Educaçãao matemática crítica

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Rev. Prod. Disc. Educ. Matem., São Paulo, v.1, n.1, pp. 103-112, 2012 Educação matemática crítica 1 _____________________________________ MARCIO BENNEMANN 2 NORMA SUELY GOMES ALLEVATO 3 Resumo Neste trabalho, de natureza teórica, identificamos os fundamentos da Educação Matemática Crítica (EMC) segundo as concepções de Ole Skovsmose. Por meio da análise de seus textos identificamos suas premissas com relação à EMC, as quais põem em pauta uma série de discussões relativas ao papel sociopolítico da Educação Matemática. Nossas análises partiram do entendimento do quadro atual presente nas aulas de Matemática, reconhecido como tradicional, seguindo em direção a reflexões sobre a necessidade de uma postura democrática em que o poder formatador da Matemática precisa ser identificado e conhecido. A relação entre professor e aluno deve ser necessariamente democrática, baseada no diálogo buscando desenvolver a capacidade de interagir em situações sociais e políticas estruturadas pela Matemática Palavras-chave: Educação Matemática; Educação Crítica; Educação Matemática Crítica. Abstract In this work of theoretical nature, we could identify the fundamentals of the Critical Mathematical Education (CME) according to Ole Skovsmose’s conceptions. Though the analysis of his texts we could identify his premises related to CME, which rise a number of issues about the sociopolitical roles in Mathematical Education. Our analyses came from the understanding of the current situation present in Math classes, which is recognized as traditional, followed by reflections about the necessity of a democratic posture in which the formatter power of Mathematics need to be identified and known. The relation between teachers and students must be necessarily democratic, based on dialogue, aiming to build up the ability of interacting in social and political situations structured by Mathematics. Keywords: Mathematics Education; Critical Education; Critical Mathematics Education Introdução: Uma Crítica à Educação Matemática No ensino de Matemática, predominam aulas com uma introdução, pelo professor, com explicações teóricas e formais sobre um novo tópico matemático, alguns exemplos de questões e/ou aplicações resolvidos no quadro e, em seguida, uma lista de exercícios que, em função da quantidade, acabam, em parte, ficando como trabalho de casa. 1 Trabalho apresentado no IV Encontro de Produção Discente em Educação Matemática, realizado em 29 de outubro de 2011. CAPES / PIQDTec 2 Universidade Cruzeiro do Sul [email protected] 3 Universidade Cruzeiro do Sul [email protected]

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Neste trabalho, de natureza teórica, identificamos os fundamentos da Educação Matemática Crítica (EMC) segundo as concepções de Ole Skovsmose. Por meio da análise de seus textos identificamos suas premissas com relação à EMC, as quais põem em pauta uma série de discussões relativas ao papel sociopolítico da Educação Matemática. Nossas análises partiram do entendimento do quadro atual presente nas aulas de Matemática, reconhecido como tradicional, seguindo em direção a reflexões sobre a necessidade de uma postura democrática em que o poder formatador da Matemática precisa ser identificado e conhecido. A relação entre professor e aluno deve ser necessariamente democrática, baseada no diálogo buscando desenvolver a capacidade de interagir em situações sociais e políticas estruturadas pela Matemática

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  • Rev. Prod. Disc. Educ. Matem., So Paulo, v.1, n.1, pp. 103-112, 2012

    Educao matemtica crtica1

    _____________________________________

    MARCIO BENNEMANN 2

    NORMA SUELY GOMES ALLEVATO 3

    Resumo

    Neste trabalho, de natureza terica, identificamos os fundamentos da Educao

    Matemtica Crtica (EMC) segundo as concepes de Ole Skovsmose. Por meio da

    anlise de seus textos identificamos suas premissas com relao EMC, as quais pem

    em pauta uma srie de discusses relativas ao papel sociopoltico da Educao

    Matemtica. Nossas anlises partiram do entendimento do quadro atual presente nas

    aulas de Matemtica, reconhecido como tradicional, seguindo em direo a reflexes

    sobre a necessidade de uma postura democrtica em que o poder formatador da

    Matemtica precisa ser identificado e conhecido. A relao entre professor e aluno deve

    ser necessariamente democrtica, baseada no dilogo buscando desenvolver a

    capacidade de interagir em situaes sociais e polticas estruturadas pela Matemtica

    Palavras-chave: Educao Matemtica; Educao Crtica; Educao Matemtica

    Crtica.

