação de “benefício de prestação continuada”.

A denominação “benefício de prestação continuada” é inadequada, uma vez que tem aptidão para apenas designar uma categoria de benefícios, já que os benefícios pecuniários, em quase sua totalidade, são pagos em forma de prestação mensal e sucessiva, o que lês dão o caráter de continuado. Tendo em vista a impropriedade da denominação do benefício, convencionou-se designá-lo como “benefício assistencial” ou “amparo social”, mais adequado ao campo de sua aplicação, que é a assistência social. (MIRANDA, 2007, p. 276).

6.2 BENEFÍCIO ASSISTENCIAL E OS DIREITOS HUMANOS

A Constituição, nos seus variados títulos e capítulos, tece normas que delineiam e regulamentam o estado brasileiro e direitos e deveres de seus cidadãos e administradores. Em seu título “Da Ordem Social” dispõe que essa tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Entre os direitos necessários à implementação da ordem social prevista na Constituição Federal, encontramos aqueles relativos à Seguridade Social, que contempla a previdência social, a saúde e a assistência social.

A assistência social pode ser definida como a política pública, integrada por um conjunto de ações de iniciativa pública e da sociedade, que visa prover aos brasileiros com renda inferior aos mínimos legais, condições de inclusão na sociedade, através do atendimento às necessidades básicas, para o efetivo exercício dos direitos, que constituem a cidadania. É por isso que, na Assistência Social, não existe o princípio da contrapartida, ou seja, o benefício recebido não depende de contribuição realizada, ao contrário do que acontece com os benefícios previdenciários.

A seguridade social é um dos mais importantes direitos humanos. Trata-se de um instrumento de proteção social que tem como primeiro objetivo a proteção da dignidade da pessoa, garantindo à população bem-estar com justiça social. Laura Pautassi comenta (apud FERREIRA, 2007, p. 195):

A seguridade social, igualmente a todos os direitos sociais, se converteu em um dos fundamentos do Estado de Bem-estar moderno, constituindo-se em um fator importante para a legitimidade política e para a coesão social nas sociedades amplamente desiguais.

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A assistência social é um dos atributos essenciais do Estado Social constitucional que pretende garantir um mínimo essencial à população, para que ela possa viver adequadamente.

Nesse sentido, assim comenta Brend Schulte (apud SARLET, 2003, p. 306):

O atributo ‘social’ caracteriza aqui um estado que assegura a cada pessoa uma existência humanamente digna, assiste ao mais fraco, oferece a cada pessoa possibilidades de desenvolvimento, concedendo-lhe em ampla medida oportunidades iguais e garantindo-lhe a sua quota-parte nos bens econômicos segundo critérios de justiça.

Tão grande é a importância desse sistema de proteção social para os direitos humanos, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os pactos internacionais de direitos humanos, no âmbito mundial, reconhecem o direito à assistência social como um direito fundamental. Trata-se de verdadeiro direito humano.

As principais formas de proteção social desenvolvidas pela humanidade, na tentativa de combater eventos danosos que acarretam a indigência, foram a beneficência, a assistência pública, entre outros. No Brasil uma dessas formas é o benefício assistencial ao idoso ou à pessoa portadora de deficiência.

6.3 UM BENEFÍCIO DE TRATO CONTINUADO

O art. 1.º do Decreto n.º 6.214 de 2007 define o benefício de prestação continuada:

O Benefício de Prestação Continuada previsto no art. 20 da Lei no 8.742, de 7de dezembro de 1993, é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso, com idade de sessenta e cinco anos ou mais, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.

O amparo social é um beneficio de trato continuado, que é devido mensalmente, sendo beneficiários os idosos ou os deficientes que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Este benefício, segundo conceito formulado por Sérgio Pinto Martins, constitui-se em “[...] um benefício de trato continuado, que é devido mensal e sucessivamente”. (2007, p. 484).

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6.4 GERÊNCIA DO BENEFÍCO ASSISTENCIAL

Os recursos vêm do Fundo Nacional de Assistência Social e o programa é gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome e executado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), conforme redige os parágrafos 1.º, 2.º e 3.º do art. 1.º do decreto n.º 6.214/2007:

§ 1o O Benefício de Prestação Continuada integra a proteção social básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, instituído pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em consonância com o estabelecido pela Política Nacional de Assistência Social – PNAS.§ 2o O Benefício de Prestação Continuada é constitutivo da PNAS e integrado às demais políticas setoriais, e visa ao enfrentamento da pobreza, à garantia da proteção social, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais, nos moldes definidos no parágrafo único do art. 2o da Lei no 8.742, de 1993.§ 3o A plena atenção à pessoa com deficiência e ao idoso beneficiário do Benefício de Prestação Continuada exige que os gestores da assistência social mantenham ação integrada às demais ações das políticas setoriais nacional, estaduais, municipais e do Distrito Federal, principalmente no campo da saúde, segurança alimentar, habitação e educação.

6.5 REQUISITOS E CARACTERÍSTICAS

O benefício assistencial apresenta requisitos constitucionais e infraconstitucionais. Dispõe a Constituição Federal de 1988 em seu art. 203, inciso V: “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.

A norma infraconstitucional – Lei 8.742/1993, art. 20 – definiu:

“O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família”.Extraem-se do texto constitucional e da norma infraconstitucional os

seguintes requisitos: ser idoso ou ser portador de deficiência; não poder prover ou ter provida a sua manutenção.

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6.5.1 BENEFICIÁRIOS

São contemplados com o benefício assistencial os idosos, e as pessoas portadoras de deficiência. Para fins de reconhecimento do direito ao benefício, considera-se:

- Idoso: aquele com idade de 65 (sessenta e cinco) anos ou mais;- Pessoa com deficiência: aquela cuja deficiência a incapacita para a vida

independente e para o trabalho.

6.5.1.1 REQUISITO ETÁRIO

O requisito etário exigido inicialmente era de 70 anos, tendo sido reduzido para 67 anos a partir de janeiro de 1998, nos termos dos art. 38 da Lei Orgânica da Assistência Social: “A idade prevista no art. 20 desta Lei reduzir-se-á para sessenta e sete anos a partir de 1o de janeiro de 1998”. Posteriormente foi diminuída para 65 anos a partir de janeiro de 2000, nos termos do art. 34 da Lei n.º 10.741/2003 (Estatuto do Idoso): “Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas”.

O novo decreto n.º 6.214 de 2007, que veio regulamentar o benefício assistencial dispõe o seguinte sobre o requisito etário: “Para fazer jus ao Benefício de Prestação Continuada, o idoso deverá comprovar: I - contar com sessenta e cinco anos de idade ou mais; [...]”.

6.5.1.2 REQUISITO DA INCAPACIDADE

Pessoa portadora de deficiência, para efeito de concessão do benefício assistencial, é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho, em virtude de anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênita ou adquirida, que impeçam o desempenho das atividades da vida daria e do trabalho.

O conceito de deficiência para o fim de concessão do benefício assistencial é estabelecido por dispositivo legal do Decreto n.º 6.214/2007:

Art. 4o Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se:I – [...]II - pessoa com deficiência: aquela cuja deficiência a incapacita para a vida independente e para o trabalho;

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III- incapacidade: fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu ambiente físico e social [...].

A exigência de a pessoa ser incapacitada para o trabalho e para a vida independente não é cumulativa, pois a concessão do benefício é devida ainda que o portador de deficiência não esteja incapacitado para a vida diária. “Acolher posicionamento diverso seria deixar o cidadão que já possui problemas de inserção social , mais afastado ainda do dito Estado Social de Direito” (ROCHA; SAVARIS, 2007, p. 375).

Jediael Galvão Miranda (2007, p. 277) leciona:

Incapaz para a vida independente e para o trabalho é aquele que não pode se sustentar, necessitando do auxílio ou atenção de terceiro para a execução de tarefas que lhe exija maior esforço. Enfim, o conceito de vida independente não significa situação de prostração física que impeça por completo o deficiente de se locomover e realizar atividades elementares do dia-a-dia (v.g. asseio pessoal, vestir-se e comer). Não será independente aquele que para gerir satisfatoriamente sua vida dependa, em razoável grau, da assistência de outrem.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região preconiza:

O requisito incapacidade para a vida independente (a) não exige que a pessoa possua uma vida vegetativa ou que seja incapaz de locomover-se; (b) não significa incapacidade para as atividades básicas do ser humano, tais como alimentar-se, fazer a higiene e vestir-se sozinho; (c) não impõe a incapacidade de expressar-se ou de comunicar-se; (d) não pressupõe dependência total de terceiro; (e) apenas indica que a pessoa portadora de deficiência não possui condições de autodeterminar-se completamente ou depende de algum auxílio, acompanhamento, vigilância ou atenção de outra pessoa, para viver com dignidade. (AC n.º 416690/RS, Rel. Des. Fed. Celso Kipper, j. 7/6/2005, DJU 5/10/2005, p. 878).As normas assistencialistas, vêm forçosamente procurando conceituar

a incapacidade para enquadramento na Lei Orgânica da Assistência Social. Entretanto, o que resta perceptível destas normas é o caráter excludente dos deficientes, contrariando a finalidade do benefício. (ROCHA, e SAVARIS, 2007).

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Luiz Alberto David Araújo (1997, p. 12) afirma:

[...] o que define a pessoa portadora de deficiência não é a falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a integração social é que definirá quem é ou não portador de deficiência.

A Constituição Federal não precisou a incapacidade, não pode, portanto,

a norma infraconstitucional fazê-lo de forma a contrariar a realidade daqueles que visam a tutela do benefício. Neste sentido vale destacar a seguinte decisão:

A doutrina constitucional, nacional ou estrangeira, é torrencial no sentido de que o legislador, em sua tarefa de concretização, está obrigatoriamente vinculado, antes de mais nada, ao texto constitucional, ou, em outras palavras, o texto constitucional limita a interpretação feita pelo legislador ao concretizar a norma constitucional (Konrad Hesse). Em conseqüência, o legislador encontra-se vinculado ao conteúdo constitucionalmente declarado dos direitos fundamentais, e se aparta deste, cabe ao juiz protegê-lo, com o que é o juiz e não a lei a garantia última dos direitos (Rubio Llorente).

A Constituição Federal exige apenas dois requisitos no tocante ao benefício assistencial de que trata o art. 203, V: (a) condição de deficiente (pessoa portadora de deficiência) ou idosa e (b) situação de desamparo (não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família). Ou seja, buscou a norma constitucional garantir o benefício assistencial a toda pessoa portadora de deficiência que não possuísse condições econômicas de subsistência, próprias ou de sua família.

A exigência, para a percepção do benefício, de ser a pessoa incapaz para a vida independente, se entendida como incapacidade para todos os atos da vida, não se encontra na Constituição. Ao contrário, tal exigência contraria o sentido da norma constitucional, seja considerada em si, seja em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), ao objetivo da assistência social de universalidade da cobertura e do atendimento (CF, art. 194, parágrafo único, I) e à ampla garantia de prestação da assistência social (CF, art. 203, caput). Se aquela fosse a interpretação para a locução incapacitada para a vida independente, constante no art. 20, § 2º, da

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Lei 8.742/1993, o legislador teria esvaziado indevidamente o conteúdo material do direito fundamental da pessoa portadora de deficiência, deixando fora do seu âmbito uma ampla gama de pessoa portadoras de deficiência incapacitante para o trabalho, e, em conseqüência, incorreria em inconstitucionalidade. (TRF 4ª Região – AC 20007105000637-3/RS – Rel. Des. Celso Kipper – DJ 12/03/2003) (Grifo nosso).

A incapacidade para o trabalho pode ser temporária, porém deverá ser de tal molde que impossibilite o indivíduo de exercer qualquer atividade laborativa durante o período em que o mal que lhe afige perdurar. A incapacidade parcial para o trabalho não autoriza a concessão do benefício assistencial, uma vez que resta ao indivíduo capacidade residual para o trabalho, quando a legislação exige que o indivíduo não possa exercer atividade laborativa (MIRANDA, 2007).

Assim também entende o Tribunal Regional da 3ª Região: “Sendo a incapacidade parcial, não está atendido o requisito previsto no art. 20, parágrafo 2º da Lei n.º 8.742/1933.” (AC nº 510973/MS, Rel. Juíza Conv. Ana Lúcia Lucker, j. 23/10/2006, DJU 9/11/2006, p. 1.121).

