EDUCAÇÃO CIDADÃ A DISTÂNCIA

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  • JACIARA DE S CARVALHO

    EDUCAO CIDAD A DISTNCIA

    Uma perspectiva emancipatria a partir de Paulo Freire

    Tese apresentada Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de

    Doutora em Educao.

    rea de Concentrao: Filosofia e Educao

    Orientador: Prof. Dr. Moacir Gadotti

    So Paulo

    2015

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    375.8 Carvalho, Jaciara de S

    C331e Educao cidad a distncia: uma perspectiva emancipatria a partir de

    Paulo Freire / Jaciara de S Carvalho; orientao Moacir Gadotti; So

    Paulo: s.n., 2015.

    211 p.: il., tabs.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de

    Concentrao: Filosofia e educao) -- Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo)

    .

    1. Freire, Paulo, 1921-1997 2. Educao para a cidadania 3. Cidadania

    4. Educao a distncia I. Gadotti, Moacir, orient.

  • FOLHA DE APROVAO

    CARVALHO, Jaciara de S. Educao cidad a distncia: uma perspectiva emancipatria a

    partir de Paulo Freire. 2015. 211 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

    Aprovada em: 06 de maro de 2015

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Moacir Gadotti (orientador)

    Instituio: USP

    Ass.:________________________________

    Prof. Dr. Daniel Mill

    Instituio: UFSCar

    Ass.:________________________________

    Prof. Dr. Fernando Jos de Almeida

    Instituio: PUC-SP

    Ass.:________________________________

    Prof. Dra. Margarita Gomez

    Instituio: Uninove

    Ass.:________________________________

    Prof. Dra. Vani Moreira Kenski

    Instituio: USP

    Ass.:________________________________

  • Tu que anda pelo mundo (Sabi)

    Tu que tanto j voou (Sabi)

    Luiz Gonzaga

    Para Antonia Barros de S Carvalho e

    Joaquim de Carvalho Barros,

    meus pais, meu primeiro mundo.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus.

    A Moacir Gadotti, homem de luta e esperana, por sua vida dedicada Educao

    emancipadora e construo de uma sociedade de carter planetrio.

    A Joo de S Carvalho Batista, que frequentou a primeira disciplina do doutorado no tero e

    fez aniversrio no ms de entrega deste trabalho (janeiro).

    A Henrique de Paula Batista, pelo caminhar junto; sem seu amor, tudo seria mais difcil.

    Aos professores Daniel Mill, Beatriz Tancredi, Hermano D. de Almeida, Ktia Alonso,

    Nelson Pretto, Oreste Preti, Ronei Martins e Tania Fischer pelas entrevistas para a pesquisa.

    Salete Soares e Anglica Ramacciotti pelo olhar apurado e amigo sobre a escrita.

    Antonia, Marisa, Claudia, Janaina, Carlos, Clia, Eliza, Marli, Gertrudes, Jackson, Sara,

    Bernadete, Neide, Bruna, Carla e Dilair pelo suporte nas horas de sufoco.

    Aos professores Giovanni Semeraro, Margarita Gomez, Alexandre Saul e Viviane Querubim,

    por importantes contribuies para este trabalho.

    comunidade freiriana, em especial, aos amig@s querid@s do Instituto Paulo Freire Brasil,

    onde nasceu a curiosidade para a realizao desta pesquisa.

    Aos integrantes das bancas de qualificao e de defesa pela generosidade.

    Aos professor@s e funcionri@s da Ps-Graduao da Faculdade de Educao da USP,

    exemplos de comprometimento com o servio pblico.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes/MEC) e

    aos contribuintes brasileiros pela bolsa de pesquisa.

  • RESUMO

    CARVALHO, Jaciara de S. Educao cidad a distncia: uma perspectiva emancipatria a

    partir de Paulo Freire. 2015. 211 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

    Esta tese foi motivada por desconfianas quanto possibilidade de uma Educao

    emancipadora ser atendida pela modalidade a distncia. O trabalho situa a problemtica na

    perspectiva de Educao que orienta o ensino-aprendizagem e no na modalidade em si. E

    discute condies e desafios para uma Educao emancipadora a distncia tendo como recorte

    a formao para a cidadania, uma das finalidades da Educao de acordo com a Constituio

    Federal (BRASIL, 1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (BRASIL,

    1996). A formao para a cidadania foi adotada como expresso-chave para a discusso de

    uma Educao cidad, comprometida com a formao humana e a construo de novas

    realidades, contra sua subordinao a fins instrumentais, de carter utilitrio. A investigao,

    desenvolvida sob uma perspectiva crtica, est fundamentada na filosofia e teoria de

    conhecimento do educador Paulo Freire, reconhecido em diversos pases por suas

    contribuies para uma Educao democrtica e libertadora. O percurso bibliogrfico aborda

    1) cidadania, pela questo dos direitos, deveres e participao ativa em sociedade, a partir de

    Freire e sob o paradigma da planetaridade; 2) Educao cidad, que tem como premissa o

    compromisso com o processo de conscientizao (FREIRE, 1979) pelos sujeitos e exige

    condies para sua realizao, mapeadas em obras de Freire e na experincia do movimento

    Escola Cidad; 3) teorias de Educao a Distncia, observando questes referentes

    autonomia e ao dilogo pelos sujeitos, assim como estrutura/organizao das formaes,

    para identificar a abordagem construtivista crtica em rede como a mais adequada para uma

    Educao cidad a distncia. Tambm foram entrevistados oito professores-pesquisadores da

    modalidade e/ou da inter-relao Educao e tecnologias do Brasil, Portugal e Venezuela.

    Estes dilogos, relacionados pesquisa bibliogrfica, resultaram em seis condies para uma

    Educao cidad a distncia, comprometida com a conscientizao pelos sujeitos e a

    construo de uma sociedade de carter planetrio.

    Palavras-chave: cidadania, Educao para cidadania, Educao cidad, Educao a Distncia,

    Paulo Freire, emancipao.

  • ABSTRACT

    CARVALHO, Jaciara de S. Distance citizen education: an emancipatory perspective from

    Paulo Freire. 2015. 211 f. Thesis (Ph.D) School of Education, University of So Paulo. So

    Paulo, 2015.

    This thesis was motivated by the suspicion as to whether the possibility of an emancipatory

    Education can be achieved by the distance modality. The research focuses the problem in the

    perspective of education that guides teaching-learning and not in the modality itself. It also

    discusses the conditions and challenges of an emancipatory distance education having as

    focus the formation for citizenship one of the purposes of education according to the Federal

    Constitution (BRAZIL, 1988) and Law of Directives and Bases of National Education

    (BRAZIL, 1996). The "formation for citizenship was adopted as the key-expression for a

    discussion about Citizen Education, committed to the human development and to the

    construction of new realities, against its subordination to instrumental purposes. The

    investigation, developed by a critical perspective, is based on Paulo Freires philosophy and

    theory of knowledge, which is recognized in several countries by its contribution for a

    democratic and liberating education. This bibliographic course addresses 1) citizenship, the

    question of rights issues, duties and active participation in society as from Freire and under a

    paradigm of planetarity; 2) Citizen Education, which is based on the commitment to the

    consciousness process (FREIRE, 1979) by the subject and demands conditions in order to

    be realized, mapped out on Freires works and on the experience of the Citizen School

    movement; 3) theories of Distance Education, examining issues related to the autonomy and

    dialog of the subjects, as well as the structure/organization of the formations, to identify the

    critical constructivist approach networking as the most appropriate for a distance citizen

    education. Also, eight researchers-teachers of the modality and/or of the interrelationship

    Education and technology from Brazil, Portugal and Venezuela have been interviewed. These

    dialogues, related to the bibliographic research, resulted in six conditions for a distance citizen

    education, committed to the consciousness by the subject and the construction of a society

    with planetary character.

    Keywords: citizenship, Education for citizenship, Citizen Education, Distance Education,

    Paulo Freire, emancipation.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: Mapa-sntese do captulo 2 ................................................................................ 51

    Figura 2: Mapa-sntese do captulo 3 ................................................................................ 77

    Figura 3: Mapa-sntese do captulo 4 ................................................................................ 97

    Figura 4: Mapa-sntese do captulo 5 ................................................................................ 136

    Figura 5: Mapa-sntese do captulo 6 ................................................................................ 190

    Quadro 1: Resumo de condies e desafios para uma Educao cidad a distncia ........ 140

    Quadro 2: Resumo e traduo nossos a partir de Ravenscroft (2011, p. 144145) .......... 155

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................... 12

    1.1 Motivaes e problema de pesquisa ............................................................................... 16

    1.2 Sobre a expresso Educao a Distncia e os objetivos da pesquisa ............................. 21

    1.3 Formao para cidadania em investigaes sobre EaD .................................................. 24

    1.4 Percurso e procedimentos da pesquisa ........................................................................... 27

    1.5 Apresentao dos captulos ............................................................................................ 30

    2 CIDADANIA ........................................................................................................................ 34

    2.1 Conceito e histria .......................................................................................................... 35

    2.2 Cidadania a partir de Paulo Freire .................................................................................. 39

    2.3 Construindo uma viso planetria .................................................................................. 43

    3 EDUCAO CIDAD ....................................................................................................... 54

    3.1 Conscientizao: o sentido da Educao cidad ............................................................. 56

    3.2 Condies de uma Educao para e pela cidadania ...................................................... 61

    3.2.1 Quanto aos sujeitos .................................................................................................. 62

    3.2.2 Sobre os contedos .................................................................................................. 63

    3.2.3 A respeito dos objetivos .......................................................................................... 65

    3.2.4 Em relao aos mtodos, processos, tcnicas, materiais ......................................... 66

    3.3 Freire e a prtica na secretaria de Educao ................................................................... 67

    3.4 Escola Cidad: uma experincia tensa de democracia ................................................... 72

    4 EDUCAO A DISTNCIA ............................................................................................. 80

    4.1 H razes para desconfianas? ....................................................................................... 81

    4.2 O desafio da formao humana ...................................................................................... 88

    4.3 Presencialidade e convergncia ...................................................................................... 91

  • 5 UM OLHAR FREIRIANO SOBRE TEORIAS DE EAD ............................................. 100

    5.1 Teorias de EaD: histria e atualidade .......................................................................... 101

    5.1.1 Teoria da industrializao ..................................................................................... 102

    5.1.2 Teorias de autonomia e independncia ................................................................. 106

    5.1.3 Teoria da conversao de ensino-aprendizagem ................................................... 113

    5.1.4 Teoria conectivista ................................................................................................ 116

    5.2 Autonomia, dilogo e estrutura na EaD ....................................................................... 121

    5.3 Por uma abordagem construtivista crtica em rede ...................................................... 128

    6 CONDIES PARA UMA EDUCAO CIDAD A DISTNCIA ......................... 138

    6.1 Educar pela cidadania .................................................................................................. 141

    6.2 Trabalho coletivo ......................................................................................................... 146

    6.3 Dilogo mediatizado pelo mundo ................................................................................ 151

    6.4 Organizao participativa e flexvel do ensino ............................................................ 162

    6.5 Coerncia quanto aos materiais de estudo ................................................................... 169

    6.6 Articulao com movimentos sociais em rede ............................................................. 179

    7 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 192

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 198

  • INTRODUO

    ___________________________________________________________________________

  • 12

    1 INTRODUO

    O avano de tecnologias digitais desencadeia movimentos crescentes de

    compartilhamento de informaes produzidas pela humanidade. Diversas iniciativas vm

    conquistando espao para defender o acesso livre e gratuito a contedos, ferramentas e at

    mesmo cursos inteiros, inclusive com a possibilidade de permitir alteraes pelos usurios.

