educação e federalismo no brasil

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Brasília, março de 2010

Transcript of educação e federalismo no brasil

  • Braslia, maro de 2010

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  • Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos nestelivro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamenteas da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes ea apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao dequalquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquerpas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao desuas fronteiras ou limites.

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  • 2010 Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura(UNESCO).

    Concepo e superviso: Paolo Fontani e Wagner Santana Traduo: Jeanne Sawaya (texto Desenho institucional e articulao dofederalismo educativo: experincias internacionais) Reviso tcnica: Janine Schultz Enge, Janana Camelo Homerin e Paulo VinciusSilva AlvesReviso: Valderes GouveiaCapa e projeto grfico: Edson FogaaDiagramao: Paulo Selveira

    Educao e federalismo no Brasil: combater as desigualdades, garantir a diversidade / organizado por Romualdo Portela de Oliveira e Wagner Santana. Braslia: UNESCO, 2010.

    300 p.

    ISBN: 978-85-7652-114-3

    1. Gesto educacional. 2. Educao pblica. 3. Polticas educacionais. 4.Desigualdade social. 5. Desigualdade cultural. 6. Diversidade cultural. 7.Oportunidades educacionais. 8. Oportunidades iguais. 9. Relaes interraciais.10. Direito educao. 11. Brasil I. Oliveira, Romualdo Portela de (Org.) II.Santana, Wagner (Org.) III. UNESCO

    Organizaodas Naes Unidas

    para a Educao,a Cincia e a Cultura

    Representao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6,Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9andar70070-914 - Braslia - DF - BrasilTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

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  • Prefcio Vincent Defourny ......................................................................................7

    Apresentao Romualdo Portela de Oliveira e Wagner Santana .........................................9

    Introduo Romualdo Portela de Oliveira e Sandra Zkia Sousa..................................13

    PARTE I Referncias gerais sobre o regime federativo no Brasil

    A dinmica federativa da educao brasileira:diagnstico e propostas de aperfeioamentoFernando Luiz Abrucio .......................................................................39

    Federalismo fiscal: em busca de um novo modelo Fernando Rezende...............................................................................71

    A gesto do Sistema nico de Sade Jurandi Frutuoso.................................................................................89

    PARTE II Educao e federalismo

    Desenho institucional e articulao do federalismo educativo: experincias internacionaisAlejandro Morduchowicz e Ada Arango.............................................109

    A questo federativa e a educao escolar Carlos Roberto Jamil Cury.................................................................149

    Financiamento da educao pblica no Brasil: evoluo dos gastos Jorge Abraho de Castro ....................................................................169

    Participao e regime de colaborao entre unidadesfederadas na educao brasileira Elie Ghanem ....................................................................................191

    SUMRIO

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  • PARTE III O regime de colaborao: algumas experincias

    Federalismo cooperativo e educao brasileira:a experincia de Mato Grosso [com a] proposio deum sistema nico de educao Carlos Abicalil e Odorico Ferreira Cardoso Neto ......................................215

    O regime de colaborao na educao do Rio Grande do Sul Maria Beatriz Luce e Marisa Timm Sari ................................................243

    Educao bsica no Cear: construindo um pacto colaborativo Sofia Lerche Vieira.................................................................................271

    Consideraes finais Romualdo Portela de Oliveira e Sandra Zkia Sousa................................287

    Notas sobre os autores ........................................................................297

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  • Tratar da questo federativa no Brasil e seus impactos na oferta educa-cional leva-nos necessariamente a investigar aspectos da governana daeducao brasileira e dos seus impactos na garantia de uma educao dequalidade para todos no pas.

    Do ponto de vista dos princpios que orientam a ao da UNESCO nomundo, essa discusso deve ter como perspectiva mais ampla a consolidaoda democracia, o fortalecimento do estado de direito e a construo depatamares mais elevados de justia social. A partir desse quadro dereferncias, emergem questes relacionadas eficincia e eficcia no uso dosrecursos e na oferta dos servios pblicos, a processos de transparncia eprestao de contas, demanda por ampliao da participao dos cidadose transparncia e prestao de contas por parte das instituies pblicas.Participar desse debate significa reforar o compromisso da UNESCO como fortalecimento de um espao pblico democrtico e contribuir efetiva-mente para o processo de formulao, implementao e avaliao daspolticas pblicas brasileiras.

    Discutir aspectos da governana educacional no Brasil no tarefasimples. O regime federativo brasileiro tem uma arquitetura complexa naqual a Unio, os estados e municpios tm papis destacados na ofertaeducacional. Nesse contexto, algumas questes ganham destaque: em quemedida possvel garantir padres de unidade e qualidade na ofertaeducativa em nvel nacional, levando-se em conta as diversidades regionais elocais? Quais so as estratgias de coordenao intergovernamental viveisconsiderando os marcos legais existentes? possvel articular autonomia einterdependncia na gesto dos sistemas educativos? Regulamentar umregime de colaborao entre os entes federativos tarefa poltica vivel?Quais so os ordenamentos institucionais necessrios para que a oferta edu-cativa no pas no seja to desigual?

    Essas questes ganham relevo em um momento em que no centro daagenda das polticas educacionais est a construo de um novo PlanoNacional de Educao (PNE). No so poucos os desafios que cercam a

    PREFCIO

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  • elaborao do novo plano, que dever definir as diretrizes e os rumos de umprojeto para a educao brasileira nos prximos dez anos. Contribuir paraque esse longo processo de debates conduza a polticas de estado que tratemcom rigor e consistncia os desafios que se apresentam para a educao nopas d sentido e pertinncia ao trabalho realizado pela Representao daUNESCO no Brasil.

    Por fim, importante destacar e agradecer a valiosa colaborao doInstituto Internacional de Planejamento da Educao da UNESCO (IIPE),sede regional Buenos Aires, responsvel pela elaborao do estudo sobresistemas educacionais em vrios pases federativos do mundo includo nestapublicao.

    Vincent DefournyRepresentante da UNESCO no Brasil

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  • APRESENTAO

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    O regime federativo pressupe a diversidade. Segundo William Anderson:

    Federalismo o sistema poltico (e os princpios fundamentais dessesistema) que: a) defende ou estabelece um governo central para todo o pase determinados governos regionais autnomos (estados, provncias, Lnder,cantes) para as demais unidades territoriais; b) distribui os poderes e asfunes de governo entre os governos central e regionais; c) atribui sunidades regionais um conjunto de direitos e deveres; d) autoriza osgovernos de ambos os nveis a legislar, tributar e agir diretamente sobre opovo, e e) fornece vrios mecanismos e procedimentos para a resoluodos conflitos e disputas entre os governos central e regionais, bem comoentre duas ou mais unidades regionais1 (FGV, 1987, p. 471).

    Na estruturao adquirida por esse regime no Brasil, observa-se umadiferenciao acentuada na distribuio das receitas fiscais, no padro daspolticas pblicas e, no caso da educao, grande diversidade na forma e nosmeios de provimento desse direito.

    O objetivo deste livro discutir a questo federativa, no que diz respeito garantia do direito educao a todos os cidados brasileiros. Tal direitopressupe a igualdade de condies de acesso, permanncia e sucesso naescola. O princpio vale em geral, mas imperativo quando se trata daescolarizao obrigatria 2, o corao do direito educao. Assim, a ideia

    1. Para uma discusso mais extensa e variada da conceituao do sistema federativo, ver Burgess (2006).

    2. Nos ltimos anos, assistimos ampliao da obrigatoriedade da educao. O texto original daConstituio de 1988 distinguiu o dever do Estado da obrigatoriedade, esta ltima aplicada aoindivduo, sujeito do Direito. Estabeleceu, no caput do artigo 208, o dever do Estado para com aeducao e, em seu inciso I, obrigava o indivduo apenas ao ensino fundamental, posteriormentedefinido como de oito anos de durao pela Lei n 9.394/1996 (a LDB). Posteriormente, o textoconstitucional foi alterado primeiro pela Emenda Constitucional n 14/1996, que tornou mais precisaa redao da verso original, eliminando uma impreciso que estendia a obrigatoriedade aos maioresde 14 anos. (OLIVEIRA, 2007) Mais recentemente, a obrigatoriedade foi alterada por meio da Lein 11.114, de 16/05/2005, que estabeleceu o incio do ensino fundamental aos seis anos e, em seguida,pela Lei n 11.274, de 06/02/2006, que estabeleceu o ensino fundamental de nove anos. Finalmente,com a Emenda Constitucional n 59, de 11/11/2009, estabeleceu-se a obrigatoriedade do ensino dosquatro aos 17 anos, abrangendo a pr-escola, o ensino fundamental e o ensino mdio.

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  • debater um problema no resolvido entre ns, o da desigualdade educa-cional resultante, entre outros fatores, dos moldes de atuao do poderpblico e da relao entre o governo federal e os demais entes federados(estados e municpios) em matria de educao. Os fatores constituem-seem obstculos ao desenvolvimento educacional do pas, ao acentuarem ofosso existente entre regies mais e menos desenvolvidas, no se estabe-lecendo um regime no qual a educao seja uma poltica sistmica enacionalmente consistente.

    Reunindo especialistas da rea de educao, das finanas pblicas, dacincia poltica e da sade, esta publicao reflete sobre possibilidades deavanar na perspectiva de formulao de um Sistema Nacional Articuladode educao, para utilizar o termo introduzido pelo documento base daConferncia Nacional de Educao (Conae 2010), qual esta publicao apresentada como subsdio.

    Para responder questo, a reflexo que se pretende formalizada nosseguintes termos: quais as possibilidades e limites da proposta de umSistema Nacional de Educao e se, de imediato, no conseguimos constru-lo, o que (e como?) possvel avanar para alm da prescrio do regime decolaborao entre as esferas do poder pblico? Nesse caso, dizer de modoarticulado mera tautologia, posto que colaborao sem articulaono faz sentido.