O benefício assistencial pode ser concedido a criança, desde que verificada a hipótese de deficiência, uma vez que a Lei n.º 8.742/1993, ao tratar da incapacidade, não traz limitação quanto à idade do portador de deficiência, além do que um dos objetivos da assistência social é o amparo à criança e ao adolescente carentes. O Tribunal Regional da 4ª Região trata do assunto:

O benefício assistencial, quando concedido a menor deficiente, que necessite de cuidados especiais, em verdade não está sendo concedido única e exclusivamente a esse menor e a seu interesse, senão que ao conjunto familiar em que ele está inserido e que é responsável pela sua manutenção. Trata-se, por óbvio, de uma complementação da renda familiar, destinada a possibilitar meios de sobrevivência mínima a quem não dispõe de condições financeiras e, ainda, precisa conviver com grave problema de saúde de um dos membros da família. O benefício compensa, por assim dizer, os demais familiares pela impossibilidade de se dedicarem com exclusividade aos seus trabalhos, comprometidos que estão com a necessária atenção ao menor deficiente.” (AC n.º 200470020021168/PR, Rel. Des. Fred. João Batista Pinto Silveira, j. 5/4/2006, DJU 26/4/2006, p. 1.206). É certo que, em relação à criança, não se pode falar em idade produtiva,

para fins de atividade laboral, todavia a concessão do benefício assistencial ainda assim se justifica, na hipótese de deficiência que exija cuidados e atenção especiais constantes, denotando que a criança jamais terá vida independente e

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aptidão para o trabalho, sem contar que o benefício assistencial constitui, no caso, verdadeiro auxílio à família do deficiente, com o fim de a ele proporcionar existência digna.

6.5.1 REQUISITO ECONÔMICO

Não é suficiente para a concessão do benefício assistencial apenas a qualidade de idoso ou deficiente do indivíduo, é indispensável que se comprove a sua condição de hipossuficiente.

O art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 prevê: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.

O art. 4.º do Decreto 6.214/2007 conceitua:

[...]IV - família incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou do idoso: aquela cuja renda mensal bruta familiar dividida pelo número de seus integrantes seja inferior a um quarto do salário mínimo;

V - família para cálculo da renda per capita, conforme disposto no § 1o do art. 20 da Lei no 8.742, de 1993: conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto, assim entendido, o requerente, o cônjuge, a companheira, o companheiro, o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido; e

VI - renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, comissões, pró-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19. (Grifo nosso).

6.5.2 CARACTERÍSTICAS

O benefício assistencial não gera pagamento de abono anual. Por ser de caráter personalíssimo, o benefício não pode ser transmitido, não dando origem a pagamento de pensão, extinguindo-se com a morte do beneficiário.

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O benefício é intransmissível, entretanto os valores atrasados, por já integrarem o patrimônio do falecido, são devidos aos sucessores desse.

O termo inicial do benefício é a data do requerimento e, na sua ausência, no caso de postulação judicial, a data da citação, momento em que o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) foi constituído em mora. Há entendimento jurisprudencial no sentido de que, na falta de requerimento, o benefício judicialmente concedido a deficiente terá início a partir da data da apresentação em juízo do laudo pericial que constatou a incapacidade.

“Em não havendo requerimento administrativo, o termo inicial do benefício de prestação continuada à pessoa portadora de deficiência é o da data da apresentação do laudo pericial em juízo.” (STJ – Resp n.º 760490/SP. Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 23/8/2005, DJU 14/11/2005, p. 412).

Levando-se em conta que o benefício não exige contribuição à seguridade social, não é requisito para a sua concessão o cumprimento de carência.

O acréscimo de 25% de que trata o art. 45 da Lei 8.213/1991 não pode ser aplicado analogicamente ao benefício assistencial, uma vez que se trata de prestação destinada exclusivamente ao benefício de aposentadoria por invalidez, na hipótese de incapacidade denominada de grande invalidez, não se podendo reconhecer similaridade quando a natureza dos benefícios e sua base de sustentação são completamente diversas.

O assistido não pode acumular o benefício assistencial com nenhum outro no âmbito da seguridade social, salvo o da assistência médica.

A cada dois anos, o ato de concessão do benefício é revisto, a fim de se verificar se permanecem as mesmas condições que lhe deram origem.

O benefício será encerrado nos seguintes casos:

a) quando superadas as condições que deram origem ao benefício;b) morte do beneficiário, inclusive a presumida declarada judicialmente;c) ausência do beneficiário declarada por decisão judicial.

No caso de indeferimento administrativo ou qualquer resistência oferecida pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) à sua concessão, é facultada a postulação judicial do benefício assistencial perante a Justiça Estadual do domicílio do idoso ou do deficiente interessado, desde que na localidade não se encontre instalada Vara da Justiça Federal ou Juizado Especial Federal, nos termos do disposto no § 3º do art. 109 da Constituição Federal, interpretado de forma extensiva.

A legitimidade para figurar no pólo passivo de ação que tenha por objeto benefício assistencial é do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), pois a sua concessão e administração são de incumbência da referida autarquia.

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Nas ações judiciais relativas a benefício assistencial, o Ministério Público atuará como fiscal da lei, sob pena de nulidade, incumbindo-lhe zelar pelo efetivo respeito aos direitos estabelecidos na Lei Orgânica da Assistência Social.

7 A RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE RENDA PER CAPTA

7.1 HIPOSSUFICIÊNCIA

Jediael Galvão Miranda (2007, p. 279) diz que:

“denomina-se hipossuficiência, para fins de benefício assistencial, a ausência de capacidade econômica para garantir a subsistência. O estado de miserabilidade, de acordo com a Lei Orgânica da Assistência Social, manifesta-se quando a família do deficiente ou do idoso possua renda mensal per capta inferior a ¼ do salário mínimo”.

Assim dispõe o inciso IV, do art. 4º do Decreto n.º 6.214/2007, que família incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou do idoso é aquela cuja renda mensal bruta familiar dividida pelo número de seus integrantes seja inferior a um quarto do salário mínimo. O inciso VI, do art. 4º do mesmo Decreto conceitua renda mensal bruta familiar:

VI – Renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, comissões, pró-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19.

Para efeito do cálculo da renda per capta, considera-se família o conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto, assim entendido, o requerente, o cônjuge, a companheira, o companheiro, o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido. Assim sendo, os rendimentos dos filhos maiores não integram a renda da família, este é o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região: “Os ganhos dos filhos maiores, ainda que residam no mesmo teto, não compõem a renda mensal, porque eles não integram o conceito de família da Lei 8.742/1993.” (AC nº 927483/SP, Rel. Des. Fed. Castro Guerra, j. 11/4/2006, DJU 10/5/2006, p.450).

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Há posicionamento jurisprudencial no sentido de que o rol do inciso V, do art. 4º do Decreto n.º 6.214/2007 não é exaustivo para fins de apuração da renda mensal per capta, podendo englobar outros membros da família que vivam sob o mesmo teto e contribuam para o sustento do grupo familiar. É neste sentido o posicionamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“Assim, constatado que a renda auferida por um só membro da família destina-se ao sustento de todo o grupo familiar, composto por pessoas outras que não apenas aquelas referidas no art. 20, § 1º da Lei 8.723/1993 c/c art. 16 da Lei 8.213/1991, tal circunstância deve ser considerada para fins de distribuição da renda per capta.” (AC n.º 20010410863015/RS, Rel. Des. Fed. Tadaaqui Hirose, j. 17/9/2002, DJU 9/10/2002, p. 907).

7.2 O CRITÉRIO DE MISERABILIDADE

O Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais têm se orientado no sentido de que a renda familiar per capta superior a ¼ do salário mínimo não é óbice absoluto à concessão do benefício assistencial se comprovada a condição de miserabilidade por outros meios de prova.

A Terceira Seção deste Superior Tribunal , no âmbito da Quinta e da Sexta Turma, consolidou entendimento de que a comprovação do requisito da renda familiar per capta não-superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não exclui outros fatores que tenham o condão de aferir a condição de miserabilidade da parte autora e de sua família, necessária à concessão do benefício assistencial”. (AGREsp n.º 529928/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 6/12/2005, DJU 3/4/2006, p. 389).

No mesmo sentido o Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

O requisito de renda familiar de ¼ (um quarto) do salário mínimo per capta, nos termos do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, é meramente objetivo, podendo o julgador aferir a condição de miserabilidade do grupo familiar ou impossibilidade financeira do necessitado através de outros meios de prova.” (AC n.º 199701000269858/MT, Rel. Des. Fed. José Amílcar Machado, j. 26/4/2006, DJU 15/5/2006, p. 8).

Na mesma senda, a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudências dos Juizados Especiais Federais editou a súmula n.º 11, com o seguinte enunciado:

A renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no

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art. 20, § 3º da Lei nº. 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante.

Em que pese a orientação prevalente adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Turma de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, o Supremo Tribunal Federal tem acolhido reclamações interpostas pelo INSS, entendendo que a aferição do estado de hipossuficiência deve ser realizado unicamente na forma estabelecida na Lei Orgânica da Assistência Social, não se admitindo “interpretação conforme”, isto é, não se permite a adoção de outros meios de prova da miserabilidade.

Benefício assistencial (CF, art. 203, V; Lei n.º 8.742/1993, art. 20, § 3º): ao afastar a exigência de renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo per capita, para a concessão do benefício, o acórdão recorrido divergiu do entendimento afirmado pelo STF na ADIn 1232, Galvão, Dj 1/6/2001, conforme assentado na Rcl 2.303-AgR, Pleno Ellen Gracie, j. 3/5/2004, quando o Tribunal afastou a possibilidade de se emprestar ao texto impugnado interpretação segundo o qual não limita ele os meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idodo.” (RE-ED n.º 416727/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25/10/2005, DJU 2/12/2005, p. 13).

Contudo, o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso dispôs que o benefício assistencial já concedido a qualquer integrante da família não será computado para fins do cálculo da renda familiar per capta a que se refere a Lei Orgânica da Assistência Social.

Com base no dispositivo legal mencionado do Estatuto do Idoso, é inegável a mudança de parâmetros para a apuração da hipossuficiência. Ainda que a norma faça expressa referência apenas ao benefício assistencial como não computável para o cálculo da renda familiar per capta, também deve ser considerado como excluído o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo, uma vez que as rendas mensais de ambos os benefícios são de igual expressão, não podendo a natureza do benefício servir como fator discriminatório se o estado de miserabilidade tem cunho eminentemente econômico. A regra legal em comento permite interpretação mais ampliada ainda. Se a renda de um salário mínimo, proveniente de benefício assistencial recebido por membro da família não integra o cálculo da renda familiar per capta, qualquer outra renda de mesmo valor percebida por membro da família, independentemente da origem da receita, não poderá ser empecilho para que outro membro, cumpridos

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os demais requisitos exigidos pela Lei Orgânica da Assistência Social, perceba benefício assistencial, porquanto a condição econômica para a sobrevivência é exatamente igual nas situações retratadas, não se justificando qualquer discrímen com base somente na origem da renda (MIRANDA, 2007).

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região entende que

A Lei n.º 10.741/2003, além de reduzir o requisito idade para a concessão do benefício assistencial, dispôs no parágrafo único do art. 34 que ‘o benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capta a que se refere a LOAS’. A lei outra coisa não fez senão deixar claro, em outras palavras, que o benefício mensal de um salário mínimo, recebido por qualquer membro da família, como única fonte de recursos, não afasta a condição de miserabilidade do núcleo familiar, em cuja situação se justifica a concessão de amparo social a outro membro da família que cumpra o requisito idade. Seria de indiscutível contra-senso se entender que o benefício mensal de um salário mínimo, na forma da LOAS, recebido por um membro da família, não impede a concessão de igual benefício a outro membro, ao passo que a concessão de aposentadoria por idade, no valor de um salário mínimo, nas mesmas condições, seria obstáculo à concessão de benefício assistencial. Se é de miserabilidade a situação da família com renda um salário mínimo, consistente em benefício disciplinado pela LOAS, também o é pelo RGPS quando o benefício recebido por um membro da família se restringir ao mínimo legal, pois a aferição da hipossuficiência é eminentemente de cunho econômico. Vai-se mais longe. A renda familiar de um salário mínimo, percebida por um membro da família, independente da origem da receita, não poderá ser impedimento para que outro membro, cumprindo os demais requisitos exigidos pela Lei n.º 8.742/1993, aufira o benefício assistencial, pois a condição econômica para a sobrevivência é exatamente igual àquela situação de que trata o parágrafo único do art. 34 da Lei n.º 10.741/2003. Sob esse prisma, ainda que tratando especificamente do idoso, a regra não pode deixar de ser aplicada no caso do ‘incapaz para a vida independente e para o trabalho’, porquanto economicamente não se pode dizer que se defronta com situações distintas.” (AC n.º 906551/SP, Rel. Des. Fed. Galvão Miranda, j. 14/9/2004, DJU 4/10/2004, p. 470).

