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    REVISTAOUTUBRO, N. 8, 2003

    DEMOCRTICO EPOPULAR? 7

    Democrtico

    e popular?

    EDMUNDO FERNANDES DIAS

    PROFESSORAPOSENTADODE SOCIOLOGIANA UNIVERSIDADEESTADUALDE CAMPINAS

    Infeliz o pas que precisa de heris

    Bertold Brecht

    O final do sculo XX pareceu, a muitos, ter sido o da derrota total. Dito,repetido e massificado pela mdia e pelos poderes. A dcada de 1980 noBrasil estimulara, de maneira vvida e fugaz, nossa imaginao, fortementecombalida pelo terror do AI-5. A crise das organizaes democrticas pare-cia no ter fim. Os dominantes da direita clssica ao tucanato quiseramnos fazer crer que a histria terminara. No mais os grandes projetos, mas, asutopias... possveis. No justo momento em que o tucanato imaginava teremplacado os seus vinte anos gloriosos, refundando a seu modo o capita-

    lismo, a populao fez ainda um renovado e decisivo esforo para afirmar-se.Uma imensa massa de vontades, dspares, contraditrias, resolveu dar umparadeiro ao pesadelo. Criou-se, assim, uma nova cena poltica marcadapela profundidade da imensa crise social.

    A vitria eleitoral, espcie de Fora FHC, trouxe uma nova realidade.Um governo, como veremos mais adiante, com forte apelo de massa mas queimplementa as mesmas polticas macroeconmicas anteriores. O Fora FHCno veio com o Fora o FMI, muito pelo contrrio. Queremos tentar desven-dar os traos dessa relao de foras. O fato de que Lula tenha tido umamilitncia histrica no movimento sindical e uma enorme popularidade nolhe confere, de imediato, uma legitimidade para alm da luta de classes. bom ter sempre presente que eleio alguma apaga as condies histrico-concretas onde o governo vai atuar. Nem seu passado. As iluses, com fre-qncia, tm um preo elevado: no se pode, impunemente, por mais forteque seja o apoio popular, renegar todo o conjunto de lutas do passado emnome de um futuro que, se espera, vir quase que fatalmente.

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    Os sucessivos programas do PT e de seus aliados comprovam o rebaixa-mento das suas propostas. Fazia-se necessrio criar a governabilidade, aindaque essa palavra no fosse pronunciada. Ou, quem sabe, governana respon-svel, como preferem os tericos de uma Terceira Via cada vez mais irreal erisvel. Do sem medo de ser feliz passou-se ao a esperana venceu o medo.De elemento conclamador passou-se a uma postura delegativa. s massascabe eleger... e confiar, parece ser o pressuposto. Tudo se far em seu nome,com a sua legitimidade.

    Dar palavra mudana o significado da transformao social indica o sen-tido da ao que se faz necessria para criar uma sociedade socialista. Se aseleies foram marcadas pela necessidade das transformaes, o que vem ocor-rendo no isso. A militncia cindida entre o movimento e o apoio ao gover-no vaga entre a necessria autonomia e a adeso plena e incondicional.

    O transformismo como mtodo

    Lewis Carrol, ao escrever as aventuras de Alice, estava longe de imagi-nar o quanto a poltica de um pas como o nosso poderia copiar o seu texto.Alice e Humpty Dumpty travam um elucidativo debate. Alice objeta o sen-tido de uma palavra, ao que Humpty Dumpty responde: quando uso umapalavra ela significa exatamente aquilo que eu quero que ela signifique...nem mais nem menos. Alice no se conforma e, segura de sua lgica, retru-ca: a questo saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisasdiferentes. Humpty imperialmente sentencia: a questo saber quem que manda. s isso.

    Sob a aparncia do paradoxo, esse curto dilogo fala do poder das palavrase das palavras do poder; de concepes de mundo, projetos polticos, damaterialidade da vida social. As ideologias no so nunca ingnuas. Expres-

    sam o sentido e a direo da luta e organizam as intervenes concretas naluta das classes. Quando algum usa as palavras de um discurso e realiza osseus enunciados est, de fato, implementando uma dada viso de mundo e osprojetos polticos construdos por ela. Mesmo que acredite estar realizando oseu oposto e mesmo que tais projetos sejam os do(s) seu(s) adversrio(s).

    Tomaso di Lampedusa imortalizou, no clebre romance Il Gatopardo, otransformismo, procedimento central na poltica burguesa, que expressa a

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    necessidade de obter a legitimidade das massas e atender s necessidadesreais do capital. preciso que tudo mude para que tudo permanea : eis a suasntese. Assim vem procedendo o governo que se elegeu em nome das espe-ranas, de mutao de prticas e discursos, e implementa a racionalidadeque anteriormente negava.

    Uma ideologia, quando separada e posta em contraposio a sua antigabase social, se revela como um discurso que consegue dar coerncia s for-mulaes mais contraditrias e apresentar como ruptura o que continui-dade. Pode afirmar que um futuro radicalmente diferente possa ser gestado

    por um atual que o nega de forma absoluta. E apresentar como natural o que histrico e assimetricamente contraditrio. Pode at mesmo dar um certoalvio s conscincias militantes, pegas no contrap da poltica. Mas, segu-ramente, no as armar para a transformao da totalidade social.

