Edward Thompson - A Venda de Esposas

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  • -~-CoMPANHIA DAS LETRASE. P. Thompson

    Costumesem comumESTUDOS SOBRE ACULTURA POPULAR

    TRADICIONAL

  • At poucos anos atrs a memria histrica da venda de esposas na Inglater-ra seria mais bem descrita como amnsia. Quem iria querer lembrar prticas tobrbaras? Por volta da dcada de 1850, quase todos os comentadores admitiama viso de que a prtica era a) extremamente rara, e b) totalmente ofensiva moralidade (embora, de forma a se justificar, alguns folcloristas comeassem abrincar com a noo de resduos pagos).

    O tom do The book of days (1878) de Chambers representativo. O quadro" simplesmente um atentado decncia [... ). S pode ser considerado comoprova da ignorncia apatetada e dos sentimentos brutais de parte de nossa po-pulao rural". E o mais importante era repudiar e denunciar a prtica, porqueos "vizinhos continentais" da Gr-Bretanha tinham notado os "casos fortuitosde venda de esposas", e "acreditam seriamente que um hbito de todas as clas-ses de nosso povo, citando-o constantemente como evidncia de nossa civiliza-o inferior".' Com sua habitual frivolidade rancorosa, os franceses eram osmais agressivos a esse respeito: milorde John Bull' era representado, de botas eesporas, no mercado de Smithfield, gritando "quinze livres mafemmel" [mi-nha mulher por quinze libras I), enquanto a senhora, presa por uma corda, semantinha de p num pequeno cercado.'

    The book of days conseguiu reunir apenas oito casos, entre 18'15 e 1839, eesses casos, junto com mais trs ou quatro, foram postos em circulao, semmaiores investigaes, por meio de relatos de jornais ou de antiqurios durantecinqenta anos ou mais. medida que crescia o esclareciInento, a curiosidadediminua. Na primeira metade deste sculo, a memria histrica geralmente se

  • satisfazia com referncias fortuitas insignificantes em descries populares doscostumes do povo no sculo xvu!. Essas eram comumente oferecidas como umelemento colorido dentro de uma liturgia antittica que contrastava a cultura ani-malesca dos pobres (Gin Lane, Tyburn" and Mother Proctor's Pews [a vida dogim, cadafalso de Tybum e os bancos da madre inspetora], a prtica de aularces contra touros, os rojes atados em animais, o pugilismo com botas pregadasno cho, as corridas nuas, as vendas de esposas) com qualquer forma esclareci-da que supostamente as teria substitudo. J

    Contra esse fundo de indiferena, uma poderosa influncia se afirmou: areconstruo cuidadosa da venda de uma esposa, num contexto humanoverossmil, assumindo um lugar significativo na estrutura do enredo de um ro-mance importante, The mayor of Casterbridge. Thomas Hardy foi um obser-vador extremamente perspicaz dos costumes populares, e raramente seu trao mais seguro do que nesse romance. Mas no episdio em que Michael Henchardvende sua esposa Susan numa feira de beira de estrada a um marinheiro que pas-sava, Hardy no parece ter se apoiado na observao (nem na tradio oral dire-ta), mas em fontes jornalsticas. Essas fontes (como veremos) so geralmenteenigmticas e opacas. E o episdio, assim como est delineado no romance, comsua origem aparentemente casual e sua expresso brutal, no se ajusta s evi-dncias mais "tpicas". O leilo de Susan Henchard no tem caractersticas ri-tuais; o comprador aparece fortuitamente e faz sua oferta no impulso domomento. Hardy consegue reconstruir o episdio e desvendar as suas conse-qncias de forma admirvel, ao apresentar o consenso popular geral quanto legitimidade da transao e quanto a seu carter irrevogvel- uma convicocertamente partilhada por Susan Henchard' Mas, em ltima anlise, a apresen-tao de Hardy ainda recaa no mesmo esteretipo do The book of days. "De mi-nha parte", diz o bbado Henchard, "no vejo por que os homens que tmmulheres e j no as querem no deveriam se ver livres delas, como essesciganos fazem com os cavalos velhos [...]. Por que no deveriam oferec-Ias evend-Ias em leilo a homens que esto precisando desse tipo de artigo?"

