Educação

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54 | RAÇA BRASIL CENÁRIO Levar a cultura e a história da África e dos afro-brasileiros para as escolas do país está previsto pela lei 10.639, desde 2003. O processo, entretanto, vem gerando dramas, revelando preconceitos arraigados, como também produzindo maravilhas dentro das escolas de um país contemporâneo, que termina a primeira década do século XXI com 50,6% da população constituídas de pretos e pardos, mas que ainda mantém, até mesmo dentro das escolas, barreiras para valorizar a identidade cultural e a história desta parcela da população. A mesma, cujos antepassados ergueram com trabalho escravo as bases do país e que, com sua cultura, contribuíram para uma identidade nacional das mais originais Deuses,história e cultura na escola afro-brasileira 54 | RAÇA BRASIL por DE ALMADA ilustrações e montagem DIEGO FERREIRA

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CENÁRIO

Levar a cultura e a história da África e dos afro-brasileiros para as escolas do país está previsto pela lei 10.639, desde 2003. O processo, entretanto, vem gerando dramas, revelando preconceitos arraigados, como também produzindo maravilhas dentro das escolas de um país contemporâneo, que termina a primeira década do século XXI com 50,6% da população constituídas de pretos e pardos, mas que ainda mantém, até mesmo dentro das escolas, barreiras para valorizar a identidade cultural e a história desta parcela da população. A mesma, cujos antepassados ergueram com trabalho escravo as bases do país e que, com sua cultura, contribuíram para uma identidade nacional das mais originais

Deuses,história e cultura

na escola afro-brasileira

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por DE ALMADAilustrações e montagem DIEGO FERREIRA

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Levar a cultura e a história da África e dos afro-brasileiros para as escolas do país está previsto pela lei 10.639, desde 2003. O processo, entretanto, vem gerando dramas, revelando preconceitos arraigados, como também produzindo maravilhas dentro das escolas de um país contemporâneo, que termina a primeira década do século XXI com 50,6% da população constituídas de pretos e pardos, mas que ainda mantém, até mesmo dentro das escolas, barreiras para valorizar a identidade cultural e a história desta parcela da população. A mesma, cujos antepassados ergueram com trabalho escravo as bases do país e que, com sua cultura, contribuíram para uma identidade nacional das mais originais

Deuses,história e cultura

na escola afro-brasileira

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CENA 1:Oito horas da manhã de um dia de sol do mês de março. A professora Sílvia Maria, ao lado de 20 alunos de uma escola pública da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, iniciava uma visita a uma comunidade localizada num morro da Tijuca, zona norte da cidade. Pela primeira vez, a “tia Sílvia” visitava o local onde os estudantes viviam. “Bom dia!”. “Muito prazer!”. “Nossa filha fala muito bem da senhora!” Os pais cumprimentavam a professora. “Valéria é uma boa aluna, ela e os senhores estão de parabéns!”, a professora devolvia. O passeio transcorria com tranquilidade até que, em dado momento, Sílvia parou silenciosa diente de um pequeno barraco. Ao lado dele, fora construída uma casinha bem acabada, com telhas de amianto, iluminada no interior e, tendo, do lado de fora, tigelas de barro contendo frutas, entre outros alimentos. “Flávia, como é bonita a casinha de seu cachorro! Tão limpa, tão bem tratada! Que zelo com o animal, tão bem alimentado”, a professora disse, dirigindo-se a uma de suas alunas. Mas o rosto da menina, no lugar de iluminar-se com o elogio, mostrou-se tenso. “Tia, peça desculpas! Peça desculpas, rápido! Essa não é a casinha do meu cachorro, é a casa de Exu!”, falou Flávia, muito nervosa, corrigindo a professora.