    O livro est organizado em trs partes, precedidas de uma introduo aoproblema, que procura situar o debate e as formas recentes encontradas pelaUnio para trat-lo e de um captulo final a ttulo de sntese, com recomen-daes para as polticas pblicas.

    Na primeira parte, composta por trs artigos, procura-se consolidar oacmulo de diferentes reas sobre a questo do federalismo que podemiluminar o debate educacional. Inicia-se com o artigo de Fernando Abrucio,professor na Fundao Getlio Vargas SP, que discute os dilemas hist-ricos de nosso federalismo e sua repercusso na educao. Em princpio, aideia trazer a reflexo realizada na cincia poltica para pensar a temticada educao no contexto federativo. O de Fernando Rezende, economistado Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) e da FundaoGetlio Vargas-RJ, explicita as limitaes de nosso federalismo fiscal eausculta possibilidades de alter-lo na perspectiva de reduzir a desigual-dade entre estados no que diz respeito disponibilizao de recursos de

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    impostos para cada cidado. O de Jurandi Frutuoso, secretrio doConselho Nacional de Secretrios de Sade (Conass) e ex-secretrio deSade do Estado do Cear, apresenta o Sistema nico de Sade (SUS) e,em particular, sua estrutura de gesto. A escolha dessa temtica nos pareceuoportuna por representar o SUS uma alternativa de organizao de umarea das polticas sociais para a garantia de um direito no contexto doEstado federativo brasileiro.

    Na segunda parte, a reflexo mais diretamente educacional, trazendoelementos do contexto internacional e nacional em trs dimenses. Umareflexo comparativa apresentada no trabalho de Alejandro Morduchowicze Ada Arango, economistas e consultores no Instituto Internacional dePlanejamento da Educao da UNESCO (IIPE) Sede Regional BuenosAires, que analisa uma amostra de pases federados buscando explicitar comodefiniram a estrutura e organizao dos seus sistemas educativos. O artigode Carlos Roberto Jamil Cury, professor emrito da Faculdade de Educaoda Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor na PontifciaUniversidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG), registra o debate sobreo regime de colaborao em educao a partir de uma perspectiva histrico-poltica, evidenciando as tarefas pendentes nessa matria. Jorge Abrahode Castro, diretor de pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa EconmicaAplicada), discute a dinmica recente do financiamento da educao, seuslimites e contradies e Elie Ghanem, professor na Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo (USP), problematiza condicionantes participaoda populao na sociedade e no sistema educacional especificamente.

    A terceira parte, composta por trs artigos, procura lanar luz sobreexperincias recentes de colaborao entre sistemas que, nos marcos daestrutura legal vigente, tornaram o regime de colaborao mais objetivo.Para tal, foram escolhidas experincias que certamente no esgotam as muitasexistentes no pas, mas que, pela sua distribuio geogrfica e natureza,entendemos como representativas e significativas. No artigo de Carlos Abicalil,deputado federal e membro da comisso de educao da Cmara dos Depu-tados e Odorico Ferreira Cardoso Neto, professor na Universidade Federalde Mato Grosso (UFMT), analisa-se a experincia do Estado de MatoGrosso, primeiro do pas a estabelecer em sua Constituio Estadual de1989 o sistema nico de educao. O artigo de Marisa Timm Sri, ex-secretria de educao de Cachoeira do Sul (RS) e tcnica da SecretariaEstadual de Educao do Rio Grande do Sul e de Maria Beatriz Moreira

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  • Luce, reitora da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e membro doConselho Nacional de Educao (CNE), avalia a experincia de colaboraoentre municpios e estado no Rio Grande do Sul, onde se realiza um dosmais bem-sucedidos processos de municipalizao no Brasil. Sofia LercheVieira, professora aposentada da Universidade Federal do Cear (UFC),atualmente professora na Universidade do Estado do Cear (UECE) eex-secretria estadual de educao, discute a experincia de colaboraoestado-municpios empreendida no Cear por mais de uma dcada.

    Conclui-se, no artigo final, com uma sntese das contribuies trazidaspelos diversos autores e uma reflexo sobre as possibilidades de modificaona situao atual em direo viabilizao da educao pblica de quali-dade para todos, tendo como esteio relaes cooperativas entre os entesfederados. Nessa medida, discutem-se desde possibilidades de alterao nosdispositivos legais vigentes, quanto iniciativas polticas que possam serimplementadas na perspectiva de transformar o regime atual em outro noqual seja efetiva a colaborao.

    Esperamos, com o presente trabalho, contribuir para a formulao depolticas que busquem a ampliao da equidade na oferta educativa e nagarantia do direito a uma educao de qualidade para todos, considerando-se as caractersticas do sistema federativo brasileiro.

    Romualdo Portela de Oliveira e Wagner Santana

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  • INTRODUORomualdo Portela de Oliveira e Sandra Zkia Sousa

    1. Nas palavras de R. H Tawney: porque os homens so homens, as instituies sociais direitode propriedade, organizao da indstria, sistema de sade pblica e educao devem serplanejadas, na medida do possvel visando a enfatizar e reforar no as diferenas de classes queos dividem, mas a humanidade comum que os une (TAWNEY, 1952, p. 38).

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    O FEDERALISMO E SUA RELAO COMA EDUCAO NO BRASIL

    Ao analisar-se a educao no Brasil percebe-se a desigualdade inter eintrarregional, decorrente da assimetria entre as condies econmicas dosentes federados e a distribuio de competncias previstas constitucional-mente, que indica o que cabe a cada um realizar no tocante ao provimentoda educao para a populao, resultando em diferentes condies de oferta.

    O direito educao, que pressupe igualdade de condies para todos,contrape-se diferenciao tpica do sistema federativo. No Brasil, essaestrutura particularmente importante para as polticas pblicas, uma vezque interfere diretamente nas temticas da democracia e da igualdade. Mas,mais do que afirmar a liberdade de ser diferente, inerente ao que se podechamar de federao descentralizada, ao se discutir direito educao,trata-se da igualdade remetendo-se ao conceito de federao centralizada1.A tenso entre a centralizao do poder e sua descentralizao encontra-sena distino entre as duas principais tradies tericas acerca do federa-lismo. De um lado, Rousseau, Tocqueville e Proudhon e, de outro, os federa-listas americanos, Hamilton, Madison e Jay. William Riker que, em seuestudo clssico sobre o federalismo (1964), traou a ideia do continuum entreuma federao mais centralizada e uma mais descentralizada, no limite, umaconfederao.

    Os artigos federalistas enfatizavam a necessidade de um governo centralforte. No artigo 34, Alexander Hamilton afirma:

    Diz-se, porm, que as leis da Unio devero ser a lei suprema do pas.Que inferir disto? De que valeriam essas leis, se no devessem ser

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  • 2. Observe-se que o texto constitucional de 1824 estabelecia a gratuidade nos estabelecimentospblicos. Segundo o artigo 179: A inviolabilidade dos direitos civis, e polticos dos cidadosbrasileiros, que tem por base a liberdade, a segurana individual, e a propriedade, garantida pelaConstituio do Imprio, pela maneira seguinte. (...)XXXII. A instruo primria gratuita atodos os cidados. Entretanto, os escravos no se enquadravam na categoria de cidados.

    supremas? evidente que no valeriam nada. Uma lei, pelo prprio sen-tido da palavra, inclui supremacia. uma regra que aqueles a quem prescrita so obrigados a observar. (...). Se indivduos formam umasociedade, as leis dessa sociedade devem ser o regulador supremo de suaconduta. Se algumas sociedades polticas formam uma sociedade polticamaior, as leis que esta ltima possa promulgar, segundo os poderes a elaatribudos por sua constituio, devem ser necessariamente supremasem relao quela sociedade e aos indivduos que a compem.(HAMILTON, 1993, p. 246)

    No Brasil, com a Repblica, a federao nasce em outra direo, naperspectiva da descentralizao. Surge como uma forma de organizaocapaz de permitir aos entes federados gozar de maior autonomia do queno Imprio. Entretanto, maior descentralizao corresponde uma maiordesigualdade, a menos que o centro exera um contrapeso no sentido deimplementar aes supletivas. Essa tenso entre centralizao e descentra-lizao e a forma de colaborao ou relacionamento entre a Unio e osdemais entes federados fundamental para compreender-se a polticaeducacional. Ainda que brevemente, pertinente analisar essa temtica emperspectiva histrica.

    O atendimento educacional, no que diz respeito ao seu aspecto orga-nizativo, remonta, nos seus primrdios, Lei Geral, de 15 de outubro de1827, que estabelecia responsabilidades para as provncias e localidades,nos seguintes termos 2:

    Art. 1 Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, haver asescolas de primeiras letras que forem necessrias.

    Art. 2 Os Presidentes das provncias, em Conselho e com audincia dasrespectivas Cmaras, enquanto no estiverem em exerccio os ConselhosGerais, marcaro o nmero e localidades das escolas, podendo extinguiras que existem em lugares pouco populosos e remover os Professores delaspara as que se criarem, onde mais aproveitem, dando conta a AssembliaGeral para final resoluo (Disponvel em:

  • 3. A ideia de que a Unio deveria ter um papel de redutor das desigualdades s surge mais tarde e,at hoje, tem limites significativos.

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    br/artigos/exibir/482/A-lei-de-15-de-outubro-de-1827>. Acesso em:20 fev. 2010).

    Em seguida, em 12 de agosto de 1834, promulga-se a Lei n 16, conhe-cida como Ato Adicional. Paradigma para a compreenso do que ocorreposteriormente na educao brasileira, explicita a transferncia da responsa-bilidade pela educao elementar s provncias:

    Art. 10 Compete s mesmas Assemblias legislativas [legislar]:(...)