    O pressuposto subjacente a ambos os relatos que avenda da esposa era umacompra direta de um bem. E uma vez estabelecido o esteretipo, demasiado f-cil interpretar a evidncia por meio do clich. Pode-se ento admitir que a esposaera leiloada como um animal ou mercadoria, talvez contra a sua vontade, sejaporque omarido queria se ver livre dela, seja por motivos puramente mercenrios.Como tal, o costume desautorizava qualquer exame escrupuloso. Podia ser toma-

    (11) Tybum foi, at 1783, o principal local de execues pblicas em Londres. "Gin Lane",quadro de W. Hoganh (1697-1764) representando a degradao dos pobres alcoolizados pelo gimque incentivou a aprovao do GinActem 175 I, taxando a bebida para inibir seu consumo. (N. R.)

  • do como um exemplo melanclico de abjeta opresso feminina, ou como ilus-trao da leviandade com que os homens pobres consideravam o casamento.

    Mas esse esteretipo - e no o fato de que as esposas eram ocasional-mente vendidas - que requer investigao. De qualquer modo, parecia acon-selhvel coletar alguns dados antes de apresentar explicaes seguras. Nadcada de 1960, com muita ajuda de amigos e correspondentes, comecei a for-mar arquivos sobre as vendas "rituais" nos sculos XVIII e XIX; e no final da d-cada de 1960 e durante toda a dcada de 1970, infligi esboos deste captulo amuitas audincias na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos. Em 1977,j tinha unstrezentos casos em minhas fichas, embora pelo menos cinqenta sejam'demasiado vagos ou dovidosos para serem tomados como evidncia. Nessemeio tempo, adiava a publicao de minhas concluses, embora elas fossemsucintamente relatadas no trabalho de outros pesquisadores.' Novo adiamentofez com que minha pesquisa se tornasse ultrapassada, pois em 1981 foi publica-do um volume substancial, Wivesfor saZe [Esposas venda], escrito por SamuelPyeatt Menefee.

    O estudo etnogrfico do sI. Menefee foi realizado como dissertao juntoao Departamento de Antropologia Social na Universidade de Oxford, e o as-sunto talvez tenha chegado ao conhecimento desse departamento quando deiuma palestra sobre o tema num de seus seminrios, No podia reivindicar direi-tos autorais sobre o tpico, e na realidade a minha inteno fora despertar o in-teresse histrico e antropolgico. Ainda assim, minha primeira reao foiconsiderar que meu trabalho se tornara redundante pela ao de terceiros. O sr.Menefee investigara o tema com grande diligncia; pesquisara em muitas bi-bliotecas e reparties de registros civis; reunira material muito curioso e svezes relevante; e ultrapassara minhas prprias contas, com um apndice de 387casos. Alm disso, ele partilhava minharedefinio do ritual ao dar a seu volumeo subttulo "Um estudo etnogrfico do divrcio popular britnico". Com umpouco de tristeza - pois o tema me preocupara por alguns anos - deixei meuensaio de lado.

    Retomo agora o estudo, apresentando-o tardiamente ao pblico, porqueno acho afinal que o sr. Menefee e eu tenhamos nos repetido, nem que as nos-sas investigaes se reportem s mesmas questes. O sI. Menefee escreveu otexto como aprendiz de etngrafo, e seu conhecimento da histria social britni-ca e de suas disciplinas era bsico. Por isso, tinha pouco discernimento do con-texto social, poucos critrios para distinguir entre a e~idncia confivel e aadulterada, e seus exemplos fascinantes aparecem no meio de uma mistura dematerial irrelevante e interpretaes contraditrias. Seu livro muito meticu-loso e cuidadosamente documentado, ao que devemos agradecer, mas ele nopode ser tomado como a palavra final sobre a venda das esposas.