    Elas vo ao encontro da necessidade de conhecimento prpria do ser humano e integrariam,

    de certa forma, lutas pela Educao como direito humano.

    Como parte desse movimento, um formato de Educao aberta e a distncia chamou a

    ateno de pesquisadores, no incio deste novo milnio, por eventualmente se alinhar aos

    ideais de democratizao da Educao. Os chamados MOOCs (Massive Open Online

    Courses), em portugus Cursos Abertos Massivos On-line, em geral seguem as

    caractersticas apontadas na nomenclatura. So abertos quanto ao nmero de participantes

    (podendo reunir milhares em um nico curso), gratuitos, sem a exigncia de pr-requisitos e

    com a possibilidade de oferecer algum tipo de certificado (com eventual possibilidade de

    cobrana)1.

    Algumas Instituies de Ensino Superior (IES) comearam a adotar esse formato

    geralmente em consrcio e sem seguir a teoria conectivista2. Um exemplo a Universidade

    Aberta, instituio pblica de ensino a distncia de Portugal, que teria sido a primeira a criar

    seu prprio modelo de curso massivo, o iMOOC (IMOOC, 2013), desenhado para combinar a

    aprendizagem autnoma e autodirigida com forte dimenso social e articulam a flexibilidade

    essencial para os estudantes a distncia com a estruturao necessria para ajudar na

    concretizao do trabalho a realizar.

    Os cursos massivos podem contribuir com a democratizao do conhecimento por

    meio da abertura a contedos e atividades de instituies prestigiadas (at ento restritas a

    uma elite universitria). Alguns pesquisadores, no entanto, ressaltam seu aspecto

    1 Alguns cursos da plataforma Coursera (https://www.coursera.org/signature/college-credit-guidebook), por

    exemplo, so certificados pela American Council on Educations College Credit Recommendation Service,

    tambm usados como crditos em universidades. Ressalte-se que, a exemplo da gratuidade, a abertura est

    cada dia mais em xeque, uma vez que alguns cursos exigem inscrio, os alunos participam em plataforma

    fechada e os materiais nem sempre so Recursos Educacionais Abertos (REAs). Enfatizemos, ainda, que a

    pesquisa sobre MOOCs foi realizada em 2013 e, portanto, mudanas neste cenrio podem ter ocorrido. 2 Os primeiros MOOCs teriam se inspirado na teoria de aprendizagem conectivista, tratada no captulo 5 deste

    trabalho. Pela teoria, os Moocs seriam cursos construdos pelo envolvimento dos estudantes que se auto-

    organizariam a partir de seus objetivos de aprendizagem, interesses e conhecimentos comuns, utilizando

    contedos disponveis na web, remixando-os e compartilhando-os abertamente em vrios formatos e ferramentas

    (MCAULEY et al., 2010) e, portanto, se distinguindo de cursos tradicionais, com contedos e atividades

    previamente definidos, assim como o nmero de participantes. O primeiro teria sido criado em 2008, no Canad.

  • 13

    neocolonialista ao fortalecer a cultura acadmica hoje dominante, talvez tornando mais

    difcil que vozes alternativas sejam ouvidas (ALTBACH, 2014).

    Quando empregado na Educao Superior, o formato pode sugerir um atendimento a

    necessidades das sociedades capitalistas, no apenas quanto sua busca incessante pela

    reduo de custos: mas, principalmente, pela substituio da Educao3, como processo de

    humanizao e, muitas vezes, identificada com a mudana social, pela capacitao para

    formao de capital humano necessrio ao aumento da competitividade dos pases.

    Ao envolver centenas ou milhares de estudantes em um s curso a distncia, as IES

    que se utilizam desse formato lanam dvidas sobre a qualidade da Educao que promovem.

    Segundo Poy e Gonzales-Aguiar (2014), as taxas de abandono de cursos massivos (em geral)

    variam entre 75% e 95%. No so poucos os autores que entendem a formao humana como

    um complexo processo que contempla a assimilao de valores, o que implica a adoo e a

    mudana de comportamentos, a problematizao da realidade em que vivem os educandos.

    Educao exige presencialidade e o desenvolvimento de laos entre os sujeitos. Uma

    Educao de qualidade no aceita qualquer interao entre educandos e, eventualmente,

    destes com educadores uma das principais crticas aos MOOCs. Cursos massivos

    desenvolvidos sob uma perspectiva crtica podem contribuir com a formao de sujeitos, mas

    sob esta mesma perspectiva, no do conta de um processo (intencional) como (espera-se) os

    desenvolvidos no mbito das IES. Para educar-se, para se libertar, no basta o acesso

    informao, ainda que o conhecimento acumulado pela histria da humanidade seja

    necessrio no apenas para reproduzir e inovar, como tambm para transformar as sociedades.

    Entretanto, esta tese no tem como objeto cursos massivos4. Como fenmeno no

    perodo em que esta investigao foi desenvolvida, o formato aqui mencionado como

    exemplo para ilustrar a tendncia de subordinao da Educao a fins instrumentais, que

    assegurem aos sujeitos a aquisio de habilidades valorizadas economicamente, flexveis e

    competitivas. Este trabalho pretende contribuir com uma Educao de carter emancipatrio,

    com sujeitos crticos e comprometidos com a melhoria de vida de todos e do planeta, por meio

    de uma discusso sobre formao cidad pela modalidade a distncia.

    3 Na maioria das vezes, a palavra Educao aparece com a inicial em maiscula por uma opo desta

    pesquisadora que assim escreve h mais de dez anos, por exemplo, em sua dissertao de mestrado e em livro. 4 Existem verses de MOOCs, tais como xMOOC, baseado em contedo. Nesta Introduo, no faremos

    distino, pois o formato massivo, em geral, serve apenas como exemplo para uma discusso mais abrangente.

  • 14

    A iniciativa pan-europeia de MOOCs5 apenas um exemplo a expor que, no mbito

    da Educao, a modalidade a distncia tambm adotada como alternativa para a escassez

    de recursos diante da necessidade de capacitao das populaes, no mbito da Educao

    formal, dentro do contexto de globalizao:

    Num contexto de escassez generalizada de recursos e de necessidade

    acrescida de capacitao das populaes, os cursos abertos massivos online

    (MOOC - Massive Open Online Courses), enquanto alargamento e

    aprofundamento dos ideais da educao aberta e do acesso generalizado ao

    conhecimento oferecem-nos, por isso, um enorme potencial para perseguir

    essa viso e essa misso (IMOOC, 2013).

    No Brasil, a Associao Brasileira de Educao a Distncia (ABED) vem defendendo

    a aprendizagem flexvel e a distncia para a formao de capital humano globalmente

    qualificado (LITTO, 2013), como contribuio estratgica para o futuro. O gargalo que est

    segurando a chegada a essa meta a bem documentada falta de mo de obra qualificada

    necessria, em aprimoramento e quantidade, para dar conta dessas aspiraes. Para

    contribuir com a meta do pas se estabelecer entre as grandes naes, a ABED (LITTO, 2013)

    enfatiza ainda a urgncia da ampliao da oferta de ensino mdio, superior e continuado

    atravs do ensino a distncia com vistas a formao de capital humano.

    Mas o discurso que atrela o desenvolvimento econmico Educao independente de

    modalidade. O governo federal brasileiro tem investido na Educao Superior com medidas

    que parecem mais estimuladas pela necessidade de formao de mo de obra e menos por

    atendimento ao direito Educao.

    Entre elas, mencione-se a expanso do acesso a este nvel de ensino por meio de

    bolsas em instituies privadas em ritmo muito superior ampliao da rede pblica no

    Brasil est a maior empresa educacional do mundo6 (PEREZ, 2013). Tambm a

    consolidao, expanso e internacionalizao da cincia e tecnologia, da inovao e da

    5 O iMOOC portugus integra a primeira iniciativa pan-europeia de MOOCs, a OpenupEd

    (http://www.openuped.eu) liderada pela European Association of Distance Teaching Universities

    (http://www.eadtu.eu) sob o patrocnio da Comisso Europeia. Outro projeto de destaque a plataforma EDX

    (https://www.edx.org) que, em maio de 2013, reunia cursos de 27 universidades localizadas em distintos

    continentes, tais como Harvard, MIT (Massachusetts Institute of Technology), The University of Hong Kong,

    The University of Queensland Australia, Technische Universitt Mnchen e Karolinska Institutet. Sites

    consultados em 25 maio 2013. 6 Com 1,2 milho de alunos e avaliada em 12 bilhes de reais, mais do que o dobro da segunda colocada chinesa,

    referimo-nos fuso (em abril de 2013) de duas grandes instituies, Anhanguera e Kronton - esta j era lder

    em Ensino a Distncia no pas. As empresas contam com recursos pblicos para manter e atrair estudantes. Em

    abril de 2013, 20% dos alunos presenciais da Anhanguera e 45% da Kroton participavam do Fundo de

    Financiamento Estudantil (Fies). A nova empresa de Educao direcionada s classes C e D porque esse

    estrato social no pas segue na mira dos investidores (PEREZ, 2013).

