Educação em perspectivas epistêmicas pós-modernas

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A obra tem por objetivo responder aos educadores algumas indagações com um olhar contemporâneo. Cada capítulo se constitui num exercício didático-pedagógico que ajuda a professores pesquisadores e a todos os interessados em assuntos educacionais, fornecendo subsídios teóricos e práticos. O foco da obra é a metodologia utilizada pelos educadores para transmitir conhecimento.

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Chapecó, 2010

Educação em perspectivas epistêmicas pós-modernas

Ireno Antônio Berticelli

Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Luiza de Souza LajúsVice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski

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Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Ricardo Rezer

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Conselho Editorial: Rosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente),

César da Silva Camargo, Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato, Maria Luiza de Souza Lajús, Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer,

Tania Mara Zancanaro Pieczkowski

Coordenadora: Maria Assunta Busato

370.1 Berticelli, Ireno Antônio B543e Educação em perspectivas epistêmicas pós-modernas / Ireno Antônio Berticelli. – Chapecó, SC : Argos, 2010. 340 p. (Grandes Temas ; 12) ISBN: 978-85-7897-025-3 1. Educação - Filosofia. 2. Epistemologia I. Título. CDD 370.1

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

Sumário

Apresentação

Da escola utópica à escola heterotópica:educação e pós-modernidade

Introdução Do utópico ao heterotópico

A nova lógica do espaço no tempoHeterotopia e ruptura do isolamento

Heterotopia ameaçada por uma nova utopia?Considerações finais

Referências

Educação: auto-organização e complexidadeIntrodução

Auto-organização: produção da diferençaAuto-organização e complexidade: paradigmas

interpretativos do processo educacional Epistemologia emergente

Considerações finaisReferências

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O currículo como prática discursiva nas reentrâncias da hermenêutica

IntroduçãoCurrículo na trama da linguagem

Depois da virada linguísticaCurrículo e hermenêutica

Historicidade dos fundamentos do currículoO currículo: produto do interpretar e

modo de entender o mundoCurrículo e espaço

Não diga “grade” curricular, diga “matriz” curricularDa teoria e da práticaConsiderações finais

Referências

Crítica da razão: anátema e resistência da totalidade em educação

IntroduçãoEducação, razão e totalidade

A educação e sua razão aparentemente paradoxalTotalidade e pós-modernidade

É possível a totalidade sem a naturalização das diferenças?Peter McLaren: “Pense a totalidade, sempre!”

Totalidade como dispositivo heurístico?Considerações finais

Referências

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Etnometodologia: um estudo introdutórioIntrodução

Onde, quando e como surgiu a etnometodologiaO que é etnometodologia – conceitos principais

Influências teóricasConceitos da etnometodologia – a competência dos membros

Cicourel em particularPrincipais críticas sofridas pela etnometodologia

Considerações finaisReferências

Alfred Schütz e Jürgen Habermas: aproximações teóricas

Introdução Schütz e a sociologia fenomenológica

A sociedade como construção social do mundo da vida cotidiana

A realidade simbolicamente preestruturadaComo livrar-se da particularidade dos particulares?

Etnometodologia: sua força e sua fragilidadeMundo da vida e ação comunicativa: interlocuções

com o pensamento de Alfred SchützConsiderações finais

Referências

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Razão e normatividade: contrastes e paradoxos da pós-modernidade

IntroduçãoA dúvida de Descartes

O argumento pós-modernoRizoma: a sociedade dos indivíduos

O agir comunicativoConsiderações finais

Referências

A hermenêutica do logos em GadamerIntrodução

Lo/gov: sentidos, conceitos e usos ao longo do tempoO lo/gov em Gadamer e sua hermenêutica

Considerações finaisReferências

Humberto Maturana e Francisco Varela: seres vivos e conhecimento

IntroduçãoA epistemologia ganha novas bases a partir das quais

se desencadeiam os processos cognitivosA emergência de uma nova epistemologia

em bases biológicasInterface com a teoria de auto-organização e complexidade

Entrando no âmago da biologia do conhecimentoO tempo ressignificado

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Consequências filosófico-científicasUma epistemologia não fundacionalista