    Abstract

    In this work of theoretical nature, we could identify the fundamentals of the Critical

    Mathematical Education (CME) according to Ole Skovsmoses conceptions. Though the analysis of his texts we could identify his premises related to CME, which rise a number

    of issues about the sociopolitical roles in Mathematical Education. Our analyses came

    from the understanding of the current situation present in Math classes, which is

    recognized as traditional, followed by reflections about the necessity of a democratic

    posture in which the formatter power of Mathematics need to be identified and known.

    The relation between teachers and students must be necessarily democratic, based on

    dialogue, aiming to build up the ability of interacting in social and political situations

    structured by Mathematics.

    Keywords: Mathematics Education; Critical Education; Critical Mathematics

    Education

    Introduo: Uma Crtica Educao Matemtica

    No ensino de Matemtica, predominam aulas com uma introduo, pelo professor, com

    explicaes tericas e formais sobre um novo tpico matemtico, alguns exemplos de

    questes e/ou aplicaes resolvidos no quadro e, em seguida, uma lista de exerccios

    que, em funo da quantidade, acabam, em parte, ficando como trabalho de casa.

    1 Trabalho apresentado no IV Encontro de Produo Discente em Educao Matemtica,

    realizado em 29 de outubro de 2011. CAPES / PIQDTec 2 Universidade Cruzeiro do Sul [email protected]

    3 Universidade Cruzeiro do Sul [email protected]

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    Variaes deste mesmo modelo, dando maior ou menor nfase s explicaes do

    professor, com alunos trabalhando ora individualmente, ora em grupo, em atividades

    com seminrios ou a partir de propostas fundamentadas em aplicaes matemticas, em

    muitos casos, tambm fazem parte das aulas. No entanto, todas tm um forte apego s

    listas de exerccios que os professores propem muitas vezes por julgarem que

    praticando o aluno compreender o contedo. Por outro lado, nos programas

    curriculares, encontramos objetivos educacionais como: desenvolver o raciocnio lgico

    e a criatividade.

    Chamam-nos a ateno, no entanto, alguns questionamentos levantados por

    Skovsmose(2001, 2007, 2008) e Alro e Skovsmose(2006) com relao ao papel

    sociopoltico da Educao Matemtica, sugerindo que este modelo tradicional

    (SKOVSMOSE, 2007, p. 33) de ensino possa/deva contribuir para uma cultura de

    obedincia e submisso consentida. O autor classifica de tradicional aquelas prticas

    fundamentadas na resoluo de exerccios estruturados como uma sequncia de ordens:

    resolva, efetue, calcule, etc, onde as atividades so descontextualizadas e o material

    didtico pouco variado.

    Isso sugere que ns, professores, estamos dedicando nossas vidas a um ensino

    desprovido de criticidade onde aqueles objetivos educacionais so iluses, ou

    simplesmente atendem a uma ordem social que, no raro, nem sabemos bem qual .

    Com o objetivo de identificar e discutir os fundamentos da EMC segundo as concepes

    de Ol Skovsmose, desenvolvemos este estudo terico a respeito das obras do autor,

    identificando as premissas de sua teoria: o papel sociopoltico da Educao Matemtica

    (EM), a competncia matemtica para agir democraticamente e a dinamizao das

    potencialidades do sujeito4 por meio da EM. Os pilares de sua teoria foram construdos

    com base na Educao Crtica, orientada pelo interesse na emancipao. Assim,

    Skovsmose prope a EMC como uma preocupao com o desenvolvimento da

    capacidade de agir do cidado. Discutiremos com mais detalhes esses aspectos nas

    prximas sees.