  • 15

    competitividade brasileira por meio do intercmbio e da mobilidade internacional (BRASIL,

    2014e). No afirmamos que tais medidas no possam contribuir com a formao dos

    participantes ou que no seja necessrio expandir as oportunidades de Educao - o que inclui

    o domnio de tcnicas -, mas destacar que aes aliceradas sob a busca de aumento da

    competitividade do pas poderiam estimular projetos educativos mais voltados

    instrumentalizao dos educandos, limitando-se qualificao para o mercado.

    Como bem constata Lima (2012, p. 16), sob a hegemonia de objetivos econmicos, a

    Educao passou a ter propriedades de salvao. No difcil perceber que as sociedades

    vm exigindo dela mais eficincia e condies que propiciem a adaptao das pessoas

    complexidade do mundo, dotando-as de competncias e habilidades necessrias sua

    sobrevivncia e, ainda, das qualificaes e dos conhecimentos que permitiro a inovao

    cientfica, tecnolgica e empresarial. Quando a Educao passa a ter esses poderes, grande

    o risco de diminuir sua amplitude, subordinando-a a funes restritas contra o potencial

    transformador e humanizador, o aprofundamento da democracia e da cidadania.

    Em uma poca marcada pela necessidade de utilidade, apresentamos este trabalho

    por no compactuarmos com uma viso fatalista, nem determinista, de que no seria possvel

    uma Educao emancipadora no contexto das sociedades capitalistas; particularmente, pela

    modalidade no presencial, pois parte do segmento educativo acredita que a Educao a

    Distncia (EaD) contribui e facilita a expanso da razo instrumental.

    Assim, de dentro da lgica dominante de preparao de quadros qualificados para o

    mercado, de adequao e aperfeioamento das estruturas vigentes, educadores e

    pesquisadores que sonham com outro(s) mundo(s) possvel(is) pesquisam, refletem e

    apresentam sugestes para contribuir com novos olhares e mudanas. Esta tese integraria esse

    espao sob o incentivo de Paulo Freire (1921-1997), principal referncia para este trabalho,

    defensor de que assumamos desafios que a realidade apresenta e tambm a desafiemos.

    Uma Educao emancipadora a distncia pode contribuir com a vocao ontolgica

    dos sujeitos de ser mais (FREIRE, 2009b), no em treinar os educandos e prepar-los

    para se adaptarem ideologia fatalista e sua recusa inflexvel ao sonho e utopia (1996, p.

    14). A partir da teoria de conhecimento de Freire, acreditamos no ter produzido este trabalho

    com otimismo falso ou esperana v, palavras do educador (p. 19) que tomamos

    emprestadas, mas subsidiados pela teoria, por dados e situaes da realidade e, ainda, com

    amparo legal. Afinal, tanto a Constituio de 1988 (BRASIL, 1988) quanto a Lei de Diretrizes

    e Bases da Educao Nacional (BRASIL, 1996) citam como finalidade da Educao (escolar)

    o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua

  • 16

    qualificao para o trabalho (art. 2). A formao para a cidadania tambm uma das

    diretrizes do Plano Nacional de Educao (BRASIL, 2014b), com vigncia at 2024.

    A cidadania mostrou-se o recorte mais afim da temtica geral desta tese, Educao

    emancipadora a distncia, tendo em vista nosso desejo de contribuir com aes educativas

    voltadas para que sujeitos sejam capazes de pensar e atuar criticamente, conscientes da

    politicidade de seus atos e comprometidos com a construo de outras realidades. Assim,

    tambm busca contemplar o desenvolvimento pleno e a qualificao para o trabalho.

    1.1 Motivaes e problema de pesquisa

    Algumas razes motivaram o desenvolvimento desta pesquisa:

    Desconfianas quanto possibilidade de uma Educao de carter emancipatrio pela

    modalidade a distncia. Elas reverberam em discursos de educadores que atuam em

    uma perspectiva crtica e de parte da sociedade, como trataremos no captulo 4.

    Resistncia de educadores modalidade e a evaso dos educandos7. Segundo o Censo

    EAD.BR 2013 (ABED, 2014, p. 111), os principais obstculos informados pelas

    instituies foram a evaso dos educandos8 (15,4% das indicaes), a resistncia dos

    educadores (9,9%) e os desafios organizacionais de uma instituio presencial que

    passa a oferecer EAD (13%).

    Avaliao insatisfatria dos educandos quanto interao. Instituies participantes

    do Censo EAD.BR 2012 (ABED, 2013, p. 107) informaram que, em avaliao de

    cursos realizada pelos estudantes, eles consideram como pontos fracos a participao

    em atividades em grupo, que envolvem a interao com colegas e docentes por meio

    de ferramentas tanto sncronas como o chat quanto assncronas como o frum,

    portanto, situaes de dilogo, essncia da Educao.

    O predomnio de licenciaturas na graduao a distncia. O Censo da Educao

    Superior 2013 aponta que a modalidade representa mais de 15% do total de matrculas

    7 Apresentao dos Resultados do Censo da Educao Superior 2013 (BRASIL, 2014d, p. 16) informa que, na

    rede federal, houve reduo de quase 50% no nmero de concluintes em cursos a distncia no perodo 2012-

    2013, enquanto nos cursos presenciais o crescimento foi de 3,8%. 8 As principais causas da evaso, independentemente do tipo de curso, foram: falta de tempo para estudar e

    participar do curso, acmulo de atividades no trabalho e falta de adaptao metodologia (ABED, 2014, p.

    110). Ainda segundo o Censo, o menor ndice de evaso foi para as disciplinas (10,49%) e o maior, para os

    cursos regulamentados totalmente a distncia (19,06%).

  • 17

    na graduao (MINISTRIO DA EDUCAO, 2014)9, a maioria na licenciatura, ou

    seja, para a Educao de sujeitos que, possivelmente, atuaro com formao humana.

    A contribuio da modalidade para a expanso da Educao Superior no pas. O Plano

    Nacional de Educao (BRASIL, 2014b) prev, entre 2014-2024, duplicar o nmero

    matrculas na Educao Superior, assegurando 40% das novas matrculas na rede

    pblica, o que vai requerer polticas pblicas articuladas para esse nvel de

    ensino, incluindo a EaD como modalidade (BRASIL, 2014f, p. 33).

    A prtica desta pesquisadora. O projeto de pesquisa foi apresentado quando comeava

    a trabalhar com formaes a distncia referenciadas na teoria de Paulo Freire.

    Buscava, tambm pelo doutorado, um aprofundamento terico-filosfico para

    melhoria da prtica, o que explica a opo pela linha de pesquisa Filosofia e

    Educao.

    Como seres-em-situao (FREIRE, 1979, p. 18) no seria possvel tratar das razes

    desta pesquisa apartados de nossa condio histrica. H sempre um forte motivo para o

    desenvolvimento de um trabalho como uma pesquisa em nvel de doutorado, que exige um

    grande envolvimento pessoal. Conectada s razes anteriores, minha motivao principal para

    a realizao desta pesquisa foi a descrena de educadores quanto possibilidade de

    desenvolvimento de uma Educao a Distncia sob uma perspectiva freiriana.

    Desenvolvendo formaes a distncia no Instituto Paulo Freire10, por diversas vezes,

    dialoguei com colegas educadores desconfiados, alguns muito resistentes, sobre a

    possibilidade de uma EaD freiriana, ainda que outros trabalhos, sob outros recortes, j

    tenham realizado (GOMEZ, 2004; LAPA, 2005; MATTOS, 2005) ou mapeado (CUNHA;

    VILARINHO, 2009; RAMACCIOTTI, 2010) essa aproximao. Tais desconfianas

    motivaram-me a aprofundar meus estudos sobre a teoria de Paulo Freire e pesquisar condies

    para contribuir (principalmente, mas no exclusivamente) com educadores referendados nesta

    perspectiva que venham ou j atuem a distncia.

    9 O INEP informa que j so mais de 1,2 mil cursos a distncia no Brasil, que equivalem a uma participao

    superior a 15% nas matrculas de graduao. Em 2003, havia 52. Atualmente, as universidades so responsveis

    por 90% da oferta, o que representa 71% das matrculas nessa modalidade (MINISTRIO DA EDUCAO,

    2014). 10 O Instituto Paulo Freire (IPF) uma associao civil, sem fins lucrativos, criada em 1991 e fundada

    oficialmente em 1 de setembro de 1992. Atualmente, considerando-se Ctedras, Institutos Paulo Freire pelo

    mundo e o Conselho Internacional de Assessores, o IPF se constitui numa rede internacional que integra pessoas

    e instituies distribudas em mais de 90 pases em todos os continentes, com o objetivo principal de dar

    continuidade e reinventar o legado de Paulo Freire. Informao disponvel em:

    . Acesso em: 20 ago 2014.

  • 18

    Para Moacir Gadotti11, estamos atrasados, no campo popular, porque no

    conseguimos marcar nossa presena na Educao a Distncia dentro de uma viso mais

    emancipatria. O fato que, historicamente, o terreno de enfrentamento tem sido o da

    modalidade presencial, principalmente na Educao Bsica, com movimentos em defesa do

    acesso e da democratizao da escola pblica, como o da Escola Cidad (AZEVEDO, 2007;

    GADOTTI, 2010; SAUL, 2012). A produo terica tambm se desenvolveu mais com

    referncia modalidade presencial porque, em comparao, distncia recente. No entanto,

    a EaD tambm associada democratizao, principalmente pela questo do acesso.

    Tal cenrio constatado, em parte, por meio de um levantamento que realizamos

    (CARVALHO, 2012) no banco de teses da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Ensino Superior (Capes), entre nossos primeiros movimentos de pesquisa, com objetivo de

    mapear a Educao para a cidadania em pesquisas sobre Educao Superior a distncia em

    um perodo de dez anos. Grosso modo, o levantamento a ser tratado adiante sugere que o

    acesso Educao Superior proporcionada pela modalidade, por si, j contribuiria com a

    formao para a cidadania dos educandos.

    A escolha do tema Educao para cidadania a distncia tambm tem forte motivao

    pessoal. Est diretamente relacionada vida de meus familiares que como tantos oprimidos

    foram retirantes nordestinos em busca de plena cidadania na principal cidade do pas. Do

    incio da minha atuao profissional, como professora na Educao Infantil e Fundamental,

    passando por um perodo em que me dediquei ao jornalismo e, nos ltimos dez anos,

    trabalhando em projetos de formao que inter-relacionem Educao e tecnologias12, sempre

    busquei conscientizao, ainda que desconhecendo o termo sob Freire (1979). Por isso, o

    tema desta pesquisa no poderia ser outro que no tivesse compromisso com a transformao

    da realidade malvada - como ele escrevia - que chama a todos de cidados, mas trata de

    maneira discriminada e excludente a maioria dos sujeitos.