    2 - Sobre instruo pblica e estabelecimentos prprios a promov-la,no compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurdicos,academias atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos deinstruo que, para o futuro, forem criados por lei geral (Disponvel em:. Acesso em: 12 fev. 2010).

    Tal arranjo mantido pela Constituio Republicana de 1891. Aindaque esta seja fortemente inspirada na Constituio Americana e, portanto,nas formulaes dos federalistas, seu texto ecoava a crtica ao centralismo doImprio. De fato, a Primeira Repblica transfere responsabilidades governa-mentais significativas para os estados. A Constituio explicita a responsa-bilidade da Unio em relao educao apenas no Distrito Federal.Ao faz-lo, por omisso, transfere aos estados esse encargo.

    Nos termos do artigo 34:

    Compete privativamente ao Congresso Nacional:

    30) legislar sobre a organizao municipal do Distrito Federal bem comosobre a polcia, o ensino superior e os demais servios que na capitalforem reservados para o Governo da Unio (Disponvel em: . Acesso em: 12 fev. 2010).

    Ao transferir tal responsabilidade para os estados, induziu a um aten-dimento diferenciado em cada um deles3. Isso impulsionou, basicamente,dois modelos paradigmticos:

    o que se manifesta nos estados do Sul e Sudeste que assumiram a respon-sabilidade pelo atendimento educacional e construram, ao longo do

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  • 4. Em certa medida, esse o processo, tambm, dos estados do Centro-Oeste. Excluem-se dessemodelo, os dois Distritos Federais republicanos, Rio de Janeiro e Braslia, onde o sistema constituiu-se com apoio forte da Unio. O mesmo vale para os antigos territrios federais, Amap, Roraima,Rondnia e Fernando de Noronha. O Estado de Rondnia foi criado pela Lei Complementar n41, de 22/12/1981. A Constituio Federal de 1988 transformou em estados os antigos terri-trios de Roraima e Amap (Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADCT, art. 14)e extinguiu o Territrio de Fernando de Noronha, reincorporando a sua rea ao Estado dePernambuco (ADCT, art. 15).

    sculo XX, sistemas prprios de ensino, recorrendo subsidiariamente aosmunicpios;

    o dos estados do Norte e Nordeste em que estes se omitiram de construirum sistema de ensino de massas e tal responsabilidade foi precariamenteassumida pelos municpios 4.

    Essa diferena na forma de expanso, em certa medida decorrente daestrutura tributria vigente, a explicao primeira da desigualdade noatendimento educacional no pas. Os estados mais ricos assumiramdiretamente a responsabilidade pela oferta e os mais pobres repassaram-napara seus municpios, ainda mais pobres que os respectivos estados. Estesse desincumbiram da tarefa nos limites de suas possibilidades.

    Com o governo Vargas e os debates de construo do estado nacionale da nacionalidade, dos anos 1930, recoloca-se a ideia da centralizao daeducao na esfera federal. Vargas recria o Ministrio da Educao, em1930, por meio do Decreto n 19.402, de 14 de novembro, com o nome deMinistrio dos Negcios da Educao e Sade Pblica. Seu primeiro-ministro, Francisco Campos, (re)organiza a educao no pas. Edita emsequncia:

    1. Decreto n 19.850, de 11/04/1931, que criou o Conselho Nacional,de Educao; 2. Decreto n 19.851, da mesma data, que disps sobre aorganizao do ensino superior no Brasil e adotou o regime universitrio;3. Decreto n 19.852, tambm da mesma data, que disps sobre aorganizao da Universidade do Rio de Janeiro; 4. Decreto n 19.890, de18/04/1931, que disps sobre a organizao do ensino secundrio; 5.Decreto n 19.941, de 30/04/1931, que instituiu o ensino religioso comomatria facultativa nas escolas pblicas do Pas; 6. Decreto n 20.158, de30/06/1931, que organizou o ensino comercial e regulamentou a profissode contador; 7. Decreto n 21.241, de 14/04/1932, que consolidouas disposies sobre a organizao do ensino secundrio (MORAES,1992, p. 295-6).

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  • 5. So elas: 1) Decreto-lei n 4.048, de 22/01/1942 Cria o SENAI (Servio Nacional de Apren-dizagem Industrial); 2) Decreto-lei n 4.073, de 30/01/1942 Lei Orgnica do Ensino Industrial;3) Decreto-lei n 4.244, de 09/04/1942 Lei Orgnica do Ensino Secundrio; 4) Decreto-lein 6.141, de 28/12/1943 Lei Orgnica do Ensino Comercial; 5) Decreto-lei n 8.529, de02/01/1946 Lei Orgnica do Ensino Primrio; 6) Decreto-lei n 8.530, de 02/01/1946 LeiOrgnica do Ensino Normal; 7) Decretos-lei n 8.621 e 8.622, de 10/01/1946 Criam o SENAC(Servio Nacional de Aprendizagem Comercial) e; 8) Decreto-lei n 9.613, de 20/08/1946 Lei Orgnica do Ensino Agrcola.

    6. Data dessa poca, tambm, a obrigatoriedade do ensino em lngua portuguesa.

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    Seu segundo ministro, Gustavo Capanema, tambm reforma a educaopor meio das Leis Orgnicas do Ensino5 (1942-1946). Os episdios relativos nacionalizao das escolas, fechamento das escolas criadas pelas comuni-dades imigrantes (notadamente italianas, alems e japonesas), empreendidosno contexto da entrada do Brasil na Segunda Guerra e a formulao depolticas e leis nacionais de ensino6 do o tom da concepo que seriapredominante desde ento: a de normas nacionais e responsabilizao dosentes federados subnacionais pela sua implantao, admitindo-se aessupletivas e colaborao tcnica por parte da Unio e autonomia destesnas matrias de competncia concorrente ou sobre as quais a Unio delegava-lhes o poder de legislar.

    O problema que, quando se analisa a materializao desse arranjo,observa-se que a desigualdade se mantm significativa, posto que a divisodos recursos oramentrios, decorrente da estrutura tributria, no se altera.Tal situao agravada com a Constituio de 1988, ao incorporar o muni-cpio como ente federativo, evidenciando-se descompasso entre os recursosdisponibilizados a cada um e suas responsabilidades na oferta educacional,mesmo considerando-se os mecanismos de transferncias intergoverna-mentais.

    Apenas em 1996, com o Fundef (Fundo de Manuteno e Desenvol-vimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio), estabelece-se um critrio mais razovel para a diviso dos recursos vinculados, de modoa que, minimamente, se articulassem aportes financeiros s respectivasresponsabilidades. Utilizou-se como medida de equivalncia um valorcomum de gasto por aluno em cada estado, instituindo-se mecanismo deredistribuio que retirava recursos de quem atendia relativamente menos edirecionava-os para quem atendia mais.

    Entretanto, isso no se deu sem contradies. Ao mesmo tempo emque a Emenda Constitucional n 14/1996 e a Lei de Diretrizes e Bases

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  • 7. O Fundef induziu um amplo processo de municipalizao, que atingiu tambm os estados doNordeste, com oferta j muito municipalizada, particularmente das sries iniciais do ensinofundamental. Hoje, at mesmo o Estado de So Paulo, ainda o estado com maior oferta de ensinofundamental pela rede estadual, ampliou muito sua oferta nas redes municipais, reduzindo adiferena relativa no perfil de atendimento.

    8. O Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profis-sionais da Educao (Fundeb), aprovado pela EC n 53, de 19/12/2006, substituiu o Fundef.

    9. Observe-se que o maior valor previsto o de Roraima, R$ 2.666,53. Os trs estados do Norteque eram territrios federais, Rondnia, Roraima e Amap, tm condies educacionaisdiferenciadas pelo aporte de recursos que a Unio lhes faz at hoje (Fonte disponvel em:www.fnde.gov.br. Acesso em: 27 jan. 2010).

    da Educao Nacional (LDB, Lei n 9.394/96) atenuavam a respon-sabilidade do governo federal no que diz respeito ao percentual dos recursosvinculados a serem aplicados no ensino fundamental, este era responsabilizadopor garantir que os gastos per capita tivessem como patamar mnimo amdia nacional. Se isso fosse realizado, a Unio desempenharia papel equa-lizador mais ativo. O resultado, como se sabe, foi simplesmente o nocumprimento da lei (ARAUJO, 2007).

    Em decorrncia, tem-se a manuteno da diferenciao do atendimentono pas. Tomando-se o momento em que essa foi mais acentuada, no anode aprovao do Fundef (1996), a rede estadual de So Paulo concentrava80% da matrcula total no ensino fundamental e, no outro extremo, oMaranho concentrava 64% em suas redes municipais7.

    Tal diferenciao tambm se manifesta nos padres de financiamentopblico. Enquanto que em So Paulo o Fundeb8 estima, para o ano de 2010,um valor de referncia para o gasto/aluno ano de R$ 2.318,75, para osestados mais pobres, aps a complementao da Unio, o valor de referncia de R$ 1.415,97. Uma diferena de R$ 902,78 ou 63% a mais em favordo estado do Sudeste9.

    Essas constataes pem em confronto as limitaes do federalismofiscal e o objetivo de reduo das desigualdades regionais. A soluo maissimples e direta para a desigualdade regional seria uma reforma tributriaque alinhasse responsabilidades com as polticas sociais e condies finan-ceiras de efetiv-las. Entretanto, os entraves polticos para concretiz-laso histricos. O artigo de Fernando Rezende, nesta coletnea, destacaalguns deles.

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  • 19

    Nessa conjuntura, busca-se atribuir Unio papel supletivo a estados emunicpios. Se no se muda a estrutura tributria, cabvel pensar-se numaao do nvel central no sentido de compensar a desigualdade e aumentara equidade no acesso aos servios pblicos, em particular educao. Entre-tanto, as propostas esbarram na j citada dificuldade da aprovao dareforma tributria. Elas tm de se viabilizar nos limites da estrutura polticavigente, ou seja, tm de se haver com a resistncia dos beneficiados pelomodelo.

