Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar...

8
14 Depois de décadas de lutas tentando pôr em evidência a necessidade e prioridade da criança pré-escolar, estamos agora no limiar de uma nova etapa. Nas décadas precedentes, os esforços estiveram concentrados na necessidade, no compromisso da sociedade com os direitos das famílias e das crianças, em retirar do atendimento à criança de zero a sete anos o caráter de assistência custodial e filantrópica, em uma trajetória já bem conhecida através das contribuições de estudiosos, políticos e movimentos sociais (Campos, 1989, Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1986). Estamos, agora, começando uma nova era no cuidado à criança. Temos uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação que reconhece a criança de zero a sete anos e o dever do Estado em prover educação a essas crianças; temos uma secretaria Resumo:Discute-se o lugar da brincadeira no currículo da educação infantil. A partir da nova LDB, coloca-se a tarefa de construir, ou reconstruir, em alguns casos, propostas de atendimento que contemplem as necessidades da criança em desenvolvimento. A mudança constitui um problema face à tendência à aplicação, por analogia, de um modelo de instituição escolar a essa faixa etária, evidente na organização do ambiente e das atividades proporcionadas à criança. Questiona-se a visão da brincadeira como meio através do qual a criança vai atingir objetivos escolares, representando uma visão de infância apenas como promessa de futuro, sem importância para o presente. Propõe-se uma orientação para a educação infantil que privilegie um conceito de desenvolvimento como adaptação atual. Palavras Chave: Educação infantil, brincar, desenvolvimento, currículo. Abstract: This paper discusses the role of playing in the curriculum of early education. Following the new LDB (national orientations for Education), we have the task of constructing or reconstructing, in some cases, proposals for early childhood care that meet the developing child’s needs. The change is difficult due to the trend of applying, through analogy, a school model to early childhood education. This trend is evident in the environment organization and in the activities proposed to children. We argue against looking at playing as a vehicle through which the child will achieve schooling goals, representing a vision of childhood only as a promise for the future, disregarding the present. We propose instead an early education that privileges a concept of development as present adaptation. Key Words: Early education, play, development, curriculum. Eulina da Rocha Lordelo Doutora em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Ana Maria Almeida Carvalho Livre docente em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 23 (2), 14-21 Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar? 1 Children Education and Psychology: Playing for What? ArtToday

Transcript of Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar...

Page 1: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

14

Depois de décadas de lutas tentando pôr emevidência a necessidade e prioridade da criançapré-escolar, estamos agora no limiar de uma novaetapa. Nas décadas precedentes, os esforçosestiveram concentrados na necessidade, nocompromisso da sociedade com os direitos dasfamílias e das crianças, em retirar do atendimentoà criança de zero a sete anos o caráter de assistênciacustodial e filantrópica, em uma trajetória já bem

conhecida através das contribuições de estudiosos,políticos e movimentos sociais (Campos, 1989,Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1986).

Estamos, agora, começando uma nova era nocuidado à criança. Temos uma Lei de Diretrizes eBases da Educação que reconhece a criança dezero a sete anos e o dever do Estado em provereducação a essas crianças; temos uma secretaria

Resumo:Discute-se o lugar da brincadeira no currículo da educação infantil. A partir da nova LDB,coloca-se a tarefa de construir, ou reconstruir, em alguns casos, propostas de atendimento que contemplemas necessidades da criança em desenvolvimento. A mudança constitui um problema face à tendência àaplicação, por analogia, de um modelo de instituição escolar a essa faixa etária, evidente na organizaçãodo ambiente e das atividades proporcionadas à criança. Questiona-se a visão da brincadeira como meioatravés do qual a criança vai atingir objetivos escolares, representando uma visão de infância apenas comopromessa de futuro, sem importância para o presente. Propõe-se uma orientação para a educação infantilque privilegie um conceito de desenvolvimento como adaptação atual.Palavras Chave: Educação infantil, brincar, desenvolvimento, currículo.

Abstract: This paper discusses the role of playing in the curriculum of early education. Following the newLDB (national orientations for Education), we have the task of constructing or reconstructing, in some cases,proposals for early childhood care that meet the developing child’s needs. The change is difficult due tothe trend of applying, through analogy, a school model to early childhood education. This trend is evidentin the environment organization and in the activities proposed to children. We argue against looking atplaying as a vehicle through which the child will achieve schooling goals, representing a vision of childhoodonly as a promise for the future, disregarding the present. We propose instead an early education thatprivileges a concept of development as present adaptation.Key Words: Early education, play, development, curriculum.