    Esta investigao foi iniciada a partir da seguinte questo: seria possvel educar para

    a cidadania pela modalidade a distncia? A partir dela, procuramos caminhos para discutir

    sob quais condies esta formao atenderia a uma perspectiva emancipatria de Educao.

    11 Em dilogo de orientao realizado no dia 10 de maio de 2013, na cidade de So Paulo. 12 A relao Educao e tecnologias tambm foi sendo aprofundada no mbito de meus estudos acadmicos. Sob

    o ttulo Redes e comunidades virtuais de aprendizagem: elementos para uma distino (CARVALHO, 2009), a

    dissertao de mestrado apresentou uma diferenciao entre as redes e as comunidades virtuais de aprendizagem

    em relao aos demais agrupamentos do ciberespao. A investigao tambm exps diferenas entre rede e

    comunidade (de aprendizagem ou no) e, ainda, indicadores de formao de comunidade virtual em situao de

    aprendizagem. Anterior ao mestrado, a especializao em Educomunicao tratou de refletir sobre as TVs

    chamadas educativas e a participao de alunos da Educao Bsica por meio da veiculao de suas produes

    audiovisuais (CARVALHO, 2004).

  • 19

    Nesta investigao, cidadania foi adotada como palavra-chave para a discusso de uma

    Educao no instrumental a distncia. E, entre as perspectivas emancipatrias possveis, esta

    tese buscou em Paulo Freire seu referencial terico.

    Partimos da hiptese de que sim: seria possvel formar para a cidadania a distncia

    baseados na premissa de que o mesmo valeria para a modalidade presencial; at porque ambas

    sofrem da mesma tendncia utilitarista. Outra hiptese da qual partimos a de que as

    condies e os desafios de uma formao para a cidadania a distncia no seriam muito

    diferentes em relao presencial. Poderia haver maior ou menor dificuldade dependendo da

    presencialidade dos sujeitos e da qualidade do dilogo, fundamentais para a formao

    humana, tanto em uma modalidade quanto em outra.

    Durante o processo de investigao, a expresso Educao para a cidadania a

    distncia foi sendo substituda por Educao cidad a distncia, pois ficou claro que uma

    Educao emancipadora no seria possvel sem uma formao pela cidadania.

    Tal formao se volta principalmente (no exclusivamente!) queles que se encontram

    em situao de opresso e de luta em busca de melhores condies de existncia13, perfil da

    maioria dos sujeitos da EaD em nvel superior. Por meio de informaes socioeconmicas

    coletadas pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) junto aos educandos

    de graduaes a distncia e analisadas por Ristoff (2011), infere-se que a maioria se encontra

    nessas condies.

    O perfil socioeconmico do estudante de EAD marcantemente distinto do

    perfil do estudante presencial: ele em mdia mais velho, mais pobre,

    menos branco, majoritariamente casado, tem filhos, vem mais da escola

    pblica, tem pais com baixa escolaridade, trabalha e sustenta a famlia, tem

    menos acesso internet, usa menos o computador, tem menos conhecimento

    de espanhol e ingls, estuda mais, recebe mais atendimento extraclasse dos

    professores, v o currculo de seu curso como bem integrado, usa menos o

    computador, tem menos conhecimento de informtica, faz mais uso de

    livros-texto, manuais e apostilas do que de livros, entre outros.

    Fica evidente, salvo melhor juzo, que a EAD nestas condies torna-se

    tambm um forte instrumento de incluso social, mais uma razo para que

    sua defesa seja efetivamente sustentada pela garantia de qualidade

    (RISTOFF, 2011).

    A Educao Superior, com contribuio da modalidade a distncia, vem se abrindo a

    estratos sociais e pblicos menos tradicionais, provocando estudos sobre o processo de

    13 Segundo o Censo EAD.BR 2013 (ABED, 2014, p. 111), o aluno de EAD estuda e trabalha e do sexo

    feminino (56% a 61%), com idade entre 21 e 30 anos, com exceo de alunos dos cursos de ps-graduao e

    corporativos, em que a faixa de 31 a 40 anos.

  • 20

    democratizao. Ao analisar indicadores da expanso nos ensinos superiores de Portugal e do

    Brasil nas ltimas dcadas, os pesquisadores Almeida et al. (2012, p. 899) concluem que

    permanecem acentuadas assimetrias sociais nas instituies e nos cursos a que se tem acesso,

    ao mesmo tempo em que a permanncia e abandono tambm se diferenciam socialmente em

    termos das respectivas taxas de incidncia. Eles entendem que a expanso foi necessria (e

    ns escrevemos que ainda ), mas no suficiente para garantir a democratizao desejada,

    unindo expanso qualidade e equidade.

    Tese defendida por Querubim (2013, p. 118) tambm problematiza o real processo de

    democratizao da Educao Superior apontando, entre outras questes, a falta de estrutura da

    maioria das instituies e o despreparo do corpo docente para uma transio adequada de um

    contexto de educao deteriorado da educao bsica para uma formao de qualidade na

    graduao. Visando a democratizao de fato, a pesquisadora defende os referenciais

    freirianos para a construo de uma pedagogia prpria voltada s classes oprimidas, a partir

    de convices e necessidades desses sujeitos, diminuindo a distncia entre universidade e

    camadas populares.

    Em sintonia, nossa tese tambm destaca a necessidade permanente de conscientizao

    (FREIRE, 1979, 1987) pelos sujeitos e, assim, a urgncia de processos pedaggicos

    comprometidos com o desvelamento das condies de existncia dos educandos e com a

    construo de novas realidades. No entanto, no consideramos como oprimidos apenas os

    sujeitos de camadas populares. Muito conhecido por sua principal obra, Pedagogia do

    Oprimido (1987), Freire reconhecia a luta de classes pela teoria marxista, marcadamente

    uma oposio entre opressores e oprimidos. Mas alm de empregar as expresses classe

    opressora e classe oprimida, recorria aos adjetivos (opressor/oprimidos) como indivduo, a

    exemplo do trecho:

    H, por outro lado, em certo momento da experincia existencial dos

    oprimidos, uma irresistvel atrao pelo opressor. Pelos seus padres de vida.

    Participar destes padres constitui uma incontida aspirao. Na sua alienao

    querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imit-lo. Segui-lo. Isto se

    verifica, sobretudo, nos oprimidos de classe mdia, cujo anseio serem

    iguais ao homem ilustre da chamada classe superior (FREIRE, 1987, p.

    28, grifo nosso).

    Como sugere o trecho anterior, os oprimidos esto distribudos por outras classes que

    no apenas a empobrecida. A opresso manifesta-se de vrias formas, ainda que a pobreza e

    negao de direitos sejam as mais preocupantes e, portanto, prioritrias. A opresso apresenta-

    se na precarizao do trabalho docente; na domesticao dos estudantes por meio de um

  • 21

    processo instrumental; no nmero excessivo de horas de trabalho de um empregado que,

    mesmo no sendo pobre, se submete para manter sua remunerao, etc. Mas, de fato, como

    lembra Beisegel (2013, p. 173) o mundo oprime e todos tm sua carga de opresso, mas a

    opresso econmica e social aquela que se materializa de uma dimenso politicamente

    transformadora.

    Esta tese parte do princpio de que o processo de conscientizao pelos sujeitos deve

    ser o compromisso da Educao em geral. Consideramos, portanto, a teoria freiriana como

    referncia para um projeto educacional libertador no destinado apenas aos mais pobres. Para

    a construo de uma sociedade de carter planetrio e, portanto, tambm para acabar com a

    pobreza, precisamos de uma Educao conscientizadora, o que no significa falta de rigor

    quanto ao atendimento dos diversos pblicos, como os da Educao de Jovens e Adultos que

    chegam Educao Superior14.

    1.2 Sobre a expresso Educao a Distncia e os objetivos da pesquisa

    Educao cidad, neste trabalho, sinnima de libertadora, emancipadora, crtica.

    problematizada no mbito da modalidade a distncia, da o ttulo da tese Educao cidad a

    distncia. No entanto, preciso esclarecer que optamos por usar a nomenclatura Educao a

    Distncia (EaD) para melhor relao com a realidade. No cotidiano, podemos conferir o uso

    corrente da expresso, ainda que outras existam. Alm de mais conhecida, foi utilizada na

    falta de uma que julgssemos to abrangente quanto, para fins desta pesquisa.

    Pretendemos deixar claro que ao utilizar a expresso EaD no estamos defendendo o

    termo em si, porque no pode haver Educao onde h distncia. Educao exige

    presencialidade: o sujeito mobilizando sentidos, valores, conhecimentos prvios para dialogar

    com o objeto em estudo e/ou com outros sujeitos, independente do tempo e de estarem no

    mesmo local. Como bem explica Valle (2012), a palavra distncia no se contrape

    presena, mas proximidade:

    Distncia e presena no so excludentes como tambm s definem muito

    superficialmente aquilo que ns aqui15 buscamos designar. S

    14 Por exemplo, uma proposta que atenda os sujeitos com dificuldades para compreender e interpretar textos.

    Querubim menciona em sua tese dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) publicado em 2011 pela

    Ao Educativa e o Instituto Paulo Montenegro. Do grupo de pessoas com nvel superior, apenas 62% se

    enquadram no nvel pleno, 34% no nvel bsico e 4% no nvel rudimentar (QUERUBIM, 2013, p. 102). 15 A professora Llian do Valle, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), se referia ao evento no

    qual se apresentava, o I Simpsio Internacional de Educao a Distncia (SIED), realizado na Universidade

    Federal de So Carlos (UFSCar) em 2012, do qual tambm participamos.

  • 22

    superficialmente podemos dizer que o que se ope presena a

    distncia. As cartas, as memrias do passado, o nosso pensamento, ele

    prprio, esto a para nos fazer ver que no foi um mrito da informtica

    garantir a presena onde ela no parece evidente, garantir a presena

    desafiando a distncia. O que diverge da presena no , ento, a distncia,

    a ausncia. E o que se contrape distncia no felizmente a presena,

    mas a proximidade (VALLE, 2012, grifo nosso).