    Vivemos uma conjuntura marcada por uma perspectiva de realizao deprojetos pelos quais lutamos desde a implementao da ditadura e, paraalguns, mesmo desde antes. Isto nada tem de automtico. As classes domi-nantes, seus intelectuais e seus representantes polticos reagiram. FHC eseu bloco poltico desferiram um golpefantstico e mortal: o da transio. Apretexto de uma passagem civilizada no comando da nao, essa transio

    teve o efeito de neutralizar as crticas ao governo anterior, de inviabiliz-las.Os tucanos, confiantes na ausncia de crtica, reagiram fortemente s pou-cas e parcimoniosas feitas ento. Perdeu-se, assim, naquele momento, umapossibilidade efetiva de apresentar um primeiro balano da situao realque o novo governo encontrou. O movimento ttico obstaculizou fortemente o

    norte estratgico. O avano social foi enfraquecido com essa trgua explcitaao antigo adversrio. Lula repetia melancolicamente Montoro: dava um ates-tado de idoneidade ao governo anterior.

    Sob a gide da palavra de ordem A esperana venceu o medo, umamar vermelha tomou as ruas e as praas. Nunca se vira coisa igual. Mani-

    festaes como essa, talvez, s no clima da conquista da Copa do Mundo. Aposse foi apotetica. Os trabalhadores romperam o protocolo e, simbolica-mente, tomaram posse tambm. Acabada a festa, apesar de continuar a pe-regrinao ao santurio do Alvorada, o desafio agora era outro: o de gover-nar este pas. Cada um parecia ser um governante. E teria de s-lo.

    O clima das eleies foi o da necessidade das transformaes, mas, o quevem se concretizando sequer so mudanas significativas. No realiz-las

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    significa colocar em questo a grande vitria popular. Os efeitos prticos,caso isso no ocorra, sero desastrosos. Passados os trs primeiros meses daposse j temos condies de fazer uma anlise mais concreta a partir dastendncias construdas pelos neogovernantes.

    As contores ideolgicas, os usos metafricos de palavras e gestos, noconseguem, apesar da repetio e do talento desses atores, negar a natu-reza dos atos. Muitos tm se surpreendido com a atuao governamental.Intelectuais prximos ao governo falam em esquizofrenia, dada a mutaoprogramtica implementada. O governo fala em honrar os compromissosmas o faz seletivamente: com o mercado sim, com a populao no.

    Apesar de tantas rupturas (tticas para os mais otimistas) em relao aoprograma histrico da oposio, aggiornamenti de posies, contorcionismosideolgicos vrios, alguns militantes vm manifestando publicamente a cren-a de que o resultado do processo eleitoral implica a possibilidade de reali-zar-se as transformaes necessrias nossa sociedade e que, por isso, deve-mos... dar um tempo! Para eles o novo governo teve pouco tempo e no dpara dizer que tudo j est escrito: nem que as medidas recentes so a suatnica nem que, seguramente, as mudanas no viro. J vivemos isso quando

    a oposio elegeu os primeiros governadores ainda no tempo da ditadura.Era, por exemplo, o discurso dos montoristas, contra o qual os petistassempre se bateram.

    O discurso atual no mais o da crtica. tempo de autocrtica, preci-so governar, ser propositivo, lembrar os limites colocados pela situao inter-nacional. Tudo isso como se fssemos atores passivos em um drama universal.No somos atores, somos sujeitos. Lembremos a diferena entre atores esujeitos. Os primeiros, por mais talentosos que sejam, realizam um papel,vivem as falas e os gestos determinados pelo autor que sempre um outro,externo. Os sujeitos, pelo contrrio, determinam suas falas, no represen-

    tam. Marx1 afirmou: os homens fazem a histria mas em condies dadas.No se trata de voluntarismo. As condies dadas (conjuntura como atualiza-o da estrutura) so, fundamentalmente, o solo sobre o qual a intervenohumana se realiza. Isto se chama poltica.

    1 Karl Marx. O 18 brumrio, vrias edies.

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    O misto de euforia e segurana sobre o futuro que nos esperava vividopor muitos militantes despreparou-os para o real. Crticos de governos ante-riores, eles supunham que com a vitria de Lula, o horizonte mudaria comrelativa rapidez. Ningum, obvio, falava de milagres ou os esperava. Mas atranqilidade era uma constante, quase como se o futuro j estivesse traa-do. Os que no compartilhavam desse clima eram vistos como incapazes deperceber que mudara a realidade. Chegou-se mesmo a dizer que no pode-ramos nos contrapor ao governo democrtico-popular.

    Hoje j no to fcil nem to cmodo assumir essa posio olmpica.Aqueles militantes vivem como que uma amnsia seletiva, ideolgica. Con-vivem, em maior ou menor grau de inconformidade, com tudo aquilo quesempre negaram. Mas, dizem, o nosso governo, somos governo. Na realida-de, as dificuldades de uma gigantesca e complexa mquina governamental,principalmente no enfrentamento da grave crise capitalista mundial, colo-cam tarefas que exigem o mximo de capacidade estratgica e no a purarotina administrativa. Tudo isso para alm do enredamento prprio do siste-ma de alianas construdo para a vitria eleitoral.

    Aos militantes cabe, e caber sempre, a responsabilidade maior de no sedeixar cegar pelos xitos reais ou aparentes. E isto est cada vez mais clarocom os enquadramentos, as punies aos radicais do prprio partidovencedor. Um partido democrtico que no pode conviver com a diferenainterna, sequer formalmente digno desse nome.

    Militantes mais apaixonados sustentam a tese do governo-cabo de guer-ra. Lula teria sido seqestrado pela direita e pelo FMI e teramos de resgat-lo, pux-lo para a esquerda. Fazer o contrrio, exercer a liberdade de crticae avanar na luta social, seria entreg-lo aos braos da direita. Filme que jpassou muitas vezes na tela da histria. O governo ficou prisioneiro das suasalianas e repetiu a cantilena tucana: necessrio ampliar ao mximo a base

    de sustentao parlamentar. Obviamente, as alianas feitas para ganhar aeleio tinham um preo que, j desde a posse e antes mesmo dela, vemsendo repetidamente cobrado. Isso vem gerando, como no poderia deixarde ser, uma clara inflexo no programa governamental. O postergar para umfuturo incerto os programas histricos enquanto oposio, sob a capa de ga-rantir a governabilidade, a afirmao de que agora isso no possvel no apenas um adiamento, mas, um deslocamento, uma mutao.