Considerações finaisReferências

Pesquisa e diferença: conhecimento pluralIntrodução

O conhecimento como construção socialA questão do método

O conhecimento plural: discurso mínimoConsiderações finais

Referências

Considerações finais

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Apresentação

À mesma medida que a educação como área de conhecimen-to se expande em nosso país, e ganha profundidade com o notável crescimento da graduação e da pós-graduação lato e stricto sensu, crescem as demandas pela competência teorética. Assim, a obra Edu-cação em perspectivas epistemológicas pós-modernas tem por objetivo reunir textos de diferentes temáticas cujo eixo de convergência é o aprofundamento teórico/epistemológico de diferentes práticas e ati-vidades educacionais, tematizadas de forma a se constituírem numa diversidade de espaços e de tempos dos processos educativos. Minha intenção é fornecer subsídios teóricos e práticos aos interessados em educação, tanto nos cursos de licenciatura quanto nos de pós--graduação lato e stricto sensu. Na longa convivência que mantenho com professores em fase de formação nas diferentes licenciaturas, bem como com professores nos cursos lato e stricto sensu, no ensino, na pesquisa e também na extensão, tem sido uma constante o reco-nhecimento, por parte desses atores educacionais, do déficit teórico de que sofrem. Tem sido uma invariante o reconhecimento de que lhes faltava uma base teórica sólida para apoiar e dar sustentação argumentativa às suas práticas educativas cotidianas, quer no ensi-

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no, quer na pesquisa ou na extensão. Mesmo no grau de mestrado, essa demanda tem-se mostrado aguda. Assim, reunir os textos que compõem este livro constitui-se no empenho em tornar mais aces-sível a utilização por parte de estudantes e professores interessados. Trata-se de reflexões/pesquisas que buscam mostrar por que espaços e em que temporalidades fluem os quefazeres educacionais, com forte foco epistemológico em todos eles. E nisso se centra mais uma das perspectivas comuns aos vários textos que compõem a obra: subsi-diar epistemologicamente os estudiosos da educação dos níveis já mencionados disponibilizando ferramenta teórica para fundamentar as diferentes práticas do cotidiano escolar/universitário. Pensei, ao reunir os textos, nas angústias daqueles que estão diante da elabora-ção de aulas, da elaboração de monografias/dissertações/teses e que necessitam da prática da fundamentação epistêmica. Pensei também nos leitores de todos os níveis que necessitam situar-se teoricamente em relação aos textos lidos para melhor entendê-los.

O primeiro texto, “Da escola utópica à escola heterotópica: educação e pós-modernidade”, versa sobre o tema da ressignificação do espaço e do tempo escolar na contemporaneidade. A escola, em todos os níveis, no decurso de sua história, desde os mais remotos tempos, sempre foi considerada como o espaço ideal (utópico) para o ensinar e para o aprender. Tempos e espaços escolares sempre foram rigorosamente marcados. E, principalmente com o evento da modernidade, o espaço e o tempo escolares obedeceram ao rigor mais severo da distribuição espacial e cronológica. Como quase tudo na modernidade, a escola foi submetida ao disciplinamento more mathematico (ao modo da matemática), more geometrico (ao modo da geometria), seguindo o paradigma da física. Essa parte pretende

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mostrar a heterotopia da escola, em tempos do pós-moderno, à mercê, sobretudo, do evento da era de informação de massa, da microeletrônica.

O segundo texto, “Educação: auto-organização e complexida-de”, traz para o campo epistemológico educacional o paradigma da complexidade e o da auto-organização, que redimensionam profun-damente a compreensão dos processos pedagógicos. Hoje, com o auxílio de vários campos científicos, como a física, a química e, em especial, a termodinâmica e a biologia, atesta-se com segurança que o mundo é auto-organizacional/autopoiético. E, portanto, o processo do conhecer se dá sobretudo no ser humano, devido à tremenda capacidade auto-organizacional/autopoiética, revolucionando profundamente os conceitos de espaços e de tempos do aprender.

No texto intitulado “O currículo como prática discursiva nas reentrâncias da hermenêutica”, inauguro a tentativa de compreender o currículo via hermenêutica filosófica, sobretudo na forma que lhe conferiu Hans-Georg Gadamer. Aqui, o currículo é compreen-dido como um interpretar o mundo em que se envolvem alunos e professores, educadores e educandos, num processo dialógico pela linguagem. Busco conferir à hermenêutica o espaço teórico de rele-vância que vem ganhando nas últimas décadas, também no Brasil, no campo educacional. Nesse texto, como nos demais que compõem o livro, a filosofia da linguagem perpassa toda a abordagem curricular.