    Nesse sentido, concordamos tambm com Machado (2014, p. 11): a expresso

    Educao a Distncia um monstrengo semntico, se no for considerada apenas um

    oximoro. Nunca a Educao foi realizada apenas em situaes de presena fsica:

    Em nenhum momento da histria, no entanto, a Educao realizou-se apenas

    em situaes de concomitncia da presena fsica entre professores e alunos.

    Nossos antepassados mais remotos j conheciam a famosa lio de casa,

    que sempre cumpriu um papel complementar importante, relativamente s

    atividades de ensino.

    Para caracterizar a Educao a Distncia, dois pontos so fundamentais.

    Em primeiro lugar, a convivncia pessoal jamais ser eliminada: qualquer

    curso sempre constituir uma articulao equilibrada de espaos fsicos e

    espaos virtuais. Em segundo lugar, a existncia de momentos de reflexo

    solitria absolutamente salutar, sempre existiu e sempre existir em um

    processo educacional consistente (MACHADO, 2014, p. 11).

    Grosso modo, Ensino a Distncia e denominaes tais como Educao virtual, e-

    learning, m-learning, blended learning, work based learning, entre outras, podem ser

    reunidas sob a expresso Educao a Distncia (EaD). Quando utilizadas (isoladamente,

    digamos) acabam por focar abordagens e processos distintos de ensino e aprendizagem ou

    ensino-aprendizagem. Essas nomenclaturas enfatizam mais a metodologia e os recursos

    utilizados, a exemplo da 1) mediao tecnolgica pela conexo em rede, ou seja, Educao

    on-line; 2) o fato de a formao ser semipresencial ou blended learning e 3) se utilizar

    principalmente de dispositivos mveis, m-learning.

    Com o emprego da expresso Educao a Distncia, refletimos a partir de um contexto

    particular (a modalidade), mas sem enfoque especfico (na metodologia, na tecnologia etc.).

    Apreciamos a compreenso de Mill (2014) para a EaD:

    [...] modalidade de educao geralmente considerada uma forma alternativa

    e complementar (mas no necessariamente substitutiva, superior ou inferior)

    para formao do cidado (brasileiro e do mundo), com ricas possibilidades

    pedaggicas e grandes potenciais para a democratizao do conhecimento,

    decorrentes do seu princpio de flexibilidade temporal, espacial e curricular

    (MILL, 2014, p. 105).

  • 23

    Ressalte-se que a convergncia entre as modalidades a distncia e presencial j est

    acontecendo. Esperamos que esta pesquisa evidencie uma preocupao com a essncia da

    Educao, pois acreditamos, como Valle (2012), que longe de serem atribudos a uma ou

    outra modalidade de Educao, os termos presena e distncia devem ser reservados para

    ajudar a pensar o compromisso com a formao humana, sua razo de ser mais elevada.

    Nessa direo, o objetivo geral desta tese propor como (por meio de condies)

    processos de ensino-aprendizagem a distncia podem contribuir com a formao cidad e,

    assim, com o processo de conscientizao pelos sujeitos, em direo construo de uma

    sociedade de carter planetrio, tendo como referncia teoria e prticas de e a partir de Paulo

    Freire.

    Como objetivos especficos, podemos mencionar:

    Realizar um levantamento de pesquisas sobre formao para cidadania pela

    modalidade a distncia no mbito da Educao Superior brasileira;

    Discutir o conceito de cidadania na atualidade;

    Mapear em obras de Paulo Freire e em trabalhos sobre o movimento Escola Cidad

    condies para uma Educao cidad;

    Realizar uma reviso de teorias de EaD, observando como abordam a autonomia de

    estudantes e de educadores, o dilogo entre os sujeitos e a estruturao do processo,

    considerando para a discusso o referencial freiriano;

    Sugerir uma abordagem para formaes a distncia a partir da reviso de teorias de

    EaD e do referencial adotado nesta pesquisa;

    Levantar condies para formar para a cidadania junto a especialistas em EaD, assim

    como desafios que a modalidade enfrenta com vistas a esse objetivo.

    Buscamos, dessa maneira, propor condies para uma Educao cidad realizada a

    distncia. Como esta modalidade, na Educao formal, concentra-se na Educao Superior16,

    algumas vezes esse nvel de ensino ser mencionado nesta tese. No se trata de delimitao do

    objeto, mas do fato de que grande parte das pesquisas em EaD volta-se para esse nvel.

    Tambm ressaltamos que as discusses deste trabalho no se restringem aos sistemas de

    ensino, ainda que os entrevistados para esta pesquisa sejam professores de universidades

    pblicas. Acontece que os estudiosos da EaD, geralmente, esto vinculados a universidades, a

    16 Quanto ao nvel/modalidade educacional dos 1.856 cursos autorizados de 2012, observou-se que sua

    concentrao maior na ps-graduao (54%), seguida da concentrao dos cursos na graduao (29,1%)

    (ABED, 2013, p. 52).

  • 24

    partir das quais pesquisam, vivenciam e refletem prticas da modalidade que no se

    restringem ao nvel superior, nem Educao formal, como no caso desta tese. Assim,

    esperamos que as condies propostas por este trabalho possam, grosso modo, atender a

    diferentes nveis e outras modalidades de ensino-aprendizagem.

    1.3 Formao para cidadania em investigaes sobre EaD

    Delimitamos a abrangncia apenas no incio desta pesquisa em um levantamento que

    realizamos no banco de teses da Capes17 (CARVALHO, 2012) para mapear a Educao para a

    cidadania em pesquisas sobre Educao Superior a distncia em um perodo de dez anos

    (2000-2010). Espervamos que este levantamento nos apontasse, por meio de outras

    investigaes, como (de modo abrangente) educar para a cidadania a distncia. Descobrimos

    que os trabalhos mapeados, grosso modo, relacionavam a formao para a cidadania ao

    acesso Educao expandido pela modalidade.

    O levantamento foi realizado entre os dias 18 e 21 de maio de 2012, quando

    selecionamos monografias, dissertaes e teses utilizando o campo assunto. Inicialmente,

    buscamos produes a partir de quatro combinaes de palavras-chave, realizadas por vez:

    Palavras-chave: cidadania, distncia (distncia porque os resultados incluem ensino e educao a distncia).

    Resultado: 85 teses e dissertaes.

    Palavras-chave: cidado (inclui cidad), distncia (ensino e educao a distncia). Resultado: 96 teses e dissertaes.

    Palavras-chave: cidadania, on-line (inclui ensino e educao on-line). Resultado: 7 teses e dissertaes.

    Palavras-chave: cidadania, on line (sem hfen e separado, inclui ensino e educao). Resultado: 19 teses e dissertaes

    Com os resultados obtidos, passamos leitura dos ttulos e do resumo dos trabalhos

    para seleo a partir dos seguintes critrios:

    Tratassem de Educao a Distncia em nvel superior (graduao e ps-graduao);

    Tivessem sido finalizados aps o ano 2000 (incluindo este), perodo escolhido por ser o incio de maior expanso da EaD e que ofereceria trabalhos mais atuais (o banco de teses da Capes

    disponibilizava os resumos das produes defendidas entre 1987 e 2010, na poca em que

    realizamos o levantamento);

    Empregassem a(s) palavra(s) cidadania e/ou cidado/(s) em um contexto de formao, ou

    17 Servio disponibilizado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) para

    facilitar o acesso a informaes sobre teses e dissertaes defendidas junto a programas de ps-graduao do

    pas. Disponvel em: . Acesso em: 18 mai 2012.

  • 25

    seja, no se referindo ao cidado como sujeito e/ou importncia da cidadania, mas expondo

    uma preocupao com a formao do cidado para o exerccio da cidadania.

    Apenas cinco dissertaes de mestrado atenderam aos critrios definidos. Da seleo,

    quatro produes foram analisadas (GUBERT, 2006; ROCHA, 2008; SILVA, 2010; SOUZA,

    2009) porque o trabalho de Nunes (2003) no foi encontrado disponvel, assim como um

    contato com a autora. Posteriores a 2006, as quatro dissertaes analisam cursos a distncia e

    so de distintas regies do pas: Rio de Janeiro, Curitiba, Braslia e Rio Grande do Norte.

    Realizamos a anlise por meio de leitura na ntegra dos trabalhos e mapeamento das

    recorrncias textuais das palavras cidadania e variaes de cidado. Para este caso,

    selecionamos os pargrafos em que essas palavras apareciam, de modo que o contexto em que

    foram empregadas permanecesse. Desses pargrafos, recortamos as frases ou as resumimos,

    tentando manter seu sentido original para que pudssemos agrupar as ideias mais recorrentes:

    Assim como a educao presencial, a EaD tem entre suas finalidades a formao de cidados;

    Maior acesso educao pela modalidade a distncia para formao do cidado;

    A EaD contribui para a formao cidad por meio dos saberes construdos com os colegas, alm dos contedos do curso;

    Os professores (so estudantes dos cursos analisados) tm a responsabilidade de formar para a cidadania seus futuros (ou atuais) educandos;

    O tutor do curso tem o desafio de se constituir cidado ao mesmo tempo em que contribui com a formao de seus educandos;

    A Educao superior como mercado em si mesmo, no como parte do exerccio da cidadania;

    A Universidade tem o desafio de articular saberes que promovam a cidadania democrtica;

    A Universidade precisa de integrao entre cincia e cidadania;

    A Universidade deve promover condies bsicas para exerccio da cidadania.

    Das frases listadas anteriormente e da leitura das dissertaes, destacamos que todas as

    produes partem do princpio de que a Educao a Distncia tem entre seus fins a formao

    para a cidadania, seguindo as diretrizes legais. Os trabalhos concordam que a modalidade

    ganhou visibilidade no mbito educacional por oportunizar formao a muitos cidados de

    modo democrtico, devido acessibilidade proporcionada por ela (SOUZA, 2009, p. 13).

    Nossa anlise indica que a EaD se tornaria promotora de cidados principalmente por meio

    da ampliao da oferta e, portanto, da incluso de sujeitos que antes estavam excludos da

    Educao Superior, a exemplo do que escreveu Silva:

    Os objetivos e a misso do ensino a distncia esto voltados para atender

    preparao para a cidadania e democracia por meio da ampliao da oferta

    de educao e de ensino para os mais diferentes pblicos, e para o processo

  • 26

    formativo das pessoas e dos profissionais de diferentes reas (SILVA, 2010,

    p. 30).

