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SELVAGEM TERRENO TEATRO NACIONAL D. MARIA II Dossier Pedagógico

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SELVAGEMTERRENO

TEATRO NACIONAL D. MARIA II

Dossier Pedagógico

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Junto da grande floresta morava um pobre lenhador com a mulher e dois filhinhos; o menino chamava-se Hansel e a menina Gretel. Tinham pouco com que se alimentar e, sobrevindo na região uma grande escassez, já nem sequer o pão de cada dia conseguiam.

Numa dessas noites, quando atormentado pelas preocupações não conseguia dormir e ficava a dar voltas inquieto na cama, entre um suspiro e outro, disse o lenhador à mulher:

— O que será de nós? Como alimentaremos os nossos filhinhos, se nada temos nem para nós?

— Ouve, meu caro marido — respondeu ela — amanhã cedo, levaremos as crianças para o sítio mais cerrado da floresta, aí lhes acenderemos uma fogueira e lhes daremos um pedaço de pão para que se alimentem; depois iremos para o nosso trabalho deixando-os lá sozinhos; eles não conseguirão encontrar o caminho de casa e assim ficaremos livres deles.

— Não, mulher, isso não posso fazer. Se abandonar meus filhos sozinhos na floresta, as feras não tardarão a devorá-los, e como poderei viver depois disso?

— És um tolo, isso sim. Assim morreremos os quatro de fome e não te restará senão aplainar as tábuas dos nossos caixões.

Hansel e Gretel, Irmãos Grimm

E P Í G R A F E

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Í N D I C E

Sinopse4

Ficha técnica5

Notas biográficas de Miguel Castro Caldas,

Pedro Gil, Raquel Castro

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O processo, desfazer a cronologia: escrita e cena, o caso da carpete; a voz off: escalas e

progressão; nomes e títulos: porquê Terreno selvagem; ideias e questões sobre pôr em cena

uma criança e o faz de conta do adulto; do documental ao ficcional: as encomendas, Freud,

o casal, a carne, novembro de 2015.

A encomenda e a carpete — conversa com Miguel Castro Caldas, Pedro Gil e Raquel Castro

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Esconde-esconde, A civilização e o homem selvagem, A realidade entra pela casa

adentro, Histórias da carochinha, A mãe e a bruxa, Faz outra vez, Jogo e ritual, Fases de

desenvolvimento, Inquietante estranheza (das Unheimliche), Natureza selvagem, Pôr-se no

lugar da criança, Desensinar, Voz off

Andar aqui à volta — excertos de textos de

vários autores17

Pistas de reflexão e trabalho

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Informações sobre marcações

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Uma sala confortável, mobilada com bom gosto mas sem luxo. Ao fundo à direita, a porta que conduz ao hall. À esquerda, a porta que dá para o escritório. Entre as duas, um piano. No centro da parede, uma janela. Perto da janela, uma mesa redonda com uma poltrona e um sofá. No chão uma planta. Junto à parede da direita, mais recuada, um pequeno móvel com uma televisão e alguns objetos decorativos. Ao lado, uma estante com DVDs e livros. A criança adormeceu no sofá. A mãe está lá dentro, o pai está lá fora. Nas paredes, gravuras e um cartaz de um filme. 

Em Terreno selvagem, Miguel Castro Caldas, Pedro Gil e Raquel Castro mergulham numa história sem fim à vista.

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Ficha técnica cocriaçãoMiguel Castro CaldasPedro GilRaquel Castro textoMiguel Castro Caldas comPedro Gil, Raquel Castro,Joana Bárciaespaço cénico Pedro Silva luz João Gambino som Pedro Costa apoio à criação Duarte Águas apoio à construção de cenografia Fernando Gilregisto vídeo Maria Joana produção executiva Francisca Rodrigues

equipa TNDM IIdireção de cenaIsabel Inácio operação de luzFeliciano Brancooperação de som Pedro Costaprodução executivaPedro Pires

produção Raquel Castro, Pedro Gil coproduçãoTNDM II, Barba Azul, Teatro Viriatoresidência artística O Espaço do Tempo, mala voadora.porto espetáculo criado com o apoio doGoverno dePortugal / DGArtesapoio TSFM/14

duração 1h (aprox.)

agradecimentosMónica Castro Gil, Teatro Nacional São João,Teatro Municipal do Porto e toda a equipa do Teatro do Campo Alegre,Teatro Nacional de São Carlos, Equipa da Tobis, João Valente, Ana Francisca Amaral, Paulo Godinho, Paulo Prata Ramos, Ana Carina Paulino