Eulina daRocha Lordelo

Doutora em Psicologia.Pesquisadora do CNPq.

Professora doDepartamento de

Psicologia daUniversidade Federal

da Bahia.

Ana MariaAlmeida Carvalho

Livre docente emPsicologia.

Pesquisadora do CNPq.Professora Associada

do Instituto dePsicologia da

Universidade de SãoPaulo.

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 23 (2), 14-21

Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?1

Children Education and Psychology: Playing for What?

ArtT

oday

Page 2: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

15

ministerial que elaborou e publicou referenciaiscurriculares nacionais para esse nível da educaçãofundamental. Então, já não é sem tempo a refleçãosobre o nosso papel, o que nos solicitam e o quenós devemos e podemos executar.

A recente mudança de orientação do atendimentoà criança de 0 a 6 anos da área de assistênciasocial para a educação trará algumas importantesconseqüências, algumas das quais nos propomosa explorar aqui. Queremos esclarecer que essescomentários se baseiam em um contato extensocom creches nas cidades de Salvador, São Pauloe, em menor extensão, em outras cidades do Brasil,mas não são aplicáveis a todas as creches; naverdade, a evidência de que são representativasda média das instituições de educação infantil éassistemática e sujeita a deformações por viés deamostra. Isso, entretanto, não é decisivo para adiscussão que trazemos aqui, de caráter maisconceitual e menos factual.

Possivelmente devido à novidade do assunto – ocuidado extensivo da criança fora da família – asociedade não dispõe de modelos desenvolvidosespecificamente para esse contexto. Assim, assiste-se à tendência à aplicação, por contágio, de ummodelo de instituição escolar para essa faixa etária,evidenciada na organização do ambienteproporcionado à criança, em todos os seusaspectos: arquitetura, atividades, formação depessoal, natureza dos papéis, interações, e atémesmo em dimensões simbólicas que permeiamas relações sociais.

Alguns poucos exemplos podem ilustrar essaafirmação. À parte as que funcionam comodepósitos de crianças, na esmagadora maioria dasinstituições de educação infantil, os espaços emque as crianças ficam a maior parte do dia sãoorganizados como salas de aula, geralmente commesinhas e quatro cadeiras, possuindo,freqüentemente, quadros de giz; a maior partedas atividades da criança é de natureza acadêmica,envolvendo papel, lápis e tintas. A organização darotina confere ao horário de brinquedo livre umlugar secundário, geralmente no primeiro e últimohorários do dia, antes do início e depois daconclusão das “verdadeiras” atividades educativas.Qual é o problema de pensar a instituição deeducação infantil como escola? Na perspectivada Psicologia, essa concepção implica tomar comoverdadeiros alguns dos mitos relativos à infância,como apontado por Thoman (1979), há mais de30 anos, especialmente o do futurismo: nessa visão,a importância atribuída à infância é o fato de queela prefigura o futuro, o verdadeiro alvo dodesenvolvimento e dos esforços da educação. Oque uma criança faz na creche não é consideradoem função do seu bem-estar atual mas, sim, do

Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?

que pode trazer para o futuro da criança, comomelhor início na alfabetização e, em qualquernível, um desempenho acadêmico mais elevado,o que resultaria em mais sucesso na vida comoadulto.Um exemplo emblemático dessa mentalidadepode ser visto no trecho abaixo:

De uma psicóloga e professora universitária paraoutra:

Mas você vai deixar seu filho fazer o pré-primárionessa escola? Você não quer que ele entre nafaculdade?

A idéia de continuidade no desenvolvimento éantiga e persiste no presente, a despeito dosprofundos questionamentos a que tem sidosubmetida, desde a virada da perspectiva de ciclode vida, nos anos 70. Não há provas irrefutáveisde que os eventos do passado tenham papel causalno futuro do indivíduo, o que talvez justifique umaredução da preocupação com a vida escolarposterior da criança. Cada vez mais, odesenvolvimento é concebido como um processoaberto e indeterminado, com múltiplos caminhospossíveis a partir de qualquer ponto (Fogel, Lyra &Valsiner, 1997). Entretanto, nossas críticas aocurrículo da educação infantil não dependem daadesão ou recusa ao postulado da continuidadedo desenvolvimento. Embora acreditemos que obem-estar presente da criança seja defensável porsi próprio, pensamos que as práticas escolaresvigentes na educação infantil hoje estão longe dedesempenhar um papel benéfico aodesenvolvimento posterior da criança.