Da mesma forma, o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, ainda que tratando especificamente do idoso, não pode deixar de ser aplicado no caso do deficiente, uma vez que economicamente não se pode dizer que se

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defronte com situações distintas.No mesmo sentido a Juíza Federal Substituta Karen Éler Czajkowski

prolatou a seguinte decisão:

Convém ressaltar que o limite delineado admite certo nível de abrandamento, nada impedindo que o julgador, vislumbrando a condição de miserabilidade do interessado e de seu núcleo familiar, conceda o benefício assistencial, aplicando o critério objetivo acima referido levando em conta os princípios previdenciários insculpidos na Constituição da República de 1988. Nesse sentido é a decisão do STF, proferida em 8.6.2006, nos autos da Reclamação n.º 4.115, em voto de lavra do Ministro Carlos Ayres Britto, trazendo novos horizontes à questão ora em debate, ao legitimar a tarefa de aferição da miserabilidade no caso concreto, sem que com isso se afastem os comandos da Lei n.º 8.742/93, dando-lhe interpretação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, o legislador, ao determinar no parágrafo único do art. 34 da Lei n. 10.741/2003 que o benefício assistencial ao idoso já concedido a qualquer outro membro do respectivo grupo familiar não será computado para os fins do cálculo da respectiva renda per capita, teve na verdade como objetivo preservar a renda mínima auferida pelo idoso, assegurando que seu benefício (de um salário mínimo) não seja considerado para efeito do cálculo da renda familiar per capita. Sendo assim, é possível estender tal raciocínio, por analogia e eqüidade, e até mesmo em respeito ao princípio constitucional da isonomia, também ao caso dos benefícios assistenciais cujos titulares sejam pessoas deficientes (também protegidas pelo LOAS), e bem como aos demais benefícios previdenciários de renda mínima (desde que seus titulares sejam pessoas idosas com pelo menos 65 anos de idade, ou deficientes ou incapacitadas para o trabalho), na medida em que todos os benefícios nestas condições se destinam à manutenção e à sobrevivência de pessoas idosas e/ou deficientes ou incapacitadas para o trabalho, afigurando-se portanto ilógico fazer distinção entre as situações acima indicadas apenas porque concedidos com base em suportes fáticos distintos. (Sentença, Juizado Especial Federal de União da Vitória, processo n.º 20077064001116-8/PR, j. 4/4/2008).Nesse sentido, já decidiu a Segunda Turma Recursal da Seção Judiciária

do Paraná:

O benefício de valor mínimo é de ser excluído para fins de aferição da renda per capita, seja ele de natureza previdenciária ou assistencial, por aplicação da regra do parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741, de

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01/10/2003 (Estatuto do Idoso). Embora aquela norma faça menção apenas à hipótese do benefício referido em seu caput (assistencial), evidencia-se que, em atenção ao princípio da isonomia, ela é de ser também observada nos casos de qualquer benefício de valor mínimo, atendido, sempre, o requisito etário do respectivo beneficiário. (Autos n.º 200670950021044, Rel. Juíza Federal Leda de Oliveira Pinho, j. 1/8/2006).

O mesmo órgão colegiado decidiu:

Antes da Lei 10.741/03 já era possível o entendimento de que os benefícios de valor mínimo da seguridade social se destinam essencialmente a prover as necessidades primárias e urgentes do beneficiário que se encontra na contingência de ausência ou insuficiência de recursos para prover, de modo digno, sua subsistência. Os valores correspondentes a prestações previdenciárias ou assistenciais de um salário-mínimo não podem, assim, prejudicar a operação da assistência social em relação a outras pessoas da família que também se encontram em condições de vulnerabilidade social.A não integração dos valores recebidos a título de benefício mínimo - assistencial ou previdenciário - no cálculo da renda mensal familiar, atende às diretrizes de universalização dos direitos da seguridade social (CF/88, art. 194, I) e de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais (CF/88, art. 3o, III), bem assim realiza os princípios da dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1o, III) e da realização da justiça social (CF/88, art. 193), prescindindo, dessa forma, da regra que veio a ser expressa no art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/03. Nessas condições, deve ser excluída da renda familiar a importância recebida a título de benefício assistencial pelo filho deficiente, não implicando tal interpretação vulneração das regras estabelecidas pelo art. 203, V, da CF/88 e art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93. (Autos nº 200570950076521/PR, Rel. Juiz Federal Danilo Pereira Júnior, j. 7/3/2006).

Assim, há que se aplicar o critério supra de forma adequada aos objetivos visados pelo legislador na LOAS e no Estatuto do Idoso, de forma que todo e qualquer benefício previdenciário/assistencial de valor mínimo, cujo titular seja pessoa idosa com no mínimo 65 anos de idade ou deficiente/incapacitada para o trabalho, seja desconsiderado no cômputo da renda per capita mensal do núcleo familiar do interessado, computando-se toda e qualquer renda que ultrapassar este valor para fins de cálculo da renda mensal per capita e concessão do benefício assistencial ao outro integrante do núcleo familiar. Portanto, havendo benefício previdenciário cujo valor seja superior ao valor mínimo (qualquer que

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seja a condição do seu titular), deverá ser considerado seu valor integral para os fins do artigo 20 da Lei n.º 8.742/93 e do artigo 34 da Lei n.º 10.741/2003.

7.2.1 O CRITÉRIO DE MISERABILIDADE E OS PROGRAMAS ASSISTENCIALISTAS DO GOVERNO

Atendendo ao Estado Social de Direito erigido pela Constituição Federal de 1988, o Governo tem buscado implantar programas sociais visando atender às condições mínimas do cidadão que não possa supri-la por si mesmo ou por sua família. Assim, há leis sucessoras da Lei 8.742/1993, regulando programas assistencialistas nas mais diversas áreas – do auxílio-gás ao programa de erradicação do trabalho infantil.

Ocorre que, ao contrário do critério adotado pela Lei Orgânica da Assistência Social, suas sucessoras adotaram como instrumento de configuração de pessoas pobres para fins de concessão dos benefícios assistenciais, a renda familiar per capita ser inferior a ½ salário mínimo.

A incompatibilidade entre os critérios já foi objeto de análise da doutrina, havendo quem afirme a necessidade de o Supremo Tribunal Federal manifestar-se sobre esta nova situação, tendo em vista ser fato superveniente ao julgamento da ADIn 1.232 (ROCHA; SAVARIS, 2007).

8 CONSIRERAÇÕES FINAIS E A DISCUSSÃO DE CONSTITUCIONALIDADE

Sujeito à análise do Supremo Tribunal Federal por via de Ação Direta de Inconstitucionalidade, o critério de miserabilidade foi considerado objetivo, julgando-se improcedente a ação, conforme a ementa a seguir:

Constitucional. Impugna dispositivo de Lei Federal que estabelece o critério para receber o benefício do inc. V do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que a reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado. Ação julgada improcedente (STF, ADIn. 1232).

A partir de então o cenário jurídico brasileiro passou a compor-se de duas teorias argumentativas em relação ao critério de ¼ do salário mínimo: de um lado a corrente do Governo (Instituto Nacional de Seguro Social – INSS) e o Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual, como o tribunal julgou improcedente a ADIn. a norma seria constitucional, logo aplicável indistintamente; de outro lado, a corrente assistencialista, segundo a qual, o critério seria uma forma

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de presunção das condições do beneficiário, não afastando a análise do caso concreto, a fim de se dar efetividade ao assistencialismo no Brasil. (ROCHA; SAVARIS, 2007).

Primeiramente analisemos a corrente o Governo fundada no julgamento da ADIn. 1.323: Por ocasião do julgamento estavam presentes 6 (seis) Ministros, tendo a ação sido julgada improcedente por voto da maioria.

O relator original Min. Ilmar Galvão, foi voto vencido ao sustentar que

Na realidade, não se pode vislumbrar inconstitucionalidade no texto legal, porto revelar ele uma verdade irrefutável, seja, a de que é incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capitã seja inferior a ¼ do salário mínimo.

A questão resta é a de saber se com a hipótese prevista pela norma é a única suscetível de caracterizar a situação de incapacidade econômica da família do portador de deficiência ou do idoso inválido.

Revelando-se manifesta a impossibilidade da resposta positiva, que afastaria grande parte dos destinatários do benefício assistencial previsto na Constituição, outra alternativa não resta senão emprestar ao texto impugnado interpretação segundo a qual não limita ele os meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idoso.

Meu voto, portanto, com o parecer, julga procedente apenas em parte a ação, para efeito acima explicitado. (Grifo nosso).

Por sua vez, o Min. Nelson Jobim que teve o voto de improcedência

acolhido, passando a ser o relator da ADIn. manifestou-se no sentido de que a lei dispusera sobre os mecanismos de comprovação e, se ela quisesse dispor diferentemente, o faria. Seguiu este voto o Mi. Maurício Corrêa, bem como o Min. Sepúlveda Pertence, todavia com manifestação diversa:

Considero perfeita a inteligência dada ao dispositivo constitucional, no parecer acolhido pelo Relator, no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter-se o idoso ou deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art. 203 da Constituição. A meu ver, isso não faz inconstitucional nem é preciso dar interpretação conforme à lei que estabeleceu uma hipótese objetiva de direito à prestação assistencial do Estado. Haverá aí, inconstitucionalidade por omissão de

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outras hipóteses? A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta. Julgo improcedente a ação. (Grifo nosso).

Assim, ao analisar-se a decisão a partir de sua ementa, poder-se-ia considerar que, ao julgar improcedente a ADIn. 1.232, o Supremo Tribunal Federal teria refutado outros elementos de análise para averiguar a condição do sujeito ao benefício assistencial. Todavia, nos votos da ação, percebe-se uma clara discussão acerca da necessidade de reconhecer-se outros elementos de identificação da necessidade ou não, do benefício, sendo a Lei 8.742/1993, art. 20, § 3º constitucional no sentido de prever, como a Constituição determinou, uma regra objetiva, diga-se de presunção das necessidades do cidadão, como bem destacou o Mi. Ilmar Galvão e ratificou o Min. Sepúlveda Pertence.

Nestes termos, o argumento da constitucionalidade da Lei 8.742/1993, art. 20, § 3º, de ser excludente de outros meios de prova da condição de necessidade do cidadão, não corresponde à intenção da Constituição e, ao que parece, dos Ministros do Supremo por ocasião do julgamento.

De suma importância para essa conclusão é a afirmação do Mim. Sepúlveda Pertence no sentido de haver uma inconstitucionalidade por omissão na norma objeto da ADIn., mas que naquele momento não poderia ser analisado por não ser fonte de discussão.

“Subsume-se do exposto a ausência de correspondência entre o sustentado pelo Governo e os votos proferidos na ADIn. tão destacada pelo mesmo” (GALVÃO; SAVARIS, 2007).

A corrente assistencialista, nesse pensar acaba representando a vertente mais adequada ao interesse do Estado Social de Direito, pois parte da interpretação da Lei 8.742/1993, art. 20, § 3º, como presunção iuris et iure a ser complementada por outros meios de prova das necessidades do idoso ou deficiente.

O Superior Tribunal de Justiça reiteradamente tem adotado essa interpretação, conforme pode-se extrair do seguinte excerto:

Ademais esta Corte Superior de Justiça, mediante interpretação sistemática e teleológica do instituto em questão e do art. 20 da Lei 8.742/93, firmou entendimento no sentido de que o requisito da comprovação da renda familiar per capita não superior a ¼ (um quato) do salário mínimo - § 3º do mencionado artigo – não exclui que a condição de miserabilidade, traduzida na situação econômico do beneficiário e a sua real necessidade, resulte de outros meios de prova, de acordo com o caso concreto.

Na hipótese de comprovada a renda por pessoa inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, presume-se absolutamente, iure et de iure(!), a miserabilidade.

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Tal presunção não obsta a demonstração da penúria por outros meios de prova em direito admitidas, júris tantum. (STJ – AGRG Resp. 478.379/RS – Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – j. 16/3/2006, DJ 3/4/2006).

Não bastassem as considerações já expostas, o critério de ¼ do salário mínimo merece ser contraposto à luz de dois conceitos: miséria e pobreza. Bem coloca Sérgio Fernando Moro (Apud ROCHA; SAVARIS, 2007, p.379-380).

A linha de indigência é definida pela renda necessária para atendimento das necessidades calóricas mínimas de um indivíduo. A linha de pobreza é calculada como um múltiplo da linha de indigência, considerando a renda necessária para o atendimento de outras necessidades básicas mínimas, como vestuário, habitação e transportes [...].

Visando concretizar os objetivos da assistência social no Brasil de forma coerente aos anseios sociais, a magistratura tem representado o alicerce do cidadão. Essa, através de inúmeras decisões, tem afastado a visão do ‘sujeito ao direito’ para implantar o ‘sujeito de direito’, aquele que possui direitos, mas também garantias em face do Estado e da sociedade no sentido de atingir o mínimo de dignidade humana (GALVÃO; MIRANDA, 2007).