  • o ritual talvez tenha interesse apenas marginal, e pouca relevncia geralpara o comportamento sexual ou as normas conjugais. Abre apenas uma peque-na janela para essas questes. Entretanto, no h muitas dessas janelas, e nuncateremos uma viso panormica at que todas as cortinas sejam abertas e as pers-pectivas se cruzem. Dessa evidncia fragmentria e enigmtica, devemos ex-trair todas as percepes possveis sobre as normas e a sensibilidade de umacultura perdida, bem como sobre as crises internas aos pobres.

    As evidncias quantitativas a respeito da venda de esposas e sua freqn-cia so, sob muitos aspectos, as menos satisfatrias a serem oferecidas nestecaptulo, por isso comearemos por elas. Coletei cerca de trezentos casos, den-tre os quais rejeitei cinqenta por serem duvidosos. Menefee lista 387 casos,mas esse nmero inclui muitos casos vagos e duvidosos, freqente contagemdupla do mesmo caso, e casos que no so vendas rituais "verdadeiras". Vamosdizer que tenho 250 casos autnticos, e que Menefee tem trezentos. Mas cercade 150 casos aparecem em ambas as listas - casos coligidos em fontes evi-dentes como Notes and Queries, os arquivos do The Times, compilaes de fol-clore etc. Portanto, j untos coletamos uns quatrocentos exemplos.

    Ainda assim, achei necessrio podar esse material, especialmente nosprimeiros anos (antes de 1760) e naqueles depois de 1880. A venda ou troca deesposa, para servios domsticos ou sexuais, parece ter ocorrido ocasional-mente na maioria dos lugares e pocas. Pode ser apenas uma transao aber-rante, com ou sem pretensa base contratual- registrada, s vezes, ainda hojem dia. Infelizmente, alguns dos primeiros exemplos no fornecem quase ne-nhuma evidncia quanto natureza da prtica. Assim, o registro de um historia-dor local "baseado num antigo documento relativo a Bilston" - "Novembro de1692. John, o filho de Nathan Whitehouse, de Tipton, vendeu sua mulher ao sr.Bracegirdle" - pode no possuir, sem outras evidncias, a pertinncia para sercontado como um caso de venda ritual de esposa.6 Mas alguns dos exemplos pos-teriores, embora mais bem documentados, tambm apresentam dificuldades.Assim, em 1913, uma jovem casada afirmou num tribunal de pequenas contra-venes de Leeds (num caso de reivindicao de sustento) que o marido avendera por uma libra a um colega de trabalho que morava na rua vizinha. O fi-lho foi adotado pelo segundo homem: ele o aceitou por seis semanas, e depoismandou que ela afogasse a criana. Mas esse homemj era casado, e mais tardevoltou sua mulher.7 Se esse caso foi uma venda de esposa, o costume j estava

  • num avanado estado de decomposio, e a prtica se afastando do uso anterior-mente aceito.

    H alguns casos antes de 1760 e depois de 1880 que fornecem melhoresevidncias. Mas, para fins de contagem, decidi deixar os casos antes de 1760para historiadores mais bem qualificados para interpretar a evidncia, e ignoraraqueles depois de 1880. Isso me reduziu a 218 casos que posso aceitar comoautnticos entre 1760 e 1880:8

    Vendas de esposas: casos visveis1760-1800 421800-1840 1211840-1880 55

    Os casos vieram de todas as regies da Inglaterra, mas s tenho um caso da Es-ccia nesse perodo e bem poucos casos do Pas de Gales. Os condados com dezou mais exemplos so: Derbyshire (10), Devon (12), Kent (10), Lancashire (12),Lincolnshire (14), Middlesex e Londres (19), Nottinghamshire (13), Stafford-shire (16), Warwickshire (10), e (bem no topo da tabela) Yorkshire (44).