Mesmo em uma perspectiva de continuidade, nãohá justificativas para a escolarização da educaçãoinfantil. A essa desvalorização do bem-estarpresente da criança em favor de metas futuras,soma-se uma concepção de desenvolvimentomarcada pela idéia de um cronograma dirigidopara metas sempre antecipadas. À guisa de metáfora,o desenvolvimento é visto como uma corrida cujoprêmio é a redução do tempo necessário paracumprir a tarefa. A expressão atraso, que tem umsentido mais ou menos preciso para o diagnósticode perturbações severas e permanentes nodesenvolvimento, foi levada para a área dodesenvolvimento normal, gerando entre pais eeducadores a idéia de que fazer algo mais cedo ébom para a criança.

Exemplos dessa ideologia podem ser vistos na áreada chamada “educação de bebês”, uma recentemania que se espalha em certos círculos urbanosde alta classe média e que reflete escasso respeitopelos direitos da criança, conforme se observa naimprensa escrita de grande circulação:

1 O presente artigo tem comobase apresentações realizadasem simpósios do I e II CongressoNorte-Nordeste de Psicologia.

Page 3: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

16

A instrução, noentanto, não é a

única característicaimportante, talvez

nem mesmo a maisimportante.

“A construção do superbebê”

“No passado, acreditava-se que a criança só podiaentrar na escola aos 5 anos. Hoje sabe-se que, quantomais cedo, melhor. Os três primeiros anos .. são osmais importantes para o desenvolvimento cerebral...

“... em São Paulo, o Centro de Aprendizado edesenvolvimento, AeD importou um métodoespanhol, com a missão de ajudar os pais adesenvolver o potencial máximo dos filhos desde onascimento...

“...no projeto chamado Superbebês... a maior parteé de recém-nascidos... Nesses cursos os bebês...ouvem música clássica para desenvolver ainteligência auditiva... estimular o aprendizado delíngua estrangeira... oferecer noções elementares dematemática...

...são estimulados a engatinhar, equilibrar-se, subirrampas... (para) desenvolver a capacidade motora...

...observam obras de arte para aprimorar apercepção de cores... têm brinquedos paradesenvolver o senso tátil...

...com um ano começam a aprender uma segundalíngua... poderão falá-la no futuro sem sotaque...”(Veja, 1998, pp.31/33).

Um segundo mito, na análise de Thoman (1979),refere-se à ausência de uma concepção dedesenvolvimento como um todo, em que as diversascompetências são integradas. A escolarização daeducação infantil toma o desenvolvimento cognitivocomo alvo privilegiado e praticamente ignora suarelação com os demais aspectos.

A separação de funções entre os diversosprofissionais da educação infantil exemplifica essaconcepção. Embora as regulamentações sobre aeducação infantil tenham fixado a formação deprofessor como o desejável para a área, é patente adivisão de trabalho existente nas creches entreprofessores, que “trabalham” competências eauxiliam o desenvolvimento, e os auxiliares ouqualquer outro nome pelo qual são conhecidos(pajens, atendentes, babás), encarregados de trocarfraldas, limpar narizes, dar banho, comida etc. Nessadivisão de trabalho, as pessoas de melhor formaçãose encarregam de cuidar do desenvolvimentocognitivo, não sendo necessárias para lidar com acriança em todos os seus aspectos, os quais, portanto,supostamente não requerem escolaridade maiselevada ou formação especializada.

Ora, a instrução é, certamente, muito importante,embora não necessariamente pelo domínio de

conteúdos específicos e técnicas particularesaplicáveis a esse nível de atendimento à criança, oque só é compreensível quando se aceita que otrabalho do adulto seja prioritariamente visto comoensino. A instrução, no entanto, não é a únicacaracterística importante, talvez nem mesmo a maisimportante. Sabe-se que o desenvolvimento éprofundamente afetado pela qualidade da relaçãoentre a criança e o adulto, que, usual, mas nãoexclusivamente, envolve a mãe. Dificuldades noajustamento da personalidade do adulto, comohostilidade, depressão, inconsistência, entre outras,são características comumente relacionadas àqualidade das adaptações alcançadas pela criançanas suas trajetórias desenvolvimentais (Schaffer,1977, Papousek & Papousek, 1984, 1989, Isabella& Belsky, 1991). Essas dificuldades não são,evidentemente, prerrogativas de pessoas com baixainstrução.