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A PROTEÇÃO LEGAL DA MARCA COMO INSTRUMENTO PROMOTOR DA POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO:

UM REFLEXO DO EXERCÍCIO SOCIALMENTE FUNCIONALIZADO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL

alySSon hautSch oiKawa81

mariana mEnDES carDoSo oiKawa82

RESUMO

O direito reconhece a importância econômica da marca para a organização, garantindo a propriedade por meio do registro validamente concedido por autoridade competente. As normas aplicáveis possibilitam ao titular inibir e coibir usos indevidos, além de reclamar perdas e danos. Mas apesar da legislação de propriedade industrial ter como fundamento a proteção do legítimo titular contra atos de concorrência desleal, a utilização indevida de marca deve ser reprimida em razão de garantias outras, relacionadas à promoção da Política Nacional das Relações de Consumo. É desta outra forma de tutela que se ocupa o presente estudo, analisando-a como um efeito da função social da atividade empresarial.

ABSTRACT

The law recognizes the economic importance of the mark for the organization, ensuring property by means of registration validly granted by competent authority. The applicable rules afford the holder the possibility of preventing and restraining misuses, besides claiming damages. But in spite of the fact that industrial property legislation is based on the protection of the legitimate holder against acts of unfair competition, misuse of the mark should be hindered because of other guarantees related to the promotion of the National Policy of Consumer Relations. The present study focuses on this other form of protection, analyzing it as an effect of the social function of business activity.

81 Mestre em Direito (Master of Laws, LL.M.) pela University Of Illinois at Urbana-Champaign, EUA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de cursos de graduação no UNICURITIBA e de Pós-graduação no UNICURITIBA, na PUCPR, na Universidade Positivo e na FAE Business School. Advogado.82 Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora universitária. Advogada.

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Palavras-chave: Marca. Distintividade. Concorrência desleal. Livre concorrência. Defesa do consumidor. Relações de consumo. Função social da empresa.

Keywords: Trademark. Service mark. Distinctiveness. Unfair competition. Free competition. Consumer defense. Consumer relations. Social function of the enterprise.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Breves apontamentos sobre a proteção legal de marcas: con-ceito, natureza e funções; 3. A proteção legal de marcas e a Política Nacional das Relações de Consumo: a tutela das relações de consumo por meio da coibição à concorrência des-leal e ao uso indevido de marca; 4. O obrigatório exercício socialmente funcionalizado da empresa: a realização do conteúdo finalístico imposto à atividade empresarial por meio da proteção legal de marcas; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas

1 INTRODUÇÃO

Em artigo recente sobre como empresas de economias emergentes vêm buscando desenvolver marcas globais, a célebre publicação The Economist83 afirmou que negócios sem marcas trabalham com margens brutas de 3-8% e estão constantemente em risco de serem superadas por concorrentes mais baratos. Por sua vez, as empresas que identificam suas atividades com marcas se beneficiam de margens maiores (15% ou mais) e de consumidores mais fiéis. Os dados reforçam a importância da marca na manutenção e expansão das organizações, principalmente diante dos graves desequilíbrios financeiros que, desde 2008, afetam praticamente todas as economias do mundo.

O cenário internacional traz óbvios reflexos para a atuação de empresas brasileiras. Em tempos de incerteza econômica, de retração de investimentos, a demanda por determinados produtos é afetada, principalmente em relação a mercadorias sem marca, como commodities. Conforme relatório da Organização das Nações Unidas divulgado em junho de 201284, os preços das commodities caíram significativamente na segunda metade de 2011 e, com exceção do petróleo e derivados, a volatilidade dos preços continua a ser motivo de preocupação para exportadores e importadores.

Enquanto a crise econômica demanda ajustes em margens financeiras, o consumidor exige produtos e serviços mais baratos e que atendam melhor as

83 “Brand new: Emerging-market companies are trying to build global brands”. The Economist. 04/08/2012. Disponível em <http://www.economist.com/node/21559894>, acesso em 07 de outubro de 2012.84 O relatório intitulado “World Economic Situation and Prospects - Update as of mid-2012” foi lançado 08 de junho de 2012 e está disponível em <http://www.un.org/en/development/desa/policy/wesp/index.shtml>, acesso em 08 de outubro de 2012.

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suas expectativas. Afinal, as tecnologias de comunicação aproximam o público dos detalhes necessários à decisão de compra. Qualquer fornecedor que deseje se destacar perante a concorrência deve compreender que a audiência vem se tornando sofisticada e mais sensível na avaliação de mensagens publicitárias. Em tempos em que a sustentabilidade social e ambiental ganha relevância, as empresas precisam demonstrar maior responsabilidade para com suas atividades. São desafios que impõem a constante necessidade de se redescobrir soluções criativas e inovadoras, fomentadas por investimentos em marketing, pesquisa e desenvolvimento, com vistas à manutenção e melhoramento de sua reputação (“goodwill”) perante o mercado e, principalmente, perante os consumidores85.

É a boa reputação percebida pelo público que incita o primeiro contato e que fomenta a fidelidade da clientela. O que simboliza essa reputação é a marca. Não por acaso, a marca é frequentemente tratada como o ativo mais importante da empresa. A percepção de que somente ativos tangíveis possuíam valor foi superada há muitos anos. Os principais estudos sobre as marcas globais mais valiosas apontam nos primeiros lugares aquelas que se notabilizaram por distinguir, sobretudo, bens intangíveis. Cite-se, por exemplo, a consultoria britânica BrandFinance86, que coloca a marca “APPLE” como a mais valiosa do mundo, com valor estimado em mais de US$ 70 bilhões, seguida das marcas “GOOGLE” (US$ 47,4 bilhões), “MICROSOFT” (US$ 45,8 bilhões) e “IBM” (US$ 39,1 bilhões).

O direito reconhece a importância da marca para a organização, possibilitando ao titular reclamar exclusividade uma vez que atenda os requisitos para a obtenção de registro. Uma vez assegurada a propriedade através do registro validamente concedido, as normas aplicáveis garantem ao titular a

85 “É sintomático que os anglo-saxões chamem de goodwill [a] diferença entre o preço pago e o valor líquido contábil da empresa. Afinal, o que remunera de fato esse goodwill contábil e financeiro? Precisamente o goodwill psicológico por parte dos consumidores e dos distribuidores de todos os membros das áreas administrativa [...], ou seja, ‘boa vontade’ no sentido literal, ‘atitudes e predisposições favoráveis’. Existe, portanto, uma estreita relação entre a análise financeira e a análise de marketing da marca. O goodwill contábil (em francês survaleur) é a avaliação monetária do goodwill psicológico que a marca soube focalizar sobre o nome por meio de esforços, tempo, investimentos e constância. Pode-se notar o quanto o termo inglês goodwill, ao cobrir as duas facetas do problema, esclarece a fonte do valor da marca.” (destaques no original) KAPFERER. Jean-Noël. As marcas, capital da empresa: criar e desenvolver marcas fortes. p. 20-21. 86 Segundo estudo intitulado “BrandFinance Global 500 2012”, disponível em <http://brandfinance.com/images/upload/bf_g500_2012_web_dp.pdf>, acesso em 08 de outubro de 2012. A marca “APPLE” também foi considerada como a mais valiosa pela consultoria estadunidense Millward Brown (valor estimado em US$ 182,9 bilhões), seguida por “IBM” (US$ 115,9 bilhões) e “GOOGLE” (US$ 107,8 bilhões), conforme seu estudo “2012 BrandZ Top 100”, disponível em <http://www.millwardbrown.com/BrandZ/Top_100_Global_Brands.aspx>, acesso em 08 de outubro de 2012. Por sua vez, a consultoria Interbrand destacou a marca “COCA-COLA” como a mais valiosa (US$ 77,8 bilhões), colocando a marca “APPLE” em segundo lugar (US$ 76,5 bilhões), seguida por “IBM” (US$ 75,5 bilhões), “GOOGLE” (US$ 69,7 bilhões) e “MICROSOFT” (US$ 57,8 bilhões).

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prerrogativa de exigir que terceiros cessem ameaça ou a lesão à marca, além de reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Contudo, apesar da legislação de propriedade industrial ter como fundamento principal proteger os interesses do legítimo titular contra atos de concorrência desleal, o uso indevido de marcas deve ser reprimido em razão de garantias outras, relacionadas à promoção da Política Nacional das Relações de Consumo. É desta outra forma de tutela que se ocupa o presente estudo, analisando-a como um efeito da função social da atividade empresarial.

2 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PROTEÇÃO LEGAL DE MARCAS: CONCEITO, NATUREZA E FUNÇÕES

A proteção legal de marcas integra o ramo jurídico da propriedade industrial87 (ou direito industrial), como explica Fábio Ulhoa Coelho88:

São bens integrantes da propriedade industrial: a invenção, o modelo de utilidade, o desenho industrial e a marca. O direito de exploração com exclusividade dos dois primeiros se materializa no ato de concessão da respectiva patente (documentado pela “carta-patente”); em relação aos dois últimos, concede-se o registro (documentado pelo “certificado”). A concessão da patente ou do registro compete a uma autarquia federal denominada Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. (destaques no original)

No Brasil, tal proteção foi elevada à categoria de garantia fundamental, tal qual previsto no inciso XXIX, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988:

XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

Observa-se claramente a opção do constituinte em conferir às marcas natureza jurídica de direito de propriedade89. Em nível infraconstitucional, os

87 Conforme o art. 1º, (2), da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 1883 (Revisão de Estocolmo, 1967, promulgada pelo Decreto nº 75.572, de 08 de abril de 1975): “A proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de proveniência ou denominações de origem, bem como a repressão da concorrência desleal”.88 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v. 1. p. 136.89 “A definição da marca como um direito de propriedade, na Constituição, é portanto, de ordem

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direitos e obrigações relativos à propriedade industrial são regulados pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 (Lei da Propriedade Industrial – LPI), a qual trilha o mesmo caminho. O artigo 5º da LPI qualifica como bens móveis os direitos de propriedade industrial. E, como espécie de bem móvel, a marca devidamente registrada90 integra o patrimônio de sua titular, seja ela pessoa física ou jurídica91. Assim, no que tange à natureza do direito sobre as marcas, ele pode ser definido como um “direito privado patrimonial, de natureza real, que tem por objeto bens ou coisas incorpóreas, tal como os outros direitos que compõem o quadro da propriedade imaterial”92 (ou propriedade intelectual).

Do ponto de vista mercadológico, a palavra “marca” pode ser entendida como “o ponto de referência de todas as impressões positivas e negativas” assimiladas pelo consumidor ao longo do tempo, quando se depara com produtos ou serviços designados pela marca, e também com a sua rede de distribuição, seu pessoal, e sua comunicação 93. A marca cria um vínculo com o público-alvo, representado “o que o consumidor é e o que acredita que a marca oferece para ajuda-lo a reforçar o seu lugar na sociedade”94. De acordo com Kotler e Armstrong95:

Marca é um nome, termo, signo, símbolo ou design, ou uma combinação desses elementos, para identificar os produtos ou serviços de um vendedor ou grupo de vendedores e diferenciá-los de seus concorrentes. A marca é uma promessa do vendedor de oferecer, de forma consistente, um grupo específico de características, benefícios e serviços aos compradores. As melhores marcas apresentam uma garantia de qualidade. [...] Os significados mais duradouros de uma marca são seu valores e sua personalidade – eles definem a essência da marca.

direta e explícita.” BASSO, Maristela. Propriedade intelectual e importação paralela, p. 55.90 Segundo o art. 129 da Lei nº 9.279/96, “[a] propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido [...], sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional [...].”91 Conforme estabelecem o art. 128 e §1º da Lei nº 9.279/96, podem requerer registro de marca as pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou de direito privado, sendo que as de direito privado só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, de modo direto ou através de empresas que controlem direta ou indiretamente.92 CERQUEIRA. João da Gama. Tratado da propriedade industrial. v. I. p. 351. 93 KAPFERER. Jean-Noël. Op. cit. p. 20.94 SCHULTZ, Don E; BARNES, Beth E. Campanhas estratégicas de comunicação de marca. p. 44. “[É] importante entender que a marca tem duas formas de valor: o valor para a organização de marketing e o valor para o consumidor. [...] Do ponto de vista do cliente ou consumidor, a marca é um conjunto de muitas formas, fatores, funções e contextos que lhe dão significado no mercado.” SCHULTZ, Don E; BARNES, Beth E. Campanhas estratégicas de comunicação de marca. p. 44-45.95 KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Princípios de Marketing. p. 195.

