Educação, vida urbana e moralidade: a elaboração do povo e ... · Artigo em jornal...
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIR ÃO PRETO COMISSÃO DE PESQUISA (CPq)
FELIPE ZIOTTI NARITA
Educação, vida urbana e moralidade: a elaboração do povo e a invenção do social no fim de século brasileiro
Relatório de pesquisa de pós-doutorado apresentado ao Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) e à Comissão de Pesquisa (CPq) da Universidade de São Paulo (USP) como requisito para conclusão de período de pesquisa junto à instituição. Supervisão: Prof. Dr. Sérgio César da Fonseca
Ribeirão Preto 2019
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Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Área de cadastro da pesquisa: Ciências humanas e sociais
Número do processo no sistema Atena (USP): 2017-1057 Carga horária total cadastrada no sistema Atena (USP): 1256 horas
Relatório aprovado na 81ª reunião ordinária do DEDIC-USP em 07/03/2019 Relatório aprovado na 169ª reunião ordinária da CPq-USP em 11/04/2019
Narita, Felipe Ziotti.
Educação, vida urbana e moralidade: a elaboração do povo e a invenção do social no fim de século brasileiro. Ribeirão Preto, 2019.
358 p. : il. ; 30 cm.
Relatório de pós-doutorado apresentado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / USP. Área de concentração: Ciências humanas e sociais.
Supervisor: Fonseca, Sérgio César.
1. Ciências sociais. 2. História – História contemporânea. 3. Sociologia – Interação social – Socialização. 4. Educação – História da educação. 5. Sociologia – Processo social – Modernização. 6. América Latina. I. Título.
CDD – 301
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APRESENTAÇÃO GERAL DO RELATÓRIO Este relatório é referente à conclusão do período de pesquisa de pós-doutorado
junto à Universidade de São Paulo (USP) entre agosto de 2017 e fevereiro de 2019,
seguindo rigorosamente o cronograma proposto no ingresso. O trabalho está dividido em
duas partes, de modo que a primeira é dedicada a uma listagem das atividades
desenvolvidas no período, incluindo publicações, participações em bancas e participações
em grupos de pesquisa da instituição. Como o vínculo com a Comissão de Pesquisa (CPq)
da USP e o controle de frequência do sistema Atena sublinham a obrigatoriedade desses
itens para as atividades de pós-doutorado, resolvi lista-los logo no início do relatório.
A segunda parte, muito mais extensa, desenvolve o trabalho de pesquisa realizado
no período. O trabalho encerra um longo trajeto de investigações (iniciado em 2009), de
modo que indica muitas referências bibliográficas e documentais. Tendo em vista o
volume de textos, a fim de agilizar a leitura e facilitar o acompanhamento dos argumentos,
não apresentei as referências no formato autor-data. Em vez disso, optei por mencioná-
las no rodapé das páginas, indicando a referência completa logo no momento de seu
aparecimento junto à discussão, evitando trânsitos cansativos entre o corpo do texto e a
listagem das referências na bibliografia ao final do documento. Ainda assim, havendo
necessidade de consulta da listagem, indiquei todas as referências citadas em uma lista
bibliográfica final.
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Parte I
ATIVIDADES ACADÊMICAS DO PERÍODO
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Publicações (2017-2019)
Artigo em revista acadêmica (peer review) - Título: Unlimited capitalism and the politics of the common - Praktyka Teoretyczna, Poznan, v. 27, 2018. ISSN 2081-8130 - DOI: 10.14746/prt.2018.1.12 - Coletânea internacional: “Cooperation as the institution of the common” (Orgs. Bartłomiej Błesznowski e Mikołaj Ratajczak) – publicação financiada pelo Ministério da Ciência e Ensino Superior da Polônia
Capítulo em livro (peer review)
- Capítulo: Public sphere and world-system: theorizing populism at the margins (com Jeremiah Morelock, Boston College) - Livro: “Critical theory and authoritarian populism”. Londres: University of Westminster Press, 2018. ISBN 978-1-912656-04-2. DOI: 10.16997/book30.h
Resenha em revista acadêmica (peer review)
- Título: Para uma nova figuração da práxis: a teoria social e o princípio do comum - Revista Pós Ciências Sociais (UFMA), São Luis, 2018. ISSN 1983-4527
Livro publicado (peer review e conselho editorial)
- Título: O problema do populismo: teoria, política e mobilização (com Jeremiah Morelock, Boston College) - ISBN 978-85-462-1574-4 (impresso) / 978-85-462-1575-1 (digital) - Apresentação: Luiz Carlos Ramiro Jr. (UERJ/UFF) e Grigoris Markou (Universidade Aristóteles de Tessalônica, Grécia) - Edição: Unesp / PPG PAPP / Paco Editorial – São Paulo, 2019 (64 p.)
Artigo em revista acadêmica (peer review)
- Título: Espectros da multidão - Revista USP, São Paulo, v. 117, 2019. ISSN 0103-9989 / DOI (no prelo)
Artigo em revista acadêmica (peer review)
- Título: Moral scenes from urban life - Praktyka Teoretyczna, Poznan, v. 23, 2017. ISSN 2081-8130 - DOI: 10.14746/prt.2017.1.10 - Coletânea internacional: “Repressed histories of the 19th century” (Orgs. Katarzyna Czeczot, Wiktor Marzec e Michal Pospiszyl)
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Artigo em revista acadêmica (peer review)
- Título: A variedade institucional como tema para o estudo da história da assistência à infância na cidade de São Paulo no século XIX (com Sérgio C. Fonseca, USP) - Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 9, 2017. ISSN 2175-3423
Review article em revista acadêmica (peer review)
- Título: Marx at the margins - Artificios (Instituto Colombiano de Antropologia), Bogotá, v. 9, 2017 - ISSN 2422-118X. Dossiê “El marxismo como caja de herramientas”
Resenha em revista acadêmica (peer review)
- Título: Historiografia e institucionalização de saberes sobre a nação (com Sérgio C. Fonseca, USP) - ArtCultura (UFU), Uberlândia, v. 20, n. 36, 2018. ISSN 1516–8603 - DOI 10.14393/ArtC-V20n36-2018-1-15
Livro (peer review e conselho editorial)
- Título: A educação da sociedade imperial (423 p.) - Ed. Prismas, Curitiba, 2017. ISBN 978-85-5507-701-2 - Coleção Leituras de Brasil (dir. Marcia Naxara & Virginia Camilotti / Unesp) - Apresentação: Alexandre Fontaine (Áustria), Roberto Di Stefano (Argentina), André Paulilo (Unicamp) e Sérgio Fonseca (USP)
Capítulo em livro (peer review e conselho editorial)
- Capítulo: Conflito e cultura histórica: as políticas da história e as fraturas da memória (com Sérgio C. Fonseca, USP) - Livro: “Ensino de história: estudos e experiências” (Vol. 1). Curitiba: CRV, 2018. - ISBN 978-85-444-2552-7 / DOI 10.24824/978854442552.7 - Orgs. Prof.ª Dr.ª Vânia Martino (Unesp) e Prof.ª Dr.ª Alessandra David (CUML)
Entrevista em periódico acadêmico (peer review) - Título: Viajando com o conceito de transferências culturais: entrevista com Michel Espagne (École Normale Supérieure de la rue d’Ulm, Paris) - Realização: Alexandre Fontaine (Universidade de Viena, Áustria) - Tradução: Felipe Ziotti Narita - Cadernos CIMEAC (UFTM), Uberaba, v. 8, n. 2, 2017. ISSN 2178-9770 - DOI: 10.18554/cimeac.v8i2.3263
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Entrevista em periódico acadêmico (peer review)
- Título: La globalización capitalista y el lugar epistémico de la educación popular en América Latina (entrevista com Marco Raúl Mejía) - Realização: Danilo Seithi Kato e Felipe Ziotti Narita - Cadernos CIMEAC (UFTM), Uberaba, v. 7, 2017. ISSN 2178-9770 - DOI: 10.18554/cimeac.v7i2.2488
Artigo em jornal
- Título: Ilusões perdidas (com Jeremiah Morelock, Boston College) - Nexo Jornal, São Paulo, 30 out. 2018.
Artigo em jornal universitário
- Título: Dialética do populismo (com Jeremiah Morelock, Boston College) - Jornal da USP, São Paulo, 13 jul. 2018. ISSN 2525-6009
Entrevista em jornal
- Título: ¿Trumpismo brasileño? - La Razón (Espanha), Madri, 24 set. 2018. (Sección Internacional)
Entrevista em jornal
- Título: El conflicto social e ideologico ya ha penetrado en la sociedade - La Razón (Espanha), Madri, 8 out. 2018. (Yaiza Sanchez / Sección Internacional)
Artigo em jornal universitário - Título: Ruínas e ideologia (com Jeremiah Morelock, Boston College) - Jornal da USP, São Paulo, 8 jan. 2019. ISSN 2525-6009
Entrevista em jornal
- Título: El populista de derecha logra victoria, pero no impide segunda vuelta - La Razón (Mexico), Mexico DF, 8 out. 2018. (Yaiza Sanchez e Jose A. Vera)
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Artigo em jornal universitário - Título: Agonia e cultura moderna - Jornal da USP, São Paulo, 9 fev. 2018. ISSN 2525-6009
Artigo em jornal universitário
- Título: As piras de outono - Jornal da USP, São Paulo, 28 maio 2018. ISSN 2525-6009
Artigo em revista acadêmica (peer review)
- Título: A dinâmica da sociedade civil no horizonte da educação popular - Revista Educação, Batatais, v. 7, n. 5, 2017. ISSN 2237-6011 - Dossiê “Pensando as políticas pública educacionais no Brasil” (Orgs. Tatiana Noronha de Souza e Vânia de Fátima Martino, Unesp)
Demais atividades científicas/acadêmicas (2017-2019)
Conferência em universidade - Título: Savoirs scolaires et morale sociale en circulation au Brésil: l’espace atlantique et le problème des transferts culturels au XIXe siècle - Conferencista convidado para a inauguração do Forschungskreis Gregor Girard (FK2G) na Universidade de Friburgo (Suíça) - Setembro de 2018 (coordenação de Beat Bertschy e Alexandre Fontaine)
Seminário em universidade
- Título: Cartografias do contemporâneo: crise, conjuntura e o problema do comum - Reinaldo Furlan, Sérgio C. Fonseca, Danilo S. Veríssimo e Felipe Ziotti Narita - Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP (22 e 23 de agosto de 2018)
Seminário em universidade
- Título: Modernidade e subjetividade: dissonâncias e convergências - Franklin Leopoldo e Silva, Reinaldo Furlan, Sérgio C. Fonseca e Felipe Ziotti Narita - Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP (13 de novembro de 2018)
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Conferência em universidade - Título: Neoliberalismo progressista e o momento populista (com Jeremiah Morelock, Boston College) - Conferência de abertura do III Seminário Internacional de Pesquisa em Políticas Públicas e Desenvolvimento Social da Unesp (8 nov. 2018)
Conferência em universidade
- Título: Do governo moral da infância à assistência institucional (com Sérgio C. Fonseca, USP) - XXI Encontro Científico do CINDEDI-USP - FFCLRP-USP, fevereiro de 2018
Conferência em universidade
- Título: Religião e moral na formação do Império brasileiro: o problema da elaboração da sociedade nacional - Ciclo de Palestras Beemote / IESP-UERJ, 31 mar. 2017 - Beemote: grupo de pesquisas em teoria política (coordenação de Christian E. Cyril Lynch e Luiz Carlos Ramiro Jr.)
Conferência em universidade
- Título: Authoritarianism and transnational rise of right-wing populism: critical theory and sociological scenarios (com Jeremiah Morelock, Boston College) - 2nd Seminar in Interdisciplinary Studies on Human Rights, Education and Dignity - 14 de maio de 2018 (Coord. Maria Madalena Gracioli)
Conselho editorial
- Membro convidado do conselho de assessores internacionais da coletânea “Teorie del conflitto e filosofie della pace: a 100 anni dalla pubblicazione di Der Konflikt der modernen Kultur di Georg Simmel”, organizada pelo sociólogo Tiziano Telleschi (Universidade de Pisa), a respeito do centenário de Georg Simmel na Itália - Scienza e Pace, Univ. de Pisa, 2018. ISSN 2039-1749
Conferência em universidade
- Título: Estado, escola e sociedade nacional: institucionalização, modernização social e sistema educacional no Brasil - V Colóquio de Incentivo à Pesquisa (FAPESP / CAPES / Unesp) - São Vicente, 31 de agosto de 2017. ISBN 978-85-61498-11-5
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Conferência em universidade e feira do livro - Título: A invenção da sociedade: nação, moral e estruturas de socialização na formação o Brasil - 18ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto / XXII Semana de História do CUBM - 22 de maio de 2018
Participação em grupos de pesquisa
- Pesquisador associado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Infância, Juventude e Educação da USP (coordenado por Elmir de Almeida e Sérgio C. Fonseca, ambos da USP) e um dos responsáveis pelos seminários e pelas atividades de pesquisa - Pesquisador do grupo Historiar: Narrativas Identitárias, Conceitos, Linguagens (CNPq), coordenado por Marcia Naxara (Unesp) e Virginia Camilotti (Unesp)
Colaboração em organização de evento
- Educação e povos indígenas: debates e práticas interculturais - Realização: Pró-Reitoria da Extensão da UFTM (Uberaba / nov. 2017) - Apoio: Ministério da Educação (Protocolo do SIGProj: 283012.1329.247031. 16102017) – http://sigproj1.mec.gov.br/apoiados.php?projeto_id=283012 - Evento da revista Cadernos CIMEAC coordenado pelo Prof. Dr. Danilo Seithi Kato (UFTM) e pela Prof.ª Dr.ª Daniela Bueno Américo de Godoy (USP)
Revisor e editor-chefe em periódicos acadêmicos
- Revisor de periódicos acadêmicos na área de ciências sociais: Current Sociology (International Sociological Association), Sociedad y Discurso (Universidade Aalborg), Dissonância (Unicamp), Pós Ciências Sociais (UFMA), Pro-Posições (Unicamp), Dia-Logos (UERJ), Revista Brasileira de História da Educação, Revista Brasileira de História & Ciências Sociais (Unisinos) e Espaço Acadêmico (UEM) - Editor-chefe da revista Cadernos CIMEAC (UFTM), assumindo responsabilidade pela coordenação editorial e pela composição de coletâneas apoiadas pela ANPEd e pela parceria com a UFSC
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Participação como membro titular e como suplente em bancas de pós-graduação - Sarah Passos Vieira da Costa – A história da filosofia no discurso filosófico e educacional de John Dewey (USP, Qualificação de mestrado, dez. 2017)
- Neiva Santos – Assistência à infância como tema de trabalhos apresentados nos Congressos Brasileiros de História da Educação (2000-2015) (USP, Defesa de mestrado, dez. 2017)
- Tânia Sousa Batista – Políticas públicas educacionais do sistema de atendimento socioeducativo aos adolescentes infratores implementadas na Fundação Casa de Franca (Unesp, Qualificação de mestrado, ago. 2017)
- Bernardo Goldberger – A criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e a influência da Fundação Rockefeller na interiorização do ensino médico (USP, Qualificação de mestrado, fev. 2018)
- Marcela Sanches Marcantonio – A LBA e as políticas assistenciais em espaço escolar (1942-1952) (USP, Qualificação de mestrado, jul. 2018)
- Rubia Franco – Mediação de professores em sala de aula (UFTM, Defesa de mestrado, fev. 2018)
- Marcelo Gouveia de Araújo – Um cântico de profundis, ou quando as pedras entoaram o mito do herói estatal (Centro Universitário Barão de Mauá, Especialização em História, Cultura e Sociedade, abr. 2018)
- Gabriel Papa Ribeiro Esteves – A memória em disputa: representações do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar brasileira (Centro Universitário Barão de Mauá, Especialização em História, Cultura e Sociedade, abr. 2018)
- Fernanda Ruffo Roberto – O conceito de personalidade democrática nos primeiros trabalhos de Paulo Freire, 1940-1960 (USP, Qualificação de mestrado, jan. 2019)
- Laís Rédua – Interculturalidade crítica na formação inicial de professores (UFTM, Defesa de mestrado, fev. 2019)
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Parte II
PESQUISA REALIZADA
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En bien et en mal, la crise où est plongé le monde civilisé est infiniment plus grande que ne l’ont prévue nos pères, plus grande que nous ne le pensons nous-mêmes, nous qui en avons déjà subi les plus divers effets [...] Un beau travail de progrès et un hideux travail de destruction se poursuivent à la fois dans les esprits et dans les sociétés. L’humanité n’a jamais flotté à ce point entre le ciel et l’abîme.
Guizot, Méditations II, 1866.
Quer em geral, quer em particular, nem o progresso nem a ordem são cousas que se façam ou se deixem de fazer, a sabor de nossas veleidades [...] Quasi que tanto valera ser partidario do movimento assombroso que arrasta o nosso mundo solar a mergulhar-se nos abysmos sideraes, em busca de destinos desconhecidos.
Tobias Barreto, Os homens e os princípios, 1870.
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NARITA, Felipe Ziotti. Educação, vida urbana e moralidade: a elaboração do povo e a invenção do social no fim de século brasileiro. 358 f. Relatório (Pós-Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Comissão de Pesquisa (CPq), Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2019.
RESUMO A pesquisa pretende analisar a elaboração e a difusão de saberes morais sobre a educação dos cidadãos no fim de século brasileiro, período compreendido entre os anos 1870 e a virada para o século XX, como mecanismos de gestão moral da população. Em um contexto de importantes transformações no Brasil oitocentista (crise do Império e construção da República, vida urbana, esfera pública, multidões urbanas, imigração etc.), a disseminação de percepções sobre a educação e a moralidade (por meio de jornais, livros, livros didáticos, conferências pedagógicas, exposições universais, relatórios oficiais, pareceres manuscritos) situa o problema da educação em uma relação com valores que, dispostos estruturalmente como prescrições do agir e como mecanismos de avaliação das transformações em curso, delimitam coordenadas de organização da sociedade nacional. Nesse sentido, a construção de uma gramática moral (trabalho, virtudes, honra, religião etc.) implica um conjunto de esforços formativos que, tematizados à luz da vida urbana e da dialética de volatilização de contextos tradicionais, desenham possibilidades do governo da cidade e da nascente população urbana por meio dos processos de educação (entendidos como práticas difusas de produção e reprodução de valores). A educação, constituindo a tangibilidade da forma social por meio de conteúdos de socialização e disposição de itens morais, articula a formação do Brasil a uma ampla rede de circulação e de transferências culturais a partir do enraizamento de imaginários e do circuito de transformações capitalistas da modernidade oitocentista. Palavras-chave: História do Brasil; Moral; Modernidade; Processos de educação;
História da educação.
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NARITA, Felipe Ziotti. Education, urban life and morality: the elaboration of the people and the invention of the social in fin-de-siècle Brazil. 358 pages. Research report (Postdoc) – School of Philosophy, Sciences and Letters of Ribeirão Preto, Committee of Research, University of São Paulo, Ribeirão Preto, 2019.
ABSTRACT This research analyzes the elaboration and the diffusion of moral savoirs related to the education of the citizens in fin-de-siècle Brazil, between the 1870s and the turn of the 20th century, as mechanisms of moral management of population. In the context of structural transformations (crisis of the Empire and the construction of the Republic, urban life, public sphere, urban multitudes, immigration, etc.), the dissemination of perceptions on education and morality (through newspapers, books, schoolbooks, public meetings, universal exhibitions, official repports and manuscripts) played an important role in the prescription of values and public behaviors that constituted forms of action grounded in the morality of national society. In this sense, the construction of a moral grammar based on labor, virtues, honnor and religion implied a set of pedagogical attitudes toward both the new urban milieu and the dialectic of volatilization of traditional contexts in light of the broader effort at managing the population through processes of education. With the acceleration of cultural transfers and cultural circulation, moral repertoires settled structures of socialization that produced imaginaries embbeded in the transnational circuit of ideological and material transformations of capitalist modernity in the end of the 19th century. Keywords: History of Brazil; Morals; Modernity; Processes of education; History of
education.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 17
1. PROCESSOS DE EDUCAÇÃO, VIDA URBANA E
INFRAESTRUTURA NO FIM DE SÉCULO ....................................................... 31
2. AMBIVALÊNCIAS DE ESPÍRITOS FLUTUANTES:
A VERTIGEM MORAL COMO EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE .. ....... 89
3. UM FOCO DE VIRTUALIDADES CONTRÁRIAS:
A ELABORAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E A
ECONOMIA MORAL DOS INSTINTOS ............................................................ 143
4. A GESTÃO MORAL DA POPULAÇÃO ............................................................. 194
5. A INVENÇÃO DO SOCIAL E OS USOS DA SOCIEDADE ............................. 257
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 314
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 326
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INTRODUÇÃO O foco da presente pesquisa consiste em analisar os processos de educação e a
construção de valores morais (religião, virtudes, família, honestidade, honra, contenção,
recato, civilidade, obediência etc.) da socialização junto aos contextos das transformações
estruturais do mundo da vida no Brasil do fim do século XIX (especialmente no fim de
século, entre os anos 1870 e a virada para o século XX). Meu argumento é que a estrutura
de prescrições de valores e formação (educação) de condutas, como preocupações
emergentes no horizonte da cidade, implica tentativas de estabilização e de reposição de
elementos da gramática moral em uma sociedade que atravessava significativas
transformações nos quadros do sistema-mundo moderno. Às tentativas de rotinização de
valores morais da socialização por meio dos processos de educação, portanto, subjaz um
conjunto muito mais amplo de transformações situadas na gênese da cultura moderna –
essa dialética entre o campo de valores instituídos e sua potencial corrosão diante da
experiência moderna da aceleração é crucial para meu argumento. Antes de apresentar os
momentos fundamentais da pesquisa, contudo, gostaria de posicioná-la no percurso de
trabalhos que, desde 2009, compõem um mesmo conjunto de preocupações encerrado na
presente etapa de investigação.
O primeiro livro, publicado em 2014, analisava a organização da sociedade
nacional no século XIX a partir das narrativas históricas que tematizavam sua formação
(sobretudo livros didáticos publicados e bastante difundidos no período), indicando que,
como desenvolvimento temporal, a narrativa representada e ensinada tinha como
premissa um desdobramento sobre o presente, entendido como interlocutor e garantidor
de uma história virtuosa, de modo que pressupunha um conjunto de valores morais para
a inteligibilidade da organização temporal da forma social.1 A dinâmica dos valores
morais, então dispostos temporalmente e configurados conforme as narrativas da nação,
implica também sua rotinização em parâmetros de socialização. O segundo livro,
publicado em 2017, foi dedicado a esse problema, enfatizando a centralidade da formação
da infância no oitocentos brasileiro, na medida em que, como germe do futuro homem e
cidadão, essa questão direcionava a investigação para a constituição de pressupostos da
socialização instituídos em um campo de valors morais e dinamizados pelos processos de
1 NARITA, Felipe Ziotti. O século e o Império: tempo, história e religião no Segundo Reinado. Curitiba:
Appris, Prismas, 2014. (Col. Ciências Sociais)
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educação.2 Nesses dois movimentos do mesmo conjunto, a ideia central foi analisar a
tangibilidade da forma social a partir das estruturas valorativas da socialização –
destacadas junto às práticas formativas de educação e de constituição de condutas.
Em relação à segunda parte da pesquisa (o volume publicado em 2017), alguns
deslocamentos são importantes. A rigor, esses pontos não são afastamentos em relação à
etapa anterior; indicam, antes, redimensionamentos do problema em relação ao material
empírico destacado e à abordagem aqui desenhada. Nesse sentido, os mencionados
deslocamentos podem ser entendidos da seguinte forma:
(1) Quando faço referência aos processos de educação, não estou chamando de educação apenas o conjunto de atividades formais ou institucionalizadas em currículos, escolas, práticas de ensino escolar, livros didáticos etc. Abordo a educação e as perspectivas formativas de condutas e de valores como processos disseminados junto a práticas sociais mais amplas, ou seja, como um conjunto difuso de práticas descentradas (não confinadas institucionalmente) que, levando em consideração os espaços formais do campo da instrução (escolas, relatórios oficiais etc.), também dizem respeito a esforços de aderência da vida social aos valores do campo da moralidade. Assim, os processos de educação indicam mecanismos esparzidos pelo espaço social e traduzidos em critérios de socialização, evidenciando perspectivas de conformação do agir à estabilização do campo da moralidade como contextos de prescrição de condutas e de interpretação das transformações junto à gênese da modernidade capitalista no século XIX. (2) A moral, basicamente, assinala uma estrutura de prescrições, um conjunto de descrição de práticas rotinizadas (costumes) e uma série de mecanismos de avaliação de condutas (valores). Se, como prescrições estruturais, uma economia do dever é fundamental,3 meu argumento é que o campo moral não é restrito unicamente ao problema de um imperativo para o agir. Trata-se, também, de uma estrutura que elabora valores de estima, reconhecimento e avaliação das transformações do mundo da vida – em síntese, parâmetros valorativos de socialização que alimentam uma hermenêutica dos comportamentos. A partir desse horizonte, portanto, tento relacionar as dinâmicas de socialização aos referentes interpretativos do campo da moralidade. Nesse sentido, a tangibilidade da forma social é abordada a partir da instituição dos valores como orientações e percepções disseminadas no espaço social constituído por uma gramática própria. (3) Como elementos combinados conforme práticas específicas, essa gramática moral funciona como um índice para a referência do campo de valores. Ela sinaliza, sobretudo, a disponibilidade de um conjunto de significações que assume o campo da moralidade
2 NARITA, Felipe Ziotti. A educação da sociedade imperial: moral, religião e forma social na
modernidade oitocentista. Curitiba: Prismas, Appris, 2017a. (Col. Leituras de Brasil) 3 AGAMBEN, Giorgio. Opus dei: arqueologia do ofício. Trad. Daniel Arruda Nascimento. São Paulo:
Boitempo, 2013.
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como uma estrutura comum para as interações sociais. Então, a gramática moral indica uma grade de valores que, diluídos em formas de socialização, estabelece nexos normativos entre as percepções emergentes do terreno social e sua vinculação à vida moral. Nesse sentido, a dinâmica das virtudes, da civilidade e dos deveres, na modernidade oitocentista, configura preceitos generalizáveis a um ideal normativo de cidadão. A mobilização dos itens da gramática moral assinala as condições de vinculação dos valores morais aos sentidos do agir e às estruturas de produção e reprodução do mundo da vida cortadas transversalmente pelos processos de educação e pelas transformações decorrentes da nova materialidade do mundo moderno incorporada em infraestrutura, técnica e relações sociais (trabalho, sentimentos, afetos etc.). O problema que atravessa a pesquisa diz respeito aos parâmetros de formação
moral do homem e do cidadão no Brasil do século XIX. Em texto de 1870, publicado em
coletânea organizada por Silvio Romero, Tobias Barreto afirmava que “o cidadão sem o
homem, o homem sem o cidadão, a sociedade abstrahida do Estado, o Estado abstahido
da sociedade não passam de categorias logicas do pensamento especulativo”.4 Nas
pesquisas feitas até aqui, tentei demonstrar a estruturação de um campo de prescrições e
de avaliações do agir, rotinizando balizas de socialização para a elaboração da sociedade
nacional, a partir dos processos de educação. Estabelecendo nexos entre as condutas e os
fundamentos do humano e do cidadão, a reiterada preocupação formativa com os
elementos mais fundamentais da socialização (valores morais) funciona como técnicas de
subjetivação em relação à normatividade de condutas e motivações subjetivas na gênese
da modernidade.5 Especialmente no contexto das revoluções atlânticas, o processo
constituiu estruturas de reconhecimento e sujeitos implicados na elaboração dos novos
espaços sociais junto à construção do mundo pós-colonial, nos quadros da conjuntura de
descolonização nas Américas (britânica, 1776-1783; francesa, 1802-1803; espanhola,
1810-1824; portuguesa, 1822-1824),6 diante da organização de sociedades nacionais
durante o século XIX.7
A partir desses pontos, mantenho a premissa de investigar a lógica social
subjacente às perspectivas de formação do cidadão, ampliando o tema dos processos de
educação para uma investigação sobre as percepções (vinculadas ao campo moral) e sua
exposição às transformações culturais e materiais do fim de século. O material de análise,
4 BARRETO, Tobias. Varios escriptos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1900. p. 51. 5 STEEDMAN, Carolyn. Strange dislocations: childhood and the idea of human interiority (1780-1930).
Cambridge: Harvard University Press, 1998. 6 FRADERA, Josep. La nación imperial: derechos, representación y ciudadanía en los imperios de Gran
Bretaña, Francis, España y Estados Unidos (1750-1918). Madri: Edhasa, 2015. (Vol. 1) 7 NARITA, Felipe Ziotti. Religião e moral na formação do Império brasileiro: o problema da elaboração
da sociedade nacional. Paper de conferência – IESP-UERJ, Rio de Janeiro, 31 mar. 2017. 34 p.
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conforme as etapas anteriores de pesquisa, é composto por uma significativa diversidade
de documentação. O século XIX, como período de massificação e de difusão da cultura
do impresso, oferece um rico conjunto documental para a análise das transferências
culturais, das produções/reproduções de imaginários e da circulação de repertórios
temáticos (nesta pesquisa, ancorados no problema da moral) no espaço transatlântico,
indicando inflexões e novos regimes de apropriação e produção de sentidos por meio das
práticas culturais em circulação na modernidade capitalista.8 Nesse contexto, jornais,
pequenas brochuras, livros didáticos, relatórios oficiais e impressos de conferências
públicas (documentos comuns no Brasil, sobretudo, a partir dos anos 1870) são utilizados
como base empírica para analisar os processos de educação. A diversidade de impressos
e a proliferação de autores (compreendendo dos nomes de proa da intelectualidade
oitocentista até figuras de menor projeção) indicam justamente a disseminação dos
processos de educação e, sobretudo, as ramificações e a dinâmica de uma gramática moral
cuja capilaridade estruturava as formas da sociedade nacional.
Nesse sentido, o diversificado conjunto documental não está limitado a
proposições contingenciais (restritas a pequenos excertos ou impressões fragmentadas)
sobre os processos de educação e o campo da moralidade. A presença bastante difusa dos
repertórios morais e das práticas formativas de conduta em diversos gêneros de
documentação indica algo além de temas meramente superficiais, ou seja, permite
analisar a coerência dos valores mobilizados com horizontes de instituição do campo
moral e de percepções das mudanças socioculturais da modernidade. Também como
parâmetro metodológico, venho sustentando, ao longo desses estudos dedicados ao
mundo oitocentista, o lugar central das interpretações de conjunto produzidas no período
sobre o período. Em outras palavras, mais do que uma atestação documental ou referência
empírica pontual, creio que a documentação selecionada oferece um valioso background
para uma atitude hermenêutica dedicada a construir relações de sentido também a partir
do auto-entendimento daquele mundo histórico.
A construção da cultura moderna é inseparável de uma consciência histórica
dobrada sobre a historicidade do contemporâneo. Essa forma de consciência, certamente
relacionada aos distintivos da época em relação ao desenvolvimento material da
modernidade capitalista (vapor, ferrovias, impressos, revolução, migrações etc.) e à
integração assimétrica do globo, entende o presente como condicionado por sua validez
8 CLIFFORD, James. Traveling cultures. In: CLIFFORD, James. Routes: travel and translation in the late
twentieth century. Cambridge: Harvard University Press, 1997.
21
específica, fundamentada na reflexividade em relação aos processos acumulados,9
realçando um conjunto de parâmetros intramundanos que destacam o contemporâneo
como uma espécie de epígono do processo da história e seus desdobramentos universais
calcados em um ideal de humanidade (sem dúvida esse é um dos fundamentos da
ideologia da “civilização moderna” tão apregoada no oitocentos). Essa visada em
perspectiva permite situar o conjunto de percepções do mundo da vida a partir dos nexos
e das descrições de sentido (sinnvoll) subjacentes à posição daquele presente e de sua
auto-compreensão (Selbstinterpretation) em relação ao contemporâneo e ao processo
histórico de sua modernidade.10
Na conjuntura destacada, a circulação e a transferência de saberes e formas de
vida são bastante evidentes junto à documentação que circulava pelas capitais portuárias
do Brasil – incluindo, nesse contexto, a cidade de São Paulo que, apesar da posição
interiorana, cresceu significativamente no último quartel do século XIX (tendo em vista
as obras ferroviárias de 1865-1867), interligando a expansão da lavoura cafeeira aos
centros portuários. Meu argumento é que a infraestrutura urbana do fim de século dispõe
as coordenadas relacionadas às novas figurações – marcadas por continuidades e rupturas
– da vida moderna na periferia do capitalismo. Por meio do crivo moral e das condutas, a
circulação de saberes e imaginários da cultura moderna indica nexos sociais para o
entendimento das transformações da vida urbana e seu campo valorativo. Em minha
abordagem, então, modernidade e capitalismo são dois processos indissociáveis:11 à luz
da expansão capitalista da segunda metade do século XIX e das amplas transformações
na materialidade do mundo da vida, as disjunções e as tensões do campo moral podem
ser entendidas a partir da aceleração e da volatilização de formas de vida anteriores,
elaborando quadros avaliativos e prescritivos revolvidos pelos múltiplos impactos da
problemática vida moderna.
Vale ressaltar que a estruturação dessas formas de vida está relacionada a diversos
elementos. Na segunda metade do século XIX, em um processo certamente acelerado a
partir dos anos 1870 (à luz do “bando de ideias novas” diagnosticado por Silvio Romero),
materialismo, positivismo, evolucionismo, ateísmo, simbolismo, naturalismo e um
diversificado imaginário sobre as revoltas urbanas implicaram a reorganização da esfera
9 GADAMER, Hans-Georg. Il problema della coscienza storica. 3. Ed. Trad. Giangaetano Bartolomei.
Napoli: Guida, 1988. p. 19. 10 OSTERHAMMEL, Jürgen. Die Verwandlung der Welt: eine Geschichte des 19. Jahrhunderts.
Munique: C. H. Beck, 2009. p. 1282-1284. 11 JAMESON, Fredric. A singular modernity. Nova York: Verso, 2002.
22
pública tanto a partir da difusão temática quanto a partir da formação de novos públicos,12
reestruturando circuitos de ideias enraizados na vida urbana. Impactos importantes nas
formas e nos espaços de sociabilidade são notáveis junto aos teatros, botequins e regiões
de prostituição – transformações especialmente visíveis no Rio de Janeiro, onde as novas
condições da esfera pública, a boemia dos cafés e a boemia dorée dos clubes, grêmios e
salões literários tematizavam amplamente esses processos.13 Trata-se de uma conjuntura
marcada por transformações e transferências técnicas e tecnológicas,14 tornando a
disponibilidade do novo sistema de objetos uma inspiração para fartos imaginários sociais
envolvendo a técnica da cultura moderna (eletricidade, telefone, telégrafo, fonógrafo,
cinematógrafo, magnetismo etc.).
As transformações na esfera pública, aliás, também implicaram uma
reconfiguração do campo ideológico. No fim de século, a presença do anarquismo, do
socialismo e do anarco-comunismo em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo,
sobretudo a partir dos anos 1890, deve ser destacada.15 As condições de reconfiguração
da dinâmica cultural, a nova materialidade da vida moderna (técnica, relações sociais,
espaços de sociabilidade etc.) e o campo politico-ideológico elaborado no lusco-fusco do
período imperial e na ascensão da ordem republicana compõem um mesmo conjunto de
transformações. Boa parte das coordenadas desse processo pode ser cartografada
justamente tendo em vista os impactos na estruturação moral da sociedade.
Em 1895 Joaquim Nabuco, refinado intérprete dos dilemas latino-americanos do
período, esboçou uma espécie de teoria da história a fim de compreender o “estado de
agitação” como expressão do “espírito do tempo” marcado pela indeterminação e pela
imponderabilidade de um horizonte de expectativas incapaz de formar uma “síntese de
sua combinação definitiva”. No caso brasileiro, paralelamente à desintegração do
escravismo e à reestruturação das forças produtivas – ponto delicado de “economia
social”, conforme a expressão de Nabuco –, o “estado de agitação” do fim de século era
entendido como a conjuntura em que “os elementos sociais até então combinados de certo
modo começam a desligar-se uns dos outros, em que as afinidades primitivas perdem a
12 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
13 OLIVEIRA, Diogo de Castro. Onosarquistas e patafísicos: a boemia literária no Rio de Janeiro fin-de-siècle. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
14 HEADRICK, Daniel. The tentacles of progress: technology transfer in the age of imperialism, 1850-1940. Oxford: Oxford University Press, 1988.
15 SEIXAS, Jacy Alves. Mémoire et oubli: anarchisme et syndicalisme révolutionnaire au Brésil. Paris: Maison des Sciencies de l’Homme, 1992. p.52-75, p.85-94
23
força”, “de sorte que mesmo as rochas se volatilizam”. Momento “em que tudo se separa
para unir-se diferentemente”,16 comprometendo a “moral social” e a própria estruturação
da coesão e dos parâmetros de socialização das sociedades nacionais.17 O quadro dessa
experiência da volatilização é bastante amplo, de modo que ficarei limitado, aqui, a uma
sintética visão de conjunto para balizar a discussão introdutória.
Em uma conjuntura de desgaste das instituições imperiais e construção dos
parâmetros da Primeira República, novas formas institucionais e uma reelaboração do
próprio horizonte temporal da nação foram marcadas por diversos parâmetros e
percepções dos novos tempos. Uma nova consciência do tempo,18 então, condicionava a
ideologia do progresso do século a uma consideração histórica sobre o passado
acumulado nas instituições imperiais. O Manifesto Republicano de 1870 é sintomático
nesse sentido: como perspectiva de modernização do “mechanismo social”, por meio de
um argumento que torce o presente imperial “como se agora surgisse do chaos colonial”,19
o texto sintetizava o sinal dos novos tempos a partir do amálgama de propostas de
descentralização administrativa (tônica recorrente no reformismo do Império brasileiro
desde os anos 1860) e discursos federalistas.20 A consciência histórica dos tempos da
propaganda republicana, mesclando um conjunto de aspirações e meios de difusão (vale
destacar, além de pronunciamentos públicos, os diversos jornais, panfletos e congressos
partidários),21 assinalou um contexto rico em imaginários sobre os novos tempos “no
meio da anarchia moral que reina nos espiritos”, conforme um dos signatários do texto de
1870.22 Nesses cenários, novas narrativas sobre a nação e o povo sinalizavam justamente
os significados e a amplitude das transformações morais e ideológicas em curso.
Para além das propostas de representação do Campo Sales de 1878 (nos tempos
do Almanaque Literário de São Paulo, defendendo a propaganda do “contacto immediato
com o povo”), dois textos sintomáticos podem ser destacados. Os ensaios históricos de
Assis Brasil, em 1881, propunham figurações do povo a partir de uma narrativa de
16 NABUCO, Joaquim. Balmaceda. Brasília: Senado Federal, 2010. p.42-43. 17 Devo muitas dessas discussões e insights em relação a Nabuco aos diálogos frutíferos com os cientistas
políticos Luiz Carlos Ramiro Jr. (UERJ/UFF) e Christian Cyril Lynch (UERJ). 18 NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de
Almeida. (org.). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
19 Manifesto. A República, Rio de Janeiro, 3 dez. 1870. 20 VISCARDI, Claudia Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro.
Curitiba: Editora CRV, 2017. 21 MELLO, Maria Tereza Chaves. A República consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. HILSDORF, Maria Lucia Spedo. Francisco Rangel Pestana: o educador esquecido. Brasília: INEP, 1988.
22 BOCAYUVA, Quintino. Simples reparos. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 20 jun. 1878.
24
mobilização das “forças sociaes”, associando a estrutura da monarquia ao atraso e ao
represamento do presente: se o Império “não impediu que penetrasse aqui o espirito do
século XIX”, a hesitação e a confusão do presente cindiam a ação entre os imperativos
do horizonte de aspirações e o abatimento “emquanto que o progresso material avulta, a
opinião decresce”, de modo que “a edade d’uma nacionalidade não se conta pelo facto
material dos annos decorridos desde a sua constituição, mas pelo espirito do tempo a que
ella se vincula”, pois “uma nacionalidade é mais um ser moral do que material. E nós
estamos ligados ao espírito d’este seculo pela parte pensante da nação”.23 O esquema
teórico de Alberto Sales, baseado em uma síntese entre a teoria da cooperação de Spencer
e a filosofia social de Comte a fim de “chegar a uma verdadeira theoria da sociedade”,
posiciona a agenda federalista e o discurso republicano em uma disputa pelo conteúdo do
povo (cuja formação histórica evidencia os “mais eloquentes attestados da decidida
preferencia que sempre manifestou este povo pelo governo republicano”) por meio de
uma percepção das sociedades como instâncias que, “em vez de se conserveram
immutaveis e estacionarias, caminham, renovam-se e progridem [...] á medida que se
multiplicam as suas necessidades moraes e economicas”.24 A formatação moral da
sociedade, portanto, exige uma nova dinâmica do tempo a partir de imperativos de
atualização das estruturas políticas em relação à “determinação da marcha geral da
civilisação”.
Abrindo mecanismos de representação política,25 a propaganda republicana e os
primeiros tempos do nascente regime reverberaram os novos horizontes nacionais. Se o
tempo republicano, nas palavras de um radical como Silva Jardim, ilustravam a “synthese
da evolução historica” e as novas condições de auto-determinação da sociedade (em uma
saída da tutela teocrática rumo a uma sociocracia, celebrando o “centenario da grande
revolução” de 1789), o horizonte cultural e social aberto era projetado como a
possibilidade, contida na explosão do presente (que dinamitaria “a retrogradação clerical
e militarisada” do passado), de realização do “ideal do homem moderno” como síntese
da “marcha da Humanidade atravez dos tempos”.26 Ao raciocínio teleológico subjacente
ao argumento de Silva Jardim, contudo, o “estado de cousas” colocaria impasses bastante
23 ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco. A República federal. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger, 1881.
p.64, p. 132-136. 24 SALLES, Alberto. Politica republicana. Rio de Janeiro: Typ. de Leuzinger, 1882. p. 167, p. 499. 25 RICCI, Paolo. Eleitores, partidos e disputas políticas na Primeira República (1899-1930). 157 f. Tese
(Livre Docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
26 JARDIM, Antonio da Silva. Carta politica ao paiz e ao Partido Republicano. Rio de Janeiro: Imprensa de Mont’Alverne, 1889. p. 23.
25
significativos, evidenciando a ambivalência da modernidade. Afinal, a entropia dos
primeiros anos republicanos expunha a rotinização da nova organização política e social
a um potencial horizonte de desagregação,27 entendido tanto na dimensão institucional
(tendo em vista a crise aberta nos dois governos militares e as guerras movidas no sertão
baiano e no Sul) quanto nas fundamentações morais das formas de vida (estabilidade dos
valores à luz das transformações socioculturais em marcha). No presente trabalho,
gostaria de explorar essa última asserção.
Como pretendo estudar o entrelaçamento entre os processos de educação (à luz da
vasta gramática moral dos parâmetros morais de socialização) e as transformações
materiais no fim de século, decidi retroceder a pesquisa a um ponto de partida um pouco
anterior ao centro do problema, deslocando-a para a construção e a configuração da vida
urbana. A ideia não é produzir uma história das políticas urbanas, tampouco uma
discussão sobre o urbanismo ou a história da urbanização. Antes, pretendo uma
aproximação ao que Andrew Lees definiu como o emotional and conceptual climate
emergente do mundo da cidade:28 meu foco consiste em analisar os processos de educação
como práticas de mobilização de valores, crenças e códigos culturais que circulavam na
estruturação moral do ambiente urbano. As percepções morais emergentes não apenas
partiam da cidade (como se esta fosse apenas um contexto ou pano de fundo), mas eram
desdobradas sobre as novas formas da vida e a ampliação das esferas de sociabilidade
propiciadas pelo meio urbano. Nesse sentido, a exposição e a integração de um antigo
espaço colonial aos processos da modernidade capitalista podem ser analisadas a partir
das práticas de desestabilização e da reorganização da estruturação moral da sociedade
por meio dos processos de educação.
As percepções estão relacionadas à dialética dos processos de modernização.29
Mobilizando valores e mecanismos de avaliação das condutas, a estruturação moral da
sociedade é constituída na confrontação da aceleração da modernidade capitalista com os
esforços de fundamentação de valores em um horizonte de crescente dissociação de
formas estáticas ou tradicionais. Como percepções morais, portanto, essa dinâmica
configura parâmetros de produção e reprodução de expectativas e bases de socialização
– talvez resida aqui, justamente, o núcleo operacional do que tenho chamado de processos
27 LESSA, Renato. A invenção republicana. 2. Ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 28 LEES, Andrew. Cities perceived. Manchester: Manchester University Press, 1985. 29 NARITA, Felipe Ziotti. Moral scenes from urban life. Praktyka Teoretyczna, Poznań, v. 23, n. 1, 2017c.
(“Repressed histories of the 19th century” – Orgs. Katarzyna Czeczot, Wiktor Marzec e Michal Pospiszyl)
26
de educação. Os mecanismos sociais estruturadores dessas percepções não são relações
lineares, como uma reação às transformações materiais do mundo da vida, tampouco uma
oposição entre externalidades descompassadas (de um lado, as transformações materiais;
de outro, relações morais reiterando arcaísmos e prescrições). Meu argumento, antes,
consiste em demonstrar como esses processos sociais são efetivados mutuamente, ou seja,
colocam em um mesmo movimento, por meio dos processos de educação, a dinâmica
contraditória das mudanças materiais e a potencial volatilização do campo valorativo,
construindo relações de sentido (moral/valores) subjacentes a esses cenários.
Tendo em vista esse quadro de preocupações, a pesquisa está desenhada em cinco
capítulos. Para a organização do texto como conjunto e o entrelaçamento de suas linhas
de força, cada capítulo retoma os momentos anteriores a fim de projetá-los em
aprofundamentos temáticos sucessivos. O caminho começa nas transformações situadas
na gênese da modernidade capitalista no século XIX e encontra sua conclusão nos
meandros da socialização junto à polidez e aos usos da sociedade. Das (re)configurações
mais amplas do sistema-mundo moderno e das trações do capitalismo a partir dos anos
1840 e 1850 às avaliações da sociabilidade miúda incorporada em valores da vida prática,
pretendo traçar os processos de educação (tendo em vista seus parâmetros formativos de
comportamentos e a produção de referencias fundamentais da socialização) como aposta
para o entendimento da gênese da modernidade global em uma antiga região colonial.
O primeiro e o segundo capítulo são dois momentos do mesmo movimento. A
ideia é desenvolver coordenadas temáticas e conceituais para os temas da modernidade
capitalista e da modernização no século XIX. Minha intenção é oferecer parâmetros
básicos a partir dos quais os processos de educação e o problema dos valores morais da
sozialização são tematizados junto às reconfigurações do terreno social. Nesse sentido,
pretendo inserir o problema em um conjunto mais amplo de transformações: esse
processo é entendido a partir da produção de horizontes coletivos, sincronizados pela
expansão capitalista, permitindo a circulação de vastos repertórios temáticos
incorporados e tematizados pelos espaços nacionais. Nesse sentido, fundamental é o
entrelaçamento da estruturação material da modernidade capitalista com um conjunto de
percepções morais da aceleração das transformações em curso na segunda metade do
oitocentos. Focalizando a dimensão global desse circuito de processos, tento amarrar
algumas de suas determinações em eixos explorados nos dois capítulos iniciais.
No primeiro capítulo, analiso a constituição de uma vida urbana, na segunda
metade do século XIX, à luz do circuito global de transformação da modernidade
27
capitalista. Os processos de educação e a estrutura do campo da moralidade são dinâmicas
decorrentes dos impactos dessas alterações e dos mecanismos de socialização decorrentes
das transformações materiais, com a ampliação de novas formas da vida coletiva.
Justamente diante do gradativo processo de afirmação das cidades, então, repertórios
culturais eram mobilizados como estruturas de prescrição e de avaliação das
transformações no mundo da vida, uma vez que a difusão de ideias e valores repousa
sobre os novos meios comunicativos (jornais, livros, conferências, relatórios etc.) da
esfera pública, permitindo a circulação de imaginários sociais e a seletividade dos
repertórios. Diversos estudos, aliás, têm investigado a configuração do campo da
instrução pública e de inventários educacionais (comportamentos) e escolares na
construção da cultura urbana, evidenciando alterações de condutas e a construção de
novos espaços e crivos de sociabilidade.30 Retomando a discussão da gênese da
modernidade na segunda metade do século XIX, pretendo assinalar que a formação do
campo da instrução pública e a circulação dos repertórios morais dos processos de
educação são camadas em correspondência com a constituição das novas paisagens
urbanas e sua infraestrutura nascente. Assim, a cidade amarra novas coordenadas
morais, tendo em vista a dinamização de esferas de circulação e a ressemantização de
práticas culturais na esfera pública.
À luz da reconfiguração material na gênese da modernidade (cidades, ferrovias,
imprensa, telégrafo, instrução pública etc.), a difusão de imagens e valores dos contextos
de transformação implica uma experiência de volatilização do que então parecia sólido e
estável. Esse horizonte da vertigem, analisado em registro moral, é o tema do segundo
capítulo, dedicado a investigar a vasta experiência da modernidade. A proposta consiste
em analisar as apostas formativas dos processos de educação diante das flutuações da
nascente cultura moderna e da potencial desestabilização do campo de valores no período.
Os processos de educação, nesse sentido, são confrontados com o revolvimento da cultura
moderna entendido como uma cisão entre contrários, formando constantes experiências
de antagonismo à luz do materialismo, do individualismo e da gradativa indeterminação
30 PAULILO, André Luiz. Os artífices da metrópole: anotações sobre a transformação da vida urbana
carioca depois da belle époque. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, 2004. ARRUDA, Maria Arminda. Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX. São Paulo: EDUSP, 2015. HERRERA, Claudia Ximena. De la escuela a la ciudad: cuerpos civilizados, sujetos modernos (el caso colombiano en la primera mitad del siglo XX). In: GÓMES, William Moreno. Educación, cuerpo y ciudad: el cuerpo en las interacciones e instituciones sociales. Medellín: Funámbulos, 2007. TERÁN, Oscar. Vida intelectual en el Buenos Aires fin-de-siglo (1880-1910). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008. VÁSQUEZ, Carlos Lira. Arquitectura y sociedad: Oaxaca rumbo a la modernidade (1790-1910). Mexico, DF: Universidad Autónoma Metropolitana, 2008.
28
do campo de validade da vida moral (uma espécie de jogo agonístico entre a destruição e
a reconstrução, conforme um texto de 1894, de Farias Brito, que será discutido no
capítulo). Se a gramática moral mobiliza o núcleo da família (polo da reprodução social)
e preconiza a harmonia das faculdades nos processos formativos de perspectivas de
socialização (conjugando a satisfação material com os valores morais fundamentais da
cultura do espírito), o derramamento das luzes, a fim de atender à urgência das
necessidades da época, era uma intervenção no presente com a abertura de um tempo
projetivo da emancipação moral – condição ideológica de extração de futuros a partir da
gestão moral do presente e de sua aceleração.
Os elementos dessa experiência da modernidade, no terceiro capítulo, são
analisados junto à elaboração da consciência moral. Os processos de educação tentam
rotinizar condutas na medida em que propõem condições de auto-domínio e de
exclusivismo do humano no reconhecimento de valores instituídos. A ideia é mapear
parâmetros que compõem as formas da consciência moral (trabalho, religião, deveres
sociais etc.) em um amplo processo de racionaização dos comportamentos. A partir da
consciência educada, os processos de educação são apresentados como atos de
civilização, ou seja, os critérios formativos de condutas são dispostos em uma ordem
genética que, decompondo os valores morais em um trajeto de conformação dos
comportamentos educados, insere o problema em uma sequência de depuração histórico-
evolutiva das formas sociais por meio da educação contra os “estados de
embrutecimento” e as condições da barbárie primitiva. Essa direção da vontade, impondo
restrições e mecanismos de contenção para a estabilização da vida civilizada, indica uma
medida da privação à qual o comportamento educado corresponde tendo em vista a
regularidade das pressões culturais.
Como estruturas de reconhecimento, construindo vínculos e interdependência
entre indivíduos, a elaboração da consciência dirige as ambições reguladas à instituição
de um horizonte comum da vida coletiva. Essas pressões da aglomeração e os
desenvolvimentos cumulativos da civilização exigem, como referência dos
comportamentos, condições de gestão de coletividades e construção de narrativas
identitárias sobre seus conteúdos morais. Analisar o caráter nacional, preocupação
importante no período, significa investigar as formas de construção e de governo da
população.
O quarto capítulo é dedicado a essa questão. Referente dos processos de educação,
a formação de comportamentos coletivos pressupõe mecanismos difusos de ordenamento
29
da vida por meio da instituição e da educação em relação a valores. Não se trata, a rigor,
de repressão, tampouco de uma estrutura de poder emanada de um centro institucional: a
questão, antes, enfatiza como a produção de renúncias e o controle dos instintos pela
consciência educada, em registro ampliado, disseminam práticas de gestão. Essa atenção
dialoga com o problema da formação do povo como unidade de caráter e comunhão de
sentimentos. Paralelamente à ideia de uma incompletude do povo, vinculando a dispersão
física e moral da população a uma ideia de “povo novo” como um espaço a ser construído
(o “povo infante” tematizado por Nina Rodrigues nos anos 1890),31 os processos de
educação são tematizados como mecanismos de rotinização de conteúdos morais (de um
caráter) às narrativas coletivas. A abertura das práticas formativas à tematização da
identidade coletiva, portanto, resvala nas imagens deficitárias da sociedade moderna, de
modo que pobreza, luxos, misérias, alcoolismo, prostituição e desregramentos formam
campos abjetos e, sobretudo, novas sensibilidades aos problemas da aglomeração no fim
de século. Aqui, portanto, duas questões devem ser consideradas: a ascensão do social e
a exibição dos comportamentos na vida urbana.
Essas considerações encaminham a pesquisa ao quinto capítulo, dedicado a
investigar a invenção do social e a normatividade moral nas maneiras e na exibição das
condutas sociais (os usos da sociedade). Os dois problemas estão entrelaçados. O social
é um recorte específico na percepção das necessidades da sociedade: trata-se da
emergência de uma instância deficitária, pois permeada por critérios de abjeção e vícios,
de modo que os processos de educação indicam possibilidades de intervenção moral nessa
dinâmica. Além das narrativas sobre o meio e a degeneração dos comportamentos
(posicionando a higiene e ordenamento do corpo como corretivos), os processos de
educação funcionam como critérios de distinção entre a vida regrada e a zona liminar
entre condutas deseducadas e criminalidade, decadência, desordem e perversões. À luz
da invenção do social e da construção de sensibilidades morais quanto ao desvalimento e
à pobreza urbana, mecanismos de gestão estruturavam redes de caridade, assistência e
correção dos desviantes. O código cultural da exposição na cidade, então, registrava a
fisiologia dos comportamentos como sinais da organização interna da vida moral – e aqui,
os usos da sociedade encaminham a pesquisa ao final.
Em uma narrativa seminal sobre os significados antropológicos da cidade,
Montesquieu indicou que, contra a uniformidade forçada dos costumes (petrificada em
31 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
30
gestos estereotipados e na servitude du coeur et de l’esprit), a vida moderna confronta os
observadores a uma profusão de significados, vozes e linguagens por meio dos quais “o
coração se mostra como a face” e tout se voit.32 Sob as aparências e o apelo sensível da
polidez e das formas do trato externo, no entanto, vícios e virtudes compõem lógicas de
exibição de comportamentos que tornam os processos de educação reféns de um jogo de
ambivalências das intenções na cidade. A partir dessas relações, dediquei o último
capítulo também à análise desses usos da sociedade que, como referenciais muito
perceptíveis da socialização (polidez, civilidade, decoro externo, compleição física etc.),
são justamente as expressões mais concretas dos processos de educação e da expressão
de abjeções da vida moderna.
O descentramento dos processos de educação, se torna a referência às práticas
educativas um pouco vacilante e imprecisa em muitos momentos (tendo em vista a
extrapolação de seus contextos escolares e confinamentos institucionais), talvez tenha um
ganho sociológico e histórico. Mais do que proposições tópicas ou matérias confinadas à
imaginação pedagógica, meu objetivo é analisar a capilaridade dos preceitos formativos
ancorados no campo moral, abrangendo a amplitude da ideia de educação no oitocentos
e conformando estruturas mais amplas do mundo da vida. Os valores, então, não apenas
instituem conteúdos para a socialização – eles são os próprios horizontes interpretativos
das transformações socioeconômicas e culturais da segunda metade do século XIX. A
análise da gramática moral em circulação e de sua aderência à formação social, por isso,
é também um longo esforço de apreensão das promessas e das ruínas da nossa
modernidade global, cuja eterna busca por completude termina refém de um trabalho de
Sísifo: mobilizando a instituição de valores seguros, o auto-domínio racional do
comportamento educado e a ideologia da abundância do progresso, o esforço termina
despindo o véu de suas contradições internas movidas pela fragilidade e pela
precariedade. Movimentos que, como alucinações que se debatem contra o fugidio,
embaralham o mundo moral e, tentando fundamentá-lo, não apenas tracionam conteúdos
internos das apostas formativas de condutas, mas cavam cada vez mais fundo o poço de
nossas vertigens.
32 MONTESQUIEU. Lettres persanes. Nova York: Oxford University Press, 1914. p. 96-97.
31
CAPÍTULO 1 | PROCESSOS DE EDUCAÇÃO, VIDA URBANA E INFRAESTRUTURA NO FIM DE SÉCULO
Émile Lévasseur, prolífico professor do Collège de France do fin de siècle, redigiu
uma volumosa obra dedicada aos princípios e à história da população, bem como à difusão
das instituições de ensino (instrução pública) no século XIX. Na Histoire des classes
ouvrières et de l’industrie en France, cuja primeira redação data do final dos anos 1860,
o problema da educação era analisado, em registro moral, como mecanismo de integração
(no sentido de uma normatividade social pautada na regulação moral) dos trabalhadores
urbanos proletarizados junto à sociedade moderna e às novas estruturas de estratificação
de classes.33 No entanto, na esteira dos trabalhos junto à Exposição Universal de Viena
em 1873 e do envolvimento com institutos e eventos internacionais sobre estatística das
populações em Berna, Chicago, Paris e Viena (comuns na atmosfera cosmopolita de uma
época de intensa circulação de dados comparados e modelos de educação),34 a
preocupação de Lévasseur foi significativamente ampliada a fim de oferecer um vasto
quadro comparativo da instrução pública.35 De alguma maneira, Lévasseur indica a
estruturação de um campo da instrução pública efetivamente organizado no período. O
autor certamente não falava sozinho e suas análises devem ser inseridas em um amplo
ambiente de circulação e transferências de ideias pedagógicas associadas a dados
estatísticos das populações, tendo em vista as configurações da instrução pública – tal
como atestam as sistematizações de Laveleye, Demogeot, Montrucci, Michel Breal e
Emile Flourens.
A obra de Lévasseur apresenta dois eixos fundamentais. O primeiro diz respeito à
mencionada presença de um campo da instrução pública no oitocentos. Além da vasta
compilação de leis e da circulação de temáticas educacionais (jornais, congressos, livros,
traduções etc.), a instrução pública era amparada por um conjunto específico de
procedimentos, por uma rede institucional em formação (nucleada sobretudo na vida
urbana), pela funcionalidade de uma organização administrativa junto aos Estados
nacionais e, sobretudo, pela possibilidade de seriação de dados quantitativos a fim de
mensurar a efetividade das práticas institucionalizadas de educação em relação aos
33 LÉVASSEUR, Émile. Histoire des classes ouvrières et de l’insdustrie en France de 1789 à 1870.
2.Ed. Paris: Arthur Rousseau, 1903. (2 vols.) 34 FONTAINE, Alexandre. Aux heures suisses de l’école républicaine. Paris: Demopolis, 2015. 35 LÉVASSEUR, Émile. L’enseignement primaire dans les pays civilisés. Paris: Berger-Levrault, 1897.
32
“princípios gerais” da população e sua moralização. Nesse cenário, a institucionalidade
do campo educacional no período pode ser pensada tanto a partir de ministérios dedicados
à instrução (como nos casos da França, Áustria-Hungria, Bélgica, Rússia etc.) quanto a
partir dos modelos de inspetorias gerais ou secretarias de negócios interiores (Reino
Unido, Espanha, Portugal, Brasil etc.), de modo que a correlação entre as estruturas
administrativas (estatais) e o governo da população (sociedade) era fundamental para o
lugar da moral escolar e sua aderência social. Afinal, a difusão das estruturas de educação
e a racionalidade específica do campo da instrução pública, apoiando-se na publicidade
dos temas em circulação junto à esfera educacional, certamente eram distintivos
fundamentais da “civilização moderna”.36
Justamente nesse último argumento reside o segundo ponto importante da vasta
produção do professor do Collège de France. A modernidade é interpretada como uma
espécie de aspiração à difusão das luzes e da vida urbana. Uma operação ideológica é
central para o argumento de Lévasseur: preocupado com a expansão do campo da
instrução pública em escala global, a associação entre instrução/educação e civilização é
sintomática (não à toa, o próprio título evidencia o compromisso do autor com o estudo
dos pays civilisés). Ao lado do desenvolvimento da ciência moderna, do vapor, dos
sistemas de representação política, dos procedimentos industriais, do comércio e dos
novos hábitos propiciados junto às populações (estas, aliás, moralizadas pelos processos
de educação), a abordagem do professor consiste em demonstrar que, se o século XIX
significa o século da instrução primária e da consolidação de um campo da instrução
pública,37 a presença dessas estruturas e procedimentos de educação implica uma espécie
de “mudança no equilíbrio moral do mundo”,38 na medida em que vastas regiões estavam
integradas a esse esforço civilizacional – evidenciado pelas longas listas (comuns nesse
gênero de publicações do período) que incluíam Europa Ocidental, Estados Unidos,
Rússia, Brasil, Japão, Chile, Uruguai, Argentina, Romênia etc. (além dos ideológicos
“apêndices” representados, sobretudo, pelas colônias europeias de além-mar).
Se o trabalho estatístico indicava procedimentos de mensuração e de visibilidade
dos movimentos da população, o ímpeto civilizador da consciência moderna vinculava a
educação a um processo de racionalização das condutas. Processo que caminhava pari
passu à afirmação das estruturas dos Estados nacionais. Em um pequeno texto de 1913,
36 LÉVASSEUR, 1897, op. cit., p. 583. 37 LÉVASSEUR, 1897, op. cit., p. 491. 38 LÉVASSEUR, 1897, op. cit., p. 495.
33
Mauss argumentava sobre o intérêt pratique da etnografia e da situação dos povos
coloniais à luz da política colonial republicana, evidenciando uma preocupação com as
condições de administração da vida coletiva.39 Como prática de intervenção sobre o
espaço social, a educação era entendida a partir de um potencial normativo capaz
esclarecer os povos e formar (rendre) indivíduos úteis aos progressos gerais do século.
Pavimentando o caminho das iluminações modernas, portanto, a educação era distintivo
da marche vers la civilisation. A partilha transnacional desse “culto do moderno”,40
interligando os espaços coloniais e a construção de auto-imagens da civilização em um
mesmo horizonte histórico de racionalização do capitalismo, indicava a capacidade de
mobilização de coletividades por meio de estruturas de socialização e reprodução de
valores.
Constatando o espírito de progresso da época, Lévasseur destacava uma
característica do campo da instrução pública: a expansão da malha escolar moderna era
organizada, fundamentalmente, por grupos civis.41 Esse deslocamento em relação a
qualquer tipo de determinação do campo eclesiástico é importante para o entendimento
dos processos de educação à luz da engenharia social e política na construção dos Estados
nacionais e das fórmulas liberais correlacionadas à emergência das sociedades nacionais
na América Latina do século XIX.42 Especialmente a partir dos anos 1820, as
independências e o experimento constitucional atlântico implicaram uma notável
circulação de temas e de novas declinações de ideias e vocabulário,43 de modo que o
campo da instrução pública e sua esfera educacional (como estruturas que se
autonomizavam da determinação institucional eclesiástica no contexto do Estado
nacional),44 uma vez vinculados aos projetos aspiracionais das novas sociedades
nacionais, estavam estruturalmente interligados à nova ordem pós-colonial no hemisfério
ocidental construída sobre o desgaste estrutural do sistema colonial e ancorada nos
39 MAUSS, Marcel. Lettre de présentation du projet au ministre de l’instruction publique. Revue d’Histoire
des Sciences Humaines, Paris, v. 10, 2004. 40 MURRAY-MILLER, Gavin. The cult of the modern. Lincoln: University of Nebraska Press, 2017. 41 LÉVASSEUR, 1897, op. cit., p. 499. 42 LÓPEZ-ALVES, Fernando. Modernization theory revisited: Latin America, Europa and the U.S. in the
nineteenth and early twentieth century. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, Bogotá, v. 38, 2011.
43 RIVERA, Jose Antonio Aguilar. Ausentes del universo: reflexiones sobre el pensamiento político hispanoamericano en la era de la construcción nacional (1821-1850). México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2012.
44 CUNHA, Luiz Antônio. A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2017.
34
repertórios da Ilustração e do liberalismo.45 À luz dessa dialética do desmoronamento dos
impérios coloniais atlânticos, a corrosão ideológica das estruturas da colonização, por
meio de novas subjetivações (formação de uma gramática social para os cidadãos,
enfatizando tanto as novas estruturas republicanas quanto o espaço da monarquia
constitucional brasileira no período) e da ampliação das esferas de circulação urbanas
(jornais, panfletos, livros etc.), assinalaram formas de consciência coletiva e horizontes
comuns (amparados pela modernização material das comunicações) com a instituição de
valores para a elaboração de comunidades imaginadas nos antigos espaços coloniais.46
A integração das periferias americanas ao desenvolvimento capitalista pode ser
delimitada a partir de parâmetros materiais importantes. Trata-se de uma conjuntura
profundamente marcada pela reestruturação das forças produtivas, evidenciando uma
diversidade de formas de trabalho. Nesse sentido, o redimensionamento dos sistemas
escravistas americanos junto ao capitalismo internacional,47 apoiado sobre os novos
padrões de acumulação decorrentes do arranque do capitalismo industrial nos centros do
Norte global, evidenciava a vinculação das estruturas do sistema-mundo moderno com a
segunda escravidão,48 fundamentando as assimetrias do capital global conforme a divisão
do trabalho e os circuitos de valorização em espaços desigualmente combinados na
construção da modernidade capitalista.49 Pomeranz demonstra que, na construção
transnacional do capitalismo e em sua expansão a partir dos anos 1830 e 1840,
paralelamente ao carvão inglês (elemento fundamental para o arranque industrial nos
centros),50 a participação dos lucros da produção colonial nos circuitos de valorização,
especialmente à luz da consolidação da estrutura bancária e financeira da segunda metade
do século XIX, estruturava o lugar do mercado atlântico alicerçado no escravismo junto
45 MULICH, Jeppe. Empire and violence: continuity in the age of revolution. In: BARKAWI, Tarak;
LAWSON, George (Orgs.) International origins of social and political theory. Emerald Publishing, 2017. PAQUETTE, Gabriel. Imperial Portugal in the age of Atlantic revolutions: the Luso-Brazilian world, c. 1770-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. ARMITAGE, David. The declaration of independence: a global history. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
46 ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Nova York: Verso, 2006. p. 67. 47 TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Nova York:
Rowman & Littlefield Publishers, 2004. 48 MARQUESE, Rafael Bivar. Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo século
XIX. Saeculum, João Pessoa, n. 29, 2013. SALLES, Ricardo. Segunda escravidão, liberalismo de classe e a matriz política imperial, ca. 1815-1860. In: SALLES, Ricardo (Org.). Ensaios gramscianos: política, escravidão e hegemonia no Brasil imperial. Curitiba: Prismas, 2017.
49 DAVIDSON, Neil. Uneven and combined development: modernity, modernism, revolution. 2017. (no prelo) – publicado em versão preliminar na revista Revolutionary Socialism in the 21st Century.
50 POMERANZ, Kenneth. The great divergence: China, Europe and the making of the modern world economy. Princeton: Princeton University Press, 2000.
35
ao sistema-mundo moderno.51 O crescente deslocamento e a diversificação de aplicações
do capital intercalava diversas estruturas de acumulação na gênese transnacional da
modernidade.
A articulação de momentos da acumulação primitiva (centrada no uso da força e
da violência) com a expansão da modernidade capitalista caminha pari passu aos padrões
estruturais de legitimação da violência como dinâmica global de subsunção dos processos
de trabalho na expansão do capital.52 Dinâmica bastante saliente, aliás, na consolidação
das estruturas industriais dos centros apoiadas sobre cenários e projetos de colonização
mais agressivos a partir dos anos 1880 e 1890, com a ocupação britânica no Egito (1882),
as guerras coloniais norte-americanas nas Filipinas a partir de 1898 e a anexação do Havaí
em 1893, as investidas britânicas no Afeganistão entre 1879 e 1880, as campanhas
francesas em Tonkin (1883-1886), as guerras britânicas na região de Transvaal e no
Império Ashanti (1896) e a formação da África Ocidental Francesa (1895).53 Por isso, é
importante destacar a vigência de uma heterogeneidade de formas de trabalho
combinadas na emergência da modernidade capitalista.54 Em um antigo espaço colonial
como o Brasil, a crescente mercantilização da força de trabalho e a proletarização nos
centros urbanos coexistia com intrincados mecanismos da política da escravidão e de
exploração do trabalho livre por particulares e pelo Estado – incluindo, por exemplo, as
experiências dos diversos arranjos de trabalho de africanos livres, no contexto das
medidas de repressão ao tráfico entre 1810 e 1850, destinados a partir dos anos 1850 a
obras de modernização da infraestrutura urbana e a diversos projetos de interiorização.55
Especialmente na segunda metade do século XIX, a desintegração dos sistemas
escravistas ecoava importantes agendas de mobilização da sociedade civil ancorada em
setores urbanos com conexões e ecos internacionais,56 evidenciando a difusão de
51 INIKORI, Joseph. Africans and the Industrial Revolution in England. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002. 52 GERSTENBERGER, Heide. Markt und Gewalt : die Funktionsweise des historischen Kapitalismus.
Münster: Westfälisches Dampfboot, 2017. 53 GILLEN, Paul; GHOSH, Devleena. Colonialism and modernity. Sydney: University of South Wales
Press, 2007. p. 62-66. 54 Trata-se de um debate marcante junto às perspectivas da global history nos últimos cinco ou dez anos.
Contrariando as noções sedimentadas de trabalho escravo e livre como tipos-ideais excludentes, há uma equipe de pesquisadores desenvolvendo o projeto Free and unfree workers in Atlantic and Indian Ocean port cities (c. 1700-1850), que deve resultar em uma publicação sobre os regimes de acumulação e as formas de trabalho em circulação no período, contando com pesquisas de Markus Rediker, Pepijn Brandon, Niklas Frykman, Pernille Røge, Marcel van der Linden e Françoise Vergès.
55 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 306-317.
56 DRESCHER, Seymour. Abolition : a history of slavery and antislavery. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
36
repertórios e formas de solidariedade propiciadas pelas esferas de circulação. Em uma
conjuntura da recomposição da mão-de-obra na região, o significativo crescimento
populacional em países como Argentina, Brasil, Uruguai, Cuba e Chile encontrou, na
oferta de trabalhadores disponíveis sobretudo na Europa Meridional e Oriental, condições
para fluxos de migração trans-oceânica,57 em um processo que, estendido e acelerado no
fim de século, foi responsável por desdobramentos sobre a composição da população e
suas narrativas identitárias à luz da desterritorizaliação de indivíduos e do trabalho,
contrastando imagens do nacional com percepções de aspiração, abjeção e choque moral
diante das experiências do êxodo (Freizügigkeit) e dos “enxames migratórios” das
colmeias humanas da modernidade, como notava Nietzsche nos anos 1880.58 Os impactos
dessas transformações junto ao conteúdo moral do caráter da população serão analisados
no quarto capítulo da pesquisa. Vale reter, aqui, que a circulação de ideias, mercadorias
e pessoas indicava, nas formas de compressão do espaço/tempo da cultura moderna,59
possibilidades de deslocamento e de novas declinações das transferências da modernidade
capitalista.
As transformações materiais territorializadas nos espaços nacionais (e
incorporadas em infraestruturas da cidade) consolidaram perspectivas de uma vida
urbana ao passo que estruturaram importantes redes em meio a uma paisagem global de
cidades e de transformações de amplo alcance. Em um erudito estudo sobre a cidade,
Weber indicou justamente a estruturação de circuitos e de uma nova racionalidade de
comportamentos econômicos para a configuração de associações urbanas na expansão
capitalista do século XIX, difundindo sociedades anônimas, bancos, companhias de
comércio e financeirização nos principais centros ocidentais (Londres, Paris, Berlim,
Düsseldorf etc.).60 Em um sentido mais amplo, esses circuitos e o sistema de troca de
mercadorias compreendem desde os modelos das grandes cidades industriais e financeiras
do Ocidente até as vivas dinâmicas urbanas nos domínios otomanos (Cairo, Alexandria e
Istambul), nos espaços cosmopolitas periféricos da modernidade capitalista (Bangkok,
Veracruz, Buenos Aires, Montevideu, Rio de Janeiro, São Petersburgo etc.) e nas cidades
57 GOEBEL, Michael. Overlapping geographies of belonging: migrations, regions, and nations in the
Western South Atlantic. Washington, DC: American Historical Association, 2013. 58 NIETZSCHE, Friedrich. Morgenröthe: Gedanken über die moralischen Vorurtheile. 2. Ed. Leipzig: E.
W. Fritzsch, 1887. p. 199. 59 AUGÉ, Marc. Non-places. Trad. John Howe. Nova York: Verso, 1995. p. 87. 60 WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: Mohr, 1980. p. 730.
37
coloniais (Batavia, Surabaya e Manila).61 O novo meio urbano, antes de meramente
oferecer um contexto ou um enquadramento para as novas formas sociais, implicava
condições de movimento e uma multiplicidade de espaços em relação aos quais as
percepções morais da cultura moderna estavam enredadas, redistribuindo hierarquias da
geografia do capital a partir da apropriação da natureza e da afirmação da ideologia da
civilização e suas luzes sobre a paisagem.62
A vida urbana e a densidade populacional nas cidades da América Latina foram
reorganizadas a partir do discreto surto industrial no fim de século e, sobretudo, da
exportação de produtos primários (agrícolas ou minerais como nitrato, cobre e estanho,
nos casos do Chile, Bolívia e Peru), consolidando importantes centros político-
administrativos. As transformações materiais em curso no propiciaram a consolidação de
cidades comerciais-burocráticas,63 especialmente em espaços ligados a áreas litorâneas
por meio de linhas férreas (vale lembrar que, como se trata de um momento
imediatamente anterior à construção do canal do Panamá, as paradas na América do Sul
eram fundamentais para as frotas a caminho do Pacífico). Os circuitos de acumulação
nucleados nas cidades e acelerados pela infraestrutura de comunicação propiciaram novos
horizontes de consumo e de circulação,64 tendo em vista desenvolvimentos em regiões
como Havana (com a ferrovia aberta nos anos 1830 até Bejucal e Güines, apenas alguns
anos depois, portanto, da inauguração da primeira linha norte-americana da Baltimore
and Ohio Railroad e da abertura do caminho entre Liverpool e Manchester em 1830), Rio
de Janeiro, Buenos Aires, Lima (estendendo-se até Callao), Caracas (estendendo-se até a
área agrícola de La Guaira) e, a partir de 1873, com a inauguração da ferrovia de mais de
400 kilômetros ligando o porto de Veracruz à Cidade do México. Em um meticuloso
trabalho metodológico com a nova história econômica, os dados compilados por William
Summerhill indicam, aliás, um crescimento significativo da infraestrutura ferroviária
brasileira, passando de pouco mais de 1000 km de extensão no início dos anos 1870 para
mais de 15000 km na virada para o século XX.65
61 MESTYAN, Adam. Arab patriotism : the ideology and culture of power in late Ottoman Egypt.
Princeton: Princeton University Press, 2017. WONGSURAWAT, Wasana (Org.). Sites of modernity: Asian cities in the transitory moments of trade, colonialism, and nationalism. Berlim: Springer, 2016.
62 CRONON, William. Nature’s metropolis. Nova York: Norton, 1991. 63 SCOBIE, James. O crescimento das cidades latino-americanas, 1870-1930. In: BETHELL, Leslie.
História da América Latina de 1870 a 1930. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2009. (Vol. 4)
64 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2009. 65 SUMMERHILL, William. Order against progress: government, foreign investment, and railroads in
Brazil (1854-1913). Stanford: Stanford University Press, 2003.
38
As principais cidades portuárias brasileiras, “journellement vivifiées par le contact
européen”,66 consolidaram dinâmicas importantes nesse cenário. Nos anos 1860, se
Tavares Bastos acreditava que as cidades eram “grandes centros da indústria” (termo
entendido, nesse contexto, como atividades comerciais e intercâmbios materiais),67 sua
efetiva inserção periférica nas transformações urbanas da modernidade capitalista é
visível na segunda metade do século XIX (especialmente em seu último quartel).68 O
comércio direto a vapor entre Liverpool e Santos, chegando a Montevideu, mobilizava
todo um conjunto de infraestrutura que, para além das desgastadas estradas e rotas,
contava com linhas ferroviárias e núcleos urbanos de abastecimento.69 A cidade do Rio
de Janeiro, por exemplo, articulava linhas de navegação desde os anos 1850, com
presença estendida até o fim do século. Além da atuação da Maxwell Wright & Comp.,
da Tait & Co. (ligando Inglaterra, Bélgica, Brasil e o rio da Prata) e da Société Générale
de Transports Maritimes à Vapeur, havia diversas linhas para Havre (a partir da linha
regular dos paquetes da L’Union), Hamburgo, Valparaíso, Panamá, São Francisco, Nova
York, Marselha, Bremen, Boston, Genova, Antuérpia, Montevideu, Lisboa, Liverpool,
Luanda, Bengala, Malta, Cadiz, Buenos Aires, Falmouth e Trieste.
Diante da circulação das mercadorias, uma significativa esfera de negócios foi
estruturada no Brasil, sobretudo, a partir dos anos 1840. Os estreitos nexos entre mercado,
propriedade, Estado e cidadania implicavam uma configuração socioeconômica bastante
diversificada no cenário de alargamento das atividades econômicas em um antigo espaço
colonial.70 Nesse sentido, fundamental era a importação de tecnologia dos países centrais
e o desenvolvimento do ambiente de negócios envolvendo mineração, atividades
bancárias, ferrovias, navegação e pequenas indústrias de sabão, cal, cimento, fundição,
linhas de algodão, velas, chapéus, cigarros, ferragem e mobiliário – além da pequena (mas
importante) expansão do setor têxtil no centro-sul e do boom da borracha no norte no fim
de século.71 Justamente como condição material da circulação de indivíduos, trabalho e
mercadorias, as principais cidades integravam rotas importantes da expansão capitalista.
Trata-se, aqui, da formação de um verdadeiro circuito transnacional de cidades
66 ASSIER, Adolphe. Le Brésil contemporain. Paris: Durand et Lauriel, 1867. p. 225. 67 BASTOS, Aureliano Tavares. Os males do presente e as esperanças do futuro: estudos brasileiros.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 66. 68 LANNA, Ana Lucia Duarte. Uma cidade na transição: Santos, 1870/1913. São Paulo: Hucitec, 1996. 69 CODMAN, John. Ten months in Brazil. Nova York: James Miller, 1872. p. 58. 70 MARSON, Izabel; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles (Orgs.). Monarquia, liberalismo e negócios
no Brasil (1780-1860). São Paulo: EDUSP, 2013. 71 BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. Entrepreneurship in nineteenth-century Brazil: the formation of a
business environment. Londres: Macmillan, 1999.
39
portuárias,72 constituído tanto em relação ao capitalismo internacional (incluindo
exportações de café, jacarandá, chá, couro etc.) quanto em relação às próprias cidades
nacionais por meio de inúmeros reboques a vapor.
A expansão dos meios de transporte de massas foi a condição para novos
processos socioculturais sob a égide do capital,73 propiciando os deslocamentos de
mercadorias, indivíduos, ideias e práticas nos processos percorridos pela valorização
capitalista. Momento em que as periferias americanas começaram a ser desenhadas
também pelas fantasmagorias da razão burguesa e das promessas de modernização e
racionalização social, com navegações no Araguaia e no Amazonas, dezenas de trechos
ferroviários, diversas expedições científicas e a profusão de utopias da modernidade
capitalista (como os projetos de William Herndon e Lardner A. Gibbon de uma frente de
ocupação amazônica entre o Peru e o Pará). Por isso, a discussão da infraestrutura
moderna não implica apenas a concretude material de novos objetos físicos, mas a
produção de relações sociais e a dinamização da atmosfera sociocultural à luz da
integração capitalista – essa materialidade emergente é, sobretudo, produtora de novas
estruturas de socialização e de avaliação do mundo da vida. O campo moral (valores)
aberto pela urbanidade, então, entrelaça o ímpeto material da infraestrutura a novas
sensibilidades e dinâmicas perceptivas das formas de vida nas cidades do fim de século
na periferia do capitalismo.74
Se as vias de comunicação marítima e os trilhos começavam a redesenhar as
percepções de espaço e tempo na América Latina (Cristiano Otoni falava de uma
“aspiração que surge ao Sul do Equador”),75 a infraestrutura portuária oferecia –
especialmente por meio dos arsenais de marinha no Brasil – reparos e ancoragem para
navios mercantes e militares no Atlântico Sul. Nos anos 1860, por exemplo, a descrição
de Agassiz em sua passagem pelo Brasil mencionava o gradativo desaparecimento das
tropas de mulas e o surgimento dos “melhoramentos modernos em ferrovias e linhas de
72 THERNSTROM, Stephan; SENNETT, Richard (Orgs.). Nineteenth-century cities: essays in the new
urban history. New Haven: Yale University Press, 1969. JORGENSEN, Claus Moller. Nineteenth-century transnational urban history. Urban History , v. 44, n. 3, 2017. MARKIAN, Prokopovych; FEYS, Torsten (Orgs.). Cities and overseas migration in the long nineteenth century. Journal of Migration History , v. 2, n. 2, 2016
73 MACHADO, Maria Helena. Raça, ciência e viagem no século XIX. São Paulo: Intermeios, 2018. 74 LAMOUNIER, Maria Lucia. Ferrovias e mercado de trabalho no Brasil do século XIX . São Paulo:
EDUSP, 2012. CAMPOS, Bruno Nascimento. Tropas de aço: abastecimento, comércio e estradas de ferro no sul de Minas (1875-1902). Jundiaí: Paco, 2016. PAZIANI, Rodrigo. Um baiano nas terras do café. Curitiba: CRV, 2016.
75 OTTONI, Christiano. O futuro das estradas de ferro no Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1859.
40
comunicação, tornando o transporte muito mais fácil”.76 A própria imagem da
precariedade das comunicações coexistindo com os modern improvements materiais do
século constitui nexos que costuram a estrutura socioeconômica periférica de um sistema
de produção e troca de mercadorias, organizando setores de subsistência ao lado da
crescente diferenciação das esferas produtoras de valor e da ampla estrutura de circulação
da mercadoria em coerência com a produção capitalista.77 A expansão da infraestrutura
nos anos 1850, inclusive, pode ser visualizada em materiais de ensino: entre estradas
precárias, albergarias, hospedarias e os traçados das primeiras linhas de ferro, embora as
condições da circulação ainda confrontassem o viajante “como se tivesse de atravessar os
desertos inhospitos de Sahára”, o livro de José Praxedes Pacheco ensinava que
O vapor hoje apparece em quasi todos os portos de consideração, e os particulares vão formando associações convencidos de que o governo não deve monopolisar a navegação mercantil, e os estrangeiros nos provão, pelas suas linhas de steamers, com quantos beneficios contão os empresarios e companhias fazendo os barcos escalas pelos principaes portos da costa. O movimento da alavanca como remo nos saveiros ou perús parece estar para ser inteiramente substituido pela alavanca com o embolo, como já o foi nas galés e galeões pelas vélas, e a navegação na agua fria se torna mais segura pela agua quente nas caldeiras.78
Aproveitando o insight de um ensaio fotográfico de José de Souza Martins
(também tomo a liberdade de remeter o(a) leitor(a) aos trabalhos do Centro de Estudos
do Mundo do Café da Unesp), fundamental é compreender as mediações do luxo. No fim
de século, um exemplo importante é o café – a um só tempo, colhido junto à lide bruta
das plantações no Brasil, no Ceilão britânico (que exportou bons volumes do produto
entre os anos 1830 e o início dos anos 1870, entrando em declínio após a devastação
causada por fungos nas plantações) e na região da Indochina francesa (com experimentos
iniciados nos anos 1880 em Tonkin e Anam) e item da sociabilidade burguesa tematizado
nas telas impressionistas de Lesser Ury, no interior aburguesado de Georges Lemmers,
nos pôsteres comerciais art nouveau de Henri Meunier e Alphonse Mucha e nas refinadas
exibições parisienses junto ao Café Guerbois e ao Café La Paix. Para que o café
compusesse a imagem civilizada dos salões e a ideologia da abundânca ilimitada da
76 AGASSIZ, Louis. A journey in Brazil . Boston: Houghton Mifflin Company, 1909. p. 72. 77 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Editora
Unesp, 1997. p. 66-75. 78 PACHECO, José Praxedes Pereira. Breves noções para se estudar com methodo a geographia do
Brasil. Rio de Janeiro: Em casa do autor, 1857. p. 140.
41
“modernidade metropolitana” junto às grandes capitais europeias,79 nexos eram
construídos a partir da circulação universal da mercadoria e do processo de valorização.
Justamente como mediações de uma totalidade em movimento (ou seja, a modernidade
capitalista), a porcelana fina e os bules de prata sobre as tábuas brutas da periferia do
capitalismo não realizavam os conteúdos de uma sociedade tradicional (impermeável às
transformações da modernidade capitalista), tampouco eram miragens desajustadas de
espaços de herança colonial deslocados de uma autêntica razão burguesa (metropolitana).
A integração material capitalista e as múltiplas formações imbricadas em sua expansão,
em vez de uma contraposição de estruturas duais (atraso/progresso), estabelecem
referenciais assimétricos como momentos e contradições de uma mesma totalização.
Trata-se, aqui, de colocar em questão o evolucionismo social do último Engels
(muito presente, tendo em vista os debates sobre a ortodoxia e os problemas teóricos junto
à Segunda Internacional, em parte da tradição marxista do começo do século XX) e sua
dinâmica etapista, que enfatizava a maneira pela qual as formas de vida arcaicas, supostos
anacronismos junto à sociedade moderna, seriam suprimidas (beseitigender) pela
modernização capitalista.80 Muitas questões devem ser colocadas sob suspeição nesse
entendimento, na medida em que essa abordagem compõe pares antitéticos que
condicionam um jogo de exterioridades na estruturação do sistema social: de um lado, a
teoria popularizada por Engels da produção simples de mercadorias e seus vestígios
arcaicos em descompasso com o capital; de outro lado, a razão capitalista como epígono
do sistema social realmente moderno. A estruturação do sistema-mundo e as múltiplas
formas sociais e mecanismos de trabalho historicamente articulados ao desenvolvimento
capitalista colocam em xeque essa lógica linear pressuposta no esquema.81 Nas ciências
sociais, ao passo que essa arquitetura teórica linear da dialética materialista tem sido
questionada,82 fundamental é entender os matizes como momentos de uma totalização no
desenvolvimento das formas do mesmo objeto, o capitalismo, integrando os circuitos de
acumulação a uma pluralidade de formas de produção.
Ilustrativo desse argumento, além do catalão Joan Güell e de Jaume Torrents
Serramalera (responsáveis por projetos de filantropia, por investimentos ferroviários, pela
79 FRISBY, David. Cityscapes of modernity. Hoboken: Wiley, 2001. 80 ENGELS, Friedrich. Engels an Karl Kautsky (16 Febr. 1884). In: Briefe von Friedrich Engels (1883-
1887). Berlim: Dietz, 1979. p. 108. (MEW, 36) 81 BANAJI, Jairus. Theory as history: essays on modes of production and exploitation. Leiden: Brill, 2010.
GARCÍA LINERA, Álvaro. La potencia plebeya. Bogotá: CLACSO, 2009. VALENSI, Lucette. Islam et capitalisme: production et commerce des chéchias en Tunisie et en France aux XVIIIe et XIXe siècles. Revue d’Histoire Moderne & Contemporaine, v. 16, n. 3, 1969.
82 ARTHUR, Christopher. The new dialectic and Marx’s Capital. Leiden: Brill, 2004.
42
modernização portuária e pelo comércio colonial envolvendo o escravismo), é a figura de
Antonio López y López, marquês de Comillas, filantropo cuja riqueza foi construída no
setor bancário, na expansão da rede ferroviária espanhola e em negócios de tabaco e
navegação em Cuba e nas Filipinas (por meio da Compahia Transatlântica Espanhola, da
Companhia Geral de Tabacos das Filipinas e do envolvimento no negócio transoceânico
de escravos).83 O capitalismo histórico e seus desdobramentos transnacionais no
oitocentos implicam, então, um alargamento do processo de valorização. Aqui, o
problema da subsunção formal do trabalho apontado por Marx nos manuscritos de 1861-
1863 sinaliza justamente as condições heterogêneas de estruturação do mercado
internacional na modernidade capitalista, incorporando ao processo de valorização a
pluralidade das estruturas de trabalho sem necessariamente transformar o processo de
produção “em sua determinidade (Bestimmtheit) tecnológica”.84 A fórmula de Godelier,
nesse sentido, é sugestiva: o capitalismo inventa sua própria base material (por meio da
modernização técnica e da incorporação desse substrato na geração de valor) e integra as
estruturas socioprodutivas herdadas, compondo assimetricamente uma heterogeneidade
de processos de produção e reprodução social.85 Em vez de vestígios históricos ou
anacronismos deslocados, então, as formas antigas retroalimentam a dinâmica da grande
indústria nos espaços coloniais e nas periferias do sistema-mundo.
Além da diversidade de processos materiais da modernidade capitalista, a
dinâmica de transferências culturais no sistema-mundo moderno torna a unilateralidade
do raciocínio de Engels ainda mais problemática. Na segunda metade do século XIX,
justamente a co-presença de diferentes temporalidades na autonomização do capitalismo
como sistema social fundamenta a tensão entre a circulação internacional das ideias e da
ideologia (bem como suas recepções e elaborações nacionais) a partir do que Gramsci
chamou de gioco locale das práticas culturais, entendidas como dinâmicas produtoras de
novas combinações culturais historicamente concretas.86 Esse desenho articula o
capitalismo internacional por meio da unificação das sociedades produtoras de
mercadorias, estruturando a heterogeneidade (e a assimetria) das formações sociais a
partir de diversos ritmos mediados pelo sistema desigual de trocas e pelas subjetivações
83 ALHARILLA, Martin; PÉREZ, Lizbeth Chaviano (Orgs.). Negreros y esclavos: Barcelona y la
esclavitud atlántica (siglos XVI-XIX). Barcelona: Icaria, 2017. 84 MARX, Karl. Ökonomisches Manuskript 1861-1863 (Teil I). Berlim: Dietz, 1990. p. 87-88. (MEW,
43) 85 GODELIER, Maurice. La théorie de la transition chez Marx. Sociologie et Sociétés, Paris, v. 22, n. 1,
1990. 86 GRAMSCI, Antonio. Quaderno 4 (XIII) – Rapporti tra struttura e superstrutture. In: GRAMSCI, Antonio.
Quaderni del carcere. Torino: Einaudi, 1975. p. 458. (Vol. 1)
43
implicadas junto aos circuitos do capital em antigos espaços coloniais.87 Nesse sentido, a
articulação da subsunção formal com as formas de acumulação primitiva na constituição
da modernidade capitalista, em vez da reiteração de dualismos sociais (arcaico/avançado,
sociedade tradicional/modernidade etc.), compõe as disjunções internas de um mesmo
processo. Portanto, a disposição dos mundos coloniais e a estruturação dos contextos pós-
coloniais no período, antes de efeitos de um processo estranho (supostamente nucleado
nos centros ocidentais) no qual o atraso seria alheio aos pontos avançados, conformam a
modernidade capitalista a partir de sua interação dialética.88
O movimento contraditório e heterogêneo do sistema social não é pensado como
uma relação entre polos estranhos (uma sociedade de herança escravista e valores
tradicionais em contraposição à modernidade capitalista), mas como a dinâmica de uma
formação social integrada ao sistema-mundo capitalista e aos nexos particulares de um
antigo espaço colonial na estruturação da modernidade. A capacidade de movimento do
capital para além das barreiras espaciais a partir do processo qualitativo do valor
pressupõe condições assimétricas da modernidade capitalista, com o processo de
valorização (Verwertung) percorrendo todas as determinações da diferenciação interna
das regiões no sistema-mundo moderno. Nesse sentido, a autonomização do sistema
social a partir dos circuitos de produção e reprodução material interliga a produção e a
mediação do dinheiro ao processo de valorização constituído pelo circuito (Kreslauf) do
capital,89 de modo que as próprias condições físicas do sistema trocas (vias de
comunicação e cidades), como Marx demonstrou, implicam a supressão (Vernichtung) do
espaço pelo tempo,90 pressupondo o intercâmbio (Verkehr) massivo de mercadorias para
o devir (Werden) do capital como circulação (Umlauf) de seu conteúdo (inhaltsvolle) em
todas as cadeias da determinação.91 A atividade cosmopolita do capital, portanto,
fundamentava a estruturação material da modernidade e seus circuitos.
Meu argumento é que as reorientações estruturais que aceleraram os processos do
sistema-mundo moderno, entendido como sistema-mundo capitalista,92 devem ser
analisadas a partir da expansão do sistema de troca de mercadorias e de sua nova
infraestrutura material ancorada em núcleos e em esferas de circulação (cidades,
87 NARITA, Felipe Ziotti. Marx at the margins. Artificios , Bogotá, v. 9, 2017b. 88 HAROOTUNIAN, Harry. Marx after Marx . Nova York: Columbia University Press, 2015. 89 MARX, Karl. Ökonomische Manuskripte 1857-1858. Berlim: Dietz, 1983. p. 421. (MEW, 42) 90 MARX, 1983, op. cit., p. 430. 91 MARX, 1983, op. cit., p. 484. 92 WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system: centrist liberalism triumphant, 1789-1914.
Berkeley: University of California Press, 2011. (Vol. 4)
44
impressos, telégrafo, ferrovias, vapor etc.). O momento global de transformações,
articulando os circuitos do capital e de sua valorização entre os centros industriais e as
(semi)periferias (especialmente as regiões coloniais e os antigos espaços coloniais),
amarra um conjunto importante de determinações propiciando a correlação e a integração
assimétrica de vastas regiões nos processos cumulativos da modernização material
apoiada sobre a incorporação da heterogeneidade de formações sociais. Em texto clássico
sobre o circuito global da acumulação e do valor, Rosa Luxemburgo destaca as “esferas
de atividade” (Wirkungsgebiet) do capital capazes de volatilizar a solidez de formas
sociais primitivas à luz do progresso da técnica moderna e das condições de aceleração
e de deslumbramento (hervorzuzaubern) dessas transformações –93 elaborando, em
relação aos circuitos globais do capitalismo e do valor, uma espécie de paradigma
difusionista (conforme a terminologia do grupo de Nottingham, tendo à frente Adam
David Morton e Andreas Bieler, que buscam historicizar as categorias da economia
política).
À luz do quadro teórico apontado, quando trabalho com as coordenadas do
sistema-mundo moderno (centros/periferias),94 pressuponho o processo interno de
diferenciação baseado no circuito de valorização e na divisão do trabalho como eixos
estruturais. Como sistema-mundo, portanto, a integração estrutural implica uma
assimetria cujo conteúdo é percorrido pelo processo de valorização do capital, de modo
que a posição relacional dos componentes na estruturação do sistema (centros/periferias)
de maneira alguma parte de um registro refratário ou inautêntico no conteúdo cultural
alimentado pela integração assimétrica do capitalismo. A dinâmica cultural não é
redutível a uma relação de causalidade determinada imediatamente pelo processo de
valorização. Meu argumento, antes, enfatiza a integração estrutural (e heterogênea) do
sistema-mundo justamente tendo em vista os momentos particulares de seus
componentes, evidenciando um complexo jogo de apropriações e (re)elaborações de
repertórios temáticos (morais) da modernidade à luz da recriação e da reinterpretação da
circulação cultural,95 de modo que a abordagem se distancia das noções de influência ou
93 LUXEMBURGO, Rosa. Die Akkumulation des Kapitals. Berlim: Vereinigung Internationaler Verlags-
Anstalten, 1923. p. 280. (Gesammelte Werke, VI) 94 WALLERSTEIN, Immanuel. World-systems analysis. Durham: Duke University Press, 2004. 95 ESPAGNE, Michel; FONTAINE, Alexandre. Viajando com o conceito de transferências culturais.
Cadernos CIMEAC, Uberaba, v. 8, n. 2, 2018. (Trad. Felipe Ziotti Narita)
45
das reificações pressupostas no problema da importação de ideias (retornarei a essa
discussão teórica, de maneira mais detida, nos próximos capítulos).96
As mediações compostas pelas práticas culturais, aliás, parecem ser um ponto
cego (questionado abertamente por minha pesquisa) de algumas consequências da análise
do sistema-mundo à la Wallerstein. O sociólogo indica corretamente que, na estruturação
do sistema-mundo moderno, pressões a nível cultural são componentes centrais de suas
assimetrias (proselitismo religioso, imposição de línguas europeias, instrução e educação
conforme tecnologias e costumes específicos, mudanças de códigos culturais locais
etc.).97 No entanto, ao passo que Wallerstein torna intercambiáveis os conceitos de
modernização e de “ocidentalização” (pressupondo, teoricamente, uma identidade
imediata entre ambos), minha pesquisa tenta demonstrar que, antes de um caminho
unívoco pressuposto nessa operação teórica (especialmente em relação à
“ocidentalização”), a reprodução cultural também deve ser pensada como produção, ou
seja, como um dinamismo interno das próprias formações sociais periféricas sob os
impactos do desenvolvimento capitalista. Uma rede de transferências culturais e
mediações, portanto, deve matizar a estruturação do capitalismo histórico e da
modernidade, evidenciando as tensões de sua estruturação dialética na elaboração dos
processos sociais a partir de novas semânticas.
Aqui, a crítica de Gurminder Bhambra a Wallerstein é certeira ao indicar a
multiplicidade de trajetos da modernidade em sua constituição global e descentrada a
partir do século XIX, desfazendo genealogias de uma modernidade original nucleada na
Europa Ocidental (e posteriormente exportada como processo de modernização).98
Questionando a noção de ocidentalização, Bhambra dilui dualismos e registros marcados
pelas noções de influência, cópia, inautenticidade etc. Trata-se, no limite, de desatar a
estruturação da modernidade do processo de racionalização centrado nas grandes
narrativas sobre a ascensão do Ocidente. Nas ciências sociais, um importante modelo
desse esquema centrado na particularidade (Eigenart) ocidental está na célebre
“Observação preliminar” dos ensaios de Weber sobre sociologia da religião, em que o
autor realça a exclusividade do Ocidente na manifestação de formas culturais
(Kulturerscheinungen), com uma modernidade (Neuzeit) condicionada à realização do
96 Devo a Marcia Naxara (Unesp) e a Alexandre Fontaine (Universidade de Viena e ENS-Ulm), notáveis
pesquisadores dessas temáticas, ricas discussões teóricas a respeito. 97 WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism with capitalist civilization . Nova York: Verso,
1996. p. 82. 98 BHAMBRA, Gurminder. Rethinking modernity : postcolonialism and sociological imagination.
Londres: Palgrave Macmillan, 2007.
46
processo de racionalização ocidental e seu ethos na ciência, música, Estado moderno e
capitalismo (contabilidade, “organização racional do trabalho livre”, técnica etc.).99 Ao
localizar “o problema da história universal” no horizonte da Europa Ocidental, o esquema
histórico-sociológico weberiano confina o desenvolvimento de uma forma específica de
racionalidade a critérios endógenos à formação do Ocidente alicerçados no cálculo e no
sistema de procedimentos formais como contexto cultural de emergência do moderno
capitalismo (Betriebskapitalismus) e do mundo autenticamente burguês.
Weber condiciona a validade (Gültigkeit) universal dessas novas formas de vida
a uma conexão interna entre modernidade e cultura ocidental (entendida como o
desdobramento de uma origem nucleada no desencantamento do mundo e no processo de
racionalização). Essa vinculação, ao passo que permite a incorporação de relações de
sentido em sistemas de ação (o que Weber chama de “conduta de vida”), converte o
suposto excepcionalismo histórico ocidental em epígono da realização de conteúdos
autenticamente modernos. O centramento das narrativas em um exclusivismo cultural
tende a estabilizar a narrativa da modernidade em uma linhagem única desenrolada
homogeneamente a partir da ascensão do Ocidente, perdendo de vista as conexões e as
transferências culturais que tecem o moderno não como referência empírica a um lugar
cultural confinado ou a uma narrativa das origens a partir do processo de racionalização
ocidental, mas como uma configuração global estruturada sobre a multiplicidade de
significados desterritorializados.100 Assim, a aposta de Bhambra em uma reconstrução da
teoria social à luz das conexões globais sublinha a modernidade não como produtora de
conexões, mas como o próprio resultado das inter-conexões regionais estruturadas a partir
de diversas formas de apropriação, dominação e despossessão,101 posicionando a
emergência da cultura moderna em dinâmicas mutuamente reforçadas e relacionadas por
diferentes contextos e formações sociais.
Creio que a fertilidade e as fraquezas da abordagem de Bhambra residem
justamente nesse procedimento de pulverização da centralidade do mercado e de uma
expansão capitalista enraizada na Europa Ocidental, pois, como teoria social, a proposta
de Bhambra parece esbarrar em alguns impasses. A autora reifica as esferas de análise,
criticando as abordagens do sistema-mundo (questionavelmente emparelhadas com as
99 WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: Mohr, 1921. (Vol. 1) 100 Diversas possibilidades teóricas em relação aos debates weberianos têm sido abertas pela crítica pós-
colonial. Destaco, aqui, as discussões presentes nos trabalhos de Andrew Zimmerman, George Steinmetz, Sucheta Mazumdar, Vasant Kaiwar e Thierry Labica.