A parte intitulada “Crítica da razão: anátema e resistência da totalidade em educação” tem como objetivo fundante analisar e compreender o conceito de totalidade em educação. Esse con-ceito já preocupou o pensamento ocidental desde os pensadores originários. A Escola de Frankfurt, que, a meu ver, é um portal

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de entrada para muitas das questões filosóficas contemporâneas, ocupa-se do conceito de totalidade proveniente de Hegel. Contudo, parece haver possibilidades de se pensar a totalidade sem possíveis e indesejáveis totalitarismos. É o que o artigo se propõe a investigar, com foco educacional.

Habermas, com sua teoria da ação comunicativa, tornou-se, em nossos tempos, um importante autor, que há várias décadas for-nece ferramenta teórica para pesquisadores em educação. Ambos os sociólogos Habermas e Schütz não podem mais ser ignorados por aqueles que buscam entender, no espaço da sociologia educacional, os fenômenos próprios e tão complexos da educação. Nos artigos quinto e sexto, os interessados poderão apropriar-se de importantes conhecimentos teóricos e metodológicos para a sociologia da edu-cação. O quinto texto, “Etnometodologia: um estudo introdutório”, apresenta uma abordagem introdutória e didática a esse tema.

O sexto texto, “Alfred Schütz e Jürgen Habermas: aproxima-ções teóricas”, busca focar os aportes teórico-fenomenológicos que Habermas faz do pensamento/epistemologia de Alfred Schütz, o criador da sociologia fenomenológica. Schütz acabou dando origem, sobretudo por meio de Garfinkel, à etnometodologia, um modelo de sociologia que faz o caminho inverso da sociologia clássica, na qual o sábio sociólogo estabelece as regras do jogo da linguagem sociológica para compreender os fenômenos da sociologia. Em conformidade com a etnometodologia, estudada no quinto texto, são os atores sociais que determinam seus próprios jogos de lin-guagem a serem estudados pelo sociólogo.

“Razão e normatividade: contrastes e paradoxos da pós--modernidade” nos coloca diante da tensa polaridade, nos tempos

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atuais, entre a extrema regulamentação e a extrema desregulamen-tação, no campo social, dos costumes/da ética, da economia, da política, da educação sob todos os níveis e formas. Se, a um tempo, as mudanças são rápidas e contínuas como nunca o foram, a outro, a velocidade e a eficiência dos meios eletrônicos nos mantêm sob pleno e minucioso controle, 24 horas por dia, todos os dias.

A cultura, sobretudo a ciência ocidental e, por extensão, a educação como campo de conhecimento foram marcadas pro-funda e indelevelmente pelo conceito de “logos”, que deriva do mundo helênico, desde os pré-socráticos. Na contemporaneidade, o “logocentrismo” é alvo de profundas críticas. O oitavo texto, “A hermenêutica do logos em Gadamer”, é um estudo centrado nos usos/análises do conceito do logos realizados por Gadamer. Mas, para cumprir seu desiderato de recuperar os sentidos que o Ocidente conferiu ao logos, o estudo faz um breve excurso, desde os pré-socráticos aos textos bíblicos, para que se possa entender o profundo entranhamento da ideia do logos na cultura ocidental herdada da cultura judaico-cristã, que tanto marcou suas práticas.

Um marcante espaço e tempo epistemológico pode ser encon-trado em Humberto Maturana e Francisco Varela: dois biólogos/epistemólogos cuja ferramenta teórica vem sendo gradativamente apropriada por educadores. Com sua principal teoria, a autopoiese, e com sua profunda ressignificação dos processos cognitivos em bases biológicas, nós, os educadores, podemos repensar os pro-cessos pedagógicos, do ensino, da aprendizagem, da intelecção, entre outros. A biologia do conhecimento nos fornece sólidas bases materiais para compreendermos as operações do complexo sistema mente-cérebro. Trata-se de uma epistemologia inovadora e original.

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É disto que se ocupa o penúltimo texto desta obra: “Humberto Maturana e Francisco Varela: seres vivos e conhecimento”.