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    A constituio do governo

    O segredo da esfinge se revelou com a composio do ministrio e comas primeiras medidas. O ministrio contemplou posies polticas muitodiversificadas. A Agricultura e o Desenvolvimento ficaram diretamentesob o controle dos empresrios. A Fazenda reafirmou e radicalizou o acor-do com o FMI. O Banco Central, ao qual o governo das mudanas pre-tende conceder autonomia, contrariamente ao que defendera anterior-mente, foi entregue a um ex-dirigente mximo do Bank Boston, segundo

    maior banco credor do Brasil e deputado eleito pelo PSDB. Sobre ele,conhecedores da rea financeira dizem que, comparado a ele, ArmnioFraga, personagem menor.

    Esse projeto de autonomia, conceder ao BC poderes decisivos na deter-minao das nossas polticas macroeconmicas. Livre, bom que se diga, detoda e qualquer presso poltica das classes trabalhadoras. Sobre isso, Fran-cisco de Oliveira na sua aula Em busca do consenso perdido2 expressa,com toda a clareza, os limites sociais da proposta. Para ele, a autonomia aanulao da poltica e conclui: elege-se o presidente para no governar.3

    O governo Lula se autolimita em um dos locais essenciais, no apenas para

    a vitria ou derrota do seu projeto mas, mais do que isso, vitais para a popula-o brasileira. O mercado, bem contemplado mas no inteiramente satis-feito, quer muito mais. Basta ver as decises do Conselho de Poltica Mone-tria (Copom), a ampliao do confisco e do supervit primrio, etc. Emgrande medida, o segundo time de vrios ministrios mantm boa parte daequipe de FHC. Tudo ao contrrio do esperado pela militncia e necessrio realizao de qualquer governo que se pretenda democrtico e popular.

    A passagem dos cargos de ministro foi exemplar: Cristvo Buarque elo-giou o grande ministrio de Paulo Renato, Palocci elogiou o competentssimoMalan e sua poltica. E as crticas anteriores? Palavras leva-as o vento. Outro

    elemento no menos importante foi a questo do Oramento. A equipe detransio mexeu aqui e ali, mas o fundamental estava organizado pela equi-pe de FHC. Golpe de mestre. Para evitar perda de arrecadao, o novo gover-

    2 Francisco de Oliveira. Em busca do consenso perdido. Folha de S. Paulo, 19 fev. 2003, p. A-6.

    3 Idem.

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    no lutou por aquilo que condenou como oposio: a Contribuio Provisriasobre Movimentao ou Transmisso de Valores e de Crditos e Direitos deNatureza Financeira (CPMF), a alquota do imposto de renda, etc. Tudo issoao preo do foro privilegiado para FHC, logo generalizado para governadorese prefeitos. Mais uma vez, os vencidos venceram os vencedores.

    O novo governo parte de um patamar claro. A contra-revoluo preven-tiva, eufemisticamente chamada de reforma do Estado, moldou um conjun-to de relaes de poder, redesenhando a vida social para redefinir e darmaior eficcia ao Estado sem, contudo, alterar a sua natureza. O Estado

    brasileiro no o de um pas qualquer: ele central para os destinos docapitalismo. Georges Soros, ao aplaudir a fala de Lula em Davos, comentouque aps o desastre da Argentina, o sucesso brasileiro (do ponto de vista docapital, bvio) vital para impedir a falncia poltica do FMI. Ele sabemuito precisamente do que est falando. Tanto Palocci quando Meirellesindicaram que o aumento da taxa de juros nada tinha a ver com a inflaomas destinava-se a reforar a confiana dos mercados. Por duas vezes suces-sivas, o Conselho de Poltica Monetria aumentou a taxa Selic. Ao preo,obviamente, da misria crescente da nossa populao, da radicalizao ain-da maior do endividamento interno e da crucial dvida externa. O aumento

    do supervit primrio anunciado por Palocci demonstra a vontade frrea dehonrar os contratos.

    Consolidada a nova situao, expresso da continuidade, o futuro ter,no mnimo, que ser parido com sacrifcios ainda maiores do que muitospossam pensar. Destrudos os servios pblicos, enfraquecidos os organis-mos de representao e defesa da sociedade como ser possvel, mais tarde,construir uma sociedade para alm do capital? S colhemos o que planta-mos. Francisco de Oliveira foi enftico: est em gestao uma sociedade decontrole que escapa aos rtulos simples do neoliberalismo e do totalitarismo.4

    Uma sociedade onde as instituies democrticas e republicanas so o po

    escasso do circo amplo para manter as energias cidads entretidas enquanto osgrupos econmicos decidem o que relevante.5 Caber militncia dos movi-mentos sociais lutar por inviabilizar essa tendncia. E isso implicar em

    4 Idem, grifos nossos.

    5 Idem.

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    uma postura autnoma em relao ao estado e de compromisso mximocom a maioria da sociedade.

    O discurso ambguo do ritmo governamental claro. Se, por um lado,temos que ir com calma porque no podemos errar, por outro, quandose fala da contra-reforma da previdncia, exigido o aqui e agora, por-que, seno, as futuras geraes no tero como se aposentar. Esse terro-rismo simblico ganha sua real dimenso quando se sabe que a Itliagastou mais de cinco anos e a Frana mais de oito para fazer reformasimilar. Aqui se chegou a falar em noventa... dias. Fala-se agora em pra-

    zo at menor pelas conseqncias que a interveno americana trarpara a economia mundial. Joo Vaccari Neto, do Sindicato dos Banc-rios de So Paulo, premiado com uma lucrativa sinecura, dando umagrande mostra de sensibilidade poltica, afirmou: At o dia 10 de abrild para fazer uma revoluo. Se tiver vontade poltica faz-se muito empouco tempo.6 Diagnstico que, no mnimo, subestima a capacidade deresistncia dos trabalhadores. E d mostras claras da perda de autono-mia desse dirigente sindical que expressou com clareza a posio de suatendncia sindical.