    4 Nos trabalhos de Skovsmose, esse aspecto designado por empowermente, entendido como: dar poder

    ao sujeito, dinamizar suas potencialidades, muni-lo de poder para agir, fortalecer, potencializar, conferir

    autonomia, autocapacitar.

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    1. Educao Matemtica Crtica segundo Ole Skovsmose

    Skovsmose vem delineando o que concebe por Educao Matemtica Crtica desde a

    dcada de 1980. Inicialmente enfoca a realidade europeia, j que um cidado

    dinamarqus, e a partir da dcada de 1990 amplia seu mbito de ao e reflexo a partir

    visitas e relacionamentos acadmicos com a Inglaterra, a frica do Sul, o Brasil e a

    Colmbia.

    Ao estabelecer um quadro referencial para a Educao Matemtica, Skovsmose(2001)

    identifica trs vertentes didtico-pedaggicas predominantes: estruturalismo,

    pragmatismo e orientao-ao-processo. No estruturalismo o conhecimento dos

    estudantes deve ser construdo a partir de estruturas e contedos definidos

    independentemente dos alunos. Com relao Matemtica, sua estrutura conceitual

    constitui o currculo que linearmente repassado aos alunos. No pragmatismo entende-

    se que a essncia da Matemtica est em suas aplicaes; portanto, fora das estruturas

    matemticas, sendo uma vertente orientada a problemas. Na orientao-ao-processo, a

    essncia da Matemtica est nos processos de pensamento, na capacidade da

    reinveno. Compreendendo a Matemtica como uma atividade humana, valoriza os

    processos de pensamento que conduzem aos conceitos matemticos.

    O autor, considera que nenhuma das trs vertentes se aproxima da Educao

    Crtica(EC)5. Considera EC como aquela que no reproduz passivamente as relaes

    sociais existentes, questionando as relaes de poder, desempenhando um papel ativo na

    identificao e combate a disparidades sociais, e defende uma maior aproximao entre

    EC e EM. Skovsmose entende que essa aproximao traria tona: as relaes de poder

    estabelecidas na sociedade, nas quais a Matemtica se faz presente; a ideologia da

    certeza, que coloca o conhecimento matemtico em uma posio de superioridade; o

    papel social desempenhado pela EM, desvelando em que sentido o ensino da

    Matemtica vem contribuindo para a estratificao social.

    Skovsmose identifica aspectos antidemocrticos na EM, existentes devido ao seu poder

    de formatao social exercido via modelos matemticos e tambm via concepes

    5 Para Skovsmose(2001), a EC aquela em que o conhecimento construdo atravs do dilogo. Os

    alunos e os professores controlam o processo educacional com atitudes democrticas. A estrutura

    curricular construda estabelecendo a aplicabilidade dos assuntos, os interesses atrelados aos assuntos,

    os pressupostos sob os quais foram gerados os conceitos, as funes dos assuntos e suas limitaes. O

    processo de ensino e de aprendizagem direcionado a problemas relevantes na perspectiva dos alunos,

    prximos de suas experincias e de seu quadro terico, tendo uma relao prxima com problemas sociais

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    pedaggicas que visam preparar uma fora de trabalho passiva e eficaz no cumprimento

    de comandos/ordens. Seus estudos e escritos abordam temas como o paradigma do

    exerccio, a ideologia da certeza, o poder de formatao, as relaes de poder, a

    democracia e o papel scio poltico da EM. A seguir vamos discutir a relevncia de cada

    um destes temas na construo das bases tericas para uma filosofia da Educao

    Matemtica Crtica.

    2. Educao Matemtica Crtica e o Paradigma do Exerccio

    Skovsmose (2007) estima que do ensino fundamental ao ensino mdio, os alunos sejam

    expostos a aproximadamente 10.000 exerccios, na sua maioria, baseados em comandos.