101 BHAMBRA, Gurminder. Connected sociologies. Londres: Bloomsbury, 2014. p. 142.
47
teorias da modernização de André Gunder Frank) por meio da ênfase sobre uma suposta
esfera cultural subsumida sob a determinação dos processos socioeconômicos.102
Derivada dessa premissa, a crítica à noção de “modernização” parece confundir duas
dimensões distintas: (1) as grandes narrativas do processo de globalização capitalista
como ocidentalização (muito bem criticadas, aliás, pelos notáveis trabalhos de Bhambra)
ficam misturadas com (2) o amplo circuito de transformações da modernidade capitalista
(construída sobre a integração assimétrica na produção/reprodução do valor), implicando
um todo articulado pelos processos materiais do capitalismo internacionalizado. Meu
argumento é que a descentralização da grande narrativa cultural da modernidade
(conforme minha própria pesquisa, investigando a proatividade de regiões periféricas,
tenta ilustrar) não implica, necessariamente, um entendimento de sua estruturação capaz
de descartar o relacionamento assimétrico dessas regiões mediado pelo processo de
valorização e seu ímpeto de realização material sob o imperativo da ideologia da
modernização.
O circuito de transformações na periferia do capitalismo, em uma região como o
Brasil, foi significativo – embora, certamente, estivesse longe de compreender o conjunto
do território ou, menos ainda, de uniformizá-lo pelas vias de comunicação. Boa parte dos
registros sobre o território, a população e a paisagem lidava diretamente com esse
problema. Ao lado das narrativas de Euclides da Cunha, as notas etnográficas de Couto
de Magalhães escancaram justamente esse contraste moral e ideológico confrontado pelo
ímpeto moderno:103 preocupado com “o grande sertão interior” e “quando a civilisação
chegaria a essas solidões” por meio das ferrovias e do vapor, na linha de navegação que
ligava o Araguaia até a pequena povoação de Itacaiu (então província de Mato Grosso)
“passando por entre as numerosas aldêas de indios que ainda andam nús”, o militar
narrava que o percurso “apresenta em contraste os dois extremos da cadêa humana”, ou
seja, “a raça mais civilisada que usa d’esse primeiro agente do progresso, e o homem nú,
imagem viva da primeira rudeza e barbaridade selvagem de nossos maiores”. As
iluminações da modernidade capitalista, nesse deslocamento moral pelo território e por
sua população, eram construídas justamente junto ao choque perceptivo a que estavam
102 BHAMBRA, Gurminder. Historical sociology, modernity, and postcolonial critique. The American
Historical Review, v. 116, n. 3, 2011. 103 MAGALHÃES, Couto. Religião e raças selvagens do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro, 1874.
48
expostos os observadores morais em narrativas de diferenciação do espaço imbricadas no
ímpeto moderno.104
A própria construção do sertão e das perspectivas de interiorização dialogava com
os espaços de uma nação cindida pelo processo de modernização entre suas periferias
internas.105 Ainda que boa parte dos impactos mais diretos das transformações materiais
tenham ficado restritos às populações dos principais centros urbanos do período, o
desenvolvimento das novas configurações do mundo da vida não pode ser relegado a
fenômenos de segundo plano na formação social. Evidenciando a formação de novos
públicos em um sistema de produção e troca de mercadorias, essas estruturas sinalizam
processos sociais que não são excentricidades, tampouco são referências desarticuladas
de uma cultura meramente ornamental ou “fora do lugar”. Minha pesquisa tenta
demonstrar que, efetivamente, as práticas culturais (a partir da estruturação moral da
sociedade e seus processos de educação) sinalizam dimensões importantes da integração
e da atividade de um antigo espaço colonial no sistema-mundo moderno.
A partir dos anos 1860 e 1870, os primeiros indícios de inovação na vida urbana
e na infraestrutura já eram perceptíveis nas principais capitais das províncias e dos futuros
estados brasileiros.106 Os fonógrafos, marcantes na imaginação literária de Twain, Arthur
Conan Doyle e Villiers de l’Isle-Adam (uma máquina que descentrava a fala do sujeito
falante tornando possível uma representação in absentia),107 desde o final dos anos 1870
e começo dos 1880 já estavam presentes nas cidades brasileiras, evidenciando indícios do
novo aparelhamento técnico da vida urbana,108 onde a própria figura do telefone já
aparecia em experimentos desde 1876 e 1877. Se o fim de século é o arranque da
104 NORONHA, Gilberto Cezar. Viagem aos sertões enunciados: comphigurações do oeste de Minas
Gerais. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011. 105 BARTELT, Dawid Danilo. Sertão, república e nação. Trad. Johannes Krestschmer e Raquel Abi-
Samara. São Paulo: EDUSP, 2009. p. 153-154. 106 LEMOS, Chélen Fischer. O processo sociotécnico de eletrificação na Amazônia: articulações e
contradições entre Estado, capital e território (1890-1990). Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. ROCHA, Artur Garcéa de Lacerda. Discursos de uma modernidade: as transformações urbanas na freguesia de São José (1860-1880). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003. PINHEIRO, Eloisa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2011. MALHEIROS, Rogério Guimarães; ROCHA, Genylton Odilon. A cidade de Belém e seu processo de modernização (1840-1870). Revista CIEC-Unicamp, Campinas, v. 5, n. 7, 2013.
107 GRIVEL, Charles. The phonograph’s horned mouth. In: KAHN, Douglas; WHITEHEAD, Gregory. Wireless imagination: sound, radio, and the avant-garde. Cambridge: MIT Press, 1992.
108 FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global, 2004. FREHSE, Fraya. O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império. São Paulo: EDUSP, 2005. CASCAES, Julio César Silveira. Fonógrafos e gramofones: mediações técnicas em Porto Alegre (1892-1927). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
49
globalização do novo sistema de objetos,109 os jornais ilustrados e os almanaques da
época, no Brasil, funcionavam como pletoras de novos públicos para a exibição das
mercadorias na vida prática, como máquinas de escrever, máquinas de costura,
campainhas, balanças, lâmpadas elétricas, fogões, perfumes, artigos de iluminação a gás,
decorações de vidraças, conhaque, cervejas, biscoitos, conservas para alimentos, albuns
para fotografias, ourivesaria, chocolate, tecidos etc. – além de todo o imaginário científico
e do espetáculo contido na nascente indústria moderna, circunscrevendo o fetichismo da
forma-mercadoria e seu apelo como evento estético que percorre as fibras do sistema
internacional de trocas.110
Em uma cidade como o Rio de Janeiro, a incorporação desse circuito de
transformações era significativa já nos anos 1850.111 A Rio de Janeiro Gás Company,
como companhia de iluminação e fábrica ativa desde os anos 1850, coexistia a partir de
1862 com a oferta de iluminação pública na então Corte – na mesma data, aliás, a The
Rio de Janeiro City Improvements começava a implementar tratamento dos esgotos,
auxiliado por serviços de limpeza urbana nos anos 1870 e pelos contratos do governo com
Aleixo Gary. Espaços de sociabilidade como a Maison Moderne, o Sport Boliche
Moderno, o Jockey Club, o Derby Club e as iluminações do Passeio Público, com
lâmpadas coloridas durante as noites, marcavam elementos importantes da esfera pública
urbana. Vale destacar, nesse sentido, a circulação pela cidade moderna dos bondes e das
linhas férreas, de modo que as experiências com eletricidade foram intensificadas a partir
do fim dos anos 1870 com redes de iluminação permanente (apenas poucos anos depois,
portanto, das primeiras experiências com geradores elétricos na Gare du Nord em Paris).
Os meios de circulação de informação propiciavam um novo ambiente de relações: a
partir do telégrafo em 1852, aparelhos para telefone alicerçaram as primeiras redes, nos
anos 1880, com a interligação de diversos pontos da infraestrutura urbana (corpo de
bombeiros, palácio imperial etc.) e com os desenhos das primeiras redes interurbanas por
meio de concessões.
Segundo um importante escritor do período, James Russell Lowell, ao passo que
o telégrafo e seu estímulo (thrill ) elétrico difundiam pânico pelos nervos das mais remotas
109 ARNOLD, David. Everyday technology: machines and the making of India’s modernity. Chicago:
University of Chicago Press, 2013. 110 HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. Trad. Erlon Paschoal. São Paulo: Editora
Unesp, 1997. p. 92-93. 111 WEID, Elisabeth von der. A cidade, os bondes e a Light: caminhos da expansão do Rio de Janeiro
(1850-1914). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niteroi, 1997. DUNLOP, Charles. Subsídios para a história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rio Antigo, 1957.
50
comunidades, a nova economia de estímulos excitava as imaginações tornando “o perigo
real agigantado por seu duplo irreal” –112 ou, nas palavras de um cronista do Rio de
Janeiro, “o telegrapho, esse inexoravel e apressado portador de bons e maus recados”.113
Mesmo a massificação do impresso, processo muito mais difuso que remonta à primeira
metade do século XIX, implicava uma nova amplitude na difusão dos saberes e em sua
circulação, alimentando “o motor offegante do pensamento e da conducta” pelo qual “se
azedam todos os velhos conflictos do mundo”.114 Se a iluminação elétrica elaborava
modelos de racionalização e de aspiração da ordem moral da cidade moderna em relação
à exposição das condutas e à avaliação moral dos espaços,115 a pervasividade das práticas
culturais à nova infraestrutura urbana e seu nascente sistema técnico também indicava
novas formas aspiracionais da vida moderna e suas imagens.116
Uma crônica da época, publicada no periódico de Angelo Agostini, informava
que, se “locomotiva tem admiradores, o telegrapho seus apologistas, o espiritismo seus
adeptos”, “entre todos os inventos que a civilisação moderna reclama como gloria sua” o
bonde sintetiza as apirações da vida urbana, na medida em que “no bond vai-se e quem
quer vai; quem nao quer, manda. O telegrapho não passa de um leva-e-traz que nos esfolla
as algibeiras; no bond vai-se e vem-se a gente sem esfollar cousa alguma”.117
Paralelamente à aceleração das estruturas de comunicação do mundo da vida, a própria
cultura do espetáculo despontava nos animatógrafos: o Salão Paris, no Rio de Janeiro
(com instalações na cidade de Campos), foi inaugurado em 1899, iluminado por luz
elétrica (fornecida por dínamos) e contendo fonógrafo, cinematógrafo e “lindas
photographias de cidades, logares pitorescos e scenas de costumes de todos os paizes”,
ou seja, “os mais sublimes espectaculos da natureza reproduzidos, graças á luz electrica,
em fórma tão fiel que lhes parecerá mesmo natural pintuas moverem-se, andarem,
trabalharem, sorrirem, chorarem e morrerem com tanta perfeição e nitidez, como se
homens, animaes e cousas naturaes fossem”.118 Esse tipo de “passatempo agradavel,
instructivo e moral”, possibilitando que “novos factos e acontecimentos se reproduzam á
vista de seus visitantes”, indicava sinais importantes da autonomização da imagem-
112 LOWELL, James Russell. Abraham Lincoln, 1864-1865. ELIOT, Charles William (Ed.). Essays:
English and American. Nova York: Collier & Son, 1914. (Harvard Classics, vol. 28) 113 ROLANDO. Echos e factos. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 379, 1884. 114 QUEIROZ, Eça. Carta a Bento. Revista Moderna, Paris, 1897. 115 SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Disenchanted night: the industrialization of light in the nineteenth
century. Trad. Angela Davies. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 133-135. 116 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 117 ROLANDO. Ao rodar do bond. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 1, 1 jan. 1876. 118 Animatographo com succursal em Campos: ver para crer . Rio de Janeiro, 1899.
51
movimento,119 bem como suas fantasmagorias decorrentes do nascimento do espetáculo
e da exibição moderna.
O problema, embora seja bastante evidente no fim de século, percorre as
percepções da paisagem cidade/campo como polos morais na formação do mundo
moderno. Existe, no teatro de Martins Pena, uma rica percepção nesse sentido. Se o
campo aparece como espaço do costume e da maior transparência nos sentimentos, a
cidade é tematizada como alargamento de socialização (por isso os imperativos de uma
constante educação dos sentimentos) e circulação da forma-mercadoria (imbuída no
universo da especulação e do encantamento com o desenvolvimento técnico, tal como em
Os dois ou o inglês maquinista de 1845). Em A família e a festa da roça, de 1840, o luxo
e os contatos da nascente vida urbana eram responsáveis pelo encantamento e pela
derrocada moral – impasse evidente no desejo de Juca que, retornando ao campo após os
estudos na cidade, pretendia encontrar na roça “uma uma moça que comprehenda o meu
coração, que me ame por mim mesmo”.120 A oposição cidade/campo, contudo, não é
tematizada apenas como a rusticidade do campo (chapéus de palha, jaqueta de chita e
indivíduos “vestidos como roceiros”) e o sistema de objetos da cidade moderna (sapatos
franceses, modas etc.). As transformações nas sensibilidades e na materialidade do mundo
da vida, em uma região periférica, eram igualmente importantes nessa caracterização.
Em O juiz de paz da roça (1838), José propõe a Aninha uma viagem à Corte,
informando dos teatros como uma mágica: “magica é uma peça de muito machinismo”,
“uma arvore se vira em uma barraca; páos viram-se em cobras, e um homem vira-se em
macaco”.121 Nesse cenário, as relações e os encantamentos junto aos cosmoramas e à
imagem do espetáculo (“theatros, magicas, cavallos que dansam, cabeças com dois
cabritos, macaco major, quanta cousa!”) reiteravam os novos significados da vida urbana
em relação ao campo, “aonde não se ouve senão os sapos e as entanhas cantarem”. Os
divertimentos populares desenhavam relações importantes entre o campo moral humano
e os objetos e fantasmagorias não-humanas.122 Especialmente no Rio de Janeiro, além das
experiências com fotografia a partir de 1840 na hospedaria Pharoux (produzindo a
119 DELEUZE, Gilles. Cinéma 1: l’image-mouvement. Paris: Minuit, 1983. p. 39-41. 120 PENNA, Luis Carlos Martins. A família e a festa da roça. In: PENNA, Luis Carlos Martins. Comedias.
Rio de Janeiro: Garnier, [189-]. p. 34 (ed. Silvio Romero e Mello Moraes Filho) 121 PENNA, Luis Carlos Martins. O juiz de paz da roça. In: PENNA, Luis Carlos Martins. Comedias. Rio
de Janeiro: Garnier, [189-]. p. 7-8. (ed. Silvio Romero e Mello Moraes Filho) 122 CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Panoramas e cosmoramas: distrações populares do Segundo
Reinado. In: LYRA, Maria Viana; SANTOS, Renata; RIBEIRO, Marcus Venicio. O acervo iconográfico da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2010.
52
“representação dos objectos de que se deseja conservar a imagem”)123 e de aparelhos
ópticos como a lanterna mágica e os cosmoramas (presentes nas notícias da Gazeta, do
Diário do Rio de Janeiro e no período A Lanterna Mágica dos anos 1840), sobretudo a
partir dos anos 1850 e 1860, diversas exibições de polioramas e câmara ópticas expunham
importantes cidades europeias (Paris, Londres, Sevilha etc.) e eventos (Guerra da
Crimeia, batalha de Solferino, fenômenos naturais etc.), revelando a exposição e o
espetáculo da modernidade e de seus divertimentos.124 A ascensão do novo sistema de
objetos a partir das interações da cidade condicionava os usos da sociedade e a separação
cidade/campo ao dinamismo das novas imagens de mundo no terreno urbano.
O impacto dessas transformações da infraestrutura sobre o campo da instrução
pública (tal como atesta o próprio estudo de Lévasseur) e os processos de educação, então,
deve ser considerado. Nesse sentido, gostaria de articular duas dimensões que indicam o
lugar da nova técnica e da racionalização do mundo da vida junto à sua tradução em
práticas culturais da educação dos futuros cidadãos. O primeiro ponto diz respeito a uma
nova economia da atenção, articulando a capacidade perceptiva do observador à
disseminação de múltiplos dispositivos de captura.125 Além de preceitos da atividade
junto à técnica moderna (tal como os expostos nos livros de leitura seriada de Abilio César
Borges, o barão de Macaubas, desde o fim dos anos 1860), um ofício assinado por
Benjamin Constant em 1882 informava sobre a utilidade do grafoscópio e seu regime de
atenção a uma “variedade de imagens diversamente multiplicadas”, “deixando ver um
syllabario ou grande numero de combinações syllabicas em caracteres de imprensa e
manuscriptos, desenhos, figuras e quadros communs da vida para as lições de cousas”.126
O sistema de objetos escolares (compreendendo bancos-carteiras, globos etc.) circulava
nos espaços de exibição da modernidade desde a exposição internacional de 1862, em
Londres, reunindo objetos escolares ao lado do encantamento das mercadorias – as
exposições de 1867 (Paris), 1873 (Viena), 1876 (Filadélfia) e 1878 (Paris) deram
continuidade ao que Buisson, entusiasta do espírito cosmopolita do século, acreditava ser
o índice da confiança (rassurant) no futuro das sociétés modernes.127
123 Photographia. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17 jan. 1840. Créditos ao historiador, fotógrafo e
colega Danilo Zioni Ferretti (UFSJ), que chamou minha atenção para esse dado. 124 SILVA, Maria Cristina Miranda da. A presença de aparelhos e dispositivos ópticos no Rio de Janeiro
do século XIX. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.
125 CITTON, Yves. Pour une écologie de l’attention. Paris: Seuil, 2014. p. 181-186. 126 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – Notação 10.4.20 – Instrucção publica, p. 58. 127 BUISSON, Ferdinand. Rapport sur l’instruction primaire à l’Exposition u niverselle de
Philadelphie. Paris: Imprimerie Nationale, 1878.
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A manipulação dos objetos indicava novas coordenadas no campo da instrução
pública. Evidenciando uma fundamentação pedagógica às novas formas de atenção diante
da vida prática, o relatório assinado por Francisco Inacio de Carvalho Moreira (barão de
Penedo) sobre a Exposição Internacional de Higiene e Educação de Londres em 1883, na
qual o Brasil expôs diversos materiais e fotos de prédios escolares (tal como é possível
ver na fotografia de 1884, impressa em papel albuminado com cartão-suporte e depositada
na coleção Thereza Christina Maria da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro), tendo
como comissário-adjunto Charles Girardot, indicava justamente que
Froebel compreendeu perfeitamente o problema que apresenta a criança ao estudo do homem, quando reconheceu que o unico meio de fixar-lhe a attenção era occupal-a com alguma cousa que a interessasse. Demais, a criança não differe muito nisto do homem feito, que não se vexa em dar a entender a um importuno que o que este lhe diz não é agradavel. Quanto o homem do mundo da com os disfarces que lhe impõe o uso da sociedade, a criança que, Deus louvado, não é absolutamente homem do mundo, fal-o com a franqueza adoravel que lhe é natural. É esta intelligencia mais esclarecida dos tempos modernos que deu origem a todos os meios de educação ideada para aplainar o caminho no qual se dão os primeiros passos da educação dos nossos filhos, e que produziu as obras attrahentes que substituiram a austeridade do systema ignaro que pensava ter dito a ultima palavra com referencia á educação da criança de seu tempo, quando conseguira fazer-lhe observar uma rigidez absoluta do espirito e do corpo, ou uma completa inercia de todas as suas faculdades. Não, nós não pocuramos mais reprimir nem cohibir os movimentos naturaes da infancia; esforçamo-nos, pelo contrario, por desenvolvel-os e digiril-os no sentido de uma occupação salutar. Não apresentarei outra prova senão os innumeros generos de occupações manuaes que interessam o espírito ao mesmo tempo que exercitam a vista e a destreaz dos dedos, cuja multiplicidade admiraria os nossos antepassados na arte de ensinar. Desde os abecedarios adornados com as mais bellas gravuras em madeira e em metal, até ás obras destinadas ás classes mais adiantadas, tudo tem o cunho do progresso que caracterisou a marcha da educação durante a terceira e o começo da quarta parte de nosso seculo.128
O segundo aspecto diz respeito à mediação do próprio impresso nessas figurações
da modernidade capitalista. O mercado dos livros didáticos, construído na Europa e nas
128 MOREIRA, Francisco Inacio. Exposição Internacional de Hygiene e Educação em Londres. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1885. p. 31.
54
Américas na segunda metade do século XIX,129 captou as mudanças de maneira
sintomática. Afinal, as práticas culturais subjacentes às relações entre os indivíduos e a
infraestrutura moderna deveriam ser, sobretudo, educadas tendo em vista as novas formas
do mundo da vida. O livro do professor João Vieira de Almeida (editado junto à série
“Leituras escolares”), com ênfase no regionalismo paulista do período de modernização
da cidade, fazia crer que “a origem honrada da nossa terra, bafejada em seu inicio pela
religião e pelo trabalho, venha a ser ainda maior do que Roma, na conquista pacifica das
artes, das industrias e da sciencia”.130 Em meio a um conjunto de virtudes e deveres
morais prescritos aos futuros cidadãos, as lições enfatizavam a infraestrutura como
conquistas da regularidade moral do trabalho e do espírito de ordem social. O professor
indicava que “o progresso moderno, a facilidade das communicações, determinada pelas
estradas de ferro, modificam completamente os nossos velhos habitos”, dilatando a
circulação e o horizonte da “sociedade antiga”, que “vivia quasi isolada, no meio de suas
mattas e de suas montanhas”.131 Nessa direção, o professor ensinava:
Escuta, meu filho, o silvo das machinas a vapor, que de todos os lados cortam os ares. Ora, parte das numerosas fabricas; ora se destaca dos trens de ferro, que arfando se encaminham para esta metropole! Contemplaras, em brece uns enormes vehiculos, que se deslisam sobre os trilhos, sem que a gente divise o motor que os impelle. A mysteriosa força da electricidade, é que os conduz, levando a animação e o progresso, aos mais affastados arrabaldes da capital! [...] Repara, cai a noite! As collinas que daqui entrevêmos, começam de se pontuar das luzes dos lampeões da illuminação publica. As principaes arterias de circulação principiam a se encher de passeantes, que estacam, maravilhados, diante dos mostradores das lojas, deslumbrantemente illuminados á luz electrica!132
As “vacillações de homem moderno” de Almeida, construídas sobre a narração
das virtudes da história pátria à luz de um futuro revolvido pelo ímpeto técnico, desenham
no horizonte de expectativas uma projeção que torce a narrativa aspiracional da ordem
moral às iluminações do gênio moderno. Diversos parâmetros de tradução da
infraestrutura nos textos didáticos podem ser notados no período, desde as menções no
129 BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
CHOPPIN, Alain. Les manuels scolaires: histoire et actualité. Paris: Hachette, 1992. TATLOCK, Lynne (Org.). Publishing culture and the reading nation. Nova York: Camden House, 2010.
130 ALMEIDA, João Vieira. Patria. São Paulo: Casa Eclectica, 1899. p. 63. 131 ALMEIDA, 1899, op. cit., p. 286. 132 ALMEIDA, 1899, op. cit., p. 326.
55
livro adaptado por Romão Puiggari (autor, ao lado de Arnaldo de Oliveira Barreto, de
livros de leitura seriados premiados na Exposição Universal de Saint Louis de 1904) em
1890,133 ensinando o encantamento da ferrovia, até o texto didático de Tancredo Amaral
– este, certamente, mais permeado pela relação entre a liturgia cívica dos textos escolares
da época134 e o imaginário técnico da modernidade.135 O autor era professor da Escola
Normal de São Paulo e sócio do IHGSP, de modo que, a exemplo de outros sócios de
grêmios letrados no oitocentos, sua inserção no mercado didático evidencia bem as
relações entre as instituições, os savants e seus públicos no período.136 Basicamente, a
ideia de Amaral é oferecer um manual de instrução cívica que assume como pressuposto
a moralização das condutas e seu reflexo no odenamento da infraestrutura.
Em relação a outros gêneros de textos didáticos também dedicados à descrição da
atividade social vinculada ao meio físico e ao desenvolvimento dos hábitos morais da
população, a exemplo das edições dos compêndios de geografia de Machado de Oliveira
e de Thomas Pompeo de Souza Brasil nos anos 1860, o texto traz uma rica sequência de
imagens cuja funcionalidade didática e pedagógica, no conjunto do material, é bastante
evidente: “educando assim civicamente a creança”, “obedeço assim ao pensamento de
Pestalozzi: partir do simples para o composto, do particular para o geral, da parte para o
todo”. A produção do território e a regularidade moral são termos indissociáveis. O
trabalho, “que é a base de todo o progresso e engrandecimento de um povo”,137 ao passo
que contextualiza um leque de virtudes, também emoldura o conjunto da técnica moderna
composta pelas ligações de gás para as casas, iluminação pública e luz elétrica, tramways,
bondes, vapor, estações de maquinário geradores de vapor e viadutos cortando as serras,
evidenciando como “a obra do homem está de harmonia com a terra em que assenta” já
que “a pujança presidente da arte mostra-se digna da magestade ameaçadora da
natureza”.138 A racionalização do espaço, aqui, exibe a nova imagem de mundo da
modernidade a partir do ímpeto de uma infraestrutura regulada moralmente.
133 PUIGGARI, Romão. Cartilha da infancia. 58. Ed. São Paulo: Francisco Alves & Cia., 1911. p. 64. 134 VIEIRA, Cleber Santos. Civismo, República e manuais escolares. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 32, n. 63, 2012. 135 AMARAL, Tancredo. Ensino civico. Rio de Janeiro: Alvez & Cia., 1896. 136 FONSECA, Sérgio C.; NARITA, Felipe Ziotti. Historiografia e institucionalização de saberes sobre a
nação (Brasil, séculos XIX/XX). ArtCultura , Uberlândia, v. 20, 2018. 137 AMARAL, 1896, op. cit., p. 90. 138 AMARAL, 1896, op. cit., p. 143.
56
Fonte: AMARAL, Tancredo. Ensino civico. Rio de Janeiro: Alvez & Cia., 1896. p. 144. Viaduto da Grota Funda, na Serra de Santos, objeto de retratos e encantamentos na época, como
o trabalho de Militão Augusto de Azevedo nos anos 1860 e as gravuras no jornal O Novo Mundo, de J. C. Rodrigues, no início dos anos 1870, dedicado ao “progresso da edade”.
Fonte: AMARAL, Tancredo. Ensino civico. Rio de Janeiro: Alvez & Cia., 1896. p. 135 Ponte do Jaguará
Fonte: AMARAL, Tancredo. Ensino civico. Rio de Janeiro: Alvez & Cia., 1896. p. 124
Viaduto do Chá
57
Fonte: AMARAL, Tancredo. Ensino civico. Rio de Janeiro: Alvez & Cia., 1896. p. 82
Escola Normal de São Paulo
As novidades técnicas e imagéticas certamente sofreram uma inflexão importante
a partir de sua incorporação à vida urbana do fim de século. Contudo, esses processos
cumulativos de “melhoramentos materiais” canalizavam um movimento subterrâneo que
estruturava a cultura moderna a partir de novos parâmetros de avaliação moral do mundo
da vida. As ambivalências e a desestabilização de contextos tradicionais, nesse sentido,
posicionam os impactos das transformações materiais sobre o mundo moral em um
horizonte mais distendido que remonta, certamente, à conjuntura estabelecida a partir da
segunda metade do século XIX. As ambivalências da estruturação da moralidade e dos
processos de educação no período devem ser analisadas à luz dessa conjuntura de
expansão e consolidação da modernidade capitalista no sistema-mundo.
A simultaneidade das transformações materiais e ideológicas no sistema-mundo,
de algum modo, adquire uma tonalidade interessante em um curioso texto de Abreu e
Lima.139 O livro pode ser lido como uma crítica mais ou menos programática às teorias
de Babeuf, Fourier, Saint-Simon e Owen (“aberrações do espirito humano, excrescencias
que vão desapparecendo pelo attrito na rotação do genero humano sobre si mesmo”), mas
certamente carrega outros ângulos de abordagem. Gostaria de destacar, antes de qualquer
preocupação mais programática do texto, a fundamentação da crítica de Abreu e Lima,
uma vez que, creio, essa visão ilustra um insólito diagnóstico de época da modernidade
ao indicar as origens, os fundamentos e os impasses da “civilisação moderna”, elaborando
uma espécie de humanismo. Para o autor,
139 ABREU E LIMA, José Inácio. O socialismo. Recife: Typ. Universal, 1855.
58
Nossa ambição he ao mesmo tempo sem limites e sem base. Nós sonhamos com um futuro cheio de todos os generos de gloria e de grandeza, e no presente falta-nos o terreno debaixo dos pés!! Qual he pois o nosso presente? Já o dissemos: falta de fé nos homens e nas cousas, ausencia ou abnegação de enthusiasmo pelas doutrinas e pelas instituições, scepticismo nas leis e nos costumes, tedio pelo que existe, e horror pelo que póde vir a ser. Este estado, na verdade indefinivel, devia ter uma explicação: como tres seculos de progresso poderão levar-nos á esta situação? Com effeito, qual era a preoccupação, o pensamento de toda essa época? O melhoramento e o progresso do systema social. E como quizerão obtel-os? Por meio do progresso politico sem cuidar no progresso moral. Sem cuidar dos costumes, cuidárão só das leis, e por fim, quando os governos usárão de violencias, o povo só teve que oppor-lhes outras violencias. Para que, pois, o progresso politico seja possivel, convém que seja acompanhado do progresso moral, fazendo com que as theorias passem das intelligencias não só para as instituições como para o coração do povo, tornando-as convicções nacionaes, porque só nas doutrinas moraes de um paiz está a segurança de suas doutrinas politicas; isto he, só as doutrinas moraes tem o poder de fechar o abysmo das revoluções.140
O horizonte conflitante da modernidade, organizado por dinâmicas contraditórias
e ambivalentes de aspiração e de abjeção, é central nessa longa citação. Se os
reformadores utópicos do começo do século XIX permitiram “conhecer a fundo as
miserias da civilisação actual”,141 fundamental para a “reconstrução da ordem social” é o
reconhecimento de que “a civilisação actual he obra sem duvida do christianismo” e,142
sobretudo, a rotinização de valores de socialização e a instituição de uma gramática moral
em meio às transformações aceleradas. Longe de qualquer forma tradicional de
religiosidade ou ideal orgânico de comunidade, o raciocínio de Abreu e Lima tangencia
justamente o lugar da estruturação moral da sociedade em meio ao turbilhão da
modernidade. Partilhando uma visão do progresso como a consciência histórica de um
excepcionalismo moral do século,143 o autor afirma que “o seculo actual he o do progresso
moral e material, o da philosophia que chamarei social”, pois sintetiza uma “tendencia
visivel, palpavel, conhecida por sua marcha sempre crescente, sempre progressiva desde
os quinze primeiros seculos da historia”.144
140 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 160. 141 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 59. 142 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 81. 143 TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral.
São Paulo: Loyola, 2013. p. 508-509. 144 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 7.
59
Absorvendo toda a teoria da palingenesia social de Ballanche, Bachour de
Penhoen e Lavergne,145 com a ênfase no processo histórico como a “regeneração do
homem pelo homem”, o registro moral da abordagem de Abreu e Lima, “applicada, não
ao individuo mas á especie, não ao corpo mas á alma” é central para as implicações do
argumento. Se o homem é “um ser collectivo, he um genero”, “a maior parte dos nossos
instinctos estão colocados fóra de nós, na sociedade”. Aqui, essa pequena filosofia da
história subjacente ao texto indica que o “genero humano todo inteiro he um ente
collectivo”, de modo que
[...] augmenta, e se desenvolve debaixo da influencia da lei providencial da queda primitiva e da rehabilitação, passando deste modo por uma serie de fórmas sociaes. Nenhuma porém demora ou retem para sempre; pelo contrario, todas essas fórmas sociaes, filhas do progresso, são destinadas a acabar umas depois de outras pela marcha successiva da civilisação. Ao passo que cada uma dellas resume o passado, contém ao mesmo tempo um porvir que não póde aferrolhar, assim como não é
dado á fragil casca da bolota reter em si o carvalho para sempre.146
O sentido do progresso, para Abreu e Lima, tinha uma dupla determinação – moral
e material –, de modo que a iluminação da técnica moderna não poderia prescindir de seu
fundamento moral baseado na regularidade do trabalho e nas virtudes sociais (derivadas,
aliás, do campo religioso). Na mesma direção, por exemplo, José Maria da Silva Paranhos
entendia que a época de “consumo universal” e dos “productos de sua industria”
conformava uma espécie de promessa de emancipação pela técnica e pelo mercado: nessa
“verdadeira encyclopedia posta em pratica [...] está cifrada a civilisação de muitos
seculos”,147 de modo que “o seculo XIX volta ás suas tendencias eminentemente
utilitarias, tudo o pressagia”.148 Se as “producções maravilhosas do engenho humano”
(incorporadas nas imagens do Hyde Park e do Palácio de Cristal, cujas vistas e medalhas
prateadas eram vendidas no Brasil) triunfavam sobre as ruínas do “cataclysma
revolucionario” (representado pelo terror, pelas potenciais desordens urbanas e por 1848),
145 Perspectivas, aliás, recorrentes junto ao romantismo brasileiro. Cf. FERRETTI, Danilo José Zioni.
Gonçalves de Magalhães e o sacerdócio moral do poeta Romântico em tempos de guerra civil. Almanack, Guarulhos, n. 2, p.66-86, 2011. BARROS, Roque Spencer Maciel de. A significação educativa do romantismo brasileiro. São Paulo: Grijalbo, 1973.
146 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 16. 147 PARANHOS, José Maria da Silva. A exposição de Londres. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 29
jul. 1851. 148 PARANHOS, José Maria da Silva. Carta ao amigo ausente. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 23
fev. 1851
60
o futuro ordeiro de “partilha do progresso geral” e de regeneração moral e social era
garantido sob a condição da regularidade moral das atividades sociais. Como “protesto
mais solemne e aterrador que se podia lavrar contra os sophistas das desordens e os
philosophos da anarchia”, o encantamento com o mercado e com as mercadorias da Índia,
China, Russia, Peru, Brasil, Suíça e França (“grande bazar da industria humana”) selava
a estrutura ideológica dessa narrativa ordeira da modernidade, fundamentada moralmente
nos deveres do bom cidadão e no espetáculo gerado pelo “poder dos homens applicados
ao trabalho”.149
A rigor, a constante presença dessas imagens em textos oitocentistas é parte da
rica difusão de imaginários da modernidade, sobretudo, no mundo atlântico. Longe de
manifestações superficiais da modernidade na periferia do capitalismo, os imaginários
sociais produzem e reproduzem relações de sentido com as transformações, ajudando a
mapear uma espécie de ontologia do social-histórico como campo de elaboração de
significados.150 A tangibilidade da forma social, nesse sentido, atravessa a instituição de
formas de vida baseadas em significações imaginárias, evidenciando elementos de
difusão responsáveis pelas mediações de produção e reprodução das práticas culturais.
Os imaginários da modernidade, portanto, longe de pressupostos marcados por
dicotomias como cópia/imitação, sinalizam dimensões de uma compreensão criativa do
mundo da vida,151 estruturando a dinâmica social em torno de um “magma de
significações” que dobra as práticas e seus sentidos sobre parâmetros valorativos de
estruturação interna da sociedade. Justamente tendo em vista a profusão e as dinâmicas
criativas subjacentes a esses imaginários sociais e a suas estruturas perceptivas, minha
investigação tenta sugerir nexos fundamentais, em meio a essas relações de sentido, para
a construção de dimensões do horizonte moral e das estruturas de educação da cultura
moderna no fim de século brasileiro.
Em Abreu e Lima parece haver uma tensão entre uma “civilisação [que] marcha
por toda a parte com a sua fouce inexhoravel”, difundindo ideias “luminosas e uteis”,152
e um iminente potencial de ruptura da estruturação moral da sociedade e de sua
regularidade desencadeado pela modernidade. Preocupado com os “grandes fins da
149 PARANHOS, José Maria da Silva. A exposição de Londres. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 12
jun. 1851. 150 CASTORIADIS, Cornelius. Imagination, imaginaire, réflexion. In: CASTORIADIS, Cornelius. Fait et
à faire. Paris: Seuil, 1997. 151 CASTORIADIS, Cornelius. Pouvoir, politique, autonomie. In: CASTORIADIS, Cornelius. Le monde
morcelé. Paris: Seuil, 1990. 152 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 37.
61
sociedade” e contemporâneo do Palácio de Cristal,153 o autor indicava que a “civilisação
da imprensa, da bussola, do magnetismo e do vapor”, assistindo à expansão comercial e
ao nascimento do espetáculo da indústria moderna e de toda a desterritorizaliação da
modernidade capitalista (“do occidente lanção-se os homens para o oriente, e do oriente
para o occidente”), compunha, em registro moral, algo aterrador em tempos de
aceleração. É como se os códigos morais oferecessem uma espécie de suporte para a
construção de relações de sentido entre as ambivalências de um presente aberto às
iluminações do futuro desencadeado junto ao desocultamento da natureza por meio do
mundo manipulável pela intervenção técnica.154 Para o encaminhamento da minha
discussão, aqui reside o argumento central da perspectiva de Abreu e Lima: a estruturação
dos valores morais ns novos horizontes de socialização possui uma fundamentação
problemática. Gostaria de depreender duas dimensões desse problema.
A primeria diz respeito à fundamentação moral da socialização e da configuração
da vida moderna. Se “a sociedade não he nem póde ser a sentina de todas as paixões más,
entregues á sua exaltação como o bem-estar supremo do genero humano”,155 a
estruturação da moralidade deve tentar corresponder aos novos imperativos sociais e de
reconhecimento a fim da regularidade da atividade social e de seu ordenamento. Nesse
sentido, Abreu e Lima interpretava a moderna vida urbana como a possibilidade de uma
“tendencia das sociedades modernas para o bem-estar material, partindo do bem-estar
moral”, de modo que o entrelaçamento entre a nova infraestrutura (condições objetivas
de incorporação da vida moral) e o mundo da vida era fundamental, por exemplo, à luz
dos “estabelecimentos de beneficencia, hospitaes, asylos de toda natureza, casas de
expostos, de maternidades, montes pios, montes de soccorro, caixas economicas, premios
á virtude, escolas publicas, casas de correção, &c, &c.”.156 Além da inserção da
infraestrutura moderna no campo moral (definindo contornos importantes da moderna
vida urbana), os processos de educação e as perspectivas formativas de condutas em
relação a valores constituíam fundamentos da vida moral, uma vez que
A sociedade moderna tem ainda outro cunho especial, que a distingue das velhas sociedades, e vem a ser a educação popular. Para que o homem podesse chegar á posse da consciencia, e entrar na vida civil e
153 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 31. 154 BRÜSEKE, Franz Josef. A modernidade técnica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo,
v.17, n. 49, 2002. 155 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 45. 156 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 35.
62
politica, era mister desterrar a ignorancia e a barbaria, em que vegetava o povo entre os antigos [...] diffundir e propagar a instrucção até a mais baixa classe do povo, como um elemento de ordem e de bem-estar.157
O segundo ponto diz respeito ao “atheismo moral”: sintoma de uma “lucta
horrivel” desatada a partir do final do século XVIII, o problema era apenas a superfície
de uma agitação mais profunda no mundo da vida. Se a moral “explica por si mesma o
que he o homem”, a “dissolução de todo vinculo social” como potencial latente em meio
às transformações em curso é sinal de que “triunpharia o progresso moral, se a grande
revolução daquella época não causasse novas e extremas violencias”.158 “A
independencia pois das doutrinas moraes fórma o caracter da éra moderna”, de modo que
a estabilização dos valores morais a partir de centros consolidados/tradicionais (religião)
era um desafio crescente ao observador moral moderno – esse, aliás, é um dos dilemas da
tragédia subjacente ao triunfo da técnica moderna, pois o reconhecimento de que “a moral
he invariavel”, reduzindo-a a um conjunto de valores essenciais vinculados às formas
tradicionais de religiosidade, resvala nas abruptas contingências da cultura moderna.
Afinal, o “engrandecimento pelo habito e pela educação” deveria ser o fiador da tarefa de
“multiplicar os interesses por toda a parte” e das iluminações construídas pelos “caminhos
de ferro, barcos de vapor ou de calorico, telegraphos electricos, balões aerostáticos”.159
As implicações histórico-universais desses processos balizavam estruturas da
consciência histórica do oitocentos. Um arguto intérprete do período, como o historiador
francês Charles Seignobos, assinalava que a profunda agitação (bouleversement) do
incremento comercial e industrial, decorrente sobretudo do desenvolvimento dos meios
de transporte e de comunicação, conferia conteúdo pleno a uma espécie de “utopia” da
civilização, construindo um contexto de rápidas mudanças materiais no mundo da vida
com o vapor, a eletricidade, os portos, as ferrovias, as estradas, os serviços postais e toda
a sorte de impressos.160 A infraestrutura capitalista, nesse sentido, gradativamente
desenhou uma nova racionalidade à luz da intensificação das atividades urbanas e da
manipulabilidade da paisagem pela técnica – y compris o próprio campo da instrução
pública e seus prédios, escolas, bibliotecas, museus etc. –,161 de modo que organizou
157 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 237. 158 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 115-116. 159 ABREU E LIMA, 1855, op. cit., p. 30. 160 SEIGNOBOS, Charles. Histoire de la civilisation contemporaine. Paris: G. Masson, 1890. p. 361-369. 161 GRAHAM, Stephen; MARVIN, Simon. Splintering urbanism: networked infrastructures,
technological mobilities and the urban condition. Nova York: Routledge, 2003. p. 41-45.
63
horizontes para a unificação das experiências urbanas, incorporando novas formas de
relacionamento e de sociabilidade no espaço da cidade moderna.162
Em meio a uma série de conferências populares que reestruturaram a esfera
pública no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras a partir dos anos 1870
(difundindo matérias e aulas para a instrução popular por meio de pequenas conferências),
Misael Ferreira Penna considerava que
O Brazil vai apressado na senda do progresso. Assim: as estradas de ferro, umas já em trafego, outras em construção e muitas projectadas, cortando nosso fertilissimo territorio em todas as direcções e formando hoje uma verdadeira aspiração nacional; o telegrapho devassando o espaço, ligando as provincias entre si, com o centro commum d’este Imperio e com o resto do Universo; a navegação sulcando todos os nossos mares; o commercio patenteando de dia a dia mais incremento em suas relações.163
Para Penna, contudo, a infraestrutura e a elaboração das novas formas de vida
social não estavam visíveis apenas nas obras que iluminavam a dimensão de espetáculo
contida na modernidade capitalista (ferrovias, telégrafo etc.). Afinal, “não é somente o
desenvolvimento material que vai se operando no paiz, mas tambem o progresso moral”.
A “reconstituição de nossos costumes” tão apregoada junto aos processos de educação (e
igualmente enfatizada por Penna), em vez da reiteração de um passado de grandezas
perdido, sinalizava justamente as inseguranças diante da abertura a um horizonte de
expectativas em que a ancoragem futurista de suas possibilidades não estava mais contida
nas formas sociais tradicionais, mas era decorrente da capacidade de estruturação de
referências morais em um presente movediço. Se o Brasil “obedece á lei fatal da
civilisação”, a reorganização dos valores de socialização na cidade (dinamizados pelos
processos de educação) significava tentativas de integrar as transformações materiais e
morais em um mesmo quadro de referências normativas para as condutas. Nesse sentido,
conforme o raciocínio de Penna, escolas noturnas, bibliotecas populares, conferências
pedagógicas e impressos de vulgarização (divulgação) não eram apenas considerações
pontuais na moderna vida urbana, mas implicavam, antes, os reflexos da vida moral
lidando com as novas condições da infraestrutura.
162 LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual Review of Anthropology, v. 42,
p.327-434, 2013. 163 PENNA, Misael Ferreira. O presente e o futuro da província do Espírito-Santo. Conferências
Populares, Rio de Janeiro, 1876. p. 86.
64
A rede institucional do campo da instrução era central para a moralização da vida
urbana. Um livro didático dos anos 1870, nesse sentido, ensinava que “a cidade mais
digna de consideração é a que no seu seio tiver casas de caridade, escolas, bibliothecas,
grandes officinas e commercio constante”, pois “o povo precisa trabalhar”. Essa ética do
trabalho, ressaltando que “sem trabalho jamais se engrandece o paiz”, implica uma
proatividade da imagem do povo a partir de uma cruzada contra a ociosidade, que
“prejudica a quem nella se recosta e prepara-lhe dias de fome e pranto”. As lições, nesse
sentido, amarravam a necessidade de regularidade moral das multidões urbanas tendo em
vista, por exemplo, que “a ignorancia dos povos tem sido causa de grandes revoluções. A
sociedade moderna despreza os meios fortes, a força, para abraçar-se á penna. A imprensa
e o telegrapho são os dois maiores motores da civilisação moderna, sem exceptuarmos o
vapor que tem contribuido e muito para o engrandecimento de todas as nações”.164 Os
processos de educação são cortados pelos contextos da modernização da infraestrutura e
da dinâmica de transformações, indicando a construção de referências morais diante de
futuros entendidos como coeficiente de desestabilização do passado e vetor das
iluminações da abundância produtiva.
Para Homem de Mello, na abertura da Exposição Agrícola e Industrial do Ceará
em 1866, a cintilação dos futuros abria o horizonte “onde circula a animação e a vida”.
Assim, a moralização da atividade social como trabalho da civilização moderna dependia
do desvelamento de “região amplíssima”, confrontando o ímpeto moderno com
ambientes onde “a ambição insaciavel do homem não provocou debalde as forças da
natureza”. As “conquistas potentes da actividade humana”, como passagens que
volatilizam condições herdadas, aparecem como estampidos na condução do progresso
ordeiro sobre a paisagem. Afinal,
Aqui no meio destas planices arenosas, em cuja face a natureza parece haver impresso o sello da esterilidade, a mão audaciosa do homem civilisado assentou os fundamentos de um florescente emporio, rasgou a terra, e fecundou-a com o germen do trabalho. E hoje, o deserto arido transformou-se uma habitação risonha; e as ondas desse mar tempestuoso reflectem, no azul limpido de suas aguas, a imagem de uma cidade opulenta e cheia de esperança.165
164 Methodo Hudson offerecido á infancia e ao povo. Rio de Janeiro: Typ. Central de Brown & Evaristo,
1876. p. 38-39. 165 MELLO, Francisco Ignario Marcondes Homem de. Discurso de abertura da Exposição Provincial do
Ceará. In: MELLO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de. Escriptos historicos e litterarios. Rio de Janeiro: Laemmert, 1868.
65
Tal como o ímpeto moderno de um Fitzcarraldo transpondo a vastidão da selva
sob uma ária de Massenet, Candido Carvalho defendia que, na “civilisação moderna”, a
educação é a “lei reguladora dos destinos da humanidade”, pois “multiplica as forças do
homem e arrasa as barreiras que se oppõem á marcha da civilisação”.166 Como
“relampago que illumina as miseras choupanas dos infelizes e muda-lhes a condição”, a
equiparação da educação com o estrondo da técnica moderna (imagem típica da época)
implicava a normatividade moral dos processos sociais na instauração da vida coletiva
contra qualquer “facho incendiario” ou “principio anarchisador da sociedade” de
condutas auto-interessadas. Se “civilisação continuará sempre accumulando materiaes
para a perfeição indefinida da humanidade”, a “epocha de transformação e reorganisação
social” exige justamente o reforço mútuo entre a fundamentação moral das atividades
sociais e o horizonte de processos cumulativos da modernização material e da força de
trabalho.
Como tento demonstrar neste capítulo, a presença do conjunto técnico e da
infraestrutura da modernidade nos novos horizontes morais desempenha um papel
importante na vida social. Em vez de dualidades baseadas em exterioridades (dividindo a
interioridade do mundo moral e a instrumentação da técnica em relação ao mundo
externo), a infraestrutura técnica e urbana está pressuposta nos mecanismos de
interpretação moral. Mais do que uma relação instrumental com o fazer, portanto, a
técnica moderna implica o deslumbramento e a revelação (um desocultamento) de novas
relações de interpretação do mundo. Esse domínio essencial da tecnologia, pensado no
registro do desvelamento das relações de sentido (apropriação e reapropriação) entre os
indivíduos e o mundo, é parte indissociável das formas da cultura moderna. Esse era o
espírito da aula de Oliveira Menezes quando, ensinando que “o progresso é o movimento
e o movimento é a vida”, destacava que “esta ascensão é o progresso, a civilisação os
novos horisontes que a humanidades descortina á proporção que se eleva”.167 Além da
presença técnica nas avaliações morais e nos processos de educação, por exemplo, vale
destacar as pretensões de um Felix Ferreira, autor de livros de leitura e de inúmeros textos
sobre o mundo técnico destinados à divulgação científica e à instrução popular,
sublinhando o “gráo de aperfeiçoamento” das inteligências modernas, “illuminadas pelo
166 CARVALHO, Candido Lilias Mendonça. Introducção. A Instrucção, Rio de Janeiro, 23 nov. 1881. 167 MENEZES, Oliveira. Prelecção de abertura do curso de physica do Lyceo de Artes e Officios. Sciencia
para o Povo, Rio de Janeiro, 1881.
66
grande pharol da imprensa” de modo que “derramam ondas de luz por todas as classes da
sociedade”.168
À luz desse conjunto de transformações, os impactos da integração material do
sistema-mundo moderno sobre o campo da socialização e os valores morais eram
sentidos, sobretudo, nos grandes polos portuários. Embora marcada pelas estruturas da
ruralidade (como, aliás, os próprios países industriais do período), a vida urbana na
América Latina (especialmente no caso brasileiro) já apontava marcas significativas de
uma integração estrutural aos circuitos globais de transformações urbanas da
modernidade capitalista, contando com amplas conexões transnacionais de formas
culturais, circulação de sujeitos/saberes e transferências culturais.169 Subjacentes à
integração assimétrica dos antigos espaços coloniais no sistema-mundo moderno, novas
conexões das práticas culturais implicaram a modernização das formas de vida nas áreas
urbanas, de modo que a estruturação do campo da moralidade sublinha o horizonte de
ambivalência dos valores e do ethos do mundo da vida (bem como sua fundamentação
problemática) sob os impactos da modernidade.170
A rigor, desde os anos 1840, algumas preocupações podem ser mapeadas, no
Brasil, a respeito dos impactos morais da cidade nas formas de vida.171 A partir dos anos
1850 e sobretudo dos anos 1870, contudo, preocupações mais sistemáticas sobre a
paisagem urbana e seus imaginários ganharam volume abordando os temas da circulação,
dos vícios, das nascentes multidões, da higiene pública e da demografia – enfim, à luz do
vasto campo da moralidade e da gestão da população na vida urbana. Preocupado com a
relação entre os melhoramentos materiais e os horizontes morais da cidade, Vieira Souto
publicou na imprensa do Rio de Janeiro um interessante conjunto de artigos sobre “as
actuaes condições de vida” na cidade moderna, entendida como “o grande centro de
população”.172 O sentimento de decadência e de desgoverno diante das novas dimensões
da cidade levam o autor a indagar em que medida “a historia do desenvolvimento e vida
168 FERREIRA, Felix. Prospecto. Sciencia para o Povo, Rio de Janeiro, 1881. 169 CANCINO, Hugo; MORA, Rogelio (Orgs.). La historia intelectual y el movimiento de las ideas en
América Latina (siglos XIX-XX) . Veracruz: Universidad Veracruzana, 2015. OSSENBACH, Gabriela; POZO, María del Mar. Lost empires, regained nations: postcolonial models, cultural transfers and transnational perspectives in Latin America (1870–1970). Paedagogica Historica, v. 47, n. 5, 2011.
170 NARITA, Felipe Ziotti. Moral scenes from urban life. Praktyka Teoretyczna, Poznań, v. 23, n. 1, 2017c. (“Repressed histories of the 19th century” – Orgs. Katarzyna Czeczot, Wiktor Marzec e Michal Pospiszyl)
171 NARITA, Felipe Ziotti. Religião e moral na formação do Império brasileiro: o problema da elaboração da sociedade nacional. Paper de conferência – IESP-UERJ, Rio de Janeiro, 31 mar. 2017. 34p.
172 VIEIRA SOUTO, L. R. Os melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lino C. Teixeira & C., 1875.
67
das grandes cidades” evidencia que, “uma vez chegadas ao apoegeo da gloria, tendem [as
cidades] fatalmente para a decadencia, como sujeitas a uma força invencivel de
reacção”.173 Aqui, diversas formas aspiracionais e perspectivas de normatividade (moral)
da vida urbana subjazem à infraestrutura da cidade.
Além da infraestrutura e dos projetos de melhoramentos modernos compostos por
ramais de estação marítima, parques para exposição de máquinas, serviços de esgoto,
higiene pública e armazens de mercadorias, o autor sublinha na cidade – como nos
melhores textos de um Eça de Queiroz ou de um Rimbaud – as iluminações de um
dinamismo bastante particular junto à formação social. A cidade brasileira –
especialmente o Rio de Janeiro – “tão nova é ella que quasi póde dizer-se filha deste
seculo”, ou seja, fruto direto das transformações decorrentes da expansão do capitalismo
comercial na região desde os anos 1850. Como ponto nodal nos circuitos e trânsitos da
modernidade, a cidade – sobretudo a capital – “exerce grande influencia até sobre as
nações estrangeiras”, de modo que sua vida moral, destacada do campo, saltava aos olhos
dos contemporâneos como problemática. Afinal, em função da maior diferenciação social
e dos contatos mais dinâmicos (dilatados pelo maior raio de socialização),
Quem diz cidade diz civilisação. A grande cidade é um centro de intelligencia; a população agglomerada facilita a divisão do trabalho, e esta, por sua vez, o accrescimo de producção e o desenvolvimento da cultura intellectual. D’ahi resulta a influencia que todo o grande nucleo de população exerce sobre os destinos do paiz, influencia que se torna ainda mais notavel em relação ás capitaes. Esta preponderancia das capitaes é natural e legitima porque é n’ellas que se encontrão as grandes fortunas, as instituições scientificas e as aristocracias de dinheiro, nascimento e saber; centro de grande consumo, a capital attrahe os productores e desenvolve toda a especie de industria. Nas épocas de revolução ou de guerra, principalmente, torna-se manifesta a preponderancia de que fallamos. Bem recente é o exemplo da communa e da terminação da guerra franco-allemã pela capitulação de Pariz, para não citarmos outros.174
Desde modas, operetas, companhias de teatro, leituras e ideias até a circulação de
imaginários sobre as transformações técnicas e as desordens urbanas, um conjunto de
valores morais estava em jogo nesse dinamismo, oferecendo percepções referentes, a um
só tempo, à avaliação dessas transformações e à mobilização de valores instituídos (ou
173 VIEIRA SOUTO, 1875, op. cit., p. 84. 174 VIEIRA SOUTO, 1875, op. cit., p. 6.
68
desejados) nas formas de socialização. A difusão de saberes e imagens conforma relações
específicas de confrontação baseadas na mobilização de percepções do mundo moral.
Estratégias de abjeção, por exemplo, são fundamentais na expressão do horror subjetivo
com a delimitação de um espaço em que o sentido colapsa (s’effondrer) por meio da
produção abrupta de um estranhamento perturbador de narrativas identitárias à luz de
figurações de degradação e de rejeição dos parâmetros fundamentais da ordem moral.175
A retórica oitocentista da “tranquilidade pública” e a garantia dos referenciais liberais de
socialização (fundamentadas na propriedade privada e na segurança pessoal), como uma
ideologia dos conteúdos da liberdade moderna, afirmavam formas de vida e componentes
valorativos (morais) indissociáveis de sua contrapartida de abjeções.176 Os mecanismos
de avaliação do mundo da vida são construídos justamente nesse jogo de contrastes
morais e estéticos que esfumaça expectativas de regularidade e ordenamento diante dos
regimes de exclusão, espanto e ultraje da vida moderna.
Ao passo que a higiene pública e as imagens dos motins, das turbas urbanas
desordenadas, do desvalimento e das violências revolucionárias são fundamentais na
constituição da abjeção, as relações de sentido pressupostas nessas reações carregam uma
inventidade das práticas culturais. As estruturas perceptivas são sobrecarregadas pelos
estímulos do mundo da vida possibilitado por um processo subterrâneo que confere nexos
ideológicos fundamentais para a cultura moderna, conformado pelos novos processos
sociais decorrentes da circulação de trabalho, mercadorias, representações, consumo e
seu meio abstrato (dinheiro). Está em jogo uma seletividade e uma amplitude na
elaboração desses repertórios culturais, expandindo o raio de apropriação das práticas a
um campo universal de experiências sociais em circulação, alimentando imaginários
ligados à grande tragédia fáustica da consciência moderna por meio da cisão entre as
estruturas objetivas do mundo da vida e uma nova intensidade dos desejos e narrativas
aspiracionais.177 Essa clivagem, portanto, é construída sobre uma ampliação do campo
dos desejos e suas aspirações.
Nesse sentido, as dinâmicas aspiracionais, como parte de um esforço normativo,
compõem um horizonte de expectativas da cultura moderna. Aqui, as formas de aspiração
não são simplesmente tentativas de transplantação ou de importação, como se houvesse
175 KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l’horreur: essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980. p. 10-12, p. 25-27. 176 NARITA, Felipe Ziotti. Educação e tranquilidade pública no Império. Ensaios de História, Franca,
v.13, n. 1, p. 107-116, 2008. 177 SCHLAFFER, Heinz. Faust zweiter Teil: die Allegorie des 19. Jahrhunderts. 2. Ed. Stuttgart: Metzler,
1998. p. 177.
69
modelos acabados mimetizados por formas sociais incompletas nas periferias do
capitalismo. Esses processos sublinham, antes, uma economia própria de trocas
simbólicas e intercâmbios de formas de vida. As dinâmicas aspiracionais, nesse sentido,
ilustram as condições de incorporação dos repertórios temáticos à luz de sua elaboração
moral (permeada pela capacidade de avaliação das percepções), enfatizando a dimensão
transitiva da própria interpelação da forma social pelos signos culturais,178 de modo que
a elaboração dessas imagens configura justamente as mediações pelas quais a circulação
dos repertórios, a reelaboração de seus significados em práticas e suas
hibridações/contextualizações não são pensadas como estruturas reificadas (dispostas em
pares antitéticos) como cópia/original, autêntico/inautêntico etc.
Esse processo, dialogando com as transferências do repertório temático da
modernidade, implica uma importante dinamização sócio-cultural na medida em que
supõe novas relações de sentido no mundo da vida. A dinâmica social, portanto, é
inseparável dos suportes materiais que organizam a produção e a reprodução de sentidos
e de saberes no sistema-mundo e na unificação dos espaços sociais por meio das esferas
de circulação subjacentes ao desenvolvimento de tecnologias de amplo investimento
(ferrovias, estradas, vapor etc.),179 contando sobretudo com formas editoriais de difusão
dos impressos (jornais, livros, panfletos, pareceres, relatórios, almanaques etc.) e
estruturas comunicativas da esfera pública (conferências e discursos). A rigor, as
molduras materiais implicadas nas formas da cultura moderna constituem elementos que
conferem uma lógica particular (daí as esferas de circulação) para as transferências
culturais, apresentando a possibilidade de deslocamentos e ressemantizações de
conteúdos valorativos.
Conforme a análise sociológica de John Thompson, essas modalidades de
transmissão e de produção cultural da modernidade capitalista são estruturadas em três
eixos fundamentais: (1) a estruturação de um meio (medium) técnico como substrato
material e forma simbólica, permitindo a reprodução de códigos, imagens e valores; (2)
um aparato institucional alicerçado na hierarquização, por meio de relações
institucionalizadas, envolvendo redes de distribuição e de publicação com canais de
difusão seletiva entre os públicos; (3) um distanciamento espaço-temporal permitindo
uma extension of availability, de modo que diferentes meios (media) implicam diferentes
178 MARIN, Louis. Politiques de la représentation. Paris: Kimé, 2005. p. 72-75. 179 LANNA, Ana Lucia Duarte. Villes et chemins de fer: construction de territoires (São Paulo, 1850-1920).
Espaces et Sociétés, v. 168, 2017.
70
escalas de abrangência temática, evidenciando, em sua circulação, a dinâmica de
desacoplamento (detachment) das formas letradas de sua origem de produção,
propiciando a elaboração de novos contextos culturais.180 A produção e a reprodução das
práticas culturais, nesse sentido, articula a profusão de imagens conforme declinações e
especificidades dos contextos, evidenciando a plena atividade das regiões periféricas em
meio às amplas transformações do período.
As esferas de circulação indicam a emergência de novas sensibilidades históricas
por meio da modernização dos sentidos à luz dos meios de gravação, transmissão e
processamento da informação e das representações.181 Esse novo tempo da imagem de
mundo, construído sobre suportes materiais para representatibilidade e exposição da
cultura, conformava diversos mecanismos de impressão e reprodução, tais como as
técnicas de litografia, tipografia, estereotipia, quadrografia e poligrafia – desenvolvida,
esta, desde os anos 1830 e 1840 na província de São Paulo, por Hercule Florence, para
“imprimir simultaneamente todas as côres”,182 paralelamente a seus trabalhos pioneiros
com a fotografia e com a fixação de imagens na câmera escura a fim de prendre une vue
sem o desenho com as mãos, já que “chaque chambre obscure serait un peintre que l’on
aurait à ses ordres”.183 No Rio de Janeiro dos anos 1880 e 1890, a difusão de técnicas de
impressão com Félix Ferreira e com o jornal O Gráfico, de Luiz C. Felizardo, dedicado a
discutir justamente a reprodução técnica dos impressos. A incorporação das esferas de
circulação de saberes e imagens na vida urbana, portanto, indicava a própria
reestruturação da infraestrutura social com a mobilização de novos públicos. A rede de
tecnologias e de instituições, fundamentada em processos de diferenciação técnica,
propiciou uma gradativa intelectualização da vida urbana na medida em que alimentou
mecanismos de seleção e de armazenagem de práticas culturais com a automação dos
mecanismos de informação (Informationsflüssen),184 estruturando plenamente as
dinâmicas de produção e de reprodução (seletividade do repertório moderno) cultural.
Todas essas condições de difusão e de ressemantização das práticas culturais
repousam sobre as transformações transnacionais do capitalismo. Susana Zanetti, ao
180 THOMPSON, John. Ideology and modern culture. Cambridge: Polity Press, 2007. 181 KITTLER, Friedrich. Die Stadt ist ein Medium. In: KITTLER, Friedrich. Die Wahrheit der
technischen Welt: Essays zur Genealogie der Gegenwart. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013. p.188. 182 FLORENCE, Hercule. Polygraphia. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 fev. 1840. 183 FLORENCE, Hercule. L’ami des arts livré à lui-même ou recherches et découvertes sur différents
sujets nouveaux. São Paulo: Instituto Hercule Florence, 2015. p. 140. (Registro meu agradecimento ao Instituto Hercule Florence pela disponibilização do material de pesquisa logo após seu lançamento, em setembro de 2018, em edição fac-similar)
184 KITTLER, Friedrich. Aufschreibesysteme: 1800/1900. Munique: Wilhelm Fink, 1995. p.519-520.
71
enfatizar a experiência da religación na construção da modernidade latino-americana no
século XIX,185 realça justamente as estruturas de difusão e de transferência do campo
cultural implicadas no redimensionamento da esfera pública a partir do potencial aberto
pelas esferas de circulação junto às cidades. Nesse sentido, fundamental é o entendimento
da integração da América Latina à infraestrutura global de comunicação acelerada a partir
dos anos 1870, com diversas companhias de cabos telegráficos submarinos interligando
o Atlântico Sul e a costa do Pacífico, a partir de Portugal (via Cabo Verde), por meio de
cidades como Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis,
Montevideu, La Plata, Buenos Aires, Rosario, Valpariso, Coquimbo, Caldera, Arica,
Mollendo, Chorillos, Lima, Payta e Buenaventura.186
Algumas coordenadas apresentadas neste capítulo, amarradas pela construção da
vida urbana e sua infraestrutura, podem ser encaminhadas a partir de um texto de Teixeira
Azevedo publicado em periódico dedicado ao campo da instrução pública. Preocupado
com a “cultura intellectual” moderna diante das “momentosas questões da actualidade e
do seculo 19”, Azevedo defendia que a “propagação dos conhecimentos varios que
regulam a marcha das sociedades bem dirigidas e bem incaminhadas no progresso
humano” é devida ao “commercio e ao contacto de idéas”.187 Se os tempos modernos são
lidos no registro da ruptura, os sentidos dessa mudança são acelerados pelo “animado
movimento que em todo o mundo civilisado tem tomado as boas concepções, o
desenvolvimento continuamente crescente das idéas novas, o progresso sempre notavel
das instituições do bem publico, a diffusão mais prompta e veloz, em fim, do pensamento
christão”. Como ponta de lança da nova estrutura do mundo da vida, a circulação do
impresso – e seu papel na difusão dos horizontes morais e educacionais da vida moderna
– significa “uma luta verdadeiramente grande em que reagiam os mais ferteis elementos
heterogeneos da vida moral”, tendo início a “confusa cruzada de mil idéas consignadas á
primeira locomotiva do pensamento: de um lado a sciencia que recebia o emulo do seu
desenvolvimento, de outro extremo a ordem mais regular que deviam tomar os modernos
Estados”.
Especialmente a partir da segunda metade do século XIX, se existe uma
“adaptação do Brasil às circunstancias do século” – conforme a expressão de Pedro
185 ZANETTI, Susana. Modernidad y religación: una perspectiva continental (1880-1916). In: PIZARRO,
Ana (Org.). América Latina : palavra, literatura e cultura. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. 186 WINSECK, Dwayne; PIKE, Robert. Communication and empire: media, markets, and globalization
(1860-1930). Durham: Duke University Press, 2007. 187 AZEVEDO, Teixeira. A imprensa perante a instrucção publica. Instrucção Nacional, Rio de Janeiro,
19 dez. 1873.
72
Calmon –, meu objetivo é explorar os parâmetros que fundamentam essa constatação. Na
esteira de um importante tema das ciências sociais brasileiras (remetendo, por exemplo,
aos esquemas do Gilberto Freyre de Sobrados e mucambos e Ordem e progresso),
Calmon indica que a efetiva “urbanização da vida” no período implicou, sobretudo, a
exibição de “tipos sociais observados com surpresa e escandalo” nos novos ambientes
urbanos.188 Restrita a um plano eminentemente descritivo, a abordagem do autor é rica
em destacar meandros desse amplo processo de modernização urbana, mas perde de vista
algumas camadas fundamentais dessa transformação (bem como suas vinculações com
processos sociais mais amplos); por isso, minha pesquisa é dedicada justamente à
proposição de nexos empíricos e teóricos que pretendem amarrar a elaboração da
urbanidade à luz da reestruturação dos mecanismos de socialização e do campo moral
vinculado aos processos de educação da vida urbana, tendo em vista o que Pierre-Philippe
Bugnard chama de la ville enseignante et apprise,189 ou seja, a equação entre as formas
de vida (expressões corporais, higiene, civilidade, obervância e moralidade) e a
necessidade de ordem, reforçando o discurso pedagógico sobre os comportamentos
esquadrinhados no espaço social.
Em uma curiosa compilação de notas de viagens realizadas pela França, Bélgica,
Suíça e Itália, Francisco Belisario Soares de Souza dedicava importante espaço para
considerações a respeito da “instrucção publica, ensino livre, os methodos seguidos, os
seus resultados, a organização dos tribunaes, o jornalismo, o theatro, o movimento
litterario”.190 Entusiasmado pelo “resultado de todo o movimento agricola, industrial,
commercial, maritimo [...] quando havia chegado a época dessa immensa expansão do
genio moderno em quasi todas as nações civilisadas”,191 o autor considerava a
universalidade das experiências pela Europa Ocidental (especialmente a França) muito
significativas para o entendimento do Brasil, sobretudo, “pela grande influencia que
exerce sobre nós”. Em meio às transformações materiais e morais da modernidade
oitocentista – afinal, conforme Souza, “a sociedade moderna não existiria sem a tomada
da Bastilha” nem sem o “flagrante espectaculo” da técnica, das riquezas, da agitação
intelectual e das “commodidades da vida” moderna –,192 a estruturação da moralidade
188 CALMON, Pedro. História social do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p. 200-
217, p. 229-237. (Vol. 2) 189 BUGNARD, Pierre-Philippe. Le temps des espaces pédagogiques: de la cathédrale orientée à la
capitale occidentée. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 2013. p. 228-229. 190 SOUZA, Francisco Belisario Soares de. Notas de um viajante brasileiro. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1882. p. IV. 191 SOUZA, 1882, op. cit., p. 27. 192 SOUZA, 1882, op. cit., p. 136.
73
(um conjunto de prescrições e de valores que fornecem coordenadas para o agir) era
fundamental para a organização das formas de socialização em um mundo em profundas
mudanças.
Nas notas de Souza, as estratégias de abjeção e de aspiração oferecem uma
moldura para o problema da instrução pública e da educação junto aos ritmos da cidade
moderna. Mencionando centros como Paris, Bruxelas, Antuérpia, Glasgow, Leeds,
Manchester, Turim e Edinburgo, o narrador enfariza o “alto gráo o sentimento da ordem,
do methodo e da regularidade”,193 percepção reforçada pela “densidade da população
destes logares e a sua incomparavel atividade” no “conjuncto de aperfeiçoamento” que é
“quasi prodigalidade”.194 Os arquedutos, o vapor, os boulevards, as ferrovias e as
máquinas de processamento do café lavado do Ceilão e dos grãos brasileiros, além do
encantamento naïf pela razão burguesa, ilustram elementos de aspiração pautados,
sobretudo, na regularidade moral das atividades sociais sincronizadas junto às cidades e
sua infraestrutura. À luz dessa consideração, por exemplo, a ambivalência da multidão
moderna (tendo em vista o deslumbramento com a sincronização e a mecanização da vida
urbana e o latente potencial da desordem “turbulenta e brutal” na rua) toma a narrativa
como uma espécie de sinfonia da metrópole com “as ondas enormes de povo”. O
entusiasmo do observador diante das “elegancias da existencia”, em contextos onde as
cidades “regorgitam de povo” e abrem perspectivas normativas de condutas de modo que
“crescem por encanto”, é igualmente um deslumbramento moral diante de um mundo que
“tende a tornar-se cosmopolita”, já que “a instrucção, as viagens, as commodidades
desconhecidas em outras éras, derribam as barreiras”. Algumas imagens estão
sobrepostas no argumento de Francisco Belisario de Souza.
Certamente, o registro moral sobre o qual a narrativa opera (atando a difusão das
luzes da instrução e da cultura moral à aspirada regularidade de condutas da vida
moderna) não é uma exclusividade do livro. Fernandes Pinheiro, também a caminho da
Europa Ocidental nos anos 1850, deixou manuscritos bastante sintomáticos nesse
sentido.195 Arrebatado pela “alma humana sempre avida d’invenções” e pelo fato de que
“nada póde melhor demonstrar a audacia humana do que esse fraco baixel que transpõe
o espaço”, a paisagem do autor é igualmente narrada em registro moral, tendo em vista
tanto sua fundamentação (bom/mau, Deus, tempo/eternidade etc.) quanto os costumes das
193 SOUZA, 1882, op. cit., p. 42. 194 SOUZA, 1882, op. cit., p. 132. 195 PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Cartas d’un viajante. IHGB, lata 581, pasta 36, 1853.
74
populações (casamento, sociabilidade, festividades etc.) e os significados públicos das
condutas, por exemplo, nas condenações do narrador a respeito das ideias socialistas de
um “enthusiasta de Proudhon e Leroux” (responsável pelos “calamitosos dias que
seguiram-se á revolução de fevereiro em França”) e de um aventureiro que erra pelas
cidades apenas para buscar fortuna – ambos, assevera Fernandes Pinheiro, são “por
deplorável exceção os mais grosseiros de nossa sociedade”. Ao passo que Fernandes
Pinheiro tendia a registrar o processo social a partir de categorias teológico-morais típicas
dos anos 1840-1860 (com uma visão negativa das revoluções sustentada em dualismos
de base moral),196 apresentando uma narrativa realçada pela visada romântica da pátria e
da abertura da subjetividade ao sublime dos contrastes natureza/civilização e
cidade/campo,197 com Francisco Belisario de Souza a percepção elabora uma nova
racionalidade do espaço social em que a disseminação dos processos de educação e sua
organização no campo da instrução pública efetivamente despontam como mecanismos
de gestão moral das grandes populações.
Em registro moral, a interdependência entre as percepções de aspiração e de
abjeção é notável na narrativa de Souza. A contraposição sociológica entre os centros
industriais e as periferias confere contornos específicos a esse entendimento: subjacente
às novas estruturas de racionalização da atividade social, “as questões sociaes
assustadoras destas civilisações adiantadas” implicavam um impacto junto às instáveis
formas de socialização das “populações turbulentas, inilammaveis, sujeitas a todas as
crises, e, pois, a todos os excessos”, em nítido contraste com suas considerações sobre a
“ausencia de civilisação” e o ambiente de terra arrasada da vida social periférica. Trata-
se do rudimento ideológico de um esquema explicativo e de uma percepção muito comum
na segunda metade do século XIX (elaborada como teoria social nas primeiras décadas
do século XX), entendendo um antigo espaço colonial pelo signo da falta e da
incompletude de sua atividade social.198 A leitura de Francisco Belisario de Souza
adiciona ainda outra imagem a essa contraposição imediata entre as iluminações da razão
burguesa e a poeira de suas periferias.
Se o raciocínio do narrador, a princípio, tende a contrapor o “movimento geral de
transformação das cidades da Europa” a uma aparente inatividade e até tibieza da periferia
196 OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 42-43. 197 NAXARA, Marcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UnB, 2004. 198 COSTA, Sérgio. The research on modernity in Latin America: lineages and dilemmas. Current
Sociology, Londres, v. 67, n. 2, 2019.
75
do capitalismo,199 o trabalho social e a regularidade moral das populações amarram as
realidades aparentemente desatadas em um horizonte moral unificado. Nesse sentido, se
nas cidades brasileiras fundamental é “obter as condições de vida”, diversos elementos
são considerados nessa retórica civilizadora, como o combate a “toda a casta de febres
que a natureza espalhou pelo mundo”, a navegação, o trabalho e o “vasto campo da
instrucção publica”.200 À luz dessa situação, o autor considerava que “quando se educa
um homem, educa-se um individuo; quando, porém, dá-se instrucção a uma menina
prepara-se a educação de uma familia [...]; a educação mais cuidadosa, mais esmerada e
elevada ás futuras mãis de familia, influiria mui beneficamente sobre o futuro da
sociedade”.201 Longe de uma excentricidade ou de mera retórica reforçando os dualismos
de um “país real” contraposto a um “país ideal”, os processos de educação e seus
imperativos estavam no centro das perspectivas formativas da cultura moderna,
destacando estruturas fundamentais e valores vinculados à socialização junto à
infraestrutura urbana e às novas condições de vida a partir do campo da instrução pública.
Essas percepções do fim de século, a bem da verdade, constituem apenas uma
camada de um processo muito mais longo: a estreita vinculação entre o campo da
instrução pública, os processos de educação e a elaboração da vida urbana desde os
anos 1840 e 1850. Amaro Cavalcanti, na tentativa de rotinização institucional da primeira
década republicana, indicava que o corte dos anos 1850 era fundamental na composição
de um campo da instrução pública no Brasil, de modo que sua síntese da história da
educação brasileira (que remontava aos tempos coloniais), oferecendo uma “noticia
historica” das instituições e dos serviços a ela associados, enfatizava a preocupação com
a “cultura moral e intellectual da mocidade em seus destinos futuros”,202 situando, na
esteira da lei de 1827, um importante volume sobre a legislação escolar e um conjunto
significativo de reformas aceleradas pós-1850 com Couto Ferraz (1854), Leôncio de
Carvalho (1879), o reformismo dos anos 1882-1883 (Rui Barbosa, Thomaz Bonfim
Espinola e Ulysses Vianna), Benjamin Constant (1890), Epitácio Pessoa (1901) e a
reforma paulista capitaneada por Rangel Pestana, Caetano de Campos e Prudente de
Morais (1890).
199 SOUZA, 1882, op. cit., p. 165. 200 SOUZA, 1882, op. cit., p. 170. 201 SOUZA, 1882, op. cit., p. 223. 202 CAVALCANTI, Amaro. Insturcção publica: linhas geraes das reformas por que tem passado a legislação
sobre o ensino primario e secundario. In: CAVALCANTI, Amaro. Noticia historica do Ministerio da Justiça e Negocios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898. p. 11.
76
Sintomáticas desse quadro de mudanças são as preocupações de Abilio Cesar
Borges, responsável por vasta atuação junto ao ar cosmopolita da esfera educacional –
ressaltando, por exemplo, que seu sistema de leitura chegou a ser traduzido nos Estados
Unidos por Mrs. Brelsford em 1893, além das premiações decorrentes da Exposição
Universal de Paris e da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro (alguns textos, inclusive,
foram reelaborados e reeditados por Joaquim Abilio Borges). Em seus conhecidos livros
didáticos publicados entre o fim dos anos 1860 e os anos 1890, defendendo que a
“instrucção primaria he a reunião de todas as influencias moraes, religiosas e sociaes”, o
autor defendia a educação moral que “forma o coração; a que funda nos meninos o amor
da familia, da patria e da humanidade; a que, em summa, illustra a razão e dirige os
affectos”. Nesse sentido, “não é só da instrucção propriamente dita que se deve occupar
a escola: tem ella outra missão mais séria, mais alta, mais nobre, e direi até mais santa”,
ou seja, “é a que entende com o caracter do menino, isto é, com a direcção de suas
faculdades intellectuaes e moraes; a saber, a que alumia a consciencia”.203 A
normatividade social pressuposta nos processos de educação, portanto, dialoga com a
nova racionalidade da vida coletiva e seus parâmetros de civilidade fundamentados em
prescrições.
Se o regramento da vontade é o meio pelo qual o homem “aperfeiçoa a si mesmo,
augmenta a sua belleza moral e physica, vigora e dilata a sua existencia” nas formas da
socialização e de instituição da sociedade, a estrutura de prescrições de condutas do
campo da moralidade é seu esteio. Os processos de educação e o suporte da instrução
pública na vida urbana dialogam diretamente com esse quadro de referências dinamizado
pelas esferas de circulação dos impressos e situado junto aos componentes da cidade.
Nesse sentido, a normatividade pressuposta indica que “ha no homem uma força superior
á força vital, cuja acção modifica prodigiosamente o corpo, levanta a energia extincta,
activa a vida, vigora os musculos, resiste ás molestias; e, methodicamente empregada,
subjuga as paixões, modera os desejos, corrige”.204 Além da civilidade, do “falar com
acêrto” e da higiene (afinal, “na decencia do corpo se revê a da alma”),205 a estruturação
de valores conforma horizontes comuns na medida em que “é por esse meio que os
203 BORGES, Abilio Cesar. Terceiro livro de leitura para uso das escolas brazileiras. 2. Ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves & C., 1890b. p. XV. 204 BORGES, Abilio Cesar. Quarto livro de leitura para uso das escolas brazileiras. Rio de Janeiro:
Francisco Alves & C., 1890a. p. 136. 205 BORGES, 1890a, op. cit., p. 140.
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homens apertam mais os laços invisiveis”,206 elaborando balizas para a regularidade das
atividades sociais.
Abilio César Borges é certamente uma das mais evidentes expressões da
construção da vida urbana, de sua estrutura moral e de seu vínculo com os processos de
educação. Ainda nos tempos da diretoria geral de estudos da Bahia, quando já apontava
a necessidade de “publicação de livros e compendios accommodados á infancia e ao
povo”, Borges estava preocupado com os futuros cidadãos (“ensino da infancia”) e seus
parâmetros formativos conforme “os bons costumes, as verdadeiras luzes, e a civilisação
do seu paiz”.207 A preocupação era “espalhar pelo povo” valores de uma vida regular
estruturada pela “igualdade nos habitos de ordem, e mais que tudo a unidade moral de
que tanto carece a nossa sociedade”.208 A perspectiva de “formar cidadãos” conforme
preceitos de moderação, humildade, trabalho, caridade e decoro, entendendo que “a
educação moral e religiosa deve sempre seguir – pasi passu – a cultura intellectual”,209
implicava um ideal de “communhão de sentimentos que será o mais valente penhor da
ordem”, já que
A mesma segurança da Sociedade e a estabilidade das instituições ordenam imperiosamente que se cuide com esmero na educação e instrucção popular. – Um povo desmoralisado e embrutecido é por via de regra feroz e pouco amante da paz, cujos beneficios não sabe apreciar e desconhece: – esse povo sempre disposto a tudo quanto sabe á desordem, ignorando completamente as instituições de seu paiz [...] levanta-se facilmente contra ellas apenas arengado por um caudilho habil e temerario, do qual e torna assim facil e perigosa manivella.210
Diante dessa perspectiva de “regeneração das massas”,211 o autor mobiliza a
infraestrutura da cidade, presente em Salvador desde os anos 1830, destacando a
centralidade do campo da instrução pública para a estabilização da gramática moral da
vida urbana a partir da escola de “mechanica applicada ás artes”, das instituições de
ensino primário, do liceu, do museu provincial (oferecendo material e pessoal), das aulas
do arsenal de guerra e do Colégio Nossa Senhora dos Anjos (administrado pelas Irmãs de
206 BORGES, 1890a, op. cit., p. 132. 207 BORGES, Abilio Cesar. Relatorio sobre a instrucção publica da provincia da Bahia. Bahia: Typ. de
Antonio Olavo da França Guerra e Comp., 1856. p. 65. 208 BORGES, 1856, op. cit., p. 20. 209 BORGES, 1856, op. cit., p. 12. 210 BORGES, 1856, op. cit., p. 13. 211 BORGES, 1856, op. cit., p. 49.
78
Caridade e dedicado às órfãs da cidade). Dois vetores estão interligados. Por um lado, a
avaliação moral mais pragmática da rua e de seus campos de sociabilidade, preocupada
com a observação da “opinião publica”, elencava os “actos pouco dignos e
reprehensibilissimos” e esquadrinhava o espaço social a partir dos códigos da moralidade
– como, por exemplo, os juízos do “tempo em que o largo da Palma era intransitavel para
as pessôas honestas que se não queriam arriscar á uma vaia horrível”.212 Por outro lado,
a gestão moral da população, especialmente junto às nascentes aglomerações urbanas, era
parte de um projeto de esclarecimento para a “boa marcha da sociedade” diante do
potencial disruptivo da multidão moderna. Aqui, o próprio processo da história era lido
em registro moral:
Havia em 1789 muito poucos pobres que soubessem ler [...] e como si a Providencia tivesse querido que nada faltasse ás suas lições, depois de haver demonstrado o perido desta instrucção secundaria insufficiente, tão imperfeita em si mesma, quanto imprudentemente distribuida, conduziu á scena este povo á quem toda a instrucão primaria havia faltado, e que não tinha podido adquirir em boas escholas publicas, nem os conhecimentos necessarios para melhorar sua condição, nem idéas religiosas e moraes assaz profundamente gravadas em suas almas, com o sentimento do dever.213
Para Abilio César Borges, “a historia e os factos” evidenciam que “uma
civilisação muito elevada e um grande desenvolvimento de espirito não são condições
essenciaes para o bem ser dos individuos e das nações, si não se acham baseados em uma
severa moralidade”. Se a religião “é um balsamo salutar applicado a todas as feridas
d’alma, e que fortifica contra os maus pensamentos”, os nexos morais pressupõem que
“por ella aprendem os homens a ser virtuosos, bons cidadãos, obreiros laboriosos e
pacíficos” tendo em vista “o cumprimento dos seus deveres para com Deus, para com
seus similhantes e para comsigo mesmos, deveres que compoem a vida moral da
humanidade”. Nesse sentido, com os imperativos de socialização da vida urbana e o
regramento dos modos em sua exposição pública, as condutas dos futuros cidadãos
assumiam, em chave genética, um trabalho sobre a infância. Assim,
A criança é um ente pensante, activo, moral, influido por affectos e paixões que é preciso regular, mas nunca violentar pela coacção ou
212 BORGES, 1856, op. cit., p. 31-32. 213 BORGES, 1856, op. cit., p. 29.
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destruir pela tyrannia. A criança tem uma dignidade que será um dia a dignidade do homem, e é necessario enrandecel-a em logar de a envilecer. A pedagogia pois tem por fim cultivar a razão, sem martyrisar a sensibilidade; e a missão é alumiar o espirito com o facho da ciencia, e confortar o animo com os perfumes do amor.214
Certamente, as preocupações e Borges revelam a própria imagem da
institucionalização do campo da instrução pública e de seus compromissos com o
problema da socialização, já que o moderno processo de escolarização é indissociável da
proposição de discursos e de práticas normativas que constituem novos públicos e
procedimentos institucionais.215 Meu argumento é que, cortando transversalmente a
estrutura da instrução pública, existe uma dinâmica social em jogo na vida urbana. Essa
imagem da vida coletiva, ao passo que dialoga com os critérios formais da escolarização,
sinaliza a disseminação do campo moral como processos de educação no espaço social.
Nesse sentido,
A educação e a instrucção são duas irmãs, filhas da civilisação, destinadas a viverem indissoluvelmente unidas e a se auxiliarem mutuamente. A educação ensina ao homem os preceitos da moral e dos deveres, entendendo, com A. Baron, por moralidade a do cidadão, a do homem de bem, do homem activo e pratico, destinado a viver e a communicar com a sociedade, a moralidade que nos dá uma idea sãa dos nossos direitos e bem assim dos nossos deveres, que inspira o amor da verdade, da justiça, da humanidade, da dignidade de bom gosto que repelle a hypocrisia, o orgulho e a vaidade. A instrucção lhe prepara a intelligencia, lhe forma o espirito, para que fique mais habilitado a exercer o primeiro dos deveres, que é o trabalho, tão recommendado pelo Divino Mestre.216
O volumoso e minucioso relatório do professor Luiz Augusto dos Reis direciona
essa discussão vinculando o enraizamento do campo da instrução pública e das
perspectivas de normatividade social (moralização) nas formas da vida urbana à
emergência da população e à percepção do mundo social como instância problemática
(em capítulo à parte, discutirei com mais detalhes essa “invenção do social”).217 À luz
desse quadro, não surpreende que o professor Reis tenha sublinhado com tanta ênfase a
214 BORGES, Abilio Cezar. Collecção de discursos proferidos no Gymnasio Bahiano. Paris: J. P.
Aillaud, Guillard & Ca., 1866. 215 NARODOWSKI, Mariano. Infância e poder: conformação da pedagogia moderna. Trad. Mustafá
Yasbek. Bragança Paulista: Editora USF, 2001. p. 49-51. 216 P. A. L. Instrucção publica. A Estação, Rio de Janeiro, 15 abr. 1882. 217 Cf. Capítulo 5.
80
interdependência entre o campo da instrução pública e a elaboração da vida urbana.
Encarregado pela inspetoria geral da instrução pública do recém-instalado governo
republicano para um importante compte-rendu da instrução pública na Europa Ocidental
(não se furtando de paralelos com o Brasil), o livro do professor Reis transita por Lisboa,
Porto, Madri, Bruxelas e Paris, evidenciando quadros da vida urbana permeados pela
infraestrutura da instrução pública (composta por escolas, museus escolares, creches,
asilos etc.).218 Além de documento central sobre a circulação da moral escolar fim de
século, o texto é construído sobre uma interessante teia articulada pelo imaginário urbano
e suas aspirações de ordem e abjeções analisadas em registro moral e travejadas pelos
processos de educação.
O autor afirmava que “a humanidade foi, é e será sempre a mesma, com todas as
suas grandes qualidades e com todos os seus grandes defeitos. Poder-se-ha corrigil-a um
pouco, modificar-lhe certas telldencias, certos erros e defeitos; transformal-a
radicalmente, não creio que seja passiveI”.219 Se a construção de “aspirações justas e
louváveis” do indivíduo – “qualquer que seja a sua profissão, o seu modo de vida” – era
a base da sociedade moderna, qualquer aposta em um horizonte de expectativas
fundamentado na instrução e na educação, sem o objetivo de “melhorar, de aperfeiçoar
as cousas existentes”, não impede que “a sociedade humana vegetará na indolencia e na
apathia, indifferente ao progredimento”. Os circuitos da vida urbana destacados pelo
autor, ao passo que são indissociáveis da infraestrutura da instrução pública e de sua
normatividade em relação às condutas, organizam uma aspiração de ordem e regularidade
social especificada pelo conteúdo moral de suas atividades.
Aqui, o distintivo moral estruturante da consciência histórica do século XIX,
tendo em vista a “grande lei da caridade e do amor, a qual attribue-se a superioridede da
nossa sociedade moderna sobre a civilisaçao antiga”,220 dialoga com um variado conjunto
de atributos que, disseminados pelo espaço social e suas práticas, conformam uma
autêntica gramática moral disponível nas formas de socialização.221 A lei escrita “fixa o
minimo de prescrições que a sociedade impõe”, ao passo que a lei moral “impõe a cada
um, no segredo de sua consciencia, um dever que ninguem o força a cumprir”.222 Nesse
218 REIS, Luiz Augusto. O ensino publico primario em Portugal, Hespanha, França e Belgica. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. 219 REIS, 1892, op. cit., p. 580. 220 REIS, 1892, op. cit., p. 411. 221 NARITA, Felipe Ziotti. A educação da sociedade imperial: moral, religião e forma social na
modernidade oitocentista. Curitiba: Prismas, Appris, 2017a. (Col. Leituras de Brasil) 222 REIS, 1892, op. cit., p. 211.
81
sentido, além de diversos pontos da “doutrina christã” e dos deveres cívicos derivados
das unidades básicas de socialização (família, sociedade e pátria), a estruturação moral
dos parâmetros de socialização incluía “bondade das acções”, decência, obediência,
polidez, sobriedade, “sancção social”, trabalho e economia, caridade, “deveres para com
Deus”, “consciencia moral” e “moral social”, vinculando a estrutura de prescrições a
preceitos para o “trato social”. Por meio desse horizonte formativo de condutas,
A creança adquire bons habitos de asseio, de ordem, de benevolencia para com o proximo e para com os animaes, perde ou modifica os maus instinctos, se os tem, os habitos de destruição diminuem ou anniquilam-se e o resultado, sobre ser magnifico na educação da creança, torna-se o maior dos beneficios para a cidade [...] Isto é eminentemente pratico, eminentemente educativo. Um povo assim educado terá um paiz com cidades e monumentos dignos do seu cultivo intellectual e moral; um povo assim é um povo civilisado.223
A associação entre ordem e civilização compõe a base da normatividade social
disseminada pelos processos de educação, de modo que as formas aspiracionais desvelam
o frenético “desejo de completude” da vida moderna em busca de uma ordem moral capaz
de realizar o conteúdo de suas promessas e integrar a normatividade em narrativas
formativas de comportamentos na cidade.224 Mais do que conteúdos restritos ao currículo
escolar, os preceitos devem “fazer conhecer, amar e praticar os deveres moraes” por meio
de normas de conduta, de civilidade e de decência na representação social, cultivando “as
disposições para o bem”, uma vez que “a educação moral é a obra mais nobre” na medida
em que pressupõe “deveres para comsigo mesmo, para com seus paes e superiores, para
com seus semelhantes e para com a patria”.225 A relação entre o conteúdo dos valores
morais e a exterioridade das condutas é fundamental, pois as condições de exibição dos
comportamentos junto às esferas de socialização mais dilatadas da vida urbana implica
novos regimes de atenção às condutas educadas. Justamente por isso, a educação moral
“deve corrigir os maus habitos, os costumes grosseiros, ensinando-os a ser polidos; dar-
lhes-ha praticamente noções de educação; procurará o meio de tornal-os correctos,
amenisando-lhes os costumes e combatendo, no caso necessario, as más influencias do
meio”.226 A anterioridade do meio social em relação à agência individual indica,
223 REIS, 1892, op. cit., p. 405. 224 ZYSIAK, Agata. The desire for fullness. Praktyka Teoretyczna, Poznan, v. 13, 2014. 225 REIS, 1892, op. cit., p. 432. 226 REIS, 1892, op. cit., p. 434.
82
sobretudo, a condição de moralidade pressuposta pelos processos de educação na
instituição da vida coletiva junto aos aglomerados modernos.
Uma intrincada teia de sentimentos e valores morais está em jogo nas expressões
externas dos comportamentos e em suas formas de abjeção e de aspiração ligadas à
regularidade moral.227 Se os processos de educação têm “por fim formar o coração das
creanças para o bem e para o justo”,228 “o desanimo, a tristeza, a colera e quaesquer
paixões que affectem o estado moral do individuo” evidenciam a estrutura da moralidade
implicada na vida moderna. A estruturação e as tentativas de estabilização do campo
moral, nesse sentido, permite a absorção do indivíduo a uma lógica de observador e de
ser observado conforme os parâmetros avaliativos e descritivos das virtudes, das condutas
e da exibição de seus significados. A retidão e o horror à delação e à dissimulação
evidenciavam mecanismos de autenticidade do caráter, em perspectiva formativa, pois
permitiam os contrastes expostos pela cidade moderna, direcionando ao futuro cidadão o
“appello incessante ao sentimento e á consciencia da propria creança”, de modo a
[...] fazel-a sentir as tristes consequencias do vicio de que ella tem por vezs o exemplo diante dos olhos: da embiraguez, da preguiça, das rixas, da maldade, dos appetites brutaes, inspirando-lhe tanta compaixão pelas victimas do mal quanto horror por esse mesmo mal; proceder pelo caminho dos exemplos concretos a appellar par a experiencia immediata das creanças afim de inicial-as nas emoções moraes; leval-as, por exemplo, ao sentimento de admiração pela ordem universal e ao sentimento religioso, fazendo-as contemplar algumas grandes scenas da natureza; ao sentimento da caridade, mostrando-lhes uma miseria a alliviar, dando-lhes occasião de realizar um acto de caridade, acompanhando-a de discreção; aos sentimentos de reconhecimento e sympathia pela narração de um acto de coragem, pela visita a um estabelecimento de beneficencia, etc.229
A ideia de “fazer sómente os alumnos juizes da sua propria conducta” constitui a
reflexividade pressuposta junto à vida urbana. A rigor, se a cidade exibe uma
multiplicidade de formas de conduta e expõe o observador moral a uma intelectualização
dos estímulos e a ações descontínuas junto às aglomerações, esse campo de percepções
implica uma estruturação dos sentidos. Gostaria de enfatizar que, na esteira dos insights
teóricos da pesquisa de Simmel sobre a reconfiguração perceptiva da moderna cultura
227 Cf. Capítulo 5. 228 REIS, 1892, op. cit., p. 37. 229 REIS, 1892, op. cit., p. 209.
83
urbana,230 a estrutura das funções sensoriais é permeada por mediações derivadas da
socialização e de suas situações condicionadas (Bedingungen) por configurações sociais
específicas, no caso, decorrentes da cultura moderna. O problema da vida coletiva
(Zusammenleben) e de seus mecanismos de coesão e potencial desagregação, portanto,
lidam com a gramática própria das imagens de mundo e da instituição de valores da
socialização. Em vez de pressupostos naturalizados ou de um dado imediato das
interações sociais (Wechselwirkungen), as percepções funcionam como mediações da
maior intelectualização da vida urbana e seus imperativos de atenção moral nos processos
de modernização dos sentidos.
Modernização, nesse cenário, não é uma categoria puramente restrita ao
incremento da atividade econômica, tampouco derivada exclusivamente dos
“melhoramentos materiais” (para utilizar um termo de época). Meu esforço, antes,
entende o problema, a um só tempo, como processos cumulativos de desenvolvimento
material e como dinâmicas de transformação de práticas sociais (ou seja, proponho uma
análise dessas duas dimensões como expressões mutuamente referidas do processo
social). Trata-se de investigar essa interdependência em contextos que, volatilizando o
que parecia imóvel, configuram novas estruturas perceptivas à luz do desenvolvimento
capitalista,231 de modo que o campo de avaliações morais e as expectativas de
socialização (elaboradas pelos processos de educação) são significativamente afetados
pelos ambientes urbanos e suas infraestruturas, evidenciando a difusão de imaginários e
a elaboração de valores constituintes da cultura moderna. Nesse sentido, as percepções
morais – como propostas de avaliação de condutas e explicitação de valores implicados
na socialização – dinamizam a estrutura de prescrições do campo da moralidade e
funcionam como mediações dos processos de educação, evidenciando a estruturação
moral da socialização e a pervasividade das transformações da modernidade capitalista.
Tendo em mente os impactos morais das transformações socioeconômicas em
curso, o professor Luiz Augusto dos Reis, comentando uma conferência de 1877 de Felix
Narjoux, angulava sua análise justamente a partir da potencial desestabilização do campo
de valores. As “condições actuaes do nosso paiz” indicam que
Para uma sociedade em via de transformação, a instrucção do povo tem uma importancia immensa, extraordinaria; é preciso que antes de passar
230 SIMMEL, Georg. Soziologie der Sinne. Die Neue Rundschau, Berlim, v. 18, p. 1025-1036, 1907. 231 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth-century.
Cambridge: MIT Press, 1992.
84
por uma modificação social qualquer, um povo saiba pensar e raciocinar; e preciso que elle veja para onde vai, que comprehenda o que quer e que possúa os recursos proprios a lhe assegurarem a conservação dos bens intellectuaes e moraes que quer conquistar.232
Em meio às transformações do mundo da vida, se os processos de educação –
apoiados pelo campo da instrução pública – significavam a consciência de “deveres para
comsigo mesmo, para com seus paes e superiores, para com seus semelhantes e para com
a patria”, a estrutura de prescrições “applicar-se-ha especialmente em fazer conhecer,
amar e praticar os deveres moraes”, de modo que “velara cuidadosamente para que as
creanças se habituem a observar em todas a circumstancias os usos e regras da
decencia”.233 A aspiração à decência conduz minha investigação a um desdobramento do
jogo entre os valores instituídos do campo moral e sua expressão externa em condutas. A
força dos discursos higienistas do fim de século não pode ser dissociada dessa
estruturação moral mais ampla da sociedade e de seus parâmetros de socialização.
Desdobrarei consequências importantes a esse respeito em outro capítulo,234 de modo que
gostaria de reter, para meus propósitos no início da pesquisa, algumas dimensões desse
entendimento à luz das percepções em relação à infraestrutura urbana e seus componentes
humanos.
A vida urbana é avaliada por parâmetros morais dispostos nos processos de
educação justamente porque a estabilização de conteúdos de valor do agir e seus sinais
externos situam a estruturação da sociedade tanto em seus componentes intersubjetivos
(nas interações entre os cidadãos, os conteúdos dos valores e sua dissociação em relação
à exposição de condutas) quanto a partir de uma visão da moral condicionada pela
regularidade do meio social e das relações entre humanos e componentes não-humanos
(daí a ênfase dos discursos higienistas e dos melhoramentos materiais, vinculados à
moralidade pública e sua tranquilidade, defendendo a ordem e a regularidade das
“impressões exteriores” do meio social e sua infraestrutura sobre os indivíduos). A
primeira consequência desse argumento diz respeito à educação da conduta individual.
Rui Barbosa, por exemplo, notava que o observador moral da vida urbana “há de debater-
se, não se sabe até quando, nestas contradições”, já que “a sociedade humana há de agitar-
232 REIS, 1892, op. cit., p. 600. 233 REIS, 1892, op. cit., p. 432. 234 Cf. Capítulo 5.
85
se indefinidamente nestas perplexidades afflitivas, enquanto o homem for, nas mais altas
civilizações, esse animal semi-humanizado que é”.235
A partir das preocupações com a higiene, aliás, esse quadro fica ainda mais
realçado. A expressividade das formas exteriores já condiciona os sentidos e o conteúdo
moral das percepções. Em uma série de artigos sobre preceitos higiênicos para a infância,
se “o espirito e o corpo formam um todo”,236 a exposição “a todos os accidente e a todas
as causas morbidas que encontra a economia humana no exercicio das profissões, nas
vicissitudes sociaes e no abuso dos gozos materiaes” tornava a vida moderna
problemática como uma espécie de desafio à estabilização do campo moral.237 Como
prescrição, portanto, os processos de educação implicavam o esforço de um longo
regramento moral dos sentidos e dos sentimentos:
Continuae a educação dos sentidos, vista, ouvido, tacto, alfacto e gosto; a do cerebro pelas sensações e as idéas communicadas pelo culto do sentimento affectivo para com toda a gente, grandes e pequenos, ricos e pobres, amos e creados [...] É o triplice fim que cada familia que cria um filho deve propor-se: bom, forte e são.238
Em uma perspectiva mais ampla, articulando a infraestrutura da vida urbana, a
própria moralidade também significava a gestão da higiene pública, compondo uma
paisagem em que o conteúdo valorativo da moral emoldurava as avalições e as abjeções
em relação às condições materiais regulares ou aviltantes do meio social (pressuponto a
mencionada relação entre humanos e um meio não-humano) e de seus indivíduos
(disponibilizando a imagem da degradação como componente moral). O professor Luiz
Augusto dos Reis, ao passo que apresentava as escolas como “o logar onde se formam, a
par de cerebros instruidos, almas e corações”, defendia o campo da instrução como um
corte em relação à realidade abjeta da rua e seu potencial desestabilizador do campo
moral. Destinados a “melhorar os sentimentos, os costumes, extirpar os máus habitos”,
os processos de educação eram uma cruzada moral e ideológica contra os indivíduos
[...] de máus instinctos e pessimos habitos de educação, como se encontram aos milhares na capital do Brazil, mais que em qualquer outro ponto do mesmo paiz, pela heterogeneidade da população e pela
235 BARBOSA, Rui. O crime do Recife. In: BARBOSA, Rui. Obras (1889). Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Saúde, 1948. (Vol. 16, Tomo 6) 236 RICARDO. Hygiene: segunda infancia. A Estação, Rio de Janeiro, 15 fev. 1882. 237 RICARDO. Hygiene: segunda infancia. A Estação, Rio de Janeiro, 15 mar. 1882. 238 RICARDO. Hygiene: primeira infancia. A Estação, Rio de Janeiro, 31 dez. 1881.