    O PFL, travestido de oposio, se d ao luxo ideolgico de exigir pressa

    na apresentao das propostas e o PSDB, confortavelmente, recrimina o PT,com o apoio da auto-crtica de Mercadante e Palocci, de ter barrado medi-das justas que agora quer apressar. A militncia recebe novo e profundogolpe. O transformismo paga seu preo e permite aos aparentemente ven-cidos falar de incoerncia dos aparentemente vencedores. Falo em apa-rentemente vencedores porque o que estava em jogo no era apenas o nomedo candidato, mas os destinos da totalidade social.

    A natureza do governo

    Essa a questo analtica premente. Qual a novidade? Ganhar a eleioou avanar o projeto de reconstruo da sociedade e das condies de vidada populao? Essa polaridade real no apareceu durante o processo eleito-ral em toda a sua dramaticidade.

    6OEstado de S. Paulo, 22 fev. 2003.

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    preciso dizer que apesar de Lula ser um ex-sindicalista, de forte lide-rana na classe trabalhadora e com legitimidade no seio da maioria da po-pulao ele chefia um governo que vem implementando uma poltica deradical continuidade do programa de FHC. E no d o menor sinal de rever-so do quadro. Muito pelo contrrio. Tarso Genro, em recente artigo, for-mulou com clareza esse projeto: moratria da utopia no para esquec-la mas

    para regener-la.7 Pode haver moratria de utopias? O problema est naclara confuso que ele, como idelogo destacado do atual governo, faz en-tre o socialismo que deve ser regenerado e os chamados regimes do Leste

    que devem ser esquecidos. Como chegar l a partir do que vem sendo pra-ticado? Eis a questo.

    Agregue-se a isso forma da poltica praticada por Lula. Trata-se deuma fala messinica que leva necessariamente despolitizao e desorgani-zao. Ele realiza, cristalinamente, aquilo que a velha UDN acusava aospopulistas: fala diretamente s massas passando por cima das organiza-es. Desqualifica os partidos, os sindicatos, enfim, as organizaes das clas-ses trabalhadoras. Tpico desse procedimento foi o seu encontro com as cen-trais quando afirmou que estava na hora de parar de trabalhar com o carro desom e passar a discutir os interesses da nao. Nao? Qual? A dos eternos

    governantes ou a das classes trabalhadoras?Ao contrapor nao classe, Lula reproduz, em outro nvel, a discusso,

    to cara burguesia, do combate ao corporativismo: faz dos trabalhadores oreduto deste mal e se transforma, ipso facto, em salvador, em porta voz datotalidade social. Desqualifica as centrais e ajuda os capitalistas a combateras organizaes sindicais e populares, ao mesmo tempo em que tem em altaconsiderao as ONGs, aquelas que, segundo ele, trabalham com o cora-o. Esse movimento clarificado pela ao de Jaques Vagner, ministro doTrabalho (sic), ao propor, entre outras, a eliminao da multa por demissoimotivada. Isso em um pas onde o desemprego enorme e onde o programa

    do governo d peso, pelo menos em tese, ao Programa Pequeno Emprego.Curioso ou sintomtico?

    O trao messinico no apenas desorganiza mas, sobretudo, deseduca,mistifica a poltica. Os movimentos sociais so desqualificados. As classes

    7Folha de S. Paulo. 30 jan. 2003. Grifos nossos

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    trabalhadoras so chamadas apenas para apoiar. Um apoio irrestrito, auto-mtico o que lhes cabe, nunca o debate sobre as graves questes. Isso ficapara os tcnicos ou para o Conselho do Pacto Social, cuja composio revelao peso da fina flor dos capitalistas. Recria assim, perversamente, e sem sab-lo, uma noo de classes produtivas que rene exploradores e exploradosirmanados pela idia de nao, reduzindo as classes a indivduos atomizados.Concepo que se encontra, em boa medida, retratada nos estatutos nicosdos sindicatos e na legislao trabalhista do Estado Novo.

    Esse messianismo laico permite que a poltica passe da arena dos confli-tos e dos movimentos para o espao clean dos tcnicos, terreno privilegiadoda dominao burguesa, no obstante as freqentes contradies nas falasde seus ministros. As propostas histricas da militncia cedem mais e maisterreno dos especialistas. A razo tcnica reduz a poltica retrica con-duzindo para uma racionalidade aparentemente desprovida de projetos. Tudose passa como um espetculo que devemosnecessariamente aplaudir. Em tem-pos de discurso nico e de pseudo-inexorabilidades, a histria aparece comonatureza. Rupturas seriam anticientficas e mesmo subversivas, como afirmaNorberto Bobbio.8

    O presidente encarna a sabedoria poltica e os grandes projetos. Oeconomicismo presente nas prticas e nas falas governamentais dificultaenormemente a concretizao da chamada socializao da poltica e a negacomo atividade fundamental.

    Jogar todas as cartas na institucionalidade sem mobilizao popular acei-tar travar um embate entre David e Golias, em que este ltimo tenha, a

    priori, na prtica, quase todas as condies de xito. Com essas alianas,contraditrias com o programa histrico e mesmo entre si, o governo acabapor abrir mo daquele programa. Por que e para qu? Para ter a confiana domercado, leia-se do capitalismo, e realizar o programa deste? Os aplausos deDavos so sintomticos. Os organismos financeiros internacionais tm muitaclareza de que a questo da misria grave. Deve ser enfrentada com polti-cas focalistas, assistencialistas e preferencialmente aplicadas por governospopulares que no busquem alterar a essncia da ordem capitalista.