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A definição legal de “marca” incorpora alguns dos atributos apontados pelos estudiosos do marketing, admitindo-a como signo que diferencia mercadorias e atividades daquelas oferecidas pela concorrência. Neste sentido, o artigo 123, inciso I, da LPI, considera marca de produto ou serviço “aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa”. A LPI segue a doutrina mais tradicional sobre a matéria, liderada pelo tratadista Gama Cerqueira96, que define “marca de fábrica e de comércio” como:

Todo sinal distintivo aposto facultativamente aos produtos e artigos das indústrias em geral para identificá-los e diferençá-los de outros idênticos ou semelhantes de origem diversa. As marcas consistem essencialmente, como o próprio nome indica, em um sinal colocado nas mercadorias para distingui-las. (destaques no original)

A referência legislativa a itens “de origem diversa” não escapa de críticas97 motivadas, primeiramente, pela coexistência de mercadorias de natureza e finalidade similares, identificadas por diferentes signos que pertencem à mesma titular, atendendo a estratégias comerciais sensíveis a peculiaridades do público-alvo (“target”) e de canais de distribuição98. Além disso, coexistem no mercado

96 CERQUEIRA. João da Gama. Op. cit. p. 364-365. O renomado tratadista elucida sua definição da seguinte forma: “Dizendo, pois, todo sinal distintivo, abrangemos qualquer sinal suscetível de constituir marca, exceto, como é, obvio, os que a lei explícita ou implicitamente proíbe; apôsto facultativamente aos produtos e artigos, acrescentamos, porque a marca não é obrigatória, nem precisa ser inerente ao produto, podendo ser aposta de qualquer modo; das indústrias em geral, porque o suo das marcas não se restringe a certas e de terminadas indústrias; para identificá-los e diferença-los de outros idênticos ou semelhantes de origem diversa, porque, embora se aponte como principal função da marca a de distinguir o produto pela sua origem, não é essencial que conte da marca o nome do produtor ou vendedor, de modo que, nesses casos, a marca individualiza e identifica o produto, distinguindo-o de seu similares de origem diversa pelo próprio emblema ou denominação adotada. A definição abrange as duas hipóteses.” (destaques no original) CERQUEIRA. João da Gama. Op. cit. p. 365. 97 Segundo Mauricio Lopes de Oliveira: “É imprecisa a definição legal ao determinar que a marca deve distinguir produto ou serviço de outro idêntico ou semelhante de origem diversa. Afinal, uma marca também serve para distinguir um produto ou serviço de outro idêntico mesmo quando ambos tenham uma única e mesma origem. [...] Assim, a verdade é que uma marca deve ter suficiente capacidade distintiva para diferenciar produtos ou serviços de outros, tenham ou não origem diversa.” (grifos no original) OLIVEIRA, Mauricio Lopes. Direito de marcas. p. 1-2.98 Há vários exemplos de empresas que oferecem ao consumidor diferentes opções de produtos dentro dos respectivos segmentos de mercado. Dentre outras famosas titulares de registros perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, destacam-se: a) a norte-americana The Coca-Cola Company e suas marcas de refrigerantes “COCA-COLA” (registro nº 002399504); “SPRITE” (registro nº 003395367), “FANTA” (registro nº 003351521) e “KUAT” (registro nº 819880248); b) a francesa Renault S.A.S. e seus modelos de automóveis “CLIO” (registro nº 818615699), “FLUENCE” (registro nº 826353070), “SANDERO” (registro nº 828202230), e

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produtos semelhantes, designados por marcas de titulares concorrentes, mas fabricados sob regime de licenças pelo mesmo fornecedor99. Diante dessas particularidades quanto à noção de “origem” na proteção legal de marcas, vale mencionar os esclarecimentos de Denis Borges Barbosa100:

A “origem” a que se refere o direito de marcas é simplesmente o valor concorrencial resultante da coesão e consistência dos produtos e serviços vinculados à marca, que, na perspectiva do consumidor, minoram seu custo de busca de alternativas, e, da perspectiva do investidor, representam a expectativa razoável de uma clientela. Esta relação fática e bilateral, que se realimenta, transcende as licenças, prescinde da garantia de qualidade, ignora a geografia e as peculiaridades de um estabelecimento fabril.

Ainda sobre a discussão envolvendo as marcas e sua função de indicação de origem, transcreve-se a opinião de Newton Silveira101:

[A marca] não é, também, sinal de origem dos produtos, no sentido de que tenham sido fabricados em determinado local. É sinal de origem no sentido de que o proprietário do sinal é o responsável pela fabricação do produto (quando se tratar de marca de indústria), determinando quem é e como o fará. A aposição da marca ao produto significa que ele foi feito sob responsabilidade do proprietário do sinal, por ele fabricado ou como se tivera sido fabricado por ele. O crédito ou descrédito resultantes incidirão sobre o proprietário da marca, influindo de forma positiva ou negativa sobre o aviamento do estabelecimento.

Se, por um lado, é controversa a conformidade da expressão “origem diversa”, por outro, o legislador tratou corretamente da função distintiva da

“SYMBOL” (registro nº 900037423); e, c) a brasileira São Paulo Alpargatas S/A e seus calçados “HAVAIANAS” (registro nº 811181197), “RAINHA” (registro nº 003011194), “TOPPER” (registro nº 006648371), e “SETE LÉGUAS” (registro nº 810931761). 99 A taiwanesa Hon Hai Precision Industry Co., Ltd, conhecida pela marca “FOXCONN”, é uma das líderes mundiais na fabricação de componentes eletrônicos (mais informações disponíveis no site oficial da empresa disponível em <http://www.foxconn.com/>, acesso em 07 de outubro de 2012). Além do fornecimento de componentes, a Foxconn também produz, sob licença das respectivas titulares, computadores e outros equipamentos de marcas concorrentes como “SONY”, “DELL”, “HP” e “APPLE” (Vide: “Foxconn fará investimento de R$ 1 bi em nova unidade em SP”. Valor Econômico. 18/09/2012. Disponível em <http://www.valor.com.br/empresas/2834744/foxconn-fara-investimento-de-r-1-bi-em-nova-unidade-em-sp#ixzz28eghJqTq>, acesso em 07 de outubro de 2012). 100 BARBOSA, Denis Borges. O fator semiológico na construção do signo marcário. p. 21.101 SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e a nova lei de propriedade industrial: (Lei n. 9.279, de 14-5-1996). p. 24. Vide, ainda, a explicação de Gama Cerqueira citada na nota 14, supra.

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marca. Além do mencionado inciso I, de seu artigo 123, a LPI ressalta essa finalidade no artigo 122, que determina serem suscetíveis de registro como marca “os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais”. Neste mesmo sentido já reconheceu nossa jurisprudência102, “a função primordial da marca é identificar um produto, distingui-lo de outros iguais ou similares existentes no mercado”.

Nesse ponto, ressalte-se, a LPI está de acordo com tratados internacionais sobre a matéria ratificados pelo Brasil, notadamente, a Convenção da União de Paris – CUP, de 1883 (Revisão de Estocolmo, de 1967)103, e o Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio - TRIPS, de 1994104. Ao tratar dos casos em que o registro de marcas poderá ser recusado ou invalidado, o artigo 6º quinquies, B, da CUP traz a hipótese de marcas “desprovidas de qualquer caráter distintivo”. E nos termos do artigo 15, parágrafo 1º, do TRIPS:

1. Qualquer sinal, ou combinação de sinais, capaz de distinguir bens e serviços de um empreendimento daqueles de outro empreendimento, poderá constituir uma marca. Estes sinais, em particular palavras, inclusive nomes próprios, letras, numerais, elementos figurativos e combinação de cores, bem como qualquer combinação desses sinais, serão registráveis como marcas. Quando os sinais não forem intrinsecamente capazes de distinguir os bens e serviços pertinentes, os Membros poderão condicionar a possibilidade do registro ao caráter distintivo que tenham adquirido pelo seu uso. Os Membros poderão exigir, como condição para o registro, que os sinais sejam visualmente perceptíveis.”

A função distintiva também é destacada no conceito de “marca” adotado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI105:

102 TRF-2, 2ª Turma Especializada – Rem. Ex Officio em Ação Cível nº 2004.51.01.520924-9, Rel. Des. Fed. Liliane Roriz, j. 27/04/2011. 103 Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 1883 (Revisão de Estocolmo, 1967, promulgada pelo Decreto nº 75.572, de 08 de abril de 1975).104 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio – ADPIC, mais conhecido pela sigla no idioma inglês “TRIPS”. Trata-se do Anexo 1C da Ata Final que Incorpora aos Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, assinada em Marrakesh, em 12 de abril de 1994, que constitui o Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC (promulgado pelo Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994).105 A Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI foi instituída por meio de Convenção assinada em Estocolmo em 14 de julho de 1967 (“Convenção da OMPI”, promulgada pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março 1975). Goza, portanto, de personalidade jurídica internacional. Com sede em Genebra, Suíça, a OMPI tornou-se organismo especializado da

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A trademark is a distinctive sign which identifies certain goods or services as those produced or provided by a specific person or enterprise. Its origin dates back to ancient times, when craftsmen reproduced their signatures, or “marks” on their artistic or utilitarian products. Over the years these marks evolved into today’s system of trademark registration and protection. The system helps consumers identify and purchase a product or service because its nature and quality, indicated by its unique trademark, meets their needs.106 (destaques no original)

Vê-se, portanto, que a distintividade constitui a essência do conceito legal de marca e reflete seu papel mais evidente107. Mas a doutrina também ressalta a função econômica da marca, que se destina a assegurar o investimento do empresário “no valor concorrencial da imagem que a atuação específica da empresa, identificada pelo signo, adquire junto aos consumidores”108. Gama Cerqueira109 já reconhecia a relevância econômica da marca, conforme explicitado abaixo:

Além de identificar os produtos ou de lhes indicar a procedência, as marcas, como observou Carvalho de Mendonça, “assumem valiosa função econômica, garantindo o trabalho e o esfôrço humano, representando fator do tráfego e tornando-se elemento de êxito e de segurança às transações”. “Amparando as marcas com medidas excepcionais” – acrescenta – “a lei não visa proteger a simples combinação de emblemas ou de palavras, mas proteger o direito, resultado trabalho, da capacidade, da inteligência e da propriedade do industrial ou do comerciante”.

Organização das Nações Unidas em 17 de dezembro 1974. O artigo 3º da Convenção da OMPI especifica os fins da Organização: “i) promover a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo, pela cooperação dos Estados, em colaboração, se for caso disso, com qualquer outra organização internacional; ii) assegurar a cooperação administrativa entre as Uniões.” Mais informações sobre suas funções e formas de atuação estão disponíveis no web site oficial: <http://www.wipo.int/> (acesso em 08 de outubro de 2012).106 Disponível em: <http://www.wipo.int/trademarks/en/trademarks.html>, acesso em 08 de outubro de 2012. Tradução livre: “A marca é um sinal distintivo que identifica certas mercadorias e serviços como aqueles produzidos ou fornecidos por uma pessoa ou empresa específica. Suas origens datam desde os tempos antigos, quando artesãos reproduziam suas assinaturas, ou ‘marcas’ nos seus produtos artísticos ou utilitários. Com o passar dos anos, essas marcas evoluíram para o sistema atual de registro e proteção de marcas. O sistema auxilia consumidores a identificar e adquirir um produto ou serviço porque sua natureza e qualidade, indicada por sua marca única, preenche suas necessidades.” 107 “O sentido da proteção jurídica à marca recai sobre a sua capacidade distintiva, o que explica o teor do artigo 122, da LPI, que estabelece serem suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos” (destaques no original). OLIVEIRA, Mauricio Lopes de. Op. cit. p. 4. 108 BARBOSA, Denis Borges. Op. cit. p. 11. 109 CERQUEIRA. João da Gama. Op. cit. p. 349.

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Nos seus esclarecimentos sobre o sentido da marca na economia, Jean-Noël Kapfer enaltece a reputação adquirida perante o público110:

A marca só tem valor na medida em que esse símbolo adquire um significado exclusivo, positivo, que se sobressai na mente do maior número de clientes. [...] Esses significados são adquiridos (no sentido literal) por um investimento contínuo da empresa em produção para manter um nível superior de qualidade, em pesquisa de novos produtos adaptados às evoluções dos consumidores, em uma rede de distribuição, em uma campanha de vendas na Europa e em todo o mundo, em despesas de comunicação, em defesas jurídicas contra a falsificação, etc. [...] Com o tempo, os investimentos financeiros e humanos, a regularidade da qualidade, a adaptação às novas expectativas e a proximidade (pela distribuição e pela comunicação) fazem com que o símbolo adquira sentido, através de um conjunto de informações duráveis e difundidas. À diferença da publicidade, que é rapidamente esquecida, a marca permanece na memória com as promessas que a ela são associadas pelo público. Nesta condição, ela está “estocada” na mente dos clientes potenciais e constitui, portanto, um ativo da empresa, que ocupa, graças a ela, uma parte das mentes [...]. Assim, trata-se, de fato, de um ativo no sentido contábil: efetivamente, serve de maneira duradoura para as atividades da empresa e não é consumido em sua primeira utilização.”