    Apenas um exemplo: tem-se 27 Fundefs ou Fundebs e no apenas um,que representaria uma redistribuio muito mais acentuada. O que seadmite alguma, e em geral limitada, ao supletiva da Unio. No caso doFundef, a ideia de complementao da Unio era que esta o faria aos estadoscujo gasto per capita fosse menor que a mdia nacional, at que todosatingissem esse valor. No caso do Fundeb, a complementao prevista limitada a 10% do valor total do fundo, de modo que no necessariamentese atinja a mdia nacional.

    Temos um arranjo federativo que permite disponibilizar a um cidado deSo Paulo, na forma de impostos, mais recursos do que para um cidado daregio Nordeste, mas o voto deste ltimo na composio das casas legisla-tivas nacionais vale mais do que o daquele. O arranjo confere a supremaciaeconmica a So Paulo e, em alguma medida, ao Sudeste, e a supremacialegislativa aos estados menores e mais pobres. Se a troca justa, no seperguntou ao cidado brasileiro a respeito. Foi um arranjo das elites nacio-nais. Corrigir a distoro, ainda que defensvel, complexa tarefa poltica,at o momento sem qualquer perspectiva de sucesso.

    Em vista disso, modificaes no arranjo federativo e/ou na estruturatributria no se encontram no horizonte poltico visvel. Isso faz com quepolticas que tratem do problema tenham de se adaptar a essas condies.

    Nesse momento em que se realiza a Conferncia Nacional de Educao(Conae), e se acena com a elaborao de um novo Plano Nacional deEducao (PNE) ressurge como tema para o debate a ideia de um SistemaNacional de Educao.

    Tal ideia, que teve certa visibilidade durante a discusso da LDB, consistiria:

    (...) no redimensionamento da ao dos entes federados, garantindodiretrizes educacionais comuns a serem implementadas em todo oterritrio nacional, tendo como perspectiva a superao das desigualdades

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  • 10 No captulo final, esta ideia ser desenvolvida.

    regionais. Dessa forma, objetiva-se o desenvolvimento de polticas pblicaseducacionais nacionais universalizveis, por meio da regulamentaodas atribuies especficas de cada ente federado no regime de colabo-rao e da educao privada pelos rgos de Estado. O Sistema Nacional deEducao assume, assim, o papel de articulador, normatizador,coordenador e, sempre que necessrio, financiador dos sistemas de ensino(federal, estadual/DF e municipal), garantindo finalidades, diretrizes eestratgias educacionais comuns, mas mantendo as especificidades prpriasde cada um. (CONAE, Documento base, p. 12) (grifos no original)

    O Sistema Nacional de Educao aproximar-se-ia de uma formulaotipo Sistema nico, cujo paradigma o Sistema nico de Sade (SUS).Nesse caso, ainda que cabvel, a analogia tem srias limitaes. Enquantoque no caso do SUS o atendimento pode ser organizado em funo dagravidade e natureza da enfermidade, podendo o enfermo ser atendido porinstituies de variada dependncia administrativa, isso no possvel nocaso da educao. A forma de cooperao, alm da normativa comum,materializar-se-ia pela via financeira10 ou, quando muito, da assistnciatcnica, enquanto que na sade, a colaborao pode se dar por meio deorganismos independentes.

    A inspirao educacional para a proposta de sistema nico seria a escolanica. J no Manifesto dos Pioneiros da Educao, de 1932, tal ideia aparececomo um objetivo da educao brasileira:

    Assentado o princpio do direito biolgico de cada indivduo suaeducao integral, cabe evidentemente ao Estado a organizao dos meiosde o tornar efetivo, por um plano geral de educao, de estrutura orgnica,que torne a escola acessvel, em todos os seus graus, aos cidados a quema estrutura social do pas mantm em condies de inferioridade econ-mica para obter o mximo de desenvolvimento de acordo com as suasaptides vitais. Chega-se, por esta forma, ao princpio da escola paratodos, escola comum ou nica, que, tomado a rigor, s no ficar nacontingncia de sofrer quaisquer restries, em pases em que as reformaspedaggicas esto intimamente ligadas com a reconstruo fundamentaldas relaes sociais. (...) a escola nica se entender, entre ns, nocomo uma conscrio precoce, arrolando, da escola infantil uni-

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  • 11. Segundo o artigo 60: A Constituio poder ser emendada mediante proposta (...) 4 - Noser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa deEstado;

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    versidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempopossvel a uma formao idntica, para ramificaes posteriores em vistade destinos diversos, mas antes como a escola oficial, nica, em que todasas crianas, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa idade, sejam confiadaspelos pais escola pblica, tenham uma educao comum, igual paratodos (Disponvel em: .Acesso em: 20 fev. 2010).

    Essa proposio, quando da discusso da LDB, foi ofuscada pela maistradicional, que previa trs sistemas de ensino, o federal, o estadual e omunicipal, e pregava alguma cooperao, denominada na lei de regime decolaborao. O Sistema Nacional de Educao enfrenta dificuldadespolticas para ser viabilizado, pois sua adoo implicaria a imediata adesodos entes federados a diretrizes comuns, mas a federao uma clusulaptrea da Constituio.11 Como impor aos entes federados a colaborao eo alinhamento a diretrizes comuns?

    A proposta de Sistema Nacional no vingou, nem na ConstituioFederal de 1988 nem na LDB de 1996. A soluo encontrada pelosconstituintes foi prever um regime de colaborao pressupondo a criao detrs sistemas, ampliando, dos dois nveis existentes at ento, o federal e oestadual, para trs, acompanhando a transformao do municpio em entefederativo. Tal regime previsto no artigo 211:

    A Unio, os estados, o Distrito Federal e os municpios organizaro emregime de colaborao seus sistemas de ensino.

    O dispositivo se ancora no artigo 23 (com as modificaes introduzidaspela EC n 53/2006), que estabelece que a Unio, Estados, Distrito Federal eMunicpios possuem competncias comuns. Segundo o pargrafo nicodesse artigo: as leis complementares fixaro normas para a cooperao entrea Unio e os estados, o Distrito Federal e os Municpios, tendo em vista oequilbrio do desenvolvimento e do bem-estar em mbito nacional.

    Na prtica, uma formulao que expressa o desejo de colaboraoentre os entes federados, mas que no encontra mecanismo de induo ou

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  • 12. Um problema adicional que o texto original de 1988 no estabelecia com clareza a distribuiode competncias, particularmente no que diz respeito oferta do ensino fundamental. A matria originalmente disciplinada no artigo 24: Compete Unio, aos Estados e ao Distrito Federallegislar concorrentemente sobre: (...) IX - educao, cultura, ensino e desporto. No captulo daeducao, essa ideia da competncia concorrente sem hierarquizao permanece. Nos doisprimeiros pargrafos do j citado artigo 211 afirma-se que: 1 A Unio organizar e financiaro sistema federal de ensino e o dos Territrios, e prestar assistncia tcnica e financeira aosEstados, ao Distrito Federal e aos Municpios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensinoe o atendimento prioritrio escolaridade obrigatria. 2 - Os Municpios atuaro priorita-riamente no ensino fundamental e pr-escolar. O dispositivo ser, posteriormente, alterado pelaEC 14/1996.

    13. Sob uma perspectiva mais literal, a ideia de regulamentar o regime de colaborao pode enfrentarum debate complicado acerca de sua constitucionalidade, uma vez que incidiria sobre aconstituio da federao. Tal questo tambm apareceu quando da aprovao do Fundef. Naocasio, o municpio de Recife ingressou com ao cautelar contra a Unio, para que os recursosredirecionados para o Fundef lhe fossem repassados na totalidade e diretamente, sem adentrar naconta destinada quele fundo. Baseou-se o pedido no fato de que os recursos do referido fundoestariam sendo desviados, no sendo aplicados em seus devidos objetivos, alm de apontarinconstitucionalidades na EC 14/96 e na Lei do Fundef . A ao obteve liminar favorvel.O fato, indito em todo o Brasil, foi assunto da mdia regional e nacional. Ainda que derrotada,a ao era plausvel. (Cf. Lauar Filho, 2005) Acompanharam Recife, na ocasio, vriosmunicpios paulistas, conseguindo a liminar correspondente. Em vista disso, nesse estado, emmuitos momentos, o Fundef no valia para alguns municpios.

    de obrigatoriedade, posto que, em princpio, estes so autnomos12. Assim,se os dirigentes dos diferentes sistemas no estiverem predispostos a cola-borar entre si, isso no ocorre. Em casos mais extremos, nem mesmo oplanejamento conjunto da demanda realizado13. Contam-se nos dedos asexperincias exitosas, que permitiriam indicar que se caminha para umnovo ordenamento capaz de superar histricas e profundas desigualdadeseducacionais e sociais.