Começo de 2009, em Salvador. No Ilê Axé Opô Afonjá – um dos mais tradicionais e importantes terreiros de candomblé do país – muitas crianças e jovens, acompanhados de seus pais, aguardam a abertura dos portões da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, também chamada de Mini Comunidade Oba Biyi. Católicos, protestantes, candomblecistas – são diversos os credos religiosos dos que buscam uma vaga no colégio situado no terreno do “axé”, outra forma de

denominar um terreiro de candomblé. Com suas árvores ancestrais e seus troncos amarrados com grandes laços coloridos, a área preservada, como patrimônio da humanidade, é onde �ca a casa de Xangô, orixá patrono daquele santuário exuberante. “Aqui, quem passa do portão pra dentro é �lho de Xangô, passa a estar sob sua proteção”, explica a professora Vanda Machado, membro do corpo religioso do terreiro e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, cuja dissertação de Mestrado resultou no Projeto-Político Pedagógico Irê Ayó – régua e compasso com o qual se orientam os alunos e professores da escola Eugênia Anna para cumprir um objetivo comum: conhecer os valores, a �loso�a e a visão de mundo presentes na cultura dos orixás. Foi esse projeto pedagógico que levou a escola a ser considerada pelo MEC, em 1988, uma “escola de referência” de como se introduzir a cultura negra no sistema de ensino. E que inspirou a criação da lei 10639.

CENA 2:

na escola

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Macaé, região norte do Rio de Janeiro, outubro de 2009. A professora Maria Cristina Marques, da rede pública municipal de Macaé, entra na Escola Pedro Adami, como o faz habitualmente. Só não imaginava que, a partir daquele dia, suas aulas de Língua Portuguesa fossem virar caso de justiça. A mestra vinha aprimorando-se no curso de pós-graduação em História e Cultura Afro-brasileira, oferecido pela Secretaria de Educação de Macaé, e havia planejado usar a aula daquele dia para transformar em atividade com seus alunos, o que a lei 10639 previra. O resultado foi, entretanto, desastroso. Maria Cristina amargaria 45 dias de suspensão, os quais, segundo ela, lhe foram impostos como fruto de perseguição dos diretores do colégio, por motivo supostamente religioso. De acordo com a direção, a professora havia usado o livro Exu - contos do folclore brasileiro, de Adilson Martins, em suas aulas, com o objetivo de doutrinar os alunos. “Fico muito triste por não poder mostrar a cultura afro. Não considero esse livro religioso, pois ele apenas narra contos”, justificou na ocasião a professora, que voltou a

CENA 3:trabalhar graças a uma determinação da Procuradoria da prefeitura Macaé. Maria Cristina Marques é umbandista. Por conta disso, deve estar familiarizada, assim como a maioria esmagadora do povo brasileiro, com os “despachos”, velas e oferendas nas praias, cachoeiras, encruzilhadas e parques. Expostas em área pública, essas oferendas são quase sempre feitas em local reservado. E são, algumas delas, o lado visível das “religiões do segredo”, recriadas no Brasil pelos negros africanos, e perseguidas em nosso país desde o período colonial. Exu, por sua vez, veio da África como o deus da comunicação, o que abre e fecha caminhos (daí suas oferendas serem feitas nas encruzilhadas). No Brasil, entretanto, a divindade (representada com um pênis em ereção em alusão também à fertilidade), foi confundida, equivocadamente, com o demônio e vem sendo desde tempos ancestrais, motivo de muita discussão.

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Ana de Souza Pereira tem 9 anos e está na quarta série do ensino fundamental. Sua

mãe, dona Marleide de Souza é evangélica e procura passar para a filha os princípios da

religião que segue há 14 anos. Mas o rigor religioso de dona Marleide não impediu que ela,

ao escolher a escola onde Ana estudaria, optasse por um ensino que valorizasse a cultura

afro-brasileira matriculando a filha na Escola Eugenia Anna dos Santos, que funciona na

comunidade de Terreiro Opo Afonjá em parceria com a Prefeitura Municipal de Salvador.