Um caso exemplar pode ilustrar a obsessão daeducação infantil com as habilidades acadêmicas:em uma visita a creche de reconhecida boaqualidade, com razão adulto-criança acima dasrecomendações, empenhada em seguir asorientações do MEC, pudemos presenciar umacena representativa da concepção de creche comoescola. Entre outras decisões, a instituição mostravaum grande comprometimento com o estímulo aodesenvolvimento da criança. No berçário, alémdas pessoas que cuidavam regularmente dasnecessidades corriqueiras das crianças, havia umaprofessora com a função específica de estimulação,chamada, apropriadamente, “a estimuladora”.Quando entramos na sala, vimos duas crianças(de um ano e um mês e um ano e três meses)sentadas a uma pequena mesa, segurando pincelatômico e riscando um papel. Uma das criançasparou o “trabalho” e olhou para nós. Aestimuladora se abaixou, pegou a mão da criançae guiou-a para riscar o papel.

Esse exemplo revela o conceito pobre deestimulação praticado, que privilegia estímulosmateriais e atividades, ignorando completamentea dimensão de responsividade do ambiente,inclusive o social. Schaffer (1977) aponta o fracassoda hipótese de estimulação como determinantedo desenvolvimento, a partir da análise de diversosestudos na literatura. Para ele, a idéia de fornecerestimulação à criança “envolve experiênciasarbitrariamente impostas que podem não estarrelacionadas à habilidade da criança de assimilá-las” (p. 43). Em seu lugar, propõe uma concepçãode socialização inicial em que tanto o adultoquanto a criança estão envolvidos e em que aquantidade, o tipo e o timing da estimulaçãoestejam relacionados à organização psicológica dacriança (SCHAFFER, 1977, 1992).

Eulina da Rocha Lordelo & Ana Maria Almeida Carvalho

Page 4: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

17

De outro lado, o sócio-interacionismo,especialmente na concepção atribuída a Vygotsky,tem sido processado de uma forma peculiar emalguns meios educacionais. Alguns aspectos daobra de Vygotsky têm tido um impacto significativono campo da educação. Entre esses, van der Veere Valsiner (1995) destacam três princípios ouhipóteses: a primeira delas é a proposiçãovygotskyana de que os processos cognitivos sãoconstruídos num meio histórico-cultural emediados pelos agentes sociais que interagem comos indivíduos; a segunda, estreitamente ligada àprimeira, é que o desenvolvimento da criançadifere essencialmente segundo ela freqüente ounão a escola, e, finalmente, o terceiro ponto ainfluenciar a educação atual diz respeito ao papeldecisivo da “zona de desenvolvimento proximal”,o lugar privilegiado de ação do educador. Essashipóteses, de grande importância para a Psicologiaatual, foram geradas no contexto da construçãode uma sociedade socialista, com suapreocupação com a educação e a adoção dapremissa do materialismo histórico desubordinação das idéias às condições materiaisde existência. Embora a preocupação final deVygotsky, no entanto, fosse a educação das massas,seus estudos empíricos foram realizados (e muitasdas suas hipóteses não chegaram a ser testadas)como experimentações limitadas, sem maiorgeneralidade, sendo que apenas uma parte de seusresultados se acha disponível em publicações.

A “descoberta” de Vygotsky pelo mundo ocidentaltrouxe para a Psicologia um novo ritmo dedesenvolvimento, como se entrevê noaparecimento de uma psicologia histórico-cultural,nos avanços do campo dos estudos sobrecognição, entre outros. Conceitos como“participação guiada”, de Rogoff (1990), têm sidoacrescentados ao corpo teórico da Psicologiacomo mecanismos explicativos dodesenvolvimento.

Como em qualquer teoria psicológica, entretanto,há um hiato entre teoria e aplicações. Em primeirolugar, as teorias científicas são construídas, em geral,para explicar aspectos limitados de um campo,mas as ações humanas, como a educação, lidamcom situações globais. Fatos e leis científicas sobredesenvolvimento cognitivo, por exemplo, nãopodem orientar ações educativas diretamente, umavez que o sujeito do conhecimento é um todo ecompreende motivações, emoções e contexto,todas essas instâncias interligadas de formadesconhecida. Derivar uma pedagogia de umateoria sobre aprendizagem e desenvolvimentocognitivo, portanto, é uma tarefa independenteda elaboração dessa teoria, que requerinvestimento em pesquisa, experimentação eavaliação em ambientes naturais e controlados.