    Identificado o problema, localizamos trs formas de tentar equacion-lo,a saber:

    propor uma reforma tributria e um Sistema Nacional de Educao.Entretanto, os obstculos que tais propostas enfrentam so to grandesque mais vivel, politicamente, buscar aperfeioar o arranjo existente,ainda que se mantenham na agenda essas proposies;

    implantar mecanismos de financiamento que busquem alinhar oferta deservios com recebimento de recursos. Seriam ajustes nos mecanismos detransferncias constitucionais de impostos, cujos melhores exemplos soos fundos educacionais, como o Fundef e o Fundeb, utilizando-se a parcelada Unio da receita tributria para reduzir as disparidades regionais;

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  • 14. Isso foi corroborado pela LDB que disciplinou a matria nos artigos 10,11 e 87. Art. 10. OsEstados incumbir-se-o de: (...) II - definir, com os Municpios, formas de colaborao na ofertado ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuio proporcional das responsa-bilidades, de acordo com a populao a ser atendida e os recursos financeiros disponveis em cadauma dessas esferas do Poder Pblico; (...) VI - assegurar o ensino fundamental e oferecer, comprioridade, o ensino mdio.(...) Art. 11: Os Municpios incumbir-se-o de: V - oferecer a educaoinfantil em creches e pr-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuaoem outros nveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades desua rea de competncia e com recursos acima dos percentuais mnimos vinculados pelaConstituio Federal manuteno e desenvolvimento do ensino. O artigo 87 estabelecia que:Art. 87. instituda a Dcada da Educao, a iniciar-se um ano a partir da publicao destaLei.(...) 3 Cada Municpio e, supletivamente, o Estado e a Unio, dever(..) I matricular todosos educandos a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental, atendidas as seguintescondies no mbito de cada sistema de ensino: (Lei n 11.114, de 2005)

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    utilizar o poder normativo j estabelecido para a esfera federal a fim deinterferir na gesto dos sistemas, quer seja por meio de diretrizescentralizadoras como a definio dos parmetros curriculares nacionais,generalizao dos sistemas de avaliao, entre outras medidas, quer sejapor meio de repasses de recursos mediante transferncias voluntrias,como o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), o Plano de AesArticuladas (PAR), implantados, respectivamente, nos Governos FHC eLula. So aes implantadas pela Unio que atingem escolas e redesmunicipais, por fora da esfera estadual. Utilizam o significativo poderindutor desta para implantar polticas, princpios de gesto, enfim,prticas de seu interesse. No se pode negar que o objetivo alcanado,particularmente nas redes menores, onde mesmo montantes muitopequenos de recursos podem impactar. Da mesma forma, quando aUnio formula proposies claras, tem grande capacidade de induziroutros entes federados, mesmo sem investimentos de monta. Vale, pois,um olhar mais cuidadoso sobre esses mecanismos.

    REDUZINDO DESIGUALDADESCOM AS TRANSFERNCIAS COMPULSRIAS

    A insuficincia do arranjo vigente j fora reconhecida por ocasio dadiscusso em torno do Fundef. Precedido por uma reforma constitucional, aEC n 14, foi necessrio precisar a distribuio de competncias14 e introduzirmecanismo que forasse, seno a colaborao, pelo menos, a solidariedadeentre diferentes instncias da administrao pblica, na forma de transfe-rncia de recursos dos municpios/estados que tivessem proporcionalmente

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  • menor atendimento para os que tivessem maior. Tal mecanismo mantidocom o Fundeb.

    O Fundef uma redistribuio dos recursos constitucionalmentevinculados educao, regulamentado pela Lei n 9.424/96. A EC n 14modifica a redao do art. 60 do Ato das Disposies ConstitucionaisTransitrias (ADCT), originalmente com a seguinte formulao:

    Nos dez primeiros anos da promulgao da Constituio, o PoderPblico desenvolver esforos, com a mobilizao de todos os setoresorganizados da sociedade e com a aplicao de, pelo menos, cinquentapor cento dos recursos a que se refere o Art. 212 da Constituio, paraeliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental (BRASIL,1988).

    Com esse dispositivo, explicitou-se a prioridade da educao brasileiranos anos posteriores aprovao da Constituio: erradicar o analfabetismoe universalizar o ensino fundamental. Reconhecia-se a excluso de parcelasignificativa da populao de um dos direitos bsicos da cidadania e anecessidade de fazer valer o direito educao mnima para todos. Aomesmo tempo, a previso de que 50% dos recursos vinculados seriamdestinados a esse fim implicaria o aumento substancial dos gastos da Uniocom a educao obrigatria. Entretanto, ao no cumprir o dispositivo,reduziu substancialmente seu compromisso com essa etapa da educaobsica.

    Em 1995, ao assumir o governo federal, Fernando Henrique Cardosoviu-se ante um dispositivo constitucional crucial para a educao que noera cumprido. Ao mesmo tempo, havia dois problemas a equacionar: odesequilbrio existente em relao maior ou menor presena dos diferentesgovernos estaduais e municipais no atendimento demanda pelo ensinofundamental, expresso no atendimento desigual por parte de estados emunicpios das diferentes regies do pas; e o atendimento previsoconstitucional de instituio de um piso salarial nacional para o magistrio.Este ltimo era reforado pelo acordo feito por ocasio da ConfernciaNacional de Educao, de 1993, que aprovou o Plano Decenal de Educao.Nessa ocasio, o Ministrio da Educao e a Confederao Nacional dosTrabalhadores em Educao (CNTE) haviam acordado com o estabelecimentode um piso salarial nacional para o magistrio de R$ 300,00.

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    Para equacionar a questo, o governo prope emenda Constituioque, ao ser aprovada (EC n 14/1996), estabelece o seguinte:

    Art. 5 alterado o art. 60 do ADCT e nele so inseridos novos par-grafos, passando o artigo a ter a seguinte redao:

    Art. 60. Nos dez primeiros anos da promulgao desta emenda, osEstados, o Distrito Federal e os Municpios destinaro no menos desessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 daConstituio Federal, a manuteno e ao desenvolvimento do ensinofundamental, com o objetivo de assegurar a universalizao de seuatendimento e a remunerao condigna do magistrio.

    1 A distribuio de responsabilidades e recursos entre Estados e seusmunicpios a ser concretizada com parte dos recursos definidos nesteartigo, na forma do disposto no Art. 211 da Constituio Federal, assegurada mediante a criao, no mbito de cada Estado e do DistritoFederal, de um Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do EnsinoFundamental e de Valorizao do Magistrio de Natureza Contbil(BRASIL, 1996a).

    J nesse pargrafo explicita-se a criao do Fundef, reequacionando aaplicao dos recursos financeiros em educao no pas, permitindo emtese, pelo menos em nvel estadual, um compromisso mais equilibradoentre estados e municpios (PINTO, 2000). Em seguida, afirma-se que ofundo de natureza contbil. Ele altera os multiplicadores incidentessobre impostos transferidos para estados e municpios e de estados paramunicpios. Todos, municpios e estado, contribuem para o fundo e retiramrecursos dele, satisfeitas determinadas condies. Considerando-se o resul-tado dessa diferena entre contribuio e recebimento do Fundo aplicadauma correo aos percentuais das transferncias originais.

    Em seu 3, estabelece-se a participao da Unio:

    A Unio complementar os recursos dos Fundos a que se refere o 1,sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, seu valor por alunono alcanar o mnimo definido nacionalmente (BRASIL, 1996a).

    Apresenta-se aqui o mecanismo de funcionamento do fundo. A ideia estabelecer uma mdia nacional de gasto possvel por aluno, provenienteda diviso de 15% da soma do total nacional de transferncias constitu-

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  • cionais mencionadas acima pelo nmero de alunos matriculados no ensinofundamental regular no pas. Processo semelhante seria realizado em cadaestado, estabelecendo-se, assim, anualmente, o gasto possvel por estado.Na hiptese de determinado estado no atingir a mdia naci onal, a Uniocomplementaria seus recursos at atingi-la, o que funcionaria como umaao redutora da desigualdade entre os estados. Com esse mecanismo, ovalor nacional seria o gasto mnimo nacional por aluno/ano:

    6 A Unio aplicar na erradicao do analfabetismo e na manuteno eno desenvolvimento do ensino fundamental, inclusive na comple -mentao a que se refere o 3, nunca menos que o equivalente a trintapor cento dos recursos a que se refere o caput do Art. 212 da ConstituioFederal (BRASIL, 1996a).

    Nesse pargrafo, estabelece-se o montante da contribuio da Unio.Apesar de tratar de matria idntica do caput, diferentemente da redaooriginal do art. 60 do ADCT, esta aparece num pargrafo, evidenciandouma complementaridade ao papel de estados e municpios, inexistenteanteriormente. Alm do mais, a presena, nesse artigo, da palavra equi-valente permite a interpretao que os recursos destinados a essa comple-mentao no necessariamente seriam provenientes daqueles previstos noart. 212, os vinculados constitucionalmente. Estes serviriam apenas deparmetro para estabelecer um quantum equivalente da contribuio daUnio, o qual poderia provir de outras fontes, especificamente do salrio-educao, como se verificou posteriormente.

    De fato, com a regulamentao do Fundef, por meio da Lei n 9.424/1996, o Legislativo tentou impedir que recursos do salrio-educao fossemdirecionados a essa complementao, pelo fato de ele j ser destinado, naocasio, exclusivamente ao ensino fundamental. A restrio foi vetada pelopresidente da Repblica e este e os outros vetos jamais foram apreciadospelo Congresso Nacional. No entanto, os recursos utilizados para comple-mentar o per capita mnimo de cada estado originar-se-iam de uma fonteque, obrigatoriamente, j seria aplicada nessa etapa da educao bsica.Equivale dizer que o governo federal no investiu recursos oramentrios,desembarcando do financiamento do ensino fundamental. Assim, oprodgio das iniciativas polticas tomadas em 1996 consistiu em o governofederal desobrigar-se de gastar com o ensino fundamental, aumentar aresponsabilidade dos demais entes federados e, concomitantemente,conseguir passar-se por um governo que priorizava essa etapa de ensino.

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  • 15. O Fundeb destinou-se fundamentalmente a superar a concentrao de recursos no ensinofundamental realizado pelo Fundef. Esse seu aspecto mais positivo: estabelecer um mecanismode financiamento de toda a educao bsica.

    16. Da mesma forma, positiva a proibio de utilizao dos recursos do salrio-educao para acomplementao da Unio. (art. 60, IV, ADCT).