“Somos negros e Ana precisa saber a história do nosso povo”, defende Marleide, sem

temer a censura do pastor de sua igreja: “Se ele fosse contra, teria que oferecer um

colégio evangélico de graça”JORNAL DO MEC, NÚMERO 12, EDIÇÃO DE AGOSTO DE 2001

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O QUE DIZEM AS ESTATÍSTICAS E OS EDUCADORES

Famílias desestruturadas pela pobreza e alcoolismo, pais desempregados, desestímulo de toda ordem, desconhecimento de sua história e de suas raízes culturais, baixa autoestima, desmotivação diante de métodos de ensino utilizados na escola. Estas são algumas razões apontadas há décadas por especialistas para a evasão das salas de aula de jovens e crianças negros, que são, coincidentemente, aqueles pertencentes aos segmentos mais pobres da população. O problema fica ainda mais grave ( já não bastassem os entraves familiares e socioeconômicos), pois a meninada pobre e afrodescendente parece ter que enfrentar, ainda, uma outra adversária de peso: a própria escola brasileira. O educador e estudioso francês Bernard Charlot, pautado em pesquisas no sistema de ensino de seu país, mostra o quanto, em diferentes sociedades do mundo, a escola pode estar a serviço de uma ordem social injusta. “Enquanto as políticas oficiais afirmam que estão direcionadas para oferecer oportunidades educacionais a todos, indiscriminadamente, a escola vai mantendo as classes populares em níveis muito baixos de apropriação da cultura e da especialização. É como se o fracasso escolar estivesse programado ou fosse inerente à estrutura social de classes” (Revista Educação: Autores e tendências. Série Pedagogia Contemporânea, 1ª edição, setembro de 2009, p.20). A acusação de que a escola funciona como reprodutora de desigualdades no lugar de erradicá-las, feita pelo pensador francês, parece caber como uma luva para se avaliar responsabilidades e saídas para os problemas educacionais brasileiros. “O que está no cognitivo e no

sentimento da sociedade é o apreço exagerado e cego por tudo que é branco. Quem formou essas pessoas que afastaram a professora de Macaé? Quem educa os educadores? Quem nos educou? Ninguém se forma no vazio. Também não seria mais lúcido começar pelo que nos motiva a consciência histórica? Não é necessário que educadores troquem de religião para entender e ensinar a História da África e a Cultura afro-brasileira. Mas é imprescindível estudar muito a história, a tradição africana e afro-brasileira que estão na memória do povo brasileiro. Como se trata de um assunto muito melindroso, todo cuidado é pouco para não começarmos pelo que divide. Aspectos religiosos dividem

até pessoas da mesma família. Pensar cultura destacando aspectos religiosos demanda uma reflexão filosófica na complexidade do que é educar”, explica Vanda Machado, que também é escritora. É bem verdade que em nosso país, após a promulgação da lei 10639/2003, está havendo um esforço de parcelas de educadores brasileiros para reconhecer a multiplicidade de identidades culturais dos estudantes que chegam aos bancos escolares, porém, o número de cursos de capacitação de professores para o ensino de história da África e da Cultura

Africana e Afro-brasileira, e daqueles mestres interessados em desenvolver projetos com seus alunos dentro das escolas ainda é muito pequeno. Mas por que há tanta resistência à implantação da lei? “Nossa formação acadêmica é europeia, sendo nossos professores treinados para lidar com a elite, segundo os padrões de uma classe média alta que reproduz processos discriminatórios, privilegiando as classes mais altas, além de estabelecer como habitus de classe o modelo greco-romano, desconsiderando as culturas negras e indígenas. Apesar de sermos o segundo país de população negra no mundo, nossa cultura negra sempre foi entendida como inferior à europeia e classificada até de primitiva. Isto sem se considerar o conceito de cultura aceito no mundo inteiro, como sendo todas as formas de sentir, pensar e agir de um povo num dado território, incluindo sua capacidade de imaginar, enfim, seu imaginário social. Nossos professores não foram preparados para olhar as culturas negras como cultura, mas sim como exotismos ou extravagâncias”, analisa Helena Theodora, doutora em Filosofia e escritora.