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abundancia dos cortiços e estalagens, verdadeiros fócos de infecção physica e moral. É especialmente desses antros de perdição e de immoralidade, fontes asquerosas de todas as epidemias que devastam quotidianamente a cidade, angariando-lhe a mais triste e vergonhosa celebridade perante o estrangeiro, que sahem todos ou quasi todos os facinoras, os capoeiras, os gatunos, os assassinos, futuros habitantes das cadeias e das galés. Esses são os principais viveiros de todos os vicios e todos os crimes.239
O entrecruzamento dos processos de educação com os discursos higienistas é
complementar à estruturação moral da moderna vida urbana, tornando essas dimensões
indossociáveis do problema da população e, sobretudo, de sua gestão. Como campo
problemático e permeado por déficit, o social é uma arena de intervenção para correções,
de modo que, se há uma “união entre a physiologia e a psycologia humanas”, a “educação
do sentimento” e a moralização das inclinações eram as fronteiras valorativas entre o
humano e suas abjeções degradadas em imagens que chegavam ao inumano. Na opinião
do professor Reis, esse é justamente o cenário “que se dá na capital brasileira [...] e mesmo
em peiores condições, em outras cidades populosas nas quaes ha até bairros conhecidos
como antros em que habitam verdadeiras féras de fórma humana”.240 É certo que, nos
tempos de romance naturalista, o realce da exterioridade e sua expressão puramente
fisiológica era parte das percepções da vida urbana, por exemplo, junto às estratégias de
moralização e de combate ao desvalimento e à mendicância.241
Diversas dimensões devem ser consideradas a esse respeito,242 de modo que aqui
destaco a fundamentação moral vinculada à imagem problemática da vida urbana. Um
cronista do Rio de Janeiro, por exemplo, criticava o governo pela negligência com que
“continuará a permittir per omnia saecula que se levante essa extraordinaria e incrivel
multidão de cortiços, os focos, as verdadeiras sedes da epidemia, que n’um amplexo fatal
envolvem toda a cidade em uma atmosphera corrupta e miasmatica”.243 Os processos de
educação e as preocupações com a estruturação moral da sociedade, portanto, ecoavam
um imaginário mais amplo de percepções sobre a moralidade como enquadramento de
valores e de formas exteriores de ordem e conduta. Não à toa, o próprio professor Reis
sublinhava o papel da infraestrutura urbana por meio dos asilos e das “officinas
239 REIS, 1892, op. cit., p. 575. 240 REIS, 1892, op. cit., p. 577. 241 NARITA, Felipe Ziotti. A infância asilada: notas sobre a educação dos desvalidos na Corte. Caminhos
da Educação, Franca, v. 1, n. 1, 2009. 242 Cf. Capítulo 4 e 5. 243 BELTRANO, D. Chronica da semana. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 4 mar. 1876.
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correccionaes”. Afinal, “os vicios, os máus sentimentos, os máus habitos, são as doenças
da alma”, de modo que “são infinitas como as molestias do corpo, isto é, do – eu – physico
as do – eu – moral”. Para ele, “a escola mentirá á sua missão educativa e civilisadora si
não puder desarraigar os máus habitos e sentimentos de muitos”.244
O campo da instrução pública, como projeto de esclarecimento da população,
construía uma estrutura de distinção baseada nas consequências morais das aspirações de
letramento. A “educação moderna”, lidando com as massas pauperizadas das cidades,
deveria evitar que “os filhos do povo” entrem “fatalmente na triste familia dos
analphabetos, para a qual a viela, estreitamente limitada âs necessidades materiaes, torna-
o e sombria, e não chegam mesmo a ter a consciencia de uma emancipação intellectual e
moral possivel”.245 A proposição do professor Reis é eivada por um discurso de
emancipação da modernidade que será analisado no próximo capítulo.246 De todo modo,
a racionalização das perspectivas de moralização do espaço social no campo da instrução
pública e em seu enraizamento nas formas da vida urbana era uma aposta para a
estabilização da estruturação do mundo moral na conjuntura vertiginosa do fim de
século.247
Diversas pesquisas têm demonstrado, no Brasil, os nexos fundamentais
construídos entre a gramática moral da socialização (honra, decoro, polidez, virtudes etc.)
e a formação da vida urbana no século XIX.248 Os impactos desses processos de
modernização nos códigos morais, então, tensionam os parâmetros formativos (educação)
dos valores em função das transformações do mundo da vida. Se a relação com valores a
princípio reitera estruturas prescritivas de comportamentos, essa tentativa de ancoragem
no campo da moralidade é pensada à luz dos novos horizontes de socialização elaborados
junto à vida urbana. A invenção da sociedade nacional, portanto, tem como pressuposto
essas mediações valorativas que tematizam os códigos de associação.
244 REIS, 1892, op. cit., p. 576. 245 REIS, 1892, op. cit., p. 530. 246 Cf. Capítulo 2. 247 BLOM, Philipp. The vertigo years. Nova York: Basic Books, 2008. 248 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. NOGUEIRA, Maria Lucia Porto Silva. A norma dos bons costumes e as resistências femininas nas obras de João Gumes (Alto Sertão Baiano, 1897-1930). Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2010. SANTOS, Roberto Carlos. Urbanização, moral e bons costumes: Patos de Minas em fins do século. Varia Historia , Belo Horizonte, n.30, 2003. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. RODRIGUES, Marinete Aparecida Zacharias. Criminalidade e relações de poder em Mato Grosso (1870-1910). Jundiaí: Paco, 2012.
88
O engenheiro Aarão Reis oferece um interessante diagnóstico nesse sentido,
posicionando os processos de educação a partir do entendimento de que eles “regulam
todo o complicado mecanismo social”.249 A “animação que reina entre as espheras da
actividade nacional” é entendida como um horizonte de tempos revolvidos pelo qual a
própria dinâmica da sociedade é tragada. Eivado de um evolucionismo social muito
presente nos debates da época, o autor considerava que
[...] si é certo, como demonstra a sciencia positiva, que á cada phase do desenvolvimento physico do universo precede um período de transicção – lento e magestoso, durante o qual se operam os insondaveis mysterios de uma revolução geologica – e, entre os dous periodos determinados do desenvolvimento sociologico da humanidade, ha tambem um terceiro – dissolvente e organisador á um tempo; – não o é menos que á cada phase da vida de uma nação precede tambem sempre um periodo de transição – não tão lento, mas nem por isso menos magestoso, – durante o qual se operam os fecundos mysterios de uma evolução social.250
Se “estamos ainda – nao ha duvida – em um periodo de transicção”, “certa
desordem e confusão, provenientes da desproporção entre as circumstancias, que de
continuo variam e se modificam, e homens que não possuem os elementos indispensaveis
para viver e trabalhar em um meio que não é mais aquelle em que se educaram”, a
estruturação da sociedade e seus conjuntos de valores instituídos são subsumidos pela
imponderabilidade das mudanças. A consequência sociológica do estado de confusão
mental de um país que “transforma-se em uma immensa officina do futuro” pode ser
notada no fato de que “a vida, até hontem concentrada n’esta capital, vae-se manifestando,
do modo o mais explendido, em todos os pontos” com “o paiz inteiro entrando pelo
telegrapho submarino na communhão internacional dos povos civilisados”.251 As
percepções de Aarão Reis, comprometido com o positivismo de Comte e o grupo da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro, indicam as bases da desorientação do período de
formas “dissolventes”. As percepções morais vinculadas à produção e à reprodução da
vida na cidade moderna rondam um quadro importante para a investigação em curso: a
experiência da modernidade.
249 REIS, Aarão Leal de Carvalho. A instrucção superior no Imperio. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos
Luiz dos Santos, 1875. 250 REIS, 1875, op. cit., p. 82. 251 REIS, 1875, op. cit., p. 84.
89
CAPÍTULO 2 | AMBIVALÊNCIAS DE ESPÍRITOS FLUTUANTE S: A VERTIGEM MORAL COMO EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE
No primeiro capítulo, tentei desenvolver alguns nexos iniciais entre a construção
do campo da instrução pública, seu enraizamento em contextos de vida urbana e a
elaboração da estrutura moral dos novos horizontes de socialização à luz de processos
sociais da segunda metade do século XIX (com ênfase no fim de século). Basicamente, o
esforço consistiu em oferecer um posicionamento inicial de uma região periférica na
gênese da modernidade capitalista, destacando a elaboração de estruturas morais
(vinculadas aos mecanismos pedagógicos dos processos de educação e da instrução
pública) e a organização de suas narrativas (formas aspiracionais, mecanismos de abjeção
etc.) em cenários da moderna vida urbana cortados pela produção de imaginários e pela
circulação de repertórios culturais. Neste capítulo, desenvolvendo a discussão, gostaria
de desdobrar o problema das percepções morais e dos valores tendo em vista a
experiência da modernidade a partir da exposição do campo moral à volatilização de
quadros estáveis do mundo da vida.
Como enfatizei anteriormente, a incorporação da infraestrutura capitalista e a
dinamização das percepções morais no espaço da cidade, certamente, não eram sinais
unívocos de uma modernização linear, tampouco realidades abrangentes ao conjunto do
vasto território no fim de século. Como elementos circunscritos às grandes cidades e aos
ímpetos de incorporação da paisagem aos progressos do século, essas transformações
materiais expunham a dinâmica de co-temporalidades diversas da integração periférica
do Brasil ao sistema-mundo moderno,252 fundamentando o processo contraditório de
desenvolvimento da modernidade capitalista.253 Contudo, longe de manifestações
epidérmicas ou dissociadas das mutações mais amplas do mundo moderno, aqueles
processos mobilizam percepções, repertórios e valores significativos de uma formação
social ligada às transformações do período. Nesse sentido, a força do campo moral nos
costumes e a presença estrutural do religioso (presença matizada no fim de século, mas
ainda significativa) indicam menos os resquícios ou os obstáculos ao movimento do
moderno do que a atividade interna da sociedade nacional na elaboração e na estruturação
252 TOMBA, Massimiliano. Marx’s temporalities. Leiden: Brill, 2013. 253 MARTINS, José de Souza. As hesitações do moderno e as contradições da modernidade no Brasil. In:
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2010.
90
de seus parâmetros valorativos de socialização sob os impactos das mudanças
socioeconômicas e, sobretudo, culturais. Esse enquadramento pode ser pensado em
contraponto a dois níveis de análise do problema.
A primeira questão diz respeito à alteração dos complexos socioculturais
(socialização) confrontados com o caráter cosmopolita das forças modernas. José Roberto
do Amaral Lapa, em pesquisa de fôlego, situou o problema da modernidade no Brasil
(enfatizando a interiorização da vida urbana e sua materialidade a partir dos anos 1860 e
1870) no cruzamento entre a expansão capitalista (trabalho, mercadorias e infraestrutura)
e as “aspirações de cosmopolitização” dos novos contextos da modernidade.254 A
abordagem de Lapa desenvolve com muita perspicácia o impacto da modernização sobre
os códigos morais e as regras de civilidade no novo espaço urbano, assinalando a dialética
das iluminações modernas em contato com as estruturas de um antigo espaço colonial. O
raciocínio, todavia, parte de um pressuposto teleológico bastante problemático, ou seja, a
ideia de uma modernidade estabelecida “com um atraso secular”. O argumento opera
sobre as condições de produção da vida moderna, mas confere peso a uma “modernidade
importada”, como se o desajuste entre o ímpeto de rupturas do novo repousasse, em
última instância, sobre as bases retardatárias de uma sociedade agrária e escravista. Antes
de negar a incorporação da civilização do século e os parâmetros liberais de socialização
como resistências estranhas à expansão da modernidade capitalista, a dialética da
modernização em um antigo espaço colonial incorpora os significados históricos e
sociológicos do moderno, de modo que o registro do “atraso” reforçado por Lapa não
capta justamente o centro do problema: a correlação estrutural entre as sociedades
produtoras de mercadorias, bem como sua interdependência na elaboração dos repertórios
modernos. Longe de se debater contra as heranças coloniais, como se fossem
externalidades, a modernidade capitalista, na expansão de suas forças produtivas e
infraestrutura, é justamente a tensão dialética elaborada junto à multiplicidade de
contextos e elementos em interação na nova razão burguesa.
Se o sistema-mundo moderno é estruturado sobre essa dinâmica contraditória,
antes de um obstáculo à efetivação do moderno, o quadro destaca justamente o movimento
de integração dos momentos particulares na constituição de sua universalidade. O
mercado mundial não é uma simples adição de unidades nacionais, mas a autonomização
de um sistema social fundamentado na estrutura desigual de trocas (mercado) e na divisão
254 LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade. São Paulo: EDUSP, 2008.
91
internacional do trabalho, de modo que a integração assimétrica de elementos
heterogêneos correlaciona o conjunto das formações sociais em linhas de força travejadas
pelo processo de valorização e pelos circuitos de transferência de pessoas, mercadorias
e ideias. Nesse sentido, em vez de contrapor instâncias reificadas e esquemas teleológicos
na realização do moderno (como se houvesse modelos acabados nos nascentes centros
industriais e formas refratárias nas periferias), minha aposta tem sido contornar as leituras
da incompletude da formação social por uma abordagem que privilegia a particularidade
como referente da contradição interna a essa estruturação transnacional.
A segunda questão, então, implica uma consideração dos dualismos
macrossociológicos que marcam parte da discussão acadêmica sobre o tema. Em um texto
importante, José Murilo de Carvalho capta, em visão de conjunto, as ambivalências que
constituem o fim de século, contrapondo o “avanço” da modernização à “força da
tradição” (ruralismo, Canudos, paternalismo, revolta de quebra-quilos etc.).255 Para o
autor, havia uma “tradição suficientemente forte” capaz de impor a continuidade das
pesadas heranças da sociedade tradicional diante do ímpeto modernizador das elites
urbanas. A abordagem clássica de José Murilo de Carvalho evidencia os traumas da nação
cindida e de suas iniquidades históricas à luz da particularidade da formação social de um
antigo espaço colonial (com especial ênfase nas notáveis distorções cidade/campo) na
conjuntura de expansão imperialista do capitalismo. Mas o jogo com pares antitéticos
confina o esquema a um dualismo teórico, ou seja, à noção de uma formação social
organizada por polos irredutíveis – como se a tangibilidade e a profundidade da
experiência da modernidade ficassem subsumidas pelas determinações tradicionais e as
heranças coloniais. Para o autor, se o “sentido da modernidade” é buscado no maior ou
menor rompimento com a tradição, seu diagnóstico sobre a “precariedade do moderno”
no Brasil parece mais preocupado com o que “não foi” (repondo um regime de faltas) do
que com a historicidade efetiva dos processos sociais e as disjunções implicadas pela
modernização capitalista em seu conjunto.256
Como alternativa para contornar algumas implicações desses esquemas dualistas,
Francisco Foot Hardman elabora uma análise destacando que “o tempo da modernidade
capitalista sempre foi o entrelaçamento de diferentes espaços-tempos na reprodução
255 CARVALHO, José Murilo. Brasil, 1870-1914: a força da tradição. In: CARVALHO, José Murilo.
Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. 256 RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina: literatura y politica en el siglo
XIX. Caracas: Ministerio del Poder Popular para la Cultura, 2009.
92
ampliada das relações baseadas no valor de troca”.257 O autor enfatiza “o sistema-mundo
em circulação” e as dinâmicas de produção e reprodução cultural intercaladas à
constituição material do capitalismo desde o oitocentos, tendo o grande mérito de
evidenciar as tramas de tensões e contradições das formações sociais, imbricando regiões
e práticas culturais em dinâmicas desterritorializadas pelo desenvolvimento do capital (o
ótimo Nem pátria, nem patrão! e o seminal Trem-fantasma, ambos do mesmo autor,
atestam o vigor dessa empreitada frutífera nas ciências sociais). A unificção de formações
heterogêneas é central para a dinâmica da modernidade capitalista, tendo em vista a
estruturação simultânea e correlacionada de espaços do mercado mundial e suas esferas
de circulação de percepções e imaginários, de modo que a crítica de Hardman ao modelo
cepalino e ao registro marxista-leninista de um Octavio Brandão – que eu estenderia, em
termos razoavelmente semelhantes (ainda que com fundos teóricos e opções
metodológicas diferentes), às mencionadas análises da “falta” e da incompletude
sociológica da formação – é muito bem colocada nesse contexto.
Contudo, a aposta de Hardman vacila na medida em que rejeita a categorização
de periferias na abordagem do sistema-mundo. Ao passo que o autor absorve os
parâmetros mais gerais do sistema-mundo de Wallerstein (a própria presença do termo
no texto é sintomática), sua postura oscila ao tentar se desevencilhar das consequências
lógicas do campo teórico: obliterando o entendimento de periferias no quadros do
sistema-mundo moderno, creio que a análise do autor apaga uma diferenciação histórica
que constitui a configuração cosmopolita do capital e das transformações da modernidade
a partir do século XIX, ou seja, a dinâmica disparada nos centros do nascente capitalismo
industrial e da financeirização (Paris, Londres, Manchester, Liverpool e, pouco depois,
Nova York) e sua correlação/unificação estrutural (e assimétrica) com regiões periféricas
entendidas, aqui, como antigos espaços coloniais. Contra a imagem de um todo
indiferenciado, o sistema-mundo pressupõe a integração assimétrica de seus elementos
na constituição do valor e na reprodução ampliada do capital. As categorias relacionais
de centro e periferia nos quadros do sistema-mundo, bem entendido, não implicam um
retorno às teorias da modernização dos anos 1950 e 1960, tampouco um esquema
montado sobre noções reificadas de sociedades tradicionais e sociedades modernas e suas
narrativas de transição.
257 HARDMAN, Francisco Foot. Ilusões geográficas: sobre a volubilidade da noção de periferia no espaço-
tempo global. Tuttamerica, Roma, v. 162, 2016.
93
Meu argumento é que a tangibilidade da experiência da modernidade em uma
região periférica pode ser indicada, basicamente, em duas direções fundamentais: (1)
conforme a exposição do capítulo anterior, a integração material junto à expansão
capitalista a partir dos anos 1850, processo visível sobretudo nas cidades portuárias,
construiu condições de circulação de repertórios e ideias, implicando formas de vida
urbana alicerçadas sobre esses novos motivos culturais, de modo que, longe da
determinação de uma sociedade tradicional, os valores dispostos na socialização lidam
com as tensões e contradições presentes nos referenciais liberais de socialização
(liberdade individual, propriedade privada, segurança etc.);258 (2) as perspectivas de
formação (educação) da sociedade nacional delimitaram uma vasta gramática moral como
fundamento da forma social e de suas interações diante das transformações da
modernidade.259 Como desdobramento desse duplo eixo, a consistência da experiência da
modernidade e de seus repertórios, em uma região periférica, pode ser buscada nas
condições de elaboração das ideias em circulação. Nesse sentido, a relação com valores
pressuposta pelos processos de educação, sob o impacto das transformações do fim de
século, sinaliza mediações fundamentais para a tradução dos repertórios temáticos em
perepções sobre o campo da socialização.
Um longo artigo publicado em um periódico apoiado pela Sociedade Auxiliadora
Maranhense e destinado à “causa da instrucção” no Maranhão afirmava que “não ha
sociedade possivel quando a moral tem deixado de ser o sal que preserva da
decomposição”, de modo que “o homem, esquecendo Deus e a sua justiça na outra vida,
não se regula senão pelo que é util” e na “ordem domestica, assim como na ordem social,
a utilidade é a suprema regra”.260 Se o novo circuito de ideias na esfera pública (permeada
pelas correntes materialistas, pelo positivismo, pelo ateísmo etc.) “tem arrastado a
sociedade ao abysmo da immoralidade”, além da “negação de Deus, e portanto tambem
a negação da immortalidade da alma”, as novas ideias afundavam o entendimento da vida
social em “um complexo de contradicções”. O ponto fundamental da discussão residia no
assombro com que a “propaganda pela palavra tem inficcionado tanto a sociedade” e,
sobretudo, abalado a validade de sua estruturação moral “por essa outra moral de artificio,
a moral convencional, que tornou-se a dominadora do mundo”. Nesse sentido, o
258 NARITA, Felipe Ziotti. Moral scenes from urban life. Praktyka Teoretyczna, Poznań, v. 23, n. 1,
2017c. (“Repressed histories of the 19th century” – Orgs. Katarzyna Czeczot, Wiktor Marzec e Michal Pospiszyl)
259 NARITA, Felipe Ziotti. A educação da sociedade imperial: moral, religião e forma social na modernidade oitocentista. Curitiba: Prismas, Appris, 2017a. (Col. Leituras de Brasil)
260 A moral na sociedade. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 8 dez. 1877.
94
espetáculo “de uma vasta ruina moral” implicava a desestruturação de parâmetros básicos
de socialização, garantidos pelos processos de educação e pelas perspectivas formativas
dos futuros cidadãos, uma vez que “o resultado é que, faltando a harmonia real, essa
harmonia que somente o reciproco amor puro póde produzir, a desordem se installe
immediatamente na familia”. Há diversas questões nessa mobilização de elementos
sociológicos fundamentais da estruturação social (família), de modo que parte desse
debate será encaminhado ainda neste capítulo.
Por ora, gostaria de reter apenas uma implicação do argumento: esse juízo moral
mobilizava, a rigor, uma ampla consideração da experiência da modernidade e de seus
impactos junto à estruturação moral da forma social e aos processos de educação.
Subjacente a toda retórica envolvendo a “moral christã” como a “unica ancora” da política
e da vida social, o texto lidava com um amplo imaginário envolvendo os espectros da
multidão irracional e da violência revolucionária, indicando que “as devassidões, que
tanto se ostentaram na corte de França durante os reinados que precederam o de Luiz
XVI, prepararam a famosa revolução de 1789 e os seus consequentes estragos”. Afinal,
“individuos que não respeitam a si mesmos e aos outros não podem ser agentes da
reacção; importaria o mesmo que entregar ao lobo a guarda de um rebanho”, de modo
que a época das massas e do nivelamento das populações carregava, justamente na proa
dos discursos de esclarecimento e emancipação moral aí relacionados, dimensões
problemáticas referentes aos mecanismos de coesão da população. Nesse sentido, como
práticas difusas pelo espaço social, os processos de educação e a precariedade da
fundamentação das formas de moralização traziam, como um negativo sempre exposto
pelas condutas, desafios morais ao campo da socialização, de modo que
A bolsa ou a vida! O remedio é possivel. É necessario atacar frente a frente a libertinagem, fiscalisando efficazmente o theatro, onde o vicio, se não é glorificado, é quasi sempre justificado. A imprensa deve ter um freio que a contenha nos limites de uma liberdade regrada. A prostituição não deve ter, como ate agora, o direito de hombrear com as familias nas reuniões em que a entreda é paga: um tal nivelamento humilha a virtude; e a sympathia, ou ao menos a indifferença por este mal, está tão profundamente enraizada nos habitos da população que assusta os mais dispostor a regir contra elle. A immoralidade ameaça alagar a sociedade inteira!
O ar de cruzada moral, temendo as condições de nivelamento e massificação da
vida moderna, expunha uma vasta gramática moral em circulação para avaliação das
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condutas e de suas relações de sentido. No limite, a vacilação dos valores e de sua
fundamentação parecia central nessa perspectiva mais pragmática sobre o mal-estar
social. Considerando “o estado presente do mundo”, asseverava Farias Brito em texto de
1894, “tudo é vacilação e incerteza nas sociedades modernas”.261 A constatação do
espírito vacilante da época e de seu horizonte, como analisei no capítulo anterior, é parte
de um conjunto mais amplo de percepções vinculadas à própria indeterminação do novo
horizonte de expectativas implicado nos processos de modernização. Com Farias Brito,
todavia, um problema fica explícito: a imponderabilidade do novo horizonte temporal é
inseparável de uma volatilização dos valores do campo da moralidade. O “estado de
perturbação e desordem” representava, sobretudo, um desafio ao observador moral não
apenas em relação à exposição das condutas da vida coletiva, mas em relação à potencial
erosão da validade da vida instituída, “faltando às sociedades coesão e estabilidade”.262
A ambivalência dos novos contextos do mundo da vida resvala em uma leitura do “atual
estado de cousas” nuançada pelos processos de educação, na medida em que o autor
questiona a capacidade de tradução dos valores morais em perspectivas formativas de
condutas da cultura moderna.
Preocupado com “a alma humana em face do mundo”, Farias Brito considerava
que “há sempre entre as cousas realizadas pela sociedade muita cousa a destruir”, de modo
que “a obra da civilização” consiste “por um lado, num sistema de reconstrução
perseverante e contínua; mas também, por outro lado e ao mesmo tempo, num sistema de
demolição permanente”.263 Esse horizonte de potencial desorientação, entendido pelo
autor como consubstancial da formação da cultura moderna no século XIX, implicava
uma aposta nos processos de educação, pois por meio deles “serão decididos os destinos
do mundo moderno”. Se a moral “tem sua sanção na consciência individual”, a orientação
do espaço social pelos processos de educação constrói horizontes coletivos em que a
“ordem moral” é estruturada tendo em vista “o livro, a propaganda, o ensino, além das
corporações filantrópicas e daquelas que fazem da educação e do ensino o princípio e a
essência da virtude”.264 O ângulo que estou sugerindo para essa leitura de Farias Brito
sublinha justamente o lugar das amplas transformações do período em relação à
fundamentação moral da sociedade moderna e sua educação.
261 BRITO, Raimundo de Farias. Finalidade do mundo I. Brasília: Senado Federal, 2012a. p.73. 262 BRITO, 2012a, op. cit., p. 238. 263 BRITO, 2012a, op. cit., p. 76. 264 BRITO, 2012a, op. cit., p. 9-10.
96
A perspectiva formativa aberta pelas considerações aspiracionais de uma “ordem
moral” e de sua regularidade, nesse sentido, condicionam o observador moral do
“espetáculo do mundo” a uma praxis que, respaldada por prescrições e por avaliações de
condutas, dispõe as coordenadas morais da cultura intelectual para o “conhecimento das
leis que regulam a marcha das cousas” e sua utilidade no desenvolvimento regular da
vida. A conjuntura de “grande agitação” implica impactos nas “leis da conduta”, de modo
que “a atmosfera do mundo moral” é exposta à realidade movediça do mundo moderno,
corroendo “a alma das sociedades” e “o princípio de ordem” ancorados na estruturação
das formas de socialização orientadas por valores derivados do campo da moralidade.265
Como diagnóstico de época dessas perturbações e da “angustiosa aflição das sociedades
modernas”,266 os processos técnicos da modernização capitalista e as novas coordenadas
ideológicas do mundo da vida (materialismo, ateísmo, positivismo, multidões, revolução
etc.) desafiavam a estabilização de um quadro valorativo, baseado na estrutura de
prescrições da moralidade, capaz de oferecer conteúdos para as novas dinâmicas sociais.
Reduzindo o élan de Farias Brito a um plano de referencias mais empíricos do
processo social, sintomática é uma curta narrativa de Domicio da Gama sobre a trajetória
de formação do jovem Fabio, já que, “rolando pelas capitaes dos dous mundos, ao acaso
das combinações da carreira, o menino cresceu e se educou sob as vistas do pae”.267 A
narrativa de aprendizagem de Fabio, que costura os meandros do texto de Gama, parte do
pressuposto de que a “educação anormal, excessiva, deformante, imperfeita” coloca
senões incontornáveis ao campo da socialização. A economia perceptiva do observador
moral moderno, viciada na infância, esbarra nas novas referências do mundo da vida e
em seus estímulos, de modo que, conforme o próprio Gama apresenta em tom de
prescrição, “a frequente mudança de horizontes predispõe para a inattenção ao mundo
exterior” e a intensificação nervosa dos contatos na vida coletiva – vozes, ruídos, “rostos
differentes e sempre extranhos” etc. – implica “o embotamento das sensações de
novidade”. No príodo, esse quadro é certamente mais aguçado nas emergentes estruturas
das metrópoles da Europa Ocidental,268 mas mesmo nas principais cidades de regiões
periféricas essas percepções circulavam aqui e ali.269 Se o indivíduo é uma quantité
négligeable em meio à cultura objetiva da modernidade (incorporada na infraestrutura,
265 BRITO, 2012a, op. cit., p. 89-91. 266 BRITO, 2012a, op. cit., p. 84. 267 GAMA, Domicio. A força do nome. Revista Moderna, Paris, 5 set. 1897. 268 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: EDUSP, 1994. 269 NARITA, 2017, op. cit.
97
nos saberes e na ampliação das interações sociais), abrindo os estímulos a uma
multiplicidade de conteúdos da vida,270 a intensificação do regime perceptivo implica as
contingências das mudanças rápidas e descontínuas de situações.
Para Gama, o impacto desse cenário nas condições da vida moral residia na
indiferença e no empalidecimento das estruturas intersubjetivas. As ausências da figura
moral da mãe e da família (núcleos sociológicos indispensáveis aos processos de
educação no oitocentos), agitando a vida prática sem a normatividade da educação dos
sentimentos e do campo moral, sinalizam os encaminhamentos problemáticos da
narrativa de formação. A traição e a precariedade dos contatos interpessoais revelavam o
desfecho da “miseria moral” de um percurso de erosão da validade dos fundamentos da
socialização (finalizada pelos devaneios do personagem sobre a “irreligião do futuro”).
Com o texto de Domicio Gama, a estrutura moral e os processos de educação corroídos
pelo automatismo e pela razão instrumental da vida urbana indicavam, como uma lição,
que “ver sempre cousas novas fatiga; as cousas velhas immoveis, monotonas, acabam por
escapar á attenção”, tornando a vida “uma corrida sem rumo atravez de paizagens
anonymas entrevistas fugitivamente pelas vidraças de um trem expresso”.
Em meio ao crescente anonimato das grandes cidades, a tentativa de ancoragem
da normatividade moral na família parecia revestir com um véu de regularidade as
perturbações de um mundo revolto. José Francisco da Rocha, em texto assinado no
Paraná, notava que
A educação domestica tem mui activa e poderosa influencia no desenvolvimento moral do povo. Si uma educação sã tivesse principio no lar, onde é mais facil encaminhar as creanças nas regas imprescriptiveis da moral indispensavel á sociabilidade do individuo, não só por que os paes tem uma auctoridade mais efficaz, mas ainda por que a educação se póde desenvolver com o crescimento organico do menino.271
Retomando a narrativa de Gama, para o jovem Fabio, “nascido e criado em
cidades, o rumor e o tumulto das cidades era favoravel á expansão das suas faculdades
naturaes”, de modo que “no meio das ruas apinhadas de povo elle se sentia no seu
elemento como o marinheiro entre o marulho das ondas”. O desaparecimento do
270 SIMMEL, Georg. Die Groβstädte und das Geistesleben. In: SIMMEL, Georg. Aufsätze und
Abhandlungen (1901-1908). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995. p. 129. (Georg Simmel Gesamtausgabe, Vol. 7)
271 ROCHA, José Francisco. Duas palavras sobre a instrucção publica (III). A Escola, Rio de Janeiro, 1878.
98
referencial de valores formativos (agravado pelo intelectualismo e pelo descaso com a
educação dos sentimentos) e os estímulos da cultura moderna conduziam o indivíduo ao
embotamento e à indiferença das relações interpessoais, de modo que o comprometimento
dessas estruturas de reconhecimento e o aguçamento do processo de individualização (e
a consequente dissociação entre indivíduos), no limite, contornavam uma dimensão
problemática dos valores instituídos para ordem da vida coletiva. Domicio Gama, em
registro pedagógico, ensina pelo erro, pois narra uma espécie de negativo das visões
aspiracionais do núcleo moral da família. Como desfecho moral para a narrativa de Gama,
a percepção de engolfamento do indivíduo pela vida moderna é tematizada de maneira
bastante direta junto à vida urbana, de modo que em Farias Brito os desdobramentos da
existência coletiva ficam mais visíveis pela amplitude de sua perspectiva histórica. Nesse
sentido, a própria dinâmica técnica é interpretada como signo dos destinos coletivos de
época.
Na esteira das percepções coevas do fim de século analisadas no capítulo anterior,
para Farias Brito, “a descoberta do vapor, por um lado, realizou a comunicação das
nações, dominando o espaço; a descoberta da imprensa e do telégrafo realizou, por outro
lado, a comunicação dos espíritos, dominando o tempo”, de modo que “de tudo isto,
resulta uma transformação radical nos costumes, como nas ideias fundamentais da
sociedade”.272 O encantamento da técnica moderna e as relações de sentido aí
pressupostas (permitindo sua avaliação em registro moral) repousam sobre a
multiplicação das esferas de circulação nos contextos de transformação da época. O
movimento interdependente das “forças históricas” estruturantes dos processos de
modernização (vapor, maquinário, telégrafo, impressos, colonização, ferrovias, comércio
global etc.),273 combinando a diversidade dos espaços capitalistas na constituição
simultânea das estruturas de mercado e de circulação da forma-mercadoria, articula
centros e periferias na mesma experiência vertiginosa da cultura moderna.274
O “vácuo profundo que se faz na consciência coletiva dos povos”, para Farias
Brito, de algum modo ecoa a percepção de vertigem dos novos tempos. Existe uma
disjunção temporal nessa experiência baseada em uma assertiva de mão-dupla, expondo
que “nada permanece de pé do que nos legou o passado” ao passo que a “obra do futuro
272 BRITO, 2012a, op. cit., p. 85. 273 ENGELS, Friedrich. Engels an Friedrich Albert Lange (29 März, 1865). In: Briefe von Marx und
Engels an dritte Personen (1864-1867). Berlim: Dietz, 1965. p. 466. (MEW, 31) 274 HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva.
2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
99
está ainda toda inteira por fazer-se”: para além do desencaixe da percepção presente,
existe uma desorientação decorrente do desenraizamento das formas tradicionais de vida.
O impacto moral da cultura moderna nas mediações da socialização era saliente: se “tudo
foi envolvido numa avalanche medonha e arrastado na onda crescente da anarquia e da
destruição”,275 o apelo do autor à “consciência coletiva dos povos” e aos destinos da
humanidade é justificado pois
[...] a anarquia é a feição característica do século. Há anarquia política, anarquia econômica e anarquia intelectual. Há mesmo um partido de teóricos anarquistas, e os estadistas e legisladores de todos os países lamentam este estado de cousas e, sobretudo, exagerando o perigo de uma revolução que, promovida nas trevas, já começa a pôr em ação o terrível expediente da propaganda pelo fato, estranham que a tal ponto tenha chegado a anarquia mental e a corrupção dos costumes [...] Ora, a religião é a ciência do povo, é o grande princípio que constitui a atmosfera do mundo moral. Suprimida a religião, desaparece a ordem, como a tranquilidade nas massas sociais que não tendo convicções, nem ideias com que possa ser preenchido o vácuo deixado no espírito pela supressão das crenças tradicionais, entregam-se a toda a sorte de extravagâncias. Nestas condições é evidente que os estadistas e publicistas modernos não têm razão para condenar a anarquia que se manifesta em todas as classes e em todos os ramos de atividade social, porque a anarquia é a consequência lógica, inevitável das doutrinas que praticam.276
A interpretação da vida moral e de seus abalos a partir dos fundamentos de um
coletivo universal (humanidade, consciência coletiva, povos civilizados etc.) significava
a unificação do conjunto de experiências (e de seus horizontes) tragadas pelas
descontinuidades da cultura moderna. Nos textos de época, a constante referência à
estruturação do campo moral como progressão da vida individual rumo ao
reconhecimento dos destinos essenciais de uma humanidade, aliás, indica a coincidência
entre a disponibilidade dos conteúdos morais e a universalidade de seus imperativos como
momentos na identificação de um novo sujeito coletivo (humanidade) capaz de
estabelecer novos indexadores morais do humano e das dívidas com os progressos
acumulados pela espécie.277 Esse caminho crescente de abstração, do indivíduo auto-
interessado ao reconhecimento de um fundamento comum supra-individual, organizava
os processos de educação e a gênese dos comportamentos educados junto aos futuros
275 BRITO, 2012a, op. cit., p. 86. 276 BRITO, 2012a, op. cit., p. 83. 277 SIMMEL, Georg. Schopenhauer und Nietzsche. Leipzig: Duncker, 1907. p. 207.
100
cidadãos. Alfredo Moreira Pinto, por exemplo, defendia a “a educação moral que tanto
contribue para levantar o espirito e o coraçao do menino ao desempenho de seus futuros
deveres como membro activo do corpo social”, pois acreditava na estruturação moral da
sociedade, a um só tempo, como caminho dos exclusivismos do humano no
aperfeiçoamento moral e como mecanismos de gestão da imponderabilidade do novo
mundo da vida. Nesse sentido, o autor enfatizava que
O cultivo da intelligencia, dessa mais nobre faculdade de que é dotado o homem, e que nos distingue dos seres irracionaes, é um dever indeclinavel. A intelligencia humana precisa de ser desenvolvida, applicada e aproveitada. A unica solução, verdadeira e real desses tres importantes problemas é a instrucção. A falta de instrucção tem sido a causa dos mais horrorosos crimes e catastrophes, de que a humanidade tem sido victima; a causa da violação dos direitos dos cidadãos e da escravidão da consciencia e de outros tantos males sob cujo jugo geme hoje a humanidade.278
Talvez o conteúdo das narrativas aspiracionais da modernidade e de sua forma
moral resida nessa imagem pragmática do bom cidadão e da estabilização das formas de
vida. As preocupações de um Farias Brito, ao passo que entendem a estrutura temporal
dos novos tempos a partir de uma tensão presente na fundamentação da moralidade
(considerando seu diagnóstico à luz dos processos de educação da “ordem moral” como
estruturas aspiracionais de integração da normatividade social), mobilizam imaginários
sociais atrelados às multidões, à violência política e ao potencial disruptivo da anarquia.
Esses indícios não são excentricidades; igualmente, não podem ser restritos a uma
instrumentalização superficial pelo autor. A rigor, especialmente no fim de século
brasileiro, se as esferas de circulação propiciavam a difusão significativa dessas imagens
da modernidade, mais do que resquícios inarticulados com o processo social, valores eram
mobilizados na difusão e na apreensão das figurações.
Ao lado de centenas de perfis femininos veiculando modelos de decoro e
moralidade junto às publicações periódicas, as desordens da moderna vida urbana eram
bastante visíveis ao público letrado das cidades. Do grande medo da comuna de 1871 ao
“botato em S. Petersburgo de que os nihilistas tratavão de lançar fogo aos gazometros” –
com a cidade “triste e sombria e suas ruas desertas” abruptamente tomadas “de uma
multidão de cossacos” –,279 as imagens corriam como fantasmagorias da cultura moderna
278 PINTO, Alfredo Moreira. Introdução. A Sentinela da Instrucção, Rio de Janeiro, 29 jan. 1876. 279 O movimento revolucionario na Russia. Pharol, Juiz de Fora, 1 jun. 1879.
101
nos principais centros urbanos. Mesmo Rui Barbosa, preocupado com a estabilidade da
jovem República e com a entrada de imigrantes na região, avaliava o assassinato do rei
Umberto I da Itália por meio de uma narrativa de abjeção a respeito da “furiosa
depravação contemporânea”, argumentando que “só a têmpera que o Evangelho deu à
sociedade ocidental, com efeito, a poderá livrar de um espantoso eclipse moral nessa luta
com as forças hediondas da anarquia”.280 Os embates morais estavam vinculados às
condições de politização dos repertórios em circulação,281 produzindo novas
sensibilidades diante da difusão de imagens de mundo nos impressos. Se os pânicos
morais associados ao terrorismo anarquista, sobretudo entre os anos 1880 e o começo dos
anos 1920, disseminavam imaginários urbanos nos rastilhos percorridos pelas
transformações da infraestrutura de circulação,282 as aspirações ordeiras estavam
igualmente vinculadas às promessas do nascente espetáculo da cultura moderna.
A aceleração no movimento de imagens e saberes está na gênese transnacional da
cultura moderna, de modo que a velocidade da informação, na segunda metade do século
XIX, propiciava maior dinamismo nos regimes de circulação e trocas diante do novo
contido nos acontecimentos e na cultura impressa.283 O jornal O Novo Mundo, ao noticiar
“a marcha furibunda das labaredas” que varriam Chicago e desmanchavam as “riquezas
deste mundo”, informava que “em todas as gradações da sociedade se operou uma
revolução completa: dous dias, como um movimento no kaleidoscopio desta vida,
transtornaram todos os ganhos do passado, todos os planos de presente e sonhos de
futuro” – diante de “uma só chamma gigante que levantava ao ceo em pyramida e de que
se desennovelavam nuvens e nuvens de fumo negro e vermelho, que logo se desfazia
vertiginoso no furacão que continuava sempre a soprar”, as ruínas das “estructuras da
grande metropoli” exigiam “a sympathia e o auxilio das outras grandes cidades do mundo
christão”, esperando “que no Rio de Janeiro e nas outras cidades do Brazil se levantem
mãos charitativas”.284 A Revista Moderna, impressa em Paris por Martinho Botelho e
280 BARBOSA, Rui. O perigo anarquista. In: BARBOSA, Rui. Obras completas. Rio de Janeiro:
Ministerio da Educação e Cultura, 1975. (Vol. 27, Tomo 4) 281 Agradeço a Inna Shtakser (Universidade de Tulane), estudiosa do anarquismo na Europa Oriental e na
Rússia no fim do século XIX e início do XX, pela oportuna lembrança. 282 MULRY, David. Joseph Conrad among the anarchists. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016.
FRANK, Michael. The cultural imaginary of terrorism in public discourse, literature, and film. Nova York: Routledge, 2017.
283 MAINARDI, Patricia. Another world : nineteenth-century illustrated print culture. New Haven: Yale University Press, 2017.
284 O grande incendio de Chicago. O Novo Mundo, Nova York, 24 out. 1871.
102
responsável por um curioso sensacionalismo moral no período,285 comunicava a
“espantosa catastrophe” do voo de Wolffert em um “aereostato fusiforme” que “devia
mover-se no espaço, por meio de uma poderosa e leve machina a petroleo”, lamentando
a pouca atenção recebida pelo espetáculo diante da “febre intensa da vida actual”.286 Vale
ressaltar, nessa profusão de imaginários sociais em face da crescente simultaneidade na
circulação cultural, a presença de um significativo aparato de imagens e fotografias,
especialmente a partir dos anos 1880, em impressos como a Revista Moderna, A
Ilustração, A Estação, A Vida Moderna etc.287 Ao lado dos catálogos, dos almanaques e
dos periódicos, expondo mercadorias e situações, a presença dessas imagens construía
novos regimes de visualidade e reconfigurava as estruturas perceptivas da vida moderna
diante da presentificação e da emergência do novo. A teoria materialista da forma e a
crítica de Adorno ao culto do novo nas raízes do modernismo é certeira: o valor do novo
e sua autoridade, expondo a imagem do mundo pela nova aparelhagem técnica e pela
circulação alimentada como valor de exibição (Ausstellungswert), ilustrava o signo
estético da reprodução ampliada do capital e das mercadorias, portando o germe do
espetáculo e das promessas de abundância ilimitada (ungeschmälerter Fülle).288
Nos primeiros dois capítulos da pesquisa, tenho insistido na interrelação entre a
circulação cultural e a dinamização de imaginários sociais como processos fundamentais
para o entendimento dos repertórios morais e a fundamentação dos processos de educação
no fim de século. Essas percepções compõem o que Berman chamou de “a experiência
da modernidade”,289 de modo que a noção de modernidade desenvolvida aqui implica um
conjunto de percepções (e sensibilidades) incorporadas em formas de vida (vital
experience), colocando em circulação tanto a nova infraestrutura técnica quanto um
horizonte cultural impactado pela aceleração das transformações capitalistas em seus
diversos ambientes. Essa dialética, apoiada sobre os processos cumulativos da
modernização material, percorre as formas culturais do sistema-mundo apoiadas sobre o
ímpeto de dissolução e de indeterminação de seus horizontes futuros. Justamente tentando
captar esse trânsito moral, a aposta nos processos de educação e nas condutas procura
mapear uma cadência que articula um todo coerente da experiência da cultura moderna,
285 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República
(1890-1922). São Paulo: EDUSP, 2008. 286 LUDOVICUS. A catastrophe de Berlin. Revista Moderna, Paris, 25 jul. 1897. 287 LUCA, Tania Regina. A Ilustração: circulação de textos e imagens entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro.
São Paulo: Editora Unesp, 2018. 288 ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012. p. 39, p. 73. 289 BERMAN, Marshall. All that is solid melts into air: the experience of modernity. Nova York: Penguin,
1988. p. 15-17, p. 288.
103
certamente nuançada pela particularidade das formações sociais, mas efetivamente
integrada aos significados histórico-universais da modernidade capitalista, sobretudo, a
partir do século XIX.
A disseminação de imagens e saberes, alargando (enlarge) o campo de observação
e cruzando (cut across) as fronteiras por meio de esferas de circulação, mobilizam
horizontes comuns de um mundo da vida contraditório em sua fundamentação. Nesse
sentido, especialmente nas periferias do século XIX, a ambivalência dos valores e a
percepção da vertigem, como perpétua desintegração e renovação das experiências
sociais, sinaliza a dicotomia interna (inner) da cultura moderna de uma vida social
partilhada em dois mundos,290 ou seja, as imagens disruptivas do contemporâneo e do
novo horizonte de expectativas da modernização material emergindo do interior da
gradativa dissolução das formas tradicionais da eticidade e da moralidade
substancialmente atrelada ao conteúdo religioso (no caso, cristão). Esse revolvimento nos
quadros da vida é o feixe da experiência da modernidade em relação à estruturação dos
valores e sua ambivalência como critérios de socialização. Em um vasto sobrevoo moral
sobre o século, no texto da edição de 1886 das duas partes de Humano, demasiado
humano, Nietzsche contrastava a agitação da época à luz da dissolução das perspectivas
(Ansichten) metafísicas que ancoravam a moral em uma essência (Wesen) do mundo e
em uma destinação fundamental das coisas, de modo que a volatilização dos contextos
tradicionais (Herkommen) sobre a vida coletiva (gebund) implicava uma “polifonia de
ímpetos” (Bestrebungen) e de motivos individuais em uma época revolvida pelo
desassossego da vida exterior.291
Efetivamente na contramão de qualquer genealogia que decompusesse os valores
do mundo moral em perspectivas historicamente situadas (tal como Nietzsche sugeria, no
texto citado, a partir da “ineficácia da metafísica no futuro”), a questão vislumbrada por
Farias Brito residia curiosamente nessa percepção de choque da fundamentação dos
valores. A dimensão problemática da modernidade, para um defensor (como o filósofo
cearense) de ancoragens essenciais da vida moral e em seus processos de educação
pressupostos,292 era o motto da vertigem moderna. Se para Farias Brito a indeterminação
do campo moral era derivada do descompasso entre as tendências da cultura objetiva e da
290 BERMAN, Marshall. The signs in the street. In: BERMAN, Marshall. Adventures in Marxism. Nova
York: Verso, 1999. 291 NIETZSCHE, Friedrich. Menschliches, Allzumenschliches: ein Buch für freie Geister. 2. Ed. Leipzig:
C. G. Naumann, 1894. p. 28, p. 43-44. (Vol. 1) 292 CARVALHO, Laerte Ramos. A formação filosófica de Farias Brito. São Paulo: EDUSP, 1977.
104
cultura intelectual à luz das necessidades de expansão vital, diagnóstico semelhante
(porém em chave teórica invertida) era partilhado por Teixeira Bastos, republicano
português e adepto do positivismo, tendo textos difundidos no Brasil. Para Bastos,
“vivemos n’uma época de transição, de effervescencia, de fermentação social”.293
Apresentando diversos dados de países americanos e europeus, o autor registrava a
sensação aterradora de que “em meio século transformou-se a face da terra”, pois
“ergueram-se cidades, ampliaram-se e engrandeceram-se outras, fizeram-se portos
artificiaes, abriram-se estradas em todas as direcções, construiram-se extensas linhas
férreas internacionaes” contando com um “um emprego exorbitante de capitaes” e um
“consumo febril”.294 Para o autor, “a anarchia moral, politica e económica, que assola a
Europa e a America, isto é, o mundo civilisado, veio por essa forma á supperação e
determinou um excitamento na marcha fatal das transformações sociaes”, tendo impactos
no mundo moral em decorrência do “espantoso desenvolvimento da industria e do
commercio”, ambos resopnsáveis pelo luxo que “augmentou extraordinariamente as
necessidades”.295 A sensação de desmanche e de decomposição de valores estáveis
parecia evidente na “dissolução dos caracteres, na corrupção das consciências”,296 na
medida em que “verdadeiro caracter d’esta crise do fim do século” era interpretado,
também, como uma experiência do choque moral derivado das transformações.
Uma tentativa de resposta ao cenário movediço, fundamentando os processos de
educação diante da vertigem moral, foi oferecida por Silva Bastos.297 O autor mobilizava
um conjunto bastante difuso de elementos a fim de indicar que, sobretudo, a “ausencia da
educação religiosa na familia e na eschola, ausencia da disciplina moral n’uma e n’outra”
e “o predominio da concepção intellectualista e racionalista herdada do seculo passsado”
indicavam um afrouxamento “parallelamente em tudo quanto dis respeito á disciplina do
caracter”.298 A posição conservadora (tradicionalista) de Silva Bastos, temendo a erosão
do campo moral como prelúdio de desagregação social, tangenciava linhas semelhantes
às posições das elites urbanas mais liberais em relação à indeterminação do horizonte
moral. Se “os espiritos cheios de pomposas noções revoltam-se contra a ordem de cousas
293 BASTOS, Francisco José Teixeira. A crise. Porto: Liv. Internacional de Ernesto Chardron, 1894. 294 BASTOS, 1894, op. cit., p. 19. 295 BASTOS, 1894, op. cit., p. 222. 296 BASTOS, 1894, op. cit., p. 449. 297 BASTOS, Silva. O papa Leão XIII: sua physionomia religiosa, politica e social. Revista Moderna,
Paris, 1 fev. 1898. 298 BASTOS, 1898, op. cit., p. 440.
105
existente”, “a civilisação moderna assemelha-se á estatua de Nabuchodonozor – cabeça
aurea, pés argillosos”.299
A experiência modernidade é a disjunção entre os valores instituídos pela
estruturação moral e suas dissoluções, tanto mediante as iluminações e a técnica do século
quanto em relação aos distúrbios sociais e políticos. Em um periódico destinado a temas
de educação no Maranhão, diversos textos de Jacques Balmès, por exemplo, enfatizavam
que “so a religião levanta o véo que cobre o berço da humanidade, e fóra do seu augusto
ensino só ha sonhos e delirios”, de modo que “a religião não nega que existam no homem
contradicções palpaveis, que não transpareçam em seu ser e em seu procedimento
monstruosas irregularidades”.300 A religião e a possibilidade de fundamentação moral das
ações, antes de uma garantia de formas de vida tradicionais, estão elas mesmas
mobilizadas como estruturas avaliativas e perceptivas do movimento do moderno.
A partir dos processos de educação, esses impasses fundamentais da cultura
moderna implicam ambivalências também das estruturas da consciência.301 Como pano
de fundo, a indeterminação da instituição moral da sociedade ecoa a insegurança e uma
espécie de terror difuso. Esse, talvez, seja o maior reflexo do sentimento de vertigem das
transformações que “estonteam os homens” em relação ao mundo moral. Nesse sentido,
O dilemma impõe-se terrivelmente tragico perante a agonia do nosso seculo: ou nos afundaremos n’um abysmo de perversão de todos os sentimentos elevados que durante seculos tem nobilitado o escol da humanidade, ou então havemos de retemperar o nosso ser physico e moral, crear-lhe novas energias para resistirmos ao inimigo economico [...] E para fazermos frente ao inimico racionalista, isto é, ao predomonio exclusivo da razão, da intelligencia e da sciencia, sobre a disciplina do caracter, do sentimento, do coração, predominio que tende a dissolver a familia, a sociedade e a humanidade.302
A mobilização dos núcleos fundamentais da estruturação social e dos processos
de educação (família) não era fortuita. Como uma análise da “perversão da personalidade
moral”, os elementos sociais desempenhavam seus papeis conforme a normatividade
pressuposta nos processos de educação da sociedade: assim, “as brutalidades do
egoismo”, “os laços da solidariedade familial” e “a miseria afflictiva de milhões de seres”
299 BASTOS, 1898, op. cit., p. 441. 300 BALMÈS, Jacques. Provas da religião catholica. Revista de Instrucção e Educação, São Luís, 20 out.
1877. 301 Cf. Capitulo 3. 302 BASTOS, 1898, op. cit., p. 442.
106
implicavam, como consequência dessa dimensão problemática do social, que “bem cedo
os mancebos vão engrossar as fileiras dos criminosos” e “as raparigas vão reforçar
estouvadamente as hostes do mundo galante, onde se perde de todo a pureza dos grandes
sentimentos, parte plastica das sociedades”. Os processos de educação e sua
fundamentação moral, antes de manifestações de uma pasmaceira apartada das águas
revoltas da modernidade capitalista, sinalizavam justamente a dimensão problemática da
modernização e sua tentativa de estabilização a partir de pressupostos valorativos da
socialização:
Que urge pois fazer? Transformar a educação nas gerações vindouras, pois isso equivale a transformar inteiramente as condições da vida moderna. Só assim se permittirá ao homem que seja mais alguma cousa do que uma simples peça do machinismo social; só assim poderemos restituir á mulher o seu papel de mã, só assim se reconstituirá a família.303
Importantes disputas sobre os sentidos dessa desestabilização moral eram visíveis
na esfera pública como horizontes de época. Propondo um evolucionismo social baseado
na “emancipação da consciencia”, o português Teófilo Braga argumentava que o “estado
de anarchia moral” era decorrente da desestruturação social dos padrões teológicos
(incapazes então de “produzir a unidade moral dos povos modernos”) e da então precária
prevalência do “poder espiritual da sciencia”, ainda não “reconhecido nos costumes”.304
O jornal brasileiro, em função de preocupações mais pragmáticas de demarcação de
posições, recorta trechos de um problema bem mais amplo tangencido por Teófilo Braga.
Em tempos de explosão dos debates sobre o lugar do poder eclesiástico em relação aos
Estados nacionais (com implicações significativas em Portugal, na Alemanha, na França
e, no caso brasileiro, com um debate avolumado pelas querelas dos anos 1870 e pelo
reposicionamento das relações da República com Roma no começo dos anos 1890),305 o
tema da estruturação moral da sociedade certamente ficava ainda mais visível.
No caso de Braga, o problema remete a uma abordagem sociológica bastante
condizente com aquele horizonte histórico, de modo que sua sistematização
sociológica,306 então, também é pensada como perspectiva de intervenção social. Não se
303 BASTOS, 1898, op. cit., p. 443. 304 BRAGA, Theophilo. O christianismo. O Lábaro, Porto Alegre, 20 mar. 1881. 305 ROSA, Lilian Oliveira. A Santa Sé e o Estado brasileiro: estratégias de inserção política da Igreja
Católica no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2015. 306 BRAGA, Theophilo. Systema de sociologia. Lisboa: Typ. de Castro & Irmão, 1884.
107
trata propriamente de uma interpretação de caráter programático. E aqui reside um ângulo
importante: as preocupações com os processos de educação e sua circulação, para além
de preceitos tópicos, estavam também inseridas nos sistemas teóricos da nascente
sociologia. Como uma espécie de diagnóstico histórico do presente,307 mapeando as
novas formas de socialização da sociedade moderna à luz do processo de racionalização,
Teófilo Braga afirmava que a “grande crise da consciência humana” tem efeito,
sobretudo, “nos deveres da moral” – base das estruturas de socialização –, de modo que
a “consciencia moderna” sistematiza uma moral independente da determinação
dogmática, mas igualmente ancorada na estrutura de prescrições como “esteio de toda a
civilisação”,308 ou seja, fundamento de gestão da vida coletiva.
Nesse sentido, entendidos como uma “disciplina das paixões”, os processos de
educação compõem uma “moral systematisada”,309 fundamentalmente relacionada a uma
estrutura de valores e sanções de “regras que dirigem acções”,310 de modo que a
conformação (como perspectiva formativa) da vida individual aos parâmetros morais de
socialização que gerem a existência social implica uma “arte de bem viver” entendida
como “justo meio entre o interesse individual e a obediencia ao conjuncto social”.311
Presente nos percursos de fundação do campo sociológico, a preocupação com os
processos de educação e a estruturação moral da sociedade diziam respeito a uma
normatividade social bastante ampla, já que, reformulando a separação oitocentista entre
instrução e educação, Teófilo Braga afirmava que “pela sciencia se reduz a Instrucção á
disciplina ou relacionação de noções; pela Moral, se funda a Educação, como uma
ampliação d’essa discilpina ou subordinação das paixões”.312 Os processos de educação,
portanto, em tempos de desestabilização dos horizontes morais, constituíam formas
fundamentais de integração e de estruturas de coesão das populações modernas. Nesse
sentido, a reunião de “todas as capacidades intellectuaes, moraes e economicas, cujo
concurso constitue a Civilisação” situa “a organisação pedagogica” da sociedade como
“a consequencia de todos os progressos, disciplinando para um fim social, e não
unicamente individual”.313
307 BERLAN, Aurélien. La fabrique des derniers hommes. Paris: La Découverte, 2012. 308 BRAGA, 1884, op. cit., p. 360. 309 BRAGA, 1884, op. cit., p. 363. 310 BRAGA, 1884, op. cit., p. 348. 311 BRAGA, 1884, op. cit., p. 365. 312 BRAGA, 1884, op. cit., p. 364. 313 BRAGA, 1884, op. cit., p. 502.
108
À luz do esquema de Teófilo Braga, um ponto fica bastante evidente: longe de
uma restrição institucional à escola ou às instituições, os processos de educação são,
também, práticas disseminadas de constituição da ordem moral revolvida pela
modernidade capitalista. Apesar de uma chave interpretativa invertida quando comparada
a um Silva Bastos, já que afastada das determinações religiosas sobre o conteúdo da
moralidade, com Teófilo Braga o diagnóstico da vertigem dos novos tempos permanece
em voga. No caso de Silva Bastos, essa percepção das “condições da vida moderna” e da
“perversão das proprias forças sociaes”, mergulhando as sociedades em um destino
coletivo e unificando sua estruturação moral a partir de uma matriz comum decorrente,
também, da “expansão vertiginosa da vida commercial e industrial moderna”, tinha uma
preocupação bastante direta: a mobilização dos processos de educação para a gestão da
vida coletiva, ou seja, das populações. Silva Bastos escreve, sobretudo, temendo os
“grandes cataclismos” e as “pavorosas convulsões sociaes” da modernidade.
Sínteses fundamentais desses medos modernos, aliás, podem ser mapeadas nas
conferências públicas a partir dos anos 1870. Noticiando o esforço brasileiro a respeito
desse “meio poderoso de derramar-se a luz” e “pôr-se o publico em communhão mais
intima com as suas cabeças na politica, e nos diversos ramos dos estudos e do progresso
humano”, um jornal ilustrado (editado em Nova York) entendia a tarefa como uma
espécie de reconfiguração ordeira da esfera pública da cidade a partir da normatividade
de sua organização moral, já que é o “bom-senso commum que, só, nos ensina qual é o
limite verdadeiro so sacrificio, e a linha que o separa do crime”, em tempos em que as
imagens de irracionalidade das multidões urbanas (a “sanha de uma plebe enfurecida”)
levavam a balanços constatando que “quasi todas as grands revoluções da humanidade
teem custado muito sangue – muitos crimes e aberrações monstruosos”.314 Enraizadas no
ideal normativo da vida urbana, portanto, as conferências públicas eram campos
sintomáticos das percepções morais e dos pressupostos dos processos de educação
inseridos na cultura moderna do fim de século.
Em uma importante preleção sobre o campo da instrução pública e seu lugar nas
sociedades modernas, Manoel Francisco Correira acreditava que “os melhoramentos, os
progressos da civilisação reclamão, se consigão pelo aperfeiçoamento do mundo moral,
e pelo benefico influxo deste sobre o mundo physico”.315 Para o autor, o desafio dos
processos de educação consistia em investigar as condições de “progredir se, ao influxo
314 A communa. O Novo Mundo, Nova York, 24 maio 1871. 315 CORREIA, Manoel Francisco. Instrucção publica. Conferências Populares, Rio de Janeiro, 1876a.
109
deleterio de doutrinas erroneas, forem abalados os fundamentos da ordem moral”. As
perturbações do século, afinal, indicavam que os “males morais” da sociedade moderna
eram justamente identificados na potencial desestabilização dos valores e na precariedade
de sua conformação pela educação da população. Nesse sentido,
É aspiração propria de um grande coração e de um nobre espirito: quando a força impéra as paixões se exacerbão, e os instinctos selvagens da natureza humana em sua expansão produzem scenas que envergonhão a humanidade, pondo em relevo a sua triste condição. Mas essa aspiração não póde converter-se em realidade sem que a regiões do mundo moral sejão cultivadas com esmero, sem que nelle se radiquem as idéas que enobrecem a consciencia, fortalecem a virtude e abrem espaçoso caminho para o cumprimento do dever.316
A preocupação com os instintos e as inclinações, evidenciando todo o fisiologismo
e a cautela diante das paixões individualistas da época, era inseparável da potencial
desestabilização moral das multidões urbanas. Para Correia, os processos de educação da
infância, como perspectivas formativas do futuro cidadão, tinham a fonte de sua narrativa
no horizonte coletivo da ideia de povo. Afinal, “tudo depende das idéas, dos sentimentos
que se gravarem na intelligencia e no coração da juventude”, de modo que “ensinai-lhe o
bem, e o homem caminhará pela estrada da virtude, devotando-se á familia e á patria.
Deixai que nelle se afrouxem os laços da moral, e não sejão reprimidas as paixões
tempestuosas”. A vida vacilante do indivíduo moderno, aqui, parece direcionada a uma
preocupação com as doutrinas materialistas e a redução da moralidade a uma dinâmica
de indivíduos auto-interessado, pois, conforme prescrevia Correia, “dizei-lhe que é
vacillante tudo que escapa á acção dos sentidos, que a materia, se posso assim exprimir-
me, é producto de si mesma; e mui diversas serão as consequencias”.317 Carregado de
ambivalências morais, o encantamento com as iluminações do século expunha o mundo
moral à indeterminação do materialismo reluzente junto às ciências e à ideologia do
progresso.
Um escritor católico como Léon Bloy, no fim de século, criticava a modernidade
capitalista (representada na imagem do triunfo burguês) justamente anatemizando o
materialismo e as transformações ideológicas de um mudo moderno refém do visível.318
O antagonismo moral entre a vida deslumbrada diante do campo pereptivo aberto pelos
316 CORREIA, 1876a, op. cit., p. 21-22. 317 CORREIA, 1876a, op. cit., p. 23. 318 BLOY, Léon. Exégèse des lieux communs. Paris: Mercure de France, 1913.
110
sentidos e o desvelamento das relações essenciais com valores revolviam a confiança
excessiva nas ambições da vida material (comumente exemplificadas pelas paixões
políticas e pelas revoluções sociais). A estruturação contraditória da cultura moderna,
construída sobre o “embate das electricidades contrarias” do qual “sahe a luz para
esclarecer o dominio interior do espirito”, é o próprio sinal problemático das tentativas
de fundamentação dos valores morais por meio dos processos de educação, na medida em
que seus efeitos “recahem sobre toda a sociedade, que soffre com o abalo, quanto mais
com o aniquilamento, dos elementos moraes que a constituem”.319
O horizonte coletivo dessa destinação essencial da moralidade adquire concretude
na medida em que é politizado. Como perspectiva de ordenamento e de coesão da vida
coletiva, a estruturação moral do mundo da vida indica que “nenhuma sociedade estará
solidamente fundada se esquecer-se do elo de subordinação que a prende ao Ente
superior”.320 Como regramento das condutas e educação dos sentimentos, os processos
de educação significam uma conformação da qual “depende a bôa educação da
mocidade”, pois “inclina os animos rudes para os actos de humanidade, e torna idoneos e
aproveitaveis para os officios publicos os espiritos estereis e infructiferos, promovendo o
culto de Deus, a dedicação para com os pais e para com a patria, e o respeito e obediencia
á autoridade legitima”.321 Esse percurso civilizatório, marcado pela expressividade da
conduta externa nos sinais da polidez, assume como referente a sanção de conteúdos
religiosos e virtudes cívicas, distintivos do “bom cidadão”, pois “não podem as nações
progredir no meio da turbulencia” tendo em vista o “deploravel dominio da communa,
que revelou o pernicioso alcance dos falsos principios”.322 Mobilizando um conjunto
importante de avaliações morais no período (das quais, certamente, os textos mais
famosos foram produzidos por Zola, Flaubert e Anatole France), como evento, a comuna
(na esteira de 1830 e 1848) alimentou uma verdadeira difusão de imaginários urbanos,323
funcionando como espécie de arquétipo das revoltas urbanas e da irracionalidade das
massas nos circuitos da vida urbana.
A tangibilidade desse conjunto de imagens em circulação implicava condições de
visibilidade das estratégias de abjeção e de aspiração conforme os contornos morais da
319 CORREIA, 1876a, op. cit., p. 24. 320 CORREIA, Manoel Francisco. O ensino moral. Conferências Populares, Rio de Janeiro, 1876b. 321 CORREIA, 1876b, op. cit., p. 93. 322 CORREIA, 1876b, op. cit., p. 94. 323 PERROT, Michelle. Os operários, a moradia e a cidade no século XIX. In: PERROT, Michelle. Os
excluídos da hitória. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Paz e Terra, 2017. ROSS, Kristin. Communal luxury . Nova York: Verso, 2015.
111
paisagem social. Certamente esse é um dos sentidos fundamentais da ambivalência do
campo de avaliação moral e dos valores desafiados pela vida urbana. Conforme o
professor Luiz Augusto dos Reis, o “sentimento esthetico” do espaço social moderno
pode ser apreendido pelas estações telegráficas, ferrovias, jardins, escolas e hospitais
como elementos que “despertam o amor pelo trabalho, o respeito á propriedade, a
admiração pela sciencia, o espirito de philantropia e caridade”.324 As imagens das
desordens e do desvalimento, no entanto, colocam os imperativos de regularidade moral
em xeque, evidenciando o horizonte problemático da vida moderna por meio do déficit
moral e dos revolvimentos políticos e sociais. No caso de Correia, o contraste entre a
normatividade dos processos de educação e a tirania da satisfação material e das
multidões estrutura o regime perceptivo da vida moderna como a experiência de uma
dissociação da consciência moral fraturada pelo choque de contrários.
Seja como retorno à violência primitiva, um delírio coletivo, a monstruosidade
das massas ou uma irracionalidade que regride os caminhos de emancipação moral da
vida moderna, a produção da ideologia estigmatiza o conflito social por meio da
multiplicação de imagens abjetas emergentes dos ímpetos desregulados e da imaginação
delirante, nublando o campo do juízo e do comedimento moral, de modo que, conforme
uma nota de 1757 da estética de Burke, “so far as the imagination and the passions are
concerned, I believe it true, that the reason is little consulted”.325 O compêndio escolar de
Fernandes Pinheiro carregava a sensibilidade política ao indicar que, na formação do
contemporâneo, as “occurrencias que diariamente se passão a nossos olhos” aceleram as
condições de vida da “moderna sociedade, na qual, como diz Babinet, cada decennio
corresponde a um século dos priscos annaes, na época do vapor e da electricidade”. O
revolvimento subjacente ao mundo moderno era, sobretudo, sintoma de uma
desorganização moral. O autor-professor, por exemplo, ensinava que “as idéas
socialistas” proliferavam junto ao “estado revolto” das sociedades, buscando “o apoio das
massas com o favor da oca phrase organisação do trabalho” e por meio de “pensamento
sinistro” e do “appello ás más paixões” e aos “instinctos ignóbeis da populaça”.326 Uma
brochura portuguesa de J. J. Rodrigues de Freitas Junior colocava a “questão social” no
centro das lutas da vida moderna ao caracterizar a comuna e o internacionalismo socialista
324 REIS, Luiz Augusto. O ensino publico primario em Portugal, Hespanha, França e Belgica. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. p.571. 325 BURKE, Edmund. A philosophical enquiry into the sublime and beautiful . Londres: Penguin, 2004.
p. 77. 326 PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Resumo da historia contemporânea desde 1815 até 1865.
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866. p. 132.
112
como “desvarios” e “extravagantes ideias [que] se desenvolveram nas trevas”, incitando
as turbas a “loucamente procurarem cruel vingança”: as “luctas do pensamento formaram
monstruosos productos intellectuaes”, de modo que “este desequilibrio horroroso e cruel”
expressa uma sociedade que “applicou-se aos interesses materiaes, e o progresso
espiritual não os acompanhou proporcionalmente”.327
Em um desenho mais amplo, a associação do sentimento aterrador das revoluções
modernas com a volatilidade dos quadros morais ocupava as linhas mais fundamentais
das leitutas moralizantes do ensino de história. Em texto publicado para os exames do
Imperial Colégio de Pedro II, Manuel Thomaz Alves Nogueira ensinava que, a partir do
século XVIII, a “propaganda operou uma revolução nos espíritos antes de arrebentar a
revolução material”, de modo que as corrupções e o “indifferentismo” foram responsáveis
pelo alastramento das desordens revolucionárias, deixando os povos “expostos ao
contagio do erro, que lhes era apresentado em toda a força da impunidade moral e com
toda as seducções da eloquencia”.328 A preparação do terreno “para a grande catastrophe”,
então, lançou a regularidade moral (família, virtudes e propriedade) aos vórtices que
“agitaram profundamente os espiritos” por meio do “rancor implacavel” que levou a
devaneios de “completo desarranjo” das massas. Imagens produzidas em coerência com
as leituras mais tradicionalistas do catolicismo do fim de século: a tradução e adaptação
do texto de Anthèlme Goud,329 em linha semelhante às lições de Nogueira, ensinava que
a religião “civilisou o mundo, formou a sociedade e a manteve contra os ataques do
despotismo, da barbarie, da ignorancia, das revoluções dos seculos e das paixões
humanas”, de modo que os elementos fundamentais da vida moral, como vetores para
“reconstruir a ordem social e governar os povos”, eram significativamente chacoalhados
na gênese da modernidade. Assim, “o seculo XIX é o echo do precedente”, pois “sob o
aspecto politico vê-se a revolução em permanencia na sociedade” assombrando as
promessas de ordem e a estabilidade dos valores.
Diagnósticos bastante difundidos no período também reforçavam essa imagem
dos livros didáticos. A brochura do padre português José Joaquim Senna Freitas,
afirmando que “ha cem annos que as portas de Jano mal se fecham um anno”, temia a
“sociedade horrivelmente desmantelada pelo vulcão revolucionario” e, sobretudo, a
327 FREITAS JUNIOR, J. J. Rodrigues. A revolução social: analyse das doutrinas da Associação
Internacional dos Trabalhadores. Porto: Typ. do Commercio do Porto, 1872. p. 80, p. 136. 328 NOGUEIRA, Manuel Thomaz Alves. Compendio de historia moderna. Rio de Janeiro: Typ. do
Apostolo, 1868. 329 GOUD, Anthèlme. Historia ecclesiastica reduzida a compendio. Rio de Janeiro: Garnier, 1873.
113
percepção aterradora de “evolução constante dos tempos”: por isso, “as nações
despenham-se no abysmo das mais espantosas revoluções e no abysmo mais profundo
ainda dos principios que tudo atrophiam e nada fertilisam”, de modo que “ao choque
formidavel dos cataclismos politicos quebra-se e desapparece uma d’essas formas, para
ser substituida por uma nova”.330 Os registros de temor e terror diante dos abismos morais
abertos pela modernidade adquiriam tonalidades diversas nos livros em circulação.
Veiculando um espanto ideológico semelhante (talvez um pouco mais despido do ferrão
tradicionalista de Nogueira), outro livro escolar afirmava que o rompimento
revolucionário era “o maior drama dos tempos modernos”, abrindo a carreira vertiginosa
da modernidade, “n’um espaço de tempo tão curto”, a uma “myteriosa correlação que
existe entre os actos e suas consequencias” que “engendraram mais depressa as faltas, as
faltas os crimes e os crimes o castigo”.331 A urdidura da história universal é a “necessidade
de liberdade” e a interdependência dos horizontes apresentava a história como um espelho
dos desenganos morais na trajetória fantasmagórica do moderno.
Entendidos no registro da ruptura, os espectros do torvelinho moderno
alimentavam imaginários e enraizavam apreensões quanto à dinâmica do tempo. Saturada
de ideologia, a temporalidade tornava o contemporâneo objeto de cisões e potenciais
irrupções da abjeção política. Duas questões podem ser depreendidas dessa conflitividade
exposta na gênese do mundo moderno: por um lado, se o ensino da história desdobrava
sobre o presente uma continuidade essencial em relação ao passado e seus exemplos,332
os critérios de abjeção moral referentes aos horizontes revolucionários mobilizavam
sentimentos ancorados na perversidade da subversão da ordem de coisas;333 por outro
lado, além do movimento e das condições de gestão da população (à luz desse
desprendimento das massas),334 a difusão das imagens de desordens e seus juízos sugeria
condições de partilha do campo ideológico em contextos transnacionais.
Essa partilha do sensível,335 delimitando narrativas do político fortemente
carregadas pelos quadros de avaliação moral e imaginários em circulação, condiciona
um conjunto de considerações de Manoel Francisco Correia, que vaticinava: “eliminai a
330 FREITAS, José Joaquim Senna. Discurso sobre a religião catholica em face da politica. Rio de
Janeiro: Garnier, 1875. 331 PINTO, A. M. Pontos de historia moderna organizados segundo o novíssimo programma dos
exames geraes na instrucção publica. 2. Ed. Rio de Janeiro: Cruz Coutinho, [18--]. 332 NARITA, Felipe Ziotti. O século e o Império: tempo, história e religião no Segundo Reinado. Curitiba:
Appris, Prismas, 2014. (Col. Ciências Sociais) 333 HIRSCHMAN, Albert. The rhetoric of reaction. Cambridge: Harvard University Press, 1991. 334 Cf. Capítulo 4. 335 RANCIÈRE, Jacques. The politics of aesthetics. Trad. Gabriel Rockhill. Nova York: Continuum, 2004.
114
idéa do Creador, e tudo ficará confuso no cahos da escuridão”.336 Se “os germens
destruidores da felicidade publica apresentão-se sob multiplos aspectos, e alguns com
seductoras apparencias”, “a união da instrucção e da virtude tal é o alvo final que deve
prender a attenção das nações. Para realizal-a, preciso é olhar fixamente para a melhor
educação da infancia e da mocidade, preparando-lhes a consciencia pelo ensino moral”.337
Se a educação dos futuros cidadãos é pensada no horizonte coletivo de uma educação do
povo, o problema da população e da vida coletiva é igualmente um problema de gestão
do conflito social. O autor, nesse sentido, denunciava as
[...] perniciosas doutrinas perturbadoras da ordem moral; redusi tudo aos interesses materiaes e corporeos, que apagão os nobres estimulos, mas buscão abrigar-se á sombra sinistra de uma falsa comquanto pretenciosa sciencia; e vereis a sociedade, dominada pela incredulidade, agitada pela turbulencia, vai ter na politica á communa, e nas relações privadas á depravação.338
Como processos de educação, a gestão da população significava a mobilização de
diversos elementos do espaço social. Liberato Barroso, que desde os anos 1860 redigia
trabalhos importantes sobre o campo da instrução pública no Brasil, acreditava que “é o
seculo XIX, que na phrase de Julio Simon é o seculo da escola, e que será tambem o
seculo da educação, eu o espero, não chegará ao termo de sua evolução antes de ter
consagrado a missão da mãi de família”.339 Em um projeto que pretendia “diffundir a
instrucção por todas as classes da sociedade” e “educar a infancia”, a mobilização da
família e a interpretação moral da mulher (como mãe), formando núcleos sociológicos
fundamentais da rotinização do campo moral no período, era parte de um diagnóstico
mais amplo sobre o significado da “civilisação moderna” e a garantia de sua estabilidade.
Para o autor, ecoando um vasto conjunto de preocupações morais do período, “é somente
pela educação moral dos vossos filhos que se póde operar uma salutar revolução nos
costumes, e destruir essa triste aberração moral”.340 Como suporte das estruturas de
coesão da população e de mecanismos de solidariedade no social, a família e seu núcleo
moral na mulher representavam mecanismos importantes na reprodução de parâmetros
336 CORREIA, 1876b, op. cit., p. 99. 337 CORREIA, 1876b, op. cit., p. 100. 338 CORREIA, 1876b, op. cit., p. 101. 339 BARROSO, Liberato. A educação da mulher (I). Conferências Populares, Rio de Janeiro, 1876a. 340 BARROSO, Liberato. A educação da mulher (III). Conferências Populares, Rio de Janeiro, 1876b.
115
normativos dos processos de educação (reiterando os próprios papeis sociais identificados
em chave moral aos indivíduos na socialização).
Gostaria de depreender dois argumentos desse problema à luz dos processos de
educação. O primeiro diz respeito a uma ênfase civilizadora dos valores ancorados na
família e na figura moral da mulher. Américo Luz, por exemplo, enfatizava que, em
relação ao papel da mulher, “o christianismo reabilitou-a dando-lhe a mão, apresentou-a
á sociedade moderna que, cercando-se de respeito e veneração, honrou-a nessa triplice
manifestação de filho, espçosa e mãe” responsável por “essa educação ameiga o espirito
da creança, torna-o amoravel, desenvolve as boas tendencias e de um modo suave corrige
os defeitos”.341 Colocando o problema em perspectiva, a estruturação moral da sociedade
significava uma contenção dos ímpetos, de modo que a cultura moderna é entendida como
herdeira de um longo processo de elaboração dos costumes e dos sentimentos educados.
Miguel Vieira Ferreira, um dos mais importantes nomes dos estertores da propaganda
republicana no Brasil, enfatizava a ruptura do cristianismo no curso moral de
aperfeiçoamento da sociedade civil e das maneiras, afirmando que o indivíduo “só,
isolado no mundo seria fraco para domar seus impetos”. Em seus cursos dedicados a
mobilizar a causa da “educação popular” e a difusão das luzes, o autor indicava que, como
herança dirigida “a este seculo de luzes, a este seculo XIX”, “a consciencia rectifica a
intelligencia”, de modo que, neste esforço agonístico diante da vertigem dos valores, o
indivíduo singular
Poderia luctar contra o mundo exterior, poderia defender-se dos brutos; mas seria fraco contra a sua propria força, contra a força de suas paixões [...] Falta no organismo humano e em toda a natureza um moderador do coração, uma força que o dirija, contenha e purifique no seu trabalho; a intelligencia e a consciencia são insufficientes, não produzem sentimentos do mesmo genero, só o moderam em parte. Assim como a costella protege o coração, centro material das paixões, assim Moysés collocou a mulher ao lado do homem para o auxiliar, o proteger contra esse mesmo mundo exterior e interior, para defendel-o ahi onde se acha fraca e impotente a acção da sua força material. O homem defende o physico, a mulher defende o moral. A intelligencia não é mais nobre que a consciencia, nenhuma é inferior á outra: a intelligencia sem a consciencia é a loucura. A mulher é a vida, a fonte de onde emana toda a especie humana: a mulher foi collocada por Deus ao lado do coração
341 LUZ, Americo. A mulher e a infancia. O Echo Social, Rio de Janeiro, 13 abr. 1879.
116
do filho e do esposo para acalmar-lhe a violencia, moderar-lhe o impulso, contel-o no justo limite.342
A segunda dimensão é associada ao próprio horizonte de indeterminação diante
da experiência da modernidade. Um texto bastante difundido junto às preocupações com
a educação no período, originalmente publicado na Ilustração do Brasil, condenava as
“mais extravagantes theorias” modernas sobre a “sociedade brasileira”, “ja ferida de
morte por elementos de dissolução”, de modo que “essas pregações incendiarias e
exageradas, nas quaes prega-se o atheismo, a destruição da familia e dos mais nobres e
elevados principios respeitados e considerados por todos”, volatilizavam a estruturação
moral da sociedade no campo da família.343 Sob os impactos dos novos tempos, a ameaça
de dissolução do lugar de referenciais sociológicos básicos de reprodução social
circundava os critérios de reflexão sobre a sociedade nacional.
Além das diversas vozes civis mobilizadas nesta pesquisa, o diagnóstico entre
eclesiásticos era igualmente severo diante da indeterminação moderna. Vistas em um
movimento de conjunto, em um arco que compreende da Syllabus de Pio IX (que Rui
Barbosa chamava de “tábua da lei ultramontana”), atravessa as posições de dom Antonio
de Macedo Costa (vide seu ataque virulento contra o “liberalismo moderno” e o
“aniquilamento da razão e da consciencia” em Direito contra o direito de 1874)344 e
desemboca no diagnóstico (e na crítica) da modernidade da Rerum novarum de Leão
XIII, 345 posições fundamentais de Roma e de intelectuais comprometidos com o
catolicismo em relação ao mundo moderno foram assumidas (no Brasil, um exemplo era
o jornal O Apóstolo, já no fim de século, além de uma vasta recepção do repertório do
catolicismo conservador desde os anos 1840 e 1850).346 É nesse cenário que podem ser
lidas as propostas de um Juan Donoso Cortés, teórico do conservadorismo moderno muito
difundido no Brasil, condenando o racionalismo “nas regiões politicas e sociaes para ahi
lançar a desordem e a perturbação”, “fazendo, como por encanto, brotar de cada erro um
conflicto, de cada heresia uma revolução e uma catastrophe gigantesca de cada uma de
342 FERREIRA, Miguel Vieira. Eschola do povo. Rio de Janeiro: Typographia da Republica, 1873. p. 123-
124. (Vol. 2) 343 As novissimas ideias. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 13 out. 1877. 344 COSTA, Antonio Macedo. Direito contra o direito ou o Estado sobre tudo. Rio de Janeiro: Typ. do
Apostolo, 1874. p. 8-13. 345 MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história. Maringá: EDUEM, 2004. 346 SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo
do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
117
suas orgulhosas negações”.347 Justamente como pedra angular na organização dos
processos de educação nas sociedades modernas, nos textos do teórico espanhol nos anos
1830, a família aparecia como baliza contra os inmóviles abismos das turbulências morais
da cultura moderna.348
O padre J. Ramos Filho, nesse sentido, ensinava que “o que destroe a religião
derruba por sua base toda a sociedade”, de modo que “o que observa-se no seio da
sociedade brazileira, illuminada pelas novas luzes do progresso, é um pessimo
symptoma”.349 Argumentando sobre as implicações sociais da dissolução dos núcleos
morais fundamentais da sociedade, Ramos Filho afirmava que o “sentimento religioso é
o perfume mysterioro que preserva de corrupção o espirito da familia”, vaticinando:
Desgraçada da sociedade brazileira no dia em que penetrar em seu seio o vento glacial da incredulidade! No momento em que ambos desapparecem, surgirão os dias sombrios da decadencia e não se ouvirá por toda a parte senão o ruido da aniquilação de uma sociedade em dissolução. São passados vinte anos que Guizot predisse a catastrophe da França, em 1870. É preciso, dizi elle, fazer estimular com as paixões viris a parte affectuosa da naturesa humana, todos os santos laços, que unem os corações na identidade do destino
As perspectivas de normatividade social por meio dos processos de educação
demonstram justamente a disseminação do campo moral na estruturação da modernidade.
A própria instituição do matrimônio revelava um conjunto de valores instituídos na
medida em que, conforme Liberato Barroso, o “casamento não foi o resultado de uma
inclinação dos sentidos ou de uma sorpresa da imaginação, ou de um capricho ephemero
da vontade”.350 A figuração moral da família está inscrita nesse amplo conjunto de
percepções da vida moderna. Além da circulação significativa de repertórios temáticos
nesse sentido (vide, nos impressos, a presença de textos e menções a Jean Bouilly,
Necker, Staël, Leon Duchesne etc.), o problema sublinhava diversos papeis morais da
produção do vínculo social. Inseparável das percepções morais sobre a sociedade e seus
processos de educação, portanto, a unidade sociológica da família é uma espécie de esteio
da socialização na medida em que é entendida como a matriz das estruturas intersubjetivas
347 CORTÉS, Juan Donoso. Do principio gerador dos mais graves erros dos nossos dias. Revista de
Instrucção e Educação, São Luis, 13 out. 1877. 348 CORTÉS, Juan Donoso. Lecciones de derecho político pronunciadas en el Ateneo de Madrid. In:
CORTÉS, Juan Donoso. Obras de Juan Donoso Cortés. Madri: Tejado, 1854. p. 269. (Vol. 1) 349 RAMOS FILHO, J. Os templos catholicos. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 13 out. 1877. 350 BARROSO, 1876b, op. cit., p. 74.
118
e como instância conservadora de prescrições morais da sociedade (abrangendo desde o
problema do matrimônio até os mecanismos de disciplina e de obediência).
Existe, por exemplo, um Balzac da plaisanterie, talvez subestimado por muitos
estudos (pois certamente um pouco fora do alcance de alguns outros volumes da
monumental La comédie humaine), preocupado com uma fisiologia do casamento,
apresentando em texto de 1829 um curioso apanhado de considerações morais sobre o
tema. O autor parece muito menos preocupado com uma análise cerimoniosa sobre o
papel da instituição na ordem social e na civilização do que em oferecer um conjunto de
aforismos e meditações sobre a polícia conjugal para evitar o spleen moral na vida prática.
Embora despidas do puritanismo moral e da gravidade dos collets-montés da época, as
considerações do autor enfatizavam que o “respeito geral” visado pelo casamento e pela
estabilização da família já implicava um juízo moral sobre o conjunto entendido em suas
dimensões moral (instituição social), civil (contrato entre indivíduos) e política (lei).
Nesse sentido, considerando a exaltação das paixões (tempêtes) e os comportamentos
prescritos pela boa sociedade, o papel moral da mulher é sempre realçado como mãe –
núcleo, portanto, da educação dos sentimentos e dos preceitos fundamentais dos futuros
cidadãos.351
A documentação de época repete à exaustão a posição da família junto à
moralização das atividades sociais (a partir dos lugares da mãe e do matrimônio), em uma
visão que dialoga com o excepcionalismo moral do mundo moderno em relação aos afetos
como formas de abrandamento das interações sociais herdeiras do cristianismo e,
sobretudo, como uma relação mais difusa com valores do religioso a partir das
possibilidades de uma hermenêutica dos comportamentos. A rigor, se o cristianismo não
é o inventor dos mecanismos de contenção, de temperança e da atividade sexual no
interior da família (valores que implicam uma intricada relação entre a formação da moral
cristã e o mundo greco-romano), a religião conferiu uma amplitude singular ao campo da
moralidade ao vinculá-la ao logos cristão (enfatizando a relação com a carne, a
concupiscência e o desejo), tornando o indivíduo um agente moral de seus atos.352 Essa
relação com valores configura uma art de vivre na medida em que, como possibilidade
de interpretação e codificação de condutas (em uma longa entrevista de 1983, Foucault
falava de uma “ontologia histórica de nossas relações com a moral”), repõe no percurso
moral nucleado na família e na célula matrimonial um mecanismo generativo de ações
351 BALZAC, Honoré. Physiologie du marriage. Paris: Gallimard, 1971. p. 85, p. 147-148. 352 FOUCAULT, Michel. Les aveux de la chair. Paris: Gallimard, 2018. p. 296-299.
119
morais dos indivíduos para governo de si e dos outros. Nesse sentido, baseada na
capacidade de universalização dos preceitos e das prescrições, a gramática moral do
mundo cristão generaliza uma economia da continência no interior da reprodução moral
da família. Esse tipo de racionalização da vida educada realçava campos mais amplos de
gestão, assumindo a ordem da família como origem e condição de policiamento das
estruturas de vida civil.
Como gestão moral da cidade e da população, prescrições fundamentais à família
e à mãe eram pensadas no sentido da aspiração à regularidade diante das inconstâncias da
vida modena. Pires de Almeida, em uma série de artigos publicados no sofisticado
periódico do dr. Carlos Costa, defendia que, como “necessidade social”, “é o laço moral
e a salvaguarda da sociedade; é o casamento que estabelece a familia, e a une, que
augmenta a força moral dos Estados, e concorre para o augmento da população... acto
puramente moral”.353 Trata-se de um quadro em que considerações higiênicas e
prescrições morais organizavam o mesmo suporte da moralidade exigido e desafiado pela
vida urbana. Afinal, “na roça, onde a vida é muito outra, as senhoras não trocam o dia
pela noite, nem se entregam a esses prazeres que põem em contingencia a sensibilidade
nervosa”, de modo que a calmaria da vida no campo é “o complemento da sua existencia
physica e da sua missão moral”. As “distracções moraes” e o regime perceptivo de
“perturbação nervosa” da vida urbana, contudo, desafiavam o campo moral na medida
em que “as senhoras que vivem, porém, nas cidades, se não podem ter a mesma vida
calma, tranquilla e ao mesmo tempo laboriosa e vivaz”.354
Em meio à descontinuidade dos cenários da vida urbana e à exposição de condutas
que desafiavam os conteúdos do campo da moralidade, a educação da mãe de família era
o esteio da “vida moral e social”, tendo em vista que “na seriação dos elementos de um
acto volitivo entram em forte contribuição os conhecimentos e sentimentos”. A diferença
dos “actos vingativos do homem bruto e do homem educado”, afinal, eram temas
vinculados à tranquilidade pública nas aglomerações.355 Nesse sentido, o periódico do dr.
Carlos Costa veiculava até mesmo Gustave Le Bon, teórico da psicologia das massas e
do espanto moral diante das multidões urbanas, que estava preocupado, no limite, com a
“natureza do homem”, “seus instinctos” e “suas paixões” diante das condições de
aglomeração moderna. Le Bon prescrevia “instruir as massas, guiar as multidões”, uma
353 ALMEIDA, Pires. O casamento. A Mãi de Familia, Rio de Janeiro, 31 dez. 1884. 354 ALMEIDA, Pires. Hygiene da mulher pejada. A Mãi de Familia, Rio de Janeiro, 1 abr. 1883. 355 E. V. Educação da mulher. A Mãi de Familia, Rio de Janeiro, 15 abr. 1885.
120
vez que o “homem pode aperfeiçoar-se continuamente”, tendo em vista que “os
desastrosos annos de 1870-1871 e a terrivel crise social que a seguiu provaram aos
espiritos mais cegos os perigos da ignorancia”.356 É como origem das formas de gestão
da população que a mobilização da família pode ser analisada, uma vez que esse elemento
de coesão da vida coletiva era o anteamparo contra o crescente processo de
individualização e dissociação do fim de século.
Reagindo a esse problema, Alberto Salles acreditava que a família instituía “a
verdadeira unidade social” na medida em que organizava os processos de educação
“accentuando o typo definitivo das organisações sociaes pacificas e industriaes”. Contra
a “extrema anarchia intellectual e moral” da modernidade e os “elementos dissolventes”
que ameaçavam “a completa desaggregação do corpo social”, a educação dos sentimentos
no núcleo familiar produz “as nobres affeições que distinguem a nossa natureza moral”,
de modo que “a destinação moral da familia consiste principalmente no aperfeiçoamento
constante de nossos instinctos mais elevados, de modo a tornar cada vez mais energicos
e mais intensos os nossos sentimentos altruistas, e a diminuir parallelamente a energia de
nossos sentimentos egoista”.357 Como narrativa de instituição da vida coletiva, portanto,
o caráter de um povo e a gestão da população eram componentes das “influencias moraes
que contribuem para o progresso social” e os “costumes de um povo”, conforme o
professor Augusto Cony.358 A educação moral “é sobretudo realçando a dignidade
humana que derrama seus salutares beneficios; tirando o homem do misero estado de
inferioridade a que o tem condemnado a ignorancia, eleva-o a seus proprios olhos e
permitte ver entre-abrir-se diante de si o horisonte do saber e da intelligencia”, de modo
que a “missão civilisadora” da mãe e da família é pensada justamente nesse contexto.
Para o autor,
É só no seio da familia, ao influxo das crenças religiosas que se fórma o coração humano, e adquire o homem esse amor ao bem, essa dedicação ao dever, que ennobrece a instrucção e abre ao desenvolvimento do espirito e aos esforços da actividade os vastos campos das conquistas sociaes. Esta verdade tem sido desconhecida em nosso paiz; e o abandono da educação tem produzido resultados que estão patentes a todos os olhos, que todos vêm e apalpam. As escolas não educam, instruem. Não quer isto dizer que a educação s enão deva
356 LE BON, Gustave. Educação. A Mãi de Familia, Rio de Janeiro, 31 maio. 1884. 357 SALLES, Alberto. Ensaio sobre a moderna concepção do direito. São Paulo: Typographia da
Província, 1885. p. 187-191. 358 CONY, Augusto. Mais uma conferencia. Instrucção Nacional, Rio de Janeiro, 1873.
121
ahi desenvolver e completar; mas que os principios da educação, o germen moral que a escola deve cultivar e aperfeiçoar, o homem recebe no lar domestico, no seio da familia. O mestre é impotente para formar o caracter: é uma verdade que a experiencia de todos os povos e de todos os tempos demonstra. Essa frequente aberração de um caracter impuro e corrompido, ligado a uma intelligencia robusta e rica de conhecimentos não póde ter outra explicação. A mãi de familia e o mestre, eis o segredo da regeranação da moralidade no povo brazileiro.
O projeto de emancipação moral dos indivíduos pelo batismo dos processos de
educação está situado na garantia de ordem e de polícia dos costumes. Se a difusão das
luzes “derrama os beneficios da educação na sociedade”, “a arte de formar homens de
bem tem seu apoio natural na mãi de familia”, de modo que os valores da socialização (a
probidade, o justo e o bem etc.) tornam os processos de educação uma “condição sine qua
non da vida e da sociedade”, funcionando “para a civilisação como o ar e o alimento estão
para o corpo”.359 Uma série de artigos de Anália Franco, nome importante da
interiorização de projetos de moralização e educação no período, é sintomática nesse
sentido. A autora acreditava que, “neste seculo activo, questionador e positivo, cujos
proressos nos fazem conceber as mais lisongeiras esperanças sobre o futuro”, “a
instrucção por si só não basta”, pois “a incredulidade entrou nas cousas da terra”,
defendendo, assim, as “armas poderosas d’uma educação moral e religiosa, profunda e
inflexivel ás agruras da vida”.360 A superioridade dos preceitos de educação sobre o
estímulo das inteligências decorrentes da instrução era, sobretudo, a prioridade dos
“nobres instinctos que engrandecem ao homem” com o “selo indelevel das virtudes que
lhe forem incutidas”, de modo que “québra com affectos a rigidez das paixões fogosas e
matiza a sociedade humana com uns realces de condescendencia mutua”.361
A própria diferenciação oitocentista entre educação e instrução, aliás, incorpora
toda essa lógica social da moralização em meio à desestabilização dos horizontes
valorativos. Preocupado com a formação dos futuros cidadãos, um texto de M. Carneiro
indica que a educação é dedicada a “formar-lhes o coração, de modo que se tornem bons,
polidos, morigerados e bem comportados”, ao passo que “instruir quer dizer dilatar-lhes
a esphera da mentalidade, lubilitando-os a mais altos commetimentos”.362 Derivados da
regularidade estabelecida junto ao núcleo familiar, os processos de educação significam
359 H. Influencia da mãi na sociedade. A Mãi de Familia, Rio de Janeiro, 1 jun. 1881. 360 FRANCO, Analia. Os filhos. A Familia , São Paulo, 8 dez. 1888. 361 FRANCO, Analia. As maes. A Familia , São Paulo, 18 nov. 1888. 362 CARNEIRO, M. Instrucção pueril. Revista Moderna, São Paulo, 13 out. 1893.
122
a possibilidade de ampliação, por meio de estruturas de decoro e máximas da socialização,
das formas de reconhecimento da vida coletiva e suas origens morais contra a dissociação
e a vertigem moderna.
Comentando as ideias de Aimé Martin e de madame Bernier, Anália Franco
oferecia um diagnóstico de regeneração moral de uma época em que “o que constitue hoje
a educação é o parecer, e não o ser”, entendo os “males que affligem a sociedade” como
tendências que corrompem sua estruturação moral e especialmente “affrouxam os laços
da familia” – assim, a “decadencia moral d’esta epocha, em que vê-se gradualmente ir-se
extinguindo do coração do povo a confiança na crença piedosa, significa o império “em
que a unica paixão predominante é accumular riquezas, d’onde resultam esse egoismo
marmoreo”. No mesmo espírito, Isabel Dillon considerava que “educar é estabelecer e
constituir costumes que se amoldem á moral, quer do individuo, quer para aquelles com
quem esse individuo tem impreterivelmente de conviver”, condenando “na Russia o
nihilismo [que] uriundou-se” do desprezo pela figura moral da mulher e entendendo a
vida coletiva como destinação final dos processos de educação, ou seja, “a phalange
heroica das grandesas no organisar da força e dos triumphos do povo”.363 A ampla
transferência de repertórios (imagens, valores, excertos etc.) e materiais (livros didáticos
traduzidos e adaptador, por exemplo) no período, assumindo como pressuposto os
circuitos da vida urbana e a dinâmica das esferas de circulação, evidencia significações
importantes da ressemantização de ideias nos contextos particulares do sistema-mundo.
Nas páginas da revista Educação e Ensino, coordenada pela diretoria geral da
instrução pública e pela administração do Pedagogium, Manoel Bomfim dirigiu uma
crítica áspera ao campo da instrução pública no Brasil.364 O escritor afirmava que os
processos de educação eram baseados em “um material de importação, arranjado por
industriosos com um fim puramente commercial, alheios e indifferentes, em absoluto, ao
nosso meio e ás nossas cousas”, de modo que, como consequência desse processo,
“tambem a parte moral e intellectual do ensino não é feita de accordo com as nossas idéas,
tradições, costumes e necessidades” – “cingimo-nos a uma copia servil e inassimilada do
que se pratica no estrangeiro”. Certamente, Bomfim não falava sozinho e encontrava
respaldo, além das falas de professores do século XIX,365 nas próprias preocupações de
ministros (desde a época do Império), como Rodolfo Dantas, ou nas penas de intelectuais
363 DILLON, Isabel. Influencia da mulher na educação social. A Familia , São Paulo, 18 nov. 1888. 364 BOMFIM, Manoel. Nacionalisação da escola. Educação e Ensino, Rio de Janeiro, jul. 1897. 365 FRAZÃO, Manoel Pereira. Cartas do professor da roça. Rio de Janeiro: Typ. de Paula Brito, 1864.
123
como José Veríssimo e Silvio Romero. A rigor, a polêmica é enorme e tangencia um
ponto fundamental desta pesquisa.
A presença de materiais e temáticas estrangeiras nas perspectivas formativas
diluídas junto aos processos de educação sem dúvida era imensa no Brasil (a bem da
verdade, não apenas no Brasil). Contudo, interpretando o problema a partir da chave
cópia/imitação, Bomfim perde de vista as mediações dessas práticas culturais que,
movimentadas pelas esferas de circulação no período, estruturavam nexos e novas
semânticas conforme os contextos de recepção. No limite, o raciocínio de Bomfim ecoa
uma sensação bastante presente, especialmente a partir do último quartel do século XIX,
de um entendimento da formação da América Latina no registro de suas faltas e de sua
incompletude histórico-sociológica. Esse é o quadro presente, por exemplo, no célebre
livro do fim dos anos 1880 de Eugenio Maria de Hostos, que condicionava a estruturação
moral das sociedades latino-americanas a uma longa experiência da inautenticidade: uma
vida cultural incapaz, portanto, de acompanhar o processo de racionalização da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos e, assim, constituir parâmetros de modernidade na região
– afinal, civilización es racionalización e produção de auto-consciência (conscifacción),
como apregoava Hostos.366 Creio que alguns problemas teóricos estão sobrepostos a essa
vasta carreira de argumentos e gostaria de aproveitar o debate aberto para, inclusive,
esclarecer a posição da pesquisa em relação ao tema.
Tendo em vista os próprios debates da teoria social na América Latina
especialmente a partir dos anos 1930, esse problema da “inassimilação” ganhou contornos
ainda mais amplos no rico desenvolvimento da história das ideias e da história intelectual
no continente. A partir desse ângulo, na esteira de uma longa tradição que remete às
reflexões fundadoras de Octavio Paz, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Caso,
Leopoldo Zea, Darcy Ribeiro, João Cruz Costa, Oliveira Vianna, Francisco Miró Quesada
Cantuarias e Guillermo Francovich Salazar, o problema das ideias, a consciência da
singularidade latino-americana e seus laços (sincronias e dissincronias) com o
desenvolvimento moderno estiveram no centro do problema. Pensando a questão
especialmente a partir do caso brasileiro (foco desta pesquisa), o conjunto de impressões
(presentes na segunda metade do século XIX e início do XX) e as diversas teorias sobre
a “importação de ideias” (desenvolvidas a partir dos anos 1930) conheceram um momento
importante com a perspectiva sociológica de Roberto Schwarz. Baseado em uma prosa
366 HOSTOS, Eugenio Maria. Moral social. República Dominicana: Julio Postigo e Hijos, 1968.
124
elegante e oferecendo uma visão dialética do problema das ideias e de sua “importação”
(ou seu “lugar”), Schwarz conferiu sofisticação à crítica marxista no contexto do regime
militar junto a esse tema candente nas ciências sociais (particularmente caro ao Brasil dos
anos 1960 e 1970, à luz das experiências e dos debates a respeito do nacional, do popular,
da cultura nacional etc.).
Enfatizando o “caráter postiço e inautêntico da vida cultural”, Schwarz elaborou
uma explicação estrutural do Brasil oitocentista a partir do revestimento ideológico e de
um “sentimento de pastiche indigno” na vida cultural.367 Para Schwarz, como cultura
ornamental ou caráter postiço de um inautêntico verniz civilizado em meio a uma
formação social de forte legado escravista e rural, há “dois Brasis” cindidos – ou seja, um
lado cosmopolita que mimetiza superficialmente o conteúdo do universalismo burguês e
está atualizado ao dernier cri da civilização ocidental (parlamento, vida urbana,
liberdades civis, imprensa etc.) e um lado arcaico carregando as pesadas heranças
coloniais (escravismo, latifúndio, mandonismo etc.) como “traços em que se vê ou
advinha a Colônia”.368 A malaise da inautenticidade, então, não está propriamente na
cópia, mas na estrutura social (de uma sociedade de classes que carrega o fardo das
heranças coloniais) subjacente à importação – processo que, para Schwarz, funda o
discurso do progresso, da civilização e da cultura moderna em uma lógica de significados
pálidos ou apenas parciais: incapazes de realizar o moderno. Nesse sentido, o caráter
“postiço” das ideias modernas em uma periferia é buscado em uma espécie de
deslocamento das ideologias na lógica de classes subjacente à “importação” de ideias e
das formas (lembrando que o eixo da reflexão de Schwarz é a prosa machadiana, de modo
que o autor tensiona a forma sempre infletida pelos processos sociais em uma perspectiva
muito bem travejada pela teoria estética de Adorno e, sobretudo, pela teoria do romance
de Lukács). De todo modo, com Schwarz, a periferia do capitalismo vira um efeito da
razão burguesa. A questão, portanto, é menos o debate sobe a funcionalidade ou não das
ideias do que as condições de sua incorporação – minha proposta é rechaçar o próprio
entendimento de deslocamento que, em Schwarz, reifica o processo cultural e, como
implicação indireta, reduz a estruturação moral da sociedade nacional a uma
inconsistência valorativa baseada em sua falta de “coerência moral”.