    Esses nmeros mostram pouca coisa, exceto que aprtica certamente ocor-ria, e em muitas regies da Inglaterra. Os nmeros so de casos visveis, e a visi-bilidade deve ser considerada em pelo menos trs sentidos. Primeiro, soocorrncias cujos vestgios por acaso se tornaram claros para mim. EmboraMenefee e eu apresentemos o mesmo perfil geral, em certo sentido ambos de-pendemos do que chamou a ateno dos folcloristas ou do que foi registrado pe-los jornais metropolitanos. No existem fontes das quais se possa extrair umaamostra sistemtica, e apenas uma pesquisa detalhada nos jornais provincianosde todas as regies poderia pretender criar tal amostra.9 Segundo, havia ocor-rncias que tinham de adquirir uma certa notoriedade para deixar algum tipo devestgio nos registros. Uma venda ritual na praa do mercado de uma cidade re-lativamente grande poderia ter esse efeito, mas tal no aconteceria necessaria-mente com uma venda privada numa taverna, a no ser que fosse acompanhadade alguma circunstncia inusitada. Como a segunda forma era a preferida emalguns distritos, e geralmente substituiu a primeira forma depois de 1830 ou1840, no h esperana de recuperar quantidades precisas.

    Mas a visibilidade num terceiro sentido a que tem mais importncia, a queoferece restries mais amplas a quaisquer quantificaes, e aque ilustra a na-tureza escorregadia das evidncias com que devemos lidar. Pois quando foi quea venda de esposas se tornou visvel a um pblico refinado ou de classe mdia,sendo assim digna de uma nota na imprensa? A resposta d~ve estar relacionadacom mudanas indistintas na conscincia social, nos padres morais e nos valo-res das notcias. A prtica se tornou tema de reportagem e comentrios mais fre-qentes no incio do sculo XIX. Durante grande parte do sculo XVUI, porm, os

  • jornais no se prestavam a veicular comentrios sociais ou domsticos dessetipo. H boas razes para se supor que as vendas de esposas fossem amplamentepraticadas bem antes de 1790. O costume foi pouco noticiado, porque no eraconsiderado digno de registro, a menos que alguma circunstncia adicional(cmica, dramtica, trgica, escandalosa) lhe conferisse interesse. Esse silnciopode ter acontecido por vrios motivos: ignorncia polida (a distncia entre acultura do pblico de jornais e a dos pobres), indiferena a um costume tocomum que no exigia comentrios, ou averso. As vendas de esposas tornaram-se dignas de meno na imprensa junto com o reflorescimento evanglico, que,ao elevar o limiar da tolerncia da classe mdia, redefiniu uma questo de"ignorncia" popular como uma questo de escndalo pblico.

    Isso tem conseqncias infelizes. Pois embora a prtica seja s vezes re-latada depois de 1790 como comdia ou caso de interesse humano, mais fre-qentemente noticiada num tom de desaprovao moral to forte a ponto deobliterar aquela evidncia que s a objetividade poderia ter produzido. As vendasde esposas mostravam que um "sistema de comrcio de carne humana" no esta-va "confinado s praias da frica"; a corda que prendia a esposa poderia ser maisbem empregada para enforcar ou chicotear as partes interessadas na transao; e(comumente) era "uma cena muito desagradvel e vergonhosa" (Smithfield,1832), "uma dessas cenas revoltantes que so uma desgraa para a sociedade ci-vilizada" (Norwich, 1823), "uma transao indecente e degradante" (York,1820). O marido que vendia a esposa era "um animal em forma humana" (Not-tingham, 1844), e a prpria esposa era uma "vagabunda desavergonhada", ou ob-jeto de piedade sentimental.