As práticas pedagógicas brasileiras supostamenteapoiadas no sócio-interacionismo enfatizamfortemente o papel do professor. Freqüentemente,as orientações fornecidas ao professor, ao menosaquelas efetivamente praticadas, parecem assumirque a criança nada pode aprender que não sejaexplicitado e orientado pelo professor, havendopouco reconhecimento ou preocupação com oque a criança aprende através do que é ensinadoe, principalmente, através de suas ações,independentemente de ter recebido instruções paraexecutá-las. Deve-se ressaltar que um dos aspectosessenciais do construtivismo, de qualquerconstrutivismo, é a proposição de que toda aaprendizagem e todo o conhecimento sãogovernados por processos tácitos e abstratos, queprevalecem sobre o explícito e o concreto(Mahoney, 1998). Então, a integração de novasexperiências aos esquemas cognitivos disponíveisocorre independentemente de o professor fazeressas ligações, ou seja, toda a preocupação derelacionar experiências pessoais a conceitos, decontextualizar os conhecimentos em relação aoambiente sócio-histórico parece-nos, de certomodo, repousar no velho mito da criança comopágina em branco, apesar de toda a insistênciadiscursiva na crença sobre a criança como sujeitodo seu desenvolvimento, como organismo ativona construção do seu conhecimento. Em suma,parece haver um terrível hiato entre as teorias sobreo desenvolvimento e a pedagogia derivada.

O mesmo problema ocorre no que diz respeitoaos processos de socialização, da aprendizagemde normas de conduta e valores. A preocupaçãoexplícita dos educadores com esses aspectos daformação traduz-se na inclusão de conteúdosrelativos à vida social, que devem ser “passados”para a criança, ignorando-se o que, de fato, elaaprende a cada momento através das suasexperiências concretas. Quando a criança érepreendida por molhar as fraldas ela, certamente,aprende que esse comportamento será punido e,

Fatos e leiscientíficas sobredesenvolvimentocognitivo, porexemplo, nãopodem orientarações educativasdiretamente, umavez que o sujeito doconhecimento é umtodo e compreendemotivações, emoçõese contexto, todasessas instânciasinterligadas de formadesconhecida.

Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?

Page 5: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

18

aos poucos, deixará de fazê-lo mas ela tambémaprende, entre outras coisas, sobre seu própriopoder e o do outro, sobre o valor do seu corpo eseus produtos e sobre causalidade e controle.

O Lugar da Brincadeirana Educação Infantil

Assim, uma vez situados os quadros de referênciaamplos nos quais se apoiam as políticas daeducação infantil, passemos a avaliarespecificamente o lugar da brincadeira naeducação infantil. Também nesse caso, devemosafastar as instituições que não têm qualquerpretensão educacional, representando soluçõesimprovisadas, às vezes desesperadas, de guarda dacriança durante os períodos do dia em que a mãeestá trabalhando, e concentrar nossa atençãonaquelas que estão preocupadas em educar acriança e que têm recursos suficientes para fornecerserviços além da alimentação: materiaisacadêmicos, pessoal qualificado, espaçoplanejado, entre outros. No Referencial CurricularNacional para a Educação Infantil (Brasil/MEC,1998), a brincadeira aparece como um importantecomponente da educação infantil, mas como umaferramenta para a aprendizagem; de fato, o itembrincar é um tópico do item maior“aprendizagem”, e vem no mesmo nível queimitação, oposição, linguagem e imagem corporal;além disso, restringe-se à brincadeira de faz-de-conta, e a prioriza injustificadamente, ignorandoas inúmeras modalidades de brincadeiras queprecedem o surgimento do jogo simbólico.

Esse enquadre utilitarista da brincadeira naeducação infantil vem sendo discutido na literatura,sendo apontadas as limitações e/ou distorçõesdessa concepção, entre as quais a ausência dereconhecimento do caráter auto-motivado dobrincar, a crença na necessidade de orientar abrincadeira em certas direções e não em outras, e

as implicações dessas concepções para a vida dacriança, bem como os impactos no seudesenvolvimento futuro.

O que significa dizer que o brincar (bem comodiversas outras atividades) é auto-motivado? Apergunta requer uma digressão sobre um temaclássico da Psicologia, freqüentemente ignoradoem estudos mais recentes em Psicologia doDesenvolvimento: motivação.