    Esses exerccios dificilmente atendem aos objetivos registrados nos programas

    curriculares de Matemtica onde encontramos referncias ao desenvolvimento da

    criatividade, do raciocnio lgico e da capacidade de resolver problemas. Contudo, eles

    devem ter algumas similaridades com outras tarefas rotineiras que algumas vezes so

    encontradas na produo e na administrao (SKOVSMOSE, 2007, p. 37).

    Historicamente, a EM treinava, e no raro vem treinando, os alunos a resolverem

    exerccios modelos. Essa prtica baseia-se na crena de que quanto maior o nmero de

    modelos que o aluno dominar, maior ser suas chances de sucesso nas mais diversas

    avaliaes, sejam escolares ou em concursos, haja vista, em grande nmero dessas

    avaliaes, as perguntas seguirem a linha dos exerccios modelos. Isso estimula a escola

    a permanecer com esse modelo de ensino que, nesse sentido, atende/obedece a uma

    demanda social. No entanto, o discurso social dominante o da necessidade de

    criatividade, raciocnio lgico, capacidade de anlise, entre outras habilidades que os

    conhecimentos matemticos supostamente ofereceriam aos profissionais. Ento, est a

    sociedade iludida com a capacidade da Matemtica de preparar profissionais

    inovadores, ou a estrutura social se beneficia com uma massa trabalhadora treinada para

    receber comandos?

    Exerccios sob a forma de comandos e exerccios estruturados, com respostas nicas e

    imutveis em geral no admitem uma contextualizao mais ampla vinculada a questes

    de responsabilidade social e contribuem para a consolidao da Ideologia da Certeza,

    que discutiremos em seguida.

    objetivamente existentes.

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    3. Educao Matemtica Crtica e o Absolutismo dos Nmeros

    Ideologia da Certeza

    O ensino tradicional de Matemtica favorece a crena nos nmeros. Respostas nicas e

    exatas, to presentes nas aulas de Matemtica, extrapolam os muros escolares e passam

    a agir diretamente nas crenas sociais. Afirmaes como: os nmeros no mentem e

    os dados mostram que... so resultados da forma como a Matemtica abordada em

    sala de aula.

    Borba e Skovsmose(2001) Identificam essa viso da Matemtica como pura, perfeita e

    infalvel dentro da ideologia6 da certeza. Tal ideologia est implcita e fortalecida pelo

    discurso a respeito do enorme poder das aplicaes matemticas. A base da ideologia

    est nas seguintes ideias:

    A matemtica perfeita, pura e geral, no sentido de que a verdade de

    uma declarao matemtica no se fia em nenhuma investigao

    emprica. A verdade matemtica no pode ser influenciada por

    nenhum interesse social, poltico ou ideolgico.

    A matemtica relevante e confivel, porque pode ser aplicada a

    todos os tipos de problemas reais. A aplicao da matemtica no tem

    limite, j que sempre possvel matematizar um problema.(BORBA;

    SKOVSMOSE, 2001, p. 130).

    O tratamento matemtico dos problemas requer que estes sejam recortados para que

    fiquem adequados ao modelo matemtico e, assim, [...] somos colocados em um

    mundo mgico, onde a gramtica da matemtica encaixa-se no mundo platnico [...]

    (BORBA; SKOVSMOSE, 2001, p. 132).

    Os autores discutem o campo de validade dos modelos matemticos e a matemtica que

    d suporte sociedade tecnolgica7 e identificam o poder formatador

    8 da matemtica.

    Por meio de modelos matemticos, tambm nos tornamos capazes de projetar uma

    parte do que se torna realidade. Tomamos decises baseados em modelos matemticos

    e, dessa forma, a matemtica molda a realidade (BORBA; SKOVSMOSE, 2001, p.

    135).