Destarte, a marca constitui importante ativo econômico, resultante de esforços em pesquisa e desenvolvimento, controles de qualidade, em marketing e em distribuição, o qual, em vários casos, resulta no item de maior valor no patrimônio da titular. O direito reconhece essa importância ao garantir direitos exclusivos (propriedade) por meio do registro validamente concedido111. Conforme observado pelo advogado e economista José Inacio Ferraz de Almeida Prado Filho112:

110 KAPFERER. Jean-Noël. Op. cit. p. 21.111 As proteções especiais concedidas às marcas notoriamente conhecidas e às marcas de alto renome são exemplos de como o direito reconhece a importância econômica das marcas para o empresário, buscando evitar seu aproveitamento ilícito. O art. 6º bis da CUP estabelece o compromisso dos países signatários em recusar ou invalidar o registro e a proibir o uso de reprodução ou imitação de marca notoriamente conhecida em seu segmento de mercado. Essa marca terá proteção especial, independentemente de estar previamente depositada ou registrada no Brasil, conforme art. 126 da LPI. Por sua vez, o art. 125 da LPI determina que a marca de alto renome registrada no Brasil também terá proteção especial, em todos os ramos de atividade.112 PRADO FILHO, José Inacio Ferraz de Almeida. Notas sobre direito e economia das marcas. p. 7.

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Criada a reputação [de uma marca], o produtor conseguirá maiores lucros em função das repetições de compra, das novas vendas e das economias em custos de busca. Se o direito não conferisse exclusividade ao uso da marca, outros empresários iriam se apropriar dos investimentos feitos pelo titular do signo distintivo, via contrafação, eliminando os incentivos econômicos para construção da marca, em primeiro lugar, ou destruindo o seu capital informacional, na medida em que o titular do signo distintivo não teria mais como assegurar consistência da qualidade ou das informações transmitidas pela marca.

Enquanto a natureza jurídica da marca é de direito de propriedade, conforme acima explicitado, o fundamento do amparo legal é inibir o aproveitamento parasitário da sua reputação, através da prática de concorrência desleal por meio de atos confusórios113. Newton Silveira114 entende que o conceito de propriedade industrial não pode ser desvinculado da noção de concorrência desleal. Para esse autor, “a repressão à concorrência desleal é, de um lado, fundamento do direito industrial, e de outro, elemento desse direito”115.

O caráter desleal resulta tanto do aproveitamento parasitário da marca do concorrente116, quanto da consequente confusão ou associação causada nos consumidores, os quais se valem da marca como indicação de proveniência. Numa clássica definição de marca, o juiz estadunidense Learned Hand afirmou o seguinte, em decisão proferida no ano de 1928117: “[A merchant’s] mark is

113 Conforme Wilson Pinheiro Jabur, atos confusórios “são aqueles tendentes a causar confusão entre concorrentes, quer entre seus estabelecimentos, produtos ou serviços.” O autor cita José de Oliveira Ascensão ao destacar que a essência desses atos “está em concorrente se enfeitar com penas alheias de maneira a fazer-se passar por outro, ou levar uma confusão no respeitante ao estabelecimento ou aos produtos ou serviços.” JABUR, Wilson Pinheiro. Pressupostos do ato de concorrência desleal, p. 352. 114 SILVEIRA, Newton. Sinais distintivos da empresa. p. 7. 115 Vide art. 2º, V, da LPI: “A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico do país, efetua-se mediante: [...] V - repressão à concorrência desleal.” 116 Nos casos das marcas de alto renome (art. 125 da LPI), “a proteção contra seu uso em produtos inteiramente distintos tem o objetivo de impedir a erosão ou diluição destas; o que há a salvaguardar, neste âmbito, não é tanto a indicação de proveniência, pois pode não existir qualquer risco de confusão entre os produtos, mas sim, e primordialmente, o valor comercial da marca e seu poder de atrair o público.” ADIERS, Cláudia Marins. As importações paralelas à luz do princípio de exaustão do direito de marca e dos aspectos contratuais e concorrenciais. p. 46.117 Trecho do voto proferido no caso Yale Electric Corp. v. Robertson, 26 F.2d 971 (2d Cir.1928), tal qual citado em MAGGS, Peter B.; SCHECHTER, Roger E. Trademark and unfair competition law: cases and comments. p. 26. Tradução livre: “A marca de um comerciante é o seu selo autêntico; por meio da marca ele atesta as mercadorias que a ostentam; ele leva seu nome para o bem ou para o mal. Se outro utilizá-la, ele empresta a reputação do titular, cuja qualidade já não se encontra sob

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his authentic seal; by it he vouches for the goods which bear it; it carries his name for good or ill. If another uses it, he borrows the owner’s reputation, whose quality no longer lies within his own control.” Sobre o tema, destaca-se posicionamento extraído de duas decisões que formaram jurisprudência:

Com efeito, a marca é um sinal distintivo, destinando-se a distinguir produtos e serviços, ou seja, para indicar que foram produzidos ou fornecidos por determinada empresa ou pessoa, servindo para diferenciá-los dos produtos de seus concorrentes, o que auxilia o consumidor a reconhecê-los, levando-o a adquiri-los porque a natureza e a qualidade dos mesmos atendem às suas necessidades.118

A finalidade da proteção ao uso das marcas é dupla: por um lado protegê-la contra usurpação, proveito econômico parasitário e o desvio desleal de clientela alheia e, por outro, evitar que o consumidor seja confundido quanto à procedência do produto (art.4º, VI, do CDC). No tocante a esse último aspecto, o que se vê é que a marca confere uma imagem aos produtos e serviços prestados pelo empresário, agregando, com o tempo, elementos para a aferição da origem do produto e do serviço. Por essa razão, a propriedade das marcas registradas no INPI tem proteção garantida pelo disposto no art. 5º, XXIX, da CF⁄88 [...].119

Em tempos atuais, além de resguardar essencialmente o empresário contra a concorrência desleal, ganha força o amparo de interesses difusos em relação às marcas utilizadas nas relações de consumo. Mais do que indicar a ligação com a empresa titular, a marca assume finalidade de individualizar o produto ou serviço em face da concorrência, tornando-se “meio hábil e competente” para atestar a legitimidade do produto ou serviço, “posto que o consumidor pouco se preocupa com a sua origem” 120. Como veremos a seguir, a proteção de marcas serve a propósitos públicos, pois permite que consumidores identifiquem produtos ou serviços que lhe satisfizeram no passado ou que podem corresponder as suas expectativas atuais.

seu próprio controle.”118 TRF-2, 2ª Turma Especializada – Rem. Ex Officio em Ação Cível nº 2004.51.01.520924-9, Rel, Des. Fed. Liliane Roriz, j. 27/04/2011.119 STJ, 3ª Turma – REsp 1.105.422/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10/05/2011.120 PIERANGELI, José Henrique. Crimes contra a propriedade industrial e crimes de concorrência desleal, p. 63.

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3 A PROTEÇÃO LEGAL DE MARCAS E A POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO: A TUTELA DAS RELAÇÕES DE CONSUMO POR MEIO DA COIBIÇÃO À CONCORRÊNCIA DESLEAL E AO USO INDEVIDO DE MARCA

De início, adverte-se, há que ser abandonada aquela visão reducionista, e porque não dizer ideológica, sobre o Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), segundo a qual teria ele a função única de tutelar os interesses deste, desprezando os outros partícipes da relação consumerista. O objetivo primordial do referido Código é, como não poderia deixar de ser, “a harmonia das sobreditas relações de consumo”121.

É evidente que a legislação consumerista não poderia se furtar da proteção ao consumidor, a parte evidentemente mais vulnerável no mercado livre de uma sociedade caracterizada pelo consumo. Entretanto, também se mostra inconteste que o CDC não poderia abandonar o fornecedor, desconsiderando o relevantíssimo papel socioeconômico por este exercido. Se de um lado a vulnerabilidade do consumidor deve ser reconhecida e tutelada, por outro deve ser propiciado e fomentado o desenvolvimento econômico.

Neste sentido, o CDC busca estabelecer um equilíbrio de forças para que se mostrem efetivamente harmônicas as relações estabelecidas entre ambas as partes das relações de consumo. Assim, ao tratar das necessidades e da melhoria da qualidade de vida dos consumidores, ao proteger a sua dignidade, a sua saúde a sua segurança e os seus interesses econômicos, o legislador o faz com a preocupação de não obstar o exercício da atividade empresarial, essencial ao desenvolvimento nacional.

Este objetivo de pacificação a que se propõe o Código de Defesa do Consumidor é bem observado quando da análise do seu Capítulo II, que trata da Política Nacional das Relações de Consumo. Já no caput do seu primeiro artigo, evidencia-se tal preocupação, a qual é confirmada na redação dos incisos subsequentes122.

121 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. p. 17 e 66.122 “Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; c) pela presença do Estado no mercado de consumo; d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre

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Merece destaque, para os fins que se propõe este estudo, o inciso VI do acima mencionado artigo 4º. De acordo com este dispositivo, são princípios da citada Política a “coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores”.

O referido dispositivo bem demonstra o equilíbrio relacional buscado pelo CDC. Este se socorre das leis de defesa do mercado e de proteção da propriedade industrial para garantir a liberdade das relações mercadológicas, a sadia concorrência e o ativo intelectual dos fornecedores, o que, consequentemente, irá proteger o consumidor, o “destinatário final de tudo quanto é colocado no mercado de consumo”123.

Não há aqui o interesse de retirar a importância da repressão ao abuso econômico para a tutela das relações de consumo. Contudo, conforme delineado nos itens anteriores, o artigo em questão tem por preocupação o estudo da proteção legal da marca como instrumento promotor da Política Nacional das Relações de Consumo, por tal razão este voltará suas atenções para a coibição à concorrência desleal e à utilização indevida daquela.

Cabe demonstrar de que forma a repressão à concorrência desleal é relevante para fins de proteção das relações de consumo. Para tanto, há que se destacar que o dispositivo em questão tem perfeita consonância com o artigo 170 da Constituição Federal, o qual trata, sabidamente, da ordem econômica. Esta, de acordo com o texto constitucional é informada, dentre outros, pelos princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor124.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o primeiro objetivo da livre concorrência é garantir “a proteção à liberdade subjetiva dos concorrentes, ou seja, a proteção à defesa dos interesses dos comerciantes”125. É em um segundo momento, entretanto, que se atinge o outro objetivo da garantia de livre concorrência, qual seja, a tutela dos interesses dos consumidores.

com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo; V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo; VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores; VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos; VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.”123 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor;”124 GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. Op. cit. p. 104.125 JABUR, Wilson Pinheiro. Op. cit. p. 340-341.

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A noção de livre concorrência encontra-se umbilicalmente ligada a de livre iniciativa, uma vez que, pode-se afirmar, inexiste uma real liberdade de empreender se não for garantida a liberdade de concorrer. Ora, a competição tem por intuito a conquista do mercado através da cativação de consumidores para os seus serviços e produtos, revestindo-se com contornos de essencialidade para fins da manutenção e da prosperidade da atividade empresária.

No que se refere aos consumidores, pode-se afirmar que é através das práticas concorrenciais lícitas que se garante a estes o pagamento de preços justos, assim como se estimula o desenvolvimento tecnológico, o qual determina a melhora da qualidade dos produtos e serviços oferecidos para consumo.

A competição, por ser econômica e socialmente salutar, deve ser a todos garantida. O que não se admite, neste contexto, é que a ânsia por lucro dos fornecedores acabe atingindo esta liberdade concorrencial, através da utilização de meios indevidos para a sua promoção. O resultado de tal prática será, certamente, o aumento dos preços e a queda da qualidade dos produtos e serviços, a redução das alternativas de compras e do direito de opção dos consumidores, além da estagnação tecnológica126.

Fábio Ulhoa Coelho127 ressalta a dificuldade de se diferenciar a concorrência leal da desleal, pois, em ambos os casos, o empresário objetiva causar dano aos concorrentes, com o intuito de obter maior participação no mercado. Para o autor, “são os meios empregados para a realização dessa finalidade que as distinguem”, e arremata: “Há meios idôneos e meios inidôneos de ganhar consumidores, em detrimento de concorrentes. Será assim, pela análise dos recursos utilizados pelo empresário, que se poderá identificar a deslealdade competitiva.”

Na falta de uma definição legal para o conceito de “concorrência desleal”, valemo-nos do disposto no artigo 10 bis da Convenção da União de Paris, que dispõe: “Constitui ato de concorrência desleal qualquer ato de concorrência contrária aos usos honestos em matéria industrial ou comercial.” O dispositivo enumera algumas das condutas que devem ser particularmente reprimidas: a) os atos suscetíveis de, por qualquer meio, estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente; b) falsas alegações no exercício do comércio, suscetíveis de desacreditar o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente; e c) indicações ou alegações cuja utilização no exercício do comércio seja suscetível de induzir o público em erro sobre a natureza, modo de fabricação, características, possibilidades de utilização ou quantidade das mercadorias.