    H nas produes uma relao muito grande entre acesso Educao e cidadania. O

    acesso permitiria o exerccio da cidadania, visto que sujeitos antes excludos passariam a ter o

    direito de participar da educao formal. E, ao exercerem esse direito, encontrariam subsdios

    para sua formao cidad. De modo menos direto, as dissertaes destacam ainda o estmulo

    autonomia provocado pela modalidade. Assim, inferimos pelos estudos que ao participar

    da Educao Superior a distncia, a formao que esses sujeitos vivenciam seria suficiente

    para educ-los para a cidadania, apontando a necessidade de aprofundamento da temtica.

    o que tentamos ao apresentar esta tese, pois no basta incluir para formar para a cidadania,

    sendo necessrio observar sob quais condies esta incluso feita, coerentes com uma

    Educao de carter cidad.

    Reconhecemos que poderamos ter utilizado outras expresses da modalidade alm

    das empregadas (distncia e on-line) no banco da Capes para ampliar os resultados de busca.

    No entanto, consideramos que para um primeiro movimento de pesquisa o levantamento

    atendeu nosso anseio em obter um panorama. No se mostrou um caminho profcuo destinar

    mais esforos em buscas com outras expresses, alm desta e outras realizadas18, porque essas

    aes nos apontaram que o tema formao para a cidadania pode ser tratado a partir de

    diferentes abordagens e perspectivas, distintas do recorte deste trabalho. Nesta tese, a

    formao para a cidadania resulta de uma formao cidad, ligada ao processo de

    conscientizao pelos sujeitos, na acepo de Freire (1979).

    Por fim, vale ressaltar que o levantamento no banco de teses da Capes, comprovaria a

    predominncia de investigaes descritivas empricas quantitativas no mbito da modalidade,

    sendo excees as de carter filosfico, fenomenolgico, dialtico ou racional (PRETI, 2009).

    Em menor quantidade so os trabalhos de cunho mais filosfico e/ou que relacionem a prtica

    18 Alm do levantamento no banco de teses da Capes, realizamos buscas em outras bases de dados, mas sem

    muito sucesso com as palavras-chave utilizadas. No portal Dialnet (http://dialnet.unirioja.es/) buscamos artigos

    que continham a expresso educacin a distancia nos ttulos. Mas, de todos os 342 resultados, nenhum trazia a

    palavra ciudadania ou suas variaes, em 16 de fevereiro de 2013. Optamos, na poca, por utilizar o espanhol

    por conta da maioria dos artigos constar nessa lngua. Mas, em 22 de agosto de 2014, por curiosidade,

    realizamos nova busca cruzando Educao + distncia + cidadania, agora em Portugus, e obtivemos apenas trs

    resultados, nenhum deles do mbito da modalidade a distncia.

    No portal Scielo , realizamos quatro filtros cruzando trs palavras-chave e escolhendo

    como opo todos os ndices para a pesquisa. O primeiro filtro utilizou as palavras: educao + distncia +

    cidad (para que o resultado trouxesse variaes). Em um segundo filtro, recorremos s palavras-chave: educao

    + online + cidad*. O terceiro repetiu este anterior, com a palavra on line escrita separadamente. O quarto

    empregou as palavras: educao + virtual + cidad. Nenhum desses cruzamentos resultou em um nico artigo,

    tanto em 16 de fevereiro de 2013 quanto em 22 de agosto de 2014, quando repetimos a pesquisa.

  • 27

    da EaD formao tica e poltica do homem, segundo anlise de Litto, Filatro e Andr

    (ROMISZOWSKI, 2009).

    1.4 Percurso e procedimentos da pesquisa

    Em se tratando de formao humana, o processo de investigao cientfica foi

    desenvolvido a partir da abordagem qualitativa por meio de pesquisa bibliogrfica, mas

    contemplando a tcnica da entrevista metodologia adotada.

    Iniciamos esta investigao com um levantamento no banco de teses da Capes e

    conversas informais com professores da rea de EaD no pas e educadores, que atuam a partir

    de perspectivas crticas,19 para obter um panorama das discusses a respeito do tema e

    referncias que contribussem com o estudo da problemtica. Depois, passamos a uma

    pesquisa terica sobre o conceito de cidadania para, a partir de um recorte de compreenso,

    investigar o tema formao para a cidadania e formao cidad.

    Como exposto nas motivaes para esta pesquisa, a escolha do referencial terico

    partiu da prtica e das provocaes feitas a esta pesquisadora sobre a possibilidade de uma

    EaD freiriana. Some-se a esta razo o fato de que Paulo Freire um dos autores que, no

    mundo todo, influenciaram o desenvolvimento de pesquisas e aes de carter democrtico e

    libertador. Como ser tratado no terceiro captulo desta tese, suas obras exerceram grande

    influncia no movimento que reuniu escolas pblicas brasileiras, chamado Escola Cidad

    (GADOTTI, 2010), alm da sua prpria experincia como secretrio de Educao da cidade

    de So Paulo (1989-1991).

    Patrono da Educao Brasileira (BRASIL, 2012), Paulo Reglus Neves Freire

    considerado um autor muito atual, capaz de apontar caminhos para problemas enfrentados no

    apenas na rea da educao, mas tambm em sade, na assistncia social, na justia, entre

    outras que podem ser verificadas, por exemplo, em pesquisas e artigos cientficos. Segundo

    Saul (2012, p. 1), alm do aumento das reedies de suas obras, em dezenas de idiomas, e do

    nmero de centro de pesquisas e congressos que investigam o seu legado, na rea acadmica,

    19 No incio desta pesquisa, dialogamos com outros educadores pesquisadores internacionais que atuam sob uma

    perspectiva crtica e eles no se recordaram de experincias ou pesquisas sobre formaes para a cidadania a

    distncia. Entre eles: Albert Sansano (Frum Social Mundial, Frum Mundial de Educao e Movimento de

    Renovao Pedaggica - Escola d'Estiu Gonzalo Anaya, de Valncia/Espanha), Carlos Alberto Torres

    (Faculdade de Educao da Universidade da Califrnia UCLA) e Ilich Ortiz (Campanha Latino-Americana pelo

    Direito Educao/CLADE).

  • 28

    verifica-se um crescente interesse de pesquisa sobre/ e a partir de sua obra20. De acordo com

    o Mapeamento da Comunidade Freiriana (UNIFREIRE, [S.d.]), existem 16 Institutos Paulo

    Freire, 21 Centros e Ncleos de Estudos e Pesquisas e 25 Ctedras Paulo Freire no mundo21.

    Alm de pesquisa bibliogrfica sobre cidadania, formao para cidadania,

    princpios e prticas de e partir de Freire e a respeito de Educao a Distncia (e a formao

    do cidado), participamos de eventos para dialogar sobre a problemtica da tese. Essas

    ocasies foram aproveitadas para entrevistar seis professores pesquisadores brasileiros e um

    de Portugal. A oitava entrevista foi realizada por e-mail com uma especialista da Venezuela22.

    Em 2012, durante o IX Congresso Brasileiro de Ensino Superior a Distncia, em

    Recife (PE), entrevistamos os professores brasileiros Daniel Mill (Universidade Federal de

    So Carlos/ UFSCar, onde tambm gestor de Educao a Distncia), Ktia Alonso

    (Universidade Federal do Mato Grosso/ UFMT), Oreste Preti (Coordenador residente do

    Programa de Apoio Expanso da Educao Superior a Distncia na Repblica de

    Moambique/ UAB Moambique 2011-2013) e Ronei Ximenes Martins (Universidade

    Federal de Lavras, tambm coordenador-geral do Centro de Educao a Distncia). Naquele

    mesmo ano, aproveitamos nossa participao no I Simpsio Internacional de Educao a

    Distncia (SIED), na UFSCar, para entrevistar o professor catedrtico Hermano Duarte de

    Almeida e Carmo da Universidade Tcnica de Lisboa e da Universidade Aberta de Portugal.

    Em 2013, os professores Nelson Pretto (lder do Grupo de Pesquisa Educao,

    Comunicao e Tecnologias) e Tania Fischer (coordenadora do Centro Interdisciplinar em

    Desenvolvimento e Gesto Social/ CIAGS), ambos da Universidade Federal da Bahia

    (UFBA), foram entrevistados durante o encontro de apresentao do projeto Articulao em

    rede e plataformas de acesso ao conhecimento, em So Paulo (SP).

    Assim, a maioria das entrevistas foi realizada pessoalmente e gravada em udio. Por e-

    mail, apenas a professora venezuelana Beatriz Tancredi, titular da Universidade Nacional

    Aberta da Venezuela, tambm em 2013.

    Considerada instrumento por excelncia da investigao social por vrios autores,

    como Marconi e Lakatos (2009, p. 198), as entrevistas partiram da seguinte pergunta

    possvel formar para a cidadania a distncia?, desdobrada em outras formuladas no

    20 Levantamento realizado pela Ctedra Paulo Freire da PUC/SP, coordenado por Ana Maria Saul, no Portal da

    Capes, registrou 1441 trabalhos (1153 Dissertaes e 288 Teses) que utilizaram o referencial freireano, no

    perodo 1987 a 2010. 21 No mapa, podem ser consultados dados como endereo, e-mail, telefones, sites de cada uma dessas categorias. 22 Mantivemos contato ainda com o Prof. Manuel Area Moreira, catedrtico da Faculdade de Educao da

    Universidade de La Laguna (Espanha), mas o dilogo iniciado em maro de 2013 foi interrompido pelo

    professor por motivo que desconhecemos. No perodo, tambm enviamos um e-mail ao professor Roberto

    Aparici, da Universidade Nacional de Educao a Distncia (UNED-Espanha), mas no obtivemos retorno.

  • 29

    momento, de acordo com as informaes e opinies fornecidas pelos entrevistados, mas tendo

    como foco a discusso sobre condies de uma Educao para a cidadania a distncia.

    Ressalte-se que, no incio dos dilogos, informamos, grosso modo, que compreendamos

    cidadania como conquista permanente por meio do desenvolvimento da conscincia crtica e

    que tnhamos a teoria de Freire como principal referncia.