Deci e Ryan (1985) sintetizam as controvérsias sobrebases motivacionais do comportamento em doismodelos, por sua vez baseados em dois enfoquesepistemológicos diferenciados: o mecanicista e oorganísmico. O enfoque mecanicista pressupõeum organismo passivo, que só é ativado ouenergizado a partir de estimulação externa, aopasso que o modelo organísmico pressupõe umorganismo ativo e auto-determinado. Dessesenfoques, resultam dois modelos motivacionaisdistintos: de um lado, as teorias de impulso, que sóadmitem motivações endógenas determinadas pordéficit ou distúrbios do equilíbrio orgânico – porexemplo, fome, sede, dor, sexo – que ativariamações no sentido de restabelecer o equilíbrio; deoutro, o modelo de motivações intrínsecas, quepressupõe um sistema nervoso dotado de atividadeprópria, capaz de gerar energia para ações nãomotivadas por déficit ou distúrbio de equilíbrio,ações que não cessam a partir de saciação oureequilíbrio – por exemplo, exploração,manipulação, ludicidade. Desse último modelo,decorrem os conceitos cognitivos de níveis ótimos deativação e de atenção: os organismos estariampreparados para novidade, complexidade, desafio,incongruência, mas dentro de âmbitos delimitados,capazes de ativar o comportamento sem desorganizá-lo; no plano afetivo, decorrem as noções de queseres humanos teriam necessidade de interações livrese efetivas com o ambiente, nas quais estariamenvolvidos sentimentos de prazer e de interesse, ouseja, que envolveriam recompensas intrínsecas àprópria atividade; seriam dotados, ainda, decuriosidade e de desejo de eficácia ou competênciana manipulação do ambiente. Esses conceitospermitem uma definição de auto-determinaçãocomo a experiência de liberdade na iniciação econtrole do próprio comportamento.

O modelo de motivação intrínseca pressupõe,ainda, que o comportamento intrinsecamentemotivado pode ser inibido se for submetido acontrole externo (motivação extrínseca, ou seja,fazer algo por um motivo que não tem a ver com aprópria atividade ou que não é auto-determinado).Esse pressuposto tem sido amplamente confirmadopor pesquisas empíricas, que dão suporte à noçãode organismo ativo e auto-determinado: porexemplo, crianças que receberam balas parabrincar em balanços abandonam essa atividade

Eulina da Rocha Lordelo & Ana Maria Almeida Carvalho

Page 6: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

19

temporariamente quando deixam de receber arecompensa extrínseca (Gomide & Ades, 1989).

A partir desse modelo, brincar, movimentar-se,interagir com parceiros são ações intrinsecamentemotivadas no ser humano, e a criança é concebidacomo um ser ativo e auto-determinado, o queimplica reconhecer sua competência e seu direitoa condições propiciadoras de seus comportamentointrinsecamente motivados – mas nunca suaobrigação de desempenhar esses comportamentos,o que seria incongruente com a própria noção demotivação intrínseca. O modelo permite aindaindicar o que são condições propiciadoras:novidade e diversidade dentro de um grau ótimode desafio e de incongruência, em condiçõesótimas de atenção e interesse, ausência de pressãopor motivações extrínsecas (expectativas dedesempenho, recompensas por desempenhosegundo critérios externos), capazes de inibir ocomportamento intrinsecamente motivadopossibilidade de experienciar auto-determinação.Changchum e Dianwu (1993) defendem o direitoda criança pré-escolar ao brinquedo e condenamos esforços para “desenvolver” a inteligência dacriança através de programas de treinamento.Acreditam que o brinquedo livre tem um valoreducacional, devendo ser o papel do professor ode ajudar a criança a realizar o brinquedo deacordo com seus desejos e a criar e descobrir coisasnovas.

Quanto ao impacto dos programas sobre odesenvolvimento cognitivo, Sylva (1993), revendoestudos sobre efeitos da pré-escola no desempenhoescolar da criança, reporta que, em termos deganhos cognitivos, as diferenças entre grupos comdiferentes experiências tendem a desaparecer emtorno de oito a nove anos. Apenas em relação àsdiferenças em medidas não-acadêmicas, comocompromisso com a escola, sucesso no trabalho ecomportamento criminal, parece haver associaçãocom as experiências de pré-escola, sendo osresultados relacionados especificamente à naturezados currículos adotados e à qualidade dosprogramas.

Passaremos ao que consideramos um exercício depensar o currículo da educação infantil da perspectivada Psicologia do Desenvolvimento. Não formulamosessas proposições como propostas práticas porqueelas não foram testadas. Cremos que seria melhor tratá-las como hipóteses: o que aconteceria para a criançase:

O espaço da educação infantil fosse organizado comoum parque? Ou como uma casa? Ou como umgrupo de escoteiros/bandeirantes? Ou como umacooperativa de trabalho? Ou como uma comunidadepolítica? Ou como grupo de crescimento pessoal?