O último texto, “Pesquisa e diferença: conhecimento plural”, delimita tempos e espaços do/da pesquisador(a) e da pesquisa: os tempos pós-modernos, marcados pela diferença, pela pluralidade, pela singularidade, determinam novos paradigmas para a ação do pesquisador em geral e do pesquisador em educação particular-mente. A análise, aqui, recai sobre a pesquisa como uma das ativi-dades sociais e demarca seu próprio caráter social, plural, quando o anel da modernidade se fraturou e deixou entrar para o campo da pesquisa o mundo da vida, em que sujeitos agem, pesquisando, como atores sociais – os pesquisadores e pesquisadoras. A análise recai também sobre a ressignificação do método, já não mais co-mo o caminho único e certo, mas como “caminhos investigativos” (referência ao título de uma obra organizada por Marisa Vorraber Costa). Pensadores contemporâneos, como Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Vattimo, Giddens, entre vários outros, são invocados para dar sustentação argumentativa a um conceito fluido de pesquisa, consentâneo com a fluidez do mundo da vida, o que não atenua, tampouco dispensa o rigor da ciência.

Espaço escolar; educação em face da complexidade e da auto-organização; ressignificação do currículo; o problema da razão ocidental; a sociologia fenomenológica; a etnometodologia; educação e hermenêutica; os sentidos do logos no pensamento ocidental; educação e autopoiese – eis o percurso percorrido pelo livro que busca oferecer ao leitor um olhar sobre diferentes temá-ticas que determinam, cada qual à sua maneira, espaços e tempos do conhecimento educacional na contemporaneidade.

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Da escola utópica à escola heterotópica: educação e pós-modernidade*

Introdução

A pedagogia, desde sua constituição etimológica e histórica, diz respeito a que “lugar” o aluno deve ir. Paidagwgi/a, entre os gregos antigos, era “ocupação, encargo, ofício do pedagogo”; (paidagwgo/v), “escravo liberto encarregado de conduzir as crianças à escola, preceptor de crianças”, em que pai=v significa “criança” e a)go/v significa “condutor, guia”, originário do verbo a2gw, cujo sentido é “levar, conduzir, guiar, dirigir...”. A escola foi constituída como o lugar do saber pedagógico (paidagwgiko/v) por excelência: lugar privilegiado, lugar certo, para o qual o peda-gogo conduz o aluno, o discípulo. A escola se constituiu como o to/

pov ou1topov, ou seja, o lugar utópico, devendo-se ter em conta que o prefixo grego ou0 significa “não”. Portanto a utopia acaba sendo o “não to/pov”, o “não lugar”. E o sentido do não lugar é o de ser um lugar tão privilegiado, tão especial, que não está em lugar nenhum de tão especial que é um tal lugar. A pedagogia é a arte e a ciência de conduzir o aluno a um tal lugar. Seria, contudo, errôneo pensar

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que o privilegiamento da escola como um lugar do aprender tenha sido construído (concebido) de uma só vez. A escola moderna re-sultou de um longo processo histórico, de um complexo processo construtivo que passa da Idade Antiga para a Idade Média e à Idade Moderna, para tomar a forma que tem hoje. Não é objetivo deste estudo fazer um histórico da escola. O que importa é apenas des-tacar o fato de que a escola se constituiu como lugar privilegiado do processo pedagógico, do processo educativo e da aquisição do conhecimento – um lugar do conhecer.

A escola como lugar privilegiado da educação/do conheci-mento se cristalizou em formas “oficiais”, os chamados sistemas educacionais, muito rígidos e monolíticos. Outros setores da ativi-dade dos homens e das mulheres não foram submetidos à mesma rigidez. A arte parece ter sido a primeira atividade humana a se dar a liberdade da produção criativa e liberta. A arquitetura conduziu um processo de libertação das formas rígidas, influenciando os tempos modernos e contribuindo para a emergência de condições pós--modernas de vida. O mundo complexo das comunicações também se expande criativamente e com grande liberdade. Sem dar todos e, talvez, nem os melhores exemplos, parece que a escola em relação a estes se mantém extremamente fechada, presa a fortes amarras da tradição, impondo-se uma normatividade rígida, num verda-deiro ato de fé em seu próprio dogma de lugar do saber. Diante dos demais campos da atividade humana que se vão tornando sempre mais plurais, a escola teima, insiste em se manter numa verdadeira camisa de força “institucional”, representada por estruturas e dispo-sitivos utilizados num processo do tipo salvacionista e dogmático. Basta acompanhar as sucessivas reformas do ensino dos diversos

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graus, realizadas ao molde das reformas religiosas históricas, onde se interpõem sempre novas determinações dogmáticas que devem garantir coisas impossíveis de garantir, coisas sem as quais os cida-dãos aparentemente não poderiam sobreviver, como os percentuais de formação específica e geral preconizados pela Lei 5692/71 e suas sucessivas “reformas”, até a última reforma da LDB. Tudo isso parte do princípio de que existe um “ser universal”, um homo universalis, uma “formação integral do homem” a ser garantida, num lugar es-pecial, propriamente único: a escola moderna, que, aliás, desmente totalmente sua origem, sua etimologia, em que a schola (escola em latim), ou a sxolh/ (escola, em grego), era um lugar de “descanso, repouso, tempo livre dedicado ao estudo, lugar de estudo, escola”, algo bem mais agradável e atrativo que a moderna escola.