    Isso dificulta a investigao. Um cmputo por dcada dos casos visv.eisentre 1800 e 1860revela: 1800-9,22; 1810-9,32; 1820-9,33; 1830-9,47; 1840-9,22; 1850-9, 14.'0 Se traado num grfico, esse cmputo mostrari;l uma curva as-cendente de vendas, atingindo o clmax no incio da dcada de 1830 (nove ven-das em 1833) e depois caindo abruptamente. Mas um grfico das vendas reaispoderia se contrapor a um grfico das vendas visveis. Pois esse ltimo no re-vela as vendas, mas a afronta moral provocada pelas vendas. Essa afronta eraacompanhada de uma crescente ao contra as vendas por parte de magistrados,policiais, funcionrios do mercado e moralistas. Era tambm associada a umacorrente cada vez mais forte de desaprovao no mbito da prpria cultura po-pular, alimentada por fontes evanglicas, racionalistas e radicais ou sindicais. bem possvel que as vendas reais tenham atingido o clmax em algum ponto nosculo XVIIl ou bem no incio do sculo XIX, e a publicidade dada s vendas en-tre 1820 e 1850 pode ter revelado resduos tardios e um tanto envergonhados deuma prtica j em declnio. Essa publicidade, por sua vez, pode ter ajudado a

  • expulsar a venda de esposas da praa do mercado, fazendo com que a prticaadotasse formas mais discretas.

    Algumas evidncias literrias confirmam essa sugesto. Assim h umaclara descrio de venda ritual da esposa, com leilo pblico e com entrega damulher presa por uma corda, num tratado legal primoroso sobre The laws res-pecting women as they regard their natural rights [As leis concementes s mu-lheres no que diz respeito a seus direitos naturais], publicado em 1777. Nem eu,nem Menefee temos muitos casos antes de 1777 que indiquem claramente umavenda ritual, mas o autor desse tratado no teria motivos para inventar a questo.Em seu Observations on popular antiquities [Observaes sobre antiguidadespopulares], John Brand tambm relata a prtica em termos que sugerem res-duos de uma tradio mais vigorosa: "Uma superstio extraordinria aindaprevalece entre os mais baixos dentre os vulgares, a de que um homem podevender legalmente a sua mulher para outro, desde que ele a entregue com umacorda ao redor do pescoo"." Com base nessas referncias, poderamos suporque a venda ritual da esposa era lugar-comum em 1777, dificilmente digna decomentrio, e que assim o fora por um sculo ou mais. Acho tal coisa im-provvel, e o tom dos relatos na imprensa sugere uma evoluo diferente. As-sim, um caso de Oxford em 1789 registrado como "o modo vulgar de divrcioadotado ultimamente"; em 1790, um relato de Derbyshire falava da entrega damulher presa numa corda "na forma habitual que tem sido praticada nos ltimostempos", e no mesmo ano jornais de Derby e Birmingham acharam necessrioobservar que, "como casos de venda de esposas vinham ocorrendo com fre-qncia entre a classe mais baixa do povo", essas vendas eram "ilegais e semefeito"." Isso poderia sugerir que a venda de esposas, na sua.f()[maritual doleilo na praa do mercado e da mulher presa por uma corda, embora difundidaem algumas regies do pas, estava em 1777 apenas lentamente se espalhandopara outras regies." Por volta da dcada de 1800, os jornais se referem a ven-das "no estilo habitual" e a "cenas vergonhosas que ultimamente tm se torna-do comuns" .'. Mas a evidncia a respeito dessa evoluo incerta, e a questodeve ficar em aberto.

    sempre incerto se os casos relatados so a ponta de um iceberg ou umndice verdadeiro de freqncia." Em qualquer momento antes de 1790-1830, avisibilidade no pode ser tomada como indicador da natureza excepcional do ca-so. Quando em 1819 o proco de Clipsham em Rutland acusou um paroquianode comprar a esposa, observou-se que "o comprador feti escolhido para serpunido por ser o mais rico e o mais apropriado para servir de exemplo" - masClipsham naquela poca tinha apenas 33 casas e 173 habitantes. '6 Nas dcadasde 1830 e 1840, entretanto, h mais sugestes de que os casos visveis eram con-siderados inusitados ou resduos de costumes antigos. Em 1839, uma venda em