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    Desta exposio, observa-se que, no que diz respeito disputa polticaengendrada pelas modificaes implantadas com o Fundef, o embateprincipal circunscreveu-se ao da definio do montante da contribuio daUnio ao fundo, expresso no empenho para que tal repasse fosse realizadocom recursos oramentrios. Quanto maior a contribuio da Unio, maiorseu apoio reduo da desigualdade nacional e vice-versa. Essa uma questode orientao poltica, pois pressupe a definio de no atendimento deoutra rea ou, no limite, de ampliao da parcela de impostos disponibi-lizados para a educao pela Unio.

    O no cumprimento da lei do Fundef por parte da Unio representoutanto uma reduo do potencial equalizador do mesmo quanto foi umobstculo importante no processo de negociao do Fundeb15 (aprovadopela EC n 53/2006).

    Se a lei do Fundef fosse cumprida, um nmero maior de estados rece-beria recursos federais, aumentando o seu gasto por aluno e os que efetivamentereceberam, receberiam mais por aluno. A consequncia que o gasto/alunomdio nacional seria aumentado, reduzindo mais fortemente a desigualdade.

    No que diz respeito negociao em torno do Fundeb, a frmula quese pactuou para estabelec-la limita a contribuio a 10% do total do fundo.Isso significa que seu potencial de reduzir desigualdades menor que oFundef, ainda que sua abrangncia, em termos de etapas e modalidades deensino, seja maior. Certamente, caso se mantivesse a perspectiva do Fundef(elevar os valores dos estados mais pobres mdia nacional), haveriamaior necessidade de recursos da Unio para a complementao ao fundo.No caso do Fundeb, a limitao estabelecida pelo inciso VIII do artigo 60do ADCT cria a necessidade de aportes de recursos novos educao:

    VIII - a vinculao de recursos manuteno e desenvolvimento doensino estabelecida no art. 212 da Constituio Federal suportar,no mximo, 30% (trinta por cento) da complementao da Unio,considerando-se para os fins deste inciso os valores previstos no inciso VIIdo caput deste artigo16;

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  • 17. Uma nao ameaada: o imperativo da reforma educacional (A Nation at Risk: The Imperativefor Educational Reform), documento elaborado pela Comisso Nacional para a Excelncia naEducao, dos Estados Unidos, desencadeou uma onda reformista na educao americana nosanos 1980 e 1990, com influncia nas polticas em muitos outros pases.

    Alm do mais, h uma mudana importante: a lei do Fundeb est sendocumprida. Isso faz com que mesmo que sua concepo equalizadora sejamais tmida que a do Fundef, na prtica, tem representado maior aporte derecursos por parte da Unio ao ensino bsico.

    O impacto das polticas de fundos conhecido. Ampliaram o atendi-mento das redes municipais, inclusive no Nordeste, reduziram a desigual-dade de recursos disponveis entre diferentes redes no interior de cada estado,aumentaram os salrios aviltantes existentes anteriormente sua implantao(salrios inferiores a um salrio mnimo), impulsionaram o processo de univer-salizao do ensino fundamental. No entanto, a limitao dos montantesutilizados pela complementao da Unio, no caso do Fundef por nocumprimento da legislao, e no caso do Fundeb, por limitao do montantena lei, reduziu o impacto equalizador que as propostas poderiam ter.

    A COLABORAO QUE VEM DO CENTRO

    Outra dimenso da relao entre os entes federados se d a partir dosprogramas do governo federal que afetam a educao dos estados emunicpios. Nesse sentido, interessante situar o perodo que se inicia coma aprovao da Constituio de 1988. O esprito que orientou boa parte dosdebates travados na ocasio tomava como ponto de partida a crtica aocentralismo da ditadura militar em matria educacional, realando-se adiversidade nacional e a autonomia dos entes federados.

    Alm do mais, o perodo aps 1988 conclui processo histrico de demo-cratizao da educao, no sentido de ampliao do acesso, sendo marcado,nos anos 1990, pela universalizao do ensino fundamental, que modificaprofundamente o cenrio educacional brasileiro. A universalizao do ensinofundamental faz com que a expanso das outras etapas da educao bsicae do nvel superior se apresente como problema central, ao mesmo tempo emque explicita a necessidade de melhorar a qualidade do ensino fundamentale mdio (OLIVEIRA, 2006, 2007; OLIVEIRA; ARAJO, 2005).

    As reformas educacionais conduzidas em escala mundial, no contexto deglobalizao da economia, partem da ideia fora de alterao na relaocentralizao/descentralizao (OLIVEIRA, 1999, 2006). Empreendidascomo reao ao diagnstico explicitado no documento A Nation at Risk 17,

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  • 18. Os vouchers so mecanismos de provimento do ensino em que os recursos pblicos so destinadosaos pais e estes escolhem a escola que mais lhes agrada, podendo ser pblica ou privada. Seria amaterializao, por excelncia, da concepo neoliberal em educao. As charter schools consistemna transferncia da gesto de escolas pblicas para cooperativas de pais, professores ou mesmoempresas, que receberiam recursos pblicos proporcionalmente ao nmero de alunos atendidose, em alguma medida, do seu desempenho.

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    de 1983, estruturavam-se, nos termos de Benjamin Levin (2001), em trscaractersticas: ampliao dos mecanismos de escolha (choice); descentralizaodos mecanismos de gesto, gesto financeira e financiamento e, finalmente,pela centralizao do poder de definir os parmetros de qualidade, o curr-culo e a avaliao do sistema.

    Das trs caractersticas, no Brasil, no se difundiu a ideia de choice, cujaspolticas mais tpicas seriam os vouchers ou as charter schools18. As outras duasso observveis na poltica educacional nos ltimos anos.

    Entre os mecanismos de descentralizao financeira pode-se mencionaro Fundef, com forte impacto municipalista, o discurso da autonomia daescola e o que se chama de school based management (gesto baseada naescola) que, entre ns, foi traduzido nas formulaes que enfatizam oprotagonismo do diretor de escola, o estmulo s unidades escolares buscaremfinanciamento autonomamente via programas do tipo adote uma escolaou parcerias.

    No que se refere aos processos de centralizao, vale uma anlise maisdetalhada, pois se relacionam diretamente com a relao entre os entesfederados e os novos mecanismos de induo de polticas utilizados pelogoverno federal. Isso ser feito concentrando nosso foco nos governos dosdois ltimos presidentes, Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula(2003-2010).

    A primeira modificao que vale mencionar a extino do antigoConselho Federal de Educao (CFE), por meio de medida provisria,aprovada pela Lei n 9.131, de 24/11/1995, substituindo-o pelo ConselhoNacional de Educao (CNE). Para os nossos propsitos, a alteraoimportante consta do artigo 2: As deliberaes e pronunciamentos doConselho Pleno e das Cmaras devero ser homologados pelo Ministrode Estado da Educao e do Desporto. A medida subordina o Conselho aoMinistrio da Educao, diferentemente do que ocorria com o CFE. Aindaque a extino do CFE seja plenamente justificvel, tendo em vista sua

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  • 19. Em Sousa (2001) so caracterizadas as iniciativas de avaliao do ensino pblico no Brasil, apartir da dcada de 1990.

    trajetria, a medida representou um fortalecimento do governo federal naeducao, posto que no s manteve o poder de indicar os membros dorgo normativo do sistema federal e intrprete da LDB (que j existia),mas subordinou as decises do colegiado ao Executivo.

    A segunda a elaborao dos Parmetros Curriculares Nacionais.Os parmetros emergem com a aprovao da LDB e substituem a estruturaanterior, que estabelecia a existncia de currculos mnimos nacionais.Ainda que no obrigatrios, passam a ser utilizados para elaboraodas provas de testagem em larga escala, adquirindo, em funo disso, acaracterstica de serem tendencialmente compulsrios, uma vez que a opopor no segui-los pode acarretar prejuzos ao sistema de ensino nos processosde avaliao.

    Isso nos remete para o aspecto mais centralizador das iniciativas depoltica educacional dos ltimos tempos, os processos de avaliao em largaescala. A centralizao manifestou-se pelo estabelecimento de exames ouavaliaes para todos os nveis do sistema. Em mbito federal, registram-seiniciativas tais como: o Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica(Saeb), ampliado com a Prova Brasil, o Exame Nacional do Ensino Mdio(Enem) e no ensino superior, o Exame Nacional de Cursos (ENC), conhe-cido como Provo, voltado para os cursos de graduao, substitudo peloSistema Nacional de Avaliao da Educao Superior (Sinaes), almda avaliao da ps-graduao, que realizada desde 197619. Ainda quevalendo-se de metodologias e objetivos distintos, que no vem ao casodiscutir nos limites deste texto, do ponto de vista da gesto do sistema, elespretendem ser o instrumento que propicia, aos nveis decisrios, capacidadede induo de polticas e controle dos segmentos avaliados. Esse redimen-sionamento faz com que os responsveis pela definio do que dever serexaminado passem a deter poder indutor sobre o conjunto do sistemaeducacional, sem ter que arcar com o nus de eventuais insucessos na gestodireta. o controle que se exerce distncia.

    O governo federal passa a exercer, por meio das avaliaes, uma funoestratgica na coordenao das polticas, induzindo e controlando progra-mas e aes. Desse modo, os diferentes mecanismos de avaliao permi-

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    Miolo_federalismo:Miolo_Jornalismo_Cidadao March/18/10 3:05 PM Page 30

  • 20. Da mesma forma, a Unio no dispunha de mecanismos administrativos que lhe permitiriamcontrolar os processos educacionais nas outras esferas da educao pblica, como os mecanismosavaliativos lhe proporcionam.

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    tiram uma nova centralizao do sistema, implementando um padro decontrole que substituiria o controle direto, realizado por meio de umaestrutura hierrquica, formada por rgos intermedirios compostos porfuncionrios das funes de inspeo e superviso, por mecanismos deaferio do controle do produto, ou seja, os exames padronizados20.