367 SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p. 29-44. 368 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 42,
p.56, p. 194-195.
125
O esquema sociológico de Schwarz, no limite, parece operar sobre dualismos,
reduzindo as noções de circulação e de difusão das ideias a uma formatação de cópia e
importação (pressupondo lugares essencializados na produção cultural) derivada da
estruturação material do capitalismo. O raciocínio do autor tem o grande mérito de
demarcar a posição de um antigo espaço colonial na montagem geral do sistema-mundo,
evidenciando a volubilidade do próprio conteúdo burguês da civilização moderna, mas o
custo teórico da investigação sacrifica as mediações fundamentais das apropriações
culturais e seus contextos. Nesse modelo, de um lado existe a razão burguesa e o conteúdo
autêntico da modernidade, ao passo que do outro resta apenas seu efeito, pressupondo
uma dinâmica de causalidade, aliás, bastante questionável. Esse talvez seja o ponto forte
da crítica dirigida por Maria Sylvia de Carvalho Franco, ou seja, para além de um
questionamento unicamente centrado no dualismo da formação social (setor arcaico/setor
moderno), Franco tenta desmontar justamente o esquema de causalidade pressuposto por
Schwarz.369 Antes de um efeito, tese que supõe uma posição meramente passiva de um
país periférico na estruturação da modernidade capitalista, é importante ressaltar que os
repertórios culturais não são simplesmente importados – são, sobretudo, elaborados a
partir de declinações particulares da forma social, traduzindo valores e expectativas
fundamentais da socialização por meio de imaginários e conjuntos morais.
A experiência da modernidade, longe de caminhar de maneira unívoca através de
posições fixamente demarcadas conforme o grau de autenticidade, pressupõe a
desterritorialização e a reterritorialização de seus conteúdos. Schwarz aponta uma
experiência do desconcerto em que os parâmetros da modernidade, além de fora do lugar,
ficam reduzidos a uma inautenticidade ideológico-moral – desconsiderando, por
exemplo, a ampla dinâmica de elaboração subjacente às práticas, pois o processo social
é condicionado por dualismos que gravitam em torno de polos sempre irredutíveis
(original/imitado). Meu questionamento a essa abordagem enfatiza não apenas as
dinâmicas e as mediações elaboradas pelos repertórios em circulação, mas dilui as
abordagens constituídas por pares antitéticos (cópia/imitação, autêntico/inautêntico etc.)
e causalidades estreitas (transplantação, importação etc.) que fundamentariam ideias de
práticas culturais “inassimiladas”, pois inautênticas e essencialmente vinculadas a
contextos estranhos. Além disso, indicando a plena integração periférica da região no
contexto do sistema-mundo moderno, procuro esvaziar as noções de sociedades
369 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de Debate (USP), São Paulo,
v.1, n. 1, 1976.
126
refratárias na periferia do capitalismo, como se a formação social, condenada à tibieza e
à intangibilidade de sua forma, fosse meramente efeito de um processo externo (ou como
se fosse, nas palavras de Álvaro Vieira Pinto nos anos 1950, produto da alienação
estrutural de suas formas de consciência). Ademais, a própria noção das transferências
culturais matiza a suposta lógica de um repertório postiço ou meramente ornamental,
enfatizando a ampla circulação e a significação dos temas a partir de sua apropriação em
contextos particulares.
Feito esse parêntese teórico, no qual aproveitei para posicionar a pesquisa junto a
uma discussão que atravessa a constituição da teoria social latino-americana desde o
século XIX, enfatizo que o circuito de ideias permitia incorporações fundamentais dos
repertórios temáticos. Individualismo, niilismo e afrouxamento dos valores sociais, se
viajavam como ideias, encontravam nexos nas avaliações do mundo moral. Liberato
Barroso acreditava que
Se fazeis desenvolver sómente as forças physicas do homem, o habilitais para satisfazer com mais facilidade as suas paixões depravadas. Se formais sómente a sua intelligencia, tendes um perverso, armado de todos os meios de fazer o mal. Quantos caracteres depravados unidos a uma intelligencia rica de conhecimentos! Quantos homens muito intelligentes e muito illustrados, profundamente corrompidos, capazes de todas as baixezas, e portanto perigosos instrumentos do mal [...] É a pratica do dever, meus senhores, o unico meio de conjurar o perigo immenso que ameaça a civilisação moderna plo constante abaixamento do nivel moral das sociedades. E o sentimento do dever desenvolve-se pela educação moral do homem [...] Constituir a familia pela educação da mulher, formar a mãi de familia, deve ser a obra da civilisação moderna. É o problema das sociedades contemporaneas.370
A retórica da difusão das luzes, tão marcante nos textos do século XIX, significava
uma aposta fundamental da época, constituindo uma narrativa aspiracional sobre o
incremento das atividades intelectuais (instrução) e a formação de condutas em relação a
valores (educação). A rigor, o humanismo subjacente a essa percepção (acreditando em
um projeto de desenvolvimento do humano em relação aos vícios e à ignorância) compõe
um horizonte da modernidade como perspectiva de esclarecimento. Nesse sentido, o
“derramamento das luzes” e o “batismo da instrução” (expressões recorrentes na
documentação de época), ao passo que carregam um conteúdo Ilustrado sobre as
370 BARROSO, 1876a, op. cit., p. 102-103.
127
possibilidades de emancipação racional construídas sobre um ideal de homem,371 são
chaves de um processo de civilização cuja configuração forma a prerrogativa da
consciência histórica sobre o significado moral da época.
Impasse perceptível nas cartas dirigidas pelo português José Feliciano de Castilho
ao brasileiro Antonio Candido da Cunha Leitão (responsável por conferências populares
e aulas noturnas em Sergipe) quando, defendendo a instrução pública e as conferências
populares como signos do “pensamento civilizador” da época para a formação da “índole
do povo”, argumentava sobre a construção do campo da instrução pública e a aparição
das escolas “como outr’ora se erguia a cathedral”.372 Se “a eschola hoje é o logar aprazado
do presente” e “d’ella partem as caravanas em busca de melhores tempos”, a intervenção
aberta rumo ao futuro de emancipação é conduzida pelas batutas da “caridade evangelica”
e da gramática moral, abrindo “guerra aos problemas do socialismo, morte ás sombrias
theorias do communismo”. Assim, a “semente atirada a um solo até então subventanco e
infecundo”, trabalhando sobre a população e os grupos perigosos, abre no presente a
miragem de um futuro ordeiro cuja realização tenta amarrar e projetar as dessincronias
em uma direção unívoca. Por meio das preocupações de difusão das luzes e de facultar à
população o batismo da instrução, a temporalidade projetiva do caminho de
esclarecimento e de desenvolvimento moral da vida social (evidente a partir da segunda
metade do século XVIII) implica uma perspectiva de intervenção no presente para direção
e condição de aceleração social como desenvolvimento e progresso, estruturando um
horizonte de expectativas ancorado na simultaneidade do não-simultâneo
(Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen),373 ou seja, unificando a heterogeneidade de
experiências e de diferentes camadas temporais sob os imperativos da modernização e da
legitimação de sua própria estrutura projetiva.
Esse choque ideológico de camadas temporais diversas está inscrito na própria
complexidade da relação da América Latina com a modernidade. Na recepção do prêmio
Nobel, em 1990, o escritor Octavio Paz interpretava o problema em registro histórico,
indicando que, a partir do século XIX, os esforços de modernização pressupunham que
lo moderno estava afuera y teníamos que importarlo.374 Mais do que um alheamento ou
uma alienação da identidade cultural, a assertiva do autor mexicano, creio, pode ser lida
371 GAY, Peter. The enlightenment. Nova York: Norton, 1995. (Vol. 1) 372 CASTILHO, José Feliciano. Instrucção popular. [S. l.]: Typ. Imparcial, [18--]. 373 KOSELLECK, Reinhart. Neuzeit: zur Semantik moderner Bewegungsbegriffe. In: KOSELLECK,
Reinhart. Vergangene Zukunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. p. 300-348. 374 PAZ, Octavio. La búsqueda del presente. Inti , Cranston, v. 32, 1990.
128
como a condição de um presente cuja atualidade é sempre confrontada com a disjunção
de temporalidades na formação das nações latino-americanas – algo próximo do que
Silviano Santiago definiu como o enfrentamento pós-colonial da originalidade nacional e
seus vínculos problemáticos com o Ocidente (“ser o outro do mesmo”).375 Nesse sentido,
a intervenção e a aceleração na condição do presente implicam uma confrontação das
narrativas aspiracionais/formativas do campo moral em uma busca sempre esfumaçada
pela incompletude, como um processo em que cada encontro é também uma fuga, de
modo que a sensação de deslocamento e os imperativos de ajustamento do presente à
imagem dos progressos do século sinalizam uma conjunção entre o ímpeto da
modernização social, a ideologia dos rastros originários/arcaicos (a serem subsumidos
pelas transformações) e as camadas da tradição cultural como itens simultanemente
reforçados pelo revolvimento do contemporâneo.
A estruturação da modernidade capitalista repousa sobre uma nova experiência
qualitativa do tempo, ou seja, para além do registro de uma ruptura cronológica, essa
experiência implica uma nova qualidade do tempo histórico.376 A partir das condições
materiais da infraestrutura e das formas de comunicação alicerçadas no mercado global,
o processo de diferenciação e integração assimétrica dos espaços redimensiona o
desenvolvimento das formas culturais e suas estruturas temporais. A dialética de
distanciamento do presente em relação ao campo de experiências, confrontando formas
diversas e registros intercalados como contrastes morais (civilização e barbárie, cidade e
campo, arcaico e novo etc.), institui no novo um horizonte de expectativas produtor de
desejos e ímpetos da ideologia do progresso. A visada futurista e uma consciência
histórica bastante assinalada pelas “necessidades da época”,377 no caso da documentação
brasileira, conjugavam a condição de aceleração do presente ao ímpeto de atualização das
estuturas sociais por meio da extração de novos referenciais normativos implicados na
ideologia da civilização. Portanto, justamente como momentos de elaboração do mesmo
movimento (a estruturação da modernidade capitalista), a intervenção sobre o presente
fraturado entre temporalidades diversas assinala as condições ideológicas de extração das
expectativas futuras.
375 SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 376 OSBORNE, Peter. Modernity is a qualitative, not a chronological, category. New Left Review, Londres,
v. 192, 1992. 377 MONARCHA, Carlos. A instrução pública nas vozes dos portadores de futuros (Brasil, séculos XIX
e XX). Uberlândia: EDUFU, 2016.
129
Nesse ponto, os processos de educação sinalizam assimetrias na percepção da
estrutura temporal da cultura moderna em duas direções. A primeira dimensão está
relacionada, de algum modo, à infraestrutura da vida moderna. José Joaquim do Carmo,
quando reitor do externato do então Imperial Colégio de Pedro II, ensinava que “a
civilisação, disse-o o mais profundo dos modernos pensadores, é a educação dos povos,
do mesmo modo que a educação é a civilisação dos individuos”.378 Se “os povos que se
educam e os individuos que se civilisam” são “elementos de ordem e propulsores do
progresso humanitario”, com um vocabulário profundamente marcado pelos princípios
da estática e da dinâmica da teoria comtiana, o reitor acreditava que os indivíduos
reuniriam “em si as virtudes de Sem, que conservava o dogma no passado, e as virtudes
de Japhet, que o propaga no presente e o propagará no futuro”. Como aposta no campo
da instrução pública como suporta de difusão das luzes e dos deveres sociais,
Nos tempos calamitosos que correm, quando a anarchia mental conturba a consciencia publica, que nao parece ja distinguir lucidamente o bem do mal, e o homem justo do homem injusto; quando a revolução material dos factos afigura-se a alguns a consequencia logica da revolução moral das ideas, instituições como esta correspondem á mais instante das necessidades sociaes, e constituem manifestações beneficas do pensamento salvador.
Uma segunda direção implica o cumprimento do contemporâneo como partida
para a plenitude dos valores. Candido Elias Carvalho, escrevendo no periódico de J.
Duarte dos Santos destinado à educação, afirmava que “a insrucção multiplica as forças
do homem e arrasa as barreiras que se oppõem á marcha da civilisação; é como o apostolo
que annuncia o engrandecimento futuro de um povo”.379 Como “a tempestade
revolucionaria que derroca os privilegios egoisticos e eleva o homem de talento aos mais
altos cargos sociaes”, os processos de educação são fiadores da vida moral na medida em
que, difundindo as luzes do esclarecimento intelectual e moral, funcionam como “o
relampago que illumina as miseras choupanas dos infelizes e muda-lhes a condição”.
Contra as posturas auto-interessadas acentuadas pelo processo de individualização e
contra o embrutecimento da população, o texto combatia “um facho incendiario, um
principio anarchisador da sociedade”, de modo que a estruturação moral e os valores da
religião compunham “a lei reguladora dos destinos da humanidade”. Nesse sentido, as
378 CARMO, José Joaquim. Discurso. A Estação, Rio de Janeiro, 15 mar. 1884. 379 CARVALHO, Candido Elias Mendonça. A instrucção. A Instrução, Rio de Janeiro, 23 nov. 1881.
130
“sciencias positivas”, as iluminações da técnica e a normatividade de condutas do mundo
moral formavam um todo por meio do qual o “progresso do seculo actual vai exercendo
a maior e mais benefica influencia sobre a sociedade”. Respondendo aos imperativos da
atualidade da aceleração,
Propagar, pois, a instrucção é attender ás urgentes necessidades da epocha que atravessamos, epocha de transformação e reorganisação social. A lei das evoluções humanas impõe aos povos o dever de instruirem-se e propagarem os resultados conseguidos pela sua actividade scientifica. As gerações herdam os grandes commettimentos e têm obrigação de aperfeiçoal-os e transmittil-os ás que se vão succedendo.
A atualização conforme as “necessidades da epocha” delimita a visão do
contemporâneo no horizonte de seus imperativos morais. Nesse sentido, o contemporâneo
busca sua legitimidade não apenas em registro retrospecitvo (rückblickend), mas como
dinamização interna de suas necessidades situadas sempre no limiar (Schwelle) da
aceleração da experiência histórica em relação à mudança.380 Encantado pelas
“maravilhas do progresso” e pelas “conquistas da civilisação” (capazes de “desafiar como
o infinito as mais potentes faculdades do espirito humano”), uma vez “supprimidas as
distancias pela locomotiva e pelo elegrapho electrico”, com “o commercio do mundo
enchendo os nossos portos” e “cidades populosas e ricas nascendo e crescendo á sombra
da escola e da imprensa”, Liberato Barroso destacava as “dores do espirito no espectaculo
do mundo”. Além da “sociedade debatendo-se nas cadeias de egoismo e das paixões
ruins”, a aspiração fáustica da consciência moderna era inseparável do “mesmo
antagonismo no seio do progresso”, concebida sob o “grito da locomotiva”, as “chaminés
dos vapores” e “o fio electrico, estendido através do espaço, pelo qual o homem pretende
transmittir o pensamento com a mesma velocidade que a intelligencia o concebe”.381 Os
processos de educação eram pensados, nesse cenário, como corretivos para a conduta
“que applica a sua attenção exclusivamente aos interesses materiaes da sociedade,
abandonando os interesses moraes, sobre os quaes unicamente se póde firmar a ordem de
uma sociedade bem constituida”.382 Assim,
380 KOSELLECK, 1989, op. cit., p. 320. 381 BARROSO, 1876a, op. cit., p. 99. 382 BARROSO, 1876a, op. cit., p. 98.
131
Tudo indica, senhores, que ha um vicio radical na civilisação das sociedades modernas, um desequilibrio no progresso dos diversos elementos sociaes, um defeito gravissimo na vida do homem, que não conserva a precisa harmonia no desenvolvimento regular de suas faculdades. É a educação o remedio para esta grave enfermidade social. Educar o homem, desenvolver simultanea e harmoniosamente todas as forças de sua natureza, formar o homem completo no pleno desenvolvimento de sua natureza corporal, intellectual e moral, é a obra de uma verdadeira civilisação.383
Diante da economia de estímulos e da volatilização do mundo da vida, a harmonia
da dinâmica expansiva das formas de vida deveria ser buscada no regramento da fisiologia
e das condutas sociais por meio da formação das inclinações. Esse vitalismo, cuja base
moral é diretamente derivada dos processos de educação, conformaria corpo/espírito e
matéria/moral (dualismos que rondavam as “cabeças áureas” e os “pés argilosos” da
cultura moderna) a um mesmo referencial derivado do quadro normativo da moralidade.
Manoel Francisco Correa, nesse sentido, argumentava que “é portanto exacta a
proposição de que o estado da sociedade póde ser mudado no sentido que se imprimir ao
ensino das gerações que surgem, e cuja indole e espirito têm de ser formados no seio da
familia e nos estebelecimentos de instrucção”.384 A mobilização dos núcleos sociológicos
primários da ordem moral, aqui, dobra o campo moral sobre a estrutura perceptiva dos
elementos contraditórios que “dominão em actos da vida real”, de modo que o futuro
cidadão “se deixa influenciar pelo materialismo intransigente, quanto mais pelo atheismo,
não por espirito de novidade e amor da polemica”. Assim, a “grandeza do universo” e as
“inalteraveis leis que o regem”, como interpretações respaldadas nos referenciais do
campo da moralidade e de sua normatividade coextensiva aos parâmetros de socialização
e às estruturas de interpretação da realidade (formando uma mesma imagem de mundo),
implicam uma contenção da ambição fáustica da cultura moderna, “porque não somos
deuses, como se a creatura pudesser ser igual ao Creador, não nos revoltamos contra o
acto da creação, antes somos reconhecidos ao amor que nos permittio a vida commum”.385
Para Correia,
Ensinai-lhe o bem, e o homem caminhará pela estrada da virtude, devotando-se á familia e á patria. Deixai que nelle se afrouxem os laços da moral, e não sejão reprimidas as paixões tempestuosas; dizei-lhe que
383 BARROSO, 1876a, op. cit., p. 102. 384 CORREIA, Manoel Francisco. Instrucção publica. Conferências Populares, Rio de Janeiro, 1876. 385 CORREIA, 1876, op. cit., p. 25.
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é vacillante tudo que escapa á acção dos sentidos, que a materia, se posso assim exprimir-me, é producto de si mesma; e mui diversas serão as consequencias. A direcção uniforme do ensino durante um seculo é bastante para mudar a face do mundo; mas a mudança póde ser para o bem ou para o mal; tudo está na moralidade do ensino. Encaminhai-o direitamente; tereis o imperio da justoça, que é o dominio do espirito, e admirareis o infortunio immerecido e resignado. Encaminhai-o de outro modo; tereis o imperio da força, que é o dominio da materia, e admireis o vicio triumphante e ás vezes applaudido.386
O tempo, talvez, “vai em passo accelerado por um declive fatal”. O espectro do
materialismo rondava o mundo moral no fim de século: “o advento das massas
populares”, afirmava um artigo, tem “mudado a face do mundo” por meio dos imperativos
do trabalho ordenado, com o perigo das iluminações da modernidade “a persuadirem a
multidão de que nada ha acima dos interesses materiaes”.387 Para Luiz Correa Azevedo,
se a educação era “o oasis no deserto vasto da vida dos instinctos”,388 o aludido
desenvolvimento simultâneo e harmônico das faculdades humanas era central na validade
dos valores morais da vida moderna. A base da “cultura intellectual e moral de um povo”
residia no “homem que, pequeno, vem formado da familia nos principios da educação
physica, religiosa e social”, recebendo “o sello da cultura de maneiras, de sentimentos, de
palavras e de actos, espere sempre que a voz da lei lhe marque os deveres respeitaveis
que o habilitem a ser livre em toda a plenitudade da cultura humana”.389 Para Azevedo,
os “effeitos da educação no homem” poderiam ser depreendidos de um fato civilizacional
alicerçado sobre a ideia de que, “presos os seus instinctos a todos os principios de sua
educação moral e religiosa”, os indivíduos reconheciam nos parâmetros morais da
socialização a condição de estabilidade da vida coletiva. Nesse sentido,
[...] esse ser physiologico, esse tronco anatomico, está subordinado á vida social, que contém em muitas de suas partes opposições rudes, mais necessarias, ás reclamações da materia, ás gritas de seu temperamento e ás exigencias de suas paixões. O evangelho e a educação são as potencias inquestionavelmente magestosas que arrancão a Buchner o seu – homem materia. E estas potencias são as que constituem a sociedade culta e adiantada.390
386 CORREIA, 1876, op. cit., p. 23. 387 O socialismo. Novidades, Rio de Janeiro, 19 out. 1891. 388 AZEVEDO, Luiz Corrêa. A educação e o ensino obrigatorio. Conferências Populares, Rio de Janeiro,
1876. 389 AZEVEDO, 1876, op. cit., p. 103. 390 AZEVEDO, 1876, op. cit., p. 113.
133
A “constituição social humana e christã” era o centro das preocupações de
Azevedo em relação aos processos de educação. O problema, aliás, partia de uma
avaliação moral da cidade moderna. O bom cidadão não pode ser “vassallo das
necessidades materiaes”; então, “em uma grande cidade como é esta ha sobretudo grande
urgencia de educação em todas as classes sociaes”.391 Se “ha deveres para comnosco
mesmos, para com as leis, para com os nossos semelhantes, e sobretudo para com Deus,
que não devem ser esquecidos”, duas consequências podem ser derivadas dessa assertiva.
Por um lado, o conteúdo dos valores deve ser a referência para a exibição das condutas
públicas, de modo que “o vestuario deve ter o cunho da regularidade, da possivel decencia
e nunca despertar, por sua originalidade, as vistas dos nossos semelhantes, ou produzir
nojo ou desgosto por seu desasseio e desordem”. O intelectualismo da vida urbana, nesse
sentido, exigia do observador o decoro e a ordem da conduta exterior junto aos “lugares
de distracção” do espaço público das ruas, condenando os “indicios de educação viciosa
e de nenhuma reflexão”.
Por outro lado, uma consequência do intelectualismo exigido pela vida urbana
significava considerar as “vantagens da educação” na formação dessas condutas sociais.
Afinal, se há “excessos em dados caracteres e paixões”, o contole moral do “accesso de
seus impulsos irresistíveis” implicava observância ao cidadão “mal educado” que “se
embriaga por vicio” ou a bandos que “são hallucinados capazes de commetter todos os
mais horriveis crimes”. Tendo em vista a contenção das condutas, a normatividade dos
processos de educação pressupunha um ato de civilização em relação à força dos instintos:
Se concedessemos ao homem todo o livre exercicio e emprego de suas solicitações materiaes, houvera mister, para evitar-lhe os botes, e as garras, e os dentes, conserval-o em uma jaula. Sim: tão felino se póde tornar o homem quando a educação o não bafeja desde a tenra idade. Já, pois, que tocamos na educação como o unico motor da civilisação do homem, aquelle que lhe póde debellar as paixões e instinctos máos, accusemos a falta completa d’essa educação na perpetração de crimes horrendos, commettidos por homens que apparntemente erão á nossa semelhança. Dizem os criminalistas que são d’esses crimes attenuantes, as paixões dos homens, as odyosincrasias, as hallucinações momentaneas ou as menomanias.392
391 AZEVEDO, 1876, op. cit., p. 119. 392 AZEVEDO, 1876, op. cit., p. 114.
134
Como estruturas prescritivas do agir, os processos de educação reconheciam
justamente a dimensão problemática dos hábitos sociais, tendo em vista que o indivíduo
“tem fome, tem sêde, tem movimentos multiplos de voluntariedade, e sobretudo tem
paixões a satisfazer e destinos a cumprir”. O controle dos instintos pela educação do
conteúdo moral da vida coletiva estava relacionado tanto à contenção das paixões
puramente materiais quanto à exibição de condutas individuais cada vez mais deslocadas
do ideal normativo da moralidade coletiva. O espanto diante das ameaças de
desintegração dos mecanismos coesivos da população é certamente um dos traços mais
salientes da experiência da modernidade tematizada pelos processos de educação em
relação à estruturação moral da sociedade. José Feliciano Oliveira, em discurso proferido
na Escola Normal de São Paulo, sintetiza diversos pontos dessas percepções.393 O autor
encaminha a discussão, por exemplo, para a polidez e as formas da urbanidade, amarrando
o conteúdo moral dos valores à lógica de exterioridade das condutas, de modo que, em
função de especificidades importantes, deixarei essa discussão para um capítulo à
parte.394 Aqui, gostaria de reter a seguinte perspectiva: “para se tornarem verdadeiros
cidadãos é que se devem educar todos os homens. [...] Ser bom cidadão é a maneira mais
decisiva de ser um bom homem, um homem social”.395
Preocupação exaustiva dos processos de educação no século XIX, atravessando
diversos conjuntos documentais e conjunturas desde a formação do Estado nacional
brasileiro nos anos 1820, o bom cidadão constitui, a um só tempo, uma narrativa
identitária e um vínculo com o espaço social institucionalizado pelo político. Assim, ao
passo que o ideal de cidadão mobilizava a pertença à monarquia constitucional e à vida
republicana (após 1889), a presença desse conceito implicava algo além: como forma de
subjetivação derivada sobretudo, na América Latina, das experiências constitucionais
modernas desde o começo do século XIX (na esteira das formações dos Estados
nacionais), a perspectiva formativa dos cidadãos constituía um conteúdo para a
rotinização dos valores no horizonte da nação,396 evidenciando a correlação entre as
balizas institucionais da vida política e a estruturação moral das sociedades nacionais.
As virtudes cívicas da jovem república, nesse sentido, deveriam corresponder a
estruturas do mundo moral (em correspondência com a marcada estrutura moral da
393 OLIVEIRA, José Feliciano. A educação e a urbanidade. São Paulo: Typ. do Diário Official, 1903. 394 Cf. Capítulo 5. 395 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 22. 396 MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 2011.
135
educação republicana),397 uma vez que, para José Feliciano de Oliveira, a formação do
“cidadão util” significava encaminhar “methodicamente o espirito, alimentando o coração
e fortalecendo a vontade”, instruindo os futuros cidadãos “nas cousas sãs, nos
conhecimentos sympathicos” – indispensável, enfim, era “saber como se educa
instruindo”.398 A educação das simpatias, com longa carreira desde a filosofia moral do
iluminismo escocês (no Brasil, desde as preocupações fundadoras de Cairu nos anos
1830), representava interfaces importantes entre os processos de educação e a
fundamentação de valores da socialização. Afinal, o “cultivo universal da sympathia”,
assumindo com pressuposto a rotinização de “bons modos, as boas obras, a urbanidade –
a educação verdadeira”,399 expunha o “processo mais pratico, mais accessivel, mais
apparente” da “sociedade infantil, que será a sociedade de amanhã”.400 A urbanidade e
seu conjunto de práticas enraizado em valores do campo moral desenhavam parâmetros
importantes para a avaliação das condutas da vida urbana, entrelaçando a polidez e a
civilidade a uma aspiração normativa pressuposta nas expectativas da socialização e sua
forma de exposição. Oliveira, por isso, indicava que “essa fórma é o cultivo da polidez
(polis?), da urbanidade (urbs), da civilidade (civis), que envolve sempre a idéa de vida
civica, de civilização, de progresso em geral”.401 Com dinâmica relacional, a economia
das simpatias significava, assim, uma perspectiva sobre o potencial desestabilizador da
vida moderna e a inquietação sempre latente em relação às desordens da estruturação
moral, pois
Em geral, o ensino do mundo é menos paciente e leva o alumno ás raias do desespero ou o encerra nos ergastulos dos incorrigiveis. E isto porque a sociedade só tolera os seres que lhe são mais ou menos assimilaveis ou que não se tornam verdadeiramente, profundamente perturbadores. Na sociedade o homem tem que ser pelo menos supportavel. Para nella entrar e viver passavelmente, deve apparecer como os alumnos que nos exames receberam a nota soffrivel.402
A vertigem da desestruturação dos mecanismos de coesão da vida coletiva
enraizada em valores, tema recorrente na documentação do fim de século a respeito dos
processos de educação da sociedade, relacionava a educação das simpatias e de suas
397 SOUZA, Rosa Fátima. Alicerces da pátria. Campinas: Mercado de Letras, 2009. 398 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 14. 399 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 10. 400 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 12. 401 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 22. 402 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 15.
136
formas exteriores de conduta (polidez e urbanidade) a expressões mais visíveis da própria
volatilização dos valores morais. É à luz desse problema que a perspectiva formativa de
Oliveira buscava uma “idéa segura do que seja a educação verdadeira” a fim de tatear
referências valorativas consistentes para a gestão moral da população moderna e,
sobretudo, sua educação. Aqui, por meio da ênfase na dinâmica relacional das simpatias,
os impactos da cultura moderna nos processos de educação ganham contornos ainda mais
realçados pela irupção fisiológica das paixões. Nesse sentido,
A indisciplina, a insubmissão, a revolta, que geralmente reina hoje, provém da descultura da sympathia, da desunião nos sentimentos. A frieza, a frouxidão dos laços affectivos reage mal nas acções e deixa o espirito fluctuante. Este, sem convicções, sem idéas fixas, não esclarece, não guia e é mal estimulado [...] O gosto se embota e a urbanidade sossobra. Inventa-se arte nova, decadente, macabra e proclama-se o desrespeito ás formulas consagradas. Fecha-se o salão e abre-se a tavolagem.403
O peso do cresente processo de individualização era considerável também para
José Feliciano de Oliveira. Se a urbanidade dispunha coordenadas normativas para a
exposição das condutas e das maneiras, essa espécie de estética do mundo moral
encontrava nas simpatias a forma mais elementar dos mecanismos de associação junto à
vida coletiva da cidade. O campo dos valores morais, então, funcionava como um
indexador das condutas expostas a uma constituição interior das intenções do agir,
estruturando os processos de educação como elementos conformadores da vida coletiva
e de sua regularidade (como parâmetros de socialização). Esse é justamente o quadro que
parecia ficar cada vez mais precário na opinião do orador da Escola Normal de São Paulo.
Se os processos de educação devem orientar indivíduos, conforme preceitos e
fundamentos de conduta “para bem servir a geração actual e as gerações vindouras”,
O problema da educação é o problema da vida humana, é a subordinação do egoismo ao altruismo, é a sotoposição dos sentimentos maus aos bons, é o triumpho da bondade sobre a maldade. Esse triumpho so se alcança pela reacção da sociedade sobre o individuo, pela influencia da vida collectiva sobre a vida individual.404
403 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 11. 404 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 16.
137
A estruturação de nexos de integração moral, amarrando a ambivalência dos
“espiritos fluctuantes”, implicava apostar na “decisiva educação moral que se impregna
em organismos moveis e influe em nossa existencia inteira”. O agonismo do mundo
moral, lido no registro dos processos de educação, residia justamente na indeterminação
das condutas correlacionadas às simpatias sociais. Aqui, o campo da moralidade
mobilizado pelos processos de educação evidencia que o conjunto de valores e de
prescrições do agir de modo algum são elementos de uma sociedade tradicional, como se
a forma social fosse na periferia fosse impermeável ou retardatária em relação às
transformações da modernidade. Pelo contrário, essa estruturação moral da sociedade
evidencia justamente os impactos da modernização nos elementos mais fundamentais da
socialização. Se a “a lucta entre a vida collectiva e a individual”,405 base sobre a qual os
processos de educação eram dobrados, assinalava o horizonte de dissociação das vontades
e de possível retrocesso da marcha civilizatória na limitação dos ímpetos individuais,
Nesses encontros ou rencontros, nos contactos sociaes, nas influencias reciprocas que nos exercemos, nossos pendores egoistas provocam antagonismos individuaes que tendem a neutralizal-os. Em taes contactos, são as inclinações nobres que habitualmente comportam um quasi illimitado exercicio universal. O egoismo tende a atrophiar-se na propria massa de seus orgams cerebraes. O altruismo se alimenta, vige e viça, augmentando a massa dos orgams verdadeiramente affectivos. Essa é a reação geral da sociedade sobre a vida individual. A educação deve ter por fim systematizal-a, preparando especialmente a conducta social do individuo.406
No fim dos anos 1870, o periódico A Escola, coordenado por Luiz Joaquim
Duque-Estrada Teixeira, entendia que “para formar um povo nobre, morigerado,
laborioso, só ha um meio – é educal-o”, de modo que “para fazer um cidadão,
principiemos por educar um homem”. Em meio à diversidade de textos sobre os processos
de educação, as lições de Olympio Rodrigues Costa na professadas na Escola Normal do
Rio de Janeiro enfatizavam a contenção dos ímpetos individuais (em tempos em que o
potencial da dissociação junto às estruturas da vida moral parecia crescente) em um duplo
registro: a elaboração da consciência e a interdependência das atividades sociais. Para o
autor, “qualquer que seja o ponto de vista, sob que estudemos o homem, temos de
encontral-o em relação a si, á sociedade e a Deus: é pois triplice o objecto da fé que se
405 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 17. 406 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 18.
138
tem de desenvolver”.407 Como conformação das ações a um conjunto de valores
instituídos, o futuro cidadão “deve ter a consciencia e a responsabilidade de seus actos”.
A vida coletiva, ao passo que implica uma marcha civilizatório do progresso moral, afinal
“o homem é naturalmente perfectivel, e [...] quanto mais faz, mais tem que fazer para
melhorar”, também significa o longo aprendizado das formas de socialização por meio da
unidade moral das estruturas coesivas da vida moderna, de modo que “convem que a fé e
confiança em si não degenere em presumpção, em temeridade, que levam ao orgulho, ao
egoismo e ao desprezo dos outros”.
Tal percepção era derivada de uma assertiva sociológica bastante prática: as
“disposições physicas e moraes” da divisão do trabalho.408 Pensando na coesão moral dos
indivíduos e, sobretudo, no “conhecimento das causas que os determinam e das relações
que os ligam”, o autor ensinava que a diferenciação produtiva era um dos principais
componentes do horizonte comum da vida social. Essa dimensão bastante prática da
atividade coletiva, se era medida pelo incremento da interdependência comercial
entendido como medida da civilização, igualmente continha os riscos da dissociação pela
necessidade de produção material da vida interligada aos mecanismos morais
pressupostos para a socialização:
Com effeito, a consciencia dos beneficios que a communhão traz ao individuo, e o individuo á communhão, isto é, a troca mutua de favores é um dos mais fortes vinculos das sociedades: desde que pudessemos dispensar o concurso reciproco dos outros, isolavamo-nos, embruteciamos, e depois de destruir a sociedade, aniquilariamos a familia e consequentemente o individuo. É facto averiguado que quanto mais selvagem é um povo, menor é o numero de individuos reunidos em tribus ou nações, e que á proporção que a civilisação vae creando necessidades e industrias, novas e grandes nacionalidades se vão constituindo.
Jacques Ellul enfatiza que, a partir da segunda metade do século XIX, a
proliferação de preocupações com o processo de individualização, enfatizando o
deslocamento (en dehors) dos ímpetos individuais dos contextos normativos do mundo
moral, indicava uma experiência do desenraizamento.409 Em função do processo de
racionalização e de incorporação da infraestrutura capitalista, essa percepção era mais
407 COSTA, Olympio Rodrigues. A fé. A Escola, Rio de Janeiro, 1877. 408 COSTA, Olympio Rodrigues. Lições de pedagogia. A Escola, Rio de Janeiro, 1877. 409 ELLUL, Jacques. Histoire des institutions: le XIXe siècle. Paris: PUF, 1999. p. 258-159. (Vol. 5)
139
contundente nas grandes cidades da Europa Ocidental, a partir dos anos 1860 e 1870,
tendo em vista a aceleração capitalista apoiada sobre a crescente divisão funcional do
trabalho, a industrialização em massa e a urbanização.410 A maior intensidade desse
processo naquelas regiões implicou, já a partir dos anos 1860 e 1870, esforços de
sistematização a esse respeito, tanto de estudos sobre a população quanto da nascente
antropologia criminal. Um modelo fundamental de tradução dessas percepções referentes
ao processo de individualização na teoria social, por exemplo, está nas sofisticadas
análises de Durkheim:411 afinal, como um dos observadores mais sensíveis ao
desencantamento de sua época, se o quadro teórico de De la division du travail social
(1893) tematizava as instâncias de integração moral junto à vida coletiva (a “consciência
comum”) no registro do longo processo de individualização (individualisme) que
indeterminava o horizonte de valores comuns desencadeando “uma multidão crescente
de dissidências individuais”, no esforço empírico de Le suicide (1897) as forças
dissolventes do egoismo individual eram entendidas como um estado de desagregação e
corrosão (manque) das dinâmicas coletivas.412
A difusão dessas preocupações junto diversos grupos letrados do período oferece
indicativos para um quadro mais amplo, abrangendo também as periferias do capitalismo.
A própria proliferação de imaginários da modernidade e de sua aceleração contribuiu
significativamente nesse sentido. Nos cadernos de março de 1876, Dostoievski notava o
processo de individualização, na periferia russa, como uma época de “dissociação
universal” com a gradativa desestabilização de horizontes coletivos, de modo que o
campo comum (como valores sedimentados e como “forças que deveriam unir as
pessoas”) corria o risco de se tornar uma “miragem patética”, já que “todos querem
começar tudo do começo”.413 As vacilações morais da cultura moderna indicam a
elaboração de um quadro avaliativo bastante problemático em função dos choques dessas
experiências da dissociação. Nesse sentido, o espectro da dissociação é um dos conteúdos
mais salientes da vasta experiência da modernidade, rondando os circuitos da
modernidade capitalista no fim de século.
No caso das percepções presentes na documentação brasileira, a forma da vida
comum organizada pelos processos de educação, como prescrições generalizáveis
410 WAGNER, Peter. A sociology of modernity. Londres: Routledge, 1994. p. 57-58. 411 MILLER, William Watts. Durkheim, morals and modernity. Londres: Routledge, 1996. 412 DURKHEIM, Émile. De la division du travail social. Paris: PUF, 1991. p. 146-147. DURKHEIM,
Émile. Le suicide. Paris: PUF, 1990. p. 439-440. 413 DOSTOIEVSKI, Fiodor. A writer's diary (1873-1876). Trad. Kenneth Lantz. Evanston: Northwestern
University Press, 1994. p. 395. (Vol. 1)
140
(perspectivas formativas do cidadão) do campo da moralidade, amarrava as estruturas da
família e seus papeis morais nos quadros de uma ampla ideologia da conservação social.
Em um conjunto de preleções públicas (boa parte da documentação será analisada no
próximo capítulo), o dr. Ferreira Vianna entendia que “o temor em nosso tempo tem
muitas faces e é de incommensuravel poder”: diante da experiência desestabilizadora da
vertigem moderna, “a fortuna da educação depende muito do habito que desde a primeira
idade enraiza em nós formando a segunda natureza”, de modo que “não se póde separar
de varias causas, como das necessidades da vida individual, das crenças, da sociedade, da
constituição da familia”.414 Para o autor, os estímulos da vida moderna agitavam os
sentidos individuais, exigindo a fixação de parâmetros da moralidade junto aos processos
formativos, tendo em vista que
Talvez fôsse menos penoso aos homens dos primeiros seculos do christianismo sacrificar a propria vida, do que ao homem de hoje conjurar as difficuldades que lhe suscitão os habitos sociaes e as que podem ser levantadas pelas ameaças de seus superiores. Em um seculo, como o nosso, em que o homem parece dominado pelo sentimento do gozo indefinido, da boa fama cede o passo á satisfação da concupiscencia; dahi o receio de compromettimento com quem a facilita.
O sentimento das “grandezas moraes decahidas”, ao passo que mobilizava a
correção dos vícios e do individualismo da vida moderna, retomavam a ideologia do
mérito (muito comum na documentação da época) baseada na ética do trabalho e do
merecimento de posição individual de bem-estar social como consequência de uma opção
pelas virtudes morais. A preocupação de Ferreira Vianna consistia, basicamente, em partir
da exposição das condutas e da exterioridade nos usos da sociedade para fundamentar um
conjunto de valores instituídos para além da fugacidade das formas sociais e da
constituição fisiológica do indivíduo. O autor, então, sugere um deslocamento do campo
dos valores para uma perspectiva formativa dos processos de educação em relação à
produção da consciência, de modo que
Estamos no intangivel, no regimen do espirito, longe do dominio animal, na arte das artes – ars artium – considerando o individuo humano despido de toda a exterioridade. Não é o homem que se vê, mas o que se não vê, o que se demitte e todos os seus actos e nos apparece através do tempo e do espaço. – Assim como debaixo das vestiduras,
414 VIANNA, Ferreira. Preleções. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 26 out. 1887.
141
dos ornatos está o corpo, como elle é, natural, nu, da mesma sorte no fundo dos olhos dos sentidos está a alma. – Eis o que se chama o homem exterior e o homem interior.
A educação do corpo e alma, ou seja, a interioridade e as intenções articuladas
com a exterioridade das condutas e seus significados morais eram o ponto de partida da
construção da consciência moral. Se matéria e espírito são esferas que “podem ser regidas
por modo diverso”, embora haja uma “harmonia que impunemente se não quebra entre
uma e outra”, “o desenvolvimento do ser humano deve vir de dentro para fóra”. A
elaboração interna da consciência e as descontinuidades do moderno regime perceptivo
reposicionam a cisão entre os valores instituídos do mundo da vida e sua volatilização no
sentido de um constante choque entre contrários. O agonismo da estruturação moral da
sociedade, portanto, reconhece seu ponto de partida em uma percepção problemática dos
processos de educação, uma vez que “facil é dominar a materia viva no homem, isto é, o
seu corpo cede á força e á compressão; mas é difficil exercer disciplina directa na alma
por ser intangivel”. Afinal, prossegue Vianna,
Ninguem pode ter duvidas de que o homem é incompleto. A natureza incompleta o entrega ao mundo; é do contacto do mundo externo que ha de receber o complemento que lhe falta. Este complemento, que não recebe da natureza nem de Deus, deve elle obter por algum processo. O homem natural, o selvagem póde ser honesto e simples, mas não tem nenhum cultivo moral. – Para que elle entre na communhão dos civilisados tem de passar por um preparo que complete a sua educação [...] A educação prepara o homem para a familia, para o Estado e para o céo então as suas disciplinas são mais elevadas, são precisos outros principios, a religião é necessária [...] O homem é inimigo do homem quando não tem moral nem Religião; porque o homem que não acredita senão neste mundo resguarda o que é seu com tal ardor, deseja com tal avidez o que é dos outros e desenvolve nesse trabalho tal crueldade que apavora os monstros.
Conforme Ferreira Vianna, os processos de educação não apenas retomam a ideia
de uma constituição harmonioza entre faculdades diversas (noção que aparecia, por
exemplo, na documentação das conferências populares publicada em 1876), mas
reconhecem a própria dimensão problemática de seu pressuposto – a elaboração da
consciência e sua conformação aos valores do campo da moralidade. A ideologia
civilizadora contida nessa percepção confere uma dinâmica evolutiva ao jogo entre
interioridade das motivações (e sua elaboração) e exterioridade das condutas sociais,
142
imiscuindo a abjeção das paixões brutais no interior das iluminações do progresso
civilizado. Afinal, conforme a advertência de um moralista muito difundido no oitocentos
na Europa e nas Américas, il faut tout attendre et tout craindre du temps et des hommes.415
O campo de indeterminação dos processos de educação aberto pela experiência da
modernidade e a potencial volatilização dos valores instituídos no mundo da vida tinham
impactos diretos, sobretudo, na elaboração da consciência moral.
415 VAUVENARGUES. Réflexions et maximes. In: VAUVENARGUES. Oeuvres complètes. Paris: Furne
et Cie., 1857. p. 383.
143
CAPÍTULO 3 | UM FOCO DE VIRTUALIDADES CONTRÁRIAS: A ELABORAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E A ECONOMIA MORAL DOS INSTINTOS
Se no capítulo anterior discuti a experiência moderna da vertigem como uma
volatilização dos valores instituídos, o caminho neste capítulo pretende completar o
trajeto, investigando o problema da elaboração da consciência moral como ponto
fundamental para o entendimento da dinâmica problemática da modernidade. A
regularidade das condutas assumia o imperativo da interiorização dos valores morais
como parâmetro de básico de racionalização da vida social e de reconhecimento de sua
validade. No entanto, conforme o final do capítulo anterior, sob o invólucro da civilização
e da contenção moral das condutas existia a latente irrupção dos instintos. Essa espécie
de imperativo do governo de si situava a instabilidade das condutas individuais junto às
pressões culturais da experiência da modernidade.
Encarregado pelo governo republicano de visitar Suíça, Alemanha, Suécia,
Inglaterra, Bélgica e França (viagem em que também ministrou conferências sobre
educação) a fim de acompanhar o movimento da “educação popular” naquelas regiões, o
professor Manoel José Pereira Frazão redigiu um extenso documento sobre os processos
de educação no fim de século e sua correspondência com o “ideal de perfeição social” do
esclarecimento das populações.416 Quando publicou suas considerações nos anos 1890,
Frazão já tinha longa trajetória como professor no Rio de Janeiro, atuando ativamente em
periódicos e em discussões junto às conferências pedagógicas que ocorriam no Brasil
desde os anos 1870. O texto foi apresentado à inspetoria geral de instrução da capital
federal e tinha, como um de seus eixos, a seriação de práticas disciplinares (“corrigir os
defeitos, á medida que estes se vão manifestando”) e o problema da moral à luz das
perspectivas formativas dos futuros cidadãos. Defensor de “uma educação inspirada na
caridade christã”, Frazão argumentava que “nenhum valor se dá ao individuo que se
distingue por sua superioridade intellectual, se essa superioridade não é acompanhada de
urna excellencia moral, que o faça instrumento util á sociedade”. O critério de utilidade,
como nexo entre a formação individual e sua aplicação no incremento das forças
produtivas, condiciona o ideal da conduta educada também à representação social das
condições exteriores, respaldando conteúdos valorativos internos, de modo que “assim, a
416 FRAZÃO, Manoel José Pereira. O ensino publico primario na Italia, Suissa, Suecia, Belgica,
Inglaterra e França. Rio de Janeiro: Typ. da Gazeta de Noticias, 1893.
144
polidez, o asseio, a ordem são condições essenciaes para a superioridade”.417 Discutindo
com Compayré, Henri Marion e Alexander Gavard, o autor considerava que
O individuo cujas faculdades intellectuaes não são equilibradas por uma cultura moral sufficiente, cujo espirito é mal dirigido, obedece á violencia de seos instinctos, á desordem das paixões. A indifferença para a virtude, uma grande satisfacção de si mesmo, uma sufficiencia pretenciosa que o leva a julgar de tudo, a apathia, a preguiça, a intemperança são os fructos da educação falseada.418
A experiência da vertigem do campo valorativo, entendida no registro da
dissociação e da precarização de estruturas de coesão moral, expunha sentimentos morais
“atrophiados pelo egoismo, que resulta infallivelmente da ausencia, ou da imperfeição da
educação” (entendida como o “exercicio simultaneo da intelligencia, do coração e da
vontade”), implicando o “individualismo mais estreito” e o “orgulho mais exagerado”.
Para Frazão, a “cultura dos sentimentos religiosos” pavimentaria a regularidade moral da
sociedade e os destinos fundamentais do homem “conservando nelle a natureza humana
racional, social e RELIGIOSA”.419 Esse exclusivismo do humano, fundamentado na
emancipação racional da consciência, fixava o campo moral como referência da
socialização e da contenção dos ímpetos e instintos individuais, de modo que, discutindo
com os textos de J. E. Pécaut e de Comte, “a educação das crianças no atheismo só póde
produzir bons animaes” pois “o único aspecto que distingue o homem, aspecto orgânico
e decorrente da história natural, é a moralidade”. Como forma de cultura (desvinculada
da ligação institucional com a Igreja ou uma confissão particular), a religião contribuía
para a centralidade do humano e para a “felicidade social” na medida em que ancorava
os valores da moralidade contra a “anarchia moral” presente “onde o atheismo tem cavado
a ruina da moralidade publica”.420 Se a liberdade de ação e a elaboração da consciência
moral indicavam distintivos do humano,421 esses mesmos pressupostos morais da
socialização portavam potenciais de dissolução da regularidade social.
A tensão do campo moral junto aos processos de educação, portanto, implicava a
indeterminação da própria estruturação valorativa da sociedade. A potencial ruptura do
417 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 236. 418 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 286. 419 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 289. 420 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 297. 421 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Trad. José Roberto Martins Filho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
145
verniz civilizado por meio da volatilização dos valores morais e do desgoverno dos
instintos, para Frazão, estavam no centro do problema. Ao criticar as propostas de Paul
Robin e Alexis Sluys (cujos escritos foram bastante difundidos entre o fim dos anos 1860
e os anos 1890), “reduzindo o homem á condição de simples animal”, o autor acreditava
que “se é verdade que ser um bom animal é uma das excellencias que se devem procurar
no homem, é tambem incontestavel que esta excellencia não é a unica”, de modo que
“esses animaes, que a impiedade prepara para a futura sociedade, são instrumentos mais
proprios para anarchisá-la do que para aperfeiçoá-la”.422 Como ato de civilização e de
emancipação racional em relação ao domínio cego dos instintos,
Educar quer dizer elevar, alevantar, élever, dizem os francezes. Educar é aperfeiçoar a natureza humana. Para que o ensino dado constitua educação, diz o illustrado Dr. Otto Salomon, é necessario que elle seja dirigido no sentido do bem. Quem ensinasse o menino a furtar, não educaria, porque lhe abaixaria, em vez de elevar-lhe o caracter. Do mesmo modo, o menino desasseiado, grosseiro, desattencioso não se póde dizer educado. É necessario que todas as forças da natureza humana sejam desenvolvidas de um modo harmonico, para que a educação seja perfeita [...] não basta desenvolver as forças physicas e as forças intellectuaes; carece, primeiro que tudo, desenvolver as forças moraes, quer activas, quer passivas. Aquellles que comprehendem assim a educação, têm a meo ver, uma boa orientação pedagogica, porque conhecem, visam o verdadeiro ponto, a que se deve tender pelos processos educativos. Os que, porém, só cuidam de desenvolver certos systemas de forças, deixando sem exercicios outras forças importantes, que são essenciaes para o aperfeiçoamento moral, têm uma falsa orientação.423
A possibilidade de pactuação moral da vida coletiva era a destinação da
elaboração da consciência moral. Essa anterioridade do vínulo social, certamente,
fundamenta a formação das condutas individuais e da consciência moral em
correspondência com as perspectivas de constituição de uma população. Barbosa Nunes,
por exemplo, acreditava que na infância “está o futuro de um povo”, de modo que os
processos de educação consistem em “transmittir ao espirito da criança regras de bem
viver; esclarecer a intelligencia e ampliar-lhe os conhecimentos”. Tendo em vista a
integração dos indivíduos ao horizonte da existência coletiva, Nunes acreditava que era
fundamental “infiltrar na consciencia”
422 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 248-249. 423 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 434-435.
146
[...] sentimentos puros e nobres, afim de que elles possam, para o futuro, representar, na sociedade em que vivem, os seus differentes papeis de homens honestos e moralisados. Quem se contentar apenas com a instrucção mais ou menos variada, deixando no esquecimento o coração, em que se deve plantar sementes de sã moral, não cumpre o seu dever, não desempenha o honroso encargo que tomou sobre os seus hombros.424
Como correlação entre os processos de educação e a estruturação do campo moral
como referente da socialização, lidando com sua dinâmica problemática a partir da
exposição dos valores ao horizonte de vertigem da experiência moderna, a elaboração da
consciência era o trabalho do indivíduo em um governo de si. Como afirmava Barbosa
Pereira em texto assinado na Bahia, a observação dos “factos internos, objectos da
consciencia”, a um só tempo afastava os perigosos devaneios materialistas da redução do
indivíduo a uma unidade exclusivamente física e fundamentava a existência de “um
sujeito simples e identico que tenha consciencia de si mesmo, e que, no meio das
vicissitudes da vida, não se altere, nem se transforma”.425 Essa consciência de si tão
importante para a documentação analisada, como segurança de um eu estabilizado em
relação às flutuações e à potencial anarquia dos instintos, ancorava a pretensa garantia da
regularidade das condutas junto a suas motivações e aos valores estruturados na vida
moral, emoldurando as pretensões de domínio da natureza do humano.
Com a análise documental até aqui conduzida, talvez seja possível afirmar que a
difusão dessas preocupações junto aos letrados não era fortuita. Se os processos de
educação abordam a constituição problemática do mundo moral sob os impactos da
modernização, o esforço de estabilização das estruturas perceptivas e de sua ancoragem
em uma fundamentação da consciência, de algum modo, traduz as perspectivas
aspiracionais de reconhecimento de fontes morais, tornando problemática (em um
movimento acelerado desde os anos 1850) a identificação coletiva dos parâmetros morais
e de sua validade à luz de gradativa dissolução do horizonte de certezas tradicionais e do
aguçamento das percepções sobre o processo de dissociação.426 Vistas em conjunto, as
424 NUNES, Barbosa. O mestre primario na Bahia. A Escola, Rio de Janeiro, 1878. 425 PEREIRA, J. Barboza N. O pensamento e a matéria. A Escola, Rio de Janeiro, 1877. 426 BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIM, Elisabeth. Individualisierung in modernen Gesellschaften. In:
BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIM, Elisabeth. Riskante Freiheiten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 16.
147
vacilações das estruturas perceptivas do mundo moral ecoavam reorientações das
perspectivas formativas à luz das transformações da sociedade no fim de século brasileiro.
Os “exemplos de virtude civica” do livro didático de João Vieira Almeida, nesse
sentido, expunham um diálogo bastante curioso com suas “vacillações de homem
moderno” e com os conteúdos da experiência da modernidade. Se o texto é recheado de
lições sobre a técnica e a infraestrutura moderna,427 por que, afinal, olhar para um
passado, ensinado a partir de virtudes e exemplos, diante das iluminações do futuro
moderno? Talvez seja essa uma aposta para amarrar o conteúdo moral de um presente
movediço diante da desestabilização de sentidos da vida moderna. Se “a suppressão da
virtude é necessaria á expansão desavergonhada do vicio”,428 a mobilização da gramática
moral para os processos de educação ensinava a exemplaridade dos vícios e das virtudes,
mediados pela religião, como máximas de conduta social. As estruturas de integração das
virtudes cívicas, então, agrupam conjuntos bastante diversos de preceitos de avaliação do
agir distentidos pela experiência exemplar do tempo histórico.
Sintomática, nesse sentido, é a diluição das virtudes no processo de formação
nacional, constituindo uma narrativa identitária do povo no horizonte estabilizador da
consciência moral. Entre as figuras históricas que formaram a sociedade nacional, por
exemplo, Filipe Camarão (índio cristianizado nos tempos da guerra contra os holandeses
no século XVII) “era de boa indole, comedido e cortez, e no fallar muito grave e formal”,
pois “era muito bom christão e muito differente dos seus antepassados”, de modo que “o
que nos deve admirar, é a magia da educação que, ministrada, embora á força, opéra taes
transformações, que de um barbaro prejudicial, no entender de muitos, a ordem social,
póde conseguir um cidadao util a si e á sua patria”.429 O critério de utilidade era central
na regularidade moral das atividades sociais da população, uma vez que respaldava a
ideologia de um progresso ordeiro, pois regulado pela normatividade moral. À luz dos
critérios morais, ainda, Almeida ensinava que, como narrativa de abjeção,
Tenho de penetrar numa immunda setina, onde se agacha o mais repellente de todos os crimes: a trahição! A figura hedionda de Lazaro de Mello destaca-se da sombra do quadro de nossa historia, como esses vagalumes que cortam as trevas, em noites de tempestade. Perpetuamente na sombra, deveria ficar essa monstruosidade da ordem moral! Entretanto, mesmo para que seja utilisado de algum modo, é
427 Cf. Capítulo 1. 428 ALMEIDA, João Vieira. Patria. São Paulo: Casa Eclectica, 1899. p. 314. 429 ALMEIDA, 1899, op. cit., p. 66.
148
preciso que venha á luz, ainda que seja a claridade phosphorecente dos relampagos. As tempestades, posto que pavorosas, encerram alguma coisa de util, purificam a atmosphera, espalhando, em abundancia, o ozona. Assim tambem a – trahição, posto que o mais repulsivo de todos vicios, vai-me servir para extrahir delle uma lição de moral.430
Autor de diversos textos e responsável por importantes atividades editoriais na
esfera educacional no fim de século, Alambary Luz defendia a difusão das luzes a fim de
“tirar da ignorancia a maior parte dos cidadãos”, tendo em vista que “em muitas nações
modernas a maioria dos seus componentes ainda precisa da claridade vivificante da
instrucção”.431 Para o autor, a emancipação individual dos vícios implicava um projeto
de esclarecimento direcionado para a integração das forças vitais da sociedade. Nesse
sentido,
O individualismo parte deste principio: – a nossa pessoa é a primeira e viva incarnação da humanidade. A communhão social nada mais é do que a irradiação espiritual do eu humano. – O eu é a monada primordial da collectividade dos homens; é delle que a humanidade recebe a existencia para diffundi-la depois pela familia, pelo povo, pelo Estado, pela Nação; delle provém tudo quanto agita-se no Universo social e a elle tudo volta no gyro circular que é a forma perenne da vida. O homem por si só não poderia collocar-se em relação com outrem se não conhecesse as relações que existem de si para si, não sahe de si mesmo senão para em si reentrar, não expande a sua vitalidade na communhão dos outros homens senão para recolhe-la de novo mais intensa, mais variada, mais potente. O individuo humano é força activa e semovente; os organismos sociaes entretanto não vivem e não se movem se não pela vida e movimento proprio das unidades que os compõe.
Augusto Costa, nesse sentido, ensinava que “a conservação do individuo e a
reproducção da especie são os dous fins a que se dirigem todos os actos instinctivos, que
tambem se denominam propensões ou necessidades organicas”.432 O autor pretendia
demonstrar que as “propensões sociaes filliadas aos instinctos” indicavam como as
“propensões do homem nascem primitivamente de puros instinctos de conservação”. O
próprio regime de “affeições reciprocas” da ordem social contém uma espécie de
domesticação dos instintos pela consciência moral: mesmo a unidade da família, núcleo
moral da vida coletiva, incorpora esse desdobramento, na medida em que no “amor da
430 ALMEIDA, 1899, op. cit., p. 99. 431 LUZ, Alambary. A instrucção e o individualismo. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 15 ago. 1887. 432 COSTA, Augusto. Instincto. A Escola, Rio de Janeiro, 1878.
149
familia, como todas as virtudes que d’elle emanam, acha-se incluido o instincto da
procreação com todos os laços de reciprocidade”. As tentativas de estabilização de
estruturas normativas de integração a partir de prescrições estruturais (morais) e de sua
conformação (educação) são tensionadas justamente pelo jogo entre as contenções (ou as
simpatias) das expectativas morais de socialização e o potencial disruptivo dos intintos
sob o delicado verniz da civilização.
A economia moral dos instintos e a elaboração da consciência instituíam o auto-
domínio racional como imperativo dos processos de educação. Em um texto do século
XVIII (ainda bastante difundido no último quartel do século XIX), Nicolas Bergasse
temia que “o que de movimento e de energia perderam os caracteres”, acabando “por se
tornarem absolutamente estereis”, significasse também um sinal de decadência e
degeneração social. Nesse sentido, “os costumes, uma vez alterados, assemelhão-se a esse
musgo devorante que, se não nos occuparmos em extirpá-lo, invade os terrenos mais
ricos, e não consente nelles senão arvores sem belleza, uma verdura sem brilho, e fructor
cujo amargor maturidade alguma póde adocicar”. Se os luxos reluzem e encantam, o autor
advertia: “substituí por uma educação de luxo essa educação da alma e da intelligencia
ao mesmo tempo, que tira ao nosso amor-proprio as baixesas e a aspereza, que nos torna
bons e presumpçosos quando assim é necessario”. Para Bergasse,
O primeiro e o mais essencial objecto da educação é o desenvolvimento moral do homem. Afim de que o homem possua de uma maneira poderosa todas as suas faculdades, que as exerça com toda a energia, e que lhes dê todo o impulso de que são susceptíveis, é preciso que na primeira idade, e em tudo o que fôr o objecto de seus estudos, seu coração e seu espírito, sua imaginação e sua sensibilidade obrem ao mesmo tempo [...] É por interesse mesmo dessas sciencias que fallo, quando vejo que ellas só se occupão em uma idade em que a razão tem alguma força e uma certa consciencia; quando eu desejo sobretudo que, para que haja na razão mais movimento e energia, se prepare o desenvolvimento por um systema de estudo que alimente a alma e a disponha, dotando-a de um nobre e generoso sentir, ás sublimes meditações para que a contemplação da natureza arrasta infallivelmente um espirito que tem consciencia de seus recursos e o segredo de seu poder.433
As “faculdades preciosas que só á alma pertencem”, a expressão dos “nossos mais
communs sentimentos”, os “felizes habitos e doces virtudes” indicam “conhecimentos
433 BERGASSE, Nicolas. Educação. A Verdadeira Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 15 nov. 1872.
150
variados e todos relativos ao homem”, de modo que a racionalização dos comportamentos
e sua educação elaboram uma imagem de homem contribuindo para o “estudo de nós
mesmos”. A posição reflexiva em relação à modernização, para o autor, significava que
o empalidecimento dos sentimentos e a erosão do fundo tradicional de itens morais, que
“resultávão da antiga educação de nossos pais”, são indicativos de que “o nosso espirito
não está mais tão visinho do coração”. Como contra-narrativa desses preceitos normativos
da consciência e da socialização, os vícios e as inclinações desafiavam a regularidade da
vida moral, constituindo objetos de uma verdadeira decomposição em relação às suas
origens e natureza, pois “estas e outras propensões, com o crime ou a virtude a que podem
conduzir-nos, são representações differentes de puros instinctos na sua origem”. Tendo
em vista essa visada genética da fonte moral das inclinações, para que os instintos
“tenham um caracter mais elevado e mais nobre, é preciso que intervenha a razão e a
consciencia do homem civilisado”. A elaboração da consciência, como centro dos
processos de educação e indexador da estruturação moral da sociedade, ilustra a aposta
no ordenamento da vida e o espanto diante das incongruências da experiência da
modernidade. À luz dessa genealogia moral da vida moderna e das condutas,
As propensões d’onde derivam os crimes e as virtudes sociaes tambem se acham, póde dizer-se, na cathegoria dos instinctos, porque tambem tendem naturalmente á convervação do individuo e da sua especie. A ambição de riquezas ou de consideração, que, mantida em certo limite, abrange aspirações nobres tão apreciadas pela sociedade; e que, passando alem, se torna criminosa com a vaidade, orgulho, e com o roubo; essa ambição ou propensão moral parece originaria dos mesmos instinctos de conservação propria e da reprodução da especie. O homem procura certa posição social de vaidades, de orgulho, e até mesmo de louvavel consideração, porque vae nisso a propria commodidade de gozos. Determina-se a roubar, ou trabalha por adquirir copia de riqueza por meios honestos, porque essas riquezas lhe asseguram os meios de conservação propria e da sua prole. A philantropia e a amizade particular, com a respectiva dedicaçao e sacrificios, tão applaudidos pela sociedade, parece que tambem prende nos mesmos instinctos da conservação individual e da especie, si attendermos ao preceito que lhe serve de norma – fará aos outros o que quizerdes que te façam. Si, fazendo bem ao proximo, adquirimos direitos sociaes a sermos bem tratados, procuramos por aquelle meio instinctivamente certa ordem de gozos e commodidades, tudo conducente á melhor conservação do individuo ou da especie.
151
A emancipação racional dos indivíduos em relação aos vícios e às determinações
dos instintos pressupunha uma direção da vontade. Se a “intelligencia é a faculdade de
compreender e de dar aos actos da vida uma direcção determinada pela vontade do sêr
que as pratica”,434 “é da sua essencia uma apreciação ou percepção da impressão com a
consciencia ou com a razão”, de modo que “todos concordarão que uma tal faculdade só
pertence ao homem”. O raciocínio de Augusto Costa, dedicado aos estudos fisiológicos
de Pierre Flourens, enfatizava a elaboração da consciência como a interiorização de uma
normatividade de condutas capaz deafastar esse entendimento moral do indivíduo de um
jogo cego entre vontades. Nesse sentido, “muitas vezes a vontade com a razão e a
consciencia têm uma parte importante em todo esse jogo intellectual”, na medida em que
a decomposição das intenções do agir era confrontada com a instituição dos parâmetros
de socialização da vida coletiva. Os valores instituídos pela estruturação moral da
sociedade, irredutíveis ao mero impulso fisiológico, torciam o ímpeto individual ao amplo
processo de racionalização (civilização) das condutas educadas, já que
Dá-se pois nos animaes domesticos a manifestação de algumas faculdades intellectuaes do homem, quando consideradas na sua maior simplicidade ou no seu estado rudimentar. D’ahi até ás ideas de maior abstração, até aos raciocinios mais complicados, até á reminiscencia pelo emprego de processos menemonicos de maior trabalho intellectual, e até ao livre arbitrio, como expressão a mais sublime da liberdade humana e da vontade, ha uma distancia immensa que separa o homem dos animaes. N’estes actos mais sublimes da intelligencia, intervem a razão e a consciencia, com o que tem de privativo da especie humana.
Em um compêndio muito difundido em língua francesa e publicado no Brasil com
tradução de Joaquim Alves de Souza (professor do Liceu Nacional de Coimbra), Eustache
Barbe ensinava os “fundamentos da moral” a partir de “actos da vontade” que, oscilando
entre “necessidades e paixões”, constituíam o “tracto social” a partir da elaboração da
consciência – entendida como “a luz interior que mostra a cada um o que deve fazer ou
omittir”.435 Para o autor,
Quando alguma causa physica ou agente moral nos affecta a sensibilidade, sentimo-nos modificados agradavel ou
434 COSTA, Augusto. Intelligencia. A Escola, Rio de Janeiro, 1878. 435 BARBE, Eustache. Curso elementar de philosophia para uso das escholas. 4. Ed. Rio de Janeiro:
Nicolao Alves, 1871.
152
desagradavelmente. E se nossas affeições e desejos não são regrados, se nos deixarmos arrastar pelos instinctos e habitos, se as mesmas sensações e sentimentos agradáveis saem fora de certos limites, como quando apuramos o cuidado da alimentação até degenerar em glutoneria, etc., ou se finalmente nos deixarmos levar por motivos sensuaes, então no interior de nossa consciencia nos vituperamos a nós mesmos.436
Os “moveis dos actos humanos”, então, eram ancorados no auto-domínio do agir
educado a partir dos valores morais instituídos. Afastada do “estado de embrutecimento
proximo ao dos irracionaes”, a emancipação racional do humano implicava uma
correspondência entre uma pretendida sociabilidade natural da espécie e seus parâmetros
morais fundamentados tanto nos parâmetros liberais de socialização civil (a garantia da
propriedade privada) quanto nas simpatias e no ordenamento das estruturas de
reconhecimento social (honestidade, justiça, amor ao próximo, beneficência, gratidão
etc.). Essa ampla gramática dos “deveres para com os homens em geral”, pressupondo os
processos de educação como conformação em relação a valores, relacionava as
perturbações da vida moral a um esvaziamento do exclusivismo racional, de modo que
Desprezando o motivo do dever, o homem transgride a lei divina, perturba a ordem universal, infringe a justiça eterna; o que, aos olhos da razão, tem importancia muito diversa do mero desprezo das vantagens e gostos sensiveis. Accrescente que, segundo nos attesta a experiencia, a applicação dos outros motivos ás cousas da vida é seguida dos mais desastrosos resultados, quando lhe não preside a razão do dever e do bem moral. O habito de ceder ao movel do prazer produz laxidão e indolencia, aniquila a energia, a virtude e a magnanimidade, e gera males infinitos assim para o individuo como para a sociedade. O interesse, em chegando a senhorear-se da alma, facilmente a conduz ao egoismo; o egoismo torna-se insensivel ás miserias alheias; e esta insensibilidade extingue a generosidade, a abnegação e o amor do bem commum. Quando pois o prazer e o interesse forem os unicos móveis das acções humanas, então de sobre a terra desapparecerá a ordem moral, sem a qual não póde existir a sociedade.437
A flutuação da consciência moderna diante da multiplicação dos estímulos
sensíveis, desafiando a regularidade do hábito dos contextos tradicionais, exigia um
trabalho de disciplina do entendimento. José Veríssimo, em lição de abertura de aulas
436 BARBE, 1871, op. cit., p. 366. 437 BARBE, 1871, op. cit., p. 388.
153
sobre pedagogia junto ao Pedagogium no Rio de Janeiro, ensinava que a educação tentava
“dirigir e exercitar as faculdades, ou os simples instinctos dos animaes e até as forças ou
elementos vitaes dos vegetaes, em um determinado sentido”, de modo que “essa direcção
póde ser dada ao homem e como o podemos sujeitar aos exercicios que em nosso conceito
tentem a fazel-o aceitar a direcção que temos o intuito de dar-lhe”.438 A racionalização do
comportamento educado, lidando com as contingências da exposição social – afinal, “a
educação é uma obra de liberdade” –, reconhecia as agitações a que estava submetida a
vida moderna tendo em vista que
[...] a educação do homem não é o adestramento de um ser inerte e passivo, sinão o desenvolvimento de um ente livre e activo, cuja instrucção se provoca e cuja espontaneidade se excita – de um ente que accumula em si heranças diversas, que fazem por assim dizer de cada um um individuo distincto. Si o irracional quasi não offerece á educação outras difficuldades e resistencias que as do seu proprio organismo e da sua natureza – pois as variações que poderiamos chamar physicas são nelles extremamente limitadas –, o homem, pelo contrario, ser complexo, multiplo, vario e livre, cuja psychologia, salvo nas suas grandes linhas, é incerta e controvertida, oppõe á acção da educação resistencias de toda a ordem, algumas invenciveis. A educação de mais não póde ser entendida, quando fazemos della um factor de melhoramento do individuo, como a acção de um só agente, pai ou mestre, sobre esse individuo, mas como a influencia de um conjuncto de forças sociaes. A educação é eminentemente a obra do meio, e não unicamente a da familia ou da escola. Familia e escola, são apenas elementos constitutivos do meio, e os seus principaes factores na obra da educação; talvez os melhores e mais efficazes, mas não os unicos.439
Os processos de educação mobilizados pela dinâmica social, enfatizando a
“educação como resultado de suas forças concurrentes: ensino e direcção moral”,440
implicava uma “acção exercida com um fim de utilidade individual ou social”. A
recorrência do critério de utilidade nos processos de educação sublinha uma destinação
essencial do mundo moral: como um être mis à sa tâche, a normatividade da vida prática
assume o ideal de homem como um meio de utilidade cuja puissance d’artifice reside
justamente em sua funcionalização para a sincronia das estruturas de produção e
reprodução da cooperação social.441 Abrindo a consciência do mundo moral a uma
438 VERISSIMO, José. Da educação em geral. Educação e Ensino, Rio de Janeiro, jul. 1897. 439 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 11. 440 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 13. 441 CANGUILHEM, Georges. Qu’est-ce que la psychologie?. In: CANGUILHEM, Georges. Études
d’histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 1970. p. 377-378.
154
vinculação ética junto ao imperativo de manutenção da vida coletiva (daí a recorrente
preocupação de uma formação do cidadão útil a si e aos outros), a utilidade repousava
sobre um pressuposto evolucionista, destacando que “a nossa civilisação não é mais que
um producto da educação para a qual concorreram todos os factores acima referidos”.
Nesse sentido, os processos de educação tendem a “desenvolver harmonicamente e dirigir
as faculdades physicas, intellectuaes e moraes do homem, de modo a aperfeiçoal-o e
fazel-o melhor servir á evolução da especie”.442
Para Alambary Luz, o governo da conduta individual era baseado em mecanismos
de estabilização, em um “momento de perplexidades sociaes”, “quando idéas que se
tinham por assentadas vacilam em seus fundamentos, quando a inconstancia pretende
occupar o posto de que ainda hontem parecia manter a firmeza da verdade”.443 Bem ao
gosto do fisiologismo da teoria social da época (e aqui a referência é aos trabalhos de
antropologia de Arthur Bordier), se é possível comprar “o corpo social a um organismo
individual vivo, cujos elementos anatomicos são constituidos pelos Cidadãos”, esses
“elementos anatomicos” da sociedade, quando não são regulados, compõem um
movimento de “desenvolvimento, degenerescencia, morte e eliminação”. A assepsia
moral das aglomerações modernas, ao lado da higiene (que “deve fazer com que esta
renovação de tecidos se opere em condições favoraveis ao seu desenvolvimento e á sua
evolução”), compreendia a “funcção da educação”, que consistia em “elaborar, formar,
auxiliar em seu desenvolvimento os elementos novos que hão e effectuar em idade adulta
as differentes funcções organicas do corpo – estes elementos novos são as crianças”. A
intervenção sobre a população era uma operação sobre seus critérios formativos, os
futuros cidadãos, angulando uma narrativa do povo como um componente que, “embora
inculto, é simples e benevolo; em sua rudeza natural mais facilmente se encontra um
sacrario de virtudes zelado com maior desvelo, do que no palacio dos poderosos, não
poucas vezes contaminado pelo contagio de convenções deletérias”. A intelectualização
da vida moderna carrega o potencial de irrupção de “novo elemento de corrupção”, de
modo que “dar impulso ás forças naturaes da infancia” também significa moralizar a
multiplicação de aspirações decorrente da assimilação dos diversos estímulos e formas.
Trata-se, sobretudo, de evitar que a dissociação e o espectro do materialismo tornem o
critério de utilidade refém do visível e da lógica auto-interessada dos indivíduos:
442 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 15. 443 LUZ, Alambary. Discurso proferido por occasião da distribuição de premios aos alumnos do 2º districto
escolar. Annuario do Ensino, Rio de Janeiro, 1895.
155
Devemos, dizem, estabelecer como base da educação a utilidade! – Mas o que é util a uns não o é aos demais homens. Si admittirdes essa venenosa theoria ensinareis ao povo a usar de sua força de conformidade com seus calculos e seus interesses materiaes. E que fim dareis aos habitos ordeiros, ao modo de viver pacifico, á abnegação incondicional da melhor das aggremiações humanas – da Sociedade brasileira? [...] Si mostra-se invejoso da riqueza alheia, si apenas supporta, incendido de colera, a propriedade de outrem, si irrita-se e pragueja ao aspecto de quem se collocou melhor na escala social, então apparece magestoso o papel da educação que terá de operar pelos meios persuasivos, e por effeito dos recursos ministrados pelas lições da historia a restituição indispensavel das leis naturaes da ordem na humanidade.
Advertindo que “nunca se desvairam as massas populares senão falando-lhes á
phantasia”, a “obra social e humanitaria” da educação iluminava as promessas de
emancipação intelectual e tangenciava o problema da origem das estruturas morais da
vida coletiva. Essa busca não decompunha apenas a gênese das condutas por meio de uma
avaliação das inclinações morais, mas significava um esforço mais amplo de
entendimento dos processos de educação nos quadros do desenvolvimento de formas de
coesão implicadas na consciência moral. A ascendência da vida coletiva e sua instituição,
considerando a relação com valores aí entendida, estava no próprio fundamento dos
discursos da civilização e de aperfeiçoamento das condutas estruturados pelos processos
de educação, sintetizando um vasto conjunto de preocupações sobre a origem do mundo
moral. Mesmo o grande texto de antropologia social de Darwin em The descent of man
(1871), colocando sob suspeição o exclusivismo do humano tão presente nas falas da
documentação brasileira, reconhecia que a civilização, impondo padrões de socialização
sobre os ímpetos individuais e suas pressões naturais, era sustentada por “simpatias” que
rotinizavam formas de consciência e hábitos sociais, organizando e controlando
diferentes gradações dos “impulsos instintivos” e de valores morais em torno da
elaboração da consciência pelo hábito e pela educação.444
A bem da verdade, essas discussões circulavam e eram muito presentes no fim de
século. Darwin tinha como interlocutores Büchner, Karl Vogt, Haeckel, Tylor, Morgan e
Huxley – textos, aliás, também presentes junto às preocupações dos letrados brasileiros a
partir dos anos 1870. Além do conjunto documental analisado no capítulo anterior, vale
444 DARWIN, Charles. The descent of man. Londres: Penguin, 2009. p. 134, p. 157.
156
lembrar uma preleção de Joaquim Inácio Silveira da Motta, nome importante do campo
da instrução pública no período, em que o autor destacava, como ponto de partida da
formação dos “elos da cadeia social”, o fato de que “anthropologicamente fallando a
educação e a instrucção da especie não é só uma obrigação moral, é, mais ainda, uma
condição de existencia”.445 Discutindo as teorias de lorde Brougham, Guizot, Horace
Mann, Emilio Girardin e Spencer, o autor acreditava que, “passando das primeiras
sociedades humanas ás agglomerações”, todas as sociedades “ligarão maxima
importancia a educação e instrucção” da população, na medida em que “tomavão o
cidadão desde o nascimento, o almoldavão e dispunhão da instrucção mais apropriada
para pôr em harmonia com a instituição, os sentimentos e ideas”.446 Para o autor, os
“bellos destinos do genero humano” eram identificados com os valores de socialização
que permitiam a vida coletiva, de modo que a educação “não se occupa só de desenvolver
e illustrar o espirito, mas tambem de, simultaneamente, formar o temperamento moral” –
o “sentimento da personalidade” –, contanto que “para salvaguarda da sociedade esse
sentimento ache sua norma”.447 Contra as tendências da dissociação, a produção da
consciência moral da vida coletiva e de sua regularidade era sinal de que
[...] essa força resulta da congregação; da união pela communhão de interesses [...] Outr’ora era o individuo procurando a união para a defesa, agora é a sociedade que precisa do concurso de cada um de seus membros, na razão de sua capacidade para que os phenomenos vitaes se executem regularmente.448
Para José Veríssimo, a correlação estabelecida entre os processos de educação e a
conformação do ímpeto individual diante da consciência dos deveres da vida coletiva
indicava uma via de mão dupla. Por um lado, como narrativa de coesão de um povo e de
seu elemento nacional, “produzindo um individuo previamente determinado, segundo um
typo preconcebido”, os processos de educação deveriam atuar “com a mesma certeza do
resultado com que o jardineiro-botanico, mediante processos materiaes, dá a este ou
áquelle vegetal a forma que a sua fantasia imaginou”.449 Para “o desenvolvimento
harmonico das faculdades physicas, intellectuaes e moraes”, essa “arte que aperfeiçoa a
445 MOTTA, Joaquim Ignacio Silveira. Conferencias officiaes sobre instrucção publica e educação
nacional. Rio de Janeiro: Dias da Silva Junior, 1878. 446 MOTTA, 1878, op. cit., p. 7. 447 MOTTA, 1878, op. cit., p. 47. 448 MOTTA, 1878, op. cit., p. 37.-38. 449 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 12.
157
acçao melhorando o agente” pressupõe “os dois pontos de vista da educação, o individual
e o social, estão nella abrangidos, e o fim primario da educação – melhorar o individuo –
acha-se nella consignado”.450 A direção e a unificação dos atos de vontade diante das
ambivalências da cultura moderna, no entanto, indicavam justamente a consistência
problemática desses conteúdos da vida, de modo que
Nenhuma das obras sociaes é por isso mais delicada que a educação, principalmente a educação em a nossa sociedade moderna tão agitada, tão combalida, tão dividida por tão varias e desencontradas correntes de idéas e opiniões. Tudo o que constitue a vida de uma sociedade – a familia, a escola, a religião, a arte, a litteratura, a industria, os costumes, a politica – tudo concorre para a educação do individuo que della é parte, isto é tudo concorre para imprimir ás suas faculdades uma direcção, para educal-o em summa.451
Aqui, dois problemas estão entrelaçados. Como processos cumulativos de
instrução e projeto de esclarecimento (civilização), advertia Veríssimo, “não nos
esqueçamos jamais que a educação procura transmittir ao homem do presente todas as
acquisições do homem do passado, augmentando-as, para que elle as transmitta por sua
vez acrescidas ao homem do futuro”. Por outro lado, se o indivíduo “passa a ser agente
desde que a sua actividade entra a exercer-se na sociedade”, a limitação das condutas
implica a seriação de mecanismos de disciplina. Percepção, aliás, bastante difundida na
documentação: um texto anônimo informava que “a educação é perfeita quando reune a
instrucção ao desenvolvimento das faculdades moraes; é a sciencia unida á virtude; é a
cultura do espirito resultando da cultura do caracter”, de modo que os processos de
educação, como desenvolvimento do “gosto do que é bom e honesto”, implicava um
polimento nos sentimentos e nas condutas individuais a fim de “vigiar os costumes logo
nos primeiros annos para dar-lhes boa direcção e reprimir as más inclinações”.452 Se a
decomposição do campo do agir busca a gênese das motivações nas suas inclinações e na
necessidade de contenção moral, a derivação desse procedimento à formação dos
costumes coletivos implica, no limite, uma narrativa aspiracional sobre as configurações
da população. Conforme José Veríssimo, o horizonte da estruturação moral da sociedade
é a educação de suas formas de socialização por meio da gestão moral da população, de
450 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 14. 451 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 11. 452 Erros e preconceitos. A Estação, Rio de Janeiro, 30 set. 1885.
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modo que, em um sentido mais fundamental, a integração do indivíduo a essas estruturas
da vida coletiva pressupunha que
A educação, geral ou profissional, comtanto que seja educação e se não limite a ser instrucção apenas, é uma obra de unidade, de liberdade e de autoridade. Uma obra de unidade quanto á inspiração que a dirige, aos methodos nella empregados e aos fins que se tem em vista. Uma obra de liberdade porque se não dirige a um ser inerte e passivo, mas a um ente livre e que como tal deve viver em sociedade. Uma obra de autoridade, porque é impossível dal-a sem submetter o educando a um constrangimento, por minimo que seja. Uma das maiores difficuldades da educação é justamente a conciliação necessaria entre o respeito á liberdade da criança e a necessidade do constrangimento entre essa liberdade respeitavel e aquillo que Herbart chama o governo das crianças e que nós preferimos chamar pela denominação commum de disciplina.453
Assim como a origem da civilização pode ser buscada em uma longa genealogia
de seus pressupostos morais de socialização, o germe do futuro homem e cidadão estaria
contido na infância. Alambary Luz afirmava que os processos de educação deveriam
“despertar no animo da puericia as primeiras idéas do dever e do bem”, além de “elaborar
aos poucos o homem do futuro, o cidadão”.454 Para o autor, “as revoluções políticas
iniciadas no fim do seculo passado, as guerras internacionaes feridas na 2ª metade do
actual, e principalmente o perigo que ameaça a existencia dos povos”, “concorrêrão para
grandissimos desastres e continuão a conservar de sobreaviso as relações de grande
numero de paizes”. O horizonte coletivo, que pode “ministrar lições severas e
proveitosas”, indicava a volatilização das formas de vida em função da precarização das
estruturas de coesão moral e esclarecimento da população,
Quer provenhão as convulsões sociaes da explosão de necessidades e soffrimentos experimentados pelas massas populares, quer se manifestem como resultado de calculos ou de erros das classes directoras, o facto culminante é – que os horrores de toda sorte praticados nesses dolorosos momentos provêm da falta de cultura intellectual, são o resultado funesto e natural da ignorancia.
453 VERÍSSIMO, 1897, op. cit., p. 16. 454 LUZ, Alambary. O Estado e a instrucção. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 1887.
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Alambary Luz acredita que, “supprimida a escola, no pensar de Laveleye, não
resta como principio de ordem senão a prisão e a forca”. Se “a liberdae e bem-estar de
todos advem da educação”, “abstrahir deste principio é conceder que os individuos possão
destruir as bases da vida social”. Uma época que imaginava ter atingido “as mais altas
necessidades da civilisação”, contudo, parecia vislumbrar igualmente o terror dos
potenciais de regressão junto à dissociação individual e à latente impossibilidade de
contenção dos ímpetos das aglomerações. Se “está hoje reconhecido e assentado que a
sociedade é um organismo, e que como qualquer outro organismo da natureza ha de
conservar-se e progredir”, “dado o máo estar, filho de más condições sociaes manifestão-
se desordens em todas as funcções da vida civil, e é sabido que as perturbações da ordem
são sempre causa de retardamento do progresso”. As preocupações de Alambary Luz
diante da vertigem moderna enfatizavam os choques sobre a integração moral da
sociedade a partir da elaboração da consciência. Nesse sentido,
A actualidade é assombrose e desanimadora. A consciencia do homem moderno, diz com verdade Pi y Margall, é um fóco de virtualidades contrarias, e um theatro de lutas incessantes: – utilitaria na vida, materialista na sciencia, naturalista na arte, descrente na religião, sceptica em tudo. Tal estado foi considerado morbido pelo profundo pedagogista P. Siciliani ha pouco infezliemte desapparecido dentre os vivos, e para debellar tão grave enfermidade reduzio a tres todos os systemas de cura, aos quaes denominou – Socialismo hippocratico, Socialismo deagogico e Socialismo scientifico.
Há muitas camadas nessa percepção de Alambary Luz. A educação da população,
como “necessidade que funda-se na existencia da collectividade organisada”, pressupõe
a regularidade moral das condutas assumindo como duplo a intermitente ameaça de
dissociação e de descontinuidades na estruturação moral. Certamente aqui reside a alergia
do autor em relação aos ideais socialistas em circulação desde a primeira metade do
século XIX. As instâncias de integração moral da sociedade não significam um projeto
de coletivização. A condição de nivelamento das formas de vida junto às aglomerações e
às populações modernas, aliás, incomodava o autor, que argumentava que “cada um de
nós tem orbita propria para desenvolvimento livre da actividade interior”. Nesse sentido,
“o socialismo que invade essa orbita ou perturba o seu percurso offende e profana o
melindre de nossa personalidade”, de modo que, em sua representação ideológica, Luz
parece misturar sua noção de socialismo com as imagens de terror coletivista que
circulavam na época (tal como o Chigalióv de Dostoievski).
160
Para Alambary Luz, se virtus in medium est, “nem socialismo puro immergindo o
cidadão na massa geral para não apparecer mais do que o vulto indissoluvel e massiço do
Estado, – nem mero individualismo querendo preponderar sobre os interesses do Estado
e concorrendo para a desconnexão da collectividade”.455 Os processos de educação e a
integração moral das atividades sociais, então, “tem por meta fazer entrar todas as classes
nas correntes da civilisação”, tornando “todos os cidadãos factores da prosperidade
nacional e fornecer a todos os individuos os meios indispensaveis á preservação e
melhoramento da existencia no seio da natureza, da familia e da sociedade”. Como
critério de utilidade e fundamento da narrativa de um povo, o horizonte coletivo de
regularidade das condutas, partindo do projeto de esclarecimento moral do indivíduo,
implica a construção de “meios que podem collocar o homem em situação de converter
as forças naturaes em utilidade propria, regular a vida no lar domestico, e cooperar para
o funcionamento do organismo social e politico”. A elaboração da consciência, como
reconhecimento do mundo moral e das prescrições valorativas da vida coletiva, desdobra
um ponto importante dos processos de educação da sociedade.
A perspectiva formativa do homem e do cidadão, repousando sobre a emancipação
moral e racional do humano por meio da consciência dos valores subjacentes à praxis do
indivíduo público como cidadão, é convertida na própria contextualização da integração
individual contra os riscos da dissociação. Nesse sentido, “a independencia pessoal não é
o isolamenteo selvagem, não é a liberdade do eu convertida em egismo vicioso e
dissolvente”. A normatividade social disseminada pela gramática moral e pelas
prescrições balizadoras da socialização considera a pertença coletiva como estruturas de
reconhecimento pautadas pela elaboração da consciência moral, de modo que “na ampla
esphera do Estado e da Nação cada qual deve gyrar em torno do proprio eixo, e no meio
do conflicto dos acontecimentos conservar sempre desperta a consciencia dos seus
deveres e tambem a dos seus direitos”. Para Alambary Luz,
Embora reconheça-se que o individuo humano além de uma individualidadde é tambm uma pessoa; pensamento e sentimento vivaz, incommunicavel, distincto, no dizer de Siciliani; sujeito que isola-se e quer, segundo Fichte; uma actividade autonoma, fim de si mesma, como o designa Kant; uma actividade absolutamente livre emquanto não offende o exercicio de outras tambem livres, na phrase de S. Mill, a verdade é que este individuum não passa de uma abstração. Se não
455 LUZ, Alambary. Nem socialismo puro nem mero individualismo. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro,
27 ago. 1887.
161
podemos conceber a sociedade sem individuo, é tambem impossivel admittir o homem no pleno e são exercicio de suas faculdades naturaes sem uma fórma ainda que elementarissima de sociedade.
A própria consciência do homem moderno como “um foco de virtualidades
contrárias” (tema que desenvolverei alguns parágrafos adiante) indicava, na mesma
imagem, o potencial da dissociação dos processos de individualização e a agitação moral
das consciências diante da experiência da vertigem. Quanto a este último ponto, o esforço
das estruturas de integração moral, por meio dos processos de educação, tangencia a
ambivalência das condutas: nesse sentido, talvez, a experiência da vertigem e a
indeterminação possa ser ilustrada pela dissociação moral de O duplo (1846), de
Dostoievski, como um estágio liminar de consciências fraturadas em que não há
univocidade para as formas de agir, de modo que a moralidade, tentando oferecer essa
reintegração de sentidos, é ela mesma refém do antagonismo de “virtualidades contrárias”
do sr. Golyadkin (ele mesmo ilustra a fratura moral ao tentar manter retidão, caráter e
probidade ao passo que é dobrado pelas iluminações da riqueza e do luxo da casa dos
Beriendeiev).456 Com Alambary Luz, além do antagonismo das “virtualidades contrárias”
na elaboração da consciência moderna, o risco da dissociação exigia o “conhecimento das
sciencias physicas, biologicas, historicas e moraes”, pois
O individuo é essencialmente relativo, portanto em outrem completa-se, integra-se, incarnando no seio da sociedade a sua actividade independente. Na sociedade, pois, o homem não perde; antes adquire, transformando a sua individualidade em personalidade juridica; porém, no pensar do celebre pedagogista Bolonhez, não póde atingir o privilegio de personalidade concreta senao: - possuindo o fructo do seu trabalho qualquer que elle seja: – instituindo-se o centro de uma sociedade na sociedade, centro de um organismo familiar no recesso do grande organismo social: – sendo positivamente artifice e instrumento do Estado, como autor e executor da lei: – considerando-se a si e aos outros como o maximo organismo Ethico da sociedade, encaminhado sempre para o bem do Individuo.
A sobreposição de horizontes, indicando o aperfeiçoamento moral do indivíduo e
sua integração ao campo da consciência coletiva, era a visada de um artigo anônimo do
mesmo jornal de José Rodrigues de Azevedo Pinheiro Junior e José Joaquim do Carmo,
456 CHESTOV, Léon. La philosophie de la tragédie: Dostoïewski et Nietzsche. Trad. Boris Schloezer.
Paris: Pléiade, 1926. PAREYSON, Luigi. Dostoiévski: filosofia, romance e experiência religiosa. Trad. Maria Helena Garcez e Sylvia Carneiro. São Paulo: EDUSP, 2012.
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indicando que a “instrucção publica refere-se á educação physica, moral, e intellectual do
homem, como membro da familia, cidadão no Estado, e parcella da humanidade”.457 Nem
a subsunção da atividade individual pelo coletivismo, nem o horizonte de dissociação da
estruturação moral: nesse sentido, “a resolução do grande problema importa o
melhoramento e o progresso do individuo em todas as condições, e relações de sua
existencia terrestre”, de modo que “a civilização é a educação dos povos, como a
educação é a civilização dos individuos”. A tangibilidade da forma social, alicerçada nas
relações moralmente ordenadas da sociedade civil, indicava que
O progresso, essa lei dos seres perfectiveis, póde realizar-se por dous meios differentes, como diz Ott: um é o caminho livre, refular, pacifico em que a transformação se realiza pelo concurso de todas as classes [...]; o outro é o caminho fatal, cégo, em que o fim só se realiza em nome do direito, atravez das resistencias e das exagerações, pela violencia e o mal debaixo de todas as suas fórmas.
De todo modo, para Alambary Luz, o sinal da modernidade era indicado pela
estruturação da sociedade civil (alicerçada em uma narrativa do povo) e sua proatividade
condicionada a estruturas normativas da moralidade, de modo que disso dependia “a
ordem social do mutuo respeito das relações dos homens – uns para com os outros, para
com Deos, e para comsigo mesmo”.458 Em tempos revoltos, afinal, a ameaça de ruptura
da organização moral significava que “os desmantelamentos sociaes fazem ressurgr o
cezarismo ou o bastão dos Dictadores, e que quanto mais almejado é pelas maiorias como
esperança de tranquilidade, tanto mais se ostenta despotico e tyranno”. “Do cháos virá a
luz, da confusão a ordem, da revolução a paz”: da aceleração das transformações, um
horizonte de profunda indeterminação era tematizado. Nesse sentido, “então em vez de
caminhar avante, retorgrada-se”, de modo que as aludidas lições da história das
sociedades modernas, para Luz, evidenciam que “a logica inexoravel e brutal dos
acontecimentos” paira como uma ameaça sobre as vacilações das consciências. Aqui
reside o principal ponto da argumentação do autor.
“Um foco de virtualidades contrárias”: a referência de Alambary Luz a Pi y
Margall indica elementos importantes para o encaminhamento da discussão. A frase, a
rigor, é uma passagem de La reacción y la revolución,459 de Pi y Margall, republicano
457 Instrucção publica. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 23 maio 1875. 458 LUZ, Alambary. O ensino primario. A Instrucção Publica. Rio de Janeiro, 12 maio 1872. 459 PI Y MARGALL, Francisco. La reacción y la revolución. Madri: Rivadeneyra, 1854. (Vol. 1)
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espanhol cuja obra é marcada pelo fragor das insurreições de 1854 (Revolução de 1854)
e pelo eco das jornadas de 1848 contra o governo moderado de Ramón Narváez. Como
reflexão sobre os destinos políticos da época, o autor fundamenta uma apreensão da
consciência moderna – delimitada pela Revolução Francesa, pelas independências
americanas, pelas declarações dos direitos do homem e cidadão (la soberanía del hombre)
e pela experiência radical de 1812 em Cádiz – a partir de um torvelinho que “suspende a
marcha natural dos princípios”, entregando-os ao ímpeto das paixões e à indeterminação
das vontades.460 Esse campo da experiência moral da modernidade era central para o
argumento de Alambary Luz.
Opositor do clero e crítico do cristianismo, Pi y Margall reduzia o conteúdo da
determinação religiosa da vida a formas de sociedades tradicionais, de modo que o
progresso do século (doctrina de la perfectibilidad) convertia a religião apenas em “ideias
que servem de crisálida” às formas de socialização.461 Assim, a estruturação moral da
sociedade moderna era pensada a partir de padrões “secularizados” de reconhecimento –
ainda que a gramática moral repousasse, fundamentalmente, em derivações do religioso
(caridade, solidariedade social, assistência etc.). Nesse sentido, Pi y Margall partilhava o
reconhecimento (comum na época) de que a religião, como forma de cultura
(desvinculada do campo institucional da Igreja), era responsável pela depuração dos
ímpetos e pela construção de simpatias básicas da socialização (respeito ao próximo,
pessoa moral, família, cidade, fraternidade universal etc.).462
Para o autor, “a dúvida é hoje geral entre os homens”, que “passam diante da
imaginação em confuso torvelinho”, de modo que o indivíduo é “arrastado por espantosas
vertigens ao fundo de um abismo”.463 Se a consciência é “o foco de mil virtualidades
contrárias”, esse “resumo de todos os antagonismos do mundo sensível” contraposto aos
conteúdos substanciais dos valores religiosos implica uma dissociação moral que
mergulha a experiência moderna em um dualismo.464 A intensidade de estímulos da vida
social e os progressos materiais do século sinalizavam as atividades intramundanas e um
ideal de homem (assumindo como pressuposto seu processo de esclarecimento e sua
emancipação moral dos vícios) como a “origem de toda a realidade, fonte de toda
certeza”. Como elemento desenraizado (desterrado) dos processos sociais, afinal, a
460 PI Y MARGALL, 1854, op. cit., p. 66. 461 PI Y MARGALL, 1854, op. cit., p. 99. 462 PI Y MARGALL, 1854, op. cit., p. 104. 463 PI Y MARGALL, 1854, op. cit., p. 94-95. 464 PI Y MARGALL, 1854, op. cit., p. 107-108.
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erosão do conteúdo religioso dos valores implicava a visada de vertigem da própria
estruturação da consciência moral.
Os escritos da fase final de Joaquim Nabuco ecoam uma atmosfera bastante
sugestiva a esse respeito.465 As notas redigidas em francês (quase em tom de aforismos),
datando de 1893, discutiam a centralidade do élément moral para o entendimento das
vacilações da cultura moderna. O estampido da iluminação moral decorrente do religioso
necessitou da razão humana para sua realização, assim como “a eletricidade esperou a
garrafa de Leiden”. Nabuco indicava a preocupação com uma art de vivre baseada nas
práticas de formação de condutas e de educação, tendo em vista o encolhimento (rétrécit)
da “alma moderna” como desafio à produção da consciência.466 O despedaçamento da
adesão brûlante ao religioso indica uma mutação sociocultural ampla, condicionando a
organização moral da sociedade e o point d’appui de l’ordre baseado nos processos de
educação,467 no limite, a um esfumaçamento da validade de códigos morais diante do
dinheiro,468 do materialismo, das iluminações do progresso material e da guerre acharnée
(entre classes, nações e indivíduos) como signos portadores da dissociação
(individualismo) e do revolvimento da garantia moral na coesão social.469 O próprio
exclusivismo do humano na produção da consciência e na racionalização das condutas
educadas diante do auto-domínio moral, nesse sentido, é contrastado com a projeção
distópica de uma machine humaine cujo corpo seria remodelado por pistões, válvulas,
baterias etc. –470 ou seja, a parafernalha técnica apresenta uma imagem do pós-humano
na medida em que a redução a um autômato significa, além da deformação (estropié) da
imaginação, um artificialismo no ambiente moral da consciência.
Como distintivo do humano na elaboração da consciência, o estatuto do religioso
(como forma de cultura) era tematizado como a revelação do mundo moral. Na Revista
Pedagógica, publicação mensal do Pedagogium feita sob direção de Menezes Vieira, o
professor Luiz Augusto dos Reis, em conferência ministrada no Museu Escolar Nacional
em março de 1886, oferecia um vasto quadro de autores e pedagogos do período
(Daligault, Charboneau, Overbeg, Mariotti, Paul Laret, Norlander, Schreber, Garsault
etc.) a fim de indicar que “educação e instrucção são cousas tão estreitamente ligadas”,
de modo que quebrar essa interdependência formativa significava “separar o exercicio
465 NABUCO, Joaquim. Pensées détachées et souvenirs. Paris: Hachette, 1906. 466 NABUCO, 1906, op. cit., 41-42. 467 NABUCO, 1906, op. cit., p. 63. 468 NABUCO, 1906, op. cit., p. 57. 469 NABUCO, 1906, op. cit., p. 214. 470 NABUCO, 1906, op. cit., p. 75-76.
165
das diversas faculdades cujo desenvolvimento simultaneo constitue a harmonia da vida
individual”.471 Se a regularidade moral do hábito é “o primeiro elemento da formação da
consciencia na creança”,472 o “progresso dos costumes e o aperfeiçoamento moral do
homem” pressupõem um longo processo civilizatório encaminhado pela elaboração da
consciência educada, de modo que
O espirito do Christianismo, espalhando-se por toda a terra, firmou suas doutrinas puras e sans na consciencia humana. A Moral viu illuminados os seus paços pelo enorme clarão que jorrava do novo Evangelho, e o cultivo da virtude e dos sentimentos affectivos começou a sua série de explendores que atravessaram a idade média e que serão para sempre o guia da Humanidade. Foi um desmoronamento e uma resurreição: – desmoronamento de um e resureição de outro mundo moral.473
A referência do professor Reis nessa discussão sobre o peso da religião na “maior
regeneração moral” e “aperfeioçamento das gerações infantis” era um livro de Antonio
da Costa,474 célebre autor português do período, com muitos textos circulando no Brasil
do fim de século – certamente um capítulo importante dos intercâmbios pedagógicos no
eixo atlântico.475 Em pesquisas na Biblioteca Nacional, por exemplo, notei diversas
menções a seus textos em anúncios de tipografias e livrarias, além de jornais e relatórios
oficiais no Rio de Janeiro, no Maranhão e no Rio Grande do Sul. Muito conhecido pela
obra A instrução nacional, em que defende a “lei progressiva” da vida social por meio da
qual a “sociedade velha recua espantada diante da sociedade nova”, o autor ecoava as
preocupações de Jules Simon e Cournot com a difusão das luzes e a estruturação do
campo da instrução pública (o “elemento mais poderoso da civilização”) como distintivos
da consciência histórica oitocentista,476 tentando colocar o “homem no centro dos
elementos do mundo moral”. As informações e as considerações sobre o campo da
instrução pública em diversos países (Inglaterra, Portugal, França, Espanha, Prússia,
Brasil, Bélgica, Suíça, Império Otomano, Grécia etc.), conforme Costa, sinalizavam que,
como perspectiva de “melhoria da população” por meio da constituição moral do “ente
humano como homem, como cidadão, como trabalhador”,477 os processos de educação
471 REIS, Luiz Augusto. Pedagogia. Revista Pedagógica, Rio de Janeiro, v. 3, 1895. 472 REIS, 1895, op. cit., p. 102. 473 REIS, 1895, op. cit., p. 103. 474 COSTA, Antonio. O christianismo e o progresso. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868. 475 SILVA, Vivian Batista. Saberes em viagem nos manuais pedagógicos: construções da escola em
Portugal e no Brasil (1870-1970). São Paulo: Editora Unesp, 2018. 476 COSTA, Antonio. A instrucção nacional. Lisboa: Imprensa Nacional, 1870. 477 COSTA, 1870, op. cit., p. 23.