    6 Borba e Skovsmose(2001, p. 128) definem ideologia como um sistema de crenas que tende a

    esconder, disfarar ou filtrar uma srie de questes ligadas a uma situao problemtica para grupos

    sociais. 7 Sociedades estruturadas segundo modelos gerenciais, modelos matemticos que servem de base para

    tomada de decises econmicas, polticas, sociais, etc. 8 A matemtica intervm na realidade ao criar uma segunda natureza ao nosso redor, oferecendo no

    apenas descries de fenmenos, mas tambm modelos para a alterao de comportamentos. No apenas

    vemos de acordo com a matemtica, ns tambm agimos de acordo com ela. (SKOVSMOSE, 2001, p. 83)

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    Desafiar esta ideologia por meio de um currculo baseado na incerteza, pelo

    questionamento a respeito de possveis interesses envolvidos na escolha dos modelos,

    no aceitando a neutralidade da matemtica e suas solues infalveis a proposta de

    Borba e Skovsmose(2001) para favorecer uma viso crtica da Matemtica.

    4. Democracia e o Papel Sociopoltico da Educao Matemtica

    Crtica

    Ao referir-se aos possveis papis sociopolticos da Educao Matemtica,

    Skovsmose(2008) considera diversas possibilidades: promover a submisso a ordens, a

    discriminao por classificao e diferenciao, a filtragem tica e a cidadania crtica. A

    EMC representa a expresso das preocupaes com esses papis que a Educao

    Matemtica pode desempenhar na sociedade

    O conceito de democracia que Skovsmose(2001, p. 70) defende bastante amplo, no

    limita-se ao procedimento de escolha dos governantes. Em suas palavras,

    [...]democracia refere-se s condies formais relativas a algoritmos

    de eleio, condies materiais relativas a distribuio, condies

    ticas relativas igualdade e, finalmente, condies relativas

    possibilidade de participao e reao.

    Destes quatro aspectos, o quarto fala das possibilidades e habilidades que os cidados

    necessitam para serem capazes de discutir e analisar os atos do governo. A competncia

    democrtica uma capacidade humana potencial que precisa ser desenvolvida.

    [...] o desenvolvimento de uma competncia democrtica pressupe

    uma atitude, mas, ao lado disso, muito conhecimento e muita

    informao sobre o domnio dos processos democrticos tm de ser

    desenvolvidos (SKOVSMOSE, 2001, p. 70).

    Skovsmose refere-se a sociedades altamente tecnolgicas, como a dinamarquesa,

    quando fala da competncia democrtica. Nessas sociedades, as decises

    governamentais so em grande parte influenciadas ou mesmo determinadas por modelos

    matemticos gerenciais que no so do conhecimento da populao em geral; apenas

    parte da sociedade, uma pequena parte, tem informao e conhecimento suficiente para

    avaliar as aes do governo. Tais modelos matemticos foram concebidos segundo

    critrios especficos, a partir de escolhas a respeito de quais partes da realidade

    (variveis) comporiam o modelo.

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    A competncia democrtica defendida por Skovsmose(2007) refere-se capacidade de

    analisar a influncia do modelo na sociedade. No se refere apenas ao conhecimento

    tecnolgico capaz de modelar; mais do que isso, refere-se a uma atitude crtica em

    relao aos pressupostos que sustentam o modelo e seus efeitos na sociedade.

    A EMC acredita no fortalecimento da democracia pelo desenvolvimento da capacidade

    democrtica potencial dos cidados. Para isso, alm de uma relao de poder igualitria

    entre professor e estudantes, pressupe a valorizao do currculo oculto9 e a adoo de

    materiais de ensino-aprendizagem libertadores cujas caractersticas so: o modelo

    matemtico em estudo referente a um modelo real e tem a ver com atividades sociais

    importantes; a meta gerar um insight sobre as hipteses integradas no modelo,

    promovendo o entendimento dos processos sociais. Alm disso, defende a utilizao de

    materiais abertos de ensino aprendizagem caracterizados como materiais com

    relevncia substantiva para os estudantes; que apresentem uma variedade de atividades

    que no so pr-estruturadas nem completamente fixadas; que envolvam vrias decises

    a serem tomadas, que devem ser discutidas entre professor e estudantes.