    8 Norberto Bobbio, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Paz e Terra: Rio deJaneiro, 1986.

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    A sofreguido pelas reformas, sem o menor debate pblico, veio confessadana proposta do deputado Joo Paulo, presidente da Cmara, de modificaesno regimento. Afora a proposta de alterao das regras do jogo para tratorar odebate e aprovar as famosas reformas, aproveitada politicamente pela direitaparlamentar, ele foi mais longe. E apresentou a proposta da reduo do nme-ro de sesses para as... audincias pblicas! Relevante e sintomtica. O espa-o, democraticamente obtido pela sociedade para debater as grandes ques-tes antes que elas fossem votao no Parlamento, era assim alegrementeabandonado para gudio dos antigos governantes e sua base parlamentar. Nose trata de debater, mas de apoiar. Cidadania? Ora, a cidadania!

    As alianas: possibilidades e limites...

    Muitos sero tentados a pensar o governo como bonapartista. No nossomamos a estes. Para que haja bonapartismo faz-se necessrio que as forasem presena tenham um tal equilbrio que necessitem de um rbitro o que,diga-se de passagem, no encontra sustentao no real.9 A arbitragem con-figura no a fora do rbitro mas sua relativa debilidade. Afinal, tendo con-seguido mais de 50 milhes de votos e com uma legitimidade praticamenteincontestvel, por que se abandona o programa e se realiza a plataformaanteriormente negada?

    Graas ao desequilbrio geral das foras na sociedade, o peso eleitoral nacomposio do Parlamento e dos executivos (seja o nacional, sejam os esta-duais), a nova correlao de foras no configura um corte radical. A ne-cessidade de compor uma base de sustentao levou a uma sucesso deacordos pelos quais o projeto histrico das esquerdas, da oposio, vem sen-do rifado, pura e simplesmente. Ao mesmo tempo em que se faz essa articu-lao poltica fala-se em punies contra os parlamentares petistas quedefendem as teses aprovadas no ltimo Congresso do Partido. Que tipo de

    aliana essa? Tudo isso uma opo, nunca uma fatalidade. As opesacabam traando seus limites e no apenas suas possibilidades.

    A construo de uma base de sustentao no Parlamento tem um ou-tro bice fundamental. O governo torna-se, na prtica, refm dela. E, como

    9 Cf. O 18 brumrio. Op. cit.

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    no (des)governo FHC, essa base fisiolgica (do PL ao PMDB, entre outros)cobrar seu preo. O governo, dependente dela, acabar por pag-lo, emdetrimento das propostas de mudana. O PMDB aliou-se ao PFL e parademonstrar ao governo a sua utilidade garantiu a primeira derrota no Parla-mento. Que lio o bloco no governo tirou? preciso incorporar o PMDB.Apesar disso, o presidente da Cmara adverte: estamos batendo cabea. Eisso sem uma oposio obstinada. Imaginem quando isso acontecer! Libera-da do nus de governar de forma direta, a direita tentar implementar seu

    governo parlamentarmente.Alianas? O problema reside, fundamentalmente, em como conceb-las e

    constru-las. As que foram feitas podem ser decisivas no atual momento po-ltico mas so e sero um bice permanente transformao social. Alianasse constroem, obviamente, com vises diferentes da nossa ou do nosso parti-do, como gostam de afirmar os nossos governantes, mas dentro de um campopoltico determinado. Alianas localizadas em cima de donos de votos eque sempre se opem s necessidades das classes trabalhadoras so muitoperigosas para um governo que se pretende democrtico e popular.

    O que Sarney e outros do mesmo naipe acrescentam ao projeto de mu-danas para alm dos votos em sesses parlamentares? Seguramente apoia-ro as reformas que querem (a da previdncia, a trabalhista e a sindical)pois esse era o programa de FHC e dos partidos da sua base, que elessempre defenderam. Contudo, na hora em que estiver colocada a propostade uma reforma tributria que ponha freios na sonegao e tribute, por exem-plo, as grandes fortunas, esses mesmos aliados tero razes de conscincia(leia-se: interesses materiais) antagnicas quelas reformas que, para seremefetivas e reais, tero que limitar a liberdade do mercado. No sem certaironia que os tucanos falam em sndrome do violinista: segura com a esquer-da e toca com a direita.

    O Pacto social: de traio a necessidade histrica

    Ao longo dos seus primeiros anos o PT tinha um diferencial em relaoaos demais partidos. Propunha-se como partido acoplado aos movimentossociais sem abandonar a via parlamentar. Repito: nos primeiros anos. O de-bate do pacto social, tanto no PT como na CUT, registrou a negativa da

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    militncia. Do mesmo modo, a ida ao Colgio Eleitoral. A crescenteinstitucionalizao do partido, que caminhou pari passu ao seu sucesso elei-toral, foi alterando um velho debate entre partido de quadros e de massase o transformando em um partido esquerda da ordem e agora apenas daordem. A perda das referncias internacionais por parte dos trabalhadoresfoi utilizada progressivamente para pavimentar o caminho de uma compre-enso da cidadania liberal desprovida de determinaes classistas como setodos fossem iguais na sociedade. A discusso sobre democracia formal edemocracia substantiva deixou de ser um tema atraente. A definio dosocialismo petista nunca apaixonou, demasiadamente, as direes majorit-rias. E foi, para estas, pouco mais do que uma declarao meramente retri-ca. Um juramento bandeira, diriam muitos. Agora, no governo, mas nono poder, o debate sobre a cidadania ganha nova cara.