126 GRINOVER, Ada Pellegrini et al.. Op. cit. p. 95.127 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 190-191.

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No artigo 195 da Lei nº 9.279/ 1996 encontramos catorze incisos que tipificam os chamados crimes de concorrência desleal. Para deste estudo, que foca na vertente confusional da concorrência desleal, destaca-se a conduta do inciso III do mencionado artigo 195, i.e., o emprego de meio fraudulento com vistas ao desvio de clientela de outrem. Este meio nos parece constituir o fundamento da concorrência desleal128, e a ele detém-se o presente artigo, ante a sua relação com o uso indevido de marca, outra prática coibida pelo inciso VI, do artigo 4º, do CDC.

Não há dúvidas que pode uma marca ser indevidamente utilizada com fins concorrenciais desleais, ante a possibilidade de confusão que representa. O consumidor pode ser levado adquirir um produto ou um serviço por acreditar possuir este determinada proveniência ou qualidade que não corresponde à verdadeira; é o que a doutrina especializada denomina de “aproveitamento parasitário da fama e do prestígio de marcas”129.

Conforme tratado em tópico anterior, a marca representa ao consumidor uma garantia de origem, a qual reduz o seu custo de busca por alternativas, ao passo que ao fornecedor significa uma expectativa de clientela130. Assim, a utilização indevida desta causa uma frustação em ambas as partes da relação de consumo.

Com relação ao fornecedor, afastam-se os clientes, reduzindo os seus ganhos, podendo representar, a longo prazo, a perda do valor econômico deste ativo intelectual. Com relação ao consumidor, tal erro perpassa a mera confusão, uma vez que esta pode representar o não atingimento da expectativa esperada com relação à qualidade do produto ou serviço131.

128 “Sob a denominação genérica de concorrência desleal, costumam os autores reunir uma grande variedade de atos contrários às boas normas da concorrência comercial, praticados, geralmente, com o intuito de desviar, de modo direto ou indireto, em proveito do agente, a clientela de um ou mais concorrentes, e suscetíveis de lhes causar prejuízos. Deve-se observar que êsses atos são igualmente condenáveis quando praticados pelo comerciante ou industrial para conservar e defender a sua clientela, em face de outros competidores que lha disputem por meios leais ou desleais. Tôda a luta da concorrência econômica, no comércio e na indústria, como, aliás, em outras profissões, desenrola-se em tôrno da clientela, esforçando-se uns para formar a própria freguesia, atraindo para si a alheia, ao passo que outros porfiam em conservar e aumentar a clientela adquirida.” CERQUEIRA. João da Gama. Tratado da propriedade industrial. v. II. Tomo II. p. 365-366.129 OLIVEIRA, Mauricio Lopes de. Op. cit. p. 99.130 BARBOSA, Denis Borges. Op. cit. p. 21.131 Importante mencionar que as marcas não se limitam àquelas que identificam um produto ou serviço. No que se refere à saúde e à segurança dos consumidores, assumem as marcas de certificação papel fundamental. De acordo com o inciso II, do artigo 123, da LPI, a marca de certificação é “aquela usada para atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas normas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada”. É o caso, por exemplo, da marca “INMETRO”, a qual

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Há que se observar que os danos aos consumidores decorrentes da qualidade de produtos indevidamente identificados com determinada marca podem trazer sérios prejuízos a sua saúde e segurança. Vivenciando um momento em que existe uma profusão de fornecedores, das mais diversas e remotas procedências origens, a utilização inidônea de marca significa a possibilidade de riscos à saúde e à segurança dos consumidores é cada vez maior132.

Neste exato sentido, recentemente decidiu o Superior Tribunal de Justiça – STJ. No julgamento do Recuso Especial nº 1.207.952 – AM, declara já na ementa do acórdão que “a marca é importante elemento do aviamento, sendo bem imaterial, componente do estabelecimento do empresário, de indiscutível feição econômica”, e, além disso, ela “é fundamental instrumento para garantia da higidez das relações de consumo. Desse modo, outra noção importante a ser observada quanto à marca é o seu elemento subjetivo, que permite ao consumidor correlacionar a marca ao produto ou serviço, evitando, por outro lado, o desleal desvio de clientela”133.

Ainda na busca por demonstrar que a proteção legal da marca, através da coibição do seu uso indevido, é mecanismo para a tutela das relações de consumo, importante destacar alguns dos direitos básicos do consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor estabelece em seu artigo 6º um rol, não exaustivo, dos direitos básicos do consumidor. Dentre estes, destaque merece o previsto no inciso IV, o qual aponta como sendo um de tais direitos “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”134.

Não há dúvidas de que o uso indevido da marca, bem como a concorrência desleal decorrente de tal prática, enquadram-se como métodos comerciais

atesta o atendimento de requisitos mínimos de qualidade e de segurança, é correntemente objeto de utilização indevida. O reconhecido “selo do INMETRO” é uma marca mista devidamente registrada junto ao INPI sob o nº 821105124, de titularidade do Inmetro - Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia. Este registro foi depositado em 01/10/1998, e concedido em 18/09/2001, na classe internacional NCL(7) 42, com a especificação “regulamentação metrológica, verificação e fiscalização de instrumentos de medição e mercadorias pré-medidas. manutenção e disseminação dos padrões das unidades de medida, refereciando-os, direta ou indiretamente aos padrões internacionais”. 132 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit. p. 104.133 STJ, 4ª. Turma – REsp nº 1.207.952/AM, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 23/08/2011. Neste mesmo sentido, vide decisão referenciada na nota 37, supra.134 “Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; [...] IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; [...].”

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desleais, afrontando o direito básico dos consumidores acima enunciado. E, no combate para esta afronta, não resta outra arma, senão a proteção legal das marcas, a qual, repete-se, tem importante papel econômico para a empresa e essencial importância social para o consumidor.

4 O OBRIGATÓRIO EXERCÍCIO SOCIALMENTE FUNCIONALIZADO DA EM-PRESA: A REALIZAÇÃO DO CONTEÚDO FINALÍSTICO IMPOSTO À ATIVI-DADE EMPRESARIAL POR MEIO DA PROTEÇÃO LEGAL DE MARCAS

Conforme tratado nos tópicos a este antecedentes, a proteção legal das marcas é mecanismo essencial à atividade empresarial, tendo em vista a enorme importância econômica que possui. Em uma sociedade estruturada no consumo, a marca adquire agigantada relevância, resguardando a reputação dos produtos e serviços colocados no mercado e, assim, garantindo uma maior clientela para estes. Destaque-se aqui, como já mencionado, o fato de, não raro, serem as marcas os ativos mais valiosos de diversas empresas.

Não há que se deixar de lado a função econômica da atividade empresarial, assim como de todos os seus elementos. Entretanto, é importante refletir, neste ponto, sobre a função social que estes, desde que instaurada a atual ordem constitucional, devem necessariamente possuir.

No que se refere à realidade legislativa nacional, pode-se afirmar que a Constituição Federal de 1988 estabelece um marco à função social da propriedade, da qual decorre o princípio da função social da empresa. O mesmo faz com a ordem econômica e financeira, dando a esta os contornos típicos do Estado Social de Direito. O artigo 170 da Carta Magna estabelece que a ordem econômica deve promover a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, de forma a assegurar a dignidade humana e a justiça social. É neste sentido que deve ser entendida a função social da empresa em nosso ordenamento.

É indiscutível é a importância socioeconômica da atividade empresarial. Esta é, desde a Revolução Industrial, o grande motor da economia e, consequentemente, da sociedade. Contudo, para alcançar uma mudança social, como a que pretendeu o Estado Social135, necessário mostrou-se alterar substancialmente a forma de exercício da atividade empresária.

135 Fala-se aqui em Estado Social em oposição ao Estado Liberal anteriormente vigente. Este, alicerçado nos ideais burgueses pós-revolução francesa, pautavam-se na independência do indivíduo frente ao Estado, na liberdade das relações comerciais e, principalmente, no estabelecimento legal de garantias aos cidadãos. Contudo, como bem destaca Paulo Bonavides em sua obra “Do Estado Liberal ao Estado Social”, tais garantias mostraram-se apenas formais, não se aplicando substancialmente, de forma a determinar um novo quadro de dominação, desta vez de cunho econômico. Diante de tal situação, Estado, sob o clamor de parte da sociedade, passa a interferir novamente nesta, de forma a buscar a real materialização dos direitos legalmente previstos.

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Em um panorama liberal, a empresa voltava-se apenas ao incremento de seus ganhos na busca pelo enriquecimento de seus proprietários. À medida que este panorama se mostrou contrário aos interesses sociais buscados pela sociedade e pelo Estado, passou este a intervir na atividade econômica, na busca da alteração do seu escopo. Abandonou-se, portanto, a premissa liberal de atividade empresarial voltada apenas para a maximização dos lucros em prol de seus proprietários. O Estado Social, na busca pela real liberdade dos indivíduos e pelo fim das desigualdades materiais, passa a intervir na atividade econômica, atribuindo novos papéis à empresa.

Em outras palavras, reconhece-se na atividade empresarial uma função outra, que não a meramente econômica. A sua funcionalização social determina uma atuação não apenas voltada para os interesses de incremento de lucro dos empresários, mas também atenta às necessidades sociais que a ela se interligam, buscando, através de sua atuação, a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Destaque-se que, evidentemente, permanece a função econômica da empresa de produção de riquezas, afinal interessa ao Estado a manutenção da atividade empresária ante a sua já citada importância. Contudo, a produção de riquezas deve englobar proprietários e não proprietários, além de observar outros interesses que perpassam a questão econômica. Em resumo, verifica-se a necessidade da empresa desempenhar, juntamente com a sua função econômica, uma função social136.

Eduardo Tomasevicius Filho afirma constituir a função social da empresa “o poder dever do empresário e administradores de empresa harmonizarem as atividades da empresa, segundo os interesses da sociedade, mediante a obediência a determinados deveres, positivos e negativos”137.

Afirma a melhor doutrina que, por meio desta funcionalização social, o Estado impõe à atividade econômica um novo conteúdo finalístico, segundo o qual toda e qualquer atividade empresarial encontra-se obrigada com a realidade social em que se encontra, devendo não atuar apenas de acordo com os interesses de seus proprietários, mas também com aqueles dos não proprietários. Sobre este conteúdo, bem esclarece Francisco Cardozo Oliveira138:

O caráter finalístico da atividade empresarial, tomado na perspectiva do exercício dos poderes proprietários, ganha contornos nítidos no quadro pautado pela concretização da justiça social e de vida digna em sociedade. Os parâmetros de justiça social e de vida digna devem ser

136 GOMES, Daniela Vasconcellos. Função social do contrato e da empresa: aspectos jurídicos da responsabilidade social empresarial nas relações de consumo. p. 136.137 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. p. 40.138 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Uma nova racionalidade administrativa empresarial. p. 124.

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tomados a partir do arcabouço de princípios e regras da Constituição de 1988, que procura conciliar, em linha de complementaridade, a garantia dos direitos fundamentais de cidadania e a tutela do modelo de economia de mercado. No plano de conciliação de interesses e de complementaridade de direitos e deveres, é possível conceber o princípio de direito à vida digna como aquela situação teórico-prática em que, na atividade administrativa empresarial, resultam preservados os interesses de trabalhadores, consumidores e, de maneira mais ampla, os interesses difusos das pessoas em sociedade.

A fim de melhor explicar o alcance deste novo conteúdo finalístico, vale utilizar o termo stakeholder. Termo largamente utilizado pela administração de empresas, entende-se serem stakeholders de uma empresa todos aqueles que são por sua atividade empresarial influenciados, sejam eles indivíduos, grupos, instituições, meio ambiente etc. A imposição deste conteúdo finalístico à empresa exige que esta adquira uma nova racionalidade quando do exercício de suas atividades, de forma que não atue apenas no seu interesse, mas também dos seus stakeholderes ( fornecedores, empregados, consumidores, comunidade vizinha, dentre outros)139.

Assim, na busca da dignidade humana e da justiça social, a empresa, em todos os ramos de sua atuação, é atingida pela ideia de funcionalização social. Todas as ações do empresário, assim como seu patrimônio, devem estar imbuídos do anteriormente tratado conteúdo finalístico, incluídos aqui, obviamente, todos os seus ativos de propriedade industrial.

É tema do presente estudo a proteção legal das marcas. De acordo com o até então esboçado, é certo que estas, por se tratarem de importante ativo empresarial, devem possuir função social para além da meramente econômica. E esta função social, no caso das marcas, faz especial referência às relações de consumo. Ao proteger legalmente as suas marcas (e ao utilizá-las nos limites legalmente estabelecidos140), o empresário, para além de obter o proveito econômico delas decorrentes, garante que elas cumpram seu conteúdo finalístico, atuando na direção da harmonização das relações consumeristas através da coibição do seu uso indevido.