  • Witney foi vista como "uma dessas ocorrncias vergonhosas, felizmente pouco[...] freqentes"; enquanto uma venda em Bridlington no ano anterior foi com-parada a "uma transao semelhante" ocorrida na mesma cidade dez anosantes.'7

    O consenso da opinio esclarecida na metade do sculo XIX era o de que aprtica existia apenas entre os estratos mais inferiores dos trabalhadores, espe-cialmente nas zonas rurais mais afastadas: como Brand dissera, "os mais baixosdentre os vulgares". Isso pode ser verificado pelas ocupaes atribudas ao mari-do ou ao comprador na minha amostra. Embora a natureza dos relatos no garan-ta preciso de informaes, so atribudas ocupaes em 158 casos:

    Vendas de esposas: ocupaes atribudas ao marido ou ao compradorl5 Trabalhadores8 Mineiros de carvo (incluindo os mineiros e os trabalhadores nos poos das mi-nas)

    7 Operrios em escavaes (incluindo os que construam valas e diques)6 Cocheiros (incluindo postilhes e cavalarios)5 Ferreiros; agricultores; trabalhadores da fazenda ou "homens do campo"; sapa-teiros; soldados; alfaiates

    4 Limpadores de chamin; jardineiros3Assentadores de tijolo; fabricantes de tijolo; aougueiros; carpinteiros oumarceneiros; operrios da fbrica; negociantes de cavalos ou gado; fabricantesde pregos; latoeiros

    2 Padeiros; escreventes; condutores de burros; lixeiros; cavalheiros; invernadoresde gado; moleiros; trabalhadores em ferro; marinheiros; fabricantes de malhas;barqueiros; tecelesiFabricante de cestas; vendedor ambulante de cobertores; fabricante de calas;botoeiro; carroceiro; limpador de cinzas; fabricante de l; carvoeiro; cavador;peleiro; vendedor ambulante de bolo de gengibre; chapeleiro; vendedor defeno; condutor de porcos; acendedor de lampies; pedreiro; fabricante decolches; funcionrio; pintor; taverneiro; mercador de trapos; carregador deareia; serrador; aceiro; cortador de pedra; cortador de palha; negociante; guar-da florestal

    Designados antes pelo cargo, situao de vida etc., do que pela ocupao: mendi-gos (2); pensionistas (2); recm-chegados do exlio (2); caador ilegal (I); e Hen-ry Brydges, 2"duque de Chandos.

    Deve-se acrescentar a essas sugestes gerais (mas imprecisas) que a venda deesposas era predominante entre certos grupos ocupacionais, como operrios deferrovias, barqueiros, funileiros ambulantes ou viajantes. Mas ocupaesaltamente picarescas, com grande mobilidade e muitos acasos da sorte, parecemter encorajado - como acontece com os marinheiros e os soldados - notaes

  • diferentes de "casamento", que era visto por ambos os lados como um arranjomais transitrio.