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NOTAS BI O GRÁFI CAS

MIGUE L CAST RO CALDASEscreve para a cena e para o papel, traduz e dá aulas de dramaturgia na licenciatura de Teatro na Escola Superior de Artes e Design. Publicou Queres Crescer e Depois Não Cabes na Banheira, Ambar (2002) e As Sete Ilhas de Lisboa, Ambar (2004), Nunca Terra em vez de Peter Pan, Primeiros Sintomas (2005), O Homem do Pé Direito / O Homem da Picareta (2005); Casas / Comida / Repartição, Artistas Unidos/Cotovia (2008); Levantar a Mesa, Revista Artistas Unidos (2008); Nós Numa Corda, Culturgest (2010), Não tenho a tua vida, Revista Fatal (2011), Comida, Douda Corrreria (2014), Sabotage, Douda Correria (2014), Como assim levantados do chão, Revista Blimunda, nº30 (2014), Chaconne ou a arte de mudar de assunto, Douda Correria (2015), Diálogos, Culturgest (2015). Coencenou com Lígia Soares o texto Sabotage numa coprodução Máquina Agradável / S. Luiz (2015). Publicou poesia nos livros coletivos Voo Rasante, Mariposa Azual (2015) e De Natura, Mariposa Azual (2015). Traduziu Samuel Beckett, Harold Pinter, Ali Smith, William Maxwell, Joyce Carol Oates, Salman Rushdie, Senel Paz, entre outros.

PEDRO GILÉ ator desde 1999. Colaborou com criadores como Francisco Salgado, Gonçalo Amorim, João Brites (O Bando), Jorge Andrade (mala voadora), Jorge Silva Melo (Artistas Unidos), Letizia Quintavalla, Miguel Loureiro, Miguel Seabra (Teatro Meridional), Mónica Calle, Pedro Carmo, Rita Calçada Bastos, Rui Horta, Tiago Rodrigues (Mundo Perfeito) e Tónan Quito. Entre 2004 e 2012 dirigiu, com Ana Pereira, uma estrutura de criação e de produção. Dirigiu vários projetos em colaboração com artistas como Cláudia Varejão, Diogo Mesquita, Gonçalo Amorim, João Gambino, Jorge Silva Melo, Patrícia Portela, Pedro Carmo, Pedro Costa, Pedro Silva, Raquel Castro, Romeu Costa, Rui Pina Coelho e Tónan Quito. É artista associado d’O Espaço do Tempo.

RAQUEL CASTROLicenciada em Teatro – Formação de Atores da Escola Superior de Teatro e Cinema (2005-2008). Participou no Laboratório de Biografia do Teatro Maria Matos (assistindo e participando em conferências, workshops e palestras de Rui Catalão, Nature Theater of Oklahoma, Xavier Le Roy, Nelson Guerreiro e Maria Antónia Oliveira) e fez o workshop Devising within a community com a companhia de teatro norte-americana The Team. Participou na XXII edição da École des Maîtres, sob a direção de Constanza Macras. Como intérprete, trabalhou com Pedro Gil, Gonçalo Amorim, Madalena Victorino, Giacomo Scalisi, Mickaël de Oliveira, Nuno M. Cardoso, Tónan Quito, Ricardo Gageiro e Mónica Calle. Em cinema, trabalhou com Maria Pinto, João Mário Grilo e Simão Cayatte. Criou o espetáculo Os Dias São Connosco (2013), a exposição /performance Uma Retrospectiva (2013); em colaboração com Mariana Tengner Barros, encenou e interpretou a peça Dona de Casa de Esther Gerritsen (2014); coencenou com Pedro Gil, Gonçalo Amorim e Rui Pina Coelho o espetáculo Casa Vaga (2015).

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A encomenda e a carpete

Conversa Com miguel Castro Caldas, Pedro gil e raquel Castro

Desfazer essa cronologia também.

PG A diluição da cronologia tem a ver com poder, mas também tem a ver com as várias experiências que cada um tem feito: o achar que a cena, o espetáculo em si, fica sempre aquém do processo, ou do que podia ter sido. E tem muito a ver com este conflito entre a escrita e a cena, que é uma questão processual, de autoria, mas também uma questão de tempo, uma questão física.

Como no cinema, já que estamos aqui na Tobis: quando se chega à altura da rodagem, se o argumento não está escrito e os diálogos não estão decorados, não se pode filmar.

RC E às vezes parece que nem há a possibilidade de perguntar: mas porque é que é assim? Parece que é assim porque pronto. Por um lado há uma lógica, seja económica, seja prática, para que seja assim. Mas se não te questionares, também não percebes que se calhar pode mesmo ser de outra maneira.

PG A matéria teatral pode nascer de mil formas. Pode nascer escrevendo à mesa, de uma improvisação, entrevistando uma pessoa. Eu acho é que depois a sua materialização cénica é sempre problemática. É sobre essa concretização que nós tentamos operar.

MCC Porque é que dizes que a concretização em cena é sempre problemática?

Em que estado do processo estão?

PG Estamos a mexer em tudo ao mesmo tempo, essa é a provocação que estamos a fazer uns aos outros, e portanto falta muita coisa... Nem sei bem o quê. É como se estivéssemos a fazer um bolo sem receita, e todos os dias escrevemos de novo a receita para a próxima tentativa, vamos sempre provando, e quando percebemos que afinal precisa de mais ovos, voltamos a rescrever. Sendo que há ingredientes que ainda nem sequer juntámos. Portanto às vezes o bolo não sabe bem, pode ser porque lhe faltam ingredientes ou porque a receita não está bem executada.