166
mobilizavam a família e diversas instituições e práticas sociais, na medida em que a
formação moral oferece “modelos civilisadores da organisação social”, “derrama nos
centros da população o pensamento do bem, semeia os principios da ordem e da virtude”
e “diminue os crimes e restringe a miseria”.478
O campo da instrução pública e os processos de educação, para Antonio da Costa,
reverberam uma contradição mais profunda da cultura moderna no século XIX. A
multiplicação das atividades sociais mediante a efetivação do mercado mundial, ao passo
que consolidava a ideologia do universalismo burguês de uma “humanidade unificada”
sob os melhoramentos para o “bem-estar de todos os homens” (otimismo, aliás, muito
presente na documentação de época), sujeitava a realização de seu conteúdo às
contradições do campo valorativo comprometendo a respeitabilidade e a regularidade da
vida moral pelo progresso ordeiro e mantenedor das liberdades individuais (comerciais).
Se a volatilização dos valores conduzia à vertigem dos referenciais liberais de
socialização e sua estrutura normativa das prescrições de conduta, o século das ferrovias,
da imprensa, do telégrafo, do comércio, das exposições universais e dos congressos de
educação e beneficência (“ramos principaes da vida social”)479 lançava essa vasta
experiência social da aceleração a “contrariedades” entendidas por Antonio da Costa
como “um combate gigante de principios” e de virtualidades contrárias, de modo que “o
seculo XIX não sabe o que quer”.480
O espectro da indeterminação sobre os quadros morais dissolvia qualquer clareza
em pretensões de estabilidade no horizonte de expectativas. Se a irrupção de formas novas
rondava a gênese da cultura moderna e estabelecia linhas de transformação
imponderáveis, a percepção dessas alterações saturava as referências a valores com as
tentativas de apreensão do movimento expansivo da vida moderna. Os processos de
educação, nesse sentido, lidam com a impossibilidade de predicação de futuros, tornando
as narrativas de emancipação modernas reticentes em relação à fundamentação moral. O
escritor Miguel Cané, filho do boom urbano de Buenos Aires e da generación del 90, em
carta redigida nos anos 1890, condensava velocidade, vapor, motores a explosão,
caldeiras e circulação de indivíduos e mercadorias em um movimiento febril cuja
orientação tornava qualquer finalidade desacoplada de conteúdos previamente
478 COSTA, 1870, op. cit., p. 7. 479 COSTA, 1868, op. cit., p. 131. 480 COSTA, 1868, op. cit., p. 132.
167
determinados por contextos anteriores.481 Para o escritor argentino, se “el mundo se
estrecha y en el orden moral los vagos e indefinidos horizontes del pasado desaparecen”,
a expansão das iluminações modernas e da aposta no futuro ordeiro esgueira-se entre
sendeiros de sombras.
A dinamização do sistema-mundo moderno e da razão burguesa encontra na
estruturação moral da sociedade uma contrapartida fundamental. As dinâmicas de
prescrições morais reiteradas pelos processos de educação repõem um juste milieu para
as condutas, então afastadas da determinação institucional de uma igreja ou de uma
moralidade meta-social (tradicional) que torna a vida coletiva uma integração
indiferenciada (como o modelo apriorista da Gemeinschaft de Tönnies ou a sociedade de
status de Henry Maine). As dinâmicas, então, são estruturalmente ligadas à ideologia do
progressismo do século. Essas narrativas da odisseia da civilização burguesa encobrem
formas de dominação (no melhor estilo da dialética do esclarecimento de Adorno e
Horkheimer) na medida em que a abordagem da cultura moderna nelas presente não é
simplesmente um artefato manipulado por critérios estreitos de classe. Trata-se, antes, de
um repertório disseminado de processos de educação estruturando a forma social a partir
de apostas de governo da população diante da volatilização do mundo da vida engendrada
pela própria unificação material do sistema de produção de mercadorias.
As produções da Escola Popular do Ceará, organizada por Rocha Lima, Araripe
Jr., Tomás Pompeu Filho e Capistrano de Abreu, sinalizam justamente essa atmosfera.
Em um erudito texto de Rocha Lima (debatendo com textos de Taine, Vacherot, Quinet
e Planche), se “o vapor, a imprensa, o telegrapho, todos os meios de communicação e de
transporte, creados pela industria e pela mechanica, levão ás mais longinquas paragens as
conquistas do pensamento”, as novas materialidades e esferas de circulação diluem a
unidade moral de tempos idos. Assim, “n’uma sociedade como a antiga, de vida uniforme,
absorvendo todos os espiritos n’uma só idea, todos os corações em um só sentimento”, a
fundamentação de valores implicava a unidade moral do mundo da vida. A construção do
mundo moderno (“uma sociedade que vive de tantas ideas, que se nutre de tantos
sentimentos, que se agita com tantos problemas, que adeja para tantos ideaes”) concebe
o “novo aspecto da vida” como “expressão de uma vida complicada” que, tal como “o
sonho febricitante e ousado do homem moderno”,482 só pode ser apreendida como
481 CANÉ, Miguel. ¡A prisa, a prisa! Automóviles y turbinas. In: CANÉ, Miguel. Notas e impresiones.
Buenos Aires: Cultura Argentina, 1918. p. 176. 482 LIMA, Raimundo Antonio Rocha. Eschola Popular: sessão de 28 de janeiro. Cearense, Fortaleza, 7 fev.
1875.
168
problemática. Um discurso proferido por João Lopes assinalava justamente as trepidações
da cultura moderna:
Entendemos a lucta como ella deve ser: para subjugar as forças inflexiveis do Cosmos não é preciso a traição nem a guerrilha: basta a vontade, a intelligencia e o braço, isto é, a moral, a sciencia e a industria: a industria, que nos dá o bem estar, a sciencia que nos dá a prepotencia, a moral que nos dá o repouso e a fraternidade. Com essa trindade conquista-se, edifica-se a cidade do futuro, estabelece-se o reinado que sonhou Jesus, a utopia, que desvairou Platão, a hallucinação que tem desesperado os martyres. Em sua infancia a familia humana é egoista, a natureza desapiedada, a fatalidade cega e inflexivel. Os elementos combatem-se, as forças se destroem, a consciencia se apavora, o homem torna-se religioso. Servo e adorador de uma abstração, elle despreza seu semelhante, embriaga-se nos sonhos mysticos de uma idealidade utopica e adormece no regaço voluptuoso da natureza, affagado pelas auras perfumosas do paraiso. Mais tarde elle desperta. A sciencia formula a lei, a industria concretisa-a no vapor e no telegrapho, a moral applica-a na confraternisação do homem com a humanidade, do cidadão com a sociedade, da plebe com a aristocracia, do servo com o barão feudal, do pariá com o rei. Ao dia da creação succede o dia da revelação. Com a construção scientifica, quem sera o Moysés da nova Israel? O sabio e o operario. O Sinai será a escola, o livro a taboa da lei, o povo escolhido a humanidade e o preceito divino será: o amor por principio, a ordem por base e o progresso por fim.483
Nesse sentido, conforme Antonio da Costa, “este seculo nervoso, com os seus
heroicos esforços e com as suas tristes intermittencias”, ilustra a indeterminação dos
princípios (valores morais) na medida em que o “perigo immenso de descrença e de
materialismo [...] inoculando a epidemia da duvida” separa “da religiao, da familia e da
vida um grande numero de homens”. A desestabilização dos valores morais subjacentes
à ideologia do universalismo ordeiro pela técnica, então, alimentava “a indifferença e o
desequilibrio moral, que rompem a harmonia das sociedades, e que ferem pela base o
fundamento da organisação humana”, oferecendo a imagem das contradições a que estava
exposto o mundo moral.484 A elaboração da consciência moral referente a essa espécie de
tópica do conteúdo universalista da razão burguesa apenas fundamentava a imagem de
regularidade entrelaçada às iluminações da técnica moderna (conforme analisei no
primeiro capítulo) na medida em que pressupunha, no horizonte da narrativa aspiracional,
483 LOPES, João. Discurso na Eschola Popular. Cearense, Fortaleza, 10 jun. 1875. 484 COSTA, 1868, op. cit., p. 139.
169
a disponibilidade do conteúdo de valores junto às expecativas de socialização. A retórica
do trabalho, como valor moral, unifica esse conjunto de percepções a partir da própria
imagem de ordem e de enraizamento de hábitos investida à atividade produtiva junto à
gestão moral da população moderna.
Félix Ferreira, importante nome da esfera educacional e autor de livros sobre
economia domestica para educação das mães e da família, ilustrava essa valorização do
trabalho ao celebrar as atividades de instrução e educação da Sociedade Propagadora das
Belas Artes e o “o prestito triumphal dos gloriosos operarios, dos heroes do dia,
representantes de todos os ramos da industria” que, engrandecendo a população e o futuro
trabalhador (“ennobrecendo-lhe o caracter e dando-lhe a consciencia de sua propria
força”) pelas virtudes do trabalho e da ordem, abrem “as portas da verdadeira felicidade
– a independencia individual – o que só dá o estudo e o trabalho”.485 Mesmo para o
professor Manoel Pereira Frazão, ao lado dos “habitos de attenção, ordem, exactidão,
asseio e elegancia”, o trabalho implicava uma maneira de “educar os olhos e desenvolver
o sentido da fórma” como “a base mais solida da educação esthetica”, pois “a humanidade
nenhum progresso faz sem industria”.486 A seriação das atividades e seu conteúdo moral,
constituindo a interdependência (gênese da vida coletiva) e fundando o intercâmbio social
em valores capazes de elaborar prescrições e expectativas de conduta (honestidade,
poupança, justiça etc.), permitiam a avaliação moral do trabalho como dinâmica
desvinculada de conteúdos de classe, pois dispunham conteúdos prévios (fundações) a
qualquer horizonte de progresso. Essa elaboração confronta os indivíduos como algo
independente na medida em que é tomada como o próprio fundamento da produção social
e das realizações da civilização.
A ideologia do trabalho, tema fundamental na gramática moral, consiste
justamente nessa operação sobre o trabalho abstrato, de modo que o processo é ideológico
precisamente no sentido marxista do conceito de ideologia, ou seja, autonomiza as
representações em relação ao meio material e funciona como pressuposto pedagógico
(como uma ilusão bem ancorada nas aparências da civilidade) da harmonia e da
regularidade da divisão do trabalho em um esforço coletivo no sentido do melhoramento
material e moral. Por isso um observador atento da modernidade como Thomas Mann,
em suas notas de junho de 1919, tem razão ao sublinhar que o trabalho (especialmente a
partir de sua definição como trabalho abstrato) constitui, sobretudo, um princípio ético
485 FERREIRA, Felix. Visão do futuro. A Instrucção, Rio de Janeiro, 23 nov. 1881. 486 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 382-384.
170
(sittliche) do mundo burguês ancorado no imperativo de dignidade (Würde) absoluta do
humano e sua realização no incremento do progresso social.487 A produção da ideologia
não é apenas uma questão de joguete ou de interesses utilitários de dominação; trata-se,
sobretudo, da produção de valores e motivações morais fundamentais da socialização.
Afinal, desatada das contradições que movem a atividade de produção social, a ideologia
do trabalho oferece uma representação que se passa por incondicional.
Uma vez opacas as estruturas de classe do processo de trabalho e autonomizada
sua representação moral, o bem-estar universal da produção social, acompanhando as
materializações do intelecto geral e a promessa de abundância ilimitada de utilidade,
formava o horizonte das narrativas ordeiras. As próprias iluminações da modernidade
capitalista, vinculadas ao progresso técnico indefinido e ao amplo sistema de trocas
dinamizado pela ética do trabalho, são interpretadas em chave moral. Conforme os
“sentimentos da sociedade moderna”, Frazão informava que “muita gente ha de
considerar o homem trabalhador superior ao ocioso”.488 Reiterando diversas atividades
de educação pelo trabalho muito comuns nos asilos e arsenais (marcenaria, torno, trabalho
de ferro etc.), o professor acreditava que
Todo moço, embora de familia opulenta, devia aprender um officio; por que, se acontecesse cahir em miseria por uma dessas alternativas da sorte, tão varia e quiçá tão caprichosa, elle se acharia prevenido contra seos golpes: sabia fazer alguma coisa. Modernamente os educadores têm lançado mão do trabalho auxiliar, para facilitar a formação do caracter. “Toda a moral, diz Alex. Gavard, está encerrada nestas duas palavras – ora, et labora – Religião e trabalho. Quem ama o trabalho, ama a virtude”. E, de facto, o homem de sentimentos religiosos e trabalhador não póde deixar de ser virtuoso. Estas duas condições não devem estar separadas na educação. Se a religião sem o trabalho conduz ao ascetismo, que é um sentimento completamente inutil á sociedade, o trabalho sem a religião conduz ao egoismo e a todos os excessos provenientes dessa lepra, que tanto vai corroendo o corpo social, á medida que os sentimentos religiosos enfraquecem.489
Componentes importantes da ideologia do trabalho e garantias do progresso
ordeiro, o imperativo da aceleração e seu horizonte futurista promoviam uma retórica de
atualização nos quadros formativos da população e do nacional. “Aproveitemos sem
487 MANN, Thomas. Tagebücher (1918-1921). Frankfurt am Main: Fischer, 1979. p. 268. 488 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 378. 489 FRAZÃO, 1893, op. cit., p. 421.
171
descanço o tempo que veloz corre”, afirmava Manoel Francisco Correia nos anos 1880,
em um esforço de “derramar por todas as camadas da popuação as luzes beneficas da
instrucção” para a formação de cidadãos úteis no incremento da atividade econômica. A
modernização e a racionalização das atividades produtivas empurravam, como
determinações morais abstraídas de conteúdos de classe, as exigências dos tempos de
“machinas aperfeiçoadas” que “derão ao trabalho extraordinario movimento, e ás idéas
espantosa velocidade”. A sincronia entre os processos formativos do mundo moral, o
“aperfeiçoamento do trabalho” e a miragem universalista de sua partilha “em beneficio
da humanidade” ensinavam que
Ha entre o mundo physico e o mundo moral relações as mais intimas. A riqueza intellectual caminha de par com a material. A intelligencia aperfeiçoa a industria: os productos da industria alargam a esphera da intelligencia [...] Os povos que fraqueiam na pugna civilisadora não vencem depois a distancia que os afasta dos mais intrepidos e energicos.490
O trabalho, como parte da gramática moral, é um vínculo da normatividade das
condutas, pois ilustra os nexos regulares das atividades sociais, seu novo horizonte
coletivo (a população) e a possibilidade de inserção nos progressos da época.491 Um
modelo bastante palpável dessa imagem, por exemplo, está junto ao vasto material
publicado da Primeira Exposição Nacional, feita em 1861, reunindo um inventário das
“riquezas naturaes e industriaes” do país no circuito do sistema de trocas da modernidade
capitalista e dos “destinos do genero humano” pela “reunião dos povos civilisados”. O
secretário-geral Antonio Luiz Cunha informava que, se “accusam o nosso seculo de
tendencias materialistas”, “nada é menos materialista do que a dedicação do trabalho”
pois “o trabalho são as leis da vida” e condição do “melhoramento moral e material das
sociedades humanas”.492 Em perspectiva mais ampla, para além de um parâmetro moral
da socialização pressuposto nos processos de educação, trata-se de uma ideologia
racionalizadora que unifica as cidades e “nossos sertões interiores”, alimentando a
“necessidade de certos commodos sociaes, de que a civilisação não póde prescindir”, de
modo que o indivíduo não fique entregue “aos gozos materiaes da vida”. Assim, “alargar
490 CORREIA, Manoel Francisco. Conferencias e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Typographia
Perseverança, 1885. p.301. 491 Cf. Capítulos 4 e 5. 492 CUNHA, Antonio Luiz Fernandes. Relatorio geral da Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro:
Typ. do Diario do Rio de Janeiro, 1862. p.337.
172
a esphera de sua acção” e “despertar a actividade e a inteligência” eram fundamentais
para a afirmação do caráter da população e do nacional contra a “inércia e hesitação”, já
que mesmo
Nas cidades se acham agglomerados muitos individuos que estão no caso acima figurado; herdando de seus pais oa habitos inveterados e a vida solta e descuidada, não acham na sociedade uma occupação que lhes seja proveitosa; especulam com a caridade publica. D’aqui á degradação moral dista um passo!
A rigor, essa vasta produção de imaginários vinculada à estruturação moral da
sociedade evidenciava a inserção do Brasil na gênese do espetáculo capitalista.493
Integração, aliás, visível no relatório encaminhado pelo conde de Villeneuve ao
conselheiro Antonio da Silva Prado, após a exposição de 1885 em Antuérpia, em que o
responsável destaca a produção brasileira (café, algodão, mate, borracha, tabaco,
“amostras de objectos manufacturados” etc.) como mercadorias sustentadoras dos
“artigos de consumo” que exibiam “todos os ramos da actividade humana” e suas
“verdadeiras enciclopedias materiaes, destinadas a patentear o progresso” e a exibir o
“andiantamento moral e intellectual” do país no sistema de trocas.494 A profusão de
imaginários e objetos, bastante palpável nas exposições nacionais (1861, 1866, 1873 e
1875) e regionais, condiciona a organização das mercadorias ao exclusivismo moral da
época e aos signos do progresso ordeiro. Coleções geológicas, “impressões
photographicas” (panoramas, álbuns e retratos), essências (alfazema, cravo, limão, cidra
etc.), obras hidrográficas, óleos, lã, sabão, graxas, máquinas de navegação (propulsores a
hélice, torneiras, bombas centrífugas), dinamômetros, máquinas para balas de groselha e
sorvete, além de toda sorte de bules, relógios de prata, escrivaninhas e demais “productos
ceramicos, luxuosos e decorativos”, reluzindo a expansão do mercado e o “mito da
máquina” na modernidade,495 cifravam as apreensões do novo.
Nessas sociedades produtoras de mercadorias (constituindo a urdidura do sistema-
mundo moderno), a lógica de exibição das formas externas e a regularidade das atividades
de produção eram centrais nos imaginários aspiracionais da modernidade capitalista e
493 HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva.
2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 494 Conde de Villeneuve. Relatorio da Exposição Universal de Antuerpia. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1886. 495 FRANCASTEL, Pierre. Art et technique. Paris: Gallimard, 2008.
173
seus circuitos (as Wunschbilder de Benjamin).496 A consciência coletiva implicada pelos
imaginários aspiracionais expande (weisen) a imaginação social por meio do contraste
entre as iluminações do progresso técnico e as formas arcaicas consumidas pelo processo
histórico,497 condicionando o progresso ordeiro e o universalismo dos “povos civilisados”
a um mesmo registro moral de percepções sublinhado pelo imperativo do trabalho como
critério normativo de socialização. O inventário de formas, cujo catálogo de mercadorias
é sempre seriado em etceteras e sugere a presença perceptível como imagem, retoma a
ideologia da abundância ilimitada do sistema de objetos como manifestação da
fantasmagoria da forma-mercadoria e da vertigem das novas relações entre indivíduos
(trabalho e capital) reificadas por um sumário de relações entre coisas.498 Os nexos
morais, então, funcionam como perspectivas avaliativas e prescritivas a esses novos
ambientes e contextos da modernidade capitalista.
A valorização moral do trabalho talvez resida justamente nessa consciência da
circulação universal das mercadorias e das iluminações da época. Torcida em função das
promessas do progresso moral e material, a ideologia da abundância ilimitada apenas
reforçava a avaliação disponível no campo moral. Se “a riqueza nasce do trabalho” (este
ponto será retomado no próximo capítulo dedicado ao tema da população), a
interdependência e a moralidade exigiam regularidades por meio das quais
O individuo do norte da suas pellissas e recebe os vinhos do Meio-dia; o novo mundo nos envia café, algodão, sua smadeiras preciosas e nós, por troca, lhe enviamos esses bellos moveis, esses magnificos tecidos, esses objectos de luxo, cuja perfeição e delicadesa reclamam todos os recursos da civilisação [...] Por tanto pode ser comparado á vida do homem o destino da riqueza. Aquelle se ergue do berço para trabalhar até que volte á procurar o repouso no tumulo. Tambem a riqueza tem seu nascimento, sua vida e sua morte. O trabalho dá-lhe a existencia; a actividade social a transforma, a transporta, a reparte; finalmente ella se esvae e acaba por morrer a vosso serviço.499
O registro moral que costura essa imagem de mundo é tensionado pelos
parâmetros da própria cultura capitalista e sua circulação ideológica. Tanto como
imperativo (processo de educação) ancorado na virtude do trabalho quanto como
496 BENJAMIN, Walter. Das Passagen-Werk. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982. (Gesammelte
Schriften V) 497 BENJAMIN, 1982, op. cit., p. 46-47. 498 BENJAMIN, 1982, op. cit., p. 60. 499 RONDELET, M. A. Licções de economia politica. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 25
ago. 1877.
174
encantamento (percepção sobreposta à regularidade moral do progresso), a
fundamentação de valores é desafiada, em sua regularidade, pelo tempo projetivo do
contemporâneo. O escritor Augusto Zaluar, apoiador da reforma de Leôncio de Carvalho
em 1879 e entusiasta do repertório científico do fim de século no campo do ensino dos
futuros cidadãos, elogiava “espetaculo que nos apresenta a moderna civilisação”, de
modo que “seu caracter de universidade, que parece á primeira vista obsorvente, não
anulla, antes fortifica a actividade individual”.500 A “generalisação maravilhosa do
progresso” e o “desenvolvimento moral e material das sociedades modernas”, unificados
pela lista exaustiva da técnica moderna, encantavam não apenas pelo espetáculo da forma-
mercadoria, mas pela efetivação das necessidades da época em horizontes normativos
pois “era impossivel que o nosso tempo não tivesse tambem manifestações proprias de
suas tendencias generalisadoras e christãas”.
O professor Carlos Mariano Galvão Bueno, leitor de Krause, Guillaume
Tiberghien e Ahrens, argumentava que o “melhoramento do homem” exigia a formação
de “convicções serias” por meio das quais “os nossos affectos e resoluções devem regular-
se e modificar-se”.501 Aqui, o pressuposto normativo do progresso ordeiro adquire uma
fundamentação profundamente interligada aos processos de educação e, sobretudo, à
validade do campo de valores morais da consciência educada. Como perspectiva
civilizatória, a gênese e a legitimidade dos valores de socialização era desdobrada sobre
a própria estruturação social. Nesse sentido, o cristianismo, como forma de cultura, apesar
de não ser “o termo final da progressão”, representava um marco para o refinamento dos
sentimentos e da vida moral capaz de “transformar a sociedade civil”.502 Nesse sentido,
para o autor,
A alma humana não é constituida, como a dos brutos. Tem o conhecimento e o sentimento de si, de sua natureza, de sua missão, de seus direitos e deveres; é revestida de character de personalidade que lhe dá valor impecavel. Progride, é indefinidamente perfectivel [...] Si pela sensibilidade a alma recebe as sensações, pela rasão tem as ideas geraes do bem, do verdadeiro, do justo, do bello, de Deus, que são as leis da vida racional, principios da sciencia, da arte, da moral, da religião, da sociedade, e que distinguem radicalmente a actividade dos seres racionaes da dos animaes.503
500 ZALUAR, Augusto Emilio. A civilisação moderna e as exposições internacionaes. Revista de
Instrucção e Educação, São Luis, 18 ago. 1877. 501 BUENO, Carlos Galvão. Noções de philosophia. São Paulo: Typ. de Jorge Seckler, 1877. 502 BUENO, 1877, op. cit., p. 447. 503 BUENO, 1877, op. cit., p. 21.
175
Diversas consequências são derivadas da centralidade desse exclusivismo moral
do humano nas preocupações referentes aos processos formativos. A recorrência da noção
é sintomática de uma ideia evolutiva pressuposta nos processos de educação: organizando
uma metafísica ancorada no animal rationale como determinação essencial do ser
humano, esse exclusivismo (cadenciado pela entonação da emancipação moral rumo à
realização das potencialidades do homme achevé) converte a humanidade em uma ordem
à parte e no limite, conforme nota Eduardo Viveiros de Castro, repõe o colonialismo na
relação entre humanos e não-humanos (tendo em vista a centralidade daqueles) e no
discurso da civilização e da racionalização diluído junto aos critérios de evolução
social.504 Operando sobre a dualidade natureza/cultura, o excluvisimo institui a
diferenciação ontológica do humano em relação ao natural (e aos “typos primitivos”)
junto a um processo de aperfeiçoamento que registra a alteridade sob o signo da falta
(cuja métrica é ditada pela polidez, pelo trabalho e pela religião – enfim, pela elaboração
da consciência no campo moral). Em um sentido mais amplo, as abjeções morais
(selvageria, seres embrutecidos, a miséria “nua e crua” de que falava Walter Benjamin
etc.) são construídas justamente sobre o contraste entre o potencial de emancipação
racional do humano em relação à natureza e às formas regressivas da deseducação.
Se “o progresso da sociedade está na razão directa da cultura de seus membros”,
“a instrucção é o thermometro da arte e da indústria, da moralidade e da religião”.505 Essa
perspectiva formativa, no limite, funciona como indexador das atividades sociais ao
campo de valores instituídos e transmitidos pelos processos de educação. Nesse sentido,
conforme “divisão do trabalho social regulada pelo aperfeiçoamento e applicações
multiplas dos ramos da actividade humana”, “as especialidades devem se desenvolver
sobre a espaçosa base da cultura geral do espirito”. Como fundamento da estruturação
moral da sociedade, “a educação é um bem e uma vantagem para todas as carreiras”, na
medida em que as mediações da vida coletiva atravessam o núcleo da família e as esferas
de socialização (“associação”), indicando que “a educação do homem não é obra de
compressão, mas de expansão” – e justamente nessa ampliação do campo do agir, tendo
em vista que “a alma é faculdade e actividade”, “o desenvolvimento das disposições
504 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 505 BUENO, 1877, op. cit., p. 298.
176
interessa tanto á vida individual como á vida social”, pois “a sociedade não pode progredir
sem o progresso das intelligencias”.506
A fundamentação moral das atividades sociais, da divisão do trabalho e da técnica
moderna indica um caminho importante. Como processos de educação, os melhoramentos
da vida material e a centralidade do humano na elaboração do mundo moral (reiterada
como sua capacidade de emancipação pela racionalidade) sinalizam o “dever para cada
um de concorrer para o adeantamento de seus similhantes, para a civilização de seu paiz
e de sua epocha” na medida em que a ideologia do universalismo do movimento de
progresso do século pressupunha uma ordem interna. Coesão que deveria ser garantida, a
um só tempo, contra os desafios morais da dissociação e como reiteração da elaboração
moral da consciência. A respeito do primeiro ponto, se as paixões são dissociações
egoistas da “ordem moral”, sua gramática de abejações (embriaguez, devassidão, lascívia,
orgulho, vaidade, odio, ciume, vingança, ambição e fanatismo) é expressa como tensão
entre a validade da estruturação moral e a exibição de “um sentimento desregrado que
introduz desordem na inteligência”, de modo que “cumpre combater a bem da
moralidade”.507 Quanto à elaboração da consciência moral, o tema do auto-domínio
significava que “o homem é o unico dos seres finitos que pode fazer o bem com
discernimento” (“dahi o seu titulo de agente moral”), de modo que para “cumprir todos
os seus deveres” e “condições dependentes da vontade”, a “consciencia e sentimento
completos de si mesmo” retomavam as estruturas de integração assinaladas pelos
processos de educação.508 A estruturação moral das formas de socialização repousa
justamente nesse círculo em que a multiplicação de atividades sociais (divisão do
trabalho, técnica, aglomerações etc.) da modernidade capitalista encontra nexos
fundamentais para sua avaliação e parâmetros de normatividade. Fundamental era a
administração das atividades produtivas em função da consciência e da ideologia da
ordem subjacentes ao ideal normativo da regularidade da vida moral.
Manoel Francisco Correia, nesse sentido, defendendo “o imperio das idéas do bem
e da justiça, da virtude e do dever”, direcionava “não á materia, mas á consciencia”, o
conteúdo dos processos de educação subjacentes às agitações da sociedade moderna. Se
“o homem não póde percorrer com segurança o estadio da existencia sem a profunda
crença na existencia de Deus, que é o vinculo do mundo moral”, a religião era o núcleo
506 BUENO, 1877, op. cit., p. 287. 507 BUENO, 1877, op. cit., p. 242-243. 508 BUENO, 1877, op. cit., p. 286.
177
dos valores, “inspirando sentimentos que fortalecem os preceitos da moral”.509 A
prerrogativa de elaboração da consciência moral para a ideologia do progresso ordeiro,
aqui, torna indissociáveis o desenvolvimento material da modernidade capitalista em
relação à normatividade moral. Contrapondo as iluminações da razão burguesa ao esteio
moral da socialização, Correia argumentava que
A prosperidade das nações não está sómente nos melhoramentos materiaes. Não bastam estradas, canaes, telegraphos, vapores, monumentos sumptuosos, fabricas, estaleiros, officinas. São sem duvida apreciaveis elementos de civilisação; trazem riqueza, conforto aperfeiçoamento; são impulso ao trabalho, movimento ao commercio, animação á industria [...] Mas a desmoralisação póde caminhar ao lado, pervertendo os sentimentos, anarchisando as idéas, engendrando perturbações que mais tarde agitarão convulsivamente a sociedade com o perigo da decadencia, senão da ruina. Para que os beneficios da civilisação perdurem, e o progresso adquirido se radique e fortaleça, é indispensavel curar também, cada vez com mais afinco, da instrucção publica, que alarga o dominio do espirito, e dá aos esteios moraes do edificio social a solidez sem a qual póde ser ephemero e illusorio o briho das conquistas sobre a materia.510
Em estreito diálogo com essas dinâmicas sociais mais amplas, portanto, os
processos de educação evidenciavam tentativas de sintetizar os diversos vetores das
transformações do mundo da vida em um quadro formativo de condutas sociais e relações
de sentido. Nesse sentido, os processos de educação são desdobrados como mecanismos
de gestão da população. A aposta de Costa nos processos de educação, como gestão moral
da população, não era fortuita. À luz desse quadro, as imagens de ruptura da integração
moral da sociedade eram dissociações alimentadoras da “guerra individual e social” em
que nenhum “principio universal” organizava estruturas de coesão das consciências. Se a
religião dispunha preceitos fundamentais da “dignidade humana e do apuro dos
sentimentos”,511 antes de uma determinação tradicional sobre os costumes, o religioso
estruturava a validade e a consciência do próprio campo valorativo da estruturação moral
da sociedade, de modo que
O seculo XIX está representando o chaos do bem e do mal. Se á labutação immensa que n’elle se opera podessemos fazer uma analyse
509 CORREIA, 1885, op. cit., p. 96. 510 CORREIA, 1885, op. cit., p. 158. 511 COSTA, 1868, op. cit., p. 140.
178
chimico-moral, e decompormos os elementos sociaes, enconrariamos como conquistas do seculo os grandes estudos praticos das sciencias naturaes, o desenvolvimento das industrias, a historia considerada como verdadeira sciencia, tendo por base os monumentos de uma critica severa, as liberdades politicas possuidas por povos que se desconheciam, as Americas independentes, a liberdade co commercio forcejando por derribar as fronteiras internacionaes, a liberdade da terra, o trabalho das industrias e das artes ennobrecido, a instrucção augmentando [...] Mas em confusão com estes elementos os corações subindo em proporção desigual ás intelligencias, a honra, o dever, a honestidade politica, o sacrificio pessoal, as crenças, n’uma palavra, os grandes fundamentos da natureza humana, em certa decadencia. Dir-se-ia que uma universal multidão de elementos bons e prejudiciaes, despedaçando as espheras que os retinham, se chocaram no espaço que os homens habitam, produzindo um combate geral. D’este combate o que sairá? É o problema do seculo XIX.512
O problema da rotinização dos valores morais em referenciais básicos da
socialização e mecanismos de representação social do indivíduo (honra, trabalho,
probidade, decência etc.), como “immenso poder moral da civilisação”, indica a angústia
de Costa diante da vertigem moderna. Um de seus leitores, o professor Luiz Augusto dos
Reis, reconhecia na vida moral o “germen do poder e da grandeza de um povo”, de modo
que, como estruturas formativas de condutas e parâmetros de consciência elaborados
junto à socialização, o homem “não se nasce bom ou máu” – afinal, “a bondade ou a
maldade, não são qualidade physicas, são acquisições moraes. Uma creança é como uma
planta. Uma planta é o que a faz o sólo e o ambiente. Uma creança é o que a faz a familia
e a educação”.513 Se “o homem não é unicamente um ser intellectual, mas tambem
physico e moral”, a maior esfera de socialização da vida moderna expõe o observador
moral à diversidade das condutas, “recebendo o influxo desse modelo”, de modo que “si
ao contrario recebeu uma educação moral viciosa, si se acostumou a desprezar tudo
quanto inspira respeito e louvores, torna-se um cidadão, mais do que imprestavel, nocivo
a si, á patria e á familia”. Com as virtudes e a consciência dos deveres,
[...] formar-se-hão futuros moços moralisados, amando o que é verdadeiramente util e proveitoso. Realizar-se-hia assim, mais uma vez, o pensamento de Bonald: – A instrucção fórma sabios, a educação fórma homens - e cremos que o nosso paiz actualmente precisa mais destes do que daquelles. E si o meninno de hoje é o cidadão de amanhã,
512 COSTA, 1868, op. cit., p. 143. 513 REIS, 1895, op. cit., p. 105-107.
179
[...] a educação moral deve considerar o alumno como homem e como cidadão, tendendo a formar-lhe a alma.514
Se os processos de educação implicam “formar o coração da creança” e “fazer um
cidadão”,515 esse percurso, no fim de século, além de ser revestido pelo caminho da
civilização, significava uma longa depuração das próprias formas sociais. Em texto
difundido junto aos letrados brasileiros, Felix Cadet admirava a multiplicação de
mercadorias, indústria, transporte e invenções do século como sinais da ideologia do
trabalho,516 de modo que, como consciência do epígono da marcha progressiva da
civilização, “nosso primeiro dever em relação à sociedade é, do meu ponto de vista, a
compreensão de seu admirável mecanismo, resultado de lentas e penosas conquistas da
civilização”, cabendo aos processos de educação a normatividade capaz de “contribuir ao
fucionamento e ao melhoramento desse organismo”.517 Afinal, se “as glórias da nossa
sociedade moderna” decorrem do incremento civilizacional produtor de bem-estar
material e estruturado pelo trabalho e pela moral,518 o “verdadeiro objeto da educação
moral é formar a vontade” e regular as iluminações do século pelo aperfeiçoamento dos
sentimentos e das condutas da população.519 Como condição dos processos de educação
e do esclarecimento da civilização, essa dinâmica reflexiva desdobra sobre a consciência
história do século as estruturas de sua própria consciência moral.
Essa sobreposição de dois movimentos mutuamente reforçados é visível nas
preleções sobre educação de Ferreira Vianna. A “sobreexcelencia do homem na creação
reside nos seus dotes mentaes e não em seus caracteres materiaes”, de modo que vida
material e vida moral “penetrão-se mutuamente”.520 A posição de exclusividade do
humano, decorrendo de sua contenção racional dos ímpetos, é desenhada em um quadro
evolutivo em que as “primeiras manifestações da vida são productos instinctivos, quasi
mecanicos” (formando “em primeiro logar um quadro da educação physica”), seguidas
“da que se refere á intelligencia” e consolidadas à luz da “educação moral, porque é nesta
ordem que se manifesta o progresso humano”. O percurso de elaboração da consciência
moral, tendo em vista que “o que se vê em acção no homem principiou como potencia
em germen”, implica que a decomposição moral das origens do agir possa “conduzir o
514 REIS, 1895, op. cit., p. 130. 515 REIS, 1895, op. cit., p. 116-118. 516 CADET, Félix. Lettres sur la pédagogie. Paris: Delagrave, 1882. 517 CADET, 1882, op. cit., p. 104. 518 CADET, 1882, op. cit., p. 116. 519 CADET, 1882, op. cit., p. 256. 520 VIANNA, Ferreira. Preleções. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 30 set. 1887.
180
homem da pura animalidade para os seus mais elevados destinos”. O entendimento e a
racionalização da vida moral são desdobrados e depurados como progresso da própria
forma social, pois
O primeiro periodo mental começa do momento em que a criança abre os olhos á luz; é o da percepção. Esta manifesta-se pela impressão accusada pelo recem-nascido que move-se impellido por uma acção externa. Alli só pode haver apparencias fugitivas, imagens phantasticas explicaveis pela passagem das trevas para a luz do dia, do estado pasivo para a liberdade dos movimentos, da vida vegetativa para a acção da vontade [...] O que acontece com a criança, succede ao homem não instruido e até aos povos ainda não adiantados, porque a civilisação é fructo do tempo e do progresso social.
Para Ferreira Vianna, a elaboração da consciência moral, como herança do
cristianismo sobre a cultura moderna, era um ponto de virada no horizonte moral das
sociedades humanas. Nesse sentido, “a verdade consoladora é que por effeito da educação
dada a si mesma, a humanidade tem se melhorado”.521 A visada evolutiva contida no
argumento, então, mergulhava o horizonte dos valores em uma temporalidade que
assumia o contemporâneo como síntese de progressos morais acumulados, tendo em vista
que, preocupado com os “destinos do homem”, o autor entendia que
A moral pagã encerrava-se nos estreitos dominios da politica: o homem todo resumia-se no cidadão; e a pedagogia pagã, participando da mesma estreiteza de vistas, preparava-o para mero instrumento do Estado. O Christianismo, appellando para a consciencia individual, reconhecendo nelle o juiz indefectivel, antecipado e decisivo dos actos de cada um, firmou a dignidade pessoal, estabeleceu a personalidade humana. A moral alargou-se do campo da politica. A pedagogia christã, que embora mais limitada que a moral propriamente dicta, não deixa de ter a mesma auctoridade, ganhou esse amplo horizonte que se póde bem medir pela vasta educação produzida no seio do christianismo [...] Seu fundamento, pelos recursos de que dispõe o homem para a realisação do seu destino.
Justamente como sinal da descontinuidade representada pela consciência moral
apoiada nos conteúdos da religião, “o homem moderno differe profundamente dos seus
typos primitivos”. Conforme Ferreira Vianna,
521 VIANNA, Ferreira. Preleções. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 3 set. 1887.
181
Inconsciente ou conscientemente a civilisação se ha operado pelas grandes leis pedagogicas, e cabe aqui entre essas ideas geraes enunciar os tres grandes principios com que aquellas leis se vão encontrar em sua applicação: o clima, a estirpe e o meio social [...] Ne Grecia antiga o Estado pode apossar-se do homem inteiro e moldar-lhe, elle só, a educação. Na Roma da decadencia, quando as conquistas com os seus resultados funestos – o luxo e a escravidão, perverterão os primitivos habitos simples e viris daquelle povo; quando a mulher romana ase desenfastiava da volupia com a perversidade de que fazia victimas aos escravos; quando os mesmos escravos se tornarão, de par com os vicios, os verdadeiros senhores; qual a educação de familia, qual o poder de pedagogo capaz de subtrahir a natureza humana a uma tal deturpação? Para restituir ao homem a sua natureza foi preciso que o Christianismo viesse regenerar todas as fontes da vida social; nobilitasse a mulher até ao heroismo das primeiras esposas christãs, que nos circos a que erão condemnadas com seus esposos, atiravão-se ás feras; rehabilitasse o escravo com o proprio Christo, escravo que servio na mesa a Eucharistia a seus discipulos; com um santo Ambrosio, que no templo onde acolhia os mesmos escravos, repellia ás portas um imperador que tinha as mãos tintas do sangue fraterno.
A preocupação de Ferreira Vianna com a elaboração da consciência ecoava um
horizonte moral em circulação muito mais amplo no período. Livros didáticos e livros de
leitura, de muitos modos, difundiam a imagem da religião (como forma de cultura)
carregada de uma significação histórica de refinamento dos hábitos morais. Um
compêndio bastante conhecido no período (contando com mais de uma edição), publicado
por Alfredo Moreira Pinto entre os anos 1870 e 1880, ensinava que “a historia dos tempos
modernos póde-se reduzir a dous grandes acontecimentos: a refórma e a revolução
franceza”.522 Para o autor, um mesmo princípio fundamentava a cultura moderna: “estes
dous acontecimentos decorrem de uma origem commum, a necessidade de liberdade”, de
modo que “a reforma é um protesto contra a auctoridade em materia de religião; um
appêllo á razão, ao exame; a revolução franceza um protesto contra o despotismo em
materia politica”.523 Um sinal da ambivalência e das turbulências do mundo moderno, a
revolução “é o maior drama dos tempos modernos, drama cheio de sangue e de lagrimas,
mas tambem cheio de ensino para os principes e para os povos”, pois “tão tragicos
acontecimentos se passaram n’um espaço de tempo tão curto, nunca tambem essa
mysteriosa correlação que existe entre os actos e suas consequencias engendraram mais
522 PINTO, Alfredo Moreira. Pontos de hisoria moderna. 2.Ed. Rio de Janeiro: Cruz Coutinho, [188-]. 523 PINTO, [188-], op. cit., p. 58.
182
depresa as faltas, as faltas os crimes, e os crimes o castigo”.524 A parábola do crime e do
castigo, fundamental para o campo moral e sua imagem de mundo no período, funcionava
como parâmetro de avaliação do processo histórico conformados do contemporâneo.
O autor, por exemplo, não economiza esforços na crítica à Igreja romana e aos
“abusos introduzidos na disciplina ecclesiastica”. Nesse sentido, “o luxo da côrte de
Roma, a vida irregular da maioria do clero, escandalizavam os espíritos austeros”, de
modo que a contrapartida moral dos vícios era identificada na desagregação da dominação
católica e, sob os escombros do mundo medieval, a sociedade moderna reconhecia a
liberdade de consciência dos que “desejavam ver restituídos ao christianismo a pureza e
simplicidade”.525 Junto à narrativa de ressalvas à Igreja, a religião, como forma de cultura
e polimento dos valores morais, era avaliada em chave positiva, com destaque à ação dos
jesuítas na colonização das novas terras, “trabalhando pelas missões” e desenvolvendo
[...] a predica, a controversia com os hereges, a catechese dos infieis e a instrucção da mocidade. Os serviços prestados á religião e a civilisação foram innumeros, e o Brazil por sua parte nunca poderá esquecer, sem manifesta ingratidão, os nomes de Nobrega e Anchieta [...] Suas missões levaram a fé christã aos mais longinquos paizes e aos povos mais barbaros. Não se póde duvidar da grandeza dos seus serviços.526
Se a estruturação moral da sociedade era condicionada a uma dinâmica evolutiva
de depuração da forma social, da rudez primitiva à pactuação das estruturas de integração
coletivas, essa ideologia da civilização ficava diluída no próprio processo histórico de
formação da sociedade nacional. Para Salvador Henrique Albuquerque, membro do
IHGB e da Sociedade Literária Ateneu Maranhense, a rotinização da estrutura moral
expressava os mecanismos de coesão (consciência) por meio de valores da socialização e
da trajetória histórica como a afirmação da narrativa identitária de um ideal de povo e de
sua formação. Considerando no Brasil o desenvolvimento do cristianismo, que “levantou
a moral sobre os fundamentos da religião e da sã politica”, o autor ensinava que
O longo epaço de quasi meio seculo em que o Brasil se achou abandonado, sem religião, não podia deixar de produzir as terriveis consequencias de todo o genero de vicios e de crimes. Aos missionarios
524 PINTO, [188-], op. cit., p. 129. 525 PINTO, [188-], op. cit., p. 62. 526 PINTO, [188-], op. cit., p. 63.
183
jesuitas estava reservado o triumpho da restauração dos bons costumes, vencendo os obstaculos que oppunhão a avareza e a deshumanidade.527
Se a emancipação moral pressupunha o contraste entre a elaboração da
consciência e os vícios (com suas degradações sob a imagem do inumano/desumano), o
exclusivismo do humano e de seu potencial de instituição das formas de vida pela moral
implicava o reconhecimento e o débito do mundo moderno em relação a um amplo
processo de racionalização social. O livro de Aníbal Mascarenhas ensinava que, “mesmo
na epocha remota”, o homem “differenciava-se extraordinariamente do irracional, por um
certo caracter de religiosidade que é o distinctivo da humanidade”.528 O autor absorvia a
abordagem de progresso e de racionalização do desenvolvimento histórico e o ideal
cientificista da época pautado pelas preocupações da teoria da evolução (monogenismo e
e poligenismo), reduzindo “o casal paradisiaco de que falla a Genese [...] a suas
verdadeiras proporções, isto é, lenda confusa e vaga”,529 de modo que, pari passu ao
avanço da ciência, saudava as reformas religiosas do século XVI como “uma grande
insurreição da intelligencia humana” no sentido da liberdade de consciência.530
A “história é um grande drama em que cada povo é chamado em um momento a
representar o seu papel”, de modo que esse coletivo singular (povo) indicava, a um só
tempo, um critério de identidade moral e uma singularidade nacional que, conforme
tendência da época, personalizava grupos a partir da unificação moral de um caráter
nacional.531 O conteúdo de valor capaz de individualizar um coletivo por seu caráter
pressupunha uma relação com a (in)completude das narrativas do povo: em um texto
publicado no moscovita Teleskop (Telescópio), nos anos 1830, Tchaadaev fundamentava
uma filosofia da história na crença de que “povos, assim como indivíduos, são seres
morais. Os séculos fazem sua educação, como os anos formam as pessoas”.532 No caso
de Mascarenhas, a destinação essencial do povo no sentido de sua plenitude moral
implicava uma história dos progressos e da exclusividade do humano como modelos de
vícios e virtudes capazes de oferecer imagens do desenvolvimento moral implicado pelo
processo de humanização do indivíduo. Nesse sentido, o motto da ruptura cristã em
527 ALBUQUERQUE, Salvador Henrique. Compendio da historia do Brasil. 3. Ed. Pernambuco: De
Lailhacar, 1878. p. 12-13 528 MASCARENHAS, Anibal. Lições de historia geral. Rio de Janeiro: Livraria do Povo, 1892. 529 MASCARENHAS, 1892, op. cit., p. 15. 530 MASCARENHAS, 1892, op. cit., p. 212. 531 VILAR, Pierre. On nations and nationalism. Marxist Perspectives, v. 2, 1979. (trad. Elizabeth Fox-
Genovese) 532 TCHADAÏEF, Pierre. Oeuvres choisies. Trad. P. Gagarin. Paris: Franck, 1862. p.21, p.58.
184
relação ao refinamento dos sentimentos e à consolidação da vida moral (centrada,
sobretudo, na família) era fundamental na elaboração da consciência e de seus débitos
com o processo evolutivo da vida coletiva. Mascarenhas, à luz da estruturação moral da
sociedade moderna, prescrevia que
O mais poderoso factor do rapido desenvolvimento da sociedade que se formou com os barbaro sobre os destroços do mundo romano foi o christianismo, cuja moral pura e severa era facilmente acceita por aquelles povos rudes e grosseiros, porém não deppravados; e assim como de Roma partiam outr’ora innumeras legiões, que levavam o espanto e o terror aos paizes mais longinquos, foi ainda de Roma que missionarios ardentes levaram a cruz que devia humanisar as hordas mais barbaras.533
A bem da verdade, percepções da sociedade moderna como, de algum modo,
debitária da religião (entendida como matriz para o refinamento nos sentimentos e não
propriamente como determinação tradicional dos costumes) eram muito difundidas no
século XIX e estruturavam aspectos importantes da consciência histórica da modernidade
e de suas estruturas de reconhecimento moral. Carregando sentidos diversos, a
descontinuidade representada pela religião na estruturação moral da sociedade, bem como
sua herança em relação ao mundo moderno, é perceptível em Chateaubriand, na noção da
ascensão da religião como momento de reconfiguração das virtudes coletivas de
Tocqueville e,534 no fim de século, nos dois volumes de Houston Chamberlain, um
germanófilo que foi crítico da Igreja romana e uma das bases da ideologia völkisch do
período,535 colocando entre as fundamentações (Grundlagen) do século XIX e sua
“fisionomia particular” – ao lado das iluminações do vapor, da eletricidade, da ferrovia e
de diversos clichés e de considerações/conspirações de senso comum da época – a
regeneração moral representada pelo cristianismo.536
A presença do conteúdo religioso (pensando a religião como forma de cultura, não
como vínculo institucional) no campo moral e, sobretudo, nos processos de educação do
533 MASCARENHAS, 1892, op. cit., p. 132. 534 TOCQUEVILLE, Alexis. Lettre à Arthur de Gobineau (1843). In: TOCQUEVILLE, Alexis. Lettres
choisies. Paris: Gallimard, 2003. p. 515-516. 535 CHAPOUTOT, Johann. Le nazisme et l’Antiquité. Paris: PUF, 2012. TRAVERSO, Enzo. La fin de
la modernité juive. Paris: La Découverte, 2013. 536 CHAMBERLAIN, Houston Stewart. Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts. Munique: F.
Bruckmann, 1900. p. 197. (Vol.1)
185
fim de século,537 ainda que bastante matizada pelas querelas religiosas do período, pelas
discussões sobre liberdade de consciência e pelo avanço do laicismo na construção
republicana, indicava uma permeabilidade significativa dos valores de socialização a uma
gramática moral derivada da religião. Nesse sentido, gostaria de amarrar duas
considerações a respeito. A primeira é referente ao tema da secularização: longe de ser
linear ou de pressupor uma noção evolutiva da forma social,538 o processo de
secularização dos séculos XIX e XX deve ser pautado por mediações importantes. Mesmo
um teórico como John Stuart Mill, crítico feroz da determinação religiosa sobre as formas
de pensamento (modes of thought), reconhecia que a perda de aderência (efficacy) das
formas tradicionais da religião não implicava uma anulação do religioso.539 Minha
pesquisa, aliás, tenta demonstrar que, justamente sob os impactos da modernização
capitalista do período, o religioso é (re)configurado como critério avaliativo e prescritivo
de parâmetros de socialização junto a uma ampla estrutura de valores morais.
Ao lado desses referenciais valorativos mais amplos, dialeticamente integrados e
tensionados como formas de socialização, é importante frisar que os conteúdos
devocionais do sagrado e do religioso não eram insignificantes no fim de século. Os
diversos catecismos escolares e as inúmeras lições baseadas em narrativas bíblicas, por
exemplo, indicam uma camarada da experiência religiosa que escapa a essa grade de
referências mais difusa do religioso na socialização por meio da gramática moral.
Especialmente nos conteúdos de doutrina cristã e mesmo de história sagrada,
componentes formativos importantes dos processos de educação,540 o religioso chega até
mesmo a manifestar uma dimensão de alteridade radical do sagrado a partir da
determinação do que o teórico da religião Rudolf Otto, em texto clássico do começo do
século XX, chamou de uma relação antropológica com a sobre-potência (Übermachtigen)
e o temor do mistério religioso,541 ou seja, uma reação irracional cujos conteúdos estão
muito distantes do tipo de racionalização da gramática moral e seus processos formativos
de socialização da modernidade. Esses componentes puramente devocionais, todavia, são
537 NARITA, Felipe Ziotti. A educação da sociedade imperial: moral, religião e forma social na
modernidade oitocentista. Curitiba: Prismas, Appris, 2017a. (Col. Leituras de Brasil) 538 DI STEFANO, Roberto. Le processus historique de sécularisation et de laïcité en Amérique latine. In:
MARTIN, Arnaud (Org). La laïcité en Amérique latine. Paris: L’Harmattan, 2014. 539 MILL, John Stuart. Autobiography. Londres: Longmans, 1874. p. 239. 540 NARITA, 2017a, op. cit. NARITA, Felipe Ziotti. O século e o Império: tempo, história e religião no
Segundo Reinado. Curitiba: Appris, Prismas, 2014. (Col. Ciências Sociais) 541 OTTO, Rudolf. Das Heilige: über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum
Rationalen. Munique: Beck, 2004.
186
mais restritos a textos doutrinários no período, de modo que estão muito longe de
corresponder ao substrato cultural que tracionava os processos de educação.
Justamente por isso, derivada do metabolismo do religioso em coerência com (e
sob os impactos do) desenvolvimento da modernidade capitalista, a estrutura de
prescrições e de valores da gramática moral não diz respeito a uma sociedade
tradicional. Em momentos anteriores, tentei enfatizar esse ponto evidenciando a
integração e a permeabilidade do Brasil ao circuito de transformações do sistema-mundo
moderno (demarcando a particularidade da formação periférica no capitalismo moderno).
Aqui, gostaria de instir em outro ponto: a própria forma social, elaborada sob os impactos
das transformações vertiginosas do período junto à vida urbana, não vincula a moralidade
a um tipo de força reacionário ou refratária às transformações. O religioso e a moralidade
tampouco podem ser entendidos como uma resposta mecânica de reação à cultura
moderna (como se houvesse vestígios de uma sociedade passada desencaixados do
mundo moderno na formação social). Por meio do percurso construído até aqui, partindo
das coordenadas materiais das transformações capitalistas até a vertigem da estruturação
moral da sociedade e a elaboração da consciência, espero ter demonstrado que a
constituição do repertório moral e suas prescrições estruturais (sejam elas mais ou menos
dependentes do religioso) constituíam mediações da própria forma social e de seus
imperativos de socialização entrelaçados a perspectivas de avaliação e de formação de
condutas estruturalmente integradas aos horizontes da modernidade capitalista.
Em relação a esse metabolismo da estruturação moral e do religioso na construção
da modernidade, meu argumento é que o impacto das transformações materiais e
ideológicas condiciona o sistema social ao que Luhmann chamou de uma reflexividade
interna. Trata-se de uma perspectiva de auto-confrontação (Selbstanalyse) da sociedade
em relação à contingência das situações, indicando que determinados itens de cultura
sejam referentes (Zugehörigkeit) à especificidade de formas culturais concretas.542 A
fundamentação de valores essenciais torna-se problemática na medida em que a
volatilização de seus conteúdos é ela mesma um sinal da confrontação do campo moral
com a dinâmica interna à sociedade. A experiência da vertigem, de algum modo, ecoa
jutamente a situação em que a potencial corrosão da validez (Geltung) de valores a priori
e necessários evidencia preocupações quanto à estruturação do sistema de exigencias nos
comportamentos sociais,543 ou seja, uma dependência de expectativas complementares
542 LUHMANN, Niklas. Beobachtungen der Moderne. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1992. 543 LUHMANN, 1992, op. cit., p. 94.
187
extraída dos sentidos do agir em relação à adequação ao campo da moralidade. À luz
desse quadro, mesmo a mobilização da religião está fora do tipo de religiosidade ética
(sociedades tradicionais) que determina as ações mundanas como uma totalidade de
sentido baseada em uma eticidade que subsume as condutas.544
A presença do religioso e as prescrições da moralidade, portanto, não estruturam
a vida social de fora (como uma heteronomia) e não dispõem o campo moral apenas
dentro de uma lógica devocional (como se, formatando o terreno social, a religião fosse
a substância última da socialização em torno do sagrado). Antes, religião e moralidade,
em alguns momentos mais ou menos convergentes, constituem perspectivas de
relacionamento (nas dinâmicas da socialização) com as amplas transformações do
sistema-mundo moderno. Se a modernidade, em Luhmann, implica a diferenciação e a
autonomização de sistemas funcionais (arte, educação, direito etc.) em relação às
determinações essenciais do religioso, a marcante presença deste campo em outros
domínios da vida social (valores de socialização), conforme a pesquisa aqui desenvolvida,
parece matizar a teoria da diferenciação funcional:545 os sistemas funcionais não
dependem do suporte religioso como uma compenetração determinada (Zusammenhalt)
pela tradição, mas seus valores igualmente não são referências auto-instituintes
desvinculadas da religião. A pesquisa sobre os processos de educação e a estruturação
dos repertórios morais de socialização tenta analisar a elaboração da consciência e a
mobilização dos valores do religioso, então, como esforços de unificação de uma imagem
de mundo dissolvida pela modernização, de modo que a vertigem em relação ao campo
de valores no fim de século direciona a consciência moral a uma gestão da contingência,
com o horizonte de expectativas em permanente abertura e indeterminação
(zukunftsoffen).546
Traduzidas para os processos de educação e a estruturação moral da sociedade,
essas perspectivas de algum modo ecoavam em um texto assinado por João de Lemos no
Maranhão.547 Se civilização significa “o desenvolvimento individual e o desenvolvimento
544 TROELTSCH, Ernst. Aufsätze zur Geistesgeschichte und Religionssoziologie. Tübingen: Mohr,
1925. p.34, p. 50-56, p. 76. (Gesammelte Schriften, IV) 545 Sobre algumas dimensões da relação entre a teoria da diferenciação funcional e suas reconsiderações à
luz dos contextos periféricos no período final das produções de Luhmann, remeto o(a) leitor(a) ao texto: RIBEIRO, Pedro Henrique. Luhmann “fora do lugar”? Como a “condição periférica” da América Latina impulsionou deslocamentos na teoria dos sistemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 83, 2013.
546 LUHMANN, 1992, op. cit., p. 123-126. 547 LEMOS, João. Influencia do christianismo na civilisação. Revista de Instrucção e Educação, São Luis,
2 fev. 1878. (continuação em 9 de fevereiro de 1878)
188
social”, o desenvolvimento moral vinculado à religião “foi primeiro uma associação de
principios, de sentimentos communs germinando de coração em coração”. Para o autor,
“o mundo moral [...] desabroxou-se em fructos saborosissimos de amor e caridade; deu-
se mãi social ao infante, engeitado por a mãi de natureza; santificou-se a esmola, fundou-
se um asylo ao enfermo”: mobilizando os núcleos morais da socialização (a mãe e a
família), o “aperfeiçoamento social” dos sentimentos e da consciência indicava dois
significados importantes para a formação de condutas. Uma dinâmica fundamental,
ancorada nos valores da moralidade, estava estabelecida entre o “homem interior” (“o
homem moral”) e sua “condição exterior” (entendida como representação social das
condutas e mecanismos de estima/reconhecimento, implicando “sua relação com os
outros homens”).
Essa duplicidade, central para os processos de educação, pode ser desdobrada em
três direções. Como fundamentação para conteúdos da civilidade e da polidez, o jogo
entre as formas exteriores e a vida interior será explorado no último capítulo desta
pesquisa. Aqui, gostaria de reter dois caminhos diretamente relacionados à elaboração da
consciência moral. Conforme argumentava Miguel Vieira Ferreira, o conteúdo valorativo
da vida interna era tensionado por uma dissociação baseada no potencial de não-
correspondência entre a validade dos conteúdos morais e sua exposição nas formas do
agir. Nesse sentido, a sociedade “que só se funda nas apparencias” reitera a anterioridade
da sensualidade material em relação à “consciencia, que vos dará o criterium da verdade”.
A elaboração da consciência, como imperativo de validade do mundo moral à exposição
das condutas, era produto dos processos de educação conforme “as leis do coração e da
consciencia humana”. Contra o “embotamento das faculdades” diante da excitação das
estruturas perceptivas e sua exposição às representações sociais, a tensão entre a
instituição dos valores e as fantasmagorias da época (no tempo do telégrafo, do vapor e
da locomotiva, “para esclarecer-se é preciso uma luz que não offusque”), contorcendo a
consciência do homem moderno, deveria ser estabilizada tendo em vista “a nossa
educação de hoje”, pois
Quem tiver um fundo são, forçosamente dirá bôas cousas e praticará bons actos; mas o que fiz cousas bôas e até certo ponto pratica bons actos póde não ter um fundo são, póde ser um hypocritca [...] Esta distincção Jesus Christo a estabeleceu perfeitamente: elle quer o fundo, porque sabe que do fundo nasce a fórma; e poz de lado a fórma porque sabe que esta não póde crear o fundo [...] A crença firme em Jesu-Christo, si esta crença nasce da razão, unica fórma pela qual ella póde
189
existir, denota a existencia de um bom fundo. O homem não póde saber sinão por meio da intelligencia, esta não póde funccionar sem a existencia dos sentidos; logo, é preciso fallar aos sentidos do homem.548
Outra direção importante dessa contraposição entre as formas exteriores e sua
fundamentação interior era a preocupação de Ferreira Vianna, acreditando que “o
aperfeiçoamento do homem é pois o fim da educação que é desenvolvimento exterior de
uma vida interior”. Para o autor, ao passo que “a educação physica tem o seu
desenvolvimento natural na locomoção do homem” e “a intellectual possue regras
seguras, conhecidas para fazer desabrochar a razão apenas abotoada”, a educação moral
“porém, exige o concurso de todas as faculdades, de todos os poderes ainda os da mais
remota origem, para exercerem benefica e decisiva influencia na alma do educando”.
Como ponto de equilíbrio do desenvolvimento harmônico das faculdades e da
consciência, “é portanto a educação moral o termo mais elevado” de um caminho
evolutivo (civilizacional), partindo das relações materiais e fisiológicas mais elementares
até as estruturas de reconhecimento moral e de prescrição de condutas implicadas na
elaboração da consciência. Conforme Ferreira Vianna,
O homem é uma imperfeição tendendo para a perfeição; e neste particular segue a lei geral da creação universal, porque não ha creatura que não seja perfectivel. Vindo ao mundo não está feito; faz-se pelas suas proprias forças; sobe do fundo do seu ser, procura aperfeiçoar-se, o que so consegue pelo concurso dos que o precederão, dos que zelão o seu patrimonio espiritual, dos que sem cessar por elle velão. A condição para este aperfeiçoamento é a luta! A luta incessante entre as tendencias naturaes e as sobrenaturaes, entre os impulsos do instincto e o cumprimento do dever, entre as inclinações que advem do egoismo e as
que se inspirão no amor. 549
Esse caminho, ao passo que fundamenta o horizonte aspiracional da formação de
condutas educadas, trabalha sobre uma luta agonística da consciência moderna. Para o
autor, o “sanctuario da consciencia” e seu foco de virtualidades contrárias é revolvido por
contradições diluidoras, de modo que o “merito portanto de nosso aperfeiçoamento está
no combate entre as propensões exclusivistas do eu e as inclinações expansivas, generosas
do animo”. As ambivalências do jogo moral entre as formas externas e internas da vida
548 FERREIRA, Miguel Vieira. Eschola do povo. Rio de Janeiro: Typographia da Republica, 1873. p. 45-
46. (Vol. 2) 549 VIANNA, Ferreira. Preleções. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 14 out. 1887.
190
coletiva, reduzidas a parâmetros de socialização, tornavam a própria avaliação moral do
mundo da vida flutuante, na medida em que
A criança é o futuro, e o futuro é duvidoso [...] A fallibilidade de taes conhecimentos está em que a alma não póde ser estudada senão nas suas manifestações exteriores e ahi apparece tudo enfeitado. O homem desde cedo sabe esconder as suas faltas e vicios, porquanto o que o offende mais pungentemente é o que fere a sua personalidade, o que mais conchegado existe ao seu eu [...] De uma virtude pós sahir um vicios pela exageração de sua pratica; de um vicio convenientemente debellado póde resultar uma virtude. São raizes que se entretecem, confundem-se e fórmão um labyrintho de tal sorte inextrincavel que só com o maior cuidado e estudo poderão ser bem distinguidas e separadas.
Justamente a partir dessas oscilações do campo da socialização, aliás, Ferreira
Vianna indicava ecos importantes na elaboração da consciência. O autor entendia que as
formas expansivas da vida colidiam com a fundamentação dos princípios em meio ao
“tumultuar das paixões humanas”, pois a vertigem da dissociação (“a alcatifada e suave
ladeira que nos facilita o accesso a todas as satisfações do egoismo”) coexistia com o
redemunho de ímpetos e instintos. Nesse sentido, “generosidade, benevolencia,
sympathia, reverencia, e caridade, virtudes estas que são toques de perfeição da alma”, ao
passo que indicavam possibilidades de rotinização de “sentimentos puros” e formas de
integração moral na vida coletiva, eram exterioridades dependentes da validade moral
ancorada no reconhecimento das formas de conciência. Para o autor, em função dessa
agitação da consciência moderna,
Somos condemnados, pois, a combater, e como o combate na consciencia é que se trata, ahi está o maior perigo, por quanto não é guerra em campo aberto, mas sim ataques de emboscadas preparados pelo espirito do mal para vencer o do bem, e de ciladas occultas nos recantos mais impenetraveis da vida interior. – Ahi é que esta o maior perigo... o que no mundo exterior apparece muitas vezes não é o verdadeiro, porque o inimigo está dentro de nós, nos seus reductos. A alma é um mysterio, o coração um abysmo!
Afinal, “o que está em nossas mãos fechadas não se esconde tanto como o que
existe occulto no coração humano”. A imagem problemática da estruturação moral da
sociedade, então, indica que “a vida é uma agonia dolorosa, é um contraste vivo com os
nossos desejos”. A partir dos processos de educação e das percepções direcionadas
191
sobretudo à formação dos futuros cidadãos, toda a narrativa aspiracional de uma
normatividade social contenedora dos progressos da época e de sua regularidade mediada
pelos parâmetros morais ficava tensionada pelo campo movediço da elaboração da
consciência, processo que “traduz o estado de oppressão de uma alma que se debate entre
forças oppostas e irressistiveis”. Nesse sentido,
[...] aquella agonia, aquelle combate onde trava-se, fóra ou dentro do homem? – É dentro, é alli no mais fundo da consciencia que se fere a batalha. – Lá existe um movimento continuo de ascensão para os gosos immateriaes e ao mesmo tempo outro movimento de descida para a satisfação dos prazeres physicos. Ha, pois, tendencia para o mal, assim como ha tambem tendencia para a regeneração [...] E esse aperfeiçoamento como se effectua? – Effectua-se quando o homem sahe de si memo, quando quebra os vinculos do egoismo, e incorpora-se em o não eu amando a outrem como se fôra o proprio eu. Effectua-se quando póde elle realisar a formula: - eu + nós; – quando tira de si para dar á humanidade. Este é o dote de perfeição a que o homem aspira.
Refletindo sobre o significado das reformas da instrução primário do começo dos
anos 1880, levadas a cabo após a onda reformista e o caminho liberal pavimentado por
Leôncio de Carvalho em 1879, Rui Barbosa destacava a necessidade de “que a escola
submeta o menino a um regimen, cujas consequencias sejam produzir efetivamente a
moralidade, formar o carater”.550 A formação de uma “cultura moral” preocupada com a
“vida moral das sociedades” modernas, em correspondência com a imagem aspiracional
das “nações policiadas, prosperas, felizes”, implicava a constituição de “disposições
moralizadoras” capazes de rotinizar a vida interior e sua representação social em valores,
tendo em vista que “a higiene do corpo e a higiene da alma são inseparaveis”.
Fundamental, portanto, era
[...] inculcar aos meninos o amor do dever, a ideia do trabalho, da atividade, da frugalidade, do bom emprego do tempo, da probidade, da sinceridade absoluta, do self-control, do acatamento aos direitos do proximo, da obediencia devida á lei, da decência, da morigeração, da pureza e polidez da linguagem, da lealdade, da caridade, do amor da patria [...] Suprimi, porém, a responsabilidade, a jutiça, a honra, todos esses sentimentos universalmente humanos, que como cabedal comum
550 BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário. In: BARBOSA, Rui. Obras (1883). Rio de Janeiro:
Ministerio da Educação e Saude, 1946. (Vol. 10, Tomo 2)
192
pairam acima de todos os dogmas, numa região neutra, e a vida social inevitavelmente se desfará na corrupção e na barbaria.551
Defensor da liberdade de consciência, entendida como “a mais humana, a mais
util de todas as qualidades de uma sociedade civilizada”,552 Rui Barbosa reiterava a ideia
de um campo da moralidade estruturado além das confissões religiosas e do predomínio
institucional de uma igreja. Nesse sentido, “a lei da cultura moral” indicava a regularidade
da vida social a partir da prescrição estrutural de condutas, de modo que os “deveres,
proveniente da ação feita habito, eis só o que importa aos intuitos da educação”. Defensor
do método intuitivo, o autor afirmava que “é unicamente pela concretização elementar
dos fatos, portanto, que o cultivo moral pode penetrar de um modo frutificativo na
educação infantil” para que “forme neles o habito de apelarem para a sua consciência
como guia das duas ações”.553 Essa aposta de integração social mediada pela elaboração
da consciência moral, ao passo que retomava o horizonte de “imprimir no futuro cidadão
a idéia exata dos elementos que concorrem na vida orgânica”,554 abordava a moralidade
a partir de seus horizontes coletivos implicados na moderna gestão da população. A
moralização da vida urbana, apoiada sobre o “derramamento do ensino contra a
indigência e a criminalidade”, era “obra de sentimentos e habitos” rotinizadores da
socialização. Portanto, como perspectiva de estruturação moral da sociedade, a
elaboração da consciência dialogava com a constituição de uma noção de povo
mobilizado pela regularidade das atividades sociais, pois
A influência melhoradora, prosperadora, civilizadora da instrucção popular depende absolutamente da sua associação contínua, intima, indissoluvel á substancia do cultivo moral [...] Instruir não é simplesmente acumular conhecimentos, mas cultivar as faculdade por onde os adquirimos, e utilizamos a bem do nosso destino. Se não educamos simultaneamente na direção da esfera intelectual e na direção da esfera moral, tê-las-emos condenado a um desenvolvimento incompleto. Conhecer é possuir a noção completa e o sentimento perfeito da lei no mundo moral, como na criação material.555
551 BARBOSA, 1946, op. cit., p. 372. 552 BARBOSA, 1946, op. cit., p. 371. 553 BARBOSA, 1946, op. cit., p. 379-380. 554 BARBOSA, 1946, op. cit., p. 384. 555 BARBOSA, 1946, op. cit., p. 365.
193
Os processos de educação são torcidos pela busca de completude da sociedade
nacional e seu referencial: o povo. As diversas imagens da regularidade moral das
atividades sociais já indicavam esse caminho. José Feliciano Rocha, entendendo a
educação moral como capacidade de “regenerar um coração”, acreditava que “o caracter
social de um povo forma-se na – escola”. Como perspectiva de elaboração de um povo e
da personalização de um caráter moral os processos de educação procuravam
“transformar um menino de máos costumes, em um cidadão verdadeiro, em um filho
dedicado e obediente, um discipulo docil, um christão virtuoso”.556 Nesse sentido,
“subordinar um menino de indole recalcitrante” à estrutura de prescrições e de avaliações
do campo moral como projeto formativo de condutas significava, sobretudo, o cultivo de
hábitos instituídos na vida comum, unificando expectativas de socialização e valores.
O entrelaçamento entre os processos de educação, a estruturação moral da
socialização e a elaboração da consciência à luz das transformações da modernidade
capitalista, aqui, exige um passo adiante. A inserção desses problemas em um horizonte
comum, seja como narrativa identitária de um povo ou como perspectiva de mobilização
moral de um coletivo, implica a investigação da população. Se os processos de educação
elaboravam parâmetros de integração moral diante do campo problemático dos valores e
da elaboração da consciência junto à cultura moderna, os efeitos das aglomerações
humanas explicitavam conteúdos para a sincronização da vida coletiva nessa vasta
experiência da modernidade oitocentista. Gostaria de explorar de maneira mais detida
essa emergência da população e as condições de sua gestão moral.
556 ROCHA, José Francisco. Duas palavras sobre a instrucção publica (II). A Escola, Rio de Janeiro, 1878.
194
CAPÍTULO 4 | A GESTÃO MORAL DA POPULAÇÃO
E além disto, a questão tenebrante: o povo brasileiro é um povo novo ou um povo decrépito? E os fatos idealizados pelo tempo valem mais que os passados atualmente?
Capistrano de Abreu, 1911.
No Brasil, as preocupações com a população e seu “caracter nacional” a partir da
segunda metade do século XIX estão inseridas na gênese de um amplo e matizado quadro
de entendimento do nacional e do fundo cultural do povo. Problemas pensados em uma
conjuntura que, especialmente entre os anos 1860 e os anos 1930, foi preenchida pelos
tipos regionais do romantismo de Alencar, Taunay e Franklin Távora, por pesquisas
geográficas, antropológicas, folclóricas, fotográficas e coletâneas de costumes populares,
pela fase regionalista das telas de Almeida Junior, além das elaborações estéticas de
Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Essas estilizações do nacional emergiram de
um terreno difuso revolvido por reflexões sobre a população e as estruturas de formação
moral (educação) do povo.
Os mecanismos de governo da vida coletiva, arranjando dispositivos que tornam
o espaço social um campo de intervenções, assumem a população como pressuposto dos
procedimentos de gestão. A população é, sobretudo, um problema:557 antes de um dado
imediato produzido pelo amálgama de indivíduos, ela circunscreve um conjunto de
atividades sociais, formas de circulação e espaços de compactação traduzidos em
estruturas de regularização de comportamentos. Trata-se de um horizonte coletivo
indispensável para a estruturação de valores e de aspirações à homogeneização de
condutas. No fim de século e no começo do século XX, um tema central nesse sentido
dizia respeito às condições de unidade do caráter nacional e de integração das cadeias de
diferenças em uma narrativa homogênea de um povo. Dilema, sobretudo, para as
sociedades latino-americanas: o antropólogo Manuel Gamio era categórico ao afirmar
que, como critério básico para o desempenho do “bom governo”, o conhecimento da
população era a matéria-prima “con que se gobierna y para quien se gobierna”.558
557 FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2004. 558 GAMIO, Manuel. Forjando patria . México: Librería de Porrúa Hermanos, 1916.
195
Além da heterogeneidade da população e do prolema de sua unidade moral, a
intervenção sobre a organização social sinalizava o ímpeto moderno e as condições de
racionalização da equação território/população. Varnhagen, ecoando um amplo
imaginário da dinâmica urbana e de narrativas aspiracionais de ordenamento e sincronia,
acreditava na utopia da interiorização da capital (concretizada apenas um século depois,
mas pela modernização estandardizada de outra utopia, a modernista), tendo em vista
“empregar a maior somma possivel de capitaes productivos, os quaes augmentando sua
cultura e riquesa, e depois sua populaçam”, conduziriam as iluminações modernas aos
sertões. Caminhos de ferro, vias de comunicação e espaços esquadrinhados, como
lampejos da infraestrutura, assinalavam condições de animação moral, de modo que
Como as cidades visinhas ao mar se civilisam e criam as necessidades dos commodos da vida e do luxo, estimulo da riqueza, pela simples frequencia dos navios e trato do commercio maritimo, aos longinquos certoens é necesario, para que elles se animem a sair do estado quasi natural, levar como tonicas grandes focos de civilizaçam, e nam o pode haver melhor do que o de assentar ahi a propria capital, que em todos os reinos é o centro do luxo.559
Mais do que organizar as condições desiguais de incorporação dos espaços, o
governo da população pressupõe um componente formativo, encontrando no campo da
instrução pública e na estruturação dos processos de educação dois núcleos de
estabilização da vida coletiva. A seriação, a hierarquização de conteúdos curriculares, a
disposição funcional de procedimentos institucionais e as relações de sentido construídas
nos esforços de moralização social, no limite, indicam mecanismos de racionalização do
espaço e esquadrinhamento da população. A partir da reforma de 1854 no campo da
instrução pública, os diversos projetos reformistas assinalaram justamente a elaboração
da educação nacional pari passu à construção de estruturas da vida urbana para gestão
dos meios de socialização. Depoisier, autor de diversos textos sobre educação e nome
muito difundido no Brasil oitocentista, destacava o grau de maturidade (mûr) das
sociedades conforme as dispositions des peuples e a economia de seus conteúdos morais,
acreditando que “a instrução não é obra de impetuosidade, mas de paciência. É preciso
ter precaução quando se trata de dá-la ao povo”.560 Além da organização e da disposição
559 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Memorial orgânico. Madri: Imprensa da Viuva de D. R. J.
Dominguez, 1850. p. 10-12. 560 DEPOISIER, Jacques. Sur l’instruction publique dans des états sardes. Paris: J. Lecoffre, 1846.
196
funcional de conteúdos (base das preocupações procedimentais do campo da instrução
pública), a seletividade dos valores nas formas de transmissão da cultura dizia respeito à
composição do caráter do povo.
Em tese apresentada junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Joaquim
Pedro Mello enfatizava a unidade do povo a partir da “formação de habitos tanto
intellectuaes, e moraes, como physicos”.561 Se os “vicios condemnaveis existem ainda
profundamente arraigados no espirito dos Brasileiros”, a “cultura das faculdades
intellectuaes e moraes do homem” implica a unidade do caráter nacional por meio da
estruturação de valores para os comportamentos.562 A “uniformidade de indole” e a
“marcha na vereda da civilisação”, atravessando a instabilidade de “perigosos prazeres”
da vida moderna que anda de “mãos dadas com o luxo, e com a occiosidade, e enervão o
nosso temperamento”, situava a narrativa sobre a unidade física e moral do povo a partir
dos “modelos de grandeza e robustez que nos cita a história entre os Celtas, Germanos,
Gauleses, etc.”. Afinal, “formar homens” significava, a um só tempo, o comedimento dos
comportamentos (pela contenção da ira, da intemperança, da cólera etc.) e a exposição
organizada a partir do asseio e da boa compleição física contra os “signaes de
decrepitude”. Nesse sentido,
Os homens são, não só cercados por perigos, durante todo o decurso de sua vida, como destinados á serem presas das paixões da alma, que os podem tornar felizes, ou desventurados, bons cidadãos, ou membros inuteis da sociedade. As paixões brotão na infancia, e juventude, e deitão tão profundas raizes, que em balde se tentaria arrancal-as em uma época mais avançada; urge, pois, que as pessoas encarregadas da educação dos meninos, e dos moços, assim em estabelecimentos publicos, como particulares, invidem todos os esforços para evitarem o desabroxamento de paixões, que puderem desdourar a intelligencia, e offuscar a razão, e para desenvolverem em sua alma os sentimentos que ennobrecem o coração humano.563
As buscas pela sociedade nacional e seus referentes, então, dialogavam
diretamente com os processos de educação e com o horizonte formativo do nacional. Em
relatório publicado sobre a Bahia, o barão de São Lourenço construiu um painel a partir
561 MELLO, Joaquim Pedro. Generalidades a cerca da educação physica dos meninos. Rio de Janeiro:
Typ. de Teixeira e Comp., 1846. 562 MELLO, 1846, op. cit., p. 13. 563 MELLO, 1846, op. cit., p. 36.
197
do problema do arranjo moral da população.564 Ao lado das iluminações modernas
cruzando as terras bravias com linhas de vapor e obras ferroviárias, o vasto território
interior, além da vinculação material aos progressos da época, deveria ser integrado
moralmente em uma unidade da vida nacional. A racionalização da paisagem e o
sentimento de formação, portanto, eram subjacentes à redenção pelo progresso –565 e,
sobretudo, ao ideal de completude moral do nacional. Nesse sentido, diversos pontos
eram destacados em sua narrativa sobre a nação. Se a educação forneceria o “traquejo da
vida commum”, “acompanhando os habitos e inclinações da população” como processo
estruturado “de accordo com a indole dos povos”, essa “sublime vantagem para civilisar
os povos” indica que “muito diminuirão as contendas, os assassinatos, e o roubo; e até a
vertigem politica ha de ser menos cega e funesta”. Assim, as simpatias sociais e suas
virtudes seriam nutridas pelo “amor do trabalho” (“esta primeira virtude do
christianismo”), pela caridade e por mecanismos de integração moral de indivíduos.
Diante do problema da população essas associações por meio de parâmetros morais de
socialização implicavam uma gestão dos referentes da vida coletiva para a unidade de
caráter de um povo.
Paralelamente aos processos de educação, uma infraestrutura era mobilizada nas
grandes cidades e povoações. Um conjunto de práticas e saberes estava associado aos
levantamentos quantitativos de habitantes, à produção de mapas de população e ao raio
de atendimento do campo da instrução pública e das obras de caridade e educação,
compreendendo uma esfera da assistência formada pelas Santas Casas de Misericórdia da
Cachoeira, Maragogipe, Santo Amaro, Feira de San’Anna e Nazaré, além da Casa da
Providênia (recebimento e educação de órfãs, meninas pobres etc.), do Colégio dos
Órfãos de São Joaquim, de recolhimentos e de asilos.566 Ao lado do atendimento aos
públicos urbanos, o problema da população operava sobre cisões físicas e culturais mais
amplas, tendo em vista o vasto interior/sertão e as populações indígenas. Preocupado com
a “catechese e civilisação dos indios”, o autor justificava seus projetos e preocupações
“não só como exigencia da nossa crescente civilisação, mas ainda como attenuante que
se offerece naturalmente á escacez progressiva de braços para a lavoura”. Com bandos
desvinculados da unidade moral aspirada da população, o autor contrapunha a vida moral
das cidades ao ambiente selvagem e as povoações do interior, que continham hordas
564 MARTINS, Francisco Gonçalves. Relatorio apresentado a Assemblea Legislativa da Bahia em 6 de
março de 1870. Bahia: Typ. do Jornal da Bahia, 1870. 565 MURARI, Luciana. Natureza e cultura no Brasil (1870-1922). São Paulo: Alameda, 2009. 566 MARTINS, 1870, op. cit., p. 36-47.
198
“levando á estas a destruição e o terror”. Especialmente quanto aos indígenas, a
racionalização do interior e de sua população era central,
[...] chamando-os ao gremio da sociedade e ensinando-lhes a preferir a vida pacifica e regular aos habitos aventureiros em que se consomem miseravelmente, manda a caridade e acoselha a prudencia que não devam elles ser despresados, senão por amor do interesse proprio e segurança das propriedades e vidas collocadas em sua proximidade, ao menos pela dignidade mesma do paiz, e para a propagação da fé christã.
Conforme o relato do barão de São Lourenço, o caráter problemático da população
residia no registro de deficiências. A busca pela população e pelo nacional era uma busca
por suas faltas, esbarrando sempre em uma incompletude. Ao passo que apregoava a
necessidade de “obter população do estrangeiro que nos traga a industria, as artes e o
amor do trabalho”, o autor advogava a difusão de “caracteres dedicados ao bem e
dominados pela caridade”, de modo que “emquanto o europeo não comprehender suas
vantagens, é de proveito proseguir na colonisação nacional, prompta, efficaz, e pouco
dispendiosa”. O recurso ao nacional, aqui, não ocorria sem um desdém pela mobilização
das povoações do interior, “onde vegeta uma população numerosa”. Se as vias de
comunicação são parcas diante da extensão do território e a população dispersa, a unidade
de convicções pretendida pelos processos de educação era comprometida. Afinal, “um
dos maiores males que sente a nossa sociedade, e maior obstaculo á civilisação e
moralidade dos povos é a dispersão”.567 Dispersão física, mas sobretudo moral.
Em relação aos processos de educação, além de um Afonso Celso, preocupado
com a integração de uma cultura nacional a parâmetros unificados e formalizados do
campo da instrução pública,568 Joaquim Inácio Silveira da Motta ofereceu um esquema
de fundo sociológico bastante significativo para essa interface entre os processos de
educação e a gestão da população. Sob as “necessidades actuaes da civilisação”, os
processos de educação implicam “a modificação e o aperfeiçoamento do caracter
nacional” na medida em que unificam as formas de consciência em uma vontade
coletiva.569 No caso brasileiro, com as “populações espalhadas por territorios”, o
sentimento de inacabamento civilizacional (ele próprio, aliás, uma contraparte da busca
567 MARTINS, 1870, op. cit., p. 54. 568 FIGUEIREDO, Afonso Celso de Assis. Algumas idéas sobre instrucção primaria e secundaria. Rio
de Janeiro: Typ. Nacional, 1883. 569 MOTTA, Joaquim Ignacio Silveira. Conferencias officiaes sobre instrucção publica e educação
nacional. Rio de Janeiro: Dias da Silva Junior, 1878.
199
pelas promessas da modernidade) decorrente da precariedade das vias de comunicação
com o vasto interior e os sertões indicava que, pari passu à desagregação física, a cisão
da nação era uma dispersão moral, de modo que os “fócos de acção authonomica, cuja
vida se unifica formando a synthese da associação nacional”, ficam precarizados diante
das aspirações unificadoras do “caracter nacional” e de suas expressões mediante os
valores, tais como as “bôas relações de civilidade e continência”, o “vigor physico, moral
e intelectual” da população etc.570 Algumas coordenadas fundamentais, então, estão
entrelaçadas na gestão da vida coletiva: a correlação entre densidade demográfica e
dispersão moral, o ímpeto moderno diante da infraestrutura e a miragem da interiorização
como ideologia da civilização e narrativa unificadora da sociedade nacional.
Para Silveira da Motta, “dar o typo de educação nacional” significava ser “capaz
de attender as necessidades moraes, politicas e economicas de todas as classes da
população”.571 Se “todo o trabalho de propagação de ensino está associado ás vias de
communicação”, a “aproximação dos fócos de civilisação” era fundamental para a difusão
das luzes e da vida moral junto às povoações do interior.572 O contraste entre o dinamismo
das grandes cidades e as povoações esparsas do interior e do campo, tão caro à segunda
metade do século XIX com a consolidação do ideal de vida urbana, ganha um contorno
importante à luz dos processos de educação: trata-se, também, de um contraste que
abrange a composição problemática do “caracter nacional”. Se a nação buscava um
caráter, um conteúdo capaz de individualiza-la como realização moral, a difusão da
“cultura do espirito e do coração” esbarrava em cisões internas. Assim, longe das
principais cidades, a “inercia dos parentes” ilustrava a situação estacionária do vasto
interior em relação às necessidades da civilização moderna. Para Silveira da Motta,
Ao inverso de todas as outras cousas em materia de instrucção, tanto maior é a falta quanto maior é a procura. E é a rasão por que o selvagem é estacionario. A influencia benefica de uma instrucção justa e liberalmente distribuida acabara por extinguir o preconceito, estreitando os laços que prendem aos deveres filiaes, e influindo para que não constitua um privilegio o saber ler e escrever; privilegio que alimenta a vaidade e produz abusos de vocação, impellindo a abandonar a vida rural para procurar o bolicio das cidades, e em vez de cooperar com intelligencia e discernimento para a prosperidade da lavoura, substituindo a rotina pelos processos aperfeiçoados, vão pcoruar outras carreiras e habitar os grandes centros, augmentando o numero de
570 MOTTA, 1878, op. cit., p. 63-65. 571 MOTTA, 1878, op. cit., p. 154. 572 MOTTA, 1878, op. cit., p. 117-118.
200
desoccupados e turbulentos, que só fundam esperanças nas variações de ordem social.573
Seguindo os debates de época, outra cisão moral era relacionada ao ímpeto
moderno no esclarecimento dos povos e do interior. Silveira da Motta considerava que
“proveniente da ignorancia, mal avaliando os beneficios da instrucção, e até temendo que
as aspirações do espirito cultivado desloquem os filhos dos trabalhos em que se empregam
os paes, e os faça desdenhar os habitos do lar”, o caráter estacionário e embrutecido das
populações do interior gerava uma distorção moral na pretensão de homogeneidade de
caráter da população. Tarquinio Souza Filho, ecoando esse longo debate sobre a
população e seus processos de educação, questionava até que ponto “os conhecimentos
adquiridos” podem inclinar o povo “para outras carreiras, dando-lhe outros horizontes e
alargando o circulo de suas ambições”, tendo em vista que “o perigo da elevação do nivel
intellectual das classes laboriosas, o receio de que seja isto motivo para suscitar ambições
desarrazoadas, desgostando da vida do trabalho, produzindo os desclassificados e os
descontentes”, compondo o “proto-plasma informe de que surgem depois os
revolucionarios e anarchistas”.574 As preocupações em relação à multiplicação de
aspirações construídas com a maior diferenciação produtiva junto à população indicam
justamente a necessidade de normatividade das estruturas sociais. As imagens de uma
modernização cindida, revolvendo a impressão de incompletude da própria formação
social, confronta o “caracter nacional” com as periferias internas da sociedade nacional.
Silveira da Motta associava à preocupação com o caráter da população o critério
de utilidade: a gestão da população é a moralização da própria atividade produtiva,
oferecendo “conhecimentos indispensaveis a todos as profissões para que cada um possa
trabalhar para si e para a nação”.575 O projeto de esclarecimento, lidando com as fraturas
morais e materiais da população, afirmava uma unidade de horizontes morais
Para que na colmea humana em que vivemos se desenvolvão as forças vivas da organisação e do espirito, e na rasão d’ellas coopere cada um para a vida e harmonia do individuo e da associação, guiados pela fé e pelas luses da rasão.576
573 MOTTA, 1878, op. cit., p. 121. 574 SOUZA FILHO, Tarquínio O ensino technico no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887.
p.63. 575 MOTTA, 1878, op. cit., p. 59. 576 MOTTA, 1878, op. cit., p. 45.
201
A interdependência e a coesão da vida coletiva, como bases da população,
indicavam que “o successo do individuo na sociedade depende do modo como elle
desempenha o seu papel”. Afinal, “se se recusar uma educação baseada na verdade e na
virtude [...] arrastareis o povo a um abismo de vicios, de desordens e de ruinas”.577 A
passagem das perspectivas formativas de condutas e de elaboração da consciência a
horizontes de integração moral mais amplo é preenchida pelos conteúdos do “caracter
nacional” da população. Leitor de Ducpétiaux, Silveira da Motta e suas preocupações são
convergentes com a noção de uma éducation des passions do autor belga.578 Em obra
dirigida ao governo da população e de sua proatividade como “classe laboriosa”, visando
uma organização do trabalho capaz de regular o incremento da atividade produtiva e a
divisão de seus ramos, o autor apregoava que o sentiment d’ordre garantido pela educação
moral era, a um só tempo, derivado dos imperativos de tranquilidade pública
(regularidade da atividade social), da normatividade pressuposta nos valores morais de
socialização e de mecanismos disciplinares (prisões, sistemas de patronagem etc.). A
população, portanto, não é apenas um objeto de intervenção pontual: ela constitui um
campo de gestão em que os processos de educação e os valores morais dinamizam
conteúdos para o problemático preenchimento de seu caráter, intercalando as agruras da
integração física de um antigo espaço colonial e o sentimento de incompletude de sua
destinação moral em uma mesma experiência de fundamentação de valores junto às
ideologias de realização do ímpeto moderno.
Em meio aos bondes, teatros, ferrovias e à “grande cauda de luz electrica” dos
passeios urbanos no Rio de Janeiro, Coelho Neto conduz uma narrativa (publicada em
1893) centrada nas desproporções de “um povo incaracteristico” e seus males morais.579
Temas, aliás, caros à produção do autor (vide a narrativa de Sertão). Se “somos um povo
que começa”, o déficit de caráter nacional é interpretado em registro moral: afinal,
“physicamente, somos um povo hibrido, sem raça discriminada, sem antecedentes
firmes”, pois “nascemos da amalgama, somos os epígonos de Babel”, de modo que a
preguiça, a languidez e a precariedade de coesão são indicativos de uma “miséria de
origem”.580 Para o autor “ha, todavia, um meio de combater essa teratologia orgânica – é
a educação”. Além da higiene das condutas físicas e da compleição, fundamental é a
577 MOTTA, 1878, op. cit., p. 110. 578 DUCPÉTIAUX, Edouard. De la condition physique et morale des jeunes ouvriers et des moyens de
l’ameliorer . Bruxelas: Meline, 1843. p. 211. (Vol. 2) 579 COELHO NETO, Henrique. A capital federal. Porto: Chardron, 1915. 580 COELHO NETO, 1915, op. cit., p. 166-175.
202
“educação moral, que é a confortável armadura do espirito que o previne e defende contra
as ciladas constantes da vida de sociedade, porquanto fornece ao homem os
conhecimentos práticos do bem e do útil, creia o amor altruísta estabelecendo a unidade
entre os seres”.581 Como “hygiene de espirito”, os processos de educação conduzem a
“massa rude” à consciência de suas “manifestações collectivas”. Instituindo um campo
comum estruturado pelas prescrições e valores da socialização, a educação moral do povo
ilustra “noções geraes sobre o destino na vida” por meio das “relações que devem existir
entre os indivíduos e os fins de todos para o bem da communidade”. Nesse sentido, a
educação “estabelece as bases irreductiveis da família e da sociedade dando a mais o
vasto appendice da crença” junto à população.
Em um discurso de 1877 publicado pelo Jornal do Recife, Tobias Barreto
mencionava a “doença moral de que padece o povo”, uma vez que “o Brasil já faz a
impressao de um menino de cabellos brancos”.582 Para o intelectual da Escola do Recife,
“as consciencias como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se
inquietas em busca de um apoio”,583 de modo que “o povo que é o numero, mas um
numero abstracto, um numero que não é a força”.584 A busca pela população e a gestão
do “nosso caracter nacional” esbarravam nas disjunções de uma impressão de
inacabamento das aspirações modernas da periferia: como esgarçamento dos valores de
socialização e de “dignidade pessoal”, a dispersão era o dado sociológico de um “povo,
o qual permanece amorpho e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a communhão
da lingua, dos máos costumes e do servilismo”. Além da confusão moral dos novos
tempos e do espectro do “fanatismo da igualdade” do nivelamento moderno (implicando
a inveja, o despotismo e “a oppressão de todas as inclinações naturaes”), “os mesmos
symptomas morbidos, as mesmas ânsias” e “a mesma angustia” da formação e queda
moral das populações condionavam o nacional. A população segue uma dupla destinação,
“uma de marcha em linha recta” e “outra de decadencia e enfraquecimento”, e por isso
Tobias Barreto enfatizava que
[...] o que mais salta aos olhos, o que mais fere as vista do observador, o phenomeno mais saliente da vida municipal, que bem se póde chamar o expoente da vida geral do paiz, é a falta de cohesão social, o
581 COELHO NETO, 1915, op. cit., p. 177-179. 582 BARRETO, Tobias. Discurso em mangas de camisa. In: LIMA, Hermes. Tobias Barreto: a época e o
homem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. 583 BARRETO, 1939, op. cit., p. 304. 584 BARRETO, 1939, op. cit., p. 294.
203
desaggregamento dos individuos, alguma cousa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de atomos inorganicos, quasi podia dizer, de poeira impalpavel e esteril. Entre nós, o que ha de organisado é o Estado, não é a Nação.585
A atividade social sobre o território e a rotinização de hábitos comuns da
população eram referências para a elaboração de um espaço produtivo.586 José Francisco
da Rocha mencionava os empecilhos de uma “população rara e espalhada”: afinal, “não
procederá o atrazo da instrucção da deficiencia de população?”.587 Se “a população é
pequena e se acha dispersa pelo immenso territorio”, as estruturas de coesão moral para
a vida comum eram bloqueadas pela ausência de ímpeto na racionalização do espaço e a
desagregação de uma vontade coletiva. A experiência do desconcerto diante do problema
da população marcava a própria falta do nacional, pois a busca pelo povo e seu conteúdo
nacional era o reconhecimento de que “a falta de povo suscita o atrazo da instrucção”.
Acreditando que “quando o povo estiver mais reunido ou agglomerado, não será tão
improba a tarefa de desenvolver a instrucção”, Rocha sublinhava a fratura da nação diante
de um inventário de ausências da atividade moral capaz de tornar tangível o movimento
moral da população.
A instituição deste ponto comum, como compactação e homogeneidade moral da
população, entrelaçava a ideologia do progresso ordeiro com os princípios da atividade
social regulada para “intervenção do homem” junto ao meio físico “para dar vda,
prestimo, mobilidade á matéria”, tendo em vista os “inconvenientes de uma população
dispersada e pouco compacta”.588 Indissociável do caráter da população, portanto, era o
território. No velho Norte, nos anos 1870, as linhas de vapor ligando Manaus, Iquitos e
Belém (navegando pelos rios Purus, Negro, Juruá e Madeira) indicavam caminhos da
unificação espacial da população (“é da navegação á vapor que ha de vir o progresso
d’esta immensa região”),589 de modo que o processo remontava aos anos 1860 e à efetiva
abertura do Amazonas para o capital estrangeiro, integrando a nascente infraestrutura, as
mercadorias e os indivíduos no sistema de trocas – para o qual eram necessários
585 BARRETO, 1939, op. cit., p. 288. 586 STAHL, Moisés. Louis Couty e o Império do Brasil: o problema da mão de obra e a constituição do
povo no final do século XIX (1871-1891). São Bernardo do Campo: Editora da UFABC, 2016. 587 ROCHA, José Francisco. Duas palavras sobre a instruçao publica. A Escola, Rio de Janeiro, n. 3, 1877. 588 WERNECK, Lacerda. Idéas sobre colonisação precedidas de uma sucinte exposição dos principios
geraes que regem a população. Rio de Janeiro: Laemmert, 1855. 589 MIRANDA, Antonio dos Passos. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do
Amazonas na 1.a sessão da 13.ª legislatura. Pará: Typ. do Diario do Gram-Pará, 1876.
204
“trabalhadores activos, intelligentes e moralisados”.590 Figura importante da política na
região, Lauro Sodré afirmava que “esse é o segredo da acceleração com que tem
virtiginosamente envolvido os Estados-Unidos da America do Norte, em cujo seio tem se
derramado como uma grande maré viva e cheia, milhões de milhões de operários”.591
Como base para gestão da população, o ensino técnico e a criação da Escola Agrícola,
evitando “a desclassificação da população rural”, abriam “ás actividades novas carreiras,
dignificando pelo ensino profissões caidas no conceito da sociedade burgueza actual”. Se
“nos torneios, de que hoje se entretece o drama da vida das nações policiadas, a victoria
ha de caber ao mais apparelhado, isto é ao mais instruído”, Sodré indicava na
[...] introducção de levas de immigrantes, condicção essencialissima para o nosso mais largo desenvolvimento, porque se possuimos de sobejo as forças que a natureza, tão prodiga n’esta parte do mundo, poz ás nossas maos, si temos capitaes, de braços é que carecemos para fecundal-os, para dirigir a acção das forças physicas, tornando dia a dia mais intensa a producção.592
Charles Reyboud, igualmente detido sobre a equação território/população,
enfatizava a necessidade, em um antigo espaço colonial, de constituição moral do povo e
da escassa população por meio da “civilização pelo trabalho do homem”.593 A
mobilizaçao das “forças humanas” preencheria a população esparsa (clair-semée),
especialmente os vastos interiores e sua gente embrutecida (abrutie), com a ideologia do
trabalho e a integração moral da socialização. Mesmo a literatura da época e diversos
opúsculos eram fartos de referências ao problema da população, sua coesão espacial e sua
unidade moral em um caráter nacional. O conhecido texto de Afonso Celso, publicado
em 1900 e indicado como livro escolar de leitura, retomava em tom naïf esse inventário
moral dedicado a sumariar os dados da população: o “caracter desse povo” era
essencialmente “bom, pacifio, ordeiro, serviçal, sensivel, sem preconceitos” (afinal,
“nenhum antagonismo separa os grupos componentes da população”).594 Emoldurado
590 VELLOZO, Pedro Leão. Relatorio com que o excellentissimo senhor presidente da provincia passou
a administração da mesma ao excellentissimo senhor 1º vice-presidente, barão do Arary. Pará: Typ. de Frederico Rhossard, 1867.
591 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo governador ao congresso do estado do Pará. Belém: Typ. do Diario Official, 1893.
592 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo governador ao congresso do estado do Pará em sua segunda reunião em 1º de julho de 1892. Belém: Typ. do Diario Official, 1892.
593 REYBAUD, Charles. Le Brésil. Paris: Guillaumin et Cie., 1856. p. 183-191. 594 FIGUEIREDO JUNIOR, Afonso Celso de Assis. Porque me ufano do meu paiz. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Garnier, 1901.
205
pela portentosa imagem da paisagem natural e pela recorrência de certas tópicas de
invenção de uma América como terra do recomeço dos vícios da civilização,595 o
“movimento da população”, “movimento ascendente que nunca estacionou e menos
retrocedeu”,596 era livre “dessas terriveis catastrophes, communs a quasi todos os povos,
quer na ordem material, quer na moral”.597
Se “vias de communicação augmentam diariamente, bem como a sua actividade
commercial e industrial”, o “typo nacional” era foco de “progresso constante” pelas
iluminações modernas e, sobretudo, pela regularidade das atividades sociais.598 A
ideologia da índole pacífica do nacional e de uma terra ainda não tocada pelo conflito
social (em contraste com a velha Europa condenada “a não largar as armas, minada pela
miseria, dividida por odios implacaveis, explorada pelo argentarismo, ameaçada pelos
anarchistas”) indicava uma leitura moral da população no registro das virtudes da
socialização alicerçadas na educação, no trabalho, na imigração e na dilatação regulada
da “zona productora”, oferecendo “immensas vantagens á economia geral do genero
humano”.599 Em tom mais técnico, Domingos Jaguaribe, preocupado com temas
correlatos desde a publicação de Algumas palavras sobre a imigração (1877),
argumentava que o “progresso da civilização está em relação direta com a capacidade de
associação”.600 A imensidão territorial e a parca (faible) densidade populacional,
implicando o sentimento de uma falta (manque) de população, projetavam a estruturação
da vida coletiva em um horizonte incompleto. A produção e a reprodução moral das
estruturas sociais pressupõem o trabalho, de modo que este deve “aumentar no homem o
poder de dirigir, para sua utilidade, as forças da natureza”.601 Se “isolado o homem perde
suas forças”, a gestão moral das atividades sociais e o conteúdo de caráter da população
deveria ser preenchido por “conhecimento de regras da fisiologia, da higiene e da
moral”.602
Como configuração da paisagem, a unificação das estruturas perceptivas do
espaço social a partir das coordenadas de gestão do território, contando com a mediação
da população e do horizonte moral, elaborava sentidos explicativos do nacional e de seus
595 O’GORMAN, Edmundo. La invención de América. 3. Ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica,
1984. 596 FIGUEIREDO JUNIOR, 1901, op. cit., p. 50. 597 FIGUEIREDO JUNIOR, 1901, op. cit., p. 59-61. 598 FIGUEIREDO JUNIOR, 1901, op. cit., p. 188. 599 FIGUEIREDO JUNIOR, 1901, op. cit., p. 10. 600 JAGUARIBE, Domingos. Influence de l’esclavage et de la liberté. Paris: Gustave Fischlin, 1893. p.67. 601 JAGUARIBE, 1893, op. cit., p. 56. 602 JAGUARIBE, 1893, op. cit., p. 63.