O objetivo dessas perguntas é trazer à nossaconsideração as implicações derivadas da adoçãode um modelo particular para a educação infantil:em cada caso, são enfatizados caminhosdesenvolvimentais diferenciados, como o trabalho,num caso, ou relações e vínculos, no outro, ouformação de valores, ou obediência, e assim pordiante, em cada um deles.

De fato, como descrito na literatura, em vários paísesdo mundo a creche não é concebida como umaescola. Observe-se, por exemplo, a descrição deuma creche típica na Suécia, feita por Gunnarsson(1994). Apenas a descrição do espaço já ésuficiente para marcar diferenças essenciais nasconcepções de creche: a área interna para umgrupo de 16 crianças é composta por cinco salas,que as crianças podem utilizar livremente, umapara brincar de casinha, um espaço comalmofadas, livros e um aquário, uma sala decarpintaria, um salão de brincar para atividadesque envolvem movimentos amplos e uma sala commesas e cadeiras, onde as crianças fazem asrefeições, jogam e armam quebra-cabeças epreparam algumas refeições (o autor mencionaespecificamente que “assam bolinhos”). Aorganização dos grupos não obedece ao critériode faixas etárias, o que permite a convivência decrianças de idades diferentes e as experiênciaspeculiares que essa convivência propicia (LORDELO& CARVALHO, 1989, 1999). O currículo enfatiza ocontato e o respeito à natureza, a identidade culturale a interação com a sociedade.

Na Noruega, a formação de educadores privilegiaessas mesmas dimensões, incluindo, além dePsicologia do Desenvolvimento e de Pedagogia,noções de Sociologia e de Filosofia relevantes paraesse currículo (LÆKKEN, 2001).

De outro lado, a descrição da Escola “Bank Street”,nos Estados Unidos, feita por Oliveira (1994),evidencia sua aproximação com um modeloescolar, mas com uma escola cujos objetivos eestratégias valorizam intensamente aspectos comoidentidade, auto-estima, auto-controle, autonomiae expressão emocional.

Também na Itália, país em que o atendimento àcriança pequena tem sido visto como muitosatisfatório, os currículos de educação infantil sãomarcados por uma enfática orientação não escolar(GHEDINI, 1994, FARIA, 1994).

Sustentamos que a escola não é o único e,provavelmente, não é o melhor modelo em que ainstituição de educação infantil pode realizar umaancoragem em busca de sua própria identidade.A simples enumeração de possibilidades demodelos nos alerta para o caráter perigosamente

Sustentamos que aescola não é o únicoe, provavelmente,não é o melhormodelo em que ainstituição deeducação infantilpode realizar umaancoragem embusca de sua própriaidentidade.

Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?

Page 7: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

20

redutor da experiência de educação infantil quese está gestando nas políticas públicas.

Pode-se acrescentar a isso a consideração dasdeficiências de nossos modelos atuais de escola:quantas crianças em idade escolar estudam porprazer ou por interesse, e não controladas por nota?Quanto da motivação característicamente humanapela busca do conhecimento sobrevive às nossasescolas - das piores às melhores? Quanto dessamotivação sobrevive até em nós, professores, sobas pressões de produção e avaliação? Será quevamos cometer a proeza de conseguir que um dia

Eulina da Rocha Lordelo & Ana Maria Almeida Carvalho

as crianças também brinquem só porque, como,onde e quando se espera que elas brinquem?

Se tomarmos efetivamente por base o modelo deauto-determinação, talvez essas conseqüênciasnão sejam tão graves ou irreversíveis, pelo menosem alguns casos. Conta-se que Einstein foi umpéssimo aluno; talvez isso queira dizer que suamotivação intrínseca sobreviveu à escola. Talvez aludicidade humana sobreviva à inserção do brincarna pré-escola como currículo obrigatório e comoatividade da qual se esperam resultadosmensuráveis em termos de desenvolvimento.

Page 8: Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman

21

BRASIL. MEC/SEF. Referencial curricular para a educação infantil. Brasília:MEC/SEF, 1998.

CAMPOS, M. M. Pré-escola: entre a educação e o assistencialismo.In: ROSEMBERG, F. (Org.). Creche. São Paulo: Cortez, 1989. p. 11-19.

CHANGCHUM, W.; DIANWU, W. A brief introduction to the studiesof play in pre-school education in China. International Play Journal, n.1, p. 161-166, 1993.