    O movimento sindical, majoritariamente, veio desde o final da dcada de1980 atualizando esse discurso. Sindicato cidado, propositivo, etc, passoua ser a palavra da ordem coincidindo tambm com a institucionalizao daCUT a partir do 3 Concut. Aqui e agora fica absolutamente claro o discursode Genro. Moratria da utopia. Obviamente, o governo no abandonar, pelomenos no discurso, a utopia. Mas deve regener-la, ou seja, adequ-la aosseus projetos atuais. Uma utopia regenerada um outro projeto.

    Os programas sociais de FHC sero recauchutados. O Programa FomeZero, excelente como agitao e propaganda, no parece encaminhar a reso-luo dos problemas reais. O prprio secretrio do Combate Fome reconhe-ceu que os valores pagos ficaram abaixo do realizado pelo assistencialismotucano. Nem assim o programa escapou dos cortes draconianos que visam osupervit primrio. Pior: aventou-se a hiptese de aumentar a Bolsa-Escolaem detrimento de um aumento maior do salrio mnimo. Isso porque esseprograma no tocaria na questo da previdncia. preciso dizer mais? Da a

    j citada sensao de esquizofrenia nas aes governamentais. Mas, lembra-va o velho Marx, o segredo da sagrada famlia estava na prtica terrestre.A busca de legitimidade coloca um novo e decisivo problema. A propos-

    ta claramente colocada de um laboratrio para promover o pacto pelaproduo contra a especulao, um ersatz de cmara setorial em nvel na-cional, implica na articulao de setores cujos antagonismos acabaro porimpossibilitar os avanos sociais na medida necessria s classes trabalhado-

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    ras permanentemente espoliadas. Pacto pela produo significa, claro, quecapitalistas e trabalhadores tm, no fundamental, os mesmos interesses.

    Os atuais comandantes da poltica nacional acreditam mesmo na possi-bilidade de um consenso entre exploradores e explorados? A fala de Lulatem sido absolutamente clara: empresrios, ONGs, pessoas ligadas ao mer-cado, etc., estaro presentes nos organismos da poltica econmica. Tudoisso leva aparentemente a uma solidez na ao governamental. Somos todosparceiros, dizem. Tendencialmente, contudo, isto leva, em mdio prazo, agudizao de contradies no interior da equipe que tem que responder s

    carncias e necessidades das classes que disseram querer mudar.O Conselho do Pacto, por mais doloroso que possa ser para muitos,

    inteiramente binico. Sua composio decisiva para a caracterizao danatureza do Governo. Nele, os empresrios tm um peso brutal, sendo mes-mo mais da metade. Os representantes dos trabalhadores so treze (incluin-do a a inexpressiva Central Autnoma dos Trabalhadores, cuja intervenona sociedade pouco mais que virtual). Um pouco menos numeroso o depersonalidades notveis (dez). So onze os representantes de movimentossociais entre os quais est Viviane Senna. Considerao menor se tem coma cultura: apenas dois. Entidades de classe, religiosos e parlamentares apa-

    recem protocolarmente. O governo aconselha-se a si mesmo. Pois, qual osentido do presidente e dez ministros estarem a, j que um conselho con-sultivo? Oficialmente, os partidos no aparecem. claro que inmeros dosindicados tm filiao partidria, mas sintomtica essa informalidade.Nem somos ingnuos a ponto de desconhecer isto. Mas, certamente, isto uma forma particular de desqualificao.

    Algumas questes se fazem necessrias. Quem elegeria, por exemplo, aspersonalidades notveis? Seriam mesmo? Na prtica, uma personalidade critrios de escolha no definidos ou, pelo menos, tornados pblicos tem omesmo peso formal da CUT! Milu Vilela, leia-se Banco Ita, grande financiador

    da campanha, notvel em base a qu? A escolha de Viviane Senna revelaque as ONGs, alm de serem confundidas com a Sociedade Civil, tambm oso com os Movimentos Sociais, o que um problema poltico e um equvocoterico. Mas, responda quem souber, quem nos movimentos sociais a elegeria?Lula, o grande eleitor! Seria cmico se no fosse trgico.

    O peso poltico concedido aos capitalistas nessa poltica est associado,sem dvida alguma, a uma concepo de soberania. Essa igualao entre

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    dominantes e dominados, em nome da nao, nos faz lembrar um outromomento. Antes do golpe de 1964 o ISEB, o PCB e outros reduziam a lutasocial a um par antagnico povo x antipovo. O povo seria marcado pelaunidade de proletariado, burguesia nacional e populao rural contra o la-tifndio e o imperialismo (o antipovo). Nessa poltica de conciliao declasses, com a bvia subalternidade dos setores populares, havia ainda algu-ma pretenso abstrata de projeto nacional.

    Essa anacronia nos faz lembrar o velho Marx: A histria se repete duasvezes. A primeira como tragdia, a segunda como farsa. Ela desconhece,simplesmente, a forma do capitalismo atual onde os grupos capitalistas, di-tos nacionais, contm todos os setores da economia profundamente imbrica-dos entre si e sob o domnio do capital financeiro internacionalizado e estoquase que totalmente associados aos grupos internacionais. O esquema deprivatizaes promovido em nome da modernidade da nossa economia foidecisivo nesse processo. No existe, claro, antagonismo entre produo eespeculao; apenas contradies localizadas.

    O governo recuou. Assumiu que o conselho no deliberativo; chegoumesmo a negar que essa fosse sua proposta. A presso dos sindicalistas de-monstrou o contrrio. Joo Felcio tinha afirmado (segundo a Folha de S.Paulo) que os sindicalistas deveriam ter, pelo menos, direito a vinte assentosno Conselho. Isso indica duas coisas: a) que a burocracia sindical aceitavaa idia do Conselho, reclamando apenas o nmero dos seus participantes serto nfimo e b) que s faz sentido essa reclamao caso o conselho fosserealmente deliberativo.