206
referentes (o povo).603 Os movimentos de colonização interna dos vastos interiores e de
imigração não podem ser dissociados, portanto, dos quadros mais amplos de exploração
do espaço e fluxos de mão-de-obra em escala global. Essas preocupações podem ser lidas
à luz das transformações do sistema-mundo em diversas direções, convergindo na
tematização da proatividade coletiva. Em uma conjuntura de mobilização transnacional
das forças produtivas e miragens de abundância da modernidade, especialmente a partir
dos anos 1850 e da abertura do canal de Suez em 1869,604 os lampejos das corridas do
ouro de Witwatersrand (atual África do Sul) em 1886 e de Klondike (Canadá) em 1896,
além da frente de exploração dos anos 1880 na região de Pahang (Península Malaia),
coexistiam com movimentos mais consolidados de população e circuitos de colonização
e migração em regiões como Austrália, Nova Zelândia, Califórnia, Canadá, África do Sul,
Índia Britânica e Índias Orientais Holandesas, indicando a desterritorização das forças
produtivas e novas narrativas diante da ocupação e da produtividade do espaço, concebido
sobre hierarquias de produção, poder e saber que emergiam dialeticamente dos impérios
da razão universal, das estruturas de mercado, da respeitabilidade burguesa e do
liberalismo e seu juste milieu moral.605 Como contrapartida, em um segundo movimento,
o repertório de imagens e tipificações viabilizava a racionalização produtiva e cultural da
população com descrições morais dos hábitos, do trabalho e da ordem implicados na
produção do discurso colonial.606 Estava em jogo uma espécie de cartografia física e
moral dos circuitos da modernidade capitalista,607 integrando os centros e as periferias do
sistema-mundo, bem como as periferias internas às formações nacionais (sejam os vastos
interiores territoriais ou os espaços de desvalimento das cidades modernas), por meio da
normatização dos espaços sociais conforme saberes sobre a população e as condições de
civilização – no limite, técnicas de governo da população e de seus deslocamentos na
nascente era das mobilizações de massa e das migrações.608
603 NAXARA, Marcia Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica. Brasília: Editora UnB, 2004. 604 SCHNERB, Robert. Le XIXe siècle. Paris: PUF, 1955. BOSMA, Ulbe. Sailing through Suez from the
south: the emergence of an Indies-Dutch migration circuit (1815-1940). International Migration Review, v. 41, n. 2, p. 511-536, 2007. SATYANARAYANA, Adapa. Beyond the eurocentric history of migration: an Indian perspective. International Journal of South Asian Studies, v. 6, 2014.
605 COOPER, Frederick; STOLER, Ann Laura (Orgs.). Tensions of empire: colonial cultures in a bourgeois world. Los Angeles: University of California Press, 1997.
606 COHN, Bernard. Colonialism and its forms of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 1996.
607 SAID, Edward. Culture and imperialism. Nova York: Vintage, 1993. p. 63-66, p. 77-80. 608 SAMADDAR, Ranabir. Histories of the late nineteenth to early twentieth century immigration and our
time. Current Sociology, v. 66, n. 2, 2018.
207
Como recorte da equação população/território, o ímpeto moderno de
racionalização e de redenção do espaço pela técnica e pela coordenação das atividades
produtivas tecia o território em torno de referências centradas na produtividade da vida
moral e na expansão interna das frentes de população nos territórios latino-americanos.609
A partir dos anos 1850, na esteira de memórias e relatórios de Paulo José Pereira, Nicolau
Joaquim Moreira, conde de Rozwadowski e Alfredo Taunay, diversos textos foram
dedicados ao tema da população, do território e de sua configuração moral (conjugando
a normatividade dos costumes à regularidade das atividades sociais nucleadas no trabalho
e na produção). Por isso, o problema da população era também o problema da força de
trabalho, de modo que as perspectivas de mobilização e, sobretudo, de construção de
parâmetros morais eram pensadas no registro das forças produtivas (tendo em vista o
critério de utilidade e a conjuntura de construção do mercado de trabalho, carregando
alterações nas relações sociais de produção).610 Visto em conjunto a partir das avaliações
morais, o processo indica caminhos importantes para a investigação.
As condições de massificação, por exemplo, conduziam a formação da sociedade
nacional a uma consideração sobre a multiplicação de aspirações junto à vida urbana.
Com Manoel Francisco Correia, se esses diagnósticos destacavam o problema da
regularidade de comportamentos na cidade, fundamental era o preenchimento da
população com hábitos educados. O autor defendia que, para o “aperfeiçoamento social
e moral” da população, somente a “diffusão de doutrina verdadeira e sã” era capaz de
mobilizar a atividade social regulada de uma “população inerte”.611 Aqui, uma cisão no
problema da população fica evidente: os processos de educação são dirigidos como
mecanismos de gestão da vida social na medida em que conferem conteúdo moral a uma
incompletude do caráter nacional ainda jovem ou de uma população tíbia. Como
“estimulos que póde ter o cidadão, empenhado em dstinguir-se por virtudes e talentos”,
os processos de educação formam o “mais poderoso motor do progresso dos povos” a
partir das “bases moraes” e da “luz vivificadora da instrucção”. Nesse sentido,
[...] a miseria intellectual é mais funesta que a miseria material; aquella embrutece, tira toda aptidão para o aproveitamente das faculdades humanas; esta póde ser o resultado dos vai-vens da fortuna, sem
609 CARMAGNANI, Marcello. El otro occidente. Trad. Jaime Riera Rehren. Mexico, DF: Fondo de
Cultura Economica, 2011. 610 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9. Ed. São Paulo: Contexto, 2013. 611 CORREIA, Manoel Francisco. Conferencias e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Typographia
Perseverança, 1885.
208
quebrantar a alma para a tentativa de novas emprezas licitas, não raras vezes seguidas de exito feliz.612
A convergência entre a ideologia da civilização e a instância deficitária da
população posiciona os processos de educação como condição de esclarecimento das
massas estacionárias tragadas pelo carro do progresso. Nesse sentido, “na ordem dos
melhoramentos moraes de que urgentemente carecemos, nenhum está acima do
desenvolvimento da instrucção, á vista dos elementos já colhidos que demonstram o
atrazo em que jaz grande parte da população”.613 Se o ensino “largamento distribuido
sobre a população inerte” é “a chamma capaz de dar-lhe ao coração e á intelligencia a
tempera patriotica”, a “causa da instrucção popular” tenta vincular o caráter da sociedade
nacional a seu problemático referente (povo). Para Correia, “com effeito, nenhum
triumpho, nenhuma conquista, nenhum passo glorioso, podem os povos emprehender fóra
do circulo demarcado por sua capacidade intellectual, unica base firme sobre que
modernamente operam-se as evoluções do progresso”, de modo que “é este o caracter
nobilissimo que distingue a civilisação no seculo presente”. Componente da mobilização
da população e do horizonte comum do progresso, o “trabalho intelligente e assiduo” era
a virtude básica das narrativas identitárias.
Para a “riqueza publica nos seculos anteriores”, o trabalho “não tinha ainda obtido
a consagração das suas maiores victorias; as leis a que está subordinado, mal
comprehendidas, não podiam determinar todo o livre estimulo que multiplica os seus
beneficios e sustenta os seus heroicos tentamens”;614 assim, o ímpeto moderno de
racionalização do território e de definição do espaço social com a regularidade moral
trazia outros imperativos dos tempos. As necessidades e as iluminações do século
entravam em contraste com “as devastações guerreiras e o conflicto perenne das classes
ociosas” dos tempos idos, pois “ficava d’esse modo fóra de acção quantidade consideravel
do vigor nacional; a massa popular, que devia ser dominada de actividade e energia,
permanecia inerte e passiva em um mecanismo social incompleto” – “d’ahi essa
oscillação, tão notavel e caracteristica, na riqueza e desenvolvimento das nações
passadas”. Nesse sentido,
612 CORREIA, 1885, op. cit., p. 44. 613 CORREIA, 1885, op. cit., p. 274. 614 CORREIA, 1885, op. cit., p. 302.
209
Para corrigir semelhante instabilidade, para assegurar aturado avanço na marcha das sociedades, era mister sommar todas as suas forças, as mais debeis como as mais pujantes, e applical-as de modo que reciprocamente se completasem, produzindo effeito mais vigoroso e tenas que as mais energicas resistencias oppostas ao progresso. Era necessario, analysados e dispostos os variados elementos da acção social, formar a alavanca cujo braço deveria deslocar os embaraços que offerece a estrada por onde as nacionalidades marcham para as celebrações do porvir [...] Falta, com effeito, ao povo brazileiro elemento mais essencial de progresso do que seja a instrução publica? Dispersa em extensa superficie que não conseguio ainda utilisar, apezar de abundante em diamantes e veios auriferos, e de conter riquezas que talvez um dia deslumbrem as nações opulenta, a nossa população, pode-se dizer, em grande parte vegeta e não vive, privada de comprehender a importancia dos seus deveres e do seu destino. Apenas consagra ao bem publico esforço diminuto e pouco consciente, não porque sua alma esteja fatalmente cerrada aos impulsos do patriotismo, mas porque na ignorancia, como em captiveiro que enerva e deprime, definham os grandes sentimentos á mingua de luz e de expansão.615
Os nexos entre a ideologia do trabalho e a mobilização da população, por meio
dos processos de educação, devem ser pensados em uma conjuntura de preocupações com
o ensino técnico e a reprodução da força de trabalho.616 Conforme o espírito cosmopolita
da época, diversos congressos debatiam essas questões – vale destacar o Congresso
Internacional de Ensino de Bruxelas (1880), o Congresso Pedagógico Internacional de
Buenos Aires (1882), a Exposição Internacional de Higiene e Educação de Londres
(1884), o Congresso Internacional Escolar de Havre (1885), o Congresso Internacional
de Ensino Técnico de Bordeaux (1886) e o Congresso Pedagógico Hispano-Americano-
Português de Madri (1892). No Brasil, a formação de pintores, torneiros, desenhistas,
relojoeiros, ourives, mecanicos, serralheiros, marceneiros, alfaiates etc., moralizando e
ocupando a população, encontrava respaldo em uma infraestrutura institucional. Diversos
núcleos de ensino técnico, nesse sentido, foram articulados na conjuntura do fim de
século, tal como o Asilo dos Meninos Desvalidos (Rio de Janeiro), Liceu de Artes e
Ofícios (Rio de Janeiro e São Paulo), Instituto Fluminense de Agricultura, Instituto
Baiano de Agricultura, Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (Rio de Janeiro),
Asilo Agrícola Santa Isabel, Colônia Orfanológica Isabel, Liceu Pernambucano, colônias
615 CORREIA, 1885, op. cit., p. 304. 616 CARVALHO, José Murilo. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Rio de Janeiro: Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. CUNHA, Luiz Antonio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
210
orfanológicas de ensino de “artes e officios” em Goiás (Blasiana) e no Ceará (Christina),
Estabelecimento Rural de São Pedro de Alcantara (Piauí), Casa de Educandos Artifices
(estabelecida nos anos 1840, no Maranhão, e dedicada ao ensino profissional), Instituto
de Educandos e Artífices Paraenses, Instituto Amzonense de Educandos Artifices,
cadeiras de ensino comercial prático (especialmente em Minas Gerais) e escolas-oficinas
em funcionamento desde o final dos anos 1870.
Vistas em conjunto, as instituições (algumas com significativa capilaridade e
perenidade para a época) evidenciam correlações entre o processo social e as percepções
vinculadas aos processos de educação. Tarquinio Souza Filho, em publicação apoiada
pela Sociedade Central de Imigração, sintetizava as “necessidades de nossa população e
as urgencias da actualidade” na organização do ensino técnico no país à luz do problema
da “instrucção das massas”. Se a vertigem do mundo moderno indica que a “sociedade
moderna está trabalhada pela luta dos elementos diversos”, uma questão “que se eleva
acima de todas, que a todas domina e se prende por laços logicos e materiaes – é a questão
do ensino, é o problema da educação”. Nesse sentido, “pôr á disposição do povo as
vantagens da vida intellectual e moral” significava mobilizar “convenientemente as forças
intellectuaes e moraes do nosso paiz e dahi este máo estar que se observa entre nós, esta
apathia para a vida do trabalho e esta luta desesperada, struggle for life implacavel”.617
Para o autor, “esclarecer, instruir e moralisar” são as “mais bellas tendencias do mundo
moderno, um dos traços mais salientes e caracteristicos de sua physionomia”, de modo
que os imperativos da época (dinamizados pelo trabalho) e o progresso ordeiro da
população lembravam que, nos “povos modernos”,
É com effeito hoje ponto incontroverso que o ensino e a educação, natural e essencialmente inseparaveis, são os principios vitaes da civilisação, indispensaveis á ordem moral, meios seguros de tornar o homem melhor e mais completo, origem de todos os progressos, poderosas barreiras ás commoções violentas que agitam os povos, levando-s á ruina e ao desmoronamento, penhores da paz, de ordem, de justiça, no seio das sociedades.618
Se “o bem estar intellectual e economico generalisam-se”, as disjunções entre as
narrativas aspiracionais de homogeneidade e unidade física/moral da população diante da
extensão do território compunham distorções no caráter do povo. A “dispersão da luz
617 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 53-55. 618 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 13.
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intellectual por todas as camadas sociaes” encontrava óbices na esparsa ocupação do
vasto território, de modo que a “pouca densidade da população, disseminada em
vastissimo territorio”, expõe a “peculiaridade inherentes a um paiz novo, sem tradições
hierarchicas ou espirito de classe profundamente arraigado”.619 Povo novo e população
incompleta eram os enigmas da formação e do vislumbre de uma condição periférica. A
expansão das formas de vida, levada a cabo por projetos de colonização e interiorização
apoiados pelo crescimento demográfico (como narrativas aspiracionais de um progresso
ordeiro dinamizado pela proatividade da população), indicavam que a “marcha
ascendente de um povo, seu progresso moral e material são, ao contrario, indicios
inequivocos de que os novos rebentos da população foram tratados com esmero, de modo
a preparar gerações sans, fortes, adestradas para a luta da vida”.620 Para o autor, “ha entre
nós elementos esparsos, germens fluctuantes de desorganisaçao e anarchia, que espreitam
apenas uma occasião azada para sahir deste periodo de formação e se crystallisar nos
factos”, de modo que a estruturação moral da sociedade por meio de suas forças
produtivas tornava-se condição da regularidade das atividades e das condutas.
O envolvimento do engenheiro Domingos Maria Gonçalves nas obras e nas
discussões sobre ensino agrícola em Pernambuco e no Rio de Janeiro ilustra algumas
apostas ideológicas do ímpeto moderno, expandindo a capacidade produtiva, na
“incruenta cruzada do seculo XIX” para a qual as “atalaias do progresso dão o grito de
alarma”.621 Gonçalvez manifestava o “interesse que a instrucção popular seja dada em
alta escala”, trabalhando com indígenas, populações do interior, orfãos e “menores
vadios” das grandes cidades, a fim de aproveitar e moralizar a mão-de-obra para os
“officios mechanicos” e a formação de “operarios instruidos”. A atividade da população
é a condição para a expansão das iluminações modernas e da regularidade das condutas
educadas a fim de “multiplicar as forças reproductoras”, tendo em vista que “uma
povoação que hoje é inutil, e amanhã talvez perigosa, será transformada em um povoado
trabalhador e policiado”. Coordenar “tantos individuos que podem e devem ser altamente
uteis a si e á nação”, nesse sentido, enobrece o caráter nacional pelas virtudes do trabalho:
“dar systematico e mais vigoroso impulso a esse progresso essencial” da educação da
população, portanto, relaciona a gestão moral da população a partir da economia moral
do indivíduo, uma vez que “em economia politica o homem está tão ligado á sociedade,
619 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 49. 620 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 20. 621 GONÇALVES, Domingos Maria. A instrucção agricola e o trabalho livre. Rio de Janeiro: Typ. de
Evaristo Rodrigues da Costa, 1880.
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que aquelle que mais trabalhar a bem da communidade é o que mais ganha
individualmente”.
Se a contraposição trabalho/ócio disponibilizava juízos subjacentes à ideologia do
progresso, as perspectivas avaliativas constituíam imagens do abatimento moral e físico
da sociedade. Já nos anos 1860, o barão de Macaubas enfatizava que
O homem que é bastamte desgraçado para não sentir a importancia do trabalho não vive; – vegeta e langue: – não sabe como empregar as horas do dia tão curtas para o homem laborioso; o tedio o consome; tudo o importuna e irrita... Sua inacção o torna pesado a seus parentes e a seus amigos; e quando elle conserva ainda o instincto do bem, sua preguiça o avilta a seus proprios olhos. Todos vós deveis conhecer, sem duvida, o anexim popular, que diz – a ociosidade é a origem de todos os vicios, como o trabalho o é de todas as virtudes. O trabalho regular dá vigor e saude ao corpo, ennobrece e fortifica a alma: – o trabalho dissipa os pezares, e é fonte inesgotavel de sãos prazeres.622
Se “com a idade tudo muda ou se desenvolve no homem; a indole, essa nunca
muda”. A atividade produtiva, disciplinando cidadãos úteis, implicava uma direção das
inclinações. Nesse sentido, “eduquem-se pois alguns homens nos verdadeiros
conhecimentos do espirito e do coração; exija-se-lhes como primeira condicção,
irreprehensivel moralidade; forma-se-lhes o coração bom e affectuoso; de-se-lhes a
missão de estudar as vocações, isto é, o intimo d’alma e o espirito da geração nova”.
Como coordenação da vida social, então,
É o trabalho a primeira lei do homem. Origem de todo o possivel contentamente, fonte dos terrenos bemaventurados, o trabaho nas suas tres magnificas manifestações - sciencia, industrial e bellas-artes, converte em goso e ordem, o que alias só fora acaso e penas; converte em util e prestadio, pobrezas e desconsolos; cria o bello e o esplendido do fiat lux da imaginação aquecida por uma alma onde brilham reflexos da propria divindade. Deus fez o trabalho, condição inalienavel do ser feliz; quem ousará negar que esta mesma lei benefica é para todos e que ninguem absolutamente traz o trabalho afflicção e desgraça?623
A ética do trabalho era também uma narrativa moral do caráter da população. O
trabalho (reforçado pelo pragmatismo do ensino técnico), então, ilustrava sinais da
622 BORGES, Abilio Cezar. Collecção de discursos proferidos no Gymnasio Bahiano. Paris: J. P.
Aillaud, Guillard & Ca., 1866. 623 Educação. Archivo das Familias, Rio de Janeiro, 10 dez. 1881.
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“grandeza moral, intellectual e economica, aquella que nobilita e exalta o sentimento
nacional”, oferecendo meios para “aproveitar a maioria da população”.624 A luz e a
expansão do movimento moderno conformavam uma imagem de que “o universo tornou-
se o grande mercado internacional e a força expansiva da actividade humana parece ter
centuplicado”.625 O “sorprehendente espectaculo” e a “agitação maravilhosa” dos
circuitos da modernidade, “renovando a temperatura moral das regiões do trabalho” por
meio da desterritorialização do mercado internacional e da corrosão da autossatisfação de
estreitezas nacionais (tragando as formas de vida isoladas como “parte da communhão
civilisada”), sublinhavam que a “influencia da instrucção sobre a produtividade do
trabalho, sobre a elevação do seu valor, é ponto incontroverso na sciencia economica”. O
autor, nesse sentido, apoiava sua assertiva nos textos de Levasseur, Laveleye, Stanley
Jevons e Luigi Cossa – livros de bastante circulação no fim de século brasileiro,
articulando a gestão da população a partir de um equilíbrio entre o “maior senso pratico”
do mundo do trabalho e a “noção clara e perfeita” dos deveres morais instituídos pela
normatividade da vida coletiva.
Stanley Jevons, um dos grandes nomes da revolução marginalista e do paradigma
neoclássico, publicou um pequeno livro dedicado à “divulgação dos conhecimentos” da
economia política nas escolas, corroborando justamente as preocupações de Tarquinio
Souza Filho com a ética do trabalho.626 Para Jevons, “devemos educar o povo, ensinal-o
a trabalhar”, de modo que “vemos claramento que o trabalho habil, intelligente e regular
é necessario para a producção da riqueza”.627 Se “todo o homem que é incitado pelo
trabalho ao estudo e ao desenvolvimento de suas faculdades, não sómente augmenta a sua
felicidade, mas tambem a de outrem”, o autor ensinava que “é evidente, para a vantagem
de cada um daquelles que é capaz de ser util á sociedade, que seja animado com as todas
as recompensas possiveis”,628 de modo que o critério de utilidade (abordado como
ordenamento moral e incremento da riqueza) pressupunha a gestão da população e das
forças produtivas no sentido da rotinização de sua proatividade contra os vícios da
ociosidade e da mendicância na vida urbana. Para Jevons,
Ha muitas pessoas charitativas que pensam ser uma virtude dar esmolas aos pobres que lh’as pedem sem considerar nas consequencias
624 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 108. 625 SOUZA FILHO, 1887, op. cit., p. 16. 626 JEVONS, Stanley. Economia politica. Rio de Janeiro: Laemmert, 1896. 627 JEVONS, 1896, op. cit., p. 32. 628 JEVONS, 1896, op. cit., p. 109.
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produzidas nesses individuos. Contemplam o prazer do mendigo em receber a esmola, mas não consideram nos outros effeitos, e principalmente que os mendigos tornam-se mais numerosos do que a principio. A maior parte dos casos de indigencia e crimes que actualmente apparecem tem sua origem na má entendida charidade dos tempos passados, a qual concorreu para que uma grande parte do povo crescesse na indifferença, imprevidencia e ociosidade.629
Por meio da gramática moral centrada nas promessas de abundância absoluta das
conquistas da “civilisação moderna” pelo trabalho, a ociosidade e a indigência eram sinais
de empalidecimento moral da população. Mobilizando valores do campo moral nas
perspectivas de regulação das formas de socialização à luz da racionalização da vida
econômica, a própria economia constituía uma ciência da gestão de pessoas e coisas. A
racionalidade liberal, aqui, operava sobre a regularidade moral das atividades individuais
em uma margem de iniciativa reforçada pelo horizonte universalista da razão burguesa e
pela ideologia da abundância ilimitada. Jevons estava certamente muito próximo da
célebre teoria de Adam Smith sobre a destreza e o incremento da produção por meio da
divisão do trabalho, de modo que acreditava que
Quando o comércio é livre a divisão do trabalho se manifesta ora de cidade para cidade, ora de provincia para provincia, e tambem entre as mais distantes regiões do globo. Assim produz-se o que podemos chamar a divisão territorial do trabalho. O commercio de uma nação para outra não é somente com o fim de conseguir os melhores meios de augmentar a riqueza e economisar o trabalho, mas tambem para aproximar-nos do momento em que todas as nações deverão viver em harmonia, como fossem por assim dizer uma só nação.630
A autonomização das estruturas de mercado, então, era inseparável da aposta em
um quantum de racionalidade individual regulada por valores de motivação moral. Em
notas sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima acreditava que “o excesso da nossa
criminalidade provém mais de paixões que a brandura e a educação corrigirão”, de modo
que “a educação – não tanto a instrucção – vai agindo como causa de amortecimento das
ruins paixões e portanto como fonte da harmonia nacional”.631 Uma vez que é
“principalmente no lar que se forma o caracter da criança e se corrigem suas más
inclinações”, a elaboração da consciência moral relaciona o trabalho sobre os sentimentos
629 JEVONS, 1896, op. cit., p. 4. 630 JEVONS, 1896, op. cit., p. 51. 631 LIMA, Oliveira. Nos Estados Unidos: impressões políticas e sociaes. Leipzig: Brockhaus, 1899.
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com as prescrições indispensáveis na “formação do caracter”, projetando o movimento
por meio do qual “a verdade e a justiça, predicados gemeos do caracter, se enthronizarão
na consciencia humana”.632 As motivações morais incorporadas pela racionalidade
econômica, pressupondo perseverança, independência, mérito e firmeza, eram o ponto de
chegada desse raciocínio. A constelação formada pelo núcleo familiar e pelas
competências subjetivas repunham a elaboração da consciência no sentido da ideologia
do trabalho como força expansiva do ímpeto moderno, uma vez que
[...] os Estados Unidos não são exclusivamente o paiz do dinheiro em que todos fallam, mas o paiz de um esperançoso germinar da especie, fortalecido por uma aliança [...] entre a riqueza e a virtude, entre a sciencia e a energia, entre o capital e o trabalho; o terreno fertilizado pela actividade, que se traduz em outo, mas donde tambem brotam algumas flores inapreciaveis de civilização. Sabemos que a mulher tem sido um grande factor, o mais importante talvez, d'esta trandição, d'esta educação moral.633
Igualmente preocupado com a virtude do trabalho na estruturação da consciência
moral, Luigi Cossa enfatizava que “o progresso economico e moral favorece o regular
augmento de população; pois que, de um lado, augmenta a producção e por outro mantem
o accrescimo da população dentro de justos limites, fazendo triumphar a previdencia
sobre o instincto”.634 A economia dos instintos, então, prescrevia uma série de valores
(poupança, previdência, ordem etc.) capazes de racionalizar a narrativa da população e a
exploração do espaço. Nesse sentido,
Tambem os progressos da instrucção e da educação, propagando ou tornando mais firmes os principios de boa cultura e de uma sã moral, podem diminuir muito, fazer mesmo desapparecer, a influencia de outras causas limitadoras. E isto se explica attendendo-se á grande acção que o augmento de conhecimentos, de previdencia e de moralidade póde exercer sobre a applicação mais racional, cauteloza e sobria dos elementos da producção e, portanto, sobre a multiplicação de seus effeitos uteis. O progresso economico é, pois, tanto mais rapido e constante, quanto mais coordenado ao progresso intellectual e moral.635
632 LIMA, 1899, op. cit., p. 126. 633 LIMA, 1899, op. cit., p. 187. 634 COSSA, Luigi. Primeiros elementos de economia politica. Rio de Janeiro: Laemmert, 1888. 635 COSSA, 1888, op. cit., p. 54.
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À luz dessa discussão sobre a ética do trabalho, a expansão moderna talvez adquira
plenitude com as iluminações pela técnica e com a racionalização do território como
espaço produtivo da população. Os processos de educação e a regularidade das atividades
sociais eram mutuamente reforçados pela racionalidade de produção e reprodução da
modernidade capitalista. Nesse sentido, a mediação moral era fundamental como critério
de socialização em um universo de produtores. Cossa advertia que
As faculdades intellectuaes aperfeiçoam-se pela instrucção, que: 1º exercita a attenção, a memoria, o raciocinio e, portanto, torna o trabalho mais productivo; 2º ministra conhecimentos uteis sobre as leis do mundo physico e do mundo moral que exercem influencia sobre o movimento geral da industria. As faculdades moraes aperfeiçoam-se pela educação, que: 1º desenvolve e dirige as tendencias virtuosas do homem, como o amor ao trabalho, a previdencia, a economia; 2º combate e reprime os habitos viciosos, como a ociosidade, a imprevidencia, a prodigalidade; 3º fortifica o caracter, tornando mais facil a victoria contra os obstaculos de toda especie que se oppoem ao progresso da industria.636
Além disso, a centralidade da ideologia do trabalho reforça a narrativa identitária
do povo e a mobilização da população como gestão de afetos e do caráter. O problema
pode ser desdobrado em diversas direções. Como ampliação do “horisonte moral” no
sentido da interdependência da vida coletiva, a utilidade moral do trabalho junto à
população era uma “aurora de regeneração”. Nesse sentido,
Na fronte do homem rude do trabalho, nessa fronte até então abatida pelo estygma da ignorancia, luzirá o divino lume da instrucção. Recebendo o baptismo do ensino poderá o povo entrar regenerado para a communhão social, conhecimento ja a grandeza dos seus direitose a sublimidade dos seus destinos na sociedade. É esta a missão da escola: derramar a luz na alma do povo. Dess’arte, polindo o povo, dando-lhe o amanho intellectual, teremos realisado desenvolver o germen grandioso da instrucção popular, fecundo elemento de progresso, creando para a nação, digna deste nome, a força de sua soberania [...] Receiemos assaz do pavoroso dominio das trevas no intimo do coração das nações. Nenhuma cousa é mais terrivel e medonha do que uma alma sem luz. Na communhão geral, que se chama sociedade; na sociedade religiosa, que se chama egreja; na vida intima, que se chama familia, busque sempre o homem – instrucção, isto é, a luz para sua alma, o alimento para o seu espirito.637
636 COSSA, 1888, op. cit., p. 52. 637 Missão da escola. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 25 ago. 1877.
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População, educação e produção constituíam o território na medida em que
unificavam uma “cultura do espírito” nas palavras de Hoyer.638 Se “a Nação Brazileira é
uma entidade moral que apenas sahe da infancia”, além “capitaes accumulados no velho
mundo em tal profusão que deslumbram a mais atrevida imaginação” e de “milhões de
creaturas humanas opprimidas e exploradas” dispostas a “affluirem simultaneamente”
como enxames de braços,639 a cartilha liberal da defesa da propriedade e da liberdade
individual na operação do mercado era promessa de “rapido progresso moral, intellectual
e material de uma nação”. Preceitos reiteradores da ideologia do universalismo burguês
que “alimenta e instrue a humanidade”, “supprime distancias” e, por meio das
iluminações da técnica e do comércio, “leva a vida e o bem-estar a toda parte”: “em uma
palavra, que une as sociedades humanas pelos laços do mutuo interesse”.640 O caráter da
população, marcado pela indolência e pelo estigma de uma “inferioridade moral innata”
diante dos interiores e da “natureza indomavel” deixando o indivíduo “vegetar
completamente embrutecido”, era permeado por negros e mestiços pobres (além do peso
escravocrata), “o mais perigoso elemento de perturbação da ordem publica”, pois “arredio
da sociedade ou da civilisação, hostil ou pouco propenso ao trabalho regular”.641 Se “os
homens são susceptiveis de perverter-se” e “o Bem é a ordem natural, o Mal a ordem
artificial”,642 esse típico dualismo moral do século XIX mobilizava a “força collectiva”
da população no sentido do ordenamento da vida produtiva das nascentes massas.
Hoyer condenava o potencial desestabilizador das agitações socialistas e do
espectro das revoluções modernas, pois seriam responsáveis por “conduzir os povos á
anarchia, porque vão diametralmente de encontro aos eternos principios de justiça, ou ás
leis providencies que presidem ao mecanismo economico das sociedades”. Afinal, “o
bom senso pratico, e sobretudo o progresso intellectual de um povo [...] depende
principalmente sua prosperidade material, sua moralidade e seus bons costumes”, de
modo que o desregramento dos sentimentos, alimentando embrutecimento, ódios e inveja,
conservam o povo “sempre exposto aos perigos das revoluções”: “conspiram-se as
massas populares, em sua triste ignorancia, contra tudo e contra todos, e são de ordinario
transviadas”.643 A caridade, a religião, a “entranhada affeição” da família, o respeito, a
638 HOYER, Martinus. Estudos de economia politica. Maranhão: Typ. do Paiz, 1877. 639 HOYER, 1877, op. cit., p. 233. 640 HOYER, 1877, op. cit., p. 124. 641 HOYER, 1877, op. cit., p. 239-240. 642 HOYER, 1877, op. cit., p. 157. 643 HOYER, 1877, op. cit., p. 53.
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autoridade, condenando o materialismo e o embrutecimento das massas, igualmente
regulavam o “perigo social” decorrente da “exageração do consumo”, do “luxo
escandaloso”, da “intemperança” e da “prostituição”, ou seja, “os mais asquerosos vicios,
as mais horriveis paixões, as mais tristes enfermidades moraes a que possa descer esse rei
da Creação chamado – o homem”. Justamente “sob o imperio da rasão”, aliás, residia a
aposta do exclusivismo do humano e de sua emancipação moral dos vícios como “força
social” de instituição e moralização da vida coletiva e da aglomeração moderna.
Nesse sentido, a “marcha progressiva” e a cultura do espírito da “obra da
producção social e da civilisação” indicavam que a “civilisação maior ou menor de uma
sociedade”, considerada “sob o ponto de vista moral”, não era outra coisa “senão o
desenvolvimento intellectual maior ou menor da maioria dos indivíduos que a compoem”.
A leitura evolucionista da concretização da vida civilizada e dos parâmetros liberais de
socialização pressupunha, portanto, a mediação dos processos de educação junto ao
conteúdo moral da população. Afinal, com o desenvolvimento das estruturas produtivas,
“vai o homem lançando cargo das forças naturaes” por meio da superação do “que ha de
mais material, de mais rude, de mais muscular, na obra da produção”, de modo que “seu
espirito eleva-se, purifica-se pela educação”, abandonando “a voz das grosseiras
necessidades”.644 O ímpeto moderno é inseparável da racionalização do território, de
modo que a confiança nessa marcha progressiva tinha como contrapartida a nobilitação
da população.
“Conquistar hoje quer dizer civilisar”, afirmava Américo Luz, de modo que “a
intelligencia é a rainha e a intelligencia exercita-se pelo trabalho”.645 Se o trabalho da
população “é a manifestação da lei de Christo: o trabalho a todos iguala, a todos nivela, a
todos nobilita”, a força coletiva “robustece o corpo e o espirito, fazendo com que a alma
não se perturbe com as vertigens dos vícios”, de modo que, junto ao progresso dos povos,
a produção e o ordenamento moral da sociedade compõem “o elemento rei da
prosperidade, unico meio de reparar os desastres que os assaltem, conjurar os flagellos
que os possam assollar”. Como ideologia da abundância ilimitada diante das iluminações
da época, portanto, o autor afirmava que “não é maior o povo que tiver mais territorio é
o que fôr mais trabalhador, mais instruido, porque ahi haverá abundancia e affastará seus
filhos da miseria do corpo e do espirito e dos vicios que lhe servem de cortejo”, tendo em
vista que “a educação presidida pela intelligencia preparará o terreno e o trabalho por sua
644 HOYER, 1877, op. cit., p. 213. 645 LUZ, Americo. O trabalho. O Echo Social, Rio de Janeiro, 20 abr. 1879.
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actividade não deixará medrar as hervas nocivas que sugam a seiva”. Como consciência
histórica da época e signo do desenvolvimento moral do século,
O trabalho não é mais o legado vergonhoso do plebeu, emquanto que o moço patricio ia applaudir no circo os espectaculos barbaros ou embriagar-se de volupia nos prosibulos, adormecendo no seio das bacchantes. Não é mais a grilheta que prendia o pe do paria, é a corôa que fulge nas frontes dos filhos do seculo desenove. Vêde a força com seus fogos rubros, a locomotiva que parte e passa veloz encurtando as distancias, os navios que se deslizam pela superficia vaga; mais longe vede no dorso da montaha elevar-se uma columna de fumo, hoje nada é, amanha sera um deposito de alimentos para uma população inteira. São as diversas manifestações do trabalho.
Nexo moral para o “interesse individual e collectivo”, essa valorização do trabalho
como parâmetro formativo da população dispunha uma série de vícios presentes nas
aglomerações modernas e nas formas de distinção do caráter do povo. No limite, a
avaliação moral do trabalho repousava sobre o combate ao ócio da população, tendo em
vista o incremento das forças produtivas e a abjeção ao desvalimento nas cidades. O
professor Antonio Estevão da Costa Cunha, nesse sentido, considerava que
Os trabalhos manuaes têm a immense vantagem de entreterem muito as crianças e habitual-as a empregarem sempre utilmente o tempo, supposto que o trabalho é lei que nos foi imposta pela natureza, que, logica em tudo, fez com que elle fosse tambem um elemento de ordem, de progresso e de elevação physica e moral para o homem [...] Nas escolas e collegios de meninas as manufacturas, como é bom de ver, devem consistir principalmente nos lavoros de agulha. Não ha necessidade de demonstrar a utilidade dos trabalhos proprios do sexo feminino, diz J. Paroz: todos conhecem os serviços que elles prestam no seio das familias; o que, porém, não se apreça talvez como convem é a sua importancia sob o ponto de vista da moral e da ordem. O trabalho repelle o aborrecimento e a inercia, previne muitas faltas, muitas quédas moraes; ora, os trabalhos de agulha nunca faltam em uma casa, e occupam todos os momentos da mulher, evitando-lhe os perigos da ociosidade. Si os homens tivessem trabalhos identicos que pudessem trazer por toda a parte comsigo, haveria menos viciosos e frequentadores de tavernas. Aquelle que inventasse occupações para o homem, simples, uteis, praticas, correspondendo-se com aquelles lavores das senhoras, certo mereceria ser contato entre os verdadeiros bemfeitores da humanidade.646
646 CARVALHO, Carlos Leôncio. Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Typ. Nacional, 1884. p. 129-130.
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O professor Luiz Augusto dos Reis ensinava que “o trabalho é a causa suggestiva
das virtudes civicas e moraes”, de modo que “inspirar o gosto do trabalho [...] por meios
simples e ao alcance das creanças” era sua intenção pedagógica.647 Pensando no futuro
cidadão, essa ética do trabalho “tem tambem um grande alcance educativo e moral: – a
nobilitação do trabalho, qualquer que seja a esfera”. Justamente como horizonte coletivo,
o trabalho vincula a educação individual ao proveito coletivo, pois
Cada individuo, na sua esphera de acção, concorre para o progresso, o desenvolvimento e civilisação de sua patria. Só a ociosidade, com todo o seu cortejo de consequencias funestas e por vezes fataes, póde fazer o homem desmerecer perante os seus concidadãos. Ha ainda um ponto de vista importantissimo a attender – o da hygiene, – e os trabalhos manuaes, com criterio e não exagerados, constituem magnificos exercicios hygienicos, eminentemente salutares. Nas grandes cidades, mais ainda que nos campos, em razão do estiolamento a que estão sujeitos os cidadãos e especialmente as creanças, elles, servindo para despertar o gosto e o amor do trabalho, restauram ou fortalecem as forças depauperadas.648
A vinculação da ética do trabalho às preocupações higienistas, compondo uma
estrutura de ordem e regularidade do mundo moral, reiterava o apelo às imagens
fisiológicas do vigor contra a abjeção das formas depauperadas da população. Uma
pequena narrativa, de fundo pedagógico bastante evidente, explicitava essa percepção em
relação aos valores. Contrariando o “encanto da reunião” e preferindo os “gozos
moderados e legitimos” esmerados pelo “aceio”,
André trabalha de enxada todo sancto dia: chega á noite, abraça sua esposa, acaricia os filhos e dorme o somno da honradez. No dia seguinte se levante, e no outro e nos subsequentes, para continuar a mesma vida. A taverna e o botequim o tentam com o vinho, a aguardente ou a cerveja, o baralho o chama, as pandegas o seduzem; não obstante, cerrando os olhos e ouvidos, segue seu caminho, e não dá em vicioso. Acaso o vicio não tem alguma cousa de agradavel? Tem, é certo; mas André reflecte consigo mesmo, e vê que Paulo, Affonso e Martinho, são uns vagabundos que se embriagam e não trabalham [...] André, ao raciocinar, de deducção em deducção, de juizo em juizo vem a considerar que sua casa anda limpa, sua mulher tranquilla, seus filhos
647 REIS, Luiz Augusto. O ensino publico primario em Portugal, Hespanha, França e Belgica. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. p. 524. 648 REIS, 1892, op. cit., p. 240.
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medios e robustos, que nada deve [...] e André renuncia aos prazeres da ociosidade e faz ouvidos de mercador ás chufas e zombarias dos taes folgazões.649
A narrativa da ética do trabalho junto à moralização da população, ao passo que
estendia os preceitos da higiene e da harmonia das faculdades à vida produtiva, implicava
uma condenação do ócio tomando, como ponto de partida, uma economia moral do
indivíduo. Trabalho, mérito e economia eram racionalidades de governo e de contenção
de comportamentos. Um problema bastante recorrente nas grandes cidades do fim de
século, a embriaguez, ilustra muito bem a economia moral indispensável à observância
individual como ponto de intervenção sobre o governo da população. Afinal, “o que é que
distingue o homem dos brutos? Não é a razão? A razão não é por ventura o seu mais bello
apanagio?” – se a embriaguez “desonra, embrutece e reduz á condição de um animal o
infeliz operario, que se deixa arrastar pela sua tyrania”, seus efeitos morais sobre a
população desafiam as percepções morais da cidade na formação de “homens honrados e
christãos”. O regramento dos sentidos, afinal, evitaria o “desordenado furor” nas condutas
públicas, já que “a embriaguez accende todas as paixões, e lança a desordem no meio das
familias”. Nesse sentido,
O que faz o bebado? Que faz elle da sua intelligencia? Não se reduz elle a um estado de estupidez, durante o qual não sabe o que diz, nem o que faz? As pernas cambaleão, os olhos não veem e a lingua ja nao sabe senão proferir um ignobil gaguejar; em vez de caminhar, anda agarrado pelas paredes, e mancha os seus vestidos nas immundicies, no meio das quaes adormece. O cão que passa por elle, não lhe é superior? [...] Um desgraçado operario, tendo bebido um dia demasiada agua-ardente, cahio em um estado de embriaguez tal, que sobreveio uma febre cerberal, que o deixou para sempre privado da razão [...] Sem fallar dos máos costumes, que quasi sempre acompanhão este horroroso habito, o que ha de mais brutal do que um homem tomado de vinho?650
Na esteira dos livros de leitura seriada do barão de Macaubas e da série instrutiva
de Hilário Ribeiro, um dos impressos de maior sucesso no fim de século (com edições
bem distribuídas até os anos 1930) foi a série didática de Felisberto de Carvalho publicada
originalmente no início dos anos 1890. O regramento dos sentidos e dos sentimentos
passava pela elaboração da consciência moral organizada pela honestidade, decoro,
649 JUDITH. A verdadeira philosophia. A Escola, Rio de Janeiro, 1877. 650 Embriaguez. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 11 ago. 1877.
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modéstia, docilidade e trabalho, de modo que a vinculação desses preceitos à vida prática
era ilustrada por diversas lições dedicadas à formação da contenção moral do indivíduo.
A higiene e a moral conferiam ordem à vida interior e à exterioridade das condutas, pois
“só em um corpo são, ha espirito tambem são”; assim, a educação dos sentidos
pressupunha a harmonia e o auto-domínio das faculdades, evitando os desvarios e os
excessos:
Meninos, a fabula que acabais de lêr bem nos mostra que a embriaguez é o peior dos vicios, porque dá occasião a que se pratiquem todos os outroas. Fugi della, preferi morrer a embriagar-se e notai que o melhor meio de evitar tão feio quão perigoso vicio é vêr o abatimento physico, moral e intellectual a que chega o homem que se embriaga.651
Prescrições para a educação dos sentidos e o novo sistema de objetos nos livros de Felisberto de Carvalho (ilustrações de Epaminondas de Carvalho), com a menina observando o quadro na
marmota e o menino conhecendo o telefone.
Na Assembleia Legislativa Provincial do Ceará, João Lopes argumentava na
mesma direção, enfatizando o combate aos vícios e adicionando que “a instrucção,
senhores, em uma capital como a nossa, alem da vantagem de diminur a população dos
carceres trará talvez a de fechar as portas das tavernas”.652 A estima social, então, era
vinculada aos códigos morais de valorização do trabalho como sinal do investimento
individual no incremento da utilidade coletiva da população. Um famoso livro de
Benjamin Franklin, leitura escolar que circulava no Brasil em uma tradução de Nuno
Alvares, indicava que “parece que só é verdadeiramente livre e independente o homem
virtuoso, activo e economico, isto é, aquelle que sabe dominar os seus apetities, governar
651 CARVALHO, Felisberto. Segundo livro de leitura. 45. Ed. São Paulo: Francisco Alves, 1911. 652 LOPES, João. Sessão ordinaria em 23 de agosto de 1879. Cearense, Fortaleza, 7 set. 1879.
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as suas acções, e proporcionar as suas despezas aos meios de as satisfazer”.653 Uma vasta
gramática moral, nesse sentido, era mobilizada tendo em vista que a “vaidade de
representação” social “não augmenta o merecimento pessoal”, pois é acompanhada pelo
orgulho, que
[...] é um mendigo que grita tão alto como a necessidade, e é ainda mais insaciavel. Se comprastes uma cousa bonita logo tereis necessidade de mais dez mil, que são dependencia d’aquella; por isso diz o bom homem Ricardo: é mais facil reprimir a primeira fantasia do que satisfazer a todas as que vem depois [...] O orgulho almoça com a abundancia, janta com a pobreza e ceia com a vergonha.654
O horizonte de multiplicação das atividades e das iluminações da modernidade é
inseparável da estruturação moral que pretende governar o ímpeto moderno por meio da
valorização do trabalho como sinal de ordem. Esse quadro de referências morais da
socialização capitalista, arrebatado pelas vertigens de progresso ordeiro da época, alertava
que
A ociosidade traz comsigo incommodos, e encurta sensivelmente a duração da vida. A ociosidade, como diz o bom homem Ricardo, é similhante á ferrugem, que consome muito mais do que o uso e o trabalho [...] A actividade, como diz o bom homem Ricardo, é a mãi da prosperidade, e Deus ajuda a quem trabalha [...] Vida tranquila e vida ociosa são cousas mui differentes. Julgai vos que a ociosidade vos offerecerá mais agrados do que o trabalho: pois não tendes rasão. Porque como diz o bom homem Ricardo: a preguiça gera cuidados, e o descanço sem necesidade produz desgosto. Muita gente quizera viver sem trabalhar, mas não o consegue por falta de fundos. Pelo contrario, o trabalho traz comigo contentamento, abundancia e consideração.655
Os debates sobre “o preço economico do dinheiro e a ultilidade moral da sua
accumulação” inseriam na moralidade dos processos de educação um comedimento
diante dos “hábitos da economia”.656 Nesse sentido, “todo o esforço deve convergir para
convencer o alumno da conveniencia e vantagens da economia, não pelo lado material, o
dinheiro, só pelo dinheiro, mas pelo lado moral em relação ao individuo e á familia”.
653 FRANKLIN, Benjamin. A sciencia do bom homem Ricardo. Lisboa: Typ. da Sociedade Propagadora
dos Conhecimentos Uteis, [18--]. 654 FRANKLIN, [18--], op. cit., p. 11. 655 FRANKLIN, [18--], op. cit., p. 4-5. 656 CARVALHO, Carlos Leôncio. Primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Typ. Nacional, 1884. p. 193-195.
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Uchoa Cavalcanti, inspetor geral da instrução pública em Pernambuco, acreditava que
essa economia moral do indivíduo servia para ensinar
[...] o menino a ser popupador, mostrar-lhe que todos os objectos que o cercam custaram esforço e trabalho, que se não deve desperdiçar, mostrar-lhe que é acção pessima estragar a roupa, rasgar o livro, cortar a canivete o banco, etc., – que o mau habito de gastar sem precisão é uma imprevidencia fatal a necessidades futuras, que é bonito e muito util economisar hoje para que não falte amanhã, – isto é ensinar a ser virtuoso, é educar a mocidade na grande sciencia da vida, evitando que se augmente o numero dos perdularios, dos prodigos e dos indigentes.
As discussões sobre as caixas econômicas escolares, mobilizando nomes como
Emílio Zaluar e André Rebouças (além das saving-banks nas lodging houses norte-
americanas e das experiências na Bélgica e na França), articulavam um horizonte
importante de valores, tematizando a integração econômica e moral entre indivíduo e vida
coletiva. Como “obra de civilisação” instituída a fim de evitar “convulsões sociaes”
(afinal, “exigem-no o christianismo, a philosophia, a moral e a politica”), a economia
moral do indivíduo “se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera
da liberdade humana”, de modo que “hoje entendemos que o melhor instrumentos de
moralisação e de ventura social consiste em derramar entre o povo o desejo da
independencia e o amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho
em vez de conservar em mutua hostilidade”.657 A poupança, a austeridade e “o goso da
propriedade”, fundamentando a atividade produtiva a partir do crivo da socialização
liberal, expandiam a “influencia moral” da economia sobre a cobiça, as aspirações
desmedidas e “outros appetites” da modernidade (loteria, jogo etc.), de modo que
Os vicios são, depois da miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estão por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo; a embriaguez, sobre tudo, é para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como prazer licito nos dias de repouso. Quem todavia ignora que estes dois vicios são quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das classes laboriosas? [...] Ha todavia no coração humano tambem a avareza; ha essa paixão, que, ao contrrio das outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda na penumbra fria do sepulcro.658
657 As caixas esconomicas escolares. Revista de Instrucção e Educação, São Luís, 20 out. 1877. 658 HERCULANO, Alexandre. As caixas econômicas (II). Revista de Instrucção e Educação, São Luis,
8 set. 1877.
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O inventário de vícios e virtudes, situado no entrecruzamento entre moralidade,
economia e processos de educação, descrevia na economia moral do indivíduo os
parâmetros estruturais da gestão da população. Nesse sentido, favorecer “as inclinações
para o arranjo e economia” implicava mobilizar a virtude que “excita ao trabalho; habitua
o homem laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos; concorre para
multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as familias”, de modo a “nobilitar
o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada altivez que nasce da maior
independencia”.659 Se a propriedade privada, a poupança e o trabalho funcionam como
“insturmento da quietação publica”, uma vez que “as listas de criminosos feitas em
diversas epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenciados eram
pessoas inclinadas ao jogo, ás loterias ou bebidas espirituosas”. Fundamental, em relação
á economia moral do indivíduo e à gestão do trabalho, era “alevantarem barreiras moraes
que lhe obstem a precipitar-se no abysmo”. A promessa de emancipação individual pelo
trabalho e pela poupança, retirando o indivíduo da “estrada da immoralidade”,
confrontava a sociedade nacional com seu déficit interno (no próximo capitulo, esta
instância problemática, o social, será analisada de forma mais detida), de modo que a
precariedade da vida implicava um conjunto de previdências morais e prudência:
Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado de servir, para aquelle, enfim, que só tem por capital os proprios braços, e cuja renda é apenas um salario contingente, a imprevidencia e o habito de procurar cada dia os meios de viver ess dia nascem naturalmente da sua situação precaria. Nada espera no futuro, e por isso nada teme d'elle: probabilidades, contingencias, não as calcula nem previne. Assim vemol-o acceitar com facilidade os encargos de pae de familia. Satisfaz o appetite momentaneo: que importa o futuro áquelle para quem isso não existe? Depois vem os filhos, vem a doença, vem a falta de trabalho; ás affeições domesticas enraizaram-se no coração do desgraçado. A natureza, a religião, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua prudencia. Ao passo que a má organisação da sociedade o inhabilita absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves tendencias para o crime se excitam e dilatam até chegarem a produzir tristes fructos cujo desenvolvimento a sociedade cre impedir
659 HERCULANO, Alexandre. As caixas econômicas (I). Revista de Instrucção e Educação, São Luis,
11 ago. 1877.
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com as algemas, carceres, grilhetas, desterror e patibulos, emquanto ella propria, com o seu desprezo pelas classes populares, com a falta absoluta de instituições verdadeiramente moralisadores e beneficas, alimenta a arvore mortifera que produz as acções criminosas.
A autonomização do econômico, na esteira do campo da economia política,
oferece categorias próprias para gestão do intercâmbio social de indivíduos e coisas.660
Se as motivações subjetivas e os valores coletivos da economia moral do indivíduo
compõem mediações no intercâmbio material, esse horizonte valorativo permanece
correlacionado à expansão das atividades modernas produzindo engajamento nas
estruturas de mercado e nas práticas de ordenamento social difusas junto à gramática
moral. Sem a conversão das motivações morais em parâmetros de socialização (por meio
dos processos de educação), o próprio quadro valorativo mobilizado pela ética do trabalho
ficaria vazio. Um longo texto originalmente publicado na Gazeta da Tarde pretendia
“olhar á marcha vertiginosa do interminavel caminho do progresso, que abre ás suas
ambições o indefinido progresso, e pensar a sangue frio no espectaculo que o mundo está
dando”.661 Nesse sentido, a “evolução natural da civilisação” e o “movimento social e
politico dos povos modernos”, ampliando as aspirações fáusticas das consciências,
alimentavam as vertigens em relação aos valores morais por meio de uma febre para
“enriquecer e gosar”. A fim de “aperfeiçoar a organisação social”, informava o texto, “a
economia é uma virtude de habito”, de modo que, governando a população a partir da
economia moral do indivíduo, implicava dinâmicas formativas pois “é á infancia que é
necessario inculcal-a para educar no melhor sentido as novas gerações”. Assim, segundo
o artigo, não convém
[...] de modo algum dar ouvidos aos impacientes, que no estado de verdadeira exasperação a que chegaram, só attendem ás inspirações da coleta, que levariam ao naufragio total da civilisação existente. Com effeito, a onda popular dilata-se, cresce desmedidamente, avança como uma maré solemna soe formidavel, omnipotente. Uma força invencivel a faz subir: – a inveja, o ciumes, a colera, todas as paixões que sobre-excitam nas almas esfaimadas de gosos, a vista das desegualdades sociaes que tanto melindram e ferem quem nao ve n’ellas o caracter providencial, quem perdeu o segredo de soffrer e de resignar-se. Essas paixões que rugem como um vulcão, nas entranhas das massas populares, em que abundam os descontentes, os desgostosos da vida, todos que soffrem, todos os que tem fome e sede de gosar; essas
660 DUMONT, Louis. Homo aequalis I. Paris: Gallimard, 1985. 661 A practica da economia. A Republica, Campos, 7 nov. 1891.
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paixões, dizemos, para que não rebentem em explosões fataes, para que a onda tremenda não suba irresistivel, submergindo e desperdiçando tudo, é necessario oppor-lhe um dique, que a regule e contenha.
Para o autor do artigo, “os habitos de uma vida bem regrada, o espirito methodico”
e “a pratica da contabilidade” eram justamente os diques morais capazes de conter os
“actos de imprevidencia e dissipação, que todos os dias presenciamos nas classes
inferiores”. Ao passo que a “civilisação podera perigar de um momento para o outro, se
os que podem não tratarem de applacar tanta colera accumulada”, a percepção da
vertigem moral diante da ruptura em relação à regularidade dos hábitos ficava ainda mais
evidente no contexto da crise econômica do começo dos anos 1890. As narrativas urbanas
de Taunay, de algum modo, dramatizam justamente algumas implicações desse problema.
Alfredo Bosi compara Inocência (um bom Taunay) com os romances urbanos do autor
nos anos 1870, de modo que estes teriam descido ao nivel da subliteratura francesa da
época “sem que as qualidades de observador lhe compensassem a perda de folego” (talvez
Bosi tenha em mente a comparação formal entre Taunay e Daudet).662 O mundanismo de
Taunay,663 contudo, conta com mediações importantes para a abordagem da pesquisa em
curso ao elaborar percepções da vertigem moral das transformações junto aos hábitos
instituídos pela regularidade da vida coletiva.664
O mundo dos bailes, jockeys, bookmakers, apitos de bondes, movimentos de
carroceiros, fumaças dos compridos Havana, permeado pelo “sem-numero de applicações
de capitaes nas innumeras provincias da actividade humana”, colocava em cena a
“compacta massa, que ora se intumescia e oscillava com movimentos isometricos e
combinados, ora de repente se dividia, rareava e se espalhava para ir adiante, logo e logo,
formar novos e mais densos agrupamentos”. A “volubilidade e febricitante animação” da
vida urbana, como cenário para o observador das condutas e sua elaboração moral,
enquadrava os “colossaes escombros, que por muito tempo hão de testificar a desgraça e
a baixeza a que desce o homem na ancia das riquezas e do gozo e no tresvario das mais
indignas e degradantes paixões”.665 O “fluido indefinivel, electrico, febril, intenso, que,
emergindo do seio da multidão, a envolvia em pesada atmosphera com prenuncios e
fluctuações de temporal certo, inevitavel”, desafiava as prescrições da economia moral
do indivíduo e da regularidade de hábitos da população na medida em que “fome de ouro,
662 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 145. 663 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2013. 664 TAUNAY, Alfredo. O encilhamento. Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães, 1894. (Vol. 1) 665 TAUNAY, 1894, op. cit., p. 74.
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a sêde da riqueza, a sofreguidão do luxo, da posse, do desperdicio, da ostentação, do
triumpho, tudo isso depressa, muito depressa”,666 condicionavam as multidões
“ennoveladas” no carrossel problemático dos valores morais. A aceleração e o ímpeto em
“acompanhar o progresso que segue rápido e não espera por ninguem”,667 afinal,
confrontam os valores com a instabilidade do mundo da vida diante das excitações
modernas.
A estruturação moral da sociedade traveja o enredo construído pelas relações de
Luiz Menezes com Laura e Alice. Se “o cosmos moral tem principios certos, infelliveis,
como o mundo physico”, a volatilidade das condutas de Menezes, que “no fundo gostava
bem da sociedade como ella era, com todo o seu conforto, as regalias, o sybaritismo e as
convenções”,668 e o desmedimento das ambições eram rupturas fundamentais com a
regularidade pressuposta nos mecanismos de gestão moral da população. A economia
moral do indivíduo constituía a unidade a partir da qual os dilemas da vida coletiva eram
tematizados pela dinâmica crescente de associações e interdependência junto à
população, de modo que a “avidez de riquezas mal adquiridas”, podendo “despertar mil
instinctos máos e fomentar todas as fórmas da dissolução moral”, desenhava o quadro
moral problemático da modernidade. Esse quadro é configurado tanto a partir do jogo de
exibição e fugacidade da vida moderna, com a desmedida dos ímpetos comprando
pechisbeque por ouro em uma “fallaz e perigosissima fantasmagoria”, quanto a partir do
descompasso entre a vida instituída (valores) e as iluminações:
[...] quanto deserto, com effeito, quanta solidão conquistados e abertos; quanto terreno improdutivo, de subito fertilisado, a fructificr e entregue ao cultivo, ao commercio, á industria, á civilisação! Quantos rios transpostos, que de abysmos vencidos, socavões nivelados, serras galgadas! Que innumeras obras d’arte, aterror e desaterros incalculaveis, viaductos soberbos, pontes monumentaes; quantos projectos audazes com felicidade realisados! E lateralmente quanta miseria moral!669
A narrativa e a elaboração das percepções morais de Taunay, de algum modo,
tangenciam algumas preocupações de Oliveira Martins registradas em curiosas cartas
originalmente publicadas pelo Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, em 1892.670 O
666 TAUNAY, 1894, op. cit., p. 4. 667 TAUNAY, 1894, op. cit., p. 20. 668 TAUNAY, 1894, op. cit., p. 48-50. 669 TAUNAY, 1894, op. cit., p. 155-156. 670 MARTINS, Oliveira. A Inglaterra de hoje. Lisboa: Livraria de Antonio M. Pereira, 1893.
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imaginário da “velocidade vertiginosa a que o mundo marcha no nosso tempo” indicava
a vertigem das virtudes da população e sua regularidade (trabalho) em tempos quando “a
vida real parece phantasmagorica”. Difundindo imaginários e valores da modernidade
capitalista, a narrativa do escritor português contrastava riqueza e miséria quando “o furor
invade por completo as cabeças” e “o jogo allucina o homem, por lhe acenar com a
tentação de libertar-se do preceito natural do trabalho”.671 Não à toa, a elaboração dessas
experiências da vertigem, em trânsito tanto nas experiências narradas on the ground
quanto nos registros ficcionais do período, expõe o regime dissolvente das formas da vida
moderna em relação à pervasividade da economia monetária e as bruscas oscilações de
ascensão e derrocada moral dos indivíduos.672 Afinal, “sobre esse lodo”, a narrativa de
abejções do “senso esthetico” da população e de sua ordem indicava uma vida que se
torna “um exercicio a que é estranha toda e qualquer idéa de dever, de ordem, de justiça,
de moral”.673
As estruturas da vida moral são mobilizadas justamente no sentido de tentativas
de transparência das formas de socialização diante da opacidade dos valores. O
“sentimento da propriedade”, a proatividade individual e o trabalho constituem nexos
fundamentais da socialização na medida em que são referidos ao campo de valores
estruturado pelos processos de educação na gestão da vida coletiva. Como enraizamento
moral da população, a territorizaliação das atividades sociais era objeto inseparável
dessas perspectivas de moralização da vida coletiva junto à produção de uma economia
moral do indivíduo. A construção do território e a disposição dos lugares de pessoas e
coisas, tendo em vista a moralização da circulação em sentido amplo (racionalização
produtiva e regularidade dos comportamentos), abordava a formação das condutas como
assepsia dos meios de movimento da população.
A composição da população por meio do trabalho e da moralidade oferecia a
possibilidade de um horizonte coletivo na medida em que vinculava as narrativas
aspiracionais e as abjeções da vida moral à ordenação de formas exteriores de conduta e
infraestrutura por meio dos discursos e projetos higienistas. Se nos capítulos anteriores
alguns pontos foram desenvolvidos nesse sentido, agora, à luz do problema da população
e dos aglomerados modernos do fim de século, uma verdadeira polícia territorial,
evidenciando a normatização de relações do bom governo, é incorporada como
671 MARTINS, 1893, op. cit., p. 206. 672 KORNBLUH, Anna. Realizing capital: financial and psychic economies in Victorian form. Nova York:
Fordham University Press, 2014. 673 MARTINS, 1893, op. cit., p. 207.
230
racionalidade dos mecanismos e dispositivos de gestão moral da população.674 O século
XIX contou com alguma difusão de modelos aspiracionais de uma utopia da cidade
higiênica (vale retomar, por exemplo, a Higeia de Benjamin W. Richardson e as garden
cities de Ebenezer Howard) – e, especialmente no Brasil, a administração da vida urbana
implicava a gestão do problema da aglomeração e uma cruzada contra a pobreza urbana
e os sinais de desvalimento (no contexto de desenvolvimento da vida urbana à luz do fim
da escravidão e do crescente ingresso de imigrantes na composição da população).675
No campo da estatística das populações, na esteira das obras pioneiras de Vauban
e Bertillon (e das diversas preocupações coevas de um Maurice Bloch e Gustave Lagneau
com o chamado “movimento da população”), o Brasil também foi parte dessa “febre
estatística” do século XIX.676 A rigor, estava em jogo uma “anatomia e physiologia
social” das condições morais das populações e de sua diferenciação interna.677 No caso
brasileiro, esse tema pode ser notado a partir dos anos 1850, com esforços difusos de
racionalização do território e de gestão da população por meio do desenvolvimento de
mapas populacionais, da presença de balanços quantitativos a respeito da capilaridade da
escolarização, do recenseamento de colônias, das estatísticas criminais, do atlas do
Império de 1868 e dos censos de 1872 e 1890. Preocupações desenvolvidas, aliás, por
observadores do movimento físico e moral da população, como os casos de Wappäus, do
volumoso trabalho do conde Auguste van der Straten-Ponthoz e da coletânea de dados de
demografia sanitária de Antonio Augusto Ferreira da Silva nos anos 1890. Se um dos
pressupostos da moralidade é o controle higiênico da cidade e dos cidadãos, o governo é
indissociável de uma objetivação da população a partir de técnicas de gestão e de
construção de um campo de intervenção sobre os lugares e a circulação de pessoas e
coisas. Essa economia das formas de vida, como biopolítica estruturada pela razão
capitalista, implica uma socialização do corpo como força produtiva.678
674 ELDER, Stuart. Mapping the present: Heidegger, Foucault and the project of a spatial history. Nova
York: Continuum, 2001. 675 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. COSTA, Maria Clelia
Lustosa. Le discours hygiéniste et la mise en ordre de l’espace urbain de Fortaleza, au Brésil. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade de Paris 3, Paris, 2012.
676 MARTIN, Olivier. Da estatística política à sociologia estatística: desenvolvimento e transformações da análise estatística da sociedade (século XVII-XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n.21, 2001.
677 CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República. 421 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
678 FOUCAULT, Michel. La naissance de la médecine sociale. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits (1976-1988). Paris: Gallimard, 2004. p. 210.
231
Um texto do barão do Lavradio, presidente da Junta de Higiene, é sintomático
nesse sentido.679 Se “o poder de uma nação aquilata-se pelo maior numero de sua
população”, o incremento da atividade social e sua normatividade moral pressupunham
que “a educação é um conjunto de sentenças moraes, religiosas e hygienicas, que,
desenvolvendo a alma, o coração, o corpo e o caracter, tornam o individuo apto á curar
de si, dos seus e dos seus semelhantes, é o agente supremo que policia o homem e que lhe
dá a medida dos seus deveres para com Deus e os outros homens”.680 A “época actual”,
revolvida diante “dos perigos sociaes que arrasta uma geração enfraquecida e enervada”
e da diversidade de estímulos excitando as consciências, exigia o ordenamento da
população e sua profilaxia diante dos vícios morais e fisiológicos. Nesse sentido,
O estudo das leis sociaes revela que muito influem nesse poder a riqueza das mesmas, a instrucção, o estado moral, industrial e sanitario, força é convir que a sua riqueza não depende de sua extensão, mas sim de uma população mais ou menos numerosa e instruida, e que portanto lhes é mais util buscar os meios de augmentar o numero de seus habitantes do que possuir grandes dominios e não ter a população precisa para aproveitar os thesouros que elles encerram higiene: a este pertencem hoje todas aquellas que attingem não só ao melholramento physico e moral do homem, como tambem ao aperfeiçoamento e engrandecimento de suas faculdades corporaes e intellectuaes; e bem assim tudo quanto directa ou indirectamente possa contribuir para beneficial-o na ordem social e na vida privada.681
A “marcha progressiva” da população, então, dependia das condições morais de
sua constituição e gestão, mobilizando o núcleo do casamento e da família, “a principal
base da sociedade, e a salvaguarda dos bons costumes”, como vetores por meio dos quais
“se põem em jogo as forças physicas e moraes para assegurar a existencia da familia,
crial-a e educal-a nos principios da moral e no amor ao trabalho”.682 Mobilizar e moralizar
as “forças activas” dos organismos associados implicava a formação de condutas capazes
de avaliar o desvalimento dos vícios urbanos, por exemplo, anatemizados na ideia de que
“a ociosidade é a mãi de todos os vicios que degradam a humanidade, entre os quaes mais
avultam o da embriaguez, do roubo e da prostituição com suas terriveis
679 REGO, José Pereira. Apontamentos sobre a mortalidade na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Typ. Nacional, 1878. 680 REGO, 1878, op. cit., p. 33. 681 REGO, 1878, op. cit., p. 2. 682 REGO, 1878, op. cit., p. 15.
232
consequencias”.683 Além das epidemias de febre amarela, do problema da tuberculose e
das “desordens frequentes e profundas do systema nervoso”, acompanhando a
“agglomeração e augmento das populações”, a degradação moral vinculava as condições
de higiene ao ordenamento dos corpos e suas formas exteriores exibidas nas condutas
sociais e suas representações.
A exposição do campo moral à dinâmica problemática das “vidas menos regulares
ou licenciosas” estava no centro do problema. Se “a educação da nossa mocidade vai se
tornando bastante descuidada” diante dos problemas morais da vida moderna, o
inventário de problemas era descrito à exaustão. A modernidade e a desterritorialização
de indivíduos e mercadorias eram quadros desafiadores para a territorialização da
sociedade na medida em que alastravam problemas visíveis
[...] em todas as cidades populosas mórmente nas commerciaes e maritimas, em as ques o luxo, os prazeres de toda a especie, e os defeitos de uma civilisação irregular pela mistura de povos de diversas raças e habitos, fazem imperar os vicios de todo o genero e augmentar a depravação dos costumes, atirando as mulheres incautas ao vicio da libertinagem, e da prostituição, a qual, além de outros males infiltra e faz desenvolver a syphilis em maior ou menor escala, e torna-se o germen de grandes males para as geraçõe futuras, provocando a degeneração da especie, e enfraquecendo-lhe as aptidões á resistencia das causas que tendem á aniquilação da vida. E se estes factos, que degradam a nossa especie pelas offensas á moral e pudor publico, occorrem em todas as cidades, onde o movimento commercial é avultado, ainda mesmo anquellas em que regulamentos severos cohibem taes excessos.684
Essa percepção dialoga com a visão de Fernando de Azevedo a respeito dos
“efeitos do fenômeno da concentração”, entendidos como “uma certa lassidão de
costumes, as perspectivas que se abrem à vida de prazeres e uma liberdade, que é
favorecida pelo entrozamento dos grupos sociais”.685 Diversos diagnósticos de época
ecoavam temas muito semelhantes em relação ao mundo nas aglomerações modernas em
que luxo, vícios e virtudes eram pensados como efeitos morais da circulação junto à
população. O economista Henri Baudrillart, preocupado com os “sintomas morais” das
mercadorias e das riquezas, destacava os problemas do desmedimento na féerie pelos
683 REGO, 1878, OP. cit., p. 22. 684 REGO, 1878, op. cit., p. 11. 685 AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira . São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p. 9.
233
prazeres, dinheiro e gozos (jouissances), constituindo novos padrões de representação
pessoal na scène du monde junto às excitações da vida urbana nos grandes centros de
população.686 Mesmo o já citado Luigi Cossa entendia que
Tambem em materia de consumo os principios da economia concordam admiravelmente com os da moral: está demonstrado que os consumos moralmente reprovaveis em relação ao seu definitivo resultado são sempre economicamente nocivos. Os excessos do luxo, isto é, do consumo improductivo de cousas custosas e superfluas, derivam do egoismo e da vaidade dos ricos; propagam-se por inveja ás classes menos abastadas, diminuem o trabalho dos productores; preparam a decadencia moral e economica das nações.687
A maior exposição das condutas na cidade implicava o envolvimento do mundo
da vida com o potencial desmedido dos prazeres, superficialidades e intenções opacas.688
Como temas dos processos de educação, a territorialização e a polícia dos meios de
circulação modernos, quando tangenciam as preocupações decorrentes das aglomerações
e dos espaços da população, abordam transformações que podem ser situadas em quadros
muito mais amplas do campo perceptivo moderno. Conforme observa Raymond
Williams, a dialética da modernização direciona a experiência urbana no sentido de uma
opacidade dos vínculos de comunidade, tornando problemáticos os critérios identitários
e o jogo de intenções e inclinações morais na socialização.689 Se a transparência de uma
comunidade se torna problemática à medida que há incremento na divisão do trabalho e
na ampliação dos sistemas de circulação de coisas e indivíduos, as estruturas perceptivas
dos observadores morais são confrontadas com relances descontínuos em vez de painéis
mais orgânicos ancorados no hábito ou na regularidade dos costumes. A mobilização da
dinâmica moral entrecortada pela materialidade das transformações do mundo da vida,
nesse sentido, contorce as avaliações pressupostas nos processos de educação a
dissonâncias morais mais amplas.
Os três tomos do romance de Vicente Félix de Castro, inserido na popular tradição
oitocentista das narrativas sobre mistérios urbanos e rurais (na linha temática de Eugène
Sue, George W. M. Reynolds, Paul Féval, Johann Wilhelm Christern, Jean de La Hire e
Ned Buntline), elaboram uma narrativa em que cidade e campo contextualizam
686 BAUDRILLART, Henri. Histoire du luxe privé et public. Paris: Hachette, 1881. p. 663-667. (Vol. 4) 687 COSSA, 1888, op. cit., p. 147. 688 Cf. Capítulo 5. 689 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011. p. 278-287.
234
comportamentos junto à dinâmica moral da população e suas paisagens sociais.690 Além
das abruptas oscilações da fortuna e da “vida mysteriosa” de alguns personagens (como
o comendador João Antonio) responsáveis por entregar famílias “nos braços da miseria”,
o mundo moral da cidade significa a exposição às “accções indignas” e à ambivalência
dos comportamentos sob o verniz da civilidade. Epiphanio de Mattos era herdeiro da
fortuna de seu pai Manoel de Mattos, “um honrado negociante da cidade”, de modo que
o jovem, dado aos “passeios nocturnos” e ao lasquenet, estava entregue “á indolencia, ao
jogo e a desregrados deleites”. Com tudo “consumido na vida de lascivos prazeres e no
jogo”, a expressão fisiológica da decadência moral na cidade e seus luxos “denuncia um
d’esses jovens perdidos no vicio, por que os traços da vida laxa e desregrada se desenham
por seu semblante pallido e emmagrecido”. Essa dialética da modernização, confrontando
signos diversos da moralidade na cidade, era um registro fundamental do horizonte moral
e sua dinâmica problemática junto às formas da vida coletiva.
A tematização moral do problema dos luxos e das atrações da vida urbana (bem
como sua interpretação moral) também estava na agenda do teatro brasileiro da época,
por exemplo, nos textos de Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar e Quintino
Bocaiuva.691 Como referência à estruturação moral da sociedade, o problema ganhava
ares de intervenção sobre a moralidade pública da cidade: se “a indole de um povo, que
se succede, póde ser modificada, transformada, pela acção energica do meio physico e do
meio moral”, “cada povo tem os seus sentires, os seus habitos, os seus vicios e as suas
virtudes, cuja completa metamorphose póde ser operada pela acção da educação
intellectual, instrumento da moralidade”.692 Acreditando que “o theatro é uma daquellas
instituções que maior influencia exercem no desenvolvimento moral de um povo”, essa
“escola pratica” era suscetível às vacilações dos novos tempos. O autor considerava que
“nós vivemos no centro da anarchia moral e intellectual”, de modo que “o theatro tambm
é a expresão do estado intellectual de uma época” e das agitações das “massas populares”
e da vontade cega das “turbas”. Cético em relação à capacidade moral do teatro junto à
população e à vida urbana, Moreira Azevedo acreditava que, mais grave do que as
“traducções informes” das operetas de Offenbach e Lecocq, “magicas extravagantes e
690 CASTRO, Vicente Felix de. Os mysterios da roça. Guaratinguetá: Typ. Commercial de V. R. Fonseca,
1861. (3 vols.) 691 NARITA, Felipe Ziotti. Religião e moral na formação do Império brasileiro: o problema da
elaboração da sociedade nacional. Paper de conferência – IESP-UERJ, Rio de Janeiro, 31 mar. 2017. 34p.
692 FERREIRA, Portilho. Considerações geraes sobre o theatro. O Espectador, Rio de Janeiro, 30 nov. 1884.
235
absurdas, movimentos desordenados, pernas e braços nus, posições indecorosas, eis o que
se vê na nossa scena; está pervertido o paladar do povo, e o theatro ja nao educa nem
moralisa; é a sala das gargalhadas, das indecencias, da perversão e da futilidade”.693
Os prazeres desmedidos e a contaminação moral eram questões especialmente
sensíveis nas grandes cidades portuárias, tendo em vista o maior campo de circulação.
Em quase um mês com a vie suspendue em alto mar, saindo do rio Escalda até
desembarcar no Rio, Charles Ursel falava do monde bruyant da população urbana na
cidade portuária.694 Andando junto à multidão (foule), a descrição da infraestrutura da
cidade (escolas, jardins, hospitais, hospedarias etc.) era relacionada ao spectacle de la rue
e a uma descrição moral da população a patir da fisionomia da vida urbana e de seus
espaços de circulação – prétexte à flâneries, conforme o autor. Flânerie, aliás, presente
nas descrições de um Carlos de Laet sobre as cidades e as gentes em Minas Gerais
(fugindo dos canhões de 1893) e, em cadencia mais frenética, nos tipos da população
destacados por João Chagas, em andanças pelo Rio de Janeiro, destacando carregadores,
fretes, corretores, vendedores, mulatos, carroças, tramways e mercadorias circulando
pelos espaços abertos e pelas ruas sujas de velhos bairros cortados “ás talhadas para
canalisar pela sua entranha a população”.695 “Levado um pouco na onda da turba”,
informava o autor português, a população da cidade era um rico inventário de hábitos
morais e de vícios, compreendendo do jogo à prostituição, das vielas coloniais e seus
casebres às “exhibições apparatosas” do aburguesamento de uma “população caprichosa
e opulenta, ávida de prazer e de apparato, impaciente por civilisar-se até ao ponto de
exceder a propria civilisação, e reclamando para nutrir-se, para vestir-se, para viver e
gosar”.
As abjeções morais e o ar da décadence da vida urbana no fim de século eram
bastante presentes nas percepções sobre o fenômeno da concentração. Mauricio Lamberg,
que viajou por diversas regiões brasileiras e esteve envolvido com fotografia no país
desde os anos 1860 (compondo, inclusive, diversos retratos dos tipos físicos da população
e suas ocupações), registrava que os comportamenteos nas grandes cidades
apresentavam-se “de modo o mais offensivo á moral publica”, pois a loteira, os jogos, os
divertimentos e a prostituição (em locais onde “onde ás janellas e ás portas offerecem aos
transeuntes os seus duvidosos encantos desbragadamente”) arrastavam “á miseria o povo
693 AZEVEDO, Moreira. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notaveis, usos e
curiosidades. Rio de Janeiro: Garnier, 1877. p. 162. (Vol. 2) 694 URSEL, Charles. Sud-Amérique. Paris: Plon, 1879. 695 CHAGAS, João. De bond. Lisboa: Livraria Moderna, 1897.
236
baixo”.696 O autor admirava a “illuminação das ruas” das grandes cidades e de alguns
núcleos do interior de São Paulo (“he ahi pura ironia, como diria Heine, pois essa
illuminação parecer ter por fim transformar viandantes em noctambulos”),697 desenhando
um contraste entre cidade e campo com contornor, sobretudo, morais: afinal, “na solidão
selvagem, o coração humano soffre menos de todas essas pequenas susceptibilidades, tão
frequentes na vida commum das civilisadissimas cidades”.698 Observador da “torrente” e
da “onda humana” da vida urbana no Rio de Janeiro, o autor afirmava que
[...] essa Babel de gente se move com toda a tranquilidade e segurança entre apparatosas lojas e convidativas casas de refrescos, confeitarias e cafés [...] d’ahi irradia a cidade em todas as direcções os seus bonds para os mais afastados arrebaldes [...] Quasi todas as ruas, estreitas ou largas, tortas ou direitas, são atravessadas por linhas de bonds (tramways), nos quaes ha o movimento e a vida que nunca me foi dado ver nas maiores e mais populosas cidades da Europa.699
Se a narrativa é entrecortada por alguns exageros (especialmente em relação a esta
última comparação) e pela reiteração de uma espécie de senso comum sobre um país onde
“não ha miseria nas classes baixas da população, e as aberrações moraes e physicas que
dahi resultam são desconhecidas”, a população e sua coesão moral como povo ecoavam
um registro de inarticulações, tendo em vista que “a grande massa do povo ainda está em
gráo intellectual muito baixo” e “faltam as condições preliminares para que tenham
consciencia elevada do proprio valor”.700 Apesar da narrativa de faltas, Lamberg
reconhecia na estrutura da família e nos hábitos do trabalho as bases para a formação do
“cidadão util”. Justamente como núcleo das atividades produtivas e de seu substrato
moral, a figura da mãe e o núcleo sociológico da família adquirem funcionalidade na
narrativa da população. O critério de utilidade, amarrando as diversas determinações dos
processos de educação da população (trabalho, deveres, asseio etc.), incorporava ao
horizonte de valores uma razão prática ancorada na destinação fundamental da formação,
funcionando também como pressuposto da conformação individual em relação à
produção social. Nesse sentido,
696 LAMBERG, Mauricio. O Brazil illustrado com gravuras. Rio de Janeiro: Typ. Nunes, 1896. 697 LAMBERG, 1896, op. cit., p. 331. 698 LAMBERG, 1896, op. cit., p. 104. 699 LAMBERG, 1896, op. cit., p. 279. 700 LAMBERG, 1896, op. cit., p. 70.
237
A mulher é incontestavelmente nas sociedades civilisadas o principal elemento de regeneração do homem, mas, para que possa ella satisfazer a esta grande missão, que lhe está confiada, torna-se indispensavel que se lhe dê uma educação especial e conveniente, e o gráo de instrucção necessaria para bem encaminhar os filhos, ensinando-lhes desde cedo os principios da religião e da moral, e incutindo-lhes no espirito o amor da patria e dos deveres para com os outros homens, asim de tornal-os cidadãos uteis.701
A partir do critério de utilidade, o trabalho, como ética (imperativos e estruturas
de prescrição e avaliação do mundo da vida) e como ideologia (a partir da promessa de
abundância ilimitada e do universalismo de suas realizações abstraídas de critérios de
classe), fundamentava o progresso ordeiro na medida em que o horizonte de expectativas
era condicionado pela utilidade individual no incremento das forças da vida coletiva. Essa
forma ideológica pressupunha, conforme expressão comum na documentação de época,
a formação de homens e cidadãos úteis a si, à família, à sociedade, a Deus etc. A atividade
individual e o intercâmbio social ficam dependentes do trabalho produtivo como
dinâmica mediada pela ética do trabalho. Essa talvez seja a relação moral subjacente ao
critério de utilidade da gestão das populações. Conforme as categorias de crítica da
economia política de Marx e Engels, a utilidade é expressão de ordenação e explicitação
do intercâmbio material das necessidades e das formas de satisfação (Befriedigung)
construídas pelo desenvolvimento do espírito comercial universal (allgemeine) a partir do
final do século XVIII. Nesse sentido, a utilidade confere conteúdo à dinâmica social na
medida em que pressupõe uma economia das forças sociais como gestão de indivíduos e
coisas.702
Francisco Bethencourt Silva argumentava que “a civilisação moderna,
disciplinando os sentimentos do século XIX”, implicava um “dominio da intelligencia”
capaz de traduzir a proatividade da população em gestão das forças coletivas. Além de
“um simples motor, uma força inculta”, o novo trabalhador manipulava a paisagem
tecnológica de modo que, “emancipada assim a intelligencia, na fraternisação da
sociedade actual, o operario é um homem util á nação”.703 O ensino técnico e a
aprendizagem de artes e ofícios, como moralização da população pelo processo de
trabalho, ilustravam a “synthese dos conhecimentos universaes da sciencia e da arte,
consorcio da intelligencia com o braço, do espirito com a materia”, implicam a civilização
701 REGO, 1878, op. cit., p. 32. 702 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Die deutsche Ideologie. Berlim: Dietz, 1978. p.396-397. (MEW, 3) 703 SILVA, Francisco Bethencourt. Lyceo de Artes e Officios. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888.
238
da “ambição da força bruta” por meio da “boa fortuna de um povo educado e livre”.704
Como distintivo das iluminações da modernidade capitalista, essa “energia moral” era
fundamental para conter os sinais disruptivos do mundo moral diante da circulação de
imaginários referentes às “agitações politicas”, ao “genio tempestuoso das paixões
partidarias e de successivas discordias” e ao choque das “compressões virulentas dos
sectarios do nihilismo”. O “thermometro da civilisação”, portanto, era o “florescimento
espantoso da industria e do seu commercio” mediado pelo espírito de ordem da população
e de suas virtudes coletivas.705
Para o autor, a “regeneração do homem pelo trabalho” deveria impedir a marcha
progressiva da população de “retroceder agora no caminho largo da civilisação, quando
crescem descommunalmente as necessidades palpitantes da sociedade”, significando o “o
mais lugubro prenuncio da decadencia moral”.706 A preocupação com o caráter da
população e o conteúdo de um povo, então, indicava uma busca pelo nacional a partir da
mobilização de sua atividade coletiva, temendo “o que succede quando a maioria da nação
permanece abysmada na ignorância, pela falta de meios de instrucção”.707 “No
embrutecimento, pela falta de educação”, pela precária “influencia moral” e “por
menosprezar as artes que alimentam e enriquecem um povo, nobilitando-o pelo trabalho”,
a narrativa de um povo e de sua desarticulação espacial e moral eram fundamentais nessas
percepções.
Oferecendo uma síntese dessas preocupações modernas à luz do
“desenvolvimento scientifico dos principios politicos”, Franz von Holtzendorff
(professor da Universidade de Munique) indicava dois “factos preponderantes” para a
instituição da sociedade nacional e sua organização política: “1º Grandeza, extensão,
limites, constituição e forças productoras do territorio; 2º Densidade, educação, aptidões,
riqueza e caracter da população”.708 A correlação entre população, distribuição territorial
e progresso ordeiro por meio do trabalho era pensada a partir das instabilidades da cultura
moderna, na medida em que “variam as relações entre o individuo e a sociedade civil com
cada progresso consideravel das descobertas scientificas, e da consciencia moral”.709
Quando “augmentam os grupos sociaes” e quando os progressos da técnica são
704 SILVA, 1888, op. cit., p. 23. 705 SILVA, 1888, op. cit., p. 31. 706 SILVA, 1888, op. cit., p. 36. 707 SILVA, 1888, op. cit., p. 34. 708 HOLTZENDORFF, Franz. Principios de politica: introducção ao estudo scientifico das questões
politicas da actualidade. Trad. Souza Bandeira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1885. 709 HOLTZENDORFF, 1885, op. cit., p. 126.
239
aprofundados, a multiplicidade de transformações implica mecanismos de gestão da vida
coletiva uma vez que “a ruina social começa quando a massa popular, prevalecendo-se
da força bruta da maioria numerica, pretende anniquilar a minoria das pessoas que
sobresahem pelo merito intellectual ou economico”.710 A moralização do conteúdo da
população diante das “perturbações que interrompem a tranquilidade”, afinal, partia do
pressuposto de que, diante do caminho da cultura moderna, “taes perturbações não podem
ser obstadas, nem evitadas” – apenas geridas. Nesse sentido,
[...] as invenções technicas, por seus effeitos, alteram subitamente o equilibrio economico; as manifestações da intelligencia, que mudam a dircção das idéas humanas. Quanto ao terreno technico, é certo que a descoberta da machina a vapor e a divulgação das estradas de ferro transformaram a sociedade moderna [...] Taes acontecimentos escapam á politica. Elles perturbam o equilibrio do Estado e da sociedade. Cada descoberta consideravel custa, pelo serviço que presta ao engrandecimento do pensamento humano, dolorosas transformações á época de seu apparecimento.711
O problema da população não é apenas o vínculo descritivo com seus hábitos e
costumes. Com apoio das estatísticas e das instituições, os esforços descritivos da
população implicam igualmente conjuntos prescritivos para a racionalização dos hábitos
de um povo. O conhecimento das inclinações do povo, por exemplo, indicava que
“aspirações, sentimentos, paixões, convicções, crenças religiosas e preconceitos, em
virtude de sua geral diffusão pelo povo, tornam-se importantissimos factores da vida
publica”, tendo em vista sua gestão. À luz dessa abordagem, o campo da moralidade,
como descrição de costumes e prescrição de valores, é efetivamente integrado às
preocupações mais amplas com a forma social no período. Nesse sentido, a partir do
“estado de sociedade em que vivemos”, “a manutenção, ordem e desenvolvimento desse
estado” indicam, como eixos fundamentais de governo da população, “a determinação
prévia das relações que os actos humanos pressuppõem entre o povo, o estado e o
individuo”.712 Ao lado da estrutura jurídica e institucional da sociedade nacional, seu
referente buscado no caráter do povo era preenchido pelas “leis moraes” capazes de
circunscrever os parâmetros de socialização da vida coletiva.
710 HOLTZENDORFF, 1885, op. cit., p. 221. 711 HOLTZENDORFF, 1885, op. cit., p. 240. 712 HOLTZENDORFF, 1885, op. cit., p. 82-83.
240
Um dos grandes intérpretes desses impasses no fim de século foi Silvio Romero –
que desdobrou consequências importantes do problema da população para os processos
de educação. Como “typo novo” no concerto das nações civilizadas, o problema do
“caracter nacional” era pensado, sobretudo, no registro de suas faltas. As dificuldades
com “o meio physico e a imitação estrangeira”, sobrepondo as determinações de
integração material e inautenticidade cultural, constituem um quadro de “imitação
tumultuaria” em que o próprio conteúdo moral mais profundo da população fica refém da
superficialidade de formas inadequadas e de uma integração tíbia.713 Em registro tópico,
essas preocupações circulavam nos debates de época: a comédia de França Junior e seu
“typo brazileiro”, por exemplo, tematizava o problema nas grandes cidades a partir dos
vícios da imitação e da caracterização dos nacionais como “indolentes, futeis, sem
educação”.714 Para Romero, em sentido mais amplo, essa desarticulação do povo novo
significa que “não temos tradições intellectuaes no rigoroso sentido”, de modo que
O cosmopolitismo contemporaneo, de que, pela força das conquistas commerciaes, paritlhamos tambem um pequeno quinhão, traz á humanidade d’estes resultados: espiritos vivaces de nações toscas e atrasadas, arrebatados pela rapida corrente das grandes ideias, que fecundam os povos illustres da actualidade, deprimidos os patrios prejuizos, conseguem alçar a fronte ácima do amesquinhamento geral, e embeber-se de uma nova luz.715
Conforme Silvio Romero, a experiência da incompletude da formação social era
materializada na própria estruturação moral da sociedade nacional. Em longo texto escrito
em 1890 e bastante difundido entre as elites letradas (com trechos circulando desde os
anos 1880), os processos de educação ocupam um lugar importante, na medida em que
os conteúdos da vida cultural e sua organicidade implicam a integração das populações
em uma unidade moral.716 Para o autor, “dar ao ensino e á educação um caracter nacional
é o ponto culminante da pedagogia neste final de seculo”,717 de modo que a busca pelo
caráter da população implicava, sobretudo, uma reflexão sobre os mecanismos de
integração moral da educação. Colocando o problema em perspectiva, Romero afirmava
sua urgência diante dos imperativos da vida moderna, tendo em vista que
713 ROMERO, Sylvio. Historia da litteratura brazileira . Rio de Janeiro: Garnier, 1888. (Vol. 1) 714 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José. O typo brazileiro. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1872. 715 ROMERO, Sylvio. A philosophia no Brasil. Porto Alegre: Deutsche Zeitung, 1878. p. 35. 716 ROMERO, Sylvio. Notas sobre o ensino publico. In: ROMERO, Sylvio. Ensaios de sociologia e
litteratura . Rio de Janeiro: Garnier, 1901. 717 ROMERO, 1901, op. cit., p. 167.
241
As nações modernas, com a descoberta e desbravamento de regiões inteiras desconhecidas, com a fundação de nacionalidades novas, com o augmento pasmoso da população, com a decrepitude das velhas organisações militares, com o advento de industrias desconhecidas, viram surgir um grande numero de problemas urgentes, inilludiveis, e comprehenderam que na lucta pela existencia os seus cidadãos não teriam de então em diante a contar só com o braço; seria necessario contar, antes e acima de tudo, com a idéa. D’ahi a alta conta em que foi tida a instrucção, d’ahi, como arma de aperfeiçoamento e lucta, o aprendizado obrigatório.718
A busca pela autenticidade do “caracter nacional” significava “dar ao ensino
aquella superioridade de vistas, aquella uniformidade de sentimentos nacionaes”,719 uma
vez que a heterogeneidade da população, sua raridade diante do vasto território e a
experiência de “esterilidade” da incorporação de ideias indicavam, pelo prisma da
inassimilação e da falta, a dispersão moral. Justamente como “typo novo”, aliás, a
população e seu conteúdo nacional demarcavam a imaturidade da formação. Nesse
sentido, a inassimilação cultural, refletida na vida moral e no conteúdo sempre rarefeito
do “caracter nacional”, indicava que
As nações americanas, distanciadas notavelmente dos povos europeus em tudo quanto representa a cultura real, em tudo aquillo que é o fructo do qual uma longa evolução é a flor, as nações da America tem, todavia, um doloroso destino a cumprir: estarem ao par dos vicios da Europa e serem victimas d’elles. No que diz respeito ás difficultosas conquistas, que demandam tempo e lutas porfiadas, a asymetria é completa; no que se refere a erros, disparates, vicios, desvios sociaes, perfeito e exacto synchronismo.720
O tema da inassimilação direciona a perspectiva de Romero para uma
consequência importante: a incompletude da formação social, além da inautenticidade de
sua vida cultural, indica a própria tibieza da integração física. A população e sua descrição
moral, portanto, são campos cindidos pela precariedade da transmissão da cultura pelos
processos de educação. A “força estimulante e propulsora na vida progresiva de uma
nação” encontrava no vasto interior populações que “estão, entre nós, entregues ao mais
718 ROMERO, 1901, op. cit., p. 138. 719 ROMERO, 1901, op. cit., p. 183. 720 ROMERO, 1901, op. cit., p. 143.
242
inveterate barbarism”.721 O termo, retirado do evolucionismo histórico-social de Buckle,
assinalava o descompasso central da formação a partir dos processos de educação: o
acompanhamento dos imperativos da civilização moderna distendeu ainda mais a cisão
da sociedade nacional e do “caracter nacional” da população. Se Romero reconhecia os
esforços, construídos na segunda metade do século XIX, no sentido da formação de um
campo da instrução pública (nucleado nas principais cidades) “pelo facto material do
augmento da população e da riqueza”,722 a gestão da população lidava com as
incongruências de um “povo semi-barbaro, tomado em seu conjunto”, evidenciando a
“leviandade do caracter nacional, que não tem fixidez, firmeza, segurança; que não
assenta na rocha indestructivel de um complexo de tradições que sejam o sangue de nosso
sangue, a base adamantina de nossa alma”.723 Nesse sentido, tendo em vista o caráter
estacionário do vasto interior (já que as “populações brazileiras estavam em grande
atrazo”), os núcleos de povoação são desarticulados, de modo que,
[...] alheios ás idéas elevadas e aos impulsos generosos, quasi estranhos até ao exercicio das faculdades intellectuaes, os sertanejos levam uma vida animal e só sahem de sua apathia para atufar-se nos mais grosseiros prazeres. Só uma solida instrucção religiosa e moral podel-os-hia tirar d’essa especie de vestificação e levantar-lhes a alma á altura da dignidade humana.724
As imagens da imaturidade da população e de seu estado vegetativo nos interiores,
portanto, não são novas. Trata-se da figuração de uma população que, por sua
incompletude e tibieza originárias, está fadada a faltas e dissincronias com as iluminações
dos progressos da época. Narrativas que, operando sobre a exclusão, não apenas reforçam
nossas periferias internas, mas expõem as cisões que tensionam as narrativas identitárias
e fortalecem a pretensão de unificação das assimetrias em um conjunto nacional
conduzido pelos porta-vozes da razão esclarecida. Os discursos certamente consolidaram
estruturas e estigmas de uma sociedade nacional e de seus referentes (povo/população)
sempre deficitários, uma vez que carregados a reboque (ou dragados) pelo vórtice do
esclarecimento. Não era outro o diagnóstico sociológico de Louis Couty quando afirmava
que “o Brasil não tem povo”: o “estado da população” dispersa e desarticulada,
comprometendo as aspirações de utilidade no incremento produtivo, apontavam uma
721 ROMERO, 1901, op. cit., p. 149. 722 ROMERO, 1901, op. cit., p. 151. 723 ROMERO, 1901, op. cit., p. 169. 724 ROMERO, 1901, op. cit., p. 148.
243
sensação de incompletude diante da falta das masses fortement organisées e do substrato
industrial dos peuples civilisés, comprometendo a produção da riqueza e a inexistência de
uma população sachant penser et voter.725 Se nas mentalidades há prisões e dinâmicas da
longa duração, é preciso acrescentar que o mesmo vale para as ideologias.726
As imagens desconjuntadas de um território (e seus vastos interiores a serem
redimidos pelo perpetuum mobile da colonização e da civilização), dos arroubos do
movimento moderno (técnica e população) e da dispersão de sua população, como
componentes de um mesmo quadro com formas distendidas pela modernização,
assinalam talvez o epígono de nossa dialética da colonização, cujo lastro existencial é
cifrado pela condição periférica.727 Processo material e simbólico, certamente; mas
igualmente ideológico, conduzido sob a batuta da razão prática, dos imperativos da
modernização e da incompletude de um povo tutelado pela ideologia da civilização. Se o
contemporâneo sinaliza a abertura do horizonte de expectativas à racionalização do
território pela atividade produtiva regulada mediante os processos de educação, a
simultaneidade de estruturas incongruentes direciona o ímpeto moderno a um movimento
distorcido pelas contradições da formação social. A apreensão desse movimento
contraditório, que relaciona a narrativa aspiracional de unidade da cultura moral (o
“caracter nacional”) ao desajuste de seus suportes materiais de enraizamento, não situa o
problema da população (e da formação social) à margem da vida moderna, tampouco
repõe dualismos de uma estrutura social obliterada por formas arcaicas em relação aos
pequenos lampejos de modernidade. Trata-se, aqui, da própria disjunção da modernidade
capitalista e da cultura moderna (circulando por meio de imaginários, vertigens, valores,
infraestrutura e ideologias) em contexto periférico, incorporando e se debatendo contra a
eterna irrealização das promessas de emancipação moral do mundo moderno.
A vinculação do projeto de educação nacional com as deficiências do caráter da
nação,728 então, politizava a narrativa do povo revolvendo o horizonte de expectativas dos
novos tempos republicanos. Laudelino Freire argumentava que a “perfectibilidade
humana” era a finalidade do horizonte progressivo do século, de modo que “progresso
social está em funcção do gráo de educação diffundido pelos individuos e pelas nações;
si a perfeição humana não é mais do que a resultante dos tres aspectos em que se póde
725 COUTY, Louis. L’esclavage au Brésil. Paris: Guillaumin et Cie., 1881. p. 87-88. 726 VOVELLE, Michel. Idéologies et mentalités. Paris: Gallimard, 1982. 727 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 728 CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora. O projeto republicano de educação nacional na versão de José
Veríssimo. São Paulo: Annablume, 2003.
244
considerar a importante questão”. As cabeças áureas e as inteligências seguras de si,
encantadas com o campo de projeções morais organizado pelos processos de educação,
confiavam na disseminação das luzes que, diante das disjunções e distorções formadas
pelo ímpeto de racionalização e pelas paragens estacionárias das vastas periferias
interiores do campo nacional, desenraizavam as formas de vida por meio do vórtice
moderno e os imperativos de urgência do presente acelerado. Nesse sentido,
Quando o espirito humano, sempre sequioso de saber, busca descobrir na marcha evolutiva dos seculos que ja se foram, as causas do progresso, chega forçosamente á convicção de que, por meio de uma diffusão ampla da instrucção nas diversas camadas sociaes, qualquer nacionalidade, por menos favoraveis que sejam as suas condições de vida, se tornará possuidora d euma civilisação, cujas bases são as mais solidas e cujos effeitos são os mais beneficos [...] A regeneração politico-social que se operou neste paiz pelo acontecimento de 15 de novrmbro de 89, derrocando throno semi-secular, com toda sua armazenagem de ideas retrogradas, nos collocou em um periodo de iniciativa, abrindo maiores espaços nos horizontes das nossas aspirações. Queremos hoje a unificaçao de todos os nossos direitos; procuramos elementos para firmar inabalavelmente as instituições modernas, em busca da liberdade na mais elevada accepção, á par de um progresso que nos habilite a seguir de perto a marcha incessante do mundo civilisado.729
A imagem fraturada e incompleta do “caracter nacional” e sua consituição
espacial, aliás, era o foco das preocupações de José Veríssimo com os processos de
educação. Para “fortificar por todos os meios efficientes o sentimento nacional” e conferir
“grandeza moral” a um povo em formação, o autor defendia a “commum inspiração do
mesmo ideal de educação nacional”.730 Esse projeto de emancipação moral e de governo
da população por meio de uma educação nacional era o argumento central em livro
concebido no fragor do projeto reformista de instrução pública levado a cabo por
Benjamin Constant na formação do governo republicano. Preocupado com a “situação
moral do Brasil”, Veríssimo entendia que a determinação da população estava contida em
uma “educação do caráter” como unificação da “vida comum” a partir de uma “cultura
moral”.731 Como base do caráter nacional, essa estruturação moral da sociedade “é,
principalmente, fora da escola que se faz”, articulando “complexo de forças físicas e
729 FREIRE, Laudelino. Apresentação. O Progresso Educador, Rio de Janeiro, 15 ago. 1894. 730 VERÍSSIMO, José. O Pedagogium. Annuario do Ensino, Rio de Janeiro, 1895. 731 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
245
morais que sobre nós atuam” – assim, a mobilização de uma gramática moral pautada
pelo trabalho, obediência, família, disciplina e solidariedade regulava as consciências e
unificava a “educação da vontade”, instituindo a vida coletiva e parâmetros de
socialização.732 Mediante um amplo sistema de prescrições, articulando as virtudes
sociais às condições exteriores das condutas (higiene e educação física), a busca pelo
nacional e sua população ecoava uma narrativa identitária torcida por um referencial (o
povo) carente de conteúdo próprio, ecoando a sensação de que “tudo ainda está por fazer”.
Articulando estruturas de coesão e conteúdos morais, o problema da população
implicava a estruturação de uma “triplice camadas de bens moraes”, pois “um povo sem
fortes laços domesticos, baldo de solida instrucção e carecedor de mutuo respeito social,
não chega a aniquillar-se porquanto não attinge á sua plena constituição”.733 Como
narrativas aspiracional, a própria noção de completude era situada como uma destinação
essencial do povo e de seu caráter. No fim de século, as preocupações com a educação
nacional ecoavam a preocupação de preenchimento da nação com estruturas normativas
de ação coletiva, preenchendo com estruturas da vida moral a ideologia da tibieza de uma
população refratária nas franjas da sociedade nacional. Para além da rotinização de
funções e estruturas administrativas do campo da instrução pública, os processos de
educação implicavam um horizonte de integração moral da sociedade nacional, contendo
particularismos e dissociações no sentido de uma narrativa fundacional do povo e sua
homogeneidade de caráter instituído e transmitido pela cultura.
Esse era o objetivo da compilação de Joaquim Teixeira de Macedo, obra baseada
na teoria pedagógica do herbartiano Karl Stoy, “a mais propria para regenerar os povos
decahidos”.734 Para Macedo, “antes e levar a instrucção publica á altura que exigem as
necessidades da epoca, cumpre cuidar esmeradamente da educação nacional”.735 Como
tentativa de construção de um conteúdo de caráter para o nacional e seu referente (povo),
tendo em vista a gestão da população, “a educação é o meio de influir, segundo um plano
dado, no desenvolvimento do homem”, “visto que com o desenvolvimento de todas as
suas forças cresce ao mesmo tempo o germen do mal”, de modo que “a educação moral,
isto é, a que crêa e dirige a vontade para o bem, é o principal”.736 O desenvolvimento das
“nobres tendencias de caracter” da população, contra “extravios e impurezas de caracter”,
732 VERÍSSIMO, 1985, op. cit., p. 78-79. 733 Instrucção; educação; religião (I). A Escola, Rio de Janeiro, 16 mar. 1878. 734 MACEDO, Joaquim Teixeira. Breves apontamentos para o estudo das questões relativas ao ensino
normal primario e á educação popular. Rio de Janeiro: Typ. de João A. d’Aguiar, 1876. 735 MACEDO, 1876, op. cit., p. 229. 736 MACEDO, 1876, op. cit., p. 129-130.
246
implicava um jogo contra as “forças contrarias” ao mundo moral e sua humanização.737
O exclusivismo do humano, aqui, articulava o caráter e a educação nacional ao
enraizamento e à unificação moral da população no território.