DECI, E. L.; RYAN, R. M. Intrinsic motivation and self-determination inhuman behavior. New York: Plenum Press, 1985.

FARIA, A. L. G. Impressões sobre as creches no norte da Itália: bambinisi diventa. In: ROSEMBERG, F.; CAMPOS, M. M. (Orgs.). Creches e pré-escolas no hemisfério norte. São Paulo: Cortez, 1994. p. 211-234.

FOGEL, A.; LYRA, M. C. D. P.; VALSINER, J. Dynamics and indeterminismin developmental and social processes. Malwah: Lawrence Erlbaum,1997.

GHEDINI, P. O. Entre a experiência e os novos projetos: a situação dacreche na Itália. In: ROSEMBERG, F.; CAMPOS, M. M. (Orgs.). Crechese pré-escolas no hemisfério norte. São Paulo: Cortez, 1994. p. 189-210.

GOMIDE, P. I. C.; ADES, C. Effects of reward and familiarity of rewardagent on spontaneous play in preschoolers: a field study. PsychologicalReports, n. 65, p. 427-434, 1989.

GUNNARSSON, L. A política de cuidado e educação infantil na Suécia.In: ROSEMBERG, F.; CAMPOS, M. M. (Orgs.). Creches e pré-escolas nohemisfério norte. São Paulo: Cortez, 1994. p. 135-188.

ISABELLA, R. A.; BELSKY, J. Interactional synchrony and the origins ofinfant-mother attachment: a replication study. Child Development, n.62, p. 373-384, 1991.

LKKEN, G. The Norwegian banehage: early childood education andcare in Norway. In: CONGRESSO NORTE-NORDESTE DEPSICOLOGIA, 2., 2001, Salvador. Anais... Salvador: [s.n.], 2001.

LORDELO, E. R.; CARVALHO, A. M. A. Comportamento de cuidadoentre crianças: uma revisão. Psicologia: teoria e pesquisa, n. 5, p. 1-19,1989.

LORDELO, E. R.; CARVALHO, A. M. A. Um estudo naturalístico sobreo comportamento de cuidado entre crianças pré-escolares. Biotemas,v. 12, n. 1, p. 7-30, 1999.

MAHONEY, M. J. Processos humanos de mudança: as bases científicasda psicoterapia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

OLIVEIRA, Z. M. R. Discutindo uma experiência americana de educaçãoinfantil: a Escola Bank Street. In: ROSEMBERG, F.; CAMPOS, M. M.(Orgs.). Creches e pré-escolas no hemisfério norte. São Paulo: Cortez,1994. p. 103-134.

OLIVEIRA, Z. M. R.; ROSSETTI-FERREIRA, M. C. Propostas para oatendimento em creches no município de São Paulo: histórico deuma realidade. Cadernos de Pesquisa, n. 56, p. 39-65, 1986.

PAPOUSEK, H.; PAPOUSEK, M. Learning and cognitive in the everydaylife of human infants. In: ROSENBLATT, J. S. (Org.). Advances in thestudy of behavior. New York: Academic Press, 1984. p. 127-159.

PAPOUSEK, H.; PAPOUSEK, M. Ontogeny of social interaction innewborn infants. In: EULER, C.; FORSSBERG, H.; LAGERCRANTZ, H.(Orgs.). Neurobiology of early infant behaviour. Stockholm: StocktonPress, 1989. p. 217-225.

ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford UniversityPress, 1990.

SCHAFFER, H. R. Mothering. Cambridge: Harvard University Press,1977.

SCHAFFER, H. R. Joint involvement episodes as context fordevelopment. In: MCGURK, H. (Org.). Childhood social development:contemporary perspectives. Hove: Lawrence Erlbaum Associates,1992. p. 99-129.

SYLVA, K. Work or play in the nursery? International Play Journal, n. 1,p. 15-15, 1993.

THOMAN, E. Changing views of the being and becoming of infant. In:_____. (Org.). Origins of the infant’s social responsiveness. New York:Wliley, 1979. p. 445-459.

VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. São Paulo:Unimarco, 1995.

Educação Infantil e Psicologia: para que Brincar?

Eulina da Rocha Lordelo &Ana Maria Almeida Carvalho Rua Estrada de São Lázaro, 197,

Federação. Cep: 40 210 – 730. Salvador, Bahia.E-mail: [email protected] Tels: 71 – 245 93 75 / 9122 93 75

Referênciasbibliográficas

Recebido 12/10/02 Aprovado 24/02/03