Este breve artigo pretende desconstruir a utopia escolar como um lugar privilegiado e quase exclusivo das oportunidades educacionais, na tentativa de apontar para o fenômeno da diluição desse “sólido” representado pela escola, para tentar dirigir olhares para outros lugares plurais, para as heterotopias onde os saberes educacionais acontecem, mesmo ante a insistência em manter o conceito e a realidade da escola e da educação que contrariam os próprios fatos e fenômenos que vão emergindo, paralelos aos siste-mas monolíticos da educação, seja ela pública, seja particular. Não se trata, nem de longe, de trabalho exaustivo e abrangente. Trata-se sim de fazer aproximações que possibilitem alguma compreensão da educação que está acontecendo, no contexto das condições pós--modernas, em que “o lugar” (a escola) da educação se dilui em “lugares”, em “heterotopias”.

Do utópico ao heterotópico

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Vattimo (1991), ao se referir ao advento da heterotopia, diz que “A transformação mais radical que se verificou, entre os anos sessenta e hoje, no tocante à relação entre arte e vida quotidiana pode descrever-se [...] como uma passagem da utopia à heterotopia” (Vattimo, 1991, p. 73)1. Assim como na arte, em todas as ativida-des humanas a heterotopia se tornou um fenômeno onipresente e extremamente agudo. A diversidade, a variedade, a singularidade, a descontinuidade, a pluralidade caracterizam os tempos pós--modernos. Numerosos autores, entre os quais o próprio Vattimo (1991), Jameson (1996), Harvey (1996), Lyotard (1993), Deleuze e Guattari (1996), expõem extensivamente essas características. Depois de descrever longamente a utopia estética inaugurada pelas vanguardas, sobretudo a partir dos anos cinquenta e sessenta, e sua diluição na heterotopia, Vattimo nos alerta de que,

Ao constatarmos que a universalidade em que Kant pensava se realiza para nós sob a forma da multiplicidade, podemos assumir legitimamente como critério normativo a pluralidade explicitamente vivida como tal. (Vattimo, 1991, p. 81).

Em lugar algum Kant terá feito mais esforço para nos colocar diante da universalidade que em Fundamentos da metafísica dos costumes (1973), onde o fundamento ético do agir é de tamanha universalidade que o próprio Kant admite que possivelmente não se encontre no agir de nenhum homem ou mulher. Na condição pós--moderna em que vivemos, não cabe mais a pretensão de alcançar os universais. A renúncia a tal pretensão implica, simetricamente, 1. O título deste trabalho se inspirou num subtítulo da obra Da utopia à heterotopia

(Vattimo, 1991, p. 73-86).

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renunciar às utopias em favor da heterotopia, isto é, renunciar à convicção de que a verdade está num único lugar privilegiado. Significa, da mesma forma, renunciar à pretensão de uma “ver-dade científica” em favor de “verdades científicas”, ocupantes de lugares múltiplos.

Isso tudo tem sabor de irreverência ante o arcabouço monu-mental e monolítico da grande ciência moderna, mormente ante as “ciências da educação”. Daí se entende com certa facilidade que a ruptura pós-moderna com as metanarrativas tenha ocorrido primeiro nas artes, como a literatura, e na arquitetura, como nos informa Huyssen (apud Hollanda, 1992, p. 24).

Pós-modernismo foi usado enfaticamente pela primeira vez nos anos 60 por críticos literários como Leslie Fiedler e Ihab Hassan, que sustentaram visões amplamente divergentes do que fosse literatura pós-moderna. Foi somente no início até mea-dos da década de 70 que o termo ganhou um curso mais geral, aplicando-se primeiramente à arquitetura e depois à dança, ao teatro, à pintura, ao cinema e à música.