Nesse sentido, a compilação de Macedo informava que “é proprio do honroso
destino que Deus marcou ao homem assenhorear-se da terra e sujeitar ao seu dominio as
forças da natureza”. O ímpeto moderno de humanização do espaço físico e
estabelecimento da vida moral (é importante não perder de vista que se trata da época dos
vastos projetos de colonização nas periferias do sistema-mundo e nas periferias interiores
às sociedades nacionais), então, dialogava com consciência de que “cada nova geração se
prepare a corresponder a tal destino”. No entanto, a destinação do humano em sua
conquista da fronteira física significava, igualmente, uma ressalva de “consciencia de que
os fins da vida não consistem sómente nisso”. Fundamental, portanto, era
[...] evitar o perigo que consiste na demasiada attenção tributada ás riquezas materiaes do mundo e no cultivo da sciencia empirica, tendo o cuidado de inculcar nos animos que a verdadeira base de toda e qualquer realidade está na importancia relativa e valor moral das cousas, e que o mundo visivel e material descansa sobre o invisivel e o intellectual.738
A ideologia da civilização apoia as iluminações do ímpeto moderno sobre o
contraste entre a expansão das forças vitais e as formas arcaicas a serem superadas pelas
urgências da época, de modo que os imperativos de mobilização da população esbarram
justamente nas figurações bizarras da incompletude e suas distorções diante das narrativas
aspiracionais de ordenamento moral e de sincronia com os progressos do século. À luz
do problema da população, o próprio conteúdo moral que individualiza a vida coletiva e
expõe seu valor no “concerto da civilização” fica no centro dos processos formativos do
povo e seu caráter. Nesse sentido, a incompletude da formação social exigia uma
Educação física que, regenerando a nossa raça, nos dará, com o vigor necessário para a luta material da existência, a consciência do nosso valor pessoal, do qual se formará o nosso valor coletivo e se alentarão as nossas energias morais. Educação moral, educação do caráter, pelo combate a todos os vícios que nos minam e deprimem e, sobretudo, pela educação do sentimento do dever [...] Porque a liberdade é menos o
737 MACEDO, 1876, op. cit., p. 79. 738 MACEDO, 1876, op. cit., p. 205.
247
exercicio dos direitos que o cumprimento dos deveres, do qual nascem os sentimentos da responsabilidade e da solidariedade humana.739
Além da dispersão moral no território, a experiência da dissociação da consciência
moderna expunha a estruturação moral da sociedade ao agonismo da vida moderna, de
modo que, “é tal o estado deste fim de século” que “o conflito da vida, mesmo, mudou
apenas de aspecto” à luz da situação que “aguça talvez mais os apetites de gozar e tirar
da vida a maior soma de inutilidade que ela comporta”.740 A relação com valores,
portanto, era a base do conteúdo moral da população para Silvio Romero. Afinal, “se é
certo, como disse Lessing e foi repetido por Goethe, que a missão do homem é a
actividade que em si propria tem a sua paga e o seu encanto”, “o bem deve ser feito, sem
se indagar quem nol-o ha de retribuir” e “a verdade deve ser procurada e defendida, sem
buscarmos saber que lucros ellas nos ha-de trazer”.741 A busca pelo “caracter nacional” e
a unidade material e moral da população implicava um entendimento de cultura como
“resultante das aptidões ethnicas da nação, de sua vida, de sua historia, de sua indole, de
suas aspirações fundamentaes”. Nesse sentido, a abertura dos processos de educação à
conformação do horizonte nacional é mediada não apenas por conteúdos da instrução,
pois inscreve a estruturação do campo moral e suas condições de transmissão (educação)
nas distorções da formação social. Assim,
A simples psychologia nacional, a simples lei da evolução, ensinando a selecção natural no desenvolvimento dos povos são mais que bastantes para esclarecer a justificar o facto. As nações não fazem saltos, nem mudam de indole de um dia para outro, e só lhes aproveita duravelmente o progresso que brota de suas proprias entranhas e traz o signo indelevel de seu ideal [...] Para as nações alguma cousa de analogo á estima propria que todo individuo deve ter por si mesmo; que é para as nações apenas a consciencia de seu valor e a confiança em seus destinos.742
O esquema sociológico de Silvio Romero para os processos de educação da
população, pretendendo uma “integração homogenea do povo brasileiro”, indicava que
“precisamos de cohesão, de espirito publico e de um alevantado ideal comum”, pois “em
nosso paiz o povo não chegou ainda áquelle estado de cohesão social, em que se foma
uma opinião disciplinada, dirigida por altas aspirações, no encalço e na trajectoria de um
739 VERÍSSIMO, 1985, op. cit., p. 145. 740 VERÍSSIMO, 1985, op. cit., p. 104. 741 ROMERO, 1901, op. cit., p. 162. 742 ROMERO, 1901, op. cit., p. 168.
248
grande ideal”.743 Um fundo histórico fundamental era subjacente ao registro de faltas, de
inassimilação cultural e de incompletude da formação social. Ao lado do “caudilhismo
chefista” das oligarquias locais, a “dependencia directa do governo e do jesuita”, o
“parasitismo economico do colono” eram os resquícios da colônia “inapagados ainda, que
a escravidão foi deixando n’alma nacional”.744 Se o gênio cosmopolita das grandes
cidades era apenas um “figurino de pensamento” (pois “exhibimos a roupa alheia e não
tratamos de talhar uma que nos vá a geito e a caracter”), esse caráter postiço tornava o
conjunto ainda mais disparatado a partir da organização moral da população, pois as
povoações do interior eram marcadas pelo “genio apathico do caboclo, uma das fontes da
nossa população”. A busca pelo conteúdo do “caracter nacional” e suas disjunções
reverberavam um conjunto bastante amplo dos problemas da vida moral no fim de século
à luz da gestão da população vinculada aos processos de educação.
Se os textos brasileiros esbarravam em uma condição periférica em que a
incompletude da formação social reitera sempre uma narrativa de faltas, condicionando a
particularidade histórica da formação social e de sua população a um padrão de medida
civilizado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, a aderência problemática da
narrativa aspiracional do “caracter nacional” à unidade moral da população também era
tematizada em uma conhecida obra de Alfred Fouillée.745 Nos estudos que originaram a
Psychologie du peuple français e La France au point de vue moral (textos contíguos
preocupados com uma fisiologia moral do caráter nacional e de sua população), o jogo de
cisões na população e no milieu national contrastava o norte e o midi, a população do
campo (paysan) e as grandes cidades etc. A elaboração das sociedades nacionais,
correlacionada à institucionalização dos Estados nacionais, além de construir seus
espaços de exclusão em relação às formas aspiracionais da nação, implicava um trabalho
sobre a população. Nesse sentido, como narrativa moral preocupada com os processos de
educação do caráter nacional, a homogeneidade de condutas é fraturada pela diversidade
do território diante dos imperativos de racionalização e de administração do Estado e de
um caráter nacional unívoco.746
Fouillée era um dos intelectuais mais badalados do fim de século e suas reflexões
sobre a população ecoam boa parte dos debates de época sobre a configuração moral das
“raças” latina, germânica etc. (em meio a nomes como Emmanuel Liais, Renan e Ranke).
743 ROMERO, 1901, op. cit., p. 179. 744 ROMERO, 1901, op. cit., p. 180-182. 745 FOUILLÉE, Alfred. L’enseignement au point de vue national. Paris: Hachette, 1891. 746 JEAN-YVES, Guiomar. La nation entre l’histoire et la raison. Paris: La Découverte, 1990.
249
Se a educação moraliza “massas de indivíduos”, a fundamentação do caráter nacional
implica uma gestão moral das “forças vivas” instituídas pela vida coletiva.747 O autor
argumentava que a unidade de um caráter nacional da população implicava um projeto de
esclarecimento e de condução (civilização) da população capaz de abarcar “um campo de
cultura suficiente largo para que o espírito nacional seja aberto às coisas do espírito”.
Como esforço de superar, pela cultura, as “disposições selvagens ou bárbaras” dos
instintos, o problema da população e a crença no movimento progressista dos sentimentos
morais eram condicionados reciprocamente junto à ideologia da civilização – aqui
contorcida diante da tarefa racionalizadora de homogeneização do espaço social. Cindido
entre as luzes da cultura formal dos grandes centros urbanos, o interior e os interesses
individuais nas aglomerações modernas, o caráter nacional deve respaldar a “lenta
acumulação de forças intelectuais e morais e, por isso mesmo, forças sociais”, tendo em
vista que a “educação deve ser uma cultura das faculdades humanas mais essenciais”.748
O caráter nacional implica a “transmissão de certo espírito comum”,749 então a
“instrução é um motor de primeira importância no mecanismo social” pois constitui
“relação íntima com o sentimento e a vontade” (fundamento, aliás, da teoria das idées-
forces pela qual Fouillée ficou mais conhecido). A estruturação moral da sociedade e o
esclarecimento da população indicam valores de socialização baseados em “seus fins
universais” e na “consciência refletida de sua função nacional”,750 de modo que a “ação
constante sobre os sentimentos” configura prescrições, sanções e virtudes que conferem
conteúdo moral e regularidade à população. Como “organismo dotado de certa
consciência coletiva”, a nação fundamentava o caráter de sua população por meio da
“forma de hereditariedade e de identidade orgânica que mantém em um povo a
continuidade de caráter”. Os processos de educação, portanto, organizavam o horizonte
coletivo unificando “uma consciência nacional e uma vontade nacional” junto às cisões
da população: trata-se de um “fundamento comum” estruturado por valores, contendo o
perigo da “dispersão da sociedade em indivíduos que não teriam outra preocupação senão
seus próprios interesses”. Para além do caráter nacional e de seus conteúdos como
narrativa identitária da população e suas cisões, então, a gestão da população (por meio
dos processos de educação) tangenciava a indeterminação das forças de mobilização da
vida coletiva moderna.
747 FOUILLÉE, 1891, op cit., p. 21-24. 748 FOUILLÉE, 1891, op. cit., p. 129. 749 FOUILLÉE, 1891, op. cit., p. 137. 750 FOUILLÉE, 1891, op. cit., p. 272.
250
A partir dessa ambivalência, Fouillée registrava que “o fluxo crescente da
população é, para as sociedades modernas, um elemento de força interior e de expansão
exterior, mas igualmente uma ameaça de perturbações profundas”.751 Se o povo constitui
a narrativa identitária de uma coesão moral, instituindo um campo comum contra as
potências de dissociação individual, a própria predominância desse coletivo continha um
potencial disruptivo da multidão, da “turba”, do “povaréu informe” e de sua
irracionalidade – desestabilizando a ordem da população. As figurações do povo em
movimento e da multidão são critérios fundamentais no imaginário da modernidade
capitalista. Em uma narrativa de 1906, Gorki elaborou essa percepção justamente a partir
do eixo do movimento e do conteúdo moral como coesão do povo, já que, diante das
mobilizações nas ruas de Petersburgo, a “multidão modificava-se lenta, mas
inexoravelmente, transformando-se em povo”.752 Oliveira Martins, por exemplo,
misturava encantamento e abjeção diante da narrativa moral de uma população em
movimento por meio de “todo este povo se revolve n’uma agitação concentrada e
intensamente grave”.753
Se as estruturas ideológicas de definição das sociedades nacionais no século XIX
colocavam a noção de povo e de suas condições de coesão no centro das agendas
políticas,754 um importante intérprete dos dilemas latino-americanos no início do século
XX, José Ingenieros, politizava ao problema de maneira clara: além de um referente e de
um critério de identidade, a configuração moderna do povo e dos parâmetros de cidadania
(profundamente atrelados à experiência constitucional na região) implicava a
consideração de imperativos da sociedade moderna em suas estruturas de socialização
junto às sociedades emergentes dos contextos pós-coloniais nos anos 1810 e 1820.755 As
narrativas identitárias desse coletivo singular, desdobradas sobre os critérios da
população, constituíam novas subjetividades políticas que, no caso brasileiro, permeavam
os desencontros da experiência constitucional construída a partir da formação do Estado
nacional. Nesse sentido, além de “deveres ativos e cotidianos”, a estruturação da vida
751 FOUILLÉE, 1891, op. cit., p. 57. 752 GORKI, Maksim. Nove de janeiro. In: GORKI, Maksim. Meu companheito de estrada. São Paulo:
Editora 34, 2014. p. 246. 753 MARTINS, 1893, op. cit., p. 23. 754 KULIGOWSKI, Piotr; DOBEK, Rafal. La “Pologne Populaire”: genèse et signification de la notion (une
page de l’histoire de la formation d’une modernité périphérique). Prace Historyczne, v. 144, 2017. PEREIRA, Luisa Rauter. O povo na história do Brasil: linguagem e historicidade no debate político (1750-1870). Jundiaí: Paco, 2016.
755 INGENIEROS, José. Los tiempos nuevos. Madri: América, 1921. p. 28-29.
251
social pressupunha o “melhoramento intelectual, moral e material” e um novo sistema de
referências valorativas internamente elaborados pelas sociedades nacionais.
Preocupado com a “emancipação intellectual das massas populares”, Alambary
Luz argumentava que “onde vive o povo animado pelo espirito do trabalho e da ordem é
ahi unicamente que se encontra prosperidade e sentimentos nacionaes”.756 Corrigindo os
vícios da população e evitando os crimes e as degenerações do social, o autor afirmava
que “cultivar naquellas consciencias desvairadas os bons instinctos e innocular-lhes
principios de rectidão” implicava uma intervenção contra a “ignorancia das massas
populares”, de modo que o déficit moral da população “atrophia toda a actividade e
infiltra a corrupção, a indolencia e o vicio nas diversas camadas sociaes”. A mobilização
desenfreada das massas embrutecidas, atirando a sociedade nas instabilidades dos
instintos cegos, sinalizava que
Nos dias da anarchia e das convulsões politicas, quando se desencadeam dos principios santos da virtude e amor ao proximo, é que tarde e sem remedio para a geração esmagada se deplora a ausencia da educação vulgarisada, a falta de instrucção moralisadora ou os defeitos dos professores primarios. Assim como a estes levitas da instrucção pertence uma grande parte nas glorias do povo que se exalta entre os melhores da humanidade, tambem lhes toca o maior quinhão quando as massas populares ou ainda alguns individuos que frequentaram as escolas se precipitam nos abysmos do erro ou no vortice dos crimes.
As associações de desvarios e irracionalidade das massas, frequentemente ligadas
à potencial violência política aberta pela modernidade, colocavam em questão a difusa
emergência desses espectros de movimento na vida coletiva da população. Se Alberto
Seabra considerava a “preeminencia dos factores sociaes, por si só capazes de despertar
as virtualidades energicas”, o dado fundamental da atividade da população, ainda que
“alguns consideram a civilisação como o producto da energia volicional dos grandes
homens, outros dão preeminencia á propagação de certas idéas positivas ou á
superveniencia de sentimentos generosos, religiosos, etc., orientando a conducta das
massas”.757 As percepções que aparecem em diversos momentos dos textos de época
analisados na pesquisa não deixam de assinalar que, dentro das preocupações morais com
a população e a educação, começavam a despontar aqui e ali os prelúdios do mundo das
massas (do qual o século XX foi profundo debitário), a partir do que Freud, ilustre
756 LUZ, Alambary. O professorado primário. A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 28 abr. 1872. 757 SEABRA, Alberto. O valor das raças como factor sociologico. Revista do Brazil, São Paulo, 1898.
252
observador da gênese desse “fator numérico” na modernidade, chamou de as condições
de “moralidade das massas”, tendo em vista o “estado hipnótico” e a impetuosidade
“impulsiva, volúvel e excitável” dos comportamentos coletivos quando, “como traços dos
primórdios do tempo [Urzeit], todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos que
adormecem no ser humano são despertados”.758 Essa irrupção do primitivismo, se
preocupava a elaboração da consciência da educada e carregava o espectro de regressão
do exclusivismo do humano,759 multiplicava a instabilidade moral junto ao movimento
da aglomeração.
Em contextos de desterritorialização da população (imigração) e de novas
narrativas sobre seu caráter e educação, como no fim de século na América Latina, as
nascentes preocupações com as massas e as multidões modernas, conforme a fisiologia
social de um José Ramos Mejía, destacavam o “coeficiente emocional” das manifestações
coletivas da população, tendo em vista a evolução social da espécie e o governo de
aspirações e impulsos à luz da estruturação de uma “atmosfera moral que desempenha
um papel tão significativo na educação e na vida social” e “é uma consequência dos
sentimentos”.760 Se “a multidão é um ser relativamente provisório, constituído de
elementos heteroêneos que por um instante ficam ligados”, a “facilidade de contágio” da
mobilização e o espectro da irracionalidade do coletivo enfatizam a iminência da ruptura
das estruturas de gestão moral da população quando “a força de expensão estala como
uma mistura explosiva e a multidão fica mais formidável e ameaçadora”. A moralidade
da “alma coletiva”, em vez de um ponto estático ancorado nos hábitos de um povo ou em
itens tradicionais, lida com os trânsitos dos indivíduos dispersos e a capacidade de
organização da “unidade mental das multidões”: se “o homem moderno [...] isolado é
culto e moderado”, o mesmo indivíduo “torna-se bárbaro quando vira parte da multidão”.
Afinal, “o que seriam nossas informes coletividades sem o freio secreto da força de inércia
proveniente da civilização acumulada inconscientemente no cérebro”, considerando que
as multidões e as massas são reféns da “ilusão, que é a grande deformadora das coisas”,
e da “alucinação, que é capaz de criar mundos a partir do nada”.
Ao passo que há a multidão ordeira das páginas ricamente ilustradas da Revista
Moderna, adornada pelo encantamento da cidade e pelas iluminações noturnas junto às
758 FREUD, Sigmund. Massenpsychologie und Ich-Analyse. Frankfurt am Main: Fischer, 2014. p. 42. 759 Cf. Capítulo 3. 760 MEJÍA, José Ramos. Las multitudes argentinas. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1899.
253
quais “a multidão em delirio grita e gesticula”,761 há a lição da história de uma massa cega
e entregue aos ímpetos revolucionários que “solapão a base de um estado regular”,
tornando a “multidão um rebanho mercenario” – deixando “penetrar a corrupção até o
amago da nação adormecida e esquecida de si mesma” por meio da erosão da vida moral,
da “dignidade humana”, dos “direitos dos cidadãos” e do “povo ligado ao trabalho, ao
bem, á honra”.762 A própria formação do mundo contemporâneo, aliás, indicava o caráter
problemático da população por meio da instabilidade da multidão. Em meio à “agitação
das praças” e ao “turbilhão dos acontecimentos tumultuários” do governo de Floriano
Peixoto, as “massas populares” carregavam o distintivo da própria história em sua
herança: “a historia vos mostra que antes das scenas sanguinolentas da revolução franceza
[...] houve as tristes occurrencias, que excitavam os odios das massas populares”.763 A
circulação desse imaginário do povo e seu movimento, portanto, era comumente pautada
pela ambivalência: se a aglomeração e as massas são número (multidão), a volubilidade
e o magnetismo dos fenômenos coletivos e seus imaginários (especialmente nas grandes
cidades) evidenciam a difusão de sentimentos e da potencial irracionalidade de um um
“Frankenstein coletivo”.764
Tendo em vista um projeto de educação nacional capaz de integrar a nascente
massa à coerência moral de um povo, Carlos Leôncio de Carvalho foi uma das
consciências reformistas mais argutas do fim de século, sintetizando indicações em um
extenso documento preocupado com a nação a partir da coesão de indivíduos “dispersos
por um vasto territorio e separados por grandes distancias”.765 Reunindo textos e ideias
da Primeira Exposição Pedagógica no Brasil (1883), a origem do projeto foi a
(malograda) organização de um congresso pedagógico no Brasil – na esteira dos esforços
nos anos 1840, em Hamburgo e em Eisenach, para discussão da educação nacional na
confederação alemã. A prática, então, foi estendida para cidades suíças (Genebra,
Friburgo, Vaud e Neuchâtel), Bélgica, Estados Unidos, Itália e Argentina. No Brasil, a
bem da verdade, havia conferências pedagógicas que se reuniam desde os anos 1870 em
cidades importantes (Rio de Janeiro e Recife, por exemplo), abordando o campo da
instrução pública a partir de teses sustentadas por professores e autoridades, mas a
efetivação de um congresso pedagógico certamente teria possibilitado aos debates
761 SERRA, Luis. O Snr. Felix Faure em São-Petersburgo e a aliança franco-russa. Revista Moderna, 5
set. 1897. 762 AGRIPINA. O sangue de Germanicus. Pharol, Juiz de Fora, 30 maio 1878. 763 Ao Sr. General Floriano. Novidades, Rio de Janeiro, 23 mar. 1892. 764 MOSCOVICI, Serge. L’age des foules. Paris: Complexe, 1985. p. 38. 765 CARVALHO, 1884, op. cit., p. 34.
254
regionais uma maior capilaridade a temas relativos à uniformidade nacional da educação.
Além de um rico painel das transferências culturais no fim de século, a publicação de
Leôncio de Carvalho confere algum destaque ao problema da população e seu caráter
moral:
No seio dos povos livres nada ha tão digno de compaixão como o adulto analphabeto, isto é, o homem que, adiantado na vida physica, mas completamente alheio ás evoluções da vida moral, está separado da communhão social pelo negro abysmo da ignorancia. Sabemos todos que a magna aspiração das sociedades modernas consiste principalmente em alargar, quanto possivel, o circulo de seus associados, pela igualdade no exercicio dos direitos e no cumprimento dos deveres. Como, porém, realizar tão nobre aspiração, sem que a noção desses direitos e deveres haja penetrado mais ou menos profundamente na consciencia e na razão de todos?766
Para Leôncio de Carvalho, “a concepção moderna do destino humano” implica
um alargamento das aspirações morais que “comprehende o homem e o cidadão, a familia
e a sociedade, o presente e o futuro”, de modo que “a sociedade moderna não educa o
menino exclusivamente para o Estado, educa-o no interesse do Estado e do individuo.
Ensina-lhe a sciencia da vida e a vida não é uma cousa simples; há a vida moral,
intellectual e physica, ha a vida do individuo, da familiar e do corpo social”.767 Temendo
“o que póde gerar a ignorância das massas”, o autor argumentava que a educação moral,
como meio de “manutenção da ordem”, atuaria “esclarecendo as massas populares” para
evitar a formação de “um povo de escravos ou de anarchistas”.768 Nesse sentido, a
“diffusão das luzes entre as massas” era um projeto de esclarecimento e de parâmetros
formativos de socialização tendo em vista as “condições de existencia” da população:
afinal, “he ella que incute no homem a consciencia dos seus direitos e deveres e reprime
as paixões que, originando a anarchia, abrem facil campo a audaciosas explorações da
ambição”. Contendo o potencial irracional das massas e oferecendo conteúdo moral para
a gestão da população e para o “germen das acções generosas e dos nobres
commettimentos”, a moralização dos “bons instinctos” e a nobilitação das forças coletivas
implicavam a auto-confrontação da sociedade com seus problemas internas.
766 CARVALHO, 1884, op. cit., p. 202. 767 CARVALHO, 1884, op. cit., p. 110. 768 CARVALHO, 1884, op. cit., p. 251-254.
255
Essa imagem do social, profundamente articulada à configuração e à gestão da
população, era muito presente nos processos de educação do fim de século. Para Leôncio
do Carvalho, “em presença do grande numero de meninos abandonados á ignorancia,
criados em contacto com todos os vicios e expostos á influencia dos mais perniciosos
exemplos”,769 a “educação diminue o numero de indigentes e criminosos”. A correlação
entre criminalidade e educação era central para as preocupações com a estruturação moral
da sociedade no século XIX. Textos e relatórios, como as obras de Hippeau e Léon Donat,
repetiam à exaustão a danificação das estruturas de coesão moral da sociedade diante dos
crimes da moderna vida urbana. A partir desse quadro de preocupações,
[...] a civilisação do Brazil, como de toda nação livre, depende das luzes derramadas profuza e amplamente na totalidade de seus membros. Sem os reverberos de uma instrucção abundante, projectados na face de todo o homem, e que lhe illuminem o coração, lhe aclarem a intelligencia, não ha luz, nao ha conhecimento do dever, não ha dignidade humana [...] Não seja-nos indifferente o contrisador espectaculo de tantos milhões de individuos privados do saudavel alimento distribuido nas escolas [...] Não nos cansemos de repetir: cuidar antes de tudo das turbas desherdadas e acabrunhadas, confortal-as, arejal-as, esclarecel-as, amal-as, alargar-lhes magnificamente os horizontes, liberalisar-lhes a educação de todas as formas.770
As “turbas desherdadas” da vida urbana e seu potencial desestabilizador da
regularidade moral das atividades sociais eram parte do campo de abjeções das
percepções do mundo moderno. Uma importante interpretação da vida urbana e do quadro
problemático de fundamentação do campo da moralidade foi publicada por Honoré
Frégier.771 O autor desenha uma curiosa anatomia moral das grandes cidades, tendo por
objeto determinar “a parte da população conhecida como perigosa pelos vícios, pela
ignorância e pela miséria”, indicando meios de “torná-la melhor”. A cidade e a população
desafiam a vida moral: alcoolismo, prostituição, desordens públicas, jogo etc. O
aparecimento das massas e da potencial irracionalidade de seu movimento apenas
agravam o quadro problemático da vida moderna e suas instâncias deficitárias.
Prevenir a miséria pelo trabalho, a corrupção pelo ensino e a prática dos preceitos
da saine morale são as bases da socialização e da regularidade moral da vida moderna.
769 CARVALHO, 1884, op. cit., p. 181. 770 A instrucção do povo. Revista de Instrucção e Educação, São Luis, 8 set. 1877. 771 FRÉGIER, Honoré Antoine. Des classes dangereuses de la population. Paris: Baillière, 1840. p. 276-
277 (Vol. 1)
256
Nesse sentido, preservar o homem das atrações (atteintes) do vício, da imoralidade e da
criminalidade significa, sobretudo, um controle das inclinações da população. Essa
gestão, a rigor, já começa a extrapolar os conteúdos virtuosos do caráter nacional da
população, na medida em que a exposição da moralidade às excitações da vida urbana
evidencia a exibição de uma instância deficitária da sociedade em função da pobreza
urbana, da imoralidade e da “propensão ao vicio”. A lógica do desvalimento das formas
de vida e da degradação da população, portanto, anuncia uma transformação importante
nas sensibilidades morais: a ascensão do social.
257
CAPÍTULO 5 | A INVENÇÃO DO SOCIAL E OS USOS DA SOCIEDADE
A vida nas cidades me enfastia, Enoja-me o tropel das multidões,
O sopro do egoismo e do interesse Matam-se n’alma a flôr das illusões.
Fagundes Varella, 1869.
Em 1899, Farias Brito construía um diagnóstico da “crise moderna” temendo a
dissociação expressa nas “preocupações egoísticas” e na erosão das “fontes vivas da
simpatia” (o “verdadeiro sentimento da solidariedade humana”) como uma espécie de
“resultado prático da vitória do materialismo”.772 Se “existe nos diferentes indivíduos que
compõem o corpo social um acordo espontâneo para a constituição da coletividade”, as
estruturas de integração “que presidem ao desenvolvimento da vida humana” são
identificadas na construção do mundo moral.773 O raciocínio de Farias Brito tangenciava
uma sensibilidade importante relacionada à “carreira vertiginosa” da modernidade: “a
sociedade transformada em jogo perpétuo de explorações desumanas” expunha “a
corrupção que vai fundo lavrando por toda a parte, mistura o ruído da indústria e as
maravilhas da ciência, os leprosos, os mendigos, os miseráveis de toda a sorte”.774
Justamente como instância deficitária, permeada pela avaliação moral da pobreza, o
social surgia como campo problemático no século XIX.
Em uma perspectiva mais ampla, essas imagens circulavam no fim de século como
signos indissociáveis da modernidade capitalista. Trata-se, certamente, de uma
reconfiguração histórica da sensibilidade e da percepção, mediadas pelo campo dos
valores, diante da ampliação das formas de exposição da pobreza como abatimento da
população, ou seja, como problema social interpretado em registro moral. Esse longo
percurso de invenção do social, por assim dizer, caracteriza um dos aspectos mais
salientes da experiência de abjeções da modernidade e suas promessas de educação e
emancipação. A nascente densidade urbana em centros como Paris, Londres, Manchester
e Nova York contava com a visualidade de sua população nas imagens de Charles Nègre
e de Jacob Riis, além da importante coletânea organizada pelo fotógrafo John Thomson
772 BRITO, Raimundo de Farias. Finalidade do mundo II. Brasília: Senado Federal, 2012b. 773 BRITO, 2012b, op. cit., p. 73. 774 BRITO, 2012b, op. cit., p. 44.
258
e pelo jornalista e militante socialista Adolphe Smith, evidenciando a precariedade de
ocupações marginais nas ruas da cidade moderna, suas nomadic tribes e a
desterritorialização da população misturada (mingled) em um todo confuso.775 O projeto
reformista de Henry George, em 1879, colocava no centro do raciocínio dedutivo de sua
filosofia social (dedicada à estrutura sociológica das sociedades industriais) o contraste
moral entre o incremento do “progresso material” e a expansão abjeta da pobreza urbana
que, “em meio à abundância”, embrutece os indivíduos.776 As formas perceptivas da vida
coletiva, então, articulavam o tema das estruturas de coesão e do território ao fenêmeno
moderno das aglomerações portadoras da dimensão problemática da pobreza urbana.
Diante dos efeitos da aglomeração e das crescentes assimetrias entre luxo e
miséria, o social também é um problema da população. Especialmente no capítulo
anterior, essa questão foi analisada no registro de uma possibilidade de gestão da
população, ou seja, como mecanismos difusos de ordenamento da vida coletiva por meio
da instituição e da educação em relação a valores. Meu argumento, no presente capítulo,
sofre um discreto deslocamento: antes de naturalizado em uma reflexão sobre as
condições morais da população, o social é fruto de uma invenção. Invenção pautada pela
estruturação material da modernidade capitalista (tendo em vista a ampliação de esferas
de socialização, a vida urbana, o problema da força de trabalho e, nos centros industriais
da época, as condições da moderna indústria), mas igualmente organizada a partir de
recortes morais disponíveis para a avaliação da vida. O social, portanto, é menos uma
instância sempre pressuposta (como se fosse unicamente um resultado imediato da
associação entre indivíduos) do que o reconhecimento dos aspectos problemáticos da
vida coletiva e seus déficits na modernidade. Não se trata apenas da experiência da
vertigem, mas da dissonância colocada diante do observador moral em relação ao
movimento da população e às condições de moralização (educação).
Por meio dessa noção de uma invenção do social na segunda metade do século
XIX, tento analisar a constituição desse campo precário, pois entrecortado por carências,
associado aos problemas de estruturação moral da sociedade e dos processos de educação.
Se o social é objeto de uma racionalidade própria, tanto a partir de propostas de
intervenção (e correção) quanto a partir de uma tematização como instância passível de
reparação,777 essa transformação perceptiva decorre de um movimento abrangente das
775 THOMSON, John; SMITH, Adolphe. Street life in London. Londres: Sampson Low, 1877. 776 GEORGE, Henry. Progress and poverty. 50. Ed. Nova York: Robert Schalkenbach Foundation, 1935.
p. 545. 777 DONZELOT, Jacques. L’invention du social. Paris: Seuil, 1994.
259
estruturas de organização moral da sociedade, bem como de núcleos de produção e
reprodução da vida. A esse respeito, dois argumentos podem ser sobrepostos: (1) os
núcleos de produção e reprodução social, fundamentados na família e na ética do trabalho,
oferecem pontos fundamentais para um trabalho simbólico capaz de mapear o espaço
social e suas coordenadas de organização dos valores;778 (2) as diversas percepções
dedicadas à elevação da pobreza e do desvalimento ao progresso moral e material (além
de muito presente na documentação brasileira de época, tema marcante na esteira de livros
de boa circulação como os de Joseph Garnier, Henry George e Ernest Watbled)
mobilizam a gramática moral instituindo nexos a partir de prescrições, expectativas e
transmissão de valores de socialização. No horizonte urbano, o social alimenta
imaginários da “cidade como vício”,779 encobrindo estigmas morais sob as aparências, as
abundâncias e as abjeções. Como mediação entre esses eixos, os processos de educação
podem ser situados como instrumentos de gestão do social.
A cisão de valores na avaliação das formas de vida e em sua exibição, oscilando
entre o luxo e o desvalimento nas cidades, evidenciava as crescentes assimetrias da vida
moderna.780 Por isso, o social também era um problema moral: em notas coligidas desde
o fim dos anos 1860, Mill reconhecia que, junto aos physical and moral sufferings da
pobreza urbana, a miséria material e a danação (wretched) da população reduziam as
condições morais da vida civilizada a aspectos piores do que as “tribos de selvagens”.781
As marcas involutivas, então, direcionavam a avaliação do social a um critério de falta
moral. Em texto de 1874, o mesmo Mill ampliava as considerações indicando que a forma
“mais visível e uma das mais radicais distinções morais entre seres humanos e os animais
inferiores” era a higiene (cleanliness).782 Distinção, sobretudo, civilizacional, separando
o exclusivismo do humano e seu auto-domínio moral das formas de exibição que “tornam
os homens bestiais” e expõem suas worst forms. Se os civilized and cultivated human
beings portavam o “triunfo sobre o instinto” como iluminações da civilidade moderna, o
sinal da pobreza e do desamparo era interpretado, a partir do mesmo registro, em imagem
invertida. Assim, a narrativa de abjeções condicionava as estruturas problemáticas do
778 LENOIR, Rémi. Généalogie de la morale familiale. Paris: Seuil, 2003. 779 SCHORSKE, Carl. A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. In: SCHORSKE,
Carl. Pensando com a história. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 780 TOLSTOI, Liev. Que devons-nous faire? (1884-1885). In: TOLSTOI, Liev. Oeuvres complètes. Trad.
J. Bienstock. Paris: Stock, 1903. p. 20-23, p. 219-220, p. 259-262. (Vol. 26) 781 MILL, John Stuart. Chapters on socialism. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 381-384. 782 MILL, John Stuart. Three essays on religion. In: MILL, John Stuart. Essays on ethics, religion and
society. Toronto: University of Toronto Press, 1969. p. 394.
260
social a uma visibilidade dos processos de educação como distinção, ou seja, uma lógica
social de aspiração a condutas e de abjeção a retrocessos.
Esse era um dos principais efeitos morais do fenômeno de concentração da
população. A exposição dos contrastes sociais na cidade moderna formava um quadro de
referências morais em que, nas palavras de uma publicação de Brasilio dos Santos e C.
Barata (professores da Faculdade de Direito de São Paulo e da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro), indivíduos são abandonados “aos azares da miseria”. Percorrendo as ruas
das principais cidades, afirmavam os autores, “veremos immediatamente junto da
habitação da Riqueza e da Felicidade, acima e abaixo d’ellas, occultarem-se os covis do
Vicio e da Miseria”, ou seja, um “contraste cruel e afflictivo que apresentam as sociedades
modernas, e que tanto mais se accentúa quanto mais crescem e se accumulam riquezas
das nações”.783 Os “mais salutares principios de moral”, afinal, estavam em questão diante
das condições de desvalimento da vida moderna.
O difuso pessimismo e as depauperações contrastantes no mundo da vida eram
registros da carreira vertigionosa da experiência moderna como vulnerabilidade a
oscilações abruptas. Nesse sentido, a imagem do indivíduo moderno como o Prometheus
vinctus de James Sully, o pessimismo humanista de um Burckhardt e as formas de
degeneração social que povoam as narrativas de Stephen Crane e Frank Norris sublinham
pontos sintomáticos do problema. Autor de uma das primeiras tentativas de Kulturkritik
relacionadas à exaustão e à degradação dos meios de vida,784 Émile Caro sugeria que a
atmosfera de esgotamento (épuisement) do período era uma espécie de attitude tragique
da cultura moderna diante da consciência histórica do oitocentos em relação à “bancarrota
das grandes esperanças intelectuais” (herdeiras do racionalismo do século XVIII e das
revoluções modernas), ao colapso (écroulement) das “ambições extravagantes” e à erosão
dos contextos tradicionais sob os impactos da modernização capitalista. Essas percepções
também podem ser mapeadas junto às avaliações morais dos meios de circulação e dos
comportamentos degenerados da cidade moderna.
Justamente como processos de educação, aliás, as condições do desvalimento
expunham o problema moral dos futuros cidadãos. Em uma espécie de compte rendu
expandido da antropologia criminal do fim de século (obra significativamente lida e
difundida no Brasil), Émile Laurent analisava as teorias de Drill, Raux, Ferri e Lombroso,
783 Introducção. Política para o Povo, Rio de Janeiro, mar. 1891. 784 CARO, Émile. Le pessimisme au XIXe siècle: Leopardi, Schopenhauer et Hartmann. Paris: Hachette,
1879.
261
indicando que o problema da educação da infância desvalida das cidades implicava
considerar “os vícios como doenças”, uma vez que “se desenvolvem com rapidez e só
desaparecem lentamente”:785 assim, o “gosto pela vagabundagem e os prazeres
grosseiros” só seriam corrigidos à luz dos processos de educação, entendidos como a
produção do bem-estar (bien-être) por meio do cuidado (soins), da disciplina e da
moralização do meio social contra as “anomalias morais”.786 Para “tornar o homem
senhor de suas paixões”, assevera Laurent, “é preciso desenvolver os centros intelectuais
e a força de vontade”,787 de modo que a educação da vida urbana, ao lado dos mecanismos
de vigilância e de disciplina, implicava atenção à formação do “indivíduo moral”. Se o
problema da população é perceptível no entendimento da infância como a gênese dos
futuros cidadãos, os esforçor de racionalização do campo da moralidade e da própria vida
urbana ecoam as formas problemáticas expostas pela questão social do desvalimento.
Em uma fala no Senado, Lopes Trovão criticava o alcoolismo e o teatro (“nas
cidades mais populosas do nosso paiz, um agente de depravação dos costumes publicos”)
a partir das “multiplas manifestações da vida colectiva” e de suas condições de
moralidade.788 Tendo em vista a gestão da população, o senador acreditava que “somos
um povo ja entrado no derradeiro periodo de dissolução”, na medida em que a exposição
do campo moral à proliferação dos vícios da moderna vida urbana comprometia o decoro
e a probidade das condutas, ou seja, o campo da moralidade e de seus valores estruturados
como “cimento das sociedades civilisadas”. Se “somos uma nação nova” já lançada
“francamente nas graves agitações fecundas da vida moderna”, as “incadescencias das
paixões odientas” e os “desregramentos” das ações reprováveis comprometiam os
esforços, em relação à educação dos futuros cidadãos, de “formar em cada um delles o
homem e no homem o cidadão”.789 O desamparo, portanto, não é apenas a condição
material de pobreza: como problema social, implica um choque aos valores da higiene e
aos conteúdos morais das condutas educadas, de modo que “neste meio, peçonhento para
o corpo e a alma, que boa parte da nossa infancia vive ás soltas, em liberdade
incondicional, no abandono, imbuindo-se de todos os desrespeitos, saturando-se de todos
os vicios, apparelhando-se para todos os crimes”.790 Nesse sentido,
785 LAURENT, Émile. L’anthropologie criminelle et les nouvelles théories du crime. Paris: Société
d’Éditions Scientifiques, 1891. 786 LAURENT, 1891, op. cit., p. 110-112. 787 LAURENT, 1891, op. cit., p. 114. 788 TROVÃO, José Lopes da Silva. Sessão de 11 de setembro de 1896. In: Appendice dos Annaes do
Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897. 789 TROVÃO, 1897, op. cit., p. 312. 790 TROVÃO, 1897, op. cit., p. 313.
262
Os máos exemploes que a criança apende no convivio da multidão anonyma são germens desmoralisadores que, trabalhando hoje como motivo passageiro de perturbação, actuarao amanha como causa permanence de dissoluçao na familia [...] Na crise psychologica que conturba o mundo e em cuja confusão luctam ameaçados do inevitavel eversão os dogmas religiosos que pareciam eternos, os preceitos de moral que pareciam infalliveis, os principios philosophicos que pareciam absolutos, é na infancia que andam fundadas as certezas da salvação [...] Temos uma patria a reconstituir, uma nação a formar, um povo a fazer.791
O campo perceptivo da cidade dissolvia os quadros da moralidade diante de “uma
população que, como a nossa, moureja amontoada em ruas – verdadeiras viellas, fechadas
á livre circulação do ar pelas tortuosidades do traçado e pelas suas estreitezas”. Afinal,
além das “immundices atiradas ás calçadas”, o desregramento da vida moral e de seus
suportes materiais na cidade moderna alimentavam abjeções e uma “acção irritante que
exerce sobre os orgãos externos da visão e sobre as vias respiratórias”.792 Se “a liberdade
degenerou na licença que por ahi campeia exagerada nas fórmas mais grosseiras de
anarchia” e “o senso commum e o senso moral arrastam-se as tontas”, a aposta dos
processos de educação na moralização da infância era central diante dessa sensibilidade
moral do social e de seu desvalimento. O social desafiava os regimes perceptivos da vida
moderna escancarando, na exibição dos comportamentos, o potencial corrosivo da
modernização e do “meio social” em contato com a estruturação moral da sociedade.
Preocupado em constituir “espiritos bem formados” que não se deixam “arrastar
á pratica desses tristissimos factos” decorrentes dos vícios e do crime, Clovis Bevilacqua,
então lente catedrático da Faculdade de Direito do Recife, temia as irrupções da “bruteza
da animalidade, donde a cultura nos pretende distanciar, mas onde nos arrastamos e nos
debatemos”.793 Como perspectiva de intervenção sobre os déficits do social, o
“desequilibrio dos costumes” – “como essas plantas aquaticas, cujas raizes se prendem
ao sólo lamacento, á vasa pelos pantanos” – implicava “perturbação mais ou menos grave
produzida na ordem social” na medida em que “regular funccionamento da mechanica
social” era desafiado a partir de suas estruturas morais de coesão. Assim, o equilíbrio das
791 TROVÃO, 1897, op. cit., p. 316-317. 792 TROVÃO, 1897, op. cit., p. 319. 793 BEVILACQUA, Clovis. Criminologia e direito. Bahia: Livraria Magalhães, 1896.
263
“condições existenciaes la sociedade” está intimamente relacionado à moralização da
vida coletiva a partir da reconstrução do humano e de seus valores fundamentais, pois
Este terreno, que é o homem, ou existirá convenientemente affeiçoado pela natureza, quero dizer, por condições physiologicas especiaes, ou será preparado por circumstancias diversas como sejam, o meio social, cujo nivel moral decresce, cujos meios de repressão se affrouxam, a educação descurada que não tracta de cultivar o caracter as inclinações bôas, as crises economicas e politicas, a falta de adaptação ao meio social, a miseria invencivel dos que não pódem luctar vantajosamente pela vida, o alcoolismo, o contacto com malfeitores, cujos successos despertam desejos de imital-os e cujos actos de fera bravura suscitam enthusiasmos.794
A projeção de valores e prescrições estruturais das condutas junto às condições de
degradação moral do meio de circulação posiciona a elaboração da consciência como
respostas morais aos estímulos da vida social a partir da ideia de responsabilidade. Nesse
sentido,
A responsabilidade é um dos modos pelos quaes a moral e o direito corrigem, aperfeiçoam o homem, sob o poncto de vista da finalidade social, ou, melhor, é um dos poderosos elementos pelos quaes essas disciplinas, norteiam, orientam a mente humana para os destinos da sociedade, para suas condições de vida e desenvolvimento. A moral e o direito, favorecendo certos actos, impedindo ou difficultando certos outros, cream, pouco a pouco, uma inclinação para a actividade humana, que se vae sempre affirmando, desde a infancia, por meio da educação domestica e escholar, até a virilidade, por meio das penas juridivas e dos diversos freios da moral. Organisa-se, então, o senso moral e juridico que fornece estimullos de acção e juizos para a conducta de cada um. Si esses estimulos são fortes e esses juizos seguros, a actividade individual se desdobrará de harmonia com o desenvolvimento da vida social; si taes estimulos, ao contrario, forem fracos ou nullos e os juizos forem incertos ou falsos, já essa concordancia não poderá perdurar.795
Por meio da responsabilidade e do caráter, o campo moral prescrevia que “esses
estimulos afinal constituem o dever, sulco profundo onde a vontade individual se
canalisa”. As preocupações com a estrutura do caráter, não à toa, tomavam páginas de
importantes livros escolares de leitura no período. Autor de vasta produção sobre o
794 BEVILACQUA, 1896, op. cit., p. 55. 795 BEVILACQUA, 1896, op. cit., p. 45.
264
governo da vontade, a economia doméstica e o caráter, Samuel Smiles acreditava que “a
esphera do dever é infinita”, de modo que, “para cumprirmos neste mundo o nosso dever
para com Deus e para com os homens, firme e consistentemente, é necessario cultivar as
faculdades que Deus nos deu”, tendo em vista “a consciencia do bem e do mal, a
consciencia do que é puro e do que é torpe”.796 Se “depende unicamente de nós ser digno
ou indigno”, “nossa vida publica pode ser bem conhecida, mas em particular existe aquillo
que ninguem vê: a vida intima da alma”:797 as condições de representação das condutas
eram vinculadas aos critérios morais da consciência, de modo que a degradação moral do
meio e as abjeções do inumano, contrastando com a regularidade da “dignidade
individual” e do “merecimento do homem”,798 eram distintivos sociais importantes das
ameaças ao mundo moral, uma vez que s “abysmos de miserias” a que estavam sujeitos
os desvalidos e a pobreza urbana.
A ética do trabalho, contrastada com a ociosidade e a indolência dos desocupados
que começavam a despontar nas grandes cidades, escancarava as fraturas na gestão do
social. Afinal, “passar a vida no ocio, em um estado de entorpecimento moral, é cousa
degradante”, pois “o trabalho digno é o verdadeiro educador. A indolencia desmoralisa
completamente o corpo, a alma e a consciencia. Nove decimos dos vicios e das miserias
da humanidade nascem da indolencia. Sem trabalho não póde haver progresso activo no
bem-estar humano”.799 Se “estamos quotidianamente expostos a mil tentações, quer do
ocio, quer do gozo ou do vicio”, os “mais caros interesses sociaes” exigem a intervenção
moral sobre o social a partir da disciplina do caráter e do exclusivismo do humano na
expansão e racionalização das atividades produtivas da virtude. Retomando nessa chave
o ímpeto moderno, Smiles ensinava que
O homem é um milagre de engenho porque foi um milagre de trabalho. A força póde conquistar as circumstancias. O principio da acção é demasiado poderoso para que qualquer circumstancia lhe resista. Abre caminho e eleva-se acima de todas as considerações, acima da ventura ou da desgraça, acima do bem e do mal. A sabedoria do homem revela-se nas suas acções, pois que todo o homem é filho de suas obras.800
796 SMILES, Samuel. O dever. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1884. 797 SMILES, 1884, op. cit., p. 4. 798 SMILES, 1884, op. cit., p. 400. 799 SMILES, 1884, op. cit., p. 31. 800 SMILES, 1884, op. cit., p. 38.
265
A “vida activa na sociedade” implica, como critério subjacente à ação e à
expansão das iluminações modernas, a elaboração da consciência. Com as lições de
Smiles, a posição do observador moral da vida moderna torna a responsabilidade moral
das ações indissociável das posições da consciência. Assim, os valores de regularidade
da socialização implicados nos processos de educação (lealdade, honestidade, religião,
decoro, ordem, trabalho etc.) sustentam que “a consciencia é aquella faculdade da alma
que póde ser chamada – o instincto religioso”.801 Se “nossas acções podem ser refreadas”
e “não somos escravos de nossos habitos e tentações, mas sim senhores delles”, “a luta
de uma natureza mais pura contra o instincto vicioso” sublinha, paralelamente ao
humanismo burguês do século (conferindo “ao homem o dominio sobre si mesmo”), a
consciência e a responsabilidade moral como “a propria essencia do caracter individual”.
Especialmente junto ao dinamismo das “cidades commerciaes” do século XIX, se os
indivíduos “admiram-se do luxo desmedido” e estão expostos aà diversificação de ritmos
do mundo da vida, “o que o século precisa é que o homem se torne capaz de satisfazer
todo o desejo justo”.802
Em capítulo anterior, essa posição do observador foi abordada no registro de
contatos perceptivos construídos junto às novas condições da infraestrutura urbana e seus
sentidos.803 Aqui, convém enfatizar que essa relação com valores subjacente ao campo
perceptivo dialogava diretamente com o problema do social. Nesse sentido, José
Francisco Rocha advertia sobre os “vicios degradantes” e sua exposição na vida moderna,
sobretudo, a partir do mimetismo e das influências do meio degradado sobre a formação
de conduas: afinal, “si os meninos crescem com costumes maus, com inclinações e
tendencias adversas ás qualidade que deve possuir o individuo que quer ser
verdadeiramente social”, a estruturação dos parâmetros de socialização é danificada.
Afinal, “si o menino adquire tendencias para o bem e sociabilidade, só deve á seus
educadores ou pessoas com quem convive, bem como, si adquire idéas estravagantes e
contrarias á sociabilidade, tambem so deve ás pessoas com quem convive”. Como
processos de educação, prosseguia o autor,
Ninguem desconhece a difficuldade que ha em extirpar costumes inveterados, ainda mais com respeito ás creanças que machinalmente recebem as impressões dos actos exteriores, sem consciencia do que
801 SMILES, 1884, op. cit., p. 7-8. 802 SMILES, 1884, op. cit., p. 68. 803 Cf. Capítulo 1.
266
sejam. E ha tanta difficuldade em apagarem-se essas impressões, como facilidade em formarem-se. Na memoria do homem, que ja tem a luz do discernimento, que ja raciocina, as impressões podem ser e são realmente expontaneas; e assim pode elle escolher aquellas que contiverem moral, que tenderem para o bem, e repellir e desprezar as que se afastarem da razão e que não respeitarem a sociedade.804
Como problema social, a higiene da população e os espaços degradados da cidade
adicionavam outro ponto à questão: a desarticulação do núcleo moral da família. As
técnicas de normalização da vida moral na regularidade da família,805 portanto, eram
desafiadas pela exposição da rua. Se “immenso é na verdade o numero de creanças” que
transitavam e viviam “nos immundos ‘charcos’, chamados impropriamente estalagens”,
“é deploravel o seu estado, principalmente ao lembrar-nos que alguns paes
completamente entregues ao afanoso trabalho diario para se manterem com mediocre pão,
não podem cuidar dellas convenientemente, ou deixão de fazel-o por desmazelo e ainda
mais por ignorancia”.806 Em meio às mudanças na composição da população e de sua
mão-de-obra, diante da multidão de “estrangeiros que, em logar de elevarem nosso paiz
por meio do trabalho honesto, ao contrario, abatem-se”, a preocupação formativa com os
futuros cidadãos era direcionada “a essas creancinhas que se acham pela maior parte
cercadas do vicio e devassidão”. Não à toa, no fim de século, a presença de instituições
direcionadas à assistência e à disciplinarização da pobreza urbana indicava condições de
incorporação dessa vasta gramática moral junto à paisagem institucional por meio de
intervenções preventivas e corretivas alicerçadas em discursos morais sobre a
degeneração da sociedade.807
Preocupado com a institucionalização da pobreza urbana e com a situação dos
órfãos e da infância que errava pelas ruas das cidades oitocentistas, o professor Manoel
Frazão considerava que a educação moral implicava um “equilibrio muscular e cerebral”
que “previne uma multidão de faltas, de quedas moraes”, contendo a superexcitação dos
estímulos da vida moderna. Admirador de meios disciplinares, o professor Frazão
questionava espaços “onde nao ha ideia de obediencia, nem de inferioridade; onde os
meninos de má indole encontram na impunidade, grande incentivo para desmandos”,
apregoando a necessidade de uma “cultura do sentimento religioso” e da “noção clara da
804 ROCHA, José Francisco. Duas palavras sobre a instrucção publica (IV). A Escola, Rio de Janeiro, 1878. 805 FOUCAULT, Michel. Abnormal . Trad. Graham Burchell. Nova York: Verso, 2003. p. 249. 806 SENIOR, Fabius. Ainda as escolas. O Echo Social, Rio de Janeiro, 6 abr. 1879. 807 SANTOLARIA, Félix. Marginación y educación. Barcelona: Ariel, 2000. p. 260-267.
267
necessidade da obediencia na sociedade”, tendo em vista “principios de ordem, sem os
quaes esses homens, hoje meninos, serão outros tantos flagellos da humanidade”.808
O professor Augusto Cony sintetizou o problema em uma série de artigos sobre
os asilos direcionados à gestão da pobreza e da população. Acreditando que “ha sempre
uma relação intima entre os systemas successivos de educação e o estado social com que
elles coexistem”, o autor acreditava que o ordenamento da cidade diante dos problemas
do desvalimento e das “creanças maltrapilhas” cabia igualmente aos chefes de polícia e
ao juiz de órfãos diante de “algumas centenas de meninos que vagavam pelas ruas e
praças, ganhando a vida como melhor ou mais commodo lhes parecia”.809 Mais do que a
pobreza material, o desvalimento implicava uma condição refratária em relação à
rotinização dos valores morais e à decência/higiene das condutas educadas, exibindo
“espiritos cercados das trevas da ignorancia”. Nesse sentido, “cumpre cuidar não sómente
do corpo da creança como do seu espirito, coração e alma”, possibilitando que “a
educação moral penetre no seio da familia”. Se “a instrucção moral e religiosa deve ser a
base de todas as outras” para os “abandonados a si mesmos pelas ruas e praças ou
patinhando sobre a lama dos cortiços”, Cony acreditava que
É missão grave e sagrada o collocar as bases da educação, pois em pouco tempo o menino será o homem virtuoso ou perverso que assegurará a paz e felicidade dos que o cercam, ou trabalhará para a sua perda; e ao implantar em sua alma as primeiras idéas, as primeiras noções das cousas e dos conhecimentos humanos, cumpre ter presente que a instrucção, desde este momento, deve reagir sobre toda a sua vida e fazer sentir sua influencia até seus ultimos dias [...], combater antes de tudo no menino o egoismo e o orgulho (o sentimento pessoal, o eu, apparece desde o berço), pol-o de sobre aviso contra a sua propria fraqueza e inclinações viciosos do seu ser natural, despertar e justificar nelle a consciencia, acostumando-o a ouvir a sua voz, dar-lhe ao alcance da intelligencia idéas precisa e verdadeiras, cercal-o de paz e de pureza ao substituir ao movel pernivioso e tão frequentemente empregado do amor proprio, por motores mais seguros e poderosos.810
O autor estava preocupado com o “sentimento geral de philanthropia” e a “sorte
da população indigente” diante dos “perigos infinitos e os accidentes de toda a especie a
808 FRAZÃO, Manoel José Pereira. O ensino publico primario na Italia, Suissa, Suecia, Belgica,
Inglaterra e França. Rio de Janeiro: Typ. da Gazeta de Noticias, 1893. p. 255-256. 809 CONY, Augusto. Asylos infantis (I). A Escola, Rio de Janeiro, 1878. 810 CONY, Augusto. Asylos infantis (III). A Escola, Rio de Janeiro, 1878.
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que estão expostos os meninos entregues a si mesmos”.811 A exposição aos perigos da
cidade implicava desde riscos práticos do transeunte, como pisar “às patas de um cavallo”
ou ser atingido “sob as rodas de um carro ou de um bond”, até problemas morais da
circulação, ou seja, temas referentes à formação dos “cidadãos futuros de quem carece a
nação para seu proprio engrandecimento”. Se a cidade moderna era a “escola de
corrupção” por onde eram expostos “homens embrutecidos pela miseria ou pela
ignorancia”, além de toda sorte de “vicios, prejuizos e máos habitos”, os “sentimentos de
moral e de virtude” exigiam o cultivo de “faculdades intellectuaes que por falta de
exercicio ficam inertes no homem”. Para Cony, “a moral é ella educada para ordem,
obediencia, attenção e benevolencia, iniciada nas verdades da religião e nos principios da
virtude”, permitindo ao indivíduo “conhecer a sua propria natureza e seus deveres”, de
modo que “aperfeiçoamento moral, desenvolvimento intellectual, hygiene publica,
melhoramento dos individuos, melhoamento da raça, tudo dá no mesmo, tudo designa as
faculdades, tornando-se instrumentos mais perfeitos para corresponder ao destino do
homem sobre a terra”.
A “mobilidade e caracter da infancia”, portanto, urgiam uma intervenção moral
sobre os “pequenos infelizes errantes” tendo em vista “os indigentes de amanhã”.
Desvalimento, indigência e educação estavam integrados na moralidade da vida urbana
fraturada pelo problema do social. Francisco Aurélio de Souza Carvalho, escrevendo a
partir da inspetoria de instrução pública de São Paulo (cuja capital entrava em franco
processo de dinamização da vida urbana), reconhecia o batismo da educação moral e a
difusão das luzes como uma intervenção sobre a vida moral da população. Debatendo
com as teses de Tiberghien, Malinari, Hippeau, Considerant e Cousin, o autor afirmava
que o trabalho moral sobre a “intelligencia infantil” deveria escovar a contrapelo do
abatimento da vida moral que “deixa atrophiar-se pouco a pouco em vergonhosa
ignorancia”, de modo que
O menino, homem futuro, nascendo, traz seus direitos aos beneficios da vida social. Comsigo mesmo tem o germen de tudo que a geração vindoura verá desabrochar de util, de honesto e de grande. Este germen, fecundado em tempo, póde tornar-se para a sociedade a origem de um progresso, de um melhoramento serio; pelo contrario, negligenciado, será causa de prejuizos á um tempo individuaes e sociaes [...] O que será dessa criança, cujos instinctos e necessidades materiaes cresceram sem moderação; sem o freio da menor cultura intellectual? O que será
811 CONY, Augusto. Asylos infantis (IV). A Escola, Rio de Janeiro, 1878.
269
dessa criança? Perguntamos ás estatisticas dos tribunaes, das prisões e das galés.812
A associação entre desvalimento, erosão das estruturas de integração moral e
crime era importante nessa discussão. Além dos estudos de economia política, um texto
muito difundido de Léon Faucher indicava que, para a instituição da vida comum da
população moderna, a sociedade conta com duas forces régulatrices: educação e trabalho.
Nesse sentido, a identidade entre educação do povo e educação moral da sociedade,
conformando condutas e valores de socialização capazes de rotinizar a regularidade das
aglomerações, enfatizava o papel da educação moral como uma espécie de mecanismos
preventivo em relação às condutas desviantes.813 Já no fim de século, o estudo de Ferreira
Deusdado, editor de periódicos e atuante no campo da instrução pública em Portugal,
apresentava fundamentos sociológicos e antropológicos para o campo problemático do
social à luz dos crimes e do desvalimento.814 O indivíduo é agente moral de seus atos,
então a correspondência entre intenções e “vida moral”, como uma genealogia das
inclinações sociais, tornava as consciências “victimas do desejo” e de seus
desregramentos. Além da “gente miserável”, dos “revoltados que no seu vicio encontram
sancção á ociosidade”, do “dandy jogador e falsário”, da “meretriz ladra dos beccos
enlameados”, essa “legião dos engeitados” conta com os riscos da “degeneração”, de
modo que a “legião escura de bandidos que acampa no seio das sociedades cultas” (que
“pode ser um ladrão ou um incendiario, ou um homem inclinado ao sangue”) “não é um
homem mas um monstro que vive em absoluta pobreza de senso moral”.815 As fronteiras
entre o desvalimento e a desumanização, em registro moral, eram tênues.
Se “o crime do homem póde começar na vagabundagem da criança”,816 o trabalho
sobre os futuros cidadãos era fundamental para os processos de educação da vida urbana.
A elaboração da consciência moral e a educação dos instintos, ao passo que supõem um
trabalho interno em relação aos valores (“a vida moral está, as mais das vezes, occulta
nos arcanos do mundo interno”),817 encontram nas manifestações externas o signo do
desvalimento. Decoro, asseio e modos expõem o “homem exterior e social” aos usos da
sociedade na medida em que espelham a regularidade do “desenvolvimento physico,
812 CARVALHO, Francisco Aurelio de Souza. Relatorio sobre o estado da instrucção publica na
província de São Paulo no anno de 1879. Santos: Typ. á Vapor do Diario de Santos, 1880. p. 10. 813 FAUCHER, Léon. De la réforme des prisons. Paris: Angé, 1838. 814 DEUSDADO, Ferreira. Estudos sobre criminalidade e educação. Lisboa: Lucas Torres, 1889. 815 DEUSDADO, 1889, op. cit., p. 17-21. 816 DEUSDADO, 1889, op. cit., p. 53. 817 DEUSDADO, 1889, op. cit., p. 73.
270
intellectual e moral”. Como parâmetro de socialização, o “sentimento religioso”
alicerçava a base da moral social na medida em que, além do abrandamento das condutas,
a estrutura de prescrições também direcionava “a continencia e a moderação nas
ambições” diante dos contrastes entre os vícios e os luxos da modernidade. A busca pelo
fundamento da “vida moral”, portanto, indicava que “é pela educação moral que os
individuos e as gerações se formam e constituem um typo social”:818 se “na humanidade
inculta as paixões são mais violentes e mais grosseiras”, a profilaxia social diante dos
vícios e desvios da vida urbana encontrava nos processos de educação (nos “effeitos da
acção educativa”) as balizas de elaboração da consciência moral diante dos “germens
maus ou instinctos anti-sociaes” expostos pela degradação.
A partir dos contrastes da vida urbana e da ampliação do campo de aspirações
diante das condições modernas de circulação (de pessoas, ideias e mercadorias), “a
instrucção por si só é uma arma perigosa”, pois, “como todos sabem, multiplica
necessidades e desejos, e senão for auxiliada pela religião e pela moral nunca poderá
arrancar as raizes do vicio, origem da pobreza”.819 Tendo em vista a gestão do social e
das formas de desvalimento,
Há muito que a experiencia de varias nações demonstrou que sem a base religiosa a instrucção não póde ser senão instrumento do crime, aguilhoa o orgulho e as paixões, porque não são os ignorantes, mas aquelles que receberam instrucção, que são os criminosos mais audazes e astuciosos. Se banirmos das escolas principios religiosos, e por conseguinte a moralidade, converteremos s homens em simples ossos de trabalho, em machinas, ou, com mais euphoria, em forças productivas. Ora, quando esses ossos de trabalho, etc, adquirirem mais instrucção, e aprenderem a despresar a religião e a moralidade, o que poderão contrapôr á exhortação communista [...] Os homens precisam de força intellectual moralisada para poderem apreciar e reivindicar a sua dignidade e liberdade indiviual, contra a absorpção tyrannica daquillo que se chama Estado, que nos quer reduzir a simples massas sem outros destinos a não ser o alimentar bachareis legisladores.
Dufau, membro de diversas organizações de caridade e assistência, redigiu um
influente estudo preocupado com o melhoramento moral e material dos desvalidos a partir
da formação de obras de assistência e caridade na vida urbana.820 Fundamental, para
818 DEUSDADO, 1889, op. cit., p. 124-125. 819 NEVILLE, M.; OLIVEIRA, Francisco Alves. Introducção. Revista do Ensino, Rio de Janeiro, 31 maio
1883. 820 DUFAU, Pierre-Armand. Essai sur la science de la misère sociale. Paris: Jules Renouard, 1858.
271
minha pesquisa, é o ângulo indicado pela abordagem do autor: como problema social, o
desvalimento e as assimetrias da vida moderna devem ser indicados na constituição
interna (entrailles) da sociedade, ou seja, o social e a disproportion extrême dos prazeres
(jouissance) e dos contrastes na modernidade capitalista. Nesse sentido, a degradação e o
afogamento moral na miséria (dénûment) eram sinais de uma vida precária (retomando o
vínculo entre a despossessão de recursos materiais e o estado de degradação moral).821
Além do perigo do bouleversement social,822 tendo em vista a volatilidade das estruturas
morais de integração e sua correspondência nas esferas da socialização, a intervenção
moral sobre a pobreza urbana contava também com uma rede de amparo institucional
para disciplinarização e educação a partir do critério de utilidade do cidadão, entrelaçando
a atividade produtiva ao regramento moral das condutas.823
Uma significativa experiência de instituições e percepções do social estava
constituída a partir dos processos de educação e moralização. Além de figuras como d.
Antonio de Macedo Costa (Brasil), Oberlin (França), Owen (Inglaterra), Aporti (Itália) e
Rivadavia (Argentina), novas formas de caridade, disciplinarização, assistência e
filantropia eram distintivos da gestão do social na cidade moderna.824 As reformatory
schools inglesas, as industrial feeding schools e a educação em navios (como o
Chischester e o Cornwall), por exemplo, supriam formas de atendimento e disciplina do
desvalimento urbano. Na Holanda, desde os anos 1820, atuava uma Sociedade para
Melhoria Moral dos Presos tendo em vista a socialização e a incômoda equação entre
educação e criminalidade. Na França, a Sociedade do Patrocínio dos Jovens do Seine e a
Colônia Agrícola de Mettray (criada pelo filantropo Demetz) desempenhavam funções
semelhantes a essas experiências que também eram difundidas por Hamburgo, Beernem
(fundada por Ducpetiaux) e mesmo na pequena Ruiselede na Bélgica. A associação entre
trabalho e educação moral era central no combate aos vícios, construindo discursos de
regeneração do espaço social e contando com uma rede significativa de agentes por meio
de práticas e discursos médicos, psicológicos, jurídicos, pedagógicos, intervenções
governamentais etc.825
821 DUFAU, 1858, op. cit., p. 45. 822 DUFAU, 1858, op. cit., p. 51. 823 DUFAU, 1858, op. cit., p. 123. 824 JONES, Gareth. Outcast London: a study in the relationship between classes in Victorian society. Nova
York: Verso, 2013. FUCHS, Rachel. Poor and pregnant in Paris: strategies for survival in the nineteenth century. New Brunswick: Rutgers University Press, 1992.
825 FONSECA, Sérgio César. Infância e disciplina: o Instituto Disciplinar de Tatuapé (1890-1927). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2007.
272
A articulação de instituições asilares e disciplinares na gestão da população e do
social, aliás, era até bastante saliente na paisagem institucional do período. Um difundido
estudo de Louis Moreau-Christophe sobre as condições morais da população em diversas
regiões da Europa (França, Suíça, Inglaterra, Bélgica etc.), preocupado com os fluxos
(flot) da miséria e as condições sociais que favoreciam sua reprodução, assinalava a
possibilidade de deterioração do caráter e abatimento da atividade social como
consequências morais da pobreza.826 Se a criminalidade acompanha a marcha ascendente
da miséria e a desmoralização das massas,827 afirmava o autor, la misère morale et la
misère physique marchent donc de pair.828 Além de uma reorientação da caridade e das
perspectivas de intervenção, trabalho, educação moral e assistência (a partir de
instituições preventivas e corretivas) eram redes de bem-estar (bien-être) moral e social
capazes de traduzir os valores da moralidade em práticas de institucionalização.
No Brasil, embora as instituições não tivessem a capilaridade de uma unificação
nacional quanto à política e à abrangência (processo mais evidente a partir dos anos 1940,
quando a atuação da Legião Brasileira da Assistência foi organizada, com envergadura
de política nacional, no contexto da modernização conservadora varguista),829 a expansão
do campo da caridade e das diversas formas de assistência e disciplinarização no século
XX ocorreu sobre uma configuração já ativa desde os anos 1850 e 1860 (construída a
partir do sistema de referências morais investigado nesta pesquisa e materializada na
incorporação institucional dessa ampla gramática moral vinculada às condições de
socialização).830 Um artigo de Joaquim Azevedo, por exemplo, realçava a caridade como
uma das “melhores ideas do nosso seculo”: exclusivismo moral da consciência moderna
capaz de reconhecer que “ainda mesmo nos povos acclimatados á doutrina da descrença,
de idéas oppostas que mais tarde são suffocadas pelas massas populares da religião e da
propria realidade, onde quasi sempre existe o desejo de mostrar destas idéas perturbaveis
o quanto vale a caridade”.831 Além dos principais centros (Rio de Janeiro, São Paulo,
826 MOREAU-CHRISTOPHE, Louis. Du problème de la misère et de sa solution chez les peuples
anciens et modernes. Paris: Guillaumin et Cie., 1851. (Vol. 3) 827 MOREAU-CHRISTOPHE, 1851, op. cit., p. 170. 828 MOREAU-CHRISTOPHE, 1851, op. cit., p. 226. 829 FONSECA, Sérgio César; ALMEIDA, Elmir. A Legião Brasileira de Assistência em São Paulo e a
interiorização de políticas para a infância. História da Educação, Santa Maria, v. 20, n. 49, 2016. 830 Registro minha dívida com Sérgio C. Fonseca, referência fundamental para o entendimento do campo
da assistência nos séculos XIX e XX, e com os debates desenvolvidos em torno de nossas pesquisas pela equipe interdisciplinar do Centro de Investigações sobre o Desenvolvimento Humano da USP, em fevereiro de 2018, uma vez que as questões apresentadas na ocasião, em alguma medida, foram incorporadas aqui.
831 AZEVEDO, Joaquim. Caridade. O Espectador, Rio de Janeiro, 21 ago. 1882.
273
Salvador, Recife e Porto Alegre), é possível notar a presença dessas instituições em
cidades como Campinas, Itu e Pelotas, articulando os primeiros horizontes de
interiorização razoavelmente associados a uma dinâmica internacional por meio de sedes
e responsáveis provenientes ou situados no exterior (França, Itália, Austria-Hungria etc.).
Asilos, santas casas, casas de expostos, orfanatos, colônias orfanológicas (onde “o
trabalho não é considerado como pena; é somente um meio moralisador”),832
recolhimentos e institutos disciplinares, portanto, constituíam núcleos importantes da
difusão do campo da assistência no Brasil,833 com destaque para o Asilo dos Meninos
Desvalidos (Rio de Janeiro), a Colônia Christina (Ceará), a Colônia Isabel (Pernambuco),
a Casa dos Educandos Artífices (Maranhão), o Instituto Paraense de Educandos e
Artífices (Pará), o Instituto D. Ana Rosa (São Paulo), o Instituto de Educandos Artífices
(São Paulo), o Asilo Nossa Senhora do Bom Conselho (Alagoas) e a Associação
Promotora da Instrução (obra fundada por Manoel Francisco Correia, no Rio de Janeiro,
dedicada à infância desvalida).
Se o campo era permeado pela variedade no amparo institucional, a divisão
funcional das tarefas, o acúmulo de experiência, a ética do trabalho (profundamente
vinculada às condições de proletarização nas cidades e a um saber fazer prático) e a
moralização das condutas eram suportes de atuação e intervenção na dinâmica
problemática do social, em instituições mais ou menos perenes lidando sobretudo com
recolhimento e educação de menores detidos pela polícia nas ruas e desvalidos, a partir
da disciplina e da prevenção em relação à degeneração e aos vícios da vida urbana.834
Nesse sentido, é importante mencionar o circuito transnacional de discussões e circulação
de ideias. A vasta documentação do Congresso Internacional de Proteção da Infância,835
realizado em Paris em 1883, oferece um conjunto importante de discussões a respeito.
Seguindo a atmosfera cosmopolita da época, o evento contou com a colaboração de
diversos países (Estados Unidos, França, Suíça, Bélgica, Alemanha, Áustria-Hungria,
Holanda, Espanha, Rússia, Portugal, Grécia, Colômbia, Chile, Uruguai, Brasil, Peru,
832 Colonias agricolas orphanologicas. Pharol, Rio de Janeiro, 8 mar. 1883. 833 FONSECA, Sérgio César; NARITA, Felipe Ziotti. A variedade institucional como tema para o estudo
da história da assistência à infância na cidade de São Paulo no século XIX. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, São Leopoldo, v. 9, n. 18, 2017.
834 ARAÚJO, Carlos Eduardo; CORD, Marcelo Mac. Nesse grande rebanho de tantas ovelhas más. In: CORD, Marcelo Mac; ARAÚJO, Carlos Eduardo; GOMES, Flavio dos Santos. Rascunhos cativos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017. RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia imperial. 430 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
835 BONJEAN, Maurice (Org.). Congrès International de la Protection de l’Enfance. Paris: Durant et Pedone-Lauriel, 1885. (Vol. 1)
274
Argentina, México e Dinamarca) e assumiu como premissa um entendimento da “questão
social” como possibilidade de melhoramento da “condição moral, intelectual e física da
humanidade junto àqueles que podem ser considerados como os menos favorecidos pela
sorte”. Os mecanismos de assistência variavam ad infinitum, “tal como as próprias
misérias da humanidade”.836 Com apoio dos fundos públicos ou provenientes de
associações privadas ou bem-feitores da sociedade civil, redes funcionalmente
diversificadas são articuladas aos chamados modes d’assistance dedicados a combater o
pauperismo e a moralizar a população, contando com “casas de indigentes” (um caso
muito mencionado é o de Nova York), associações para promoção da saúde e higiene,
creches (Manchester, Liverpool, Glasgow, Milão, Porto, Amsterdam, São Petersburgo
etc.), escolas marítimas e instituições asilares (muito comuns nas grandes cidades
brasileiras).
Conforme o relatório de conclusão da assembleia geral do congresso, se o
“progresso social” dependia do “melhoramento moral e material das classes sofredoras”,
de modo que, “apesar das diferenças de costumes e climas, as misérias humanas são em
todos os lugares as mesmas”.837 As instituições disciplinares eram interpretadas como
sinais do progresso do século na medida em que a gestão da pobreza “junto às maravilhas
do gênio moderno” relacionava a percepção das “aglomerações urbanas” a espaços
problemáticos da circulação. Assim, a “miséria material e moral” constituía o meio
propício para a degeneração dos valores de socialização junto ao abandono
(délaissement), à vagabundagem, à mendicância, aos vícios e às demais expressões de
abjeção vinculadas aos espaços e às formas degradadas da “luta pela existência” na cidade
moderna.838 Mais do que redes de assistência e amparo, as fraturas problemáticas do
social evidenciavam problemas de préservation sociale em seu ordenamento moral.
O aprendizado de trabalhos manuais e dos ofícios mecânicos combatia a
ociosidade e os vícios da vida urbana por meio da intervenção sobre o social e as
atividades da população. Bases da “educação moderna do homem”,839 a coordenação
moral do processo de trabalho era marca da institucionalização do campo da assistência
e da reiteração das estruturas de classe diante da divisão social do trabalho e da
regeneração da população nas aglomerações. Assim, se “é legitimo e necessario o
836 BONJEAN, 1885, op. cit., p. 50. 837 BONJEAN, 1885, op. cit., p. 75. 838 BONJEAN, 1885, op. cit., p. 76. 839 VASCONCELLOS, Joaquim. O ensino primario e o aprendizado nos officios. Revista do Ensino, Rio
de Janeiro, 30 abr. 1883.
275
aperfeiçoamento que em nosso seculo recebe a educaçao”, “ella deve naturamente soffer
o influxo dos progressos que o seculo tem effectuado algures”, de modo que “ella tem
que prover ás novas condições por estes mesmos progressos trazidas á existencia, para a
qual é a educação que tem de preparar o homem”.840 O próprio modelo dos liceus de artes
e ofícios, presente em alguns núcleos urbanos brasileiros no período, contribuía “para a
moralidade, o progresso e a civilisação do paiz” alimentando “o adiantamento intellectual
e moral do povo”.841 No Pará, o governador Lauro Sodré entendia as atividades da
Sociedade Propagadora do Ensino como uma tentativa de “concorrer para o bem das
classes desprotegidas”, de modo que o modelo de liceu de artes e ofícios foi
[...] creado especialmente para dar á classe operaria o ensino theorico e pratico, o que constitue um esforço para a solução do problema que no presente occupa a attenção do velho mundo europeu, e terá forçosamente de antolhar-se-nos pelo futuro adiante, a encorporação do proletariado. Sei que entre nós, povo de indole e instituições democraticas, ha de ser menos acerba e menos renhida a capanha movida pelas pretenções irresistiveis do appellidado quarto estado, da grande massa dos trabalhadores, que ons paises regidos pelas monarchias, com as suas aristocracias seculares, com seus odiosos privilegios, luta pela conquista da igualdade dos direitos, pela repartição equitativa dos impostos, reclamando do Estado para o trabalho, os beneficios e a protecção dados ao capital. Por mais complicado e por mais urgente que seja esse problema, a sua racional solução não é do Estado nem da lei que ha de vir, em que pese aos socialistas de todos os matizes. Essa grande questão posta em ordem do dia desde o fim da edade media, só ha de ser resolvida pelos esforços feitos á sombra da liberdade e da paz. Só da illuminação ds espiritos, abrindo as consciencias aos conhecimentos dos deveres civicos, sairá a pacificação das classes sociaes, a harmonia entre o capital e o trabalho.842
A gestão moral da população dependia de uma possibilidade de amortecimento do
conflito capital/trabalho. Tendo em vista as mediações morais do processo de trabalho,
José Veríssimo defendia obras de assistência e gestão do desvalimento a partir do ensino
de conteúdos (aritmética, álgebra, leitura, caligrafia, sistema métrico, gramática,
instrução moral e religiosa) vinculados às atividades de produção e reprodução da vida
840 BUARQUE, Cyridião. Notas da carteira de um educador. Revista do Ensino, Rio de Janeiro, 30 abr.
1883. 841 AZEVEDO, Moreira. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notaveis, usos e curiosidades.
Rio de Janeiro: Garnier, 1877. p. 94. (Vol. 2) 842 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo governador dr. Lauro Sodré ao congresso do estado do
Pará em sua segunda reunião em 1º de julho de 1892. Belém: Typ. do Diario Official, 1892.
276
material para a formação de marceneiros, torneiros, serralheiros, ferreiros, sapateiros,
curtidores, alfaite etc.843 A publicação de Veríssimo era apoiada pela Diretoria Geral da
Instrução Pública do Pará e enfatizava que “o desenvolvimento e progresso das artes
industriaes” dependia da “criação de artistas e operarios habeis, que como mestres,
contra-mestres e artifices lhes deem um impulso intelligente e uma direcçao consciente”.
Nesse sentido, “são em numero ja crescidissimo as crianças orphans ou moralmente
abandonadas”, de modo que as necessidades da civilização do século e a aspiração do
progresso ordeiro exigiam medidas para a correção dessas necessidades: “essas crianças
entregues a si mesmas, sem educação de nenhuma especie, cedo, contaminadas pelo vicio
do meio em que vivem, são uma ameaça para o futuro. As estatisticas estrangeiras provam
a não deixar duvida que é essa a fonte e esse o meio, d’onde saem os criminosos, os
vadios, os habituaes frequentadores das prisões”.844
Para o autor, “a formação progressiva e boa de todas as indoles”, dependendo da
infraestrutura organizada pelo campo da instrução pública, implicava uma ação “sobre a
moralidade, o sentimento do dever, a correcção de costumes e actos dos alumnos”.845
Conforme Veríssimo, o social era o campo de intervenção na medida em que suas
carências e seu déficit interno justificavam ações de correção moral a partir dos processos
de educação. Nesse sentido, Veríssimo destacava a
[...] verdade demonstrada pela Sociologia, que por mais activa e energica, é inefficaz a acção do governo, quando não encontra no meio social em que se exerce o indispensavel elemento da receptividade e da propagação. É perfeitamente exacto n’este caso o simile com o mundo physico: a athmosphera social, isto é, o conjuncto de vontades aptas a receberem e ao mesmo tempo provocarem a influição governamental, é tão indispensavel para que sejam realisaveis as acções e reacções sociaes como a athmosphera cosmica pe necessaria para o jogo das forças physicas.846
O campo problemático do social assinala uma espécie de consciência histórica e
uma contra-narrativa embutida nas iluminações da modernidade capitalista. Se a “época
será marcada em caracteres distinctos na historia da humanidade pelos cuidados e os
estudos dedicados ao homem pequeno”, a crescente concentração de “filhos de pobres
843 VERÍSSIMO, Jose. A instrucção publica no estado do Pará em 1890. Pará: Typ. de Tavares Cardoso,
1891. 844 VERÍSSIMO, 1891, op. cit., p. 152. 845 VERÍSSIMO, 1891, op. cit., p. 128. 846 VERÍSSIMO, 1891, op. cit., p. 5.
277
abandonados pelas ruas” implicava a gestão da população urbana a partir de redes
institucionais estruturadas por “asylos infantis, onde se recolhem as crianças
abandonadas, os filhos do pobre, offerecendo-lhes agasalho e alimento”.847 O “intuito da
caridade humana”, a partir dos “instinctos da criança” e das inovações educacionais
inspiradas em Froebel, articulava os critérios de educação moral à manutenção da higiene
e dos comportamentos públicos induzindo o futuro cidadão a aprender “a pouco e pouco
a ler no grande livro do Universo e a elevar-se, com o crescer dos annos, da Creação ao
Creador, de quem tudo vem e a quem tudo volta”.
Uma série de artigos de Costa Carvalho abordava o problema a partir da
possibilidade de intervenções moralizadoras contra as “paixões ruins” e a turba de
indivíduos “arraigados nos máos habitos, como a ociosidade, a vagabundagem e a
embriaguez”. Caminhando pela “senda perigosa” da vida moderna, a “obra regeneradora”
da moralização social e da atividade assistencial e disciplinar implicava a garantia da
“ordem social pelo duplo principio de sua instituição – educação moral e profissional”.848
Afinal, “se a sociedade quer precaver-se do homem, deve occupar-se do menino”, de
modo que, por meio do desvalimento moral (lido como um “vicio que deprava e desvia
do bem”) associado à pobreza e ao contato desregrado com a rua,
[...] implanta-se nessas indoles nascentes o germen do crime, e inocula-se nessas almas innoxias o veneno lethal da corrupção [...] Subtrahem-se á sociedade entes que, bem educados, lhe poderião ser uteis, para arremessa-los depois sobre ella escandalisada e espavorida – reprobos, pervertidos na escola do vicio e do crime [...] A infancia é a idade em que o coração apenas expandindo-se, aceita e grava impressões que perdurão e influem eternamente na vida do homem [...] É nessa idade que se deve inspirar os bons sentimentos, incutir o horror ao crime.
Em meio à desagregação do escravismo e à constituição do mercado de trabalho,
por meio da gestão moral da população, Costa Carvalho acreditava que, tendo em vista
as estruturas morais de integração da vida coletiva, “uma horda mais assustadora bate as
portas da nossa sociedade, que negligente e descuidada não se arreceia nem se lembrou
ainda de precaver-se do assalto: é esse exercito sahido das senzalas, com os vicios
consequentes de uma educação torpe, e com os odios implantados por seus pais”.849 O
847 Redacção. O Progresso Educador, Rio de Janeiro, 15 set. 1894. 848 CARVALHO, J. da Costa. Sobre a prevenção do crime nas crianças (I). A Mãi de Familia, Rio de
Janeiro, 1 maio. 1882. 849 CARVALHO, J. da Costa. Sobre a prevenção do crime nas crianças (IX). A Mãi de Familia, Rio de
Janeiro, 1 set. 1882.
278
medo da multidão de despossuídos, expondo as chagas da pesada herança escravista e um
temos difuso de abalos na tranquilidade pública em importantes centros como o Rio de
Janeiro (tendo em vista as políticas da “cidade negra” e as redes de relações sociais pelas
quais grupos negros se constituíam),850 condicionava os processos de educação a uma
correção moral das manifestações de degeneração do social. Aurelino Araújo Leal, por
exemplo, era defensor de “colonias correccionaes para que sejão salvos do crime centenas
de desgraçados” e entusiasta das atividades (ainda que efêmeras) do Instituto de Menores
Artesãos, dedicado a “menores presos pela policia por vadios, vagabundos e abandonados
e os de tão má indole que não podessem ser corrigidos por seus representantes legaes”. O
autor acreditava que, “lançando os olhos para a nossa sociedade, ficamos seriamente
consternados diante do modo porque vemos a desgraça junto a infancia abandonada que
se prepara na desolação e na miseria para o concurso do crime”.851 Se “a pessoa que hoje
sae de um theatro, de volta para a casa, encontra pelas ruas dezenas de desventurados, uns
ebrios, outros em desenfreada crapula, outros dormindo nos passeios, expostos aos rigores
das tempestades”,852 a multidão de desvalidos desafiava a percepção moral da vida
moderna e sua coesão, tendo em vista que
A sociedade é a grande officina cuja machina principal – a actividade do homem – deve ser aproveitada do melhor modo possivel. E como chegar-se a esse desideratum tão sublime, a essa culminancia tão aspirada, senão traçando-se as normas, que tendo por base a moral, estabeleçam o modus vivendi e o modus agendi do individuo, governante e governado, na commuhão social [...] D’ahi advem todo o desenvolvimento moral e material.
Para Leal, a formação dos futuros cidadãos diante da atmosfera dissolvente da
modernidade exigia que, “ao desenvolvimento das faculdades da creança, deve juntar-se,
relativamente, o desenvolvimento de uma boa educação, formando o seu caracter e
preparando o seu mundo psychico para os differentes fins da vida”.853 Se “importa
cultivar a intelligencia pelo caminho dos sentidos e do coração, pelo caminho da
intelligencia, como o faz de um modo admiravel o systema de Froebel”,854 “na creança
(collocamos sempre á parte os symptomas da perversidade innata, que Lombroso estudou,
850 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 851 LEAL, Aurelino Araujo. Germens do crime. Bahia: Livraria Magalhães, 1896. 852 LEAL, 1896, op. cit., p. 298. 853 LEAL, 1896, op. cit., p. 308. 854 LEAL, 1896, op. cit., p. 290.
279
ao lado de Peres e Moreau), no estado acutal da sociedade, o relaxamento principia
sempre pela probidade: abandonado, desvalido, morto a fome, o desgraçado furta o
primeiro relogio que lhe puder chegar ás mãos”.855 Nesse sentido, “o desvalido de hoje,
em geral, é um candidato ao crime, um praticante que está a desenvolver, de mãos dadas
com a adversidade, os seus sentimentos já pervertidos”, de modo que o estado de
emergência do social e seu campo de intervenção, como coordenadas dos processos de
educação, exigiam abrigar
[...] a creança em um tecto de moralidade; colloque-se-a em um ambiente puro e regenerador; castigue-se-a methodica e relativamente; pregue-se-lhe os principios da moral social; eduque-se-a nos principios do dever; prepare-se-a nas verdades da honra e, então, confiemos no futuro da Patria e na paz da sociedade, que não sera mais amiudadamente perturbada pelos faccinoras perversos, que tanto a assolam presentemente.856
A degeneração do social caminhava pari passu à problemática “influencia do
meio no caracter do individuo”, de modo que os ambientes degradados não eram apenas
ruínas materiais ou infraestruturas precarizadas, mas evidenciavam, sobretudo, o
potencial de disseminação da decadência moral sobre as condutas na cidade. Recortada
pelo campo da assistência e da caridade e pelos choques perceptivos das expressões
degeneradas em relação às condutas educadas, a paisagem da cidade é abordada sobre
contrastes antropológicos tematizados como tipos morais – esquemas com os quais o
meio físico era esquadrinhado. O governo das inclinações, detido sobre a contenção dos
germes do crime e dos atentados contra a “tranquilidade publica”, condicionava a genética
das condutas a uma avaliação das transformações abruptas do meio. A intervenção sobre
o futuro cidadão, então, implica
[...] fazel-o homem, isto é, tornal-o honrado (e não resta duvida que tal modo de conducta é um meio de preparar bem a indole da creança para a vida) [...] Ora, é sabido que o cerebro da creança registra tudo com facilidade, e a observação geral dos factos nos demonstra até que as acções perversas, que as qualidades perniciosas se desenvolvem e são acceitas com mais facilidade, do que aquellas que contribuem para a boa educação e melhor formação do senso moral. [...] O que significão os excessos do socialismo, a perversidade dos anarchistas, que tudo quer abater, somente para levantar a desordem e a confuzão no meio
855 LEAL, 1896, op. cit., p. 299. 856 LEAL, 1896, op. cit., p. 301.
280
social; o que significão senão os resultados da nossa incuria, o atrazo das medidas que havemos tomado para a repressão do crime na sociedade? O que significa a explosão da dynamite nas estradas de ferro, nas pontes e nos theatros, senão a fraqueza das medidas actuaes?857
Se o indivíduo é “mal e vicioso”, seja pela precária educação ou pela
hereditariedade, as inclinações ruins são disseminadas como epidemias morais sobre a
cidade.858 Uma autêntica polícia dos costumes estava em jogo na educação da cidade
moderna:859 além do corpo policial e do campo da instrução pública, os próprios códigos
de posturas – documentação bastante presente em diversas cidades brasileiras, sobretudo,
a partir dos anos 1860 – são reveladores da normatividade pressuposta nos usos da
sociedade incorporados às condutas.860 Dialogando com narrativas aspiracionais e formas
de abjeção da vida moderna, os códigos circunscrevem preocupações relacionadas à
exibição e à circulação de pessoas, mercadorias e coisas, tendo em vista abastecimento,
salubridade, regularidade no comércio etc.
A gestão moral do meio social, partindo das relações entre indivíduos e
infraestrutura, a ideologia da ordem e o campo problemático do social (portando as
tendências de degeneração) formam uma mesma imagem nos horizontes da
modernização,861 relacionando a racionalização das condutas e do espaço social a
contrastes abjetos (epidemias, imundícies, vagabundagem, mendicância etc.). O governo
das porturas urbanas operava sobre o esquadrihamento e a especificação dos itens na nova
cartografia moral da cidade, indicando a preocupação com edificações, calçamento,
trânsito de cocheiros, presença de pequenas fábricas e atividades industriais, matadouros
e espaços de sociabilidade (bailes mascarados, óperas, casas de taboagem para jogos de
bilhar e carteado etc.), de modo que a “commodidade” e a “tranquilidade publica”
aparecem como critérios morais subjacentes às relações entre humanos e não-humanos.
As figurações da imoralidade e da exibição de cenas indecentes na vida urbana, portanto,
857 LEAL, 1896, op. cit., p. 297. 858 BONJEAN, 1885, op. cit., p. 262. 859 SILVA, Marina Guedes; MORENO, Andrea. A moral e os bons costumes: a experiência da cidade nas
narrativas policiais (Belo Horizonte, 1897-1926). In: VEIGA, Cynthia Greive; FONSECA, Thais Nivia de Lima. História da educação: temas e problemas. Belo Horizonte: Mazza, 2011.
860 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, politica urbana e territórios na cidade de São Paulo. 3.Ed. São Paulo: Studio Nobel, 2007. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
861 LAPA, José Roberto do Amaral. Os excluídos. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
281
condicionam o observador a um esforço de estabilização da vida moral e dos processos
de educação junto às flutuações da circulação e do movimento.
Essas preocupações rondavam os diversos congressos internacionais de educação
e proteção da infância, realizados entre o fim do século XIX e o início do XX em Liège,
Genebra, Bordeaux e Buenos Aires. O desvalimento e a indigência eram figurações de
degradação e de decadência na cidade moderna, circulando como espectros confrontados
pela consciência educada. Nas memórias do congresso de Bordeaux (também com
presença de delegação brasileira), por exemplo, esses signos da degenerescência (tares
de dégénérescence) implicavam preocupações com o campo da assistência no sentido de
“fortificar a vida moral após formar a consciência”,862 tendo em vista os núcleos de coesão
social. Se o social é um espaço de intervenção, a avaliação moral desse campo
problemático tematiza a família como objeto fundamental da nova racionalidade
política.863
Nesse sentido, a partir da mobilização moral da família, os horizontes de
intervenção abertos sobre o mundo deficitário do social possibilitam uma interpretação
da célula famíliar como momento originário dos vícios públicos. Uma grande síntese
dessas perspectivas pode ser localizada, por exemplo, em um texto de 1820 redigido por
De Gérando a partir de suas experiências na cidade de Lyon.864 Envolvido com diversas
preocupações educacionais e morais em relação aos déshérités e à lâcheté morale da vida
moderna, o autor publicou preocupações com os processos de educação tendo em vista a
instância problemática do social e suas vinculações com o problema da caridade,
entendendo a art de la charité como esforço de intervenção sobre o campo problemático
do social, colocando o socorro (secours) em relação direta com as carências.865 Pensando
as diferenças entre a indigência factícia e a véritable indigence, De Gérando destacava o
alcoolismo, a situação da mãe em relação aos filhos, os constantes deslocamentos por
habitações precárias, a higiene e um vasto repertório de problemas morais (preguiça,
desordem, asseio etc.), de modo que, tendo em vista os vícios e as enfermidades do mundo
moral, “a doença não está apenas no espírito, ela está no fundo da alma: não há apenas
deficiência de reflexão, mas deficiência de vontade”.866 Os processos de educação e sua
permeabilidade institucional, então, eram centrais nas avaliações morais da pobreza
862 SAINT-PHILIPPE, Rousseau. Congrès International de la Protection de l’Enfance. Bordeaux:
Bourlange, 1895. 863 DONZELOT, Jacques. La police des familles. Paris: Éditions de Minuit, 2005. 864 DE GÉRANDO, Joseph-Marie. Le visiteur du pauvre. Paris: 1990. 865 DE GÉRANDO, 1990, op. cit., p. 40. 866 DE GÉRANDO, 1990, op. cit., p. 29.
282
urbana, na medida em que, como corretivos das desordens públicas e da exibição de
formas de abjeção na cidade moderna, eles combatem a miséria que embrutece (abrutit)
e impede os afetos sociais.867
Tendo em vista a proteção da infância contra o perigo moral das cidades
modernas, as instituições de proteção e amparo tomavam as paisagens urbanas como
elementos preventivos do desvalimento e da pobreza. Conforme assinala o antropólogo
Georges Balandier, se a modernidade é estruturada em torno do movimento e da
aceleração, as descontinuidades e a circulação operam sobre oscilações e contrastes
produzidos junto à dialética da desconstrução e da reconstrução das relações entre
indivíduos e coisas, (dis)torcendo sistemas de valores, pontos de referência e códigos da
vida prática em função do choque de contrários. A elaboração das formas de vida,
tematizadas na confrontação com situações pouco controláveis e horizontes de vertigem,
repoua sobre esforços de institucionalização como condição de intervenção no espaço
social e racionalização das estruturas de gestão da vida coletiva – basicamente, como
tentativas de controlar a urgência e os avisos de incêndio do presente.868 A rigor, a própria
presença da caridade e seus diversos contextos de enraizamento institucional indicam a
mobilização de códigos morais internos à vida social, destacando a capilaridade do campo
perceptivo em relação a orientações morais e formas de intervenção na cidade.
Em 1844, Marx e Engels dedicaram-se a questões correlatas em uma tentativa
explícita (carregada de ironias e sarcasmos) de distinção dos autores em relação à filosofia
da história hegeliana, às correntes saint-simonianas, às teses de Fourier de reforma social
e à caridade cristã.869 De Rudolf Rocker a Hal Draper e Michael Löwy, os
desdobramentos políticos e teóricos, nesse sentido, têm acompanhado a sorte do texto.
Gostaria de pontuar uma dimensão talvez um pouco subestimada, mas frutífera para os
tópicos da pesquisa: especialmente na análise da “brutalidade cristã” de Eugène Sue,
Marx e Engels discutem problemas importantes da estruturação moral da modernidade
capitalista. Certamente, tendo em vista os debates mais práticos do fragor da hora (o texto
saiu sob o impacto da crescente notoriedade do escritor francês), ambos acusam o
reformismo de Sue de um paternalismo cristianizado incapaz de romper com a estrutura
moral da sociedade burguesa. Gostaria de posicionar minha análise no problema dos
valores e de sua vinculação com a socialização.
867 DE GÉRANDO, 1990, op. cit., p. 162. 868 BALANDIER, Georges. Modernidad y poder: el desvio antropológico. Trad. José Ángel Alcalde.
Madri: Júcar Universidad, 1988. p. 114-117. 869 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Die heilige Familie. Berlim: Dietz, 1962. (MEW, 2)
283
Les mystères de Paris (1842-1843), um roman-feuilleton de Sue muito popular na
época,870 narra os subterrâneos da cidade por meio do jogo de sombras contrapostas às
iluminações da cultura moderna. Sob a puissance des contrastes oferecida pelos bárbaros
modernos, precariedade, criminalidade e vícios rondam as preocupações de reforma
social de Rodolphe de Gerolstein, nobre alemão devotado a construir mecanismos de
assistência socioeconômica e moral à pobreza urbana (apoiado, em seu reformismo
pautado na tematização moral do cristianismo, por madame George e pelo padre Laporte).
Marx e Engels apresentam os códigos morais em jogo tendo em vista, por exemplo, os
esforços de Rodolphe no resgate da jovem Fleur de Marie e de outros desafortunados das
errâncias e vícios da cidade – demonstrando chaves de interpretação da miséria, a um só
tempo, como despossessão material e degeneração moral. A análise, no entanto, parece
emperrar em um ponto sobre o qual tenho insistido na pesquisa: o desvelamento das
relações de sentido implicadas na estruturação moral da sociedade.
Marx e Engels tendem a ler as categorias morais de interpretação da indigência
(especialmente Marie) como um caso de alienação, de modo que os nexos de moralidade,
ancorados no campo do religioso, são interpretados a partir de conteúdos já dispostos pelo
alto (überschwengliche), ou seja, como uma potência sobre-humana cobrindo as relações
humanas com o manto da caridade (Barmherzigkeit) divina.871 A moralidade e seus
vínculos com o religioso são pensados no registro de uma alienação das relações
intramundanas (sociais) pela elevação transcendente a uma relação com Deus. Se Marx e
Engels captam os contrastes morais da pobreza na cidade, opondo o humano ao inumano
(unmenschlich) a partir da degradação dos vícios, a dinâmica moral envolvida nessas
avaliações é restrita a um componente puramente instrumental. Então, os códigos de
reconhecimento e estima das condutas, bases da relação com valores pressuposta na
socialização, funcionam como formas desidratadas que condicionam a transformação dos
miseráveis em “seres morais” a interesses imediatos (ou seja, desconsiderando as
mediações do campo moral na estruturação da sociedade).872
Se os dois teóricos alemães sublinham com destreza a estruturação da
modernidade capitalista e suas forças materiais sob o invólucro das percepções morais,
indicando que “a indústria e o comércio fundam impérios universais muito distintos
870 THÉRENTY, Marie-Ève. Mysterymania: essor et limites de la globalisation culturelle au XIXe siècle.
Romantisme, Paris, v. 160, 2013. 871 MARX, ENGELS, 1962, op. cit., p. 183. 872 MARX, ENGELS, 1962, op. cit., p. 173.
284
daqueles fundados pela cristandade e pela moral”,873 o problema reside justamente no
confinamento da moral em um mero invólucro. Essa démarche é plena de consequências,
pois a moral fica restrita a um registro da debilidade (Schwäche) humana e suas faltas, de
modo que a relação com valores (caridade, abnegação, devotamento etc.) compõe uma
espécie de non-sense ideológico.874 No limite, a redução dos parâmetros valorativos de
socialização a dicotomias morais típicas do século XIX (a leitura da vida social carregada
pelas tintas do bem e do mal) restringiria o “homem real” a uma abstração.875 Mesmo a
rica tradição marxista corrobora esse registro: Lukács, interpretando a dinâmica moral da
pobreza em Sue, confina o problema à figura subjetiva de um pauvre honteaux refém de
desejos piedosos e da caridade como joguetes que encobrem a dinâmica social;876
Althusser reduz o móvel da conduta dramática na identificação da pobreza com “os mitos
da moral burguesa”, de modo que assinala um infortúnio revestido pelo verniz polido
(oripeaux d’emprunt) dos argumentos religiosos e da conscienência moral – a dinâmica
moral fica restrita a uma conscience empruntée du dehors,877 ou seja, um mundo de álibis
e enganos que reduz a estruturação moral da sociedade a uma casuística subjetiva.
Se a utopia de Sue de um mundo moral constituído pela “colaboração cristã de
classes” não questiona os pressupostos materiais dessa mesma ordem de coisas,878 isso
não pode obliterar a análise da intrincada dinâmica moral subjacente às formas de
socialização oitocentistas. Essas mesmas estruturas, como mediações da socialização, não
podem ser reduzidas a determinações meta-sociais (sobre-humanas). Com a pesquisa até
aqui conduzida, meu argumento é que há um jogo moral cuja consistência deve ser
investigada, tendo em vista as expectativas de socialização e a estruturação de valores, de
modo que moral e religião não são questões epidérmicas tematizadas como um joguete
de aparências. Trata-se de pensar a lógica social implicada nos valores: mais do que
dissimulações ou tergiversações sobre o “conteúdo real” das relações sociais, a dinâmica
da sociedade moderna repousa sobre os nexos internos da gramática moral e seus
processos de educação: nesse registro, se os componentes de gestão moral da população
são pressupostos na avaliação da pobreza urbana, essa relação só é possível em função da
mobilização de valores instituídos que estão além de mera superficialidade.
873 MARX, ENGELS, 1962, op. cit., p. 73. 874 MARX, ENGELS, 1962, op. cit., p. 213. 875 MARX, ENGELS, 1962, op. cit., p. 204-205. 876 LUKÁCS, György. Marx e Engels como historiadores da literatura. Trad. Nélio Schneider. São
Paulo: Boitempo, 2016. p. 72-73. 877 ALTHUSSER, Louis. Pour Marx . Paris: La Découverte, 1996. p. 138-140. 878 ECO, Umberto. Il superuomo di massa. Milão: Tascabili Bompiani, 2005.
285
A consistência desse campo moral atravessa os quadros interpretativos do social
na modernidade. Como diagnóstico moral da vida moderna, por exemplo, a correlação
entre criminalidade, pobreza e processos de educação travejava a invenção do social e seu
campo deficitário. Nesse sentido, Augusto Olympio Viveiros de Castro acreditava que a
modernidade, inaugurando “épocas de anarchia social”, evidenciava como “o mal tem os
caracteres de uma epidemia, devasta passageiramente todo um vasto território”,
implicando “o confisco de bens, o assassinato em massa pela guilhotina, o incêndio e a
pilhagem dos palácios”.879 Para Viveiros de Castro, esses processos estão inter-
relacionados à multiplicação de assombros sobre o mundo moral.
A intensidade dos desejos e das ambições junto aos estímulos da cidade torcia as
iluminações da vida moderna a uma narrativa moral da potencial decadência, já que “a
avidez do bandido rural tem por fim apenas a satisfação de necessidades simples,
modestas, ha nelle mais orgulho do que vaidade, apraz-se no gosto do poder exercido pelo
terror sobre o espirito amedrontado das populações”, ao passo que “ladrão urbano é mais
vão do que altivo, mais viciado do que ambicioso, só aspira satisfazer suas necessidades
de luxo e de orgia, inoculadas pela civilisação”.880 A malaise moral “que se revela pela
voracidade dos appetites” implica um desafio à contenção dos comportamentos, já que
“ninguém quer limitar suas ambições aos seus recursos de vida”.881 Afinal, se “todos
desejam avidamente os gozos e os luxos que a civilisação moderna offerece”, o
nivelamento e as nascentes condições de massificação das formas de vida expunham a
gramática moral às transformações da “civilisação moderna” e ao “progresso espantoso
deste século” como materialidades capazes de desestabilizar os nexos morais de
estruturação e regulação da vida coletiva.