    Apesar do governo falar em organismo consultivo, muitos parlamenta-res de orientaes distintas falam em recusar o prato feito, e noconstrangimento de ter que negar algo que veio da sociedade. O Con-selho ou ser homologatrio ou registrar as decises tomadas em outros

    locais. Sua funo ser, portanto, a de legitimar as propostas que o Execu-tivo enviar ao Congresso.Lula tem insistido que o Conselho um avano democrtico, que existe em

    outros pases. S se esquece de dizer que naqueles locais onde esse Conselho(ou algo parecido) existe, seus membros so indicados pela famosa sociedadecivil e no pelo governo. Francisco de Oliveira introduz, sobre o Conselho,algumas consideraes que merecem nossa ateno: o que est ali o que o

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    governo entendeu por sociedade civil. Na realidade um organismo de governo,embora amplo, o rgo carece de divergncia. (...) Esse o erro, o grave erro,

    porque a sociedade tem divergncias. Se isso no acontecer ser um simulacro.10

    A equipe de Tarso Genro, em documento preparatrio entregue aos con-selheiros, afirma: Poderemos dar um exemplo histrico, resolvendo alguns agu-dos problemas nacionais atravs de um processo conflitivo de debates e sustenta-es de pontos de vista, que podem poupar o pas de instabilidades sociais e pol-ticas futuras de gravidade.11 Como bom documento habermasiano, afirma-sea possibilidade de resoluo dos conflitos pelo... debate franco e sincero.Classes? Antagonismos? Embate de projetos? Tudo isso desaparece: a solu-o remetida a homens e mulheres de boa vontade. Qual o grandedesafio do nosso Pas?12 A soluo bvia: promover uma renovao pol-tica e social nos marcos da Constituio,13 dentro dos estreitos limites daordem vigente. Relembremos aqui Bobbio e sua concepo de democraciacomo defesa das regras do jogo. Mas, de que Constituio estamos falan-do? Da de 1988 ou daquela inteiramente remendada e sucateada por suces-sivas medidas provisrias e alteraes casusticas, e que algumas das propos-tas governamentais visam alterar?

    O documento expressa claramente a posio de Lula. Na sua mensagemao Congresso ele proclamou: O sentimento de que preciso acreditar noser humano e na sua capacidade de realizao, em qualquer circunstncia,com o vento a favor ou com o vento contra. 14 Poderiam nos objetar que essediscurso genrico adequado a uma fala aos parlamentares. Sua concluso clara e inequvoca: Vim aqui propor uma parceria para construirmos jun-tos o Brasil de nossos sonhos.15 Com que poltica? combater a inflao,reduzir nossa dvida, gerar empregos e distribuir a renda.16 Essa a famosa

    10 Francisco de Oliveira. Op. cit. Grifos nossos.

    11O Estado de S. Paulo, 10 fev. 2003. Grifos nossos.12 Idem.

    13 Idem.

    14O Estado de S. Paulo, 18 fev. 2003, p. A5

    15 Idem.

    16 Idem.

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    quadratura do crculo. E para isso preciso a mxima austeridade e efici-ncia em nossas decises que envolvem os gastos pblicos e tambm os pro-cedimentos administrativos.17 Vale dizer: altos juros, cortes nas polticassociais, etc. Traduo: maior concentrao de sacrifcios por parte do con-junto da populao. O conjunto dos servidores pblicos federais, por exem-plo, que teve seu salrio congelado durante o reinado tucano e que via compreocupao os 4% previstos na Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO)para o reajuste, dever aceitar a austeridade de um reajuste da ordem de2,5%, como falou Guido Mantega? Austeridade para qu e para quem?

    O documento do Pacto muito esclarecedor dos seus propsitos: blo-quear o caminho que pode nos levar a uma ruptura da sociedade formal com asociedade informal, dos excludos com os includos, que poder levar a um confli-to de ricos e pobres.18 Alguma dvida? O antagonismo das classes pode sereliminado pelo debate. O brutal cortejo de concentrao de renda, violn-cia social e misria pode ser efetivamente corrigido. A utopia regenerada: aregulao. Ouamos o que eles mesmos dizem: O processo de concertao(...) pressupe a busca, atravs do dilogo e do debate, de diretrizes (...)para o desenvolvimento econmico e social do Brasil. Um esforo que obje-tiva a celebrao de um novo contrato social. 19 Cidadania abstrata, sem

    determinaes sociais, v-se conjugada com a noo abstrata de nao deiguais. De abstrao em abstrao chegamos lgica da ao comunicativa.No apenas a histria acabou, a luta tambm, desejam eles.

    Decifra-me ou te devoro o velho, mas sempre atual, axioma da poltica . Parao conjunto dos trabalhadores, fundamental construir e afirmar sua identi-dade. A diluio dessa identidade, objetivo declarado da direo majorit-ria do PT, s pode interessar s foras sociais que historicamente seposicionaram contra o povo, entendido como conjunto das classes trabalha-doras. Aquilo que historicamente temos chamado de integrao ordem(reduo das posies classistas, afirmao da possibilidade de construo

    de um pacto pela produo ver o claro fracasso das cmaras setoriais ,identificao abstrata de uma cidadania entre seres estrutural e profunda-

    17 Idem.

    18O Estado de S. Paulo, 10 fev. 2003. Grifos nossos.

    19 Idem.

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    mente desiguais, aceitao da tese do fim da histria com a automticasubordinao ao mercado, leia-se ao capitalismo financeirizado) no podeser eliminada por um golpe de mgica, graas a uma vitria eleitoral.