    Cada dilogo foi desenvolvido de modo particular, a partir da questo inicial,

    explorando a problemtica em uma conversao informal. Marconi e Lakatos (2009)

    consideram esse tipo de entrevista como despadronizada ou no estruturada. Reconhecemos

    as seguintes vantagens listadas pelas autoras quanto ao procedimento: flexibilidade para

    esclarecer, formular de maneira diferente, especificar significados e tentar garantir que

    estvamos sendo compreendidos, alm de obter informaes que no encontramos em outras

    fontes e que sejam relevantes e significativas. Entre as limitaes, o risco de o entrevistado

    ser influenciado, consciente ou inconscientemente, pelo questionador, pelo seu aspecto fsico,

    suas atitudes, ideias, opinies etc. (2009, p. 200), ainda que tenhamos tido cautela.

    Assim, a curiosidade, essncia do humano, provocada pelo desejo de reflexo sobre a

    prtica, nos levou definio da problemtica desta tese. Em princpio, uma curiosidade

    ingnua, ligada ao saber de experincia feito, depois transformada em curiosidade

    epistemolgica, demandando metodologia na aproximao do objeto para maior exatido, ou

    seja, a curiosidade metdica, exigente, que tomando distncia do seu objeto, dele se

    aproxima para conhec-lo e falar prudentemente (FREIRE, 2001b, p. 55).

    Para conhecer e falar prudentemente do objeto, para produo de Cincia, os mtodos

    e tcnicas se apoiam em fundamentos epistemolgicos. Nesta pesquisa, nos orientamos pelo

    dialtico, no qual o conhecimento s pode ser compreendido em relao prtica poltica dos

    sujeitos. O paradigma dialtico prioriza a prxis humana, a ao histrica e social, guiada por

    uma intencionalidade que lhe d sentido, uma finalidade intimamente relacionada com a

    transformao das condies de existncia da sociedade humana (SEVERINO, 2007, p.

    116).

    Esta tese expe uma reflexo acerca da formao cidad considerando movimentos da

    Educao em geral e da modalidade a distncia, especificamente. Desejamos registrar a

    conscincia do risco de tentarmos nos orientar pela razo dialtica materialista, tendo em vista

    que a maior parte da nossa escolarizao foi desenvolvida sob a lgica formal e, talvez, a

    dialtica hegeliana23. Ainda que possa ser complementar dialtica, a formal se fundamenta

    23 O que distingue Marx e Hegel quanto ao processo de pensamento humano a explicao do movimento.

    Ambos sustentam a tese de que o movimento se d pela oposio dos contrrios, isto , pela contradio. Mas,

  • 30

    na no contradio, no esttico. Ou seja, uma coisa permanece sempre igual a si mesma (lei

    da identidade), uma coisa no pode ser igual a outra (lei no contradio) e ou uma coisa ou

    outra (lei do terceiro excludo), como explica Gadotti (2012a, p. 28) ao ressaltar que a

    lgica formal certamente vlida se os fenmenos forem estudados isoladamente. preciso

    ressaltar que a lgica formal contribui para classificar e distinguir os objetos. Por isso, a

    dialtica no recusa a lgica formal, ela a inclui como parte fundamental da lgica (p. 29).

    1.5 Apresentao dos captulos

    O CAPTULO 2 busca exprimir sobre qual cidadania trata este trabalho, aps

    refletirmos sobre o conceito observando sua ligao a contextos e vises de mundo. Uma

    breve reviso histrica aponta sua associao a direitos, deveres e participao ativa na

    sociedade. Ampliamos a leitura para obras de Freire, que nos levou compreenso de que

    para usufruir direitos e ter deveres assim como criar novos o sujeito necessitaria tomar

    posse da realidade, ou seja, conscientizao (FREIRE, 1979). Tambm abordamos a

    chamada cidadania global e assumimos a expresso cidadania planetria por ser contrria a

    anterior e mais coerente com uma Educao emancipadora.

    O CAPTULO 3 busca expor sob quais condies seria possvel uma Educao

    cidad, destacando seu compromisso com a conscientizao (ADORNO, 1995; FREIRE,

    1979, 2001b). Em obras de Freire, mapeamos condies para educar para cidadania,

    compreendendo que essa formao no possvel se no for pela cidadania. Depois, voltamo-

    nos para o movimento Escola Cidad, recuperando alguns trabalhos a respeito, principalmente

    sobre a experincia na rede municipal de So Paulo na administrao de Freire. Este caminho

    nos levou a considerar a dialogicidade, autonomia, liberdade e participao como valores

    essenciais para a formao cidad, entre outras possveis. Eles aparecem articulados com as

    seguintes prticas (entre outras) mapeadas na Escola Cidad: trabalho coletivo,

    democratizao das relaes de poder, currculo construdo de forma comunitria e

    participativa e educadores como autores de sua prtica. Tanto os valores quanto as prticas

    destacadas orientaram as reflexes dos captulos mais voltados modalidade a distncia.

    O CAPTULO 4 procura exibir um cenrio para a problemtica de pesquisa ao tratar

    de algumas desconfianas que recaem sobre a modalidade e arriscar algumas possveis razes,

    chamando ateno para o contexto macro neoliberal - em que a Educao se desenvolve.

    enquanto Hegel localiza o movimento contraditrio na Lgica, Marx o localiza no seio da prpria coisa, de todas

    as coisas, e em interao com elas (GADOTTI, 2012a, p. 19).

  • 31

    Ponderamos que a EaD no pode ser tomada como uma massa homognea de prticas,

    vinculando-a apenas razo instrumental. Ressaltamos os desafios da formao humana e a

    necessria presencialidade em qualquer modalidade. Por fim, tratamos da convergncia entre

    presencial e a distncia que se realiza cada vez mais aceleradamente.

    Qual a abordagem mais apropriada para uma Educao cidad a distncia? No

    CAPTULO 5, realizamos uma reviso de teorias de Educao a Distncia observando o que

    escreveram os autores sobre a autonomia de educandos e educadores, o dilogo entre eles e/ou

    a estrutura (organizao do processo educativo). Depois, expomos uma reflexo deste recorte

    considerando uma perspectiva freiriana. Ento, sugerimos uma abordagem para formaes a

    distncia de carter emancipatrias desenvolvidas pela Internet.

    Aps esse trajeto e com auxlio das entrevistas realizadas com especialistas em EaD,

    foi possvel construir o CAPTULO 6. Ele prope sob quais condies seria possvel uma

    Educao cidad a distncia. Portanto, volta-se diretamente para a problemtica apresentada

    no incio desta INTRODUO e retomada nas CONSIDERAES FINAIS. No

    encerramento de cada captulo, apresentamos um mapa-sntese das ideias principais. Quando

    somados, esperamos que o leitor perceba o caminho de investigao e a totalidade da tese.

  • CAPTULO 2

    ___________________________________________________________________________

  • 34

    2 CIDADANIA

    Os anos 2013 e 201424 foram particularmente importantes para o Brasil neste novo

    sculo. Desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992) h mais

    de vinte anos, no se viu tantas pessoas nas ruas protestando, reivindicando, exigindo direitos,

    querendo ser ouvidas. As vozes das ruas resultaram em algumas (poucas) aes concretas25,

    pautaram o discurso de mudana das eleies presidenciais de 2014 e tiveram como elemento

    dinamizador as mdias sociais.

    A participao ativa em torno de interesses coletivos compreendida como a

    expresso mais forte de cidadania. A palavra camalenica, pode se adequar a diferentes

    vises de mundo e de homem, a interesses distintos e discursos opostos. Por isso, iniciamos

    esta tese refletindo sobre esta expresso para situ-la em uma perspectiva emancipatria.

    Este captulo admite que cidadania no seria uma condio a priori dos sujeitos nas

    sociedades democrticas, mas uma qualidade que deriva do permanente processo de

    conscientizao que, na acepo de Freire (1979), exige ao contra o que destri e oprime.

    Cidadania tambm no estaria mais restrita aos Estados-nao porque o processo de

    globalizao escancarou a interligao das aes humanas sobre os povos, os outros seres e a

    natureza. A crise civilizatria enfrentada atualmente deriva do paradigma da globalizao

    predatria, que coloca os interesses particulares e os ganhos financeiros acima da vida. Por

    isso, no faria mais sentido restringir a noo de cidadania a um pas. O mundo carece da

    construo de novas realidades, respeitosas da diversidade, comprometidas com a equidade, a

    sustentabilidade e a amorosidade com os seres. Uma cidadania de carter planetrio.

    24 Em 2013, diversos protestos foram realizados pelo pas, inicialmente reivindicando a reduo de tarifas de

    nibus, e logo depois, mudanas na sade, educao, na participao poltica, entre outras. Em 2014, com menor

    intensidade, houve protestos contra a realizao da Copa do Mundo no pas, retomando ainda algumas pautas do

    ano anterior. 25 Cerca de 70% dos residentes em cidades com mais de 200 mil habitantes tiveram reduo do aumento da

    passagem em 2013 (ORTELLADO, 2014). Posteriormente, o governo federal lanou cinco pactos (sade,

    reforma poltica, responsabilidade fiscal, educao e mobilidade urbana). At 21 de junho de 2014, as aes se

    restringiram ao Programa Mais Mdicos e destinao de 75% dos royalties do petrleo e mais 50% do Fundo

    Social do Pr-Sal, segundo notcia da Agncia Brasil. Disponvel em:

    .

  • 35

    2.1 Conceito e histria

    Cidadania seria uma palavra da qual a maioria dos sujeitos - ao menos os que vivem

    em democracias - tem uma vaga ideia do que se trata. Em geral, remete a prticas que

    interessam e contribuem com uma coletividade. Principalmente, estaria associada defesa de

    direitos e ao exerccio de deveres, mas seu conceito complexo e pode estar ligado a

    compromissos distintos.

    Haveria alguns consensos em torno do conceito de cidadania, ainda que na prtica

    muitos se configurem como utopia. A igualdade perante a lei, o domnio dos sujeitos sobre

    seu corpo e sua vida, a garantia de uma srie de direitos (educao, sade, expresso, etc.) e o

    exerccio de deveres (cumprimento de normas, participao direta ou indireta em governos e

    movimentos coletivos, etc.) resultam de movimentos histricos e continuam em permanente

    construo. O conceito de cidadania est relacionado ao surgimento da vida na cidade e,

    historicamente, apresenta dois momentos que o marcam at os dias atuais.