    A substituio de um padro pelo outro bastante desigual no pasdevido s dificuldades polticas de implementao, j havendo, entretanto,indcios de que o processo prospera. Uma evidncia a criao de sistemasprprios de avaliao, por estados e municpios, nos moldes estabelecidospelo Saeb.

    Essa difuso de uma cultura avaliativa baseia-se na expectativa de quea simples divulgao dos resultados obtidos por sistemas e por escolasinduza a melhoria de qualidade, tanto por meio de iniciativas autnomasdos prprios sistemas e escolas quanto como resultado de uma maiorpresso da comunidade de usurios. Aparentemente, estamos ingressandoem uma nova etapa desse movimento, com a utilizao de resultados dessesprocessos avaliativos como parmetros para tomada de decises de gestodos sistemas de ensino. Um exemplo a da utilizao do ndice de Desen-volvimento da Educao Bsica (Ideb) para o estabelecimento e controle demetas a serem cumpridas por estados e municpios. Associam-se a estesconsequncias, como adicionais (bnus) a professores, vinculando-se incentivosaos resultados de avaliao de desempenho de alunos e/ou de professores.

    Finalmente, destacam-se os programas implantados pelo governo federalque buscam influir diretamente sobre unidades escolares ou sobre municpios.Entre os primeiros, pode-se citar o programa Dinheiro Direto na Escola(PDDE) em que a unidade escolar recebe determinada soma para realizaratividades pactuadas. No caso do PAR, o ministrio fornece assessoria aestados e municpios, o que inclui ajuda financeira queles com baixos Idebspara que elaborem planos de melhoria, ainda que num primeiro momentoapenas os municpios tenham sido objeto dessa ao. Tanto em um casoquanto no outro, o governo federal passa ao largo da rede estadual, no casodo PAR e dos prprios sistemas que administram a escola no caso do PDDE(ADRIO, 2007; PERONI; ADRIO, 2007).

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  • Dessa forma, na ausncia de uma modificao legal mais ampla, queestabelea um sistema nacional de educao ou uma reforma tributria, asrelaes entre os entes federados, quando ocorrem, se do de maneirabastante assimtrica, comportando, portanto, uma discusso mais acuradana perspectiva do estabelecimento de aes pactuadas e sistmicas.

    Voltando ao ponto de partida, identificamos um problema federativo noque diz respeito educao. Os captulos que se seguem trazem informaes,anlises e pistas que possibilitam aprofundar a compreenso dos impassesindicados, contribuindo para que se equacionem alternativas capazes detornar realidade o direito educao no contexto do Estado brasileiro.

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  • Subchefia de Assuntos Jurdicos da Casa Civil da Presidncia da Repblica:Leis Ordinrias. Braslia: Casa Civil da Presidncia da Repblica do Brasil,1996c. Disponvel em: . Acesso em: 25 jun. 2007.

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  • Parte I

    REFERNCIAS GERAISSOBRE O REGIMEFEDERATIVO NO BRASIL

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  • A DINMICA FEDERATIVADA EDUCAO BRASILEIRA:DIAGNSTICO E PROPOSTASDE APERFEIOAMENTOFernando Luiz Abrucio

    1. Como excees, poderamos destacar, entre os principais, os trabalhos de CURY (2006 e 2008),WERLE (2006), OLIVEIRA, (1997) e, o mais completo de todos, que a tese de doutorado deGilda Cardoso de Araujo (2005).

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    Vrios fatores influenciam as polticas educacionais brasileiras. Algunstm obtido maior destaque nas pesquisas da rea, mas outros so ainda poucoestudados. Esse o caso do impacto do federalismo no funcionamento enos resultados da educao no pas1. O presente captulo defende a ideia deque muito difcil entender o atual modelo educacional e buscar seuaperfeioamento sem compreender a dinmica federativa, tanto a mais geralcomo a que atua especificamente no setor.

    Partindo desse pressuposto, o texto procura inicialmente mostrar comoo federalismo brasileiro afeta as polticas pblicas. Depois de uma rpidadiscusso conceitual e histrica, o argumento se concentra na dinmicafederativa recente, iniciada pela Constituio de 1988. Desse processo, sodestacados tanto as novidades e avanos, quanto os dilemas para imple-mentar polticas descentralizadas num pas bastante heterogneo, desigual emarcado por significativas tenses intergovernamentais. Um arco de soluestem sido proposto para enfrentar o desafio. O exemplo mais citado e comgrande influncia sobre os demais setores o da sade, particularmente autilizao do conceito de sistema. A transposio dessa lgica para a edu-cao j foi sinalizada pela Emenda Constitucional n 59, o que traz aspectospositivos, mas preciso conhecer bem as potencialidades, a especificidade e

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  • os limites do Sistema nico de Sade (SUS) e outras prticas equivalentespara evitar uma mera mimetizao poltica educacional.

    Para evitar a transposio mimtica de solues, preciso analisar arelao mais especfica da educao com a histria do federalismo brasileiro.No se pretende aqui expor exaustivamente essa conexo, mas sim, explorarseus pontos mais importantes. Na sesso dedicada ao assunto, estaro emdestaque as questes do dualismo de competncias, da hierarquia perversana definio das funes dos entes e, por fim, a dificuldade de se criarmecanismos de coordenao intergovernamental em meio crescentecomplexificao do sistema educacional.

    A sesso seguinte trata do perodo que vai da Constituio de 1988 aosdias atuais. A nova Carta Constitucional procurou atacar os males histricosda poltica educacional brasileira, inclusive os localizados em sua dinmicafederativa. Houve grandes avanos no direito educao e a questo territorialfoi definida como estratgica nesse processo. Trs temas tornaram-se pea-chave do novo modelo da poltica pblica: a descentralizao, em especialna sua traduo como municipalizao, forma tomada como capaz de gerartanto a melhora da gesto como a democratizao do sistema de ensino;a previso de polticas nacionais orientadoras e planejadoras, nas formasda LDB e do Plano Nacional de Educao; e um diferenciador da educaofrente aos outros setores, a proposio de um regime de colaborao entreos nveis de governo como instrumento que garantiria a boa implementaoda poltica em todos os seus ciclos, em especial na educao bsica.

    A trajetria da poltica, no entanto, no se deu exatamente como definiaa Constituio e alguns problemas no previstos surgiram no caminho.Diante dessas dificuldades, as duas ltimas dcadas foram marcadas poralteraes legais constitucionais ou infraconstitucionais , pela criao denovos programas direcionados ao nvel municipal (como ajuda s prefei-turas e o de repasse de poder e recursos comunidade local) e pela ativaode arenas intergovernamentais, tendo como objetivo definir melhor ofuncionamento da educao em sua dinmica federativa. Em poucas pala-vras, buscava-se garantir o sucesso da combinao da descentralizao comdiretrizes nacionais e cooperao intergovernamental maior. No curto espaode que dispe, o texto se prope a compreender a motivao, o processodecisrio e os resultados das mudanas.

    Ao final, pretende-se avaliar como a dinmica federativa pode ser aper-feioada em prol da melhoria da educao, conjugando o regime de colabo-rao com um sistema nacional.

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    O IMPACTO DO FEDERALISMO NAS POLTICAS PBLICAS:O CASO BRASILEIRO

    O federalismo uma forma de organizao territorial do Estado e, comotal, tem enorme impacto na organizao dos governos e na maneira comoeles respondem aos cidados. Isso porque o processo de deciso e sua basede legitimao so distintos do outro modelo clssico de nao, o Estadounitrio.

    Enquanto no Estado unitrio o governo central anterior e superior sinstncias locais, e as relaes de poder obedecem a uma lgica hierrquicae piramidal, nas federaes vigoram os princpios de autonomia dos governossubnacionais e de compartilhamento da legitimidade e do processo deci-srio entre os entes federativos. Desse modo, possvel ter mais de um agentegovernamental legtimo na definio e elaborao das polticas pblicas,alm de ser necessria, em maior ou menor medida, a ao conjunta e/ou anegociao entre os nveis de governo em questes condicionadas inter-dependncia entre eles.

    O funcionamento de uma federao deriva, em boa medida, do seuprprio sentido etimolgico: a palavra vem do latim foedus, que significapacto (ELAZAR, 1987), de tal modo que este arranjo territorial de poderenvolve um (...) acordo capaz de estabelecer um compartilhamento dasoberania territorial, fazendo com que coexistam, dentro de uma mesmanao, diferentes entes autnomos e cujas relaes so mais contratuaisdo que hierrquicas. O objetivo compatibilizar o princpio de autonomiacom o de interdependncia entre as partes, resultando numa diviso defunes e poderes entre os nveis de governo (ABRUCIO E FRANZESE,2007).

    Mas antes de ser uma mera escolha por uma forma de Estado, o federa-lismo deriva, em grande medida, de duas condies que levam adoodesse desenho poltico-territorial (BURGESS, 1993). A primeira a existnciade heterogeneidades que dividam uma determinada nao. Elas podem serterritoriais (grande extenso e/ou enorme diversidade fsica), lingusticas,tnicas, socioeconmicas (desigualdades regionais), culturais e polticas(diferenas no processo de formao das elites dentro de um pas e/ou umaforte rivalidade entre elas).

    Para construir uma nao marcada por tais heterogeneidades, precisodar conta de uma segunda condio: construir uma ideologia nacional,

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  • alicerada por instituies, que se baseie no discurso e na prtica da unidadena diversidade. Desse modo, pases que tm diversidades ou desigualdadesvariadas, como os Estados Unidos, a ndia, a Rssia, o Canad, a Alemanha,a Indonsia, o Mxico e, obviamente, o Brasil, precisam lidar com a natu-reza profunda de tais naes. O federalismo o principal instrumento paralidar com esse processo.