    5. Educao Matemtica Crtica e as Relaes de Poder

    Quanto mais tecnolgica uma sociedade, mais forte a relao entre Matemtica e

    Poder na tomada de decises. Decorrente disso, o fator humano, na tomada de decises,

    eliminado ou colocado em uma redoma onde recebe uma blindagem atravs dos

    modelos. Skovsmose (2007) refere-se a matemtica-poder ao considerar a variedade de

    pacotes de modelos que definem rotinas s quais somos inseridos/submetidos.

    Considera, ainda, que os modelos matemticos adotados pelos governos e pelas grandes

    empresas distanciam os responsveis pelas decises, polticas e empresariais, dos

    efeitos da adoo dos modelos, deslocando a responsabilidade/culpa do resultado ao

    modelo, que por meio de uma estrutura matemtica precisa justifica a tomada de

    deciso.

    Skovsmose(2007) analisa modelos gerenciais para venda de passagens areas, modelos

    de regulao de trfego em rodovias e cidades, e o Modelo de Simulao do Conselho

    Econmico (SMEC) utilizado por economistas dinamarqueses para aconselhar o

    governo sobre polticas econmicas, para chamar a ateno a respeito do poder que

    9 Aquilo que o estudante aprende na escola, fora ou alm do programa curricular.

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    atribudo Matemtica na tomada de decises sobre nossas vidas. No contexto

    brasileiro, como em qualquer outro, certamente, tambm estamos sujeitos a esse poder.

    Os modelos que definem os clculos do Imposto de Renda (IR), do tempo de

    contribuio para aposentadoria, dos planos de seguro e tantos outros. Enfim, estamos

    sujeitos a uma srie de decises onde a Matemtica utilizada para formatar a conduta

    social.

    Aceitamos este fato, ou nem nos damos conta dele, talvez por estarmos acostumados a

    acreditar que os resultados da Matemtica aplicada so nicos, assim como os clculos

    que repetimos inmeras vezes na escola. Por ingenuidade e/ou falta de conhecimento de

    nossa parte, no questionamos os procedimentos. Talvez falte-nos a competncia

    democrtica, aquelas atitudes e conhecimentos necessrios para analisar tais modelos e

    as decises tomadas pelos lderes a partir deles.

    6. Caminhos Educao Matemtica Crtica

    Skovsmose (2008) usa o termo Materacia10

    para falar da competncia de interagir e agir

    em situaes sociais e polticas estruturadas pela Matemtica.

    Desenvolver esta Materacia/Matemcia o objetivo da EMC, que vem conseguindo

    bons resultados mediante o emprego de trabalhos com projetos (modelagem

    educacional) e atividades investigativas

    Trabalhos com projetos e abordagens temticas tm sido considerados

    uma resposta emblemtica aos desafios educacionais lanados pela

    educao crtica. [...] Considero que uma nova educao matemtica

    crtica deve buscar possibilidades educacionais (SKOVSMOSE, 2008,

    p. 13)

    Contrapondo-se ao paradigma do exerccio, Skovsmose(2008) defende um ambiente de

    ensino favorvel investigao. Chamando de Cenrio para Investigao o ambiente

    que d suporte ao trabalho investigativo, onde os alunos so convidados a formularem

    questes e a procurarem explicaes, ele identifica trs cenrios: investigao em

    Matemtica Pura, investigao com referncia semi-realidade e investigao com

    10

    Em Skovsmose(2007, p. 241) o mesmo sentido atribudo Materacia o de Matemcia, de forma que

    a noo de matemcia representa uma competncia, que est relacionada matemtica e que, como a noo de Freire sobre letramento, inclui suporte para a cidadania crtica. A noo de matemcia inclui no

    apenas referncias matemtica, no amplo sentido do termo, mas tambm referncia ao modo pelo qual a

    democracia interpretada como uma forma de vida.