    O primeiro deles apresenta aspectos claramente discriminatrios que vale recordar. No

    Imprio Romano, os cidados constituam uma categoria acima dos homens livres (no

    escravos), sendo os nicos com direito participao na vida do Estado. Restritos ao sexo

    masculino, os cidados eram os nascidos na cidade-estado grega e a eles competiam as tarefas

    humanas, ou seja, pensar e governar. Ao definir o homem como um ser naturalmente

    poltico, Aristteles estava na verdade discriminando como no humanos os que no tinham

    a atribuda faculdade poltica e, portanto, no tinham acesso s prerrogativas da cidadania

    (ROMO, 2000, p. 222). Ou seja, grosseiramente, os sujeitos que no pertenciam categoria

    cidados no seriam considerados humanos.

    Um segundo momento histrico importante seria o surgimento do capitalismo (sculo

    XV, aproximadamente), no qual a burguesia ascendia contra o feudalismo, desencadeando a

    Revoluo Burguesa e com ela o chamado Estado de Direito. Estabelecida por meio de Cartas

    Constitucionais, a centralizao jurdica passa a estabelecer direitos iguais a todos os homens

    perante a lei pela primeira vez na histria da humanidade. Desde ento, decorre com

    ratificaes, reorganizaes e ampliao, as constituies francesas e norte-americanas, a

    Declarao Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e uma srie de outros documentos que

    propem configurar o conceito de cidadania.

    Machado (1997) considera que uma noo de cidadania associada apenas a ter direitos

    no seria suficiente para exprimi-la. O que no significa menosprez-la, principalmente

    porque continuam as violaes aos direitos estabelecidos na DUDH, proclamada em 10 de

    dezembro de 1948, em muitos pases. No entanto, restringir a ideia de cidadania de ter

  • 36

    direitos pode significar uma limitao da formao do cidado vigilncia sobre o

    cumprimento das deliberaes da DUDH, ou de outros documentos similares, defende

    Machado (1997, p. 95). Concordamos com o autor e trataremos disso mais adiante.

    Antes, porm, consideremos contradies inerentes ao segundo contexto histrico,

    cuja noo se relaciona diretamente ao nascimento do capitalismo, o que acaba gerando uma

    ideia de cidadania ligada viso de mundo e forma de vida da burguesia. Se, por um lado,

    carrega em si um carter emancipador, resultante, sobretudo, do rompimento com o direito

    feudal obtido pelo nascimento, por outro, se relaciona ao processo de explorao pelo capital.

    Podemos observar essas contradies por meio dos filsofos John Locke (1631-1704), Jean-

    Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804), a partir de Manzini-Covre

    (1996), que apresenta um resumo de ideias desses intelectuais na construo de cidadania, de

    onde destacaremos algumas.

    A grosso modo, em o Segundo tratado sobre o governo, Locke (MANZINI-COVRE,

    1996, p. 25) apresenta a ideia de que cada sujeito tem a propriedade de seu corpo que s a ele

    diz respeito. Entretanto, o vnculo entre a propriedade do corpo e cidadania ganha outras

    conotaes quando Locke afirma que a propriedade no o corpo em si, mas o que produz.

    O que meu no s o que eu retiro da natureza por mim mesmo, mas tudo aquilo retirado

    da natureza por meu cavalo, meu criado. Aqui, ele comea a delinear os cidados e os no-

    cidados, os que tem a propriedade do corpo e os que tem o corpo mandado. Esvaziando o

    sentido inicial, o filsofo abre espao para justificar a explorao dos homens por outros,

    contribuindo para a construo de cidadania burguesa que reproduz a desigualdade. J

    Rousseau, em O contrato social, aponta para a no explorao, para relaes mais justas

    entre os homens, defendendo tambm a democracia direta e a no dissociao de igualdade e

    liberdade. E Kant, principalmente a partir da obra Da paz perptua, defende que o

    desenvolvimento da sociedade jurdica o que garantiria aos sujeitos uma vida civilizada.

    At este ponto, importa frisar 1) que o sentido de cidadania se relaciona ao momento

    sociopoliticoeconmico e s vises de mundo de cada poca; 2) com variaes, o carter

    menos humano de sujeitos que no possuem a condio de cidados.

    Na ltima dcada do sculo XX, o termo cidadania ganhou destaque e fez surgir

    diversas teorias a seu respeito. Entre as razes para que esse antigo conceito tenha ganhado

    mais visibilidade, Cortina (2009) destaca a necessidade das sociedades ps-industriais de

    gerarem um tipo de identidade entre seus membros na qual se reconheam e que crie um

    sentimento de pertencimento a elas. A preocupao estaria na falta de interesse pelos desafios

    que se apresentam a todos e sem essa adeso seria impossvel responder conjuntamente a eles.

  • 37

    Haveria uma apatia cada vez maior quanto s questes coletivas, prevalecendo o interesse

    pela satisfao dos desejos pessoais, com pouco afeto pela comunidade da qual participam e

    nenhuma disposio para sacrificar-se pela coisa pblica.

    A participao na comunidade poltica seria a noo predominante na sociedade

    contempornea e, por isso, nos deteremos um pouco mais sobre ela. O conceito formulado por

    Thomas Marshall26 define cidadania como a participao integral do indivduo na comunidade

    poltica, com diferentes tipos de prerrogativas, os chamados direitos reconhecidos pelo

    Estado a todos os sujeitos; e os deveres - obrigaes destes para com o Estado.

    Os direitos civis so os relacionados liberdade, como a de movimentao, a de

    pensamento, a aquisio de bens, assim como o acesso a meios que defendam os direitos

    anteriores, a exemplo da justia; os direitos sociais dizem respeito ao mnimo de bem-estar e

    segurana necessrio para se viver em sociedade; e os direitos polticos equivalem tanto

    participao no poder quanto elegibilidade de quem os ir deter. Para a concretizao desses

    direitos, no entanto, seriam necessrios quadros institucionais especficos, que garantiriam

    maior ou menor realizao. Ou seja, os direitos polticos dependeriam de condies criadas

    pela justia e pela polcia; os civis precisariam de defensores como os advogados, a

    assistncia judiciria, os juzes; e, por fim, os direitos sociais, s seriam realizados em caso de

    um aparato administrativo que garanta sua efetivao.

    Alguns cientistas sociais, no entanto, criticam a caracterizao terica da

    concretizao desses direitos porque Marshall teria desconsiderado o papel das lutas

    populares nesse processo. Entre os crticos, destacamos a leitura de Dcio Saes (2000), que

    examina as teses de Marshall a partir de uma perspectiva crtica e discorda da viso

    evolucionista do processo de instaurao da cidadania. Pela evoluo institucional, os direitos

    resultam da necessidade de funcionamento do capitalismo e foram sendo conquistados a partir

    dos direitos civis, no sculo XVIII, seguidos pelos direitos polticos no sculo XIX e,

    finalmente, os direitos sociais no sculo XX, como em escada.

    Para Saes (2000), Marshall no considerou os papis das classes dominantes, dos

    trabalhadores e da burocracia do Estado para a criao de qualquer novo direito, mesmo ao se

    referir s revolues que deram fim ordem feudal, dando a entender que o processo de

    conquista de direitos uma evoluo natural da cidadania e indispensvel ao capitalismo,

    visto que sem tais direitos os sujeitos no poderiam participar livremente do mercado.

    26 MARSHALL, Thomas. H. Ciudadana y clase social. Madrid, Alianza, 1998.

  • 38

    Ainda sobre a questo da cidadania poltica, Saes (2000) comenta as teses de

    Pateman27, para quem um salto qualitativo na participao poltica depende de deflagrao de

    um surto democrtico na periferia do sistema poltico global, ou seja, em empresas e unidades

    de produo - na esfera econmica e em distritos e municipalidades, na esfera poltica. Para

    Pateman, a experincia na micropoltica levaria a uma maior participao na macropoltica, o

    que Saes discorda visto que a carncia de recursos polticos faz com que a interveno das

    massas na gesto dessa esfera microssocial seja perifrica, marginal e secundria (SAES,

    2000, p. 27). Os trabalhadores podem at serem chamados para discutir a convenincia da

    substituio de um contramestre brutal, mas no para a definio de aes estratgicas, da

    mesma forma que em uma municipalidade a populao poderia ser chamada para opinar sobre

    os gastos sociais, mas dentro de um limite previamente estipulado pela administrao. Assim,

    Saes defende a tese de que a cidadania plena no possvel em sociedades capitalistas porque

    nelas h no democracia econmica.

    Ainda que o modelo capitalista imponha limites cidadania plena, acreditamos que

    no seria possvel super-lo sem a presso e a participao poltica da maioria para mudar o

    atual modelo. As experincias democrticas seriam necessrias para a criao de uma nova

    sociedade a partir da que existe hoje, marcada pelas desigualdades e pela destruio da vida e

    do planeta. Alm disso, como considerou o prprio Saes (2000), a criao de novos direitos e

    a manuteno dos j instaurados tambm carecem da participao popular desconsiderada

    por Marshall.

    Compartilhamos com Azevedo (2007, p. 106) o entendimento de que cidadania no

    pode ser analisada fora de um conceito histrico; o seu contedo dinmico, se

    autorreproduz na dialtica dos confrontos sociais, constitui a sua prpria oposio ao

    reconstruir-se a cada conjuntura, a cada processo de humanizao do ser humano". Tambm

    com Manzini-Covre (1996, p. 10): s existe cidadania se houver a prtica da reinvindicao,

    da apropriao de espaos, da pugna para fazer valer os direitos do cidado. Alm dos

    direitos, faz parte da cidadania uma srie de deveres, como o de provocar a efetivao desses

    direitos a todos, a participao e o cumprimento de normas e projetos coletivos, a participao

    em governos (direta ou indiretamente, por meio do voto), em aes civis como assembleias

    (sindicato, bairro, escola), e em movimentos sociais etc.

    Neste recorte, a Educao pode se configurar como oportunidade para a vivncia de

    experincias democrticas e o estmulo para a participao em questes coletivas, de modo a

    27 PATEMAN, C. Participao e teoria democrtica. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1992.

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    contriburem com a instaurao de outro modelo de sociedade no qual se realize a cidadania

    plena para todos do planeta. "Cidadania plena" (CORTINA, 2009) como conjunto que

    envolve a cidadania poltica (direito de participao em comunidade poltica), a econmica

    (participao nos lucros e gesto da empresa), a civil (afirmao de valores como dilogo,

    solidariedade), a intercultural (como projeto tico e poltico frente ao etnocentrismo). E, mais

    alm, uma cidadania que tenha como base uma nova referncia tica e social: a civilizao