QUEM FORMOU ESSAS PESSOAS QUE AFASTARAM A PROFESSORA DE MACAÉ? QUEM EDUCA OS EDUCADORES? QUEM NOS EDUCOU?”

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AÇÃO

Wanda Machado

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ESFORÇOS À PARTE, AS DÚVIDAS PERMANECEM NO AR

No dia a dia das salas de aula do país, há um tratamento igualmente respeitoso, dado pelos professores a todos os alunos, independente de seus diferentes credos e valores culturais? Ou os alunos de classes populares e/ou pertencentes às minorias, como é o caso dos negros, se vêem, dentro dela, desconsiderados em suas crenças e cosmovisões, como ocorre em outras instituições e setores da sociedade? Com centenas de escolas públicas voltadas para o ensino fundamental e médio espalhadas por um território com grande diversidade regional, o Brasil ostenta problemas e desafios na área educacional proporcionais às suas dimensões. No que se refere à população negra, estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontam para dados alarmantes. Localizados na base da pirâmide social, é bem verdade que crianças e jovens brasileiros foram, nestes últimos oito anos, beneficiados pelas políticas universalistas implantadas nos dois governos sucessivos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Assim denominadas por atingir indistintamente os mais pobres, tais políticas – a exemplo do Bolsa Família, ProUni, entre outras – trouxeram a esta parcela da população melhoras incontestáveis, já que entre os mais pobres, 70% são negros. Mas os estudos também apontam para o fato de que, a se seguir o ritmo de tais políticas, só daqui a 65 anos estarão reparadas as desigualdades entre brancos e negros no país. Isto no que se refere à distribuição de renda

e, evidentemente, a uma área a ela indissociavelmente ligada: a educação.Se 80% das crianças brasileiras em idade escolar encontram-se cursando o Ensino Fundamental, por outro lado, uma parte substancial delas abandona a escola ainda no Ensino Médio. Para onde vão? Ingressam precocemente e sem qualificação no trabalho informal e nas ocupações com pior remuneração. E, embora o ProUni tenha assegurado o ingresso de pardos e pretos nos bancos universitários, e cerca de

90 universidades do país estejam adotando, hoje, alguma forma de ação reparatória – cotas raciais, entre elas – a situação educacional das jovens gerações de negros e negras brasileiros, apesar de estar avançando, ainda é de risco. Sofrem com a baixa qualidade de ensino das redes públicas, não tem acesso à rede privada onde é oferecido um ensino de qualidade superior, e amargam o preconceito e a discriminação em relação a suas identidades culturais por parte de colegas e professores. Um quadro que precisa mudar, principalmente no que diz respeito ao ensino ligado à religiosidade de origem afro. “Lidar com cultura negra não nos permite

deixar de situar a religiosidade, já que é uma cultura holística, que vê o homem como um todo. Porém, podemos fazer mil abordagens que não se prendam apenas ao aspecto religioso. O caso de Macaé comprova a falta de informações em nosso sistema educacional e social, de como funciona a cultura negra, da importância de Exu – orixá

ligado ao movimento, à capacidade de transformação e mudança, resultado da interação entre mundos e princípios”, opina Helena Theodora. Ela lamentou o fato ocorrido em Macaé e estimulou muito a professora a continuar em seu trabalho e a desmistificar as informações sobre a religiosidade africana. “Exu não tem nada

a ver com forças malignas, mas sim com nossa capacidade de movimentação física e mental. Num país como o nosso, onde as pessoas são educadas para a submissão e a repetição, o conceito de Exu como comunicador, transformador, cria um grande impasse e fica politicamente incorreto. Se tudo pode mudar, pois tudo se transforma, não podemos nos prender a antigas estruturas feudais, de relação entre senhor e escravo, pois Exu, o movimento, nos permite inverter o processo, nos permite transformar o futuro. Tenho certeza de que as escolas vão mudar, graças ao Exu presente em cada um de nós que acredita no futuro e numa vida melhor”, conclui.

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Helena Teodoro cercada de criança

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