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    referncia na realidade. Tambm considera que a resoluo de problemas pode

    desencadear genunos processos de investigao. Nesse aspecto, reconhecemos em

    Allevato e Onuchic (2009) uma estreita ligao entre a Metodologia de Ensino-

    Aprendizagem-Avaliao de Matemtica atravs da Resoluo de Problemas e a EMC.

    Embora as autoras no se refiram explicitamente EMC, propem aes investigativas

    que primam por desenvolver a capacidade matemtica dos alunos por meio de situaes

    problema gerados, inclusive, fora do contexto da disciplina Matemtica, abrindo espao

    para identificar a Matemtica presente em outros contextos.

    Quanto ao professor, ao trabalhar com cenrios de investigao, adentrar em uma zona

    de risco11

    . As incertezas devero ser enfrentadas e as tecnologias, em especial os

    computadores, devero ser utilizados como reorganizadores do pensamento, conforme

    identificaram Borba e Villareal (2005). O trabalho com o computador quando,

    direcionado a investigaes, desafia a autoridade do professor porque possibilita, ao

    aluno, experimentaes ricas e diversas em um espao de tempo relativamente curto

    quando comparado a atividades com lpis e papel. Tambm viabiliza diferentes formas

    de representao, como a numrica, a grfica e a algbrica, que podem adequar-se aos

    diferentes perfis de aprendizagem, alm de instigarem diferentes formas de anlises.

    Na busca por novas possibilidades educacionais, os professores precisam ter presente

    que o que ensinam e a forma como ensinam tm efeitos futuros na vida de seus alunos.

    Segundo a EMC, o que se espera que esses efeitos atuem no sentido de promover uma

    melhor qualidade de vida com uma participao consciente e ativa na sociedade.

    Consideraes finais

    Skovsmose fundamenta a EMC por meio do reconhecimento da natureza crtica da EM.

    Quando fala do paradigma do exerccio e da ideologia da certeza, caracterizando o

    ensino de Matemtica como tradicional, traz tona o questionamento sobre o papel

    sociopoltico da EM, que pode estar ligado a aspectos que vo desde o treinamento para

    o cumprimento de ordens at o desenvolvimento da capacidade crtica do cidado.

    Os trabalhos de Skovsmose nos conduzem a um olhar diferente sobre o ensino de

    Matemtica. Somos expostos a uma crtica a respeito do que muito fazemos e somos,

    11

    Zona de risco um conceito proposto por PENTEADO(2004, apud SKOVSMOSE, 2008, p. 35) que se

    refere ao fato de o professor no poder prever todos os acontecimentos em sala de aula, estando sujeito a

    questionamentos inesperados para os quais possivelmente no tenha respostas prontas.

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    tambm, estimulados a refletir sobre o poder formatador da Matemtica e o importante

    papel que a EM tem no desenvolvimento da capacidade democrtica dos cidados.

    Atravs da EMC, Skovsmose nos convida a ensinar e aprender Matemtica com

    responsabilidade social, preocupados com o conhecimento, com suas aplicaes e com

    seus efeitos. Trata-se de uma mudana curricular ampla, ou seja, de uma mudana de

    postura em relao forma como concebemos e ensinamos Matemtica. Reconhecer

    limitaes e posicionar-se em relao aos efeitos sociais do conhecimento matemtico,

    seja pelas aplicaes ou pela estrutura de poder que sustenta, representa uma

    preocupao da EMC.

    Esperamos que as ideias aqui discutidas atendam aos anseios daqueles educadores

    matemticos (professores, pesquisadores, legisladores, administradores) preocupados

    com uma educao que atenda s atuais demandas sociais de formao de cidados

    criativos, reflexivos e crticos.

    Referncias

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    atravs da resoluo de problemas. GEPEM, n.55, jul./dez.

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    Matemtica. Belo Horizonte: Autntica.

    BORBA, M. C.; SKOVSMOSE, O. (2001). A Ideologia da Certeza em Educao

    Matemtica In: SKOVSMOSE, O. Educao Matemtica Crtica A Questo da Democracia. Campinas: Papirus.

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