    O Pacto resolve?

    Lembremos que os partidos ora afastados do governo esto se recompon-do. Sem dvida alguma, figuras como Tasso, Acio, Alckmin, Jarbas, Sarney,ACM, cada qual parte dos seus territrios polticos, esto reconstruindosuas posies de fora. O PSDB redireciona seus caminhos e encontra emTasso, Acio e Alckmin candidatos para ocupar a vaga do velho tucanatopaulista (FHC-Serra). Ficam na perspectiva tranqila de tirar as castanhas(o seu programa) do fogo com as patas petistas que sairo da bem chamus-cadas. Eles esto se constituindo como alternativas ao novo governo, aomesmo tempo em que se cacifam como interlocutores, por seu pesoinstitucional, com o novo governo. Enfim, o melhor dos mundos. Alckminfortalece-se, aps a reunio com Dirceu e Palocci, como plo articulador deuma ampliao do arco de alianas pelas reformas com a vantagem extrade fortalecer o tucano paulista na sua busca de controlar a legenda do PSDB.Modificada em sua posio anterior, a direita no abrir mo de ser poder. Apossibilidade de um novo centro, mais capaz e menos fisiolgico, no podeser descartada. Como tambm no se pode descartar a hiptese de uminchamento do prprio PT por arrivistas.

    Compromissos assumidos j esto demonstrando a impossibilidade doatendimento das necessidades fundamentais. Os cortes anunciados sina-lizam o sentido e a direo das polticas governamentais. Os constrangi-mentos da LDO acabaram por justificar a impossibilidade de atender spresses populares. Afinal, temos de respeitar a Lei de Responsabilidade

    Fiscal (j conhecemos o discurso e a prtica nos planos estadual e munici-pal) no quadro da subordinao ampliada ao FMI e s demais instituiesfinanceiras internacionais. As questes do salrio mnimo, do pequeno ouescasso reajuste salarial para os servidores pblicos, da privatizao daPrevidncia, da sade, da educao, colocam a possibilidade de en-frentamento das classes trabalhadoras com o governo. A lua-de-mel dapopulao com o governo tende a esgotar-se.

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    Os riscos da situao so enormes. As possibilidades tambm. A grandemaioria da populao e a direita estar instrumentalizando isso ir co-brar os projetos histricos do PT. O governo pode fazer o discurso dos gran-des interesses nacionais mas ser-lhe-o lembradas suas propostas passadas.A possibilidade de descumprir suas promessas pode levar a um grau intole-rvel de presso. Na campanha, Lula fez questo, ao responder uma questosobre o MST, de lembrar que este pas tem leis. Como se comportar diantedas presses populares? Os constrangimentos internos e externos foraro ogoverno a atuar de acordo com as polticas do FMI, Banco Mundial e OMC...

    Lula pode tentar equilibrar, cesaristicamente, a direita e as massas. Nes-se caso, a desproporo entre carncias (de muitos) e interesses dos quecontrolam a economia, a poltica, a cultura obrigar a posicionar-se a favorde um ou de outro. O fio da navalha normalmente corta do lado do maisfraco. Uma coisa certa: a pacincia da populao est condicionada aojulgamento de possibilidades abertas pela eleio. Obviamente, a popula-o no raciocina como os militantes. A imensa dvida social ser cobradano por radicalismo, mas por ser expresso de todas as carncias vividas.

    O papel das direes dos movimentos , aqui, vital: a idia de uma tr-gua constantemente proposta, o que, em mdio prazo, tende a agravar astenses. Lembremos que o discurso da governabilidade sempre o da solu-o pelo alto. Os movimentos sociais estaro sempre, no mnimo, diante dapossibilidade de serem considerados entraves modernizao. Apesar damilitncia, pelo menos em tese, entender a poltica para alm dos limites doimediatismo, ela j comea a dar sinais de desconformidade. O preocupante que o governo e o partido usam a linguagem burocrtica da punio, aoinvs do exerccio poltico do convencimento e quando no usa a ttica dorolo compressor. Se o quadro de aceitao de uma nova compreenso doreal e das prticas e tarefas da decorrentes poderiam, pelo menos, como

    alguns partidos social-democrticos o fizeram, alterar, via congresso parti-drio, as posies que ora rejeitam. Como manda a realpolitik: se no d paramudar o real, mude-se o programa.

    A experincia Lula decisiva no apenas para os movimentos sociais epara a esquerda no nosso pas, mas, fundamentalmente, afeta a vida dospovos em escala mundial, em especial os da Amrica Latina. Esterilizar-secomo proposta significa retardar em dcadas qualquer possibilidade de eman-

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    cipao. A direita internacional acompanha-a de perto. A subalternidadedo governo Lula em relao aos desgnios do capital para ela no apenasdecisiva mas uma importante vitria estratgica. Significa confirmar a tesede que basta seguir os procedimentos vigentes para neutralizar fortemente apossibilidade de emancipao e de construo de uma sociedade alternati-va para alm do capital.

    O que se coloca hoje a necessidade imperativa de manter as lutas emobilizaes, de se perceber que todo e qualquer processo s pode ser obracoletiva de militantes de diversas orientaes unificados em torno de umprojeto de transformao social e no de uma vitria eleitoral.

    A questo da organizao da vontade coletiva nacional-popular real-mente democrtica uma temtica rica colocada para a militncia. Partin-do do sentido gramsciano de intelectual como aquele que pensa e atua naperspectiva da construo da nova sociedade, a questo do novo partido premente. Partido que rena os militantes combativos e classistas e queelabore, com a populao, um projeto da sociedade socialista hoje a tarefamais rica e mais nobre. Quem recusa a limitao dos projetos pela adequa-o a uma realpolitik est diante da tarefa de sua implementao. A tarefada emancipao social.