139 PEREIRA, Henrique Viana. A função social da empresa. p. 82.140 O art. 132 da LPI estabelece que “[o] titular da marca não poderá: I - impedir que comerciantes ou distribuidores utilizem sinais distintivos que lhes são próprios, juntamente com a marca do produto, na sua promoção e comercialização; II - impedir que fabricantes de acessórios utilizem a marca para indicar a destinação do produto, desde que obedecidas as práticas leais de concorrência; III - impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 68; e IV - impedir a citação da marca em discurso, obra científica ou literária ou qualquer outra publicação, desde que sem conotação comercial e sem prejuízo para seu caráter distintivo.”

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As marcas, portanto, cumprem verdadeiramente a sua função social quando se encontram legalmente protegidas. Contrariamente, em inexistindo legal proteção, as marcas não são capazes de coibir eficientemente o seu uso indevido, não combatendo, conforme esperado, a concorrência desleal e a confusão por parte do consumidor. Neste contexto, seu registro junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, adquire ares de essencialidade, já que é ele que garantirá às marcas a proteção legal que elas necessitam para promover os seus objetivos econômicos e sociais.

Por outro lado, há que se observar, que aquelas empresas que não respeitam o patrimônio intelectual das demais, utilizando indevidamente suas marcas, ferem o princípio da função social. O uso indevido de marcas não reflete apenas uma situação que causa gravame à esfera econômica alheia, mas atinge frontalmente o interesse público.

Ao utilizar indevidamente uma marca, os empresários estabelecem um quadro de concorrência desleal. Tal situação causa um desequilíbrio das relações comerciais, o qual atinge não apenas os demais fornecedores, mas também os consumidores. Conforme anotado em tópico anterior, desvios concorrenciais são capazes de determinar o aumento dos preços, a queda da qualidade dos produtos e serviços, a redução das alternativas de compras e do direito de opção dos consumidores, além da estagnação tecnológica.

Além disso, o uso indevido de marcas pode determinar ao consumidor uma situação de confusão. Nos termos já analisados, este quadro confusional, para além de impossibilitar a determinação da real procedência de um produto ou um serviço pelo consumidor, poder levar este a adquirir produtos ou serviços com inferior qualidade, colocando em risco a sua segurança e a sua saúde.

Neste contexto, há que se considerar a utilização de marca alheia de forma indevida um problema que perpassa a questão comercial. Configura-se, nestes casos, um completo descaso e desrespeito com os direitos básicos do consumidor. Tal atuação deve ser analisada também pela ótica social, de onde se concluirá que determinam um poderoso desequilíbrio das relações de consumo.

5 CONCLUSÃO

Por força do texto constitucional, incide obrigatoriamente sobre a empresa o princípio da função social, o qual impõe à atividade empresarial o exercício de uma nova racionalidade. Socialmente funcionalizada, deve esta ser direcionada em prol não apenas dos interesses de seus proprietários, mas também dos não proprietários. Que não se olvide que os fins econômicos devem ser observados, porém sempre em consonância com os objetivos sociais.

Obviamente as marcas, por se tratarem de um dos mais importantes ativos empresariais, devem apontar nesta mesma direção: a convergência da busca

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pela lucratividade e pela concretização dos interesses difusos da sociedade. Não há como desprezar a importância econômica das marcas para a atividade empresarial, contudo deve-se observar que estas não apenas podem, mas devem, exercer outras funções de cunho social.

Reconhece-se que, para além das relevantíssimas funções econômica, distintiva e indicadora de proveniência, possuem as marcas um verdadeiro poder-dever de trabalhar em prol da sociedade. Esta atuação social é muito evidente quando considerada a sua íntima ligação com as relações de consumo, a qual é reconhecida pelo Código de Defesa do Consumidor.

De acordo com o referido Código, as marcas possuem papel de destaque na concretização da Política Nacional das Relações de Consumo. Ao prever a necessidade de coibição da concorrência desleal e da utilização indevida de marcas, reconhece o legislador a importância destas para a consecução do seu principal objetivo, qual seja, a harmonia e o real equilíbrio das relações de consumo.

Neste contexto, o registro da marca se mostra essencial. É apenas por meio deste que tal ativo encontrará proteção legal, esta essencial não apenas aos objetivos lucrativos dos empresários, mas também à defesa dos interesses dos consumidores. Inexistindo legal proteção, as marcas não são capazes de coibir eficientemente o seu uso indevido, não combatendo, conforme esperado, a concorrência desleal e a confusão por parte do consumidor.

Em sentido diverso, há que se observar que o uso indevido de marcas não reflete apenas uma situação que causa gravame à esfera econômica alheia, mas atinge frontalmente o interesse público. Ao utilizar indevidamente uma marca, os empresários estabelecem um quadro de concorrência desleal. Tal situação causa um desequilíbrio das relações comerciais, o qual atinge não apenas os demais fornecedores, mas também os consumidores, determinando aumento de preços, queda da qualidade dos produtos e serviços, redução das alternativas de compras e estagnação tecnológica. Além disso, o uso indevido de marcas pode determinar quadros confusão, levando o consumidor à aquisição de produtos ou serviços de proveniência desconhecida, com inferior qualidade, arriscando a sua segurança e a sua saúde.

Diante de uma ordem constitucional que veda o conteúdo exclusivamente econômico da atividade empresarial, não se pode admitir que a questão do uso indevido de marcas deva ser tratada exclusivamente sobre esta ótica. Há que se considerar a utilização de marca alheia de forma indevida um problema que perpassa a questão comercial e que atinge os frontalmente os direitos básicos do consumidor, determinando o combatido desequilíbrio das relações de consumo.

O uso indevido de marcas representa, sem sombra de dúvidas, um problema de ordem econômica. Entretanto, deve ser encarado como um

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verdadeiro ato contrário aos interesses sociais, um atentado às relações de consumo. É neste sentido que se posiciona o nosso ordenamento e assim devem se posicionar os empresários, bem como os seus advogados e os magistrados quando do enfrentamento dos casos que se apresentam dia a dia.

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KAPFERER. Jean-Noël. As marcas, capital da empresa: criar e desenvolver marcas fortes. trad. Arnaldo Ryngelblum. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2003.

KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Princípios de Marketing. trad. Vera Wately. 7. ed. Rio de Janeiro: Prentice-Hall, 1998.

MAGGS, Peter B.; SCHECHTER, Roger E. Trademark and unfair competition law: cases and comments. 6. ed. St. Paul, E.U.A.: West Group, 2002.

OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Uma nova racionalidade administrativa empresarial. In: GEVAERD, Jair & TONIN, Marta Marília. Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2006.

OLIVEIRA, Mauricio Lopes de. Direito de marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

PEREIRA, Henrique Viana. A função social da empresa. Belo Horizonte: 2010. Disponível em ˂http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_PereiraHV_1.pdf˃, acesso em 07/01/2012.

PIERANGELI, José Henrique. Crimes contra a propriedade industrial e crimes de concorrência desleal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

PRADO FILHO, José Inacio Ferraz de Almeida. Notas sobre direito e economia das marcas. Revista da ABPI, Rio de Janeiro, n. 101, p.3-8, Jul/Ago 2009.

SCHULTZ, Don E; BARNES, Beth E. Campanhas estratégicas de comunicação de marca. trad. Maria Clara. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2001.

SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e a nova lei de propriedade industrial: (Lei n. 9.279, de 14-5-1996). São Paulo: Saraiva, 1996.

_____. Sinais distintivos da empresa. Revista da ABPI, Rio de Janeiro, n.98, p.3-8, Jan/Fev 2009.

TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 92, p. 33-50, Abril 2003.

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TÓPICOS CONCLUSIVOS

Da leitura dos artigos que compõem esta obra, podemos extrair, dentre outas reflexões, os seguintes pontos:

• Sabendo que o princípio da Boa-fé, é um dos pilares do contrato, e que determina que as partes atuem sempre com lealdade e honestidade para com o outro ente contratante, verifica-se que nos casos de extinção do contrato de franquia, a parte que agiu de boa-fé, terá relevantes benefícios ou prejuízos mais suaves, quando for ela a responsável pelo rompimento das tratativas. (MARLANGEON e GUSSO).

• O instituto da recuperação judicial veio para suprir uma lacuna nos anseios da sociedade, não suprida mais pelo instituto da concordata. Os fatores que levam uma empresa a entrar em estado de crise, sejam eles internos ou externos, podem ser menos significantes que sua relevância social, ou seja, da contribuição que traz para a sociedade. (DIAS e GOMES).

• Políticas não devem violar princípios, como bem observou Dworkin. Assim, não se deve permitir que peculiaridades originadas nos mercados financeiros possibilitem (imponham) violações a direitos fundamentais; políticas implementadas pelos Estados devem se submeter a princípios constitucionais. (PORTUGAL E MOTTA).

• Garantir o anonimato visa proteger tanto o doador e seus familiares como toda a família desta criança, pois não deve ser tolerada a possibilidade de que, a qualquer tempo, o doador venha a ser surpreendido por uma investigação de paternidade, e tendo com isso, toda uma desestruturação familiar. (CAMPAGNARO e ANDRADE).

• A atividade turística é complexa e a aplicação do CDC nas relações de consumo envolvendo turistas tem sido extremamente favorável aos consumidores dificultando a atuação das empresas de turismo e, além disso, a falta de conhecimento dos direitos e deveres dos turistas e empresas acabam dificultando a atuação dos profissionais do turismo. (ANDO e GIBRAN).

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• Cabe aos empregados uma indenização do dano moral com caráter compensatório e preventivo a fim de tentar evitar a ocorrência descomedida dessas condutas abusivas. Devem os tribunais continuar a proferir decisões baseadas no bom senso e na razoabilidade com a finalidade de evitar uma concepção patrimonialista da responsabilidade civil e partir, cada vez mais para uma concepção existencialista baseada no principio da dignidade da pessoa humana. (MOLINA e CAMPOS).

• O setor de energia elétrica brasileiro encontra-se sem o adequado respaldo normativo que reflita a importância desta atividade, tanto essencial, quanto estratégica ao Estado. (SWIECH e CHALUSNHAK).

• Não sendo possível a realização de um diálogo entre as partes que satisfaça suas pretensões, o Poder Judiciário deve vir como um instrumento que possibilite a máxima conciliação possível. O instituto da responsabilidade deve ser utilizado como uma alternativa viável para a resolução dos problemas e não apenas como uma justificativa de que há mais um instrumento para a reparação dos danos. (BARÉA e BACELLAR).

• Houve grandes avanços no procedimento de análise, pois, embora com novos critérios de submissão dos atos de concentração ao CADE, a legislação mantém os princípios e os objetivos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência: continua visando ao bem estar dos consumidores e à manutenção da livre concorrência. (NARDI e OLIVEIRA).

• A aplicação mais correta do princípio da Insignificância seria no sentido de restringir sua incidência em relação aos crimes contra a Ordem Tributária, restando sua utilização para os casos em que, apenas após a análise da situação em concreto, e depois de ter sido verificada a existência cumulativa dos pressupostos estipulados pelo Supremo Tribunal Federal, a conduta realmente se mostre insignificante, mas sempre levando em consideração que tutela-se um bem jurídico de natureza supraindividual. (OHDE e KNOPFHOLZ).

• O exercício da cidadania, quando dependente da jurisdição, somente acontece quando ocorre a prestação efetiva da tutela

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jurisdicional para concretização do direito material, referente a uma situação juridicamente protegida. Isso significa que o Estado deve satisfazer da melhor maneira e da forma mais célere a pretensão daquele que se encontra em uma posição juridicamente protegida. (KNOERR e OLIVEIRA).

• Independente de quem vença a batalha entre a expansão ou minimização do direito penal, o instrumento a serviço da persecução policial deve estar sempre preparado para a adequação às novas realidades sociais e econômicas na medida em que a estabilidade socioeconômica depende em grande parte da rápida e eficiente resposta em face do descumprimento das normas. (MIKALOVSKI e GUARAGNI).

• Visando concretizar os objetivos da assistência social no Brasil de forma coerente aos anseios sociais, a magistratura tem representado o alicerce do cidadão. Essa, através de inúmeras decisões, tem afastado a visão do ‘sujeito ao direito’ para implantar o ‘sujeito de direito’, aquele que possui direitos, mas também garantias em face do Estado e da sociedade no sentido de atingir o mínimo de dignidade humana. (KMITA E CAMPOS-KNOERR).

• O uso indevido de marcas representa, sem sombra de dúvidas, um problema de ordem econômica. Entretanto, deve ser encarado como um verdadeiro ato contrário aos interesses sociais, um atentado às relações de consumo. É neste sentido que se posiciona o nosso ordenamento e assim devem se posicionar os empresários, bem como os seus advogados e os magistrados quando do enfrentamento dos casos que se apresentam dia a dia. (OIKAWA e OIKAWA).