    Essa tabela de ocupaes traz poucas surpresas ( exceo do duque deChandos)." H um grande grupo (19) envolvido de alguma maneira com ocomrcio de gado e transporte, freqentadores provavelmente assduos dosmercados de gado. Outro grupo (14) vem dos ofcios de construo, que parti-lhava com os trabalhadores em escavaes uma grande mobilidade. Os restantesso os de status social mais elevado. Dos dois reputados cavalheiros, um com-prou a mulher de um fabricante de l em Midsomer Norton, Somerset, por seisguinus em 1766; no mencionado nenhum ritual pblico, a venda foi porcon-trato particular, e, pelas declaraes da esposa, ela no foi consultada (ver p.249-50). No outro caso, em Plymouth em 1822, o cavalheiro era o marido e ovendedor da esposa: voltaremos a esse caso inusitadamente bem documentado(pp. 253-4). Ainda outro caso, em Smithfield em 1815, chamou a ateno pre-cisamente por causa da riqueza e status das partes envolvidas: o marido era in-vernador de gado, o comprador um "famoso negociante de cavalos", o preo dacompra era elevado (cinqenta guinus e "um cavalo valioso que servia de mon-taria ao comprador"), e "a dama (o objeto da venda), jovem, bela e elegante-mente vestida, foi levada ao mercado numa carruagem, e exposta aos olhos docomprador com uma corda de seda ao redor dos ombros, que estavam cobertospor um rico vu de renda branca". Observou-se na imprensa em tom de re-provao que "at ento s vamos aqueles que pertencem s classes mais baixasda sociedade degradando-se desse jeito" .'9

    O perfil ocupacional sugerido por essa amostra no o dos ofcios de luxo,nem o dos artesos qualificados, mas oda cultura plebia mais antiga que os pre-cedeu e por muito tempo com eles coexistiu. Os trabalhadores na indstria pro-dutora de fibra txtil, tecidos, esto bem pouco representados; embora Yorkshirefornea mais exemplos do que qualquer outro condado, Yorkshire apresentamineiros de carvo e ofcios no qualificados, mas nenhum tosquiador ou car-dado r, e apenas dois teceles. H ferreiros na amostra, mas nenhum engenheiroou fabricante de instrumentos; h operrios em escavaes, mas nenhum tra-balhador do estaleiro; e apenas trs trabalhadores de moinho ou operrios defbrica. Por serem casadas, as mulheres so descritas pela sua aparncia, com-portamento ou suposta conduta moral, mas muito raramente pela ocupao.Mas sabemos que havia duas empregadas de minas; pelo menos duas erammendigas, vendidas para poupar as taxas assistenciais da parquia; uma eraoperria de fbrica, e outra fazia novelos numa fiao. '

    Seria vo (por razes que se tornaro evidentes) quantificar a elevao oua queda do preo das esposas. No topo da lista (um caso insatisfatrio), um car-voeiro de Wolverhampton, em 1865, teria supostamente vendido a esposa para

  • um marinheiro americano por cem libras, mais 2S libras por cada uma das duascrianas.'" No outro extremo, as esposas eram entregues de graa ou por umcopo de cerveja; o valor mais baixo negociado foi trs farthings. Talvez o preomdio estivesse na faixa de dois xelins e seis pence a cinco xelins, emboramuitos exemplos fiquem acima ou abaixo desse valor. Mas o marido freqente-mente exigia uma tigela de ponche ou um galo de cerveja alm do preo dacompra, e s vezes algum outro artigo - um relgio de pulso, uma pea deroupa, uma poro de tabaco. Um condutor de burros de Westminster vendeu aesposa para outro condutor por treze xelins e um burro. Num caso muito citadoem Carlisle (1832), um agricultor, que arrendava 42 acres, vendeu a esposa paraum pensionista por vinte xelins e um grande cachorro terra-nova. Ele retirou dopescoo da mulher a corda de palha com que a conduzira ao mercado, e colo-cando-a ao redor do pescoo de sua nova aquisio, dirigiu-se tavema maisprxima."

    Isso bom para aqueles que gostam de fofocas quantitativas, mas devemosagora empreender trabalho srio e questionar: qual o significado da forma decomportamento que tentamos calcular? O material aparece na imprensa combastante freqncia, de forma abreviada ou de vez em quando sensacionalista,opaca investigao. A notcia pode ser brevssima: "Na tera-feira, 2S defevereiro, um certo Hudson levou a sua mulher para o mercado de Stafford evendeu-a em leilo pblico, depois de muitas ofertas, por cinco xelins e cincopence".22 "Um sujeito chamado Jackson vendeu a sua mulher por dez xelins t