    No h uma frmula nica que oriente as federaes. Os pases federa-tivos tm heterogeneidades e trajetrias histricas diferentes, de modo queas solues precisam se adequar a tais especificidades. Todavia, quatroelementos so essenciais para o sucesso desta forma de Estado. O primeiro a compatibilizao entre autonomia e interdependncia dos entes, o quesupe a existncia de pelo menos dois nveis de governo autnomos e anecessidade de cooperao intergovernamental e de aes voltadas inte-grao nacional. Em segundo lugar, preciso garantir os direitos federativos,por intermdio da Constituio e de sua interpretao normalmente feitapor cortes constitucionais , alm de ter como objetivo a garantia dadiversidade sociocultural e/ou da reduo das assimetrias socioeconmicasentre as esferas governamentais. Devem-se tambm instituir arenasinstitucionais que garantam aos pactuantes (governo federal e governossubnacionais) trs coisas: sua representao poltica, o controle mtuo entreeles e espaos pblicos para deliberao, negociao e, em muitas ocasies,deciso sobre assuntos com impacto intergovernamental. Por fim, dado quevrios dos problemas de ao coletiva no podem ser resolvidos por apenasum nvel de governo, as polticas pblicas tm de ser montadas com vistasem garantir a coordenao entre todos os atores territoriais.

    A opo pelo federalismo significa, em grande medida, uma complexi-ficao tanto do processo decisrio como de sua legitimao, uma vez quecresce o nmero de atores e de arenas capazes de definir os rumos da aocoletiva. Tal conformao institucional contm potencialidades democrticas,como a aproximao dos governos de suas comunidades (pela via da descen-tralizao), o respeito s peculiaridades regionais dentro de uma nao e aadoo do princpio da barganha e da negociao como balizadores doprocesso poltico. Entretanto, do mesmo modo, podem surgir problemasadvindos dessa forma de Estado, como a dificuldade em conciliar osinteresses locais com os gerais e a necessidade de coordenar diversos esforosintergovernamentais para atuar numa mesma poltica, num jogo que no naturalmente cooperativo. Na verdade, a dinmica federativa muitas vezes

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    pode ser marcada pela falta de clareza sobre a responsabilidade dos entes;em outras, pela competio desmedida entre os nveis de governo.

    E como o Brasil tem lidado com sua condio federalista e quais soluesfederativas adotou ao longo da histria? Primeiramente, cabe lembrar que opas tornou-se independente em 1822, adotando a forma unitarista, comum governo central que tinha grandes poderes sobre as ento provncias eas municipalidades. Isso no significa que no houvesse heterogeneidadesconstitutivas da nao. Duas delas eram marcantes. Uma foi o fato de queo imenso territrio brasileiro fora colonizado de formas diferentes, mesmotendo o mesmo colonizador. Produziu-se, dessa maneira, o que poderamoschamar de regionalismos, com costumes diversos, especificidades de lingua-gem e elites com formas de reproduo e projetos de poder particulares.

    Alm dessa heterogeneidade, a desigualdade e a diversidade entre asregies e provncias criavam a necessidade de uma poltica de integraonacional compatvel com a autonomia pleiteada, em maior ou menormedida, pelas elites e as sociedades locais. Mas, em vez da adoo dofederalismo para enfrentar o problema, o pas optou por um modelo unitrio-centralizador, principalmente porque tinha tido no perodo regencial umaexperincia descentralizadora que quase o levara ao esfacelamento territorial(CARVALHO, 1993: 54). Diante desse trauma, o Segundo Reinado adotouuma forte centralizao, com a concentrao dos tributos no governocentral e com o imperador escolhendo os presidentes de Provncia, queeram os governadores da poca (ABRUCIO, 1998). O modelo polticoresultou, na viso de muitos historiadores, na manuteno da integridadeterritorial, num continente marcado pela fragmentao, e nos primeirospassos na construo de um sentimento de nacionalidade.

    O modelo centralizador, entretanto, tinha bases muito frgeis, uma vezque as elites polticas brasileiras eram basicamente localistas e com padrespolticos fortemente oligarquizados. Elas s mantiveram o apoio monar-quia enquanto a escravido existiu o seu fim precipitou a queda doimperador e da forma unitria de Estado. Com a proclamao da Rep-blica, nasce a federao brasileira, cujo mote principal era o repasse dopoder de autogoverno para os estados os municpios eram bastante frgeise dependentes dos governos estaduais, como demonstrou a anlise clssicade Vitor Nunes Leal (1986). O fato que o federalismo brasileiro, em suasorigens, foi bastante centrfugo, sem que houvesse uma proposta de naoe interdependncia entre as partes.

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  • A Primeira Repblica construiu um federalismo baseado num autono-mismo estadual oligrquico, s custas do enfraquecimento das municipa-lidades, das prticas republicanas e do governo federal. O modelo acaboupor aumentar a desigualdade territorial no Brasil, uma das caractersticasmais importantes da federao brasileira. Ademais, a autonomia dos estadossem um projeto nacional levou a duas consequncias: atrasou a adoo deaes nacionais de bem-estar social e produziu uma enorme heterogeneidadede polticas pblicas pelo pas na verdade, poucos governos estaduaisexpandiram as polticas sociais, como revela bem a rea educacional.

    O federalismo sofreu grandes modificaes com a Era Vargas. Primeiro,com a maior centralizao do poder, fortalecendo o Executivo Federal.Em segundo lugar, houve uma expanso de aes e de polticas nacionaisem vrias reas, inclusive na educao. Ambas as mudanas, no entanto,foram implementadas principalmente no perodo autoritrio do EstadoNovo, problema ao qual se soma o prprio enfraquecimento da federao.Na verdade, os governos subnacionais tiveram seu poder federativosubtrado e suas mquinas pblicas no foram modernizadas para dar contados nascentes direitos sociais ao contrrio, enquanto o mrito comeava ase instalar em algumas ilhas de excelncia do plano federal, o patrimo-nialismo foi pouco modificado em estados e, principalmente, municpios(ABRUCIO, PEDROTI & P, 2009).

    O perodo democrtico que vai de 1946 a 1964 fez importantes modi-ficaes em prol da maior democratizao e federalizao do pas, com aocorrncia de eleies razoavelmente competitivas e regulares, comotambm com o maior poder conferido a estados e de forma indita municpios. Mas a atuao do governo federal continuou expandindo-se nocampo das polticas pblicas, ainda sob o signo do modelo varguista,inaugurando ainda aes de combate s desigualdades regionais apesar doresultado limitado destas. As relaes intergovernamentais tornaram-se maisequilibradas em termos de convivncia entre autonomia e interdependncia.O problema que permaneceu importante, embora j sendo contestado nosestados e cidades maiores, foi o baixo grau de democratizao e republi-canizao no plano local.

    S que todo esse processo foi interrompido com o golpe de 1964.A ditadura militar no s mandou s favas a democracia, como igualmenterompeu com o federalismo que estava se fortalecendo no pas. Em seu lugar,construiu um modelo centralizador e tecnocrtico de Estado, que reduziu

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    muito a autonomia dos governos estaduais e municipais. O interessante notar, como j fez exemplarmente Sonia Draibe (1994), que as polticas deWelfare tiveram nesses anos autoritrios o seu perodo de maior expanso,incluindo-se a a questo educacional. O avano se deu em prol, basica-mente, da massificao dos programas, embora a universalizao no tenhasido atingida. Cabe frisar que tal ampliao estatal, a despeito da suaconcepo e formulao tecnocrtica, no eliminou a relao clientelistacom estados e municpios (MEDEIROS, 1986).

    De qualquer modo, a criao de uma rede de programas e serviosdurante a ditadura militar criou um legado de polticas cujos efeitos, em boaparte, ainda afetam vrios setores. Como destaques dessa continuidade, aviso centralizadora e o maior poder da Unio frente s outras esferas degoverno, cujas gestes continuaram muito dependentes do governo federale que foram, no geral, muito pouco modernizadas.

    A redemocratizao do pas colocou em questo o modelo centralizadore autoritrio. A Constituio de 1988 vai ser a consagrao desse processo,propondo novas formas de organizar as polticas pblicas. A varivel federativateve um papel especial nessa mudana, como se ver tambm, mais adiante,no caso da educao.

    REDEMOCRATIZAO, FEDERALISMO E POLTICAS PBLICAS:NOVIDADES, PROBLEMAS E NOVAS SOLUES

    No plano das polticas pblicas, h cinco grandes pilares presentesna Constituio de 1988. O primeiro o da busca da universalizaodas polticas, com o intuito de obter a garantia plena dos direitos sociais.O segundo o da democratizao da gesto estatal, tanto no que se refere participao no plano deliberativo, como no campo do controle do poderpblico. O terceiro o da profissionalizao da burocracia, por meio dosconcursos e carreiras pblicas, tomada como uma condio essencial para aqualidade na formulao e implementao das aes governamentais.Os dois ltimos pilares so interligados e fazem parte da dinmica federativa.Trata-se da descentralizao, preferencialmente em prol da municipalizaodas polticas, e a preocupao com a interdependncia federativa, na formade medidas de combate desigualdade, de preocupaes em torno dacooperao intergovernamental e da definio de um raio importante deaes federais como agente nacional.

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  • A efetivao e a combinao entre esses cinco pilares, contudo, no sedeu exatamente como previa o esprito das normas constitucionais. Nasltimas duas dcadas, reformulaes institucionais e nos programas foramfeitas para colocar em prtica ou, em alguns casos, reinterpretar essesprincpios, tanto no plano mais geral como no mais especfico das polticaspblicas. Pretende-se, aqui, analisar sinteticamente como isso se deu nocampo federativo.

    O principal mote do novo federalismo inaugurado pela Constituio de1988 foi a descentralizao. Processo que significava no s passar mai