A garantia da ordem pública, além de detida sobre a potencial reprodução de fatos
criminosos, dispunha as estruturas da gramática moral como pacificação do espaço social,
tendo em vista a gestão da delinquência e dos ambientes degradados sujeitos ao
“movimento paixonado ou de apathia, de miséria, de sedução, de arrebatamento, de falta
de educação, e ociosidade, etc.”.882 Para Viveiros de Castro, “a civilisação moderna dá ao
homem o horror pelo sangue, mas em compensação augmenta-lhe o appetite desenfreado
do gozo”,883 de modo que essas duas faces de Janus sublinham justamente o lugar das
879 CASTRO, Augusto Olympio Viveiros de. A nova escola penal. Rio de Janeiro: Domingos de
Magalhães, 1894. 880 CASTRO, 1894, op. cit., p. 99. 881 CASTRO, 1894, op. cit., p. 188. 882 CASTRO, 1894, op. cit., p. 127. 883 CASTRO, 1894, op. cit., p. 201.
286
estruturas formativas de valores de socialização junto à experiência da modernidade. Os
processos de educação, então, governavam as inclinações e os desejos da população, de
modo que
Alguns escriptores julgam até que a instrucção primaria, desacompanhada da educação, pôde ser uma causa efficiente de crimes, despertando instinctos adormecidos, accendendo ambições superiores á posição social do individuo. O Dr. Corre é desta opinião. Á instrucção é perigosa, escreve elle, quando não é apoiada sobre a educação. No menino e no moço que a possuem sem a segunda é como uma flor do mal em terreno virgem, cujo perfume corrompe. A instrucção que não consiste senão em saber ler e escrever, disse Quetelet, torna-se ordinariamente um insrumento de crime. Mais do que isso é uma iniciação no crime. A instrucção exalta as curiosidades, sempre perigosas, nas pessoas nervosas, de imaginação ardente, como as mulheres e os adolescentes. Quantas mulheres não têm sido pervertidas pela leitura de romances, de livros de sensação, de dramas judiciários.884
Por isso, o controle da imaginação prescrevia que “uma bibliotheca pode ser ás
vezes mais perigosa que uma sala”: em uma “sociedade de convenção”, a multiplicação
de ambições superiores na imaginação desregrada por leituras imorais “também pode
mentir em questões de religião, de moral, de sociedade”, tendo em vista que o livro é “o
companheiro dos dias d’isolamento e das noutes d’insomnia, fallando com mais
eloquencia e com mais autoridade que Mephitopheles aos ouvidos de Margarida”.885 A
educação “tem uma significação mais larga, comprehende o conjuncto de influencias
externas, a série de scenas que o menino vê se desenrolar diante os seus olhos e que
actuando sobre o seu espirito e seu coração lhe imprime hábitos moraes, lhe forma o
caracter”. Se a educação “forma e desenvolve o caracter”, “bem dirigida, ella fará deste
monstrengo um cidadão digno e útil. Continuando os máos exemplos, a criança ainda
mais pervertida se tornará”.886 A intervenção moral contra a miséria, o alcoolismo, as
perversões sociais e as “anomalias da sensibilidade”, expondo o desenvolvimento
problemático do social e colocando à prova “o progresso e a civilisação”, contornava a
“organização artificial da sociedade” como um retorno à regularidade das simpatias e da
sociabilidade natural da espécie.
884 CASTRO, 1894, op. cit., p. 174. 885 PINA, Mariano. Chronica. A Illustração , Paris, 20 nov. 1884. 886 CASTRO, 1894, op. cit., p. 182-183.
287
Instância onde floreciam “verdadeiros casos pathologicos”, o social e toda sorte
de “attentados ao pudor” (representados pela miséria, pela febre “de enriquecer
facilmente”, pelos crimes e pelo crescente acúmulo da população nas cidades) teciam os
signos mais problemáticos da modernização junto aos valores das condutas. Se o
“problema da educação da infância” perpassava as preocupações corretivas de
intervenção e defesa da sociedade, os parâmetros formativos dos futuros cidadãos
dialogavam com um quadro mais amplo da decadência moral do tempo e da potencial
erosão do campo valorativo. Debatendo com Tarde, Poletti e Garofalo, o autor acreditava
que
Toda civilisação [...] atravessa dois estádios, um em que as innovações, as invenções affluem, outro em que cessa este influxo innovador e os conhecimentos adquiridos se coordenam e se systematisam. Uma civilisação pôde ser muito rica, sem ser coherente, como a nossa, ou muito coherente sem ser rica, como foi a idade média. Quando a civilisação é coherente, quando ha cohesão da sciencia, da religião, do poder, de todas as formas da actividade, a criminalidade diminua, porque todos estes elementos formam uma coalisao contra o crime, augmentam as forças de resistência. Quando a civilisação nao é coherente, a criminalidade augmenta pela falta de moral, de religião, de princípios, de crenças, pela anarchia mental, pelo desenvolvimento exagerado dos appetites. Antes das guerras púnicas, Roma mantinha a unidade de crenças religiosas e politicas e então offereceu ao mundo estes exemplos admiráveis de patriotismo, de probidade, de desinteresse, emfim, de todas as virtudes privadas e cívicas que constituem o homem e o cidadão. Mas depois da conquista da Grécia, quando invadida pelo mundo inteiro, dissol-veu-se ao contacto de povos diíferentes a sua unidade mental, então os vícios eos crimes, a dissolução da família e a torpeza dos costumes attingiram a esta corrupção espantosa que pareceria incrível senão fosse tão fielmente descripta nos livros de Suetonio e de Tácito. A nossa civilisaçâo actual tem todos os esplendores arrancados á natureza pelas descobertas das sciencias experimentaes, ella porém atravessa uma grave crise psychologica, não tem mais firmeza em suas crenças religiosas e philosophicas e é a este vácuo da alma, sem fé e sem princípios, que se deve o desenvolvimento assustador do crime, o augmento terrível da loucura e dos suicídios.887
Junto ao observador moral, a rua e os núcleos da esfera pública indicam desafios
ao campo de valores na medida em que a exposição das condutas, como um contraste
887 CASTRO, 1894, op. cit., p. 195.
288
entre as iluminações modernas e a fugacidade dos valores enraizados, esfumaça
possibilidades de integração das prescrições em um repertório unívoco e transparente de
intenções. As iluminações da modernidade capitalista e os vícios da civilização, como
uma espécie de oscilação pascaliana entre a grandeur e a misère da alma moderna,
carregam sentidos morais das percepções de decadência em relação ao social. Diante do
problema das estruturas de coesão da sociedade, ao passo que a rua evidenciava o
dinamismo das formas de circulação e de gestão da vida da população, o trânsito pelo
público lançava as percepções de decadência da regularidade moral a uma degeneração
dos corpos. Além da pobreza e das “especulações miseráveis” que arrastavam o mundo
da vida a uma potencial indeterminação e a uma perda dos “sentimentos mais communs
á espécie humana”, Viveiros de Castro lamentava
[...] o futuro de infelizes meninas impellidas á prostituição pela cobiça paterna. São as floristas que andam pelos theatros e pelos gabinetes reservados dos restaurants, onde ceia o mundo que se diverte, vendo scenas pouco edificantes, ouvindo palavras obscenas, seduzidas, tentadas, resistindo hoje, mas todos os dias perdendo o pudor, até se entregarem, esgotadas da lucta, corrompidas nesta atmosphera viciada, deslumbradas pelo luxo espalhafateiro e bulhento das cocottes. Os pais destas meninas não ignoram o que se passa nesses logares, mas muito propositalmente empregam as crianças na esperança de maior lucro, de mais negocio. E assim sacrificam aos seus interesses e ás suas ambições o futuro delias, com a impassibilidade de um judeu que tudo immola ao dinheiro. Si as meninas mais velhas, de noite, correm os theatros como floristas, as mais moças, de dia, andrajosas e sujas, invadem a rua do Ouvidor e os cafés, pedindo esmola, e o dinheiro assim arrancado pela sympathia que inspira a infância serve para entreter na ociosidade e no vicio gente valida e robusta.888
A partir dos mecanismos de educação e de gestão do social, a criminalização da
pobreza por meio de uma polícia dos costumes e dos vícios a ela associados ilustrava um
conflito nos códigos morais em exposição nas ruas.889 Como efeitos da aglomeração, se
“as cidades regorgitam de povo”, o tensionamento dos códigos morais indica como “os
instinctos humanos, com todos seus horrores, em consequencia da falta absoluta de meios,
888 CASTRO, 1894, op. cit., p. 355. 889 SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. MAZZIEIRO,
João Batista. Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio e outros delitos (São Paulo, 1870/1920). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998. MAZZIEIRO, João Batista. Alcoolismo e trabalho: vozes de criminólogos (São Paulo e Rio de Janeiro, 1880/1920). Revista de História (USP), São Paulo, v. 140, 1999.
289
levantam-se freneticos e audases contra a moral e os bons costume, contra a conservação
e a propriedade individual”.890 Justamente como discurso sobre a dinâmica problemática
do social e seus espaços degenerados, portanto, as pautas higienistas mobilizam um
campo de intervenção na gestão da população a partir da ênfase sobre a expressividade
fisiológica como significado da regularidade interior (moral). Nesse sentido, “em todas
as sociedades cultas ha a vida material e a vida moral, a harmonia, a intersecção destes
dois raios do destino do homem, é sem duvida nenhuma a origem da peristencia e
progresso dessas mesmas sociedades”.891 A vida moderna e a propagação de contrastes
morais tomam a cidade como referência, na medida em que
A cidade vive em todo seu esplendor, o povo percorre as ruas, cruzão-se os mil vehiculos, os templos fazem soar os seus sinos, ha como que o rumor de tempestades longinquas, é hora da missa, escancarão-se as portas, embalde, a igreja esta vazia; este povo que rolla em multidão, como que auctomaticamente da costas á igreja, elle tem o olhar da sphinge, o olhar do desprezo para o culto religioso. Eis o estado á que os ministros da igreja reduzirão as crenças deste bom povo: no interior do Brazil á corrupção, nas cidades ao desprezo... as crenças apagarão-se depois de pervertidas!
Se “a vida moral emana da crença, que se chama fé em religião, exemplo no
theatro e conhecimentos scientificos e litterarios na instrucção”, a dispersão dos processos
de educação era fundamental na construção de dispositivos de regularização do social
contra “o perigo á tranquilidade do lar” e como “barreiras ás grandes paixões
sensuaes”.892 A preocupação com o governo do “perfeito estado physiologico” da
população, cultivando uma “sciencia da propria conservação” dedicada a evitar a
decadência moral e a degenerescência social, perpassava a gestão da vida moderna e a
exposição problemática de situações que indicam “a falta absoluta de elementos que
sustentem a moral”.893 Os riscos de “sociedades dissolutas”, então, são tematizados como
potenciais desestabilizações decorrentes das fraturas nos processos de educação e da
disseminação dos problemas sociais da cidade moderna (alcoolismo, prostituição,
miséria, insalubridade etc.) interpretados em chave moral. Como um “terrível exemplo
890 SEQUEIRA, José de Goes. Hygiene publica. Bahia: Typ. Constitucional, 1872. 891 SEQUEIRA, 1872, op. cit., p. 23. 892 SEQUEIRA, 1872, op. cit., p. VII. 893 SEQUEIRA, 1872, op. cit., p. 23.
290
que encanta sedusindo”, as iluminações da vida moderna carregam, em sua ambivalência,
as miragens do abismo.
A partir de “meios levantados como diques poderosos ao influxo da torrente
d’essas paixões humanas”, o trabalho sobre o pudor e a regulação da socialização
perpassava a elaboração derivada da “educação e costumes que, por sem duvida, devem
refletir á seu turno sobre aquella, parte inquestionavelmente da communhão social”. Aqui,
a relação entre os conteúdos morais da ação e as formas exteriores das condutas sociais
indica um nexo importante: a representação dos comportamentos é indissociável da
ordenação interna em relação a valores na medida em que a dinâmica da socialização é
fundamentada sobre exigências estruturais da expressão dos valores a partir dos quais o
mundo moral é construído. Conforme as resoluções das comissões de trabalho do
congresso sobre higiene e educação realizado em 1882 no México (seguido de dois
congressos mexicanos sobre a instrução pública em 1889 e 1890), “a palavra educação
significa aperfeiçoamento de faculdades e, em consequência, compreende as faculdades
físicas, intelectuais e morais, ao passo que a instrução se refere a algumas faculdades
intelectuais”.894 A ordem fisiológica das “funções sensoriais e locomotoras”, dependente
das “atitudes do espírito que tendem a uma normatividade da conduta”, expressava a
regularidade da exibição dos comportamentos mediante a estrutura da vida interior.895 Se
“toda perfectibilidade moral e intelectual é fundada no conveniente desenvolvimento
físico”,896 a “organização física” e higiênica dos futuros cidadãos predispunha os
indivíduos ao trabalho contra os sinais de abatimento moral.
Émile Caro, por exemplo, mencionava a possibilidade de uma “higiene moral” da
vida moderna, uma vez que “toda desordem na vida moral produz, na vida física, uma
desordem correspondente”. Nesse sentido, como dispositions d’esprit, a expressão
fisiológica das motivações mobilizava um “governo da vida moral” refletido na
compleição das ações.897 Esse trânsito moral das formas de socialização, compreendendo
as motivações internas (valores) e suas representações externas, indicava que a vida é o
trabalho sobre a educação da vontade e do corpo, assumindo como compromisso a tarefa
de “elevar e fortificar o homem interior” como mestre de si (se posséder). Essa tentativa
de racionalização, portanto, pressupõe o direcionamento dos processos de educação no
sentido dos usos da sociedade como formas de representações da ordem moral nas
894 Memorias del Primer Congreso Higienico-Pedagógico. México: Imprenta del Gobierno, 1883. 895 Memorias..., 1883, op. cit., p. 102. 896 Memorias..., 1883, op. cit., p. 170. 897 CARO, Émile. Nouvelles études morales sur le temps présent. Paris: Hachette, 1869.
291
condutas e como incorporação da regularidade pressuposta nos valores junto às maneiras
e ao trato. Uma narrativa de 1875, de Alfredo Taunay, tematiza justamente a contenção
dos comportamentos educados em função dos usos da sociedade: em uma “cidade
maritima e commercial da importancia do Rio de Janeiro”, onde “apinhava-se gente
azafamada” e “tudo era movimento, barulho e animação”, o “caracter firme” de Alvaro
de Siqueira era distinção de “esmerada educação” na medida em que, mesmo apaixonado
pela prima Laura, “nunca a intensidade daquelle sentimento chegára a reflectir-se no
exterior de modo a deixar presentir toda a vitalidade que a distinguia”.898
Além das “exterioridades calmas” dispostas pelos bons usos da sociedade, os
sinais físicos eram expressões de uma espécie de assepsia moral. Dedicado a “sanear as
gerações porvindouras”, um artigo preocupado com as relações entre higiene e educação
no fim de século afirmava que
A excessiva tensão da vida intellectual, produzindo uma vibratilidade morbida da alma humana, é a caracteristica da geração actual. Para evitar as desordens physicas e organicas subordinadas a esse desenvolvimento divergente, hypertrophico das funcções cerebraes e atrophiante dos orgaos e apparelhos, cumpre determinar o parallelismo evolutivo destes e daquellas, sem o que impossivel se torna manter harmonicos e equillibrados os dous elementos fundamentais da natureza humana – espirito e matéria. O seculo XIX foi golpeado nos dous polos da vida nervosa, na idéa e no amor; o homem no cerebro enervado, vacillante, paralytico, a mulher na fonte da vida dolorosamente exulcerada. O nervosismo, essa chaga social, no dizer conceituoso de Bouchut, avassalla o homem [...] É no lar e é na escola que a propaganda salvadora deve fazer-se. Os nossos filhos precisam da educação do musculo, tanto quanto da educação do cerebro. Regenerar a especie é dever dos paes e é dever dos mestres. Não tental-o, não conseguil-o é crime nefando contra a patria, contra a sociedade, contra a familia. A hygiene é o agente regenerador.899
Diversos textos em circulação no oitocentos, aliás, veiculavam esse conjunto de
preocupações morais com os usos da sociedade. Se “no vestuario, como em tudo mais, a
observância do mais minucioso asseio, além de ser condição indispensável para a sã
hygiene na infância, como em qualquer outra idade, dispõe a criança a adquirir hábitos
que fazem parte importante da educação moral”,900 essa higiene moral era formativa dos
898 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Ouro sôbre azul. São Paulo: Melhoramentos, 1921. p. 5-9. 899 S. C. A hygiene na escola. O Progresso Educador, Rio de Janeiro, 15 jul. 1894. 900 CERQUEIRA, Nicolao Gama. Hygiene da primeira infancia. Rio de Janeiro: Typographya de J. Neves
Pinto, 1882.
292
futuros cidadãos, de modo que mesmo os “que resistem ás condições innatas de
fragilidade, conservão em sua adolescência o cunho do máo desenvolvimento, que não
foi auxiliado sob o influxo dos desvellos da família, além da perversão moral precoce que
caracterisa a população dos asylos”. O regramento fisiológico e o asseio, como sentidos
morais da exibição dos comportamentos, mobilizavam um conjunto perceptivo
importante das vertigens da cultura moderna. Seguidor de Comte e Laffite, Adolpho
Simões Barbosa interpretava as turbulências da modernização como uma “anarchia do
sentimento”: diante da dissolução das estruturas tradicionais de coesão, o potencial da
dissociação e a volatilização do mundo da vida, lidas em registro sociológico, carregavam
impactos significativos sobre a organização social.901
A “renovação material contínua” da vida moderna assinala, como mudanças das
estruturas de integração social, horizontes históricos em que a proliferação de estímulos
da atividade perceptiva implica a recomposição dos mecanismos morais de avaliação do
mundo da vida. Assinalando esses impactos a partir de um vitalismo fundamental, o autor
afirmava que “as perturbações vitaes originão-se, ora nas modificações individuaes, ora
nas alterações do meio ambiente”, uma vez que “o organismo vivo agita-se entre certos
limites de variações das influencias exteriores, que transpostos destroem a vida, ou pelo
menos a alterão”.902 Nesse sentido,
Os cérebros sem ponderação pela ruptura da harmonia catholica, que destruio toda autoridade espiritual, deixarão-se dominar pelos instinctos egoístas, e refreiárão os impulsos sociaes. Esta exaltação da personalidade oppõe-se a qualquer tentativa de unidade, somente possível pela coordenação de todos os nossos actos em torno de um sentimento sympathico.903
Preocupado com “o resultado da dissolução dos costumes e da anarchia moral que
nos devasta”,904 Barbosa desdobrava consequências importantes das transformações da
vida moderna junto aos parâmetros de socialização e seus valores (educação).
Fundamental, aqui, é a atenção em relação à “regularidade das funcções corporaes”,
“condição sem a qual seria inconcebivel a existencia collectiva”, o autor acreditava que
“os phenomenos da ordem social e moral, como os de toda a ordem universal, si são
901 BARBOSA, Adolpho Simões. Hygiene da primeira infancia. Rio de Janeiro: Typ. Universal de H.
Laemmert, 1883.
902 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 22. 903 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 9. 904 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 82.
293
inalteráveis em seu arranjo, são modificáveis na intensidade de suas manifestações”.905
Se do “estudo do homem é que derivão-se as regras próprias a todas as idades da vida”,
os processos de educação implicam justamente o reconhecimento da destinação moral e
do exclusivismo da espécie, de modo que “institue-se a Moral pratica ou a Educação, cujo
objectivo é o aperfeiçoamento de nossa espécie, tornando-a melhor, mais activa e mais
intelligente para adaptal-a ao serviço continuo da Humanidade”. Assim, “a Moral pratica
ou Educação que institue o aperfeiçoamento humano” constitui relações com valores
capazes de instituir o mundo da vida e seu funcionamento disposto em esferas de
socialização. Nesse sentido, como práticas formativas da vida social,
Os tres modos que affectão a existência humana – pessoal, domestico e civico –, são considerados na moral positiva como grãos naturaes de uma mesma disciplina, na qual uma dependência mutua os prende, de sorte que o inferior prepara o superior, que por sua vez sobre elle reage. Nesta successao, as relações individuaes achão-se coordenadas segundo a sua extensão crescente e intimidade decrescente.906
Para o autor, “si a educação tem por fim principal instruir e moralisar, e si a
moralidade é o resultado do desenvolvimento da sympathia, aos seres mais syrapathicos
é que compete propriamente desenvolver nos outros as affeições destinadas a
prevalecerem”.907 A preocupação de “fazer do individuo um sêr moral” implica uma
tentativa de reforma em relação à desestabilização dos valores expostos à volatilização
dos processos de modernização. Por isso, a estruturação dos processos de educação não
pode ser reduzida a meros joguetes e ilusões: trata-se da configuração de uma gramática
própria para a interpretação das transformações do mundo da vida.
Conforme Adolpho Simões Barbosa, os processos de educação, em vez de uma
supressão da “natureza humana” e suas inclinações exageradas, indicam que é “necessário
disciplinal-a”. A “subordinação da personalidade á sociabilidade” produz a educação das
condutas a partir da normatividade moral capaz de conciliar “a existência com a expansão
dos instinctos sociaes”. Nesse sentido, “em vista da Humanidade, e por conseguinte
elevando-se contra a satisfação dos instinctos egoistas, quando elles não têm um fim
commum”, a instituição da cultura moral reconhece a “utilidade pessoal de suas
prescripções”, de modo que “liga á sociabilidade” as prescrições estruturais do campo
905 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 20. 906 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 49. 907 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 56.
294
moral e a finalidade dos processos de educação.908 A civilização dos comportamentos,
em sua dupla face (os valores internos e a exposição em condutas), dispõe critérios morais
de subjetivação que interpelam os indivíduos como “um esforço sobre si mesmo em favor
dos outros”. Afinal, “a cultura dos bons sentimentos, esclarecida pela sciencia
systematisada para evitar os desvios moraes originados em opiniões erróneas, conduz á
virtude”,909 na medida em que a exterioridade das condutas expõe o juste milieu moral e
o auto-domínio perfeitamente racionalizado dos ímpetos e das aparências.
Por isso, o ideal de compleição física, segundo as palavras de João Pedro Aquino
(diretor do Externato Aquino no Rio de Janeiro), ordena a estética do movimento
“baseada na physiologia e na hygiene, intimamente ligada com a educação moral e
intellectual”.910 A exibição das formas do comportamento e o “desenvolvimento da
actividade de todos os sentidos” condicionam a fisiologia do campo moral a uma
superioridade do humano inerente ao percurso de esclarecimento e emancipação das
formas primitivas, já que “os selvagens não tem aquella moralidade e instrucção que,
revestindo a consciencia do homem de uma certa superioridade, lhe dá ao mesmo tempo
toda a coragem de que elle necessita para resistir aos perigos”. O raciocínio de Aquino
retomava um célebre texto alemão dos anos 1850, de Daniel Schreber, que ecoava um
vitalismo derivado do ideal de humano duplicado em “forças materiais” e “forças
espirituais”.911 Contra o estampido da matéria e as formas fugazes do visível que
atravessavam os sentidos, o caráter afirmativo da vida harmonizava os bons usos da
compleição física com os valores da moralidade; por isso, advertia o autor de Leipzig,
“desenvolver apenas o espírito” era um “erro que tem sua origem no progresso da
civilização e no refinamento introduzido nas relações sociais, refinamento que tende a ser
exagerado”. Nesse sentido, “quanto mais a matéria se renova, mais ela vivifica”, de modo
que a atividade e o ordenamento das formas exteriores, debatendo-se contra “uma
natureza que não se deixa ser dominada”, estruturavam o auto-domínio em diálogo com
a “direção elevada para o espírito humano na condução até sua finalidade”.
As preocupações de Manoel Francisco Correa em relação aos processos de
educação eram construídas exatamente no registro dessa fisiologia moral, ou seja, na
908 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 53. 909 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 54. 910 AQUINO, João Pedro. Educação physica nos jardins da infancia, nas escolas primarias e nos collegios.
O Ensino Particular, Rio de Janeiro, 1883. 911 SCHREBER, Daniel Moritz Schreber. Système de gymnastique de chambre médicale et hygiénique.
Trad. H. van Oordt. Paris: Victor Masson, 1856.
295
convergência entre o mundo interior e as formas da matéria.912 Para o célebre autor do
fim de século, “o corpo é, por assim dizer, o domicilio da alma; é o orgão, o instrumento,
o poder exterior da alma”, de modo que as condições de exposição dos corpos eram
fundamentais na moralidade da cidade moderna. Nesse sentido, “a educação physica não
tem certamente por fim lisongear os sentidos e suas más inclinações; mas tornar o homem,
corpo e alma, forte, são, e quanto possivel independente dos accidentes exteriores”. Se
“sem uma constituição forte, o homem mais intelligente e laborioso fica reduzido á
impotencia”, o ordenamento fisiológico era condição da ampla higiene moral difundida
como campo de intervenção sobre a estrutura problemática do social e os meios de
circulação dos aglomerados oitocentistas. Vida interior e formas exteriores, em registro
moral, indicavam que, junto aos parâmetros formativos de educação das condutas,
Não ha intelligencia lucida nem vontade firme sem ter por base a sanidade do corpo. A robustez não ministra ao homem simplesmente o valor para a defeza da patria e de si proprio, não dá só á mulher a flexibilidade dos membros e a elegancia das fórmas, faz muito mais: ás organisações fortes, conserva-as e desenvolve-as; ás organisações fracas, modifica-as e melhora-as. Avigorando o systema nervoso, impe-lhe que de atrophie as faculdades intellectuaes. É a par d'isto um grande elemento moral, porque a sensibilidade dos nervos opera immensamente sobre os costumes; é um poderoso elemento de civilisação, porque só com o cerebro tranquillo se podem desempenhar convenientemente os innumeraveis encargos sociaes.913
Assim, “si é objecto da hygiene, ou antes da moral, aperfeiçoar a natureza humana
em vista da Humanidade, prevenindo os males que a negligencia na educação do homem
possa porventura acarretar”, as condições exteriores dos corpos reforçavam a higiene
moral, já que “desprezal-a é abandonar aos desvarios humanos a base da sociedade, já
muito abalada pela anarchia dos seus elementos”.914 Os preceitos da higiene, então,
posicionam a avaliação moral das condutas em um eixo: conforme um difundido texto da
época, “entre o corpo e a alma existem tão intimas e reciprocas ligações”, então “a moral
e a hygiene estão entre si tão unidas que é impossível fallar d’esta sem referencia
áquella”.915 A educação moral tem “immediato e pronunciado influxo no
912 CORREIA, Manoel Francisco. Conferencias e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Typographia
Perseverança, 1885. p. 257. 913 COSTA, Antonio. A instrucção nacional. Lisboa: Imprensa Nacional, 1870. p. 155. 914 BARBOSA, 1883, op. cit., p. 64. 915 ABRANCHES, Guilherme da Silva. Manual da hygiene da infancia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866.
296
desenvolvimento physico das crianças”, realçando “a indole e o caracter do indivíduo”
no condicionamento das formas exteriores dos comportamentos.
A preparação dos futuros cidadãos para os “actos sérios da vida” exige o
imperativo de que “o que mais importa na infancia é fortalecer o corpo, dirigir os
instinctos e educar os sentimentos”.916 Caridade, obediência, virtudes religiosas e deveres
cívicos apenas adquirem plenitude de conteúdo quando covertidos em docilidade,
civilidade e boas maneiras. Nesse sentido, “contrahir hábitos bons e reprimir as
tendências viciosas” são ações que educam paixões e desejos, tendo em vista que, como
formação de subjetividades, “nós pouco mais somos que hábitos e educação”.917
Temendo desarranjar a saúde dos corpos e os valores morais do espírito e tendo em vista
o papel central do exemplo e da imitação junto à formação e à rotinização das condutas
sociais, a exposição da infância aos espaços degradados e aos hábitos decadentes que
tangenciam o inumano, além de “casas escuras” e “logares distantes e isolados” capazes
de alimentar a aparição súbita de “figuras e espectros medonhos”, implica uma atenção à
influência do meio social e sua circulação.
O sociólogo Henri Joly acreditava que, quanto mais as mudanças morais
conduzidas pela educação são enraizadas em valores e guias dos bons sentimentos, mais
visível é o amansamento (adoucissement) da fisionomia.918 Além da exposição às feras e
às abjeções físicas da cidade moderna, a avaliação moral exigia do observador o cuidado
em relação à civilidade e ao encanto passageiro dos estímulos sociais. Os usos da
sociedade, portanto, eram desafios perceptivos pois expunham o futuro cidadão ao
potencial de descontinuidade moral das condutas. Diante do horizonte problemático da
vida moderna,
É prejudicial excitar demasiadamente os sentidos das crianças, e por isso não se devem levar aos divertimentos, theatros, bailes, etc., aonde o muito tempo que ali se demoram, o brilho das luzes, o estrondo da musica, e o movimento continuo e prolongado as excitam em extremo, cansa-lhes a vista e o ouvido, e não se divertem. Taes prazeres não são realmente proprios da sua idade, e têem grandes inconvenientes para a sua saude, alterando as horas do descanso e da regularidade. Os seus jogos e brincadeiras valem-lhes muito mais que os bailes e saráos, que os contrariam e apoquentam.919
916 ABRANCHES, 1866, op. cit., p. 187. 917 ABRANCHES, 1866, op. cit., p. 178. 918 JOLY, Henri. Le crime. Paris: Léopold Cerf, 1888. 919 ABRANCHES, 1866, op. cit., p. 184.
297
Os nexos entre luxo, vaidade e aparências na cidade adquirem pleno conteúdo
moral a partir dos processos de educação. O problema, apenas entrevisto nos capítulos
anteriores, agora pode ser explorado em seus principais desdobramentos junto aos
parâmetros de socialização. Defensor do “progresso moralisado”, Antonio Manoel Reis
argumentava que, contra a “satisfação do amor próprio” e a “propaganda dos mais
perniciosos principios e o applauso das turbas inconscientes”, “o povo precisa da
instrucção que aperfeiçôa o espirito, e da educação que fórma o caracter”. Como ameaças
à instrução sólida e à “educação christã”, a circulação na cidade implica, paralelamento
ao alargamento do campo da socialização, a maior difusão das “doutrinas athêas,
materialistas, e completamente revolucionarias, que são reproduzidas na tribuna e vão
armar a curiosidade e o applauso das turbas no palco de nossos theatros”.920 Se “nas
cidades, e para as pessoas abastadas, já a educação toma um certo desenvolvimento”,921
uma “uma hera parasita” ronda a regularidade moral das formas de vida: o encantamento
pelas aparências. A “vaidade das apparencias, que reduzem a existencia a uma comedia
constante”, lança os códigos morais no “esplendor dos bailes e dos passeios” e, sobretudo
em relação ao papel moral da mulher/mãe na estruturação moral da sociedade, expõe os
“fructos da moralidade” a um campo perceptivo fugidio. Assim, se “educamos a alma,
domamos impetos, dirigimos tendencias, guiamos affectos, alumiamos o coração”, a
contenção das condutas externas por meio dos processos de educação significava novas
elaborações da exposição na cidade.
Nesse sentido, a contenção moral dos ímpetos era condição da exibição pública
dos valores morais. Especialmente a partir do registro moral enfatizado na figura
feminina, duas direções podem ser consideradas. Em uma série de “esboços femininos”,
produção muito comum no século XIX em diversas gêneros de impressos (livros
didáticos, história, biografias etc.), se a mãe estrutura o núcleo moral da família (afinal,
“o coração de uma criança é semelhante a um vulcão adormecido”), a educação do caráter
apenas está completa com a racionalização e o lustramento dos comportamentos sociais,
de modo que
O vicio ou a virtude tem, sem ainda o peso do raciocinio, sem a energia do sentimento já educado, o poder de criar, solidificar ou modificar o caracter, conforme o exemplo que nos rege. O espirito actua então sobre
920 REIS, Antonio Manoel. Ao leitor. Almanach Brazileiro Illustrado , Rio de Janeiro, 1878. 921 A educação das donzellas. Almanach Brazileiro Illustrado , Rio de Janeiro, 1882.
298
o individuo, a indole o guia, a civilisação o lustra. É verdade que para o corrupto, a moral com a educação incumbem-se de guial-o a um bom caminho. Sei que a educação bem dirigida é a chave de ouro que trance o cofre dos impetos, que não obstante todo o dominio, não obstante toda a polidez inividual, surge muitas vezes senhor absoluto quando a attração do mal impõe-se como soberana. A chamma ateia-se, cresce e ai d’aquella que não tenha como mentora uma mãe sensata e virtuosa.922
Em um segundo movimento, a dignidade expressa na representação social dos
comportamentos é ancorada no pudor. Como um “culto respeitoso da sua dignidade, que
constitue o sentimento do pudor”, a mulher “se eleva e se engrandece, impondo-se á
estima e á admiração”.923 Para “ornar a alma de uma moça distincta e educada”, a
representação social dessas condutas implicava cuidado com o “recato de maneira e
expressões”, já que as “condições actuaes da vida moderna retiam a mulher da
obscuridade silenciosa e modesta do lar para as agitações tumultuosas e ardentes da
publicidade e da concurrencia”. A exibição e as formas de estima indicam justamente o
lugar de mediação moral junto ao campo perceptivo da cultura moderna a partir da
mobilização da estima e das distinções externas da conduta educada. Se a vida urbana
lança a cultura moderna no jogo moral de contrastes, a elevação das virtudes sociais
apenas é concebida à luz das figurações da degradação, assumindo a decência dos
comportamentos como distinção sociológica junto ao meio decadente. Nesse sentido,
A natureza dotou a mulher com um sentimento grande e elevado qu exalta-a e ennobrece-a singularmente: é o pudor. Aquella que o desconhece ou que o perde póde dizer-se que principiou a trilhar o caminho da degradação e do vilipendio. Si por um lado vê-se grande parte da nossa esperançosa mocidade entregar-se a um culpavel desregramento barateando as mais santas leis da moral e do decóro, ve-se por outro que tambem apodera-se de uma parte importante da nosa sociedade o sentimento da baixa especulação e da sordida avidez do lucro, e quer de uma quer de outra parte a corrupção e o vicio infiltram-se e corroem surdamente a população de uma maneira horrivel e assustadora.924
Uma publicação de Sanches de Frias informava que, “no banquete da civilisação”,
“crear e desenvolver a materia, cultivar e robustecer o espirito” eram duas dimensões do
922 Santa Thereza. A Estação, Rio de Janeiro, 31 ago. 1890. 923 Ignatus. O pudor. O Progresso Educador, Rio de Janeiro, 1 ago. 1894. 924 D. Beltrano. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 13 abr. 1876.
299
mesmo processo de regularidade moral da vida social por meio da família.925 Para o autor,
“a creatura humana é, por instincto, bravia; e o homem de maus instinctos torna-se a
maior das féras”, de modo que o processo de civilização e polimento dos hábitos
(urbanidade) era ancorado no campo familiar. O conteúdo valorativo dos
comportamentos educados, contudo, reluz uma ambivalência típica das preocupações
morais com a vida urbana no período: ao passo que a polidez expressa modos de vida
exteriormente indicados pela regularidade, a cidade é o espaço da “ruinosa elegância” e
das “falsas cortezias” acinzentando intenções mais profundas sob a exterioridade dos
comportamentos. Esse jogo moral das ambivalências da cidade envolvendo as condutas
educadas e as narrativas de decadência, aliás, era recorrente nas percepções da nascente
urbanização latino-americana: um dos últimos textos de Cuéllar nos anos 1880, no
contexto de franca expansão das formas da vida urbana na Cidade do México, enfatizava
as realizações da cultura objetiva temendo el contagio no sólo fisico sino moral da
corrosão dos valores, de modo que, entre a ciudad culta y moralizada e os espectros da
decadência (anatemizados junto a los peligros del lujo y la prostitución de las grandes
ciudades),926 os contrastes morais eram realçados nessa dialética de uma modernização
condicionada à exposição da regularidade moral à profanação trazida pelo movimento e
pelas descontinuidades, tragando as garantias da buena sociedad e qualquer caução para
resguardo de la niñez inocente, de la virtud incauta y de la gente honrada.
Balzac, um dos grandes intérpretes do horizonte moral do século XIX, capturou
nuances importantes a esse respeito.927 A educação da senhorita Nègrepelisse, por
exemplo, deveria ser polida nas “altas regiões da sociedade”, em contraponto ao
isolamento do campo e ao embrutecimento das maneiras a partir da ausência da repressão
advinda do “comércio da sociedade” (e tudo então se vicia, ou seja, la forme et l’esprit).
Os usos da sociedade e a regularidade das formas exteriores na cidade, contudo, não eram
uma redenção moral pela civilidade. Como campo da ambivalência nas intenções e
sentidos instituídos, a cidade encena as formas da civilidade na medida em que contrapõe
a essa narrativa aspiracional o choque e o contraste moral de duas fortunas que conduzem
o trato social a uma opacidade de intenções: uma fortuna material (dinheiro) e outra moral
(relações intersubjetivas). O lugar da crescente expansão do dinheiro sobre a vida social
925 FRIAS, D. C. Sanches de. A mulher: sua infancia, educação e influencia na sociedade. Pará: Tavares
Cardoso & Cia., 1880. 926 CUÉLLAR, José Tomás. Los fuereños. In: CUÉLLAR, José Tomás. La lanterna mágica. Santander:
El Atlántico, 1890. (Vol. 7) 927 BALZAC, Honoré. Illusions perdues. Paris: Gallimard, 2013.
300
chega a ecoar algo das melhores páginas dos manuscritos de Paris (1844), de Marx, mas
o encaminhamento do problema em Balzac aponta outros desdobramentos: se com o
jovem Marx o dinheiro é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, o escritor francês
desvela o problema como mediação dos valores morais na sociedade moderna. Nesse
sentido, o registro moral dos luxos e os deslumbramentos são tematizados também junto
aos processos de educação e às camadas das condutas, compondo a tessitura da
interioridade e da exterioridade das formas de socialização, desenvolvendo a arqueologia
do mobiliário social e as relações de sentido subjacentes ao seu movimento.
As percepções sobre os movimentos da população na cidade do fim de século,
com seus “dominios amplos e luminosos”, “era a illusão” – ou seja, a “aura subtil da
dissimulação” e da superficialidade escondiam vertigens e intenções. A preocupação com
o desvelamento desse jogo de espectros que “arrebatava nos arminhos do extasis” de uma
“sociedade amavel, tão amavel que me attrahia”, conforme a cronista de um jornal de
época, “essa sociedade tão bella, tão pura e tão attrahente pela sua superficie” enganava
como um jogo de espelhos.928 Em Taunay, os usos da sociedade são a todo momento
confrontados com a corrosão moral que irrompe da degradação e dos estímulos
superficiais. Os personagens do romance de 1886, se eram “ambiciosos de luxo e
ostentação mas nullos de vontade” e entregues à banalidade da vida urbana (conforme a
nota crítica de Alberto Torres),929 indicavam em sua representação na sociedade os
perigos do luxo e dos deslumbramentos como iluminações de uma segunda natureza da
vida urbana.930 Já com Lucinda, de No declínio, o período de casamento com Ramos
Soares exibia o “equilíbrio em todos os factos da vida moral e material”, pois “tinha alma
bem serena em corpo admiravelmente são”, “preferindo aos ostentosos bailes e brilhantes
reuniões, onde ambos se aborreciam, o bom lyrico nas noites de inverno e, no verão, os
passeios por distantes arrabaldes, estada em confortáveis hotéis na Tijuca, em Palmeiras,
Petropolis ou Nova Friburgo, distracções”.931
Os desregramentos e o contrapeso moral nos usos da sociedade emolduravam as
narrativas da cidade sublinhando a significativa presença da gramática moral na
sustentação das formas ficcionais do período. Na burleta de Artur de Azevedo, em 1897,
a retórica moralista de Rodrigues (“o palmatória do mundo”) sobre o núcleo familiar
(“familia é a pedra angular de uma sociedae bem organizada”) e os “amores escandalosos
928 ROMARIZ, Maria Lucia. Escuta. A Familia , São Paulo, 18 nov. 1888. 929 TORRES, Alberto. Amélia Smith. A Vida Moderna, Rio de Janeiro, 12 fev. 1887. 930 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Amelia Smith. 2. Ed. São Paulo: Melhoramentos, 1930. p. 36. 931 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. No declínio. Rio de Janeiro: Ribeiro, Macedo & C., 1899. p. 11-18.
301
que ofendem a moral e os bons costumes” conduz a narrativa às contradições das condutas
do mesmo homem que se insinuava para Benvinda e frequentava o baile de Lola.932 Em
um meio tomado pelas iluminações do jogo, pelo encantamento das formas passageiras
(amores, dinheiro, apelos sensuais etc.) e por personagens “que se esquecem do decoro
que devem a si e a sociedade”, o horizonte vacilante da moral cadencia o enredo de
desajustes das prescrições.
Como espaço de novas sensibilidades e horizontes perceptivos, a estrutura dos
comportamentos e da civilidade direciona o exclusivismo do humano presente nos
processos de educação (centrado na racionalização das condutas, no auto-domínio moral
das ações e na elaboração da consciência) no sentido de um processo de evolução social
e depuração dos mecanismos de socialização.933 A formação do campo da instrução
pública, como incorporação de parâmetros da vida urbana, elaborava os códigos de
civilidade como exigências dos comportamentos morais tendo em vista sua capacidade
de reprodução por meio da imitação das condutas exibidas. Em Pernambuco, a professora
Francelina Forjaz de Lacerda, em abril de 1878, indicava que “na educação moral e
religiosa” fundamental era trocar
[...] a indolencia por uma nobre emulação, a duplicidade pela franqueza, a vil inveja por amavel benevolencia, a aspereza dos costumes e grosseria da linguagem pela affabilidade do tom e das mais polidas fórmas, a sensualidade pela moderação nos desejos, a orgulhosa independencia por uma respeitosa docilidade.934
Diluído em um processo de evolução antropológica e social, então, a civilidade e
a moralidade indicavam momentos de auto-consciência das formas de socialização da
vida moderna em relação ao passado. Para Alberto Salles, incapaz de “observar e
reconhecer devidamente a sua utilidade”, “o homem nos primeiros rudimentos de sua vida
social é incapaz de attender [...] não só ás vantagens puramente materiaes, como muito
principalmente ás indagações especulativas concernentes, directa ou indirectamente, ao
interesse, ou á utilidade, material ou moral, proveniente do estado social”.935 Diante da
“tremenda tempestade de 89” e da abertura das “portas ao mundo moderno”, a
preocupação moral com a reforma da sociedade e sua estruturação em relação a valores
932 AZEVEDO, Artur. A capital federal. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002. 933 Cf. Capítulo 3. 934 Instrucção Pública: conferências pedagógicas celebradas nos dias 17 a 19 de abril de 1878 na cidade
do Recife. Recife: Typ. de M. Figueirôa, 1879. p. 150. 935 SALLES, Alberto. Política republicana. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger, 1882.
302
implicava atenção à “natureza humana considerada em seus attributos fundamentaes”. Os
sentimentos, as faculdades intelectuais, as afecções, as simpatias e a moralidade eram
polos importantes da organização social, direcionando as preocupações com a civilização
no sentido do reconhecimento dos distintivos da vida moderna.
Os critérios formativos e o aperfeiçoamento das condutas circunscreviam um
processo de civilização por meio do qual era efetivada a submissão dos instintos aos
valores instituídos. Esses processos de educação inseparáveis da formação social,
portanto, convertem os usos da sociedade e a polidez em estruturas fundamentais para os
manejos e os tratos da vida coletiva. O “instincto de sociabilidade” que permite o “estado
de aggremiação” repousa sobre a rotinização das formas de socialização. Nesse sentido,
É manifesto, comtudo, que si nos tempos primitivos devem os homens ser principalmente dirigidos no emprego de sua actividade intellectual pelos mais grosseiros instinctos, com o desenvolvimento gradual das forças evolutivas da sociedade, àperfeiçoam-se e purificam-se esses mesmos instinctos e toma-se conseguintemente mais nobre e mais elevada a sua natureza propriamente moral, como evidentemente se observa na marcha geral da civilisação dos povos; á cada conquista da intellígencia corresponde uma modificação sensível na humanização dos nossos sentimentos e paixões.936
Trata-se de colocar os usos da sociedade e a “conducta humana” em perspectiva
a partir dos processos de educação. Se “é incontestável que essa energia dos instinctos
pessoaes pode ser vantajosamente combatida, tanto pela força do habito, como pela
educação”, o desenvolvimento da “sociedade, longe de ser um simples accidente, é pelo
contrario um facto natural e necessario, que resulta unicamente da adaptação gradual e
successiva dos attributos fundamentaes da natureza humana ás condições externas”.937 A
correlação entre formas externas e estruturação moral, não à toa, era fartamente abordada
nas lições de civilidade e de polidez. Mais do que um verniz de considerações tópicas,
esses usos da sociedade ilustram justamente os esforços perceptivos de interpretação das
condutas avaliadas a partir de seus critérios formativos (educação).
Esse era justamente o argumento de uma preleção de José Feliciano Oliveira na
Escola Normal de São Paulo.938 A vida urbana exige um novo regime de atenção, tendo
em vista suas formas de visibilidade. Em relação à formação dos futuros cidadãos, nesse
936 SALLES, 1882, op. cit., p. 36-37. 937 SALLES, 1882, op. cit., p. 30. 938 OLIVEIRA, José Feliciano. A educação e a urbanidade. São Paulo: Typ. do Diário Official, 1903.
303
sentido, o autor prescrevia: “poli-os das brutezas animaes, ensinae-lhes as formulas da
civiliação verdadeiramente hodierna, desterrae de seus labios o calão chulo e mesmo o
inesthetico vulgarismo”.939 Se a correção moral das condutas implicava a harmonia entre
as expressões fisiológicas, a apresentação individual na vida coletiva e a conformidade
dos valores do campo moral, “sendo mais facilmente satisfeitas as necessidades
materiaes, ha maior predisposição para a bondade, para a polidez, para os gosos da
sociabilidade”.940 Afinal,
A educação em geral póde ser considerada como o cultivo da urbanidade. A urbanidade ficará sendo claramente a aptidão de viver na sociedade sem ferir, sem offender, sem estorvar nossos verdadeiros concidadãos. Ora, o melhor meio de não embaraçar, de não offender seus concidadãos é ser bom, é ser altruista, porque o egoismo é que habitualmente levanta questões e provoca rivalidades. Dahi resulta que com a cultura da urbanidade se póde trabalhar na solução do problema educativo [...] A polidez deve ser destinada a polir a vida, a desvanecer as agruras de um viver trabalhoso e rude, a dar-lhe o lustre que estheticamente mais agrada. A polidez, na phrase de Diderot, será em nossa alma uma inclinação doce e bemfazeja, que torna o espirito attento, que torna o homem attencioso. Será então naturalmente pura e innocente, como diz o incomparavel encyclopedista; será filha da virtude, será essencialmente um bem, ainda que, às vezes, possam desvil-a de seu uso verdadeiro. A polidez é sempre um bem, porque reage no homem que a emprega e no que a recebe: dá-nos habitos de correcção e evita em nossos semelhantes as reacções que a rusticidade provoca.941
O regime perceptivo da cidade elabora os processos de educação também como
uma espécie de pedagogia do estético. A exibição das condutas e os imperativos do
domínio racional do corpo e da vontade implicam um ordenamento moral da socialização
do humano em relação às abjeções da miséria moral e ao destempero dos gestos – núcleo
dos preceitos de civilidade, como discutirei um pouco adiante. Aproveitando a rápida
remissão do autor a Diderot, em um dos verbetes da Enciclopédia editada pelo filósofo
francês, Jaucourt afirma que, nos quadros de uma fisiologia geral da postura, o caminhar
requer um ordenamento da máquina corporal direcionando a racionalidade do corpo
939 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 27. 940 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 31. 941 OLIVEIRA, 1903, op. cit., p. 23.
304
humano.942 Como modo de deslocamento (déplacement) que confronta o observador com
a trasitoriedade e o reconhecimento do espaço público,943 a exibição na cidade é objeto,
sobretudo, de um ethos da vida moderna. Nesse sentido, esse exercício moral da esfera
pública aberto à observação íntima do observador individual repousa sobre o amplo
processo de civilização e de polimento das condutas, pois implica contatos intersubjetivos
capazes de avaliar e de confrontar o trânsito da vida urbana com expectativas em relação
à postura pública e seus códigos específicos.
A duplicidade da socialização liberal entre o homem e o cidadão (ou entre o
indivíduo auto-interessado e o ser social) é uma diferenciação que, mediante os processos
de educação, carrega como pressuposto um esforço de unificação desses polos por meio
dos valores subjacentes às condutas individuais e sua representação social. O cuidado da
forma exterior expressa essa mediação moral entre o indivíduo e as estruturas de
reconhecimento da vida coletiva. Fraya Frehse analisou o impacto das transformações da
segunda metade do XIX na vida urbana no Brasil a partir da abordagem lefebvriana da
dialética cultural do vivido: nesse sentido, o trânsito impessoal da civilidade moderna
destaca “o que se vê”, de modo que a exposição na esfera pública mobiliza expectativas
e formas de socialização.944 Justamente como dinâmica movida pela contradição entre a
vida material e as formas da consciência, as vivências socioeculturas centradas na rua
implicam símbolos e uma orientação da praxis por meio de referências simbólicas
constitutivas da cultura moderna (e, aqui, a noção de civilidade e os usos da sociedade
são referências socioculturais centrais). Se a antropóloga destaca, com muita argúcia, as
transformações nas regras de conduta diante da modernização do mundo da vida na cidade
oitocentista, minha pesquisa tenta escavar algo um pouco anterior a isso, enfatizando que
as condutas, suas regras e suas representações sociais mobilizam valores – ou seja, dizem
respeito à estruturação moral da sociedade, conformando expectativas, avalições e
prescrições nas esferas da socialização.
A vasta circulação de preocupações sobre a exposição e a civilização das condutas
indicavam, sobretudo, fundamentos morais de estima e reconhecimento junto ao
alargamento da vida pública nas cidades.945 Em um conhecido livro de lições morais
942 JAUCOURT, Louis. Le marcher. In: DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean. Encyclopédie, ou
dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Chicago: University of Chicago, 2008. p.88-89. (Vol.10) – ARTFL Encyclopédie Project (ed. Robert Morrissey).
943 BAECQUE, Antoine. Une histoire de la marche. Paris: Perrin, France Culture, 2016. 944 FREHSE, Fraya. Ô da rua!. São Paulo: EDUSP, 2011. 945 NARITA, Felipe Ziotti. A educação da sociedade imperial: moral, religião e forma social na
modernidade oitocentista. Curitiba: Prismas, Appris, 2017. (Col. Leituras de Brasil)
305
traduzido por Francisco Freire de Carvalho, cônego de Lisboa e socio de socieades
literárias no Brasil e em Portugal, a preocupação era “oppôr uma barreira a este andaço
geral, que hoje lavra extensamente pelo Mundo”, de modo que as lições, dirigidas em tom
de conversação entre um pai e seus filhos (formato muito comum no oitocentos), eram
apresentadas “a fim de por seus tenros corações em estado de resistirem ao veneno
corrosivo do máo exemplo”.946 Se “nas grandes cidades, onde o concurso da gente pelas
ruas é muito numeroso”, o regramento das percepções era central nessa tarefa pedagógica:
a urbanidade, como “arte de agradar”, indicava que “o caminho, que conduz ao coração,
passa pelos sentidos: quem captivar os olhos, e os ouvidos, ja tem feito meia jornada”.947
Diversos códigos de socialização, então, são submetidos ao campo de avaliações: por
exemplo, “o ir fumando, assobiando, ou cantando pela rua, é proprio de gente ordinaria”
e, especialmente em relação às mulheres, “no teu modo de andar deverá descobrir-se o
pudor, assim como em tuas vistas a decência”, pois “uma mulher, que fixa os olhos nos
homens, inculca falta de vergonha; e se move a cabeça de um lado para outro, tel-a-hão
por louca”.948 Contra as condutas de “má educação”, o regime de atenções implicava da
“pronunciação ao tempo de falar” ao “modo de estar á mesa”, evidenciando esforços de
rotinização de condutas na vida moderna.
As preocupações estavam concentradas em três eixos: “a boa Moral, ou a
necessidade, que temos, de não fazer mal a pessoa alguma; e de fazer a outrem o bem,
que nos tem feito. A Virtude, ou o valor de praticar o bem gratuitamente, e ainda contra
o nosso proprio interesse. A Urbanidade, ou as fórmas exteriores do homem na
Sociedade”.949 A integração dessas prescrições em um campo de prescrições indicava,
sobretudo, a busca por fundamentos da vida social, de modo que
Assim como todo o edificio tem seus alicerses ou bases, sobre as quaes se sustêm com firmeza; do mesmo modo as acções, que devemos praticar, tem por fundamento certos principios geralmente reconhecidos por todos os homens, taes como os seguintes: Não faças a outrem, o que não quererias que te fizessem a ti; E faze aos outros, o que quererias que os outros te fizessem. Eis aqui pois o que se denomina bases moraes.950
946 URCULLU, José. Lições de boa moral, de virtude e de urbanidade. 3. Ed. Lisboa: Typographia
Rollandiana, 1854. 947 URCULLU, 1854, op. cit., p. 182. 948 URCULLU, 1854, op. cit., p. 156. 949 URCULLU, 1854, op. cit., p. 14. 950 URCULLU, 1854, op. cit., p. 10.
306
Os parâmetros de civilidade sublinham o exclusivismo do humano (até aqui
analisado a partir do potencial de emancipação moral da consciência educada) como
regramento exterior. Não à toa, a difusão das lições de civilidade e das preocupações com
o decoro externo foi bastante significativa no século XIX e particularmente presente no
fim de século. Junto ao célebre projeto da “Biblioteca do povo e das escolas” coordenado
pela editora de David Corazzi (contando com diversos volumes, muito conhecidos no
Brasil e em Portugal, entre os anos 1880 e o começo do século XX), Antonio Maria
Baptista ensinava que “a Civilidade não é a Moral, mas é um como complemento d’ella;
dá-lhe polimento e realce”, pois “pode um homem ser honrado, bemfazejo, generoso, ter
todas as virtudes moraes, e desconhecer os preceitos da civilidade”, de modo que “a
Civilidade é cosmopolita; não tem patria, e tambem não tem religião especial”.951 A
centralidade dos preceitos externos de conduta consistia na normatividade dos usos da
sociedade tendo em vista as formas de reconhecimento público das condutas. Baseado na
fisiologia de Mello Moraes, Antonio Manoel Reis acreditava que
A civilidade é uma vitude da sociedade, que dá a cada um o que lhe é devido. Consiste nos respeitos mutuos que o uso e a differença das classes e das condições estabelecem. A civilidade é tambem a demonstração de nossos sentimentos officioos para com os nossos semelhantes, de nossos gestos e de nosso ar.952
Os usos da sociedade, como contraponto às narrativas de degradação do social e
suas expressões de abjeção, difundiam uma moralidade de condutas urbanas muito presas
à polidez (urbanidade) e sua mecânica social. Essa racionalização das condutas corporais
e dos comportamentos, como discurso de civilização da modernidade,953 enfatiza o trato
da vida social como componente central na visibilidade da gramática moral. Se “a polidez
encerra todas as virtudes sociaes, que não podemos dispensar si queremos ser uteis e
agradaveis áquelles com quem temos de viver”, dela “derivam as regras da polidez dos
usos da sociedade”.954 Nesse sentido, “cumpre innoculal-a na creança desde a mais tenra
idade, afim de que mais tarde não seja affectada”. A polidez desvela as primeiras camadas
951 BAPTISTA, Antonio Maria. Civilidade. Lisboa: David Corazzi, 1898. p. 50. 952 REIS, Antonio Manoel. Thesouro litterario ou collecção de maximas, pensamentos, aphorismos,
definições, reflexões, noticias e trechos. Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo, 1873. p. 470. 953 VEIGA, Cynthia Greive. The body’s civilisation/decivilisation: emotional, social, and historical
tensions. Paedagogica Historica, v. 54, 2018. 954 ALO, Maria Luiza. A polidez. A Estação, Rio de Janeiro, 15 abr. 1882.
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da conduta educada na medida em que recobre os atos com sinais e visibilidade, de modo
que
Sem ella toda communicação permanente com os nossos similhantes torna-se impossivel. É ella que adoça os costumes, suffoca as rixas, e muitas vezes acalma as irritações e os odios; é ainda a polidez que faz com que respeitamos os nossos inferiores e sejamos estimados pelos nossos superiores [...] A polidez não sera por acaso a fórma com que vestimos os nossos actos? ha a polidez do coração, que não se ensina, como ha a civilidade de sentimento.
Se a professora Guilhermina Azambuja Neves foi um nome importante na
produção de livros de civilidade no fim de século,955 outro texto bastante conhecido,
publicado originalmente pela escritora portuguesa Maria Amalia Vaz Carvalho em 1897,
entendia a civilidade e os usos da sociedade como o problema de uma “perfeição
mundana” vinculado aos “deveres da boa sociedade”, tendo em vista um duplo aspecto:
as “convenções que constituem o código mundano” e a ambivalência dos valores e
comportamentos diante das iluminações e do luxo que “ostenta os seus deslumbrmentos
multiformes”.956 A sociedade moderna “julga pelas apparencias” e a exterioridade situa
o observador moral no trânsito das formas morais, de modo que “o código da boa
educação” prescreve recato nas aparições junto à “scena social onde todos nos
observamos”.957 Nesse sentido, a “educação que eleva o espirito” exige que os indivíduos
(com especial ênfase sobre as condutas femininas) “se inspirem no que de mais
genuinamente bello tem a evangelica doutrina de Christo, e egualmente no sentimento da
sua propria e immaculada dignidade”, tendo em vista a temperança do mundo moral.
A “viva comprehensão do que ha de brilhante na vida moderna”, além dos deveres
em relação ao outro e da “regularidade do trabalho”, significa uma “intransigencia em
tudo que respeite aos deveres fundamentaes de moralidade e ordem”.958 Portanto, “a
polidez, a exactidão, o conhecimento amplo e methodico das formulas, pelas quaes a
sociabilidade se traduz, são aqui indispensaveis como na scena do mundo, agitada e
brilhante”. O jogo entre os valores e o encantamento exterior, nesse sentido, preocupava
o observador moral na medida em que
955 NARITA, 2017, op. cit., p. 253-262. 956 CARVALHO, Maria Amalia Vaz. A arte de viver na sociedade. 3. Ed. Lisboa: Typ. de Antonio M.
Pereira, 1901. 957 CARVALHO, 1901, op. cit., p. 268-269. 958 CARVALHO, 1901, op. cit., p. 52.
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No mundo, é necessario dizer e repetir isto, ninguem se interesa pelo visinho, e todos se interessam por si proprios. Foi para disfarçar sob graciosas apparencias esse egoismo universal, que a polidez, que a amabilidade mundana, que o savoir vivre cortezão inventou as suas formulas mais encantadoras, e as suas mais elegantes e requintadas hypocrisias. Vae-se hoje á sociedade para aparecer.959
Em registro semelhante, um livro de leitura muito popular nas escolas brasileiras
do século XIX (a primeira edição data de 1845), assinado por José Ignacio Roquette,
ensinava que “a verdadeira polidez vem do coração”.960 Professor de eloquencia sagrada
no Seminario de Santarém e cavaleiro da ordem da rosa do Império brasileiro, Roquete
buscava reintegrar, em suas lições, “aquella antiga polidez e urbanidade que era outr’ora
tão ordinaria” junto aos quadros da vida moderna, de modo que a relação entre
exterioridade e interioridade era central: se “a verdadeira honestidade não se assusta com
cousa nenhuma, porque prevê tudo”, “é necessario ser um dragão de virtude, mas sem o
parecer”.961 O autor, então, advertia: “não penseis que estas regras sam arbitrarias: não,
meus filhos, sam outras tantas leis que é mister observar, eu as encontrei escritas em
livros, e rigorosamente observadas nas sociedades e no trato do mundo”.962 A observância
em relação aos usos da sociedade ancorava o trato social em um contexto de virtudes
morais, de modo que “as maneiras delicadas e polidas” e “as maneiras que encantam”
provêm “d’ uma virtude inherente á natureza humana, d’uma virtude evangelica sobre
todas as outras, da caridade”. Nesse sentido, “em que consiste o ser perfeitamente polido,
senão em experimentar o desejo de ser util, e agradavel; e de resolver-se a fazer, para o
conseguir, muitissimas concessões e sacrificios agradaveis aos outros?”.963 Das
“expressões e maneiras de fallar” à “postura de corpo grave e reservada” na esfera
pública, a exibição das formas da máquina corporal, submetida à racionalização dos
processos de educação, condicionava os usos da sociedade às desestabilizações do
horizonte de transformações da época:
Não quero que ignoreis, meus filhos, que n’estes ultimos tempos (depois de 1850) em que grandes mudanças se tem produzido na
959 CARVALHO, 1901, op. cit., p. 143. 960 ROQUETTE, Jose Ignacio. Codigo do bom tom ou regras da civiliade e de bem viver no XIXº seculo.
Paris: J. P. Aillaud, 1875. 961 ROQUETTE, 1875, op. cit., p. 237. 962 ROQUETTE, 1875, op. cit., p. 11. 963 ROQUETTE, 1875, op. cit., p. 13.
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sociedade, muitas pessoas tem tratado de puerilidades a maior parte das exigencias da civilidade moderna. Não seis ouvidos aos que assim fallarem, antes accreditai e tende como verdade fundamental, que em materia de civilidade nao ha nada pueril. A civilidade, ou para fallar uma linguagem mais moderna, a polidez não é outra cousa senão a manifestação, a prova visivel, e por assim dizer palpavel, da bondade de cada qual que deve sempre transluzir no trato do mundo. É a moeda cunhada com o metal precioso composto das virtudes amaveis que encerram os corações generosos. É a benevola affirmação dos sentimentos elevados, dos instinctos de obsequio e dedicação. Em uma palavra, é a qualidade por excellencia que revela todas as outras qualidades, applicando ao bem-estar, á satisfacção de todos.964
A arqueologia das inclinações morais introduzida nesses contrastes entre as
formas da exterioridade e os valores condicionava os usos da sociedade a um constante
trabalho de educação do observador moral sobre si. Além de dinâmicas de subjetivação e
valorização de comportamentos, os processos de educação eram realçados junto às
estruturas intersubjetivas da socialização: as lições de Francisca Julia Silva, por exemplo,
podem ser lidas nesse registro.965 O livro, conforme um gênero comum de lições morais
no fim de século, dispunha várias histórias capazes de abrir horizontes formativos do
caráter e das condutas sociais. A autora ensinava que
Nunca devemos amar as coisas ou pessoas só pelo aspecto externo que as reveste: devemos penetrar-lhes no fundo, estudar-lhes o intimo [...] Muitas vezes um bello homem, trajado como um fidalgo, apparentando os mais elevados sentimentos, occulta uma alma ruim, carcomida de vicios e envenenada cie remorsos; outras vezes encontrarás num homem humilde, coberto de andrajos, mostrando toda a pobreza em que vive, um coração nobre, cheio das mais santas delicadezas de sentimentos.966
As formas reluzentes da vida moderna exigem, sobretudo, cautela diante da
exposição. Nesse sentido, “nunca te deixes arrastar só pelo aspecto das coisas; os abysmos
e os despenhadeiros são sempre cercados de flores e vegetações formosas”, de modo que
“si te approximares dellas para gosar de perto a frescura perfumosa das flores, encontrarás
a morte adeante e nem tempo terás para o arrependimento dos peecados”.967 A própria
noção da caridade dialogava com as ambivalências na exibição dos comportamentos: a
964 ROQUETTE, 1875, op. cit., p. 16. 965 SILVA, Francisca Julia. Livro da infancia . São Paulo: Typ. do Diario Official, 1899. 966 SILVA, 1899, op. cit., p. 50. 967 SILVA, 1899, op. cit., p. 52.
310
autora ensina que um moço de “feições agradaveis” e vestido “de maneira modesta porém
distincta” encontra dois mendigos com “roupas esburacadas, arrimados aos bordões, a
cabela cahida para a frente, como vergados ao peso dos anos”. O moço, “penetrado de
compaixão”, apalpou os bolsos e achou apenas uma moeda e, como “a justiça divina
manda que se distribua a esmola em partes eguaes”, não deu o dinheiro. Amaldiçoado por
um dos velhos e depois cumprimentado pelo outro, a autora ensina que “nunca devemos
dar esmola, principalmente quando o nosso dinheiro é escasso, sem observar si a pessoa
que nos pede é merecedora da nossa piedade”.968 Justamente a partir dos usos da
sociedade, então, a elaboração de quadros de avaliação das condutas posiciona o encontro
e as interações intersubjetivas em contextos mediados pelo campo moral em busca de
uma autenticidade sempre camuflada diante da impessoalidade e do anonimato dos
contatos.
Mesmo os devaneios da imaginação ficam reduzidos a um senso prático ancorado
na gramática moral. A autora, nesse sentido, narra os percursos de um rapaz (um
“maniaco”) que errava pelas cidades e vilas em busca de riqueza. Mobilizando a ética do
trabalho, o livro ensinava: “infeliz rapaz! pensou piedoso o camponez, acompanhando-o
com os olhos. Quantos também não ha no mundo que atravessam uma existência inútil,
tão inútil talvez como esta, incapazes de trabalhar, esperando que a felicidade os venha
procurar no sonho, como este louco que pensa encontral-a no solo”.969 O delírio
materialista se esfumaça diante do ímpeto da acumulação ilimitada, tornando a ambição
das cabeças áureas pelo visível um tanto vacilante diante das pressões culturais da
normatividade moral. Em um vasto repositório de saberes morais e educacionais do fim
de século, o Anuário do Ensino de Menezes Vieira e Olavo Freire publicou trechos da
obra de Orison Marden (Pushing to the truth) reforçando, por exemplo, esse conjunto de
motivações morais dos usos da sociedade.970 O texto prescrevia valores para que os
indivíduos não se entregassem aos desvarios materialistas da modernidade (“não vos
arrasteis em vás hesitações”), aconselhando também “bellas maneiras”, pois o “homem
que tem bellas maneiras póde prescindir de riquezas; todas as portas se abrem diante
delle”. A regularidade moral, tanto nos usos da sociedade quanto nas atividades
produtivas, “é a divisa da natureza”: “trabalha ou morre!”, ou seja, “se cessardes de
trabalhar, morrereis intellectualmente, moralmente, physicamente; tende caracter; só
968 SILVA, 1899, op. cit., p. 21-23. 969 SILVA, 1899, op. cit., p. 90. 970 MARDEN, Orison. Maximas de Mr. Orison Sewett Marden. Annuario do Ensino, Rio de Janeiro, 1895.
311
quem tem caracter triumpha”. A ambição desmedida sujeita a vontade ao desregramento
dos usos da sociedade – e o contato com as formas exteriores, antes de uma abertura às
intenções, exibia a transparência de um brilho sempre ardiloso.
A harmonia das faculdades, por isso, representava os esforços estabilização das
incongruências. Preocupado com o “aperfeiçoamento do individuo”, Nuno de Andrade
argumentava que “a educação consiste no cultivo de todas as aptidões humanas” e, como
“producto de varios factores”, carregava deveres “quanto ao individuo” (“a saude, a
robustez physica e a belleza plástica”), “quanto á especie” (“a procreação de um typo
ethnico mais sadio, mais robusto e mais bello do que o precedente”) e “quanto á
sociedade” (“o homem moral” como duplo de homem e cidadão).971 A temperança e a
decência do comportamento são os esteios da “dignidade moral” que torna, nas palavras
de um autor muito conhecido no Brasil do fim de século, “o homem superior aos outros
seres da creação pela razão, pela liberdade, pela moralidade”.972 Os usos da sociedade e
o equilíbrio dos ímpetos aperfeiçovam o indivíduo, pois
Como está sempre a alma inclinada a acompanhar o tom do corpo e o interior compõe-se naturalmente de accordo com o exterior, evitar-se-ha a desordem nos modos, no vestuario, nas palavras, que levam insensivelmente a desordem aos pensamentos. A dignidade exterior nada mais é do que o reflexo da dignidade da alma.973
Para Janet, a produção das condutas educadas correlaciona “a instrucção e a
educação” na fundamentação dos modos e do respeito. Se “a primeira tem por fim o
espirito e a segunda o caracter, [...] sem a educação moral, póde ser perigosa a
instrucção”.974 Essas formas de reconhecimento social mediadas pelos usos da sociedade
e pelos deveres mútuos das interações compõem uma narrativa de emancipação (“se é a
razão que distingue o homem do bruto, são as luzes que ampliam e realçam a razão”) na
medida em que o “governo dos caracteres” organiza as “disposições naturaes” por meio
da “influencia da educação” e das circunstâncias do meio social na contenção das paixões
e na instituição de referências para a exposição dos hábitos.975 Assim,
971 ANDRADE, Nuno. Liberdade do ensino superior. Annuario do Ensino, Rio de Janeiro, 1895. 972 JANET, Paul. Tratado elementar de philosophia. Rio de Janeiro: Garnier, 1886. (Vol. 2) 973 JANET, 1886, op. cit., p. 10. 974 JANET, 1886, op. cit., p. 31-32. 975 JANET, 1886, op. cit., p. 151.
312
Se os homens absolutamente nada tivessem de commum, como poderiam entender-se e formar sociedade? Sem algumas noções communs, como comprehender a palavra, a educação, a discussão, em summa, todas as operações de nossas faculdades sociaes? É necessario que os homens partam de alguns principios communs. Demais, pois que existe entre os homens uma conformidade incontestavel de organisação physica, é natural induzir-se que existe tambem uma conformidade semelhante entre suas faculdades intellectuaes e moraes.976
Os usos da sociedade e as “virtudes mundanas” (expressas na polidez, na cortesia
e nos modos educados) indicam representações da “ordem da sociedade” pois
reproduzem vínculos da consciência com as imagens de regularidade e harmonia do
campo perceptivo, tentando estabilizar o trato externo diante da “contradicção humana”
revolvida pelo mundo moral. Partindo de uma pequena filosofia da história, Benjamin
Constant defendia que “a humanidade não caminhou ao acaso na conquista intellectual
do mundo: embora incerta e vacillante em sua marcha, inconsciente e fatalmente obedecia
a leis invariaveis, profundamente gravadas em sua propria natureza”.977 A preocupação
era esclarecer o entendimento para que “na época que atravessamos, caracterisada por um
exagerado culto á sciencia”, fosse possível “julgarmos com segurança a utilidade real
desses conhecimentos theoricos, impedindo que nos deixemos arrastar pelas seducções
de progressos illusorios e perturbadores”. Se a consciência moderna é o foco de
virtualidades contrárias, evitar os “desmandos da intelligencia” por meio da educação
moral implicava “dirigir e dar util applicação ás nossas forças intellectuaes”. Assim,
Felizmente para a humanidade as melhores de todas essas regras, preceitos e maximas moraes, de immenso alcance e inexcedivel sabedoria, relativos á virtude, á honestidade, á veneração, á bondade, e em geral a todos os nossos mais nobres deveres e attributos moraes que tem tido a consagração de todas as religiões, referem-se a sentimentos que tem sua sede na natureza humana, ahi se acham profundamente enraizados e podem ser amplamente desenvolvidos, bem como comprimidas as más inclinações, tambem inherentes á nossa natureza, por meios puramente humanas. Os melhores pensamentos são os que nos vêm do coração [...], dispondo dos poderosos motores que o conhecimento de nossa natureza lhe offerece para desenvolver no individuo, desde o nascimento até á morte, nossas melhores inclinações e comprimir nossos grosseiros e maus instinctos, assim substituindo cada vez mais o egoismo enfezado e esteril pelo largo, benefico e fecundo amor da humanidade.
976 JANET, 1886, op. cit., p. 242. 977 CONSTANT, Benjamin. Methodos de ensino. Annuario do Ensino, Rio de Janeiro, 1895.
313
Sincronia, harmonia e ordem das faculdades: a ancoragem da estruturação moral
assumia essa aspiração como ponto de partida. Junto à “a marcha logica da intelligencia”,
em chave evolutiva, o ímpeto moderno tem “immensas regiões a explorar, campo novo,
vasto e fecundo ao proveitoso exercicio da intelligencia”. O contemporâneo é o epígono
da vasta carreira de desenvolvimentos da modernidade e, por isso, a realização de seus
conteúdos depende das garantias morais estabelecidas pelos processos de educação, dos
quais os usos da sociedade, finalmente, expõem o verniz mais bem cinzelado. Se a
educação moral oferece “dignos e attrahentes assumptos ás mais uteis e sublimes
meditações humanas”, a racionalização das condutas educadas e o exclusivismo moral
que atravessa o século são as rédeas para o estampido e a aceleração do progresso ordeiro.
Essas apostas insinuam um horizonte seguro de si, cuja legitimação parecia ancorada no
movimento e na busca das promessas inacabadas de emancipação por meio das
iluminações mundanas que tragavam os contextos tradicionais com aço, fogo e vapor.
Justamente por isso, o campo moral tentava fundamentar uma experiência cada vez mais
desconjuntada e volátil, pois ele próprio era assombrado pelas fantasmagorias da nova
materialidade do mundo da vida, em que o trabalho do progresso e a epopeia moral de
suas ambitions déçues eram erguidos sobre um cadafalso de destruição.
314
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do percurso de pesquisa, o eixo mais importante do trabalho consiste na
análise dos parâmetros de socialização, por meio dos processos de educação,
evidenciando a coerência da formação social em relação aos contextos temáticos da
gênese da modernidade capitalista no século XIX. A abordagem, então, busca o
afastamento teórico em relação aos registros da suposta imobilidade de uma forma social
bloqueada pelo paternalismo, pela herança da escravidão, pela opacidade em relação às
mudanças culturais e pela desarticulação de mecanismos de coesão da sociedade civil
(pontos que destacam sempre uma modernidade entre aspas na região). À luz da
circulação, das transferências culturais e da produção de imaginários sociais, as práticas
formativas estruturam valores, ou seja, não são considerações epidérmicas, tampouco
podem ser elementos reduzidos a um fugaz vislumbre da vida moderna em meio a uma
formação social ancorada no arcaísmo e na tradição. Minha pesquisa, de algum modo,
tenta colocar esses registros sob suspeição. Não há uma formação social cindida entre
polos reificados (por exemplo, entre as manifestações epidérmicas da modernidade nos
principais centros urbanos e o vasto mundo arcaico). Como uma periferia do capitalismo,
no contexto de desenvolvimento do sistema-mundo moderno, o Brasil oitocentista é parte
da vasta (e heterogênea) experiência da modernidade, carregando múltiplas
temporalidades e disjunções em seu movimento.
Os referenciais macrossociológicos que amarram alguns argumentos da pesquisa
(a noção de centros e periferias), derivados das categorias do sistema-mundo, em
momento algum implicam a reposição de dualismos na estruturação sociocultural – como
se houvesse conteúdos essencialmente diferentes entre as formas supostamente autênticas
da modernidade nos centros do capitalismo e o mero mimetismo das regiões periféricas.
Ao discutir a circulação e a difusão dos saberes junto à infraestrutura capitalista e sua
incorporação em processos de educação (organizando um vasto acervo de mediações
morais de socialização), minha abordagem se distancia dos registros da inautenticidade
ou de ideias deslocadas de contextos originais. Com o recurso às categorias do sistema-
mundo, procuro simplesmente realçar as assimetrias que marcam a gênese e o
desenvolvimento da modernidade capitalista. Centros e periferias, portanto, são posições
em relação ao processo de valorização do capital, de modo que a circulação cultural e as
transferências não são construídas sobre um todo indiferenciado, ou seja, não ocorrem a
315
partir de uma relação entre iguais. No estudo da gênese da modernidade no século XIX,
a integração dos antigos espaços coloniais nessas dinâmicas transnacionais é percorrida
por diferenciações materiais (divisão do trabalho, incorporação de substrato técnico e
lucro) que posicionam as unidades nacionais em relação à produção de valor.
O entendimento das apropriações e das contradições da modernidade em chave
transnacional (evidenciando a circulação de saberes) é uma abordagem que aposta na
conexão e nos reencaixes da cultura. A ampliação dos circuitos de mercadorias, ideias e
pessoas (ou seja, de práticas e signos culturais) está na base da construção da
modernidade. Se a primeira grande onda de descolonização é consolidada no século XIX
(sob o ruído das revoluções atlâncias e das independências nas Américas), as condições
de integração desses espaços sociais são rearranjadas e inscritas simultaneamente à
gênese da cultura moderna. As periferias do sistema-mundo, então, não são horizontes
confinados à estreiteza das comunicações precárias ou aos registros (com forte conotação
colonialista) de defasagem em relação a uma suposta teleologia do cumprimento dos
conteúdos da modernidade nos nascentes centros industriais e nas metrópoles ocidentais.
A questão é investigar, como desafio teórico, o que a crítica pós-colonial tem chamado
de “hegemonia cultural”, ou seja, escovar a contrapelo as narrativas que isolam os antigos
espaços coloniais como se fossem assuntos paroquiais diante da universalidade das
experiências da Europa Ocidental.978 A pesquisa dialoga com as linhas mais gerais dessa
proposta e procura oferecer subsídios para a discussão.
Especialmente a partir dos anos 1980, nas ciências sociais, muitos estudos têm
tematizado os caminhos diferenciais da modernidade global. Para ficar em alguns
expoentes teóricos mais notáveis, menciono a ideia de uma modernity at large de Arjun
Appadurai, as alternative modernities de Bill Ashcroft e Dilip Parameshwar Gaonkar, as
many globalizations de Samuel Huntington, o trabalho de Nicos Mouzelis sobre a
diferenciação social parsoniana no entendimento de cenários não-europeus da
modernidade e a teoria das entangled modernities de Göran Therborn. Na América
Latina, o conjunto de discussões tem avançado em diversas direções a partir dos textos
de Walter Mignolo, da teoria de Dussel sobre a “transmodernidade” e da noção de
“modernidade barroca”, de Bolívar Echeverría, caracterizando as estruturas diferenciais
da América Latina em registros identitários (entendidos como uma situação histórica
específica junto à constituição global do capitalismo e suas estruturas de exploração).
978 ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. The empire writes back: theory and practice
in post-colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.
316
Como conjunto, os matizes teóricos envolvidos são bastante diversos, sem dúvida, mas
indicam um ponto: a quebra das narrativas exclusivistas da modernidade centradas no
processo de racionalização ocidental acentuado no século XIX. Em chave semelhante,
nas reflexões da última fase de Roger Bastide nos anos 1970,979 a fértil metáfora de
Prometeu expressa a articulação da ideologia do progresso (a abertura à indeterminação
das manières de vivre e a ambição do indivíduo moderno de se faire soi même) com
formas arcaicas da sociabilidade, enfatizando justamente a pluralidade e o amálgama de
experiências históricas condensadas nas narrativas da modernidade.
Os vastos campos de discussões abertos por esses trabalhos são indicativos dos
esforços notáveis de alargamento e de sofisticação teórica no entendimento da noção de
modernidade e de suas interconexões a partir do século XIX, sublinhando a diversidade
empírica e suas formas relacionais ligadas às transformações e às conexões da cultura
moderna. Se não há uma narrativa unívoca sobre a modernidade, tampouco uma
genealogia que garanta uma origem autência para seus conteúdos, as transferências
culturais e as negociações transnacionais dos processos evidenciam a interação de
diversos contextos e camadas temporais na constituição do moderno.980 Nesse sentido,
longe das narrativas de auto-ocidentalização, a concretude dos percursos históricos das
formações sociais pode ser analisada justamente à luz dessas interações mais amplas,
enfatizando a correlação de formas na gênese da cultura moderna. Meu estudo, ainda que
ecoe problemas mais gerais das discussões sobre os caminhos alternativos da
modernidade (abordagens situadas em entrecruzamentos importantes com as teorias pós-
coloniais, os estudos subalternos e a crítica da colonialidade), não avança propriamente
sobre o amplo tema dos caminhos diferenciais pois, ainda que reconheça a diversidade de
contextos em interação, assume como premissa um núcleo que, amarrando a
heterogeneidade de processos, constrói uma convergência transnacional para os caminhos
particulares: por isso, falo simplesmente de modernidade capitalista.
Meu argumento é que a estruturação internacional do capitalismo no século XIX
(ancorada no processo de valorização analisado por Marx e configurada nos quadros do
sistema-mundo moderno) unifica o conjunto de formações sociais em torno da
autonomização do sistema social de troca de mercadorias e de reprodução ampliada do
capital. Existe, portanto, uma sincronia nas sociedades produtoras de mercadorias,
979 BASTIDE, Roger. Le sacré sauvage. Paris: Stock, 1997. 980 BURSKI, Jacek; MARZEC, Wiktor; ZYSIAK, Agata (Orgs.). Archaeologies of contemporaneity:
historical sociologies of the modern. Poznań: Praktyka Teoretyczna, 2014. (Vol. 13)
317
representando diversos momentos (mediações) de totalização de um mesmo sistema
social estruturado sobre uma lógica transnacional (a modernidade capitalista).
Esse quadro básico de referências (a estruturação do capitalismo como sistema
social) dispõe um feixe de significados. De partida, enfatizo o conjunto de transformações
que, a partir do final do século XVIII, alicerçou dinâmicas socioeconômicas e pressões
culturais transnacionais junto às novas materialidades do mundo da vida (compreendendo
não apenas a dimensão técnica, mas a elaboração de valores, relações sociais e produção
de subjetividades). A infraestrutura da vida urbana e seus novos públicos, os suportes
materiais de intercâmbio (ferrovias, vapor e portos), a nova amplitude das esferas de
circulação (imprensa, telégrafo, tipografias etc.), o sistema de crédito, as revoluções
atlânticas, a desestabilização de contextos tradicionais de formas de vida e a multiplicação
das mercadorias e formas de trabalho em circulação oferecem coordenadas para novas
dinâmicas culturais – ampliando os campos de transferência de ideias e pessoas,
alargando o horizonte dos desejos e construindo condições de unificação das
necessidades imanentes à expansão do mercado mundial.
Trata-se de unificação, não de homogeneização. Não estou afirmando que as
práticas culturais são subsumidas pelas configurações socioeconômicas (o que implicaria
reiterar um determinismo rasteiro), nem advogando um retorno à teoria da transição ou a
uma lógica etapista demarcada a priori (descolada da diversidade empírica do processo
social). Minha posição em relação à teoria da reprodução simples, de Engels, explicita
justamente esse afastamento – no campo do marxismo, a discussão de Marx com o teórico
narodniki Nikolai Mikhailovski, no fim dos anos 1870, questiona qualquer linearidade
nos processos de modernização social, tendo em vista que a estruturação da modernidade
capitalista não é construída como “uma teoria histórico-filosófica do curso fatalmente
impostos aos povos”. Nesse sentido, tentei desenvolver um pequeno complemento a uma
tese apresentada por Marx:981 se o processo de produção é fundamentado sobre a
materialidade das técnicas e condições de existência, de modo que a produção da
sociedade é o metabolismo socioeconômico, essa identidade conceitual (entre a produção
da vida coletiva e a atividade social) precisa ser matizada pelas conexões socioculturais.
A produção e a reprodução material, além do novo ambiente técnico, expressam novas
combinações culturais e estruturas de socialização dispostas conforme valores e registros
interpretativos das modificações de um mundo da vida exposto à aceleração capitalista.
981 MARX, Karl. Das Kapital. Berlim: Dietz, 2010. p. 826-827. (Vol. 3)
318
Portanto, analisar as práticas formativas de conduta significa, sobretudo, discutir as
formas contorcidas de uma dinâmica social dobrada sobre suas contradições culturais e
confrontada com as incongruências e distorções da modernidade.
A ênfase sobre os processos de educação, como elaboração (produção e
reprodução) de valores da socialização, implica justamente destacar as mediações que
situam a forma social nessa ressemantização de repertórios culturais e de percepções da
modernidade. A investigação tenta dinamitar os registros de uma importação de ideias ou
da existência da cópias e modelos, enfatizando, antes, a interação de vetores diversos nos
registros da cultura. Meu argumento é que a proatividade de uma região periférica na
formação do capitalismo pode ser analisada justamente nessa ampla tradução de
repertórios em circulação no período. Daí o caminho da pesquisa: das configurações da
vida urbana e da institucionalização de exigências formativas de conduta (campo da
instrução pública) à invenção do social e aos usos da sociedade, tentei compreender o
movimento da forma social vinculado à emergência das novas materialidades (relações
sociais e infraestrutura) e sensibilidades diante da genênse da modernidade – partindo das
condições mais concretas da circulação e do enraizamento institucional de práticas
formativas em novos contextos urbanos e desembocando na consistência das elaborações
culturais decorrentes desses impactos nas condutas, nas formas de consciência e nos
conteúdos de narrativas coletivas vinculadas às formas de governo da população.
As práticas normativas da vida coletiva podem ser pensadas em duas direções. O
primeiro aspecto é a estruturação da forma social em correspondência com a configuração
de uma gramática moral. A disponibilidade de seus conteúdos indexados pelos processos
de educação (trabalho, consciência, higiene, utilidade, decoro etc.) é parte do percurso
histórico que Foucault chamou de uma construção de saberes sobre o humano a partir do
início do século XIX,982 tornando-o – como o teórico francês afirma em uma entrevista
de 1966 a Claude Bonnefoy – objet d’un savoir possible, ou seja, compondo condições
necessárias para que o objeto pudesse ser pensado. Assim, as perspectivas formativas das
condutas educadas estão inscritas em um movimento subterrâneo de dispersão desses
saberes na composição de quadros e referenciais, circulando aqui e ali, sobre as condições
de operação do campo moral na definição de uma normatividade da socialização
estruturada sobre a imagem do humano. A gramática que organiza e prescreve as condutas
educadas, no limite, desenha saberes e aborda o humano como objeto e condição do
982 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 2007.
319
governo da vida coletiva. Na medida em que os saberes tentam repor percepções e captar
as transformações em curso, as figurações do humano e seu potencial de desenvolvimento
são defrontadas com as contradições que movem a modernidade capitalista.
A segunda dimensão do governo da população, carregando um fundo pedagógico
importante, disponibiliza os componentes de estruturação moral da sociedade como
imperativos que abordam o campo do agir a partir da designação de papeis sociais e da
produção de vínculos com o espaço nacional. Essas práticas formativas da socialização
(valores morais) funcionam como uma estrutura de interpelação por meio da qual os
valores morais constituem sujeitos e estruturas de reconhecimento implicadas na
elaboração dos novos espaços sociais junto à construção do mundo pós-colonial na
América Latina. Portando predicados para o “bom cidadão” nos novos contextos
constitucionais da política moderna, os processos de educação confrontam o mundo da
vida com referências para o agir. Se o campo moral contrói correspondências com
mecanismos de agência coletiva (povo, multidão, popular, população etc.), à luz desse
quadro da socialização são tematizadas as novas formas de subjetivação após as
independências na região, reforçando a circulação de vocabulários políticos (cidadão).
O problema da pesquisa, então, gravita também em torno das condições de
elaboração das sociedades nacionais emergentes no período. A opção pelos processos de
educação como formação dos parâmetros de socialização tenta capturar a constituição dos
novos espaços sociais no terreno mais fundamental dos valores a serem transmitidos e
dos significados instituídos para as condutas. Existe, aqui, uma praxis social que funciona
como a mediação entre as estruturas objetivas (instituídas) e as dinâmicas de subjetivação
incorporadas à interpelação dos (futuros) cidadãos pelos valores morais. Nesse sentido,
as relações pressupostas na infraestrutura e na estruturação de valores compõem a
crescente cultura objetiva e suas pressões sobre as dinâmicas socioculturais e a formação
do mundo moral. As exigências do contemporâneo, construindo cisões ideológicas entre
as continuidades do passado colonial e o imperativo de extração de futuros, está
posicionada nesse esforço de orientação da praxis social como atualização dos critérios
da vida em meio às disjunções temporais da paisagem periférica.
A visão do contemporâneo como a articulação de temporalidades diversas é o
núcleo da modernização social. A simultaneidade do não-simultâneo e as urgências do
presente oferecem enquadramentos do campo moral motivados por uma racionalidade
que, embora confiante nas luzes do progresso ordeiro, se debatia contra o espectro da
indeterminação moral e suas figurações de dissolução (materialismo, dissociação,
320
revoltas, desordens etc.). Distendendo formas e mesclando referenciais diversos, a nova
paisagem do mundo da vida lidava com cenários incongruentes, desterritorializados e
arranjados como um couplage de humanos, não-humanos e inumanos em esquemas
cognitivos da cultura.983 Uma ótima síntese dessa vasta experiência da modernidade está
em Olavo Bilac quando, fugindo da repressão florianista no Rio de Janeiro,984 buscou um
deslocamento para “longe do presente que nos angustia”, ao tentar “viver do passado,
mais bello, errando entre ruinas que dormem ha séculos” no interior. Para o escritor, “por
S. Paulo, pelos outros Estados do sul, pelos Estados do norte, a corrente estrangeira alaga
a terra, desnacionalisando o povo”: desterritorialização da população, mas igualmente das
formas da cultura, já que “o espirito vai perdendo a cosciencia da nacionalidade, o coração
se vai desapegando das reminiscencias do passado”. Assim, “entre as serras que se
despenham á vista, como um bando de cyclopes em fuga, vôa o trem vertiginosamente”
e, “como na embriaguez do hachschisch”, o delírio moderno confronta os desencontros
da paisagem moral com
As ruas das cidades, alargadas, cheias de construcções modernas, ao gosto italiano, ao gosto allemão, ao gosto francez, rolam uma população heterogenea, em cujo sussurro de mar agitado se reconhecem todas as linguas, como no vozear afanoso dos operarios de Babel. O progresso, que rasga montanhas e galga abysmos, não cuida dos vestigios de gerações mortas que a sua passagem apaga.
Essa apreensão do movimento é dinamizada pela materialidade das esferas de
circulação e pela infraestrutura do sistema-mundo moderno. A estruturação da vida
material – movida pela heterogeneidade das forças produtivas e das formas de trabalho,
além da integração dos espaços pela mercadoria e pelas comunicações – é a condição de
possibilidade da circulação de imaginários sociais e da elaboração de valores de
socialização por meio dos processos de educação. Junto a esses cenários descontínuos, os
valores balizam perspectivas de avaliação da vida moderna a partir de formas de
aspiração e abjeção, tornando a gramática moral sempre sensível às narrativas de
ordenamento e de degradação. Como o Jekyll e Hyde de Stevenson, as contradições
perceptivas e valorativas organizam um mesmo movimento ligado à gênese da cultura
983 Devo esta discussão ao curso Les formes du paysage, do antropólogo Philippe Descola, ministrado em
diversas sessões no Collège de France entre fevereiro de 2012 e maio de 2014. Como o autor ainda não sistematizou as reflexões em publicação escrita (se assim o fez, não consegui localizar), registro nesta nota minha dívida em relação à abordagem.
984 BILAC, Olavo. Chronicas e novellas (1893-1894). Rio de Janeiro: Cunha & Irmão, 1894.
321
moderna, entrelaçando as promessas de esclarecimento moral dos processos de educação
aos espectros da decadência. As simultaneidades, as dessincronias e os choques do campo
perceptivo expressam articulações subterrâneas eletrizadas pelos novos contextos e pela
profusão de imaginários sociais.
Pensando justamente as tensões constitutivas da dialética da modernização, a
pesquisa não reduz as transformações históricas a uma sobreposição de etapas de
desenvolvimento socioeconômico (versão bastante difundida junto às teorias da
modernização de David Apter e a esquemas de desenvolvimento à la Rostow). Mesmo a
síntese teórica de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, considerando uma análise
integrada dos processos de desenvolvimento e diferenciação socioeconômica, prestou
pouca atenção à dinâmica sociocultural subjacente às condições da modernização
capitalista em uma região periférica – limitando-se a uma rápida análise tipológica de
sociedades tradicionais e modernas.985 Antes de qualquer esquema tipológico, de lógicas
da influência do Ocidente (como se os processos de modernização caminhassem em
apenas uma direção) ou de uma contraposição estreita entre estágios tradicional e
moderno (como se o take off das forças modernas, conforme as teorias da modernização,
pressupusesse o abandono de itens “tradicionais” em uma lógica linear de transformações
do sistema social),986 minha ênfase sobre a imbricação de temporalidades diversas na
composição dos repertórios culturais (com ênfase na estruturação da moralidade e dos
valores de educação das condutas) tenta capturar a heterogeneidade de formas culturais
em jogo na modernidade capitalista. Nesse sentido, em vez de momentos abandonados
nas transformações ou resquícios que reiteram um passado obsoleto ou uma
sobrevivência anacrônica, a dialética da modernização carrega a elaboração de
referências diversas em um mesmo processo, de modo que, se o componente moral (e,
por vezes, até mesmo religioso) é bastante evidente nas práticas culturais, esses elementos
não são analisados como traços tradicionais deslocados de conteúdos suportamente
autênticos da modernidade.
Os processos de educação não são apenas reações às transformações, como se a
aceleração das mudanças materiais impactasse de maneira linear as formas da cultura.
Antes de uma esfera puramente reativa, as perspectivas formativas de valores de
socialização possuem uma consistência própria como critérios de estruturação moral da
985 CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América
Latina . 10.Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 986 NEVES, Marcelo. Verfassung und Posivität des Rechts in der peripheren Moderne. Berlim:
Duncker & Humblot, 1992. p. 73.
322
sociedade. Essa lógica social, organizando vetores prescritivos e práticas avaliativas do
campo social, tece a dinâmica da modernização a partir do tensionamento dos valores
instituídos em relação ao movimento das forças da modernidade capitalista. Justamente
nesse sentido, a estruturação dos repertórios morais na modernidade é produtiva, ou seja,
interpela e engaja formas de vida junto à ideologia do progresso e à universalidade das
iluminações modernas. A aderência dos valores morais em relação à práxis social, então,
pode ser analisada a partir da mobilização da força coletiva por critérios morais
subjacentes ao trabalho.
A ideologia do trabalho, dispondo uma ética interna entendida como valor em
relação ao ócio e à mendicância, percorre essas projeções e aspirações culturais. Um
ponto básico, nesse sentido, é o critério de utilidade, que pode ser articulado em duas
dimensões: como utilidade individual pressuposta na ideologia do incremento das forças
produtivas e como destinação essencial da formação para a vida prática e a cooperação,
tanto no campo de pertença da nação quanto no débito em relação aos progressos da
humanidade. Por meio dessas duas questões, a produção social (como satisfação material
e formação de valores de socialização) tem como pressuposto a gramática moral. Aqui, a
cantilena do progresso ordeiro deposita um sobrepeso na intervenção moral sobre o
presente e nas condições de regularidade da atividade social por meio dos processos de
educação. Se a civilização empilha suas iluminações pela soma de realizações que
insinuam a marcha progressiva da modernidade, a manutenção dessas aquisições culturais
e das promessas de abundância estipula pressões para a conformidade das condutas. A
consideração da anterioridade das estruturas sociais em relação ao indivíduo auto-
interessado tematiza o próprio horizonte do nacional.
Retroalimentada pelas esferas de circulação, pela densidade crescente dos
contatos na cidade e pela reorganização das forças produtivas, a dialética entre
territorialização e desterritorialização cadencia as aproximações ao problema. Ao passo
que a circulação de pessoas, ideias e mercadorias desterritorializa e volatiliza antigos
quadros mais cincunscritos a localidades, alimentando cenários difusos de imaginários e
valores, a produção do espaço nacional esbarra na vinculação de conteúdos morais
referentes às imagens da população – um esforço, portanto, de territorialização. O
nacional é pensado no registro de um povo novo e de seu espraiamento sobre o território,
tornando a gestão moral da população uma espécie de política identitária detida sobre a
narrativa do povo, cujo conteúdo relaciona o problema do caráter nacional com a
capacidade de unificação de horizontes culturais e de moralização das condições de
323
atividade social. O ordenamento dessas forças de mobilização coletiva repousa na
estabilização de conteúdos referentes à formação do povo – cujas aspirações dependiam
da normatividade dos processos de educação. Essa tendência é interpretada como base da
polícia territorial preocupada com as condutas e suas práticas formativas, situando o
campo moral em estruturas de gestão da população e de seu movimento como
coordenadas antropológicas do problema formativo dos cidadãos.
Esses conteúdos morais na formação do nacional configuram atores coletivos que
indicam novas condições de ação, expandindo a instituição dos parâmetros de
socialização à luz das primeiras aparições do universo das massas e das multidões. As
referências aos desvarios e à irracionalidade rondam a produção de imaginários e
ideologias sobre as nascentes massas, de modo que as possibilidades de gestão e de
educação dessas novas figurações da ação coletiva assumem o critério de utilidade como
destinação essencial do humano na organização da vida coletiva e no incremento da
atividade produtiva. Sincronia, expansão, unidade cultural, higiene e ordenamento
externo das condutas torcem as sensibilidades da vida urbana e seus choques às
expectativas normativas de comportamentos educados nos contrastes da cidade ou no
problema do caráter nacional. Assim, a busca pelo povo e seu caráter expõe, em meio a
um um jogo de ideologias e aspirações do ordenamento coletivo, os debatimentos do
nacional diante da miragem de incompletude das promessas do ímpeto moderno.
Como sincronização e educação das aglomerações modernas, a gestão da
população equaciona carências e deveres a partir de critérios de intervenção moral na
sociedade. A gestão do comportamento coletivo emerge pari passu ao reconhecimento
de uma esfera deficitária, em um movimento que assinala a base para a invenção do social.
Pobreza, desvalimento, vícios, criminalidade, ócio e miséria são tematizados como
coordenadas para a cartografia moral e educacional do campo da assistência e das
estruturas disciplinares. A sensibilidade, exposta às cisões morais da cidade moderna
(especialmente nas grandes cidades portuárias), adiciona aos processos de educação a
visibilidade das formas de degradação e de déficit como uma política sobre os corpos e
sobre as condições de intervenção para a correção das carências. Em razão disso, o social
indica os efeitos morais da aglomeração, ecoando o novo horizonte problemático dos
comportamentos junto às preocupações com os processos de educação.
O mundo moral, ao estruturar quadros avaliativos para a socialização, condiciona
a interpelação e as prescrições de condutas a contextos perceptivos das próprias
transformações, confrontando os valores com o torvelinho da modernidade. Trata-se de
324
um conjunto de percepções articuladas às transformações do oitocentos e ao revolvimento
dos itens tradicionais pela experiência da modernidade. A atenção aos processos de
educação significa um esforço de apreensão dessas ambivalências e vertigens justamente
nas tentativas de fundamentação de valores por meio de práticas formativas. É como se
um desassossego pairasse sobre as condições da vida moderna e, sob a fronte áurea dos
progressos morais e materiais do século, os pés de barro confessassem a fragilidade dos
esforços de fundamentação. Como na famosa sequência de abertura de Blue velvet, de
David Lynch, à apreensão de regularidade e à aspiração de ordem civilizada subjaz um
revolvimento subterrâneo das figuras de dissolução.
A referência à experiência da modernidade é central nessa imagem. Ao longo da
pesquisa, esse ponto de fuga foi desdobrado em diveros ângulos. A questão mais
importante dessa experiência diz respeito à vertigem moral e à volatilização de
ancoragens essenciais ou formas sólidas diante das transformações. Os impactos das
transformações no mundo moral são ilustrados no potencial de erosão sempre latente
diante dos esforços de fundamentação dos processos de educação, evidenciando a
indeterminação no campo dos valores que parecem sustentar a socialização. O movimento
vacilante da vida moral, nesse sentido, lança a sociedade no vórtice e na aceleração da
cultura moderna, desestabilizando as garantias de coesão moral mediante as
fantasmagorias que assombravam apostas em núcleos estáveis. Das flutuações da
consciência moderna ao espectro da dissociação, as práticas formativas procuram enraizar
estruturas da vida coletiva em contextos cada vez mais desenraizados.
Os processos de educação reluzem na consciência moderna como promessas de
emancipação. Associadas ao exclusivismo do humano, diversas imagens são vinculadas
às miragens e ao desejo de completude implícito nas grandes narrativas. Desenvolvimento
da racionalidade, auto-domínio moral, higiene, deveres sociais, sincronia e expansão das
atividades produtivas, critério de utilidade e os usos da sociedade: mais do que um
receituário tópico, esses registros tecem relações importantes junto à ideologia de
realização das iluminações modernas. Como pequenos canais utópicos de ordenamento
social, os elementos colocam em circulação valores que, cartografando a epopeia sempre
incompleta do ímpeto moderno, esbarram em contradições internas.
Octavio Paz, nos anos 1960, enfatizava que, nos países ocidentais, las ideas se
han evaporado, ao passo que, no antigo “bloco” socialista, as utopias haviam sido
325
manchadas pelos césares revolucionários.987 Esse horizonte de desencontros e as
garantias de emancipação falseadas pelas aventuras da dialética da modernização, para o
autor, expressavam a inmovibilidad frenética de um presente que, desenganado em
relação às promissões ideológicas da modernidade, gradativamente desatava o
movimento em relação aos fundamentos do passado na direção de um futuro siempre
insasible. A pesquisa aqui encerrada, de muitos modos, tenta analisar esse Zeitgeist à luz
de outro conjunto de problemas e apostas entrelaçadas aos caminhos do moderno e da
modernização: a produção e a reprodução de valores de socialização tendo em vista a
instituição do campo moral por meio de perspectivas formativas de condutas. Então,
cifrada pela lógica dos processos de educação e da estruturação moral, a experiência da
modernidade assinala a cisão de mundos diversos, autonomizando o contemporâneo em
relação à determinação das experiências passadas na figuração de futuros. A orientação
temporal satura os valores (e sua transmissão) com novas apreensões diante das
descontinuidades abertas, desafiando e profanando as cauções de desenvolvimento moral.
Essas fissuras indicam a ponta de lança de mutações profundas que, descumprindo as
promessas futuristas de perfectibilidade moral moderna e do juste milieu dos
comportamentos educados pelo esclarecimento, acabam se imuscuindo ao
esfumaçamento de nossas ilusões perdidas.
987 PAZ, Octavio. Corriente alterna. México, DF: Siglo XXI, 1967. p. 22-23, p. 169-172.
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