A partir da emergência dos grandes meios de comunicação, assim como o tempo (xro/nov – que está mais para kairo/v – acon-tecimento), o lugar (to/pov) adquiriu sentidos inteiramente novos. O virtual diz respeito tanto ao tempo quanto ao espaço. O lugar sofreu complexos deslocamentos. Já vamos bem longe dos sentidos de tempo e espaço absolutos como os concebidos na ciência newto-niana clássica. E, ao tentarmos interpretar o “novo” espaço, parece não caberem as preocupações de Jean Baudrillard, que preconiza uma espécie de “desaparecimento universal”. Pelo contrário, pare-ce mais consentânea com os fatos a interpretação de Pierre Lévy

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(1996, p. 11), que faz do virtual uma interpretação não catastrófica e vê nisso “uma busca de hominização”, hipótese que este estudo também adota; também o acompanha em ver no virtual

[...] a essência, ou a ponta fina, da mutação em curso [...]. En-quanto tal a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra. Ela se apresenta como o movimento mesmo do ‘devir outro’ – ou heterogênese – do humano. (Lévy, 1996, p. 11, grifo nosso).

A heterogênese é um pressuposto da heterotopia. A gênese múltipla remete a lugares múltiplos, ou seja, à heterotopia. A he-terogênese do conhecimento se dá na heterotopia. Expliquemos.

Os lugares do conhecimento se multiplicam, numa rede sem-pre mais complexa, segundo as possibilidades que os novos meios de comunicação propiciam. Concomitantemente, os lugares do aprender se multiplicam, na mesma proporção. Ainda que se possa conceder algum privilegiamento a algum lugar do aprender, não se pode absolutizar nenhum, sob pena de cerceamento do processo complexificante do aprender. Complexificante porque se trata de um processo em movimento, de complexificação crescente, ao modo do hipertexto. E seria falso entender por “complexificação” apenas “complicação”. Pelo contrário: a multiplicidades de lugares do aprender e do ensinar tem o aspecto facilitador – não dos conteúdos, mas dos meios: a cada dia se multiplicam as chances do aprender porque se multiplicam os lugares do mesmo aprender/ensinar. O virtual é finito mas não é limitado. Heterogênese significa gênese múltipla, gênese complexa, em expansão. Daqui é que podemos derivar o conceito de escola heterotópica: o lugar (to/pov) primitivo

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para onde o pedagogo (paidagwgo/v) conduzia a criança (pai=v) tornou-se heterótopoi (e(tero/topoi – lugares múltiplos).

A nova lógica do espaço no tempo

A modernidade inaugurada por Galileu Galilei, Copérnico e Newton é um modo de experienciar o espaço e o tempo. Tempo e espaço, a medida exata, foi um modo de tudo interpretar. Foi uma maneira de ser moderno. De forma idêntica, buscar entender o pós-moderno é buscar entender a crise da experiência do tempo e do espaço. Ou, como se expressa Harvey (1996), referindo-se a Fredric Jameson, deve-se à mudança pós-moderna,

[...] a uma crise da nossa experiência do espaço e do tempo, crise na qual categorias espaciais vêm a dominar as temporais, ao mesmo tempo que sofrem uma mutação de tal ordem que não conseguimos acompanhar. (Harvey, 1996, p. 187).

(Continua...)

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Educação em perspectivas epistêmicas pós-modernas

Ireno Antônio Berticelli

Grandes Temas

Maria Assunta Busato

Alexsandro Stumpf

Neli Ferrari

Alexandra Fatima Lopes de Souza

Neli FerrariLuana Paula BiazusJulha Suzana Dresch

Alexsandro Stumpf

Caroline KirschnerSara Raquel Heffel

Araceli Pimentel Godinho

Carlos Pace DoriAraceli Pimentel GodinhoLúcia Lovato Leiria

16 X 23 cm

Minion Pro entre 10 e 14 pontos

Capa: Supremo 250 g/m2

Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

340

1000

dezembro de 2010

Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)

Argos Editora da Unochapecó

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Ireno Antônio Berticelli é professor na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrou o primeiro grupo de professores daquela que é hoje a Universidade do Oeste do Paraná (então Fecivel). Exerce a docência na graduação e na pós-graduação stricto sensu/mestrado. É autor de Epistemologia e educação: da complexidade, auto-organização e caos (Argos) e de A origem normativa da prática educacional na linguagem (Ed. Unijuí).

Sobre o autor

Este livro está à venda:

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