Quem é que começou por provocar quem? Foram vocês que convidaram o Miguel a escrever?

PG Nós convidámos o Miguel, mas onde é que as coisas começaram.... tiveram vários começos, que se misturam uns com os outros, o sermos espectadores uns dos outros, termos feito já projetos uns com os outros. Foi uma coisa natural que veio no seguimento de outras.

E qual foi o convite?

RC Fazermos uma coisa os três, o mais partilhada possível, o mais promíscua possível. Quando falamos em provocação tem a ver com o querermos diluir as hierarquias e não fazer uma coisa que processualmente seria mais habitual: o Miguel escrevia um texto que nos entregava e depois nós encenávamos.

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PG Porque se tu escreves e entretanto te fores embora, aquilo que eu levar à cena pode não ser a concretização justa, ou ideal, do que nós — os dois — queremos. Pode não vibrar. Tem sempre a ver com desfasamento entre escrita e cena. E queremos continuar a discussão, até depois da estreia, porque o público são mais pessoas com quem podemos continuar a contracenar, e abrem-se novas possibilidades àquilo que tínhamos em mãos.

MCC Mas o que eu acho é que há sempre um desfasamento. Sempre, sempre, sempre. Nem que seja porque estão a decorar um texto. O texto é sempre uma coisa que pertence ao passado.

PG Mas de que forma é que nós operamos sobre esse desfasamento?

RC Miguel, tu estás aqui no dia a seguir e ainda podes operar sobre o que se está a passar.

PG E o próprio decorar o texto é uma questão. Porque é que há um dia em que a gente para de escrever e começa a decorar o texto? Ou como dizias, no cinema há um dia em que temos de começar a filmar.

No cinema basta teres registado uma vez aquela improvisação, mas no teatro tens que decidir.

PG Mas essa improvisação de que falas pode não ser a concretização que nós queríamos. A improvisação normalmente serve-nos para gerar matéria. A nós, pelo menos neste processo, interessa-nos compor, formalizar, criar uma coisa que não poderia ser improvisada.

MCC Em vez de escreveres um texto também podia ser por exemplo inventar um dispositivo, e a cena ser esse dispositivo. Não sabes bem o que vais dizer, mas tens

um guião na cabeça, sabes as regras, e não precisas de decorar um texto.

PG Mas há coisas na representação e na composição que só são possíveis se o texto estiver escrito e decorado.

É preciso haver uma parte fixa para o resto poder variar?

PG Até pode nem haver nada variável, para além da variação circunstancial a cada noite. Eu sou ator, e acredito na interpretação de uma forma — seja ela textual ou física –, em fazer todos os dias a mesma coisa procurando a sua verdade, a cada vez acabo por fazer coisas diferentes e por chegar a outras verdades.

RC Como criadores temos feito mais criações que não são encenações de textos dramáticos escritos previamente. Ao mesmo tempo, interessa-nos inventar uma relação com a escrita que seja a nossa, aquela que nos serve. Isto tudo porque acreditamos que se a cena alimentar a escrita e a escrita alimentar a cena, o resultado será mais nosso e em certa medida melhor, mais justo.

PG Estamos a falar de uma questão processual que é bastante técnica, mas qual é o interesse de falarmos disto? Não é porque nunca fizemos, ou porque queremos variar, não é para nos estimularmos, ou porque achamos que vamos chegar a um sítio onde nunca ninguém foi. Isto interessa-nos porque achamos que assim vamos conseguir chegar a uma coisa mais profunda, mais inteira.

MCC Eu escrevo, eles fazem qualquer coisa a partir disso e depois — depois ou antes, não há aqui primeiro e segundo lugar — eu escrevo a partir das improvisações que eles fizeram. Há os dois lados, mas os dois lados são transformados: o que parte de

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uma improvisação deles é transformado em escrita, e portanto automaticamente noutra coisa. (E às vezes, até, o que eu fiz das improvisações deles foi simplesmente transcrevê-las, tal e qual, porque era a melhor maneira de isso ser outra coisa, o mais natural era o mais artificial.) Mantemos os nossos lugares — o escritor, o ator, o encenador — e ao mesmo tempo deslocamo-nos, fazemos as duas coisas. Eu saio do lugar do escritor porque também digo coisas sobre o que eles estão a fazer, e eles também se metem na escrita.

PG No fundo é isso, nós podemos reescrever o texto e ele também pode encenar, e assim inventarmos uma coisa.

A carpete apareceu depois da descrição, ou foi a descrição que veio com a carpete?

MCC A descrição veio depois.

PG Esse é um bom exemplo: o Miguel escreve antes imaginando uma carpete, depois vem a carpete, não funciona… Esta carpete para mim não tem hipótese.

MCC Não tem hipótese?

PG Tu gostas?

O Miró por colorir… Funciona muito bem em relação ao texto. Porque tu olhas e pensas numa carpete do IKEA, mas de repente falam-te do Miró e faz sentido.

RC Era a única que havia, para já.

MCC Eu gostei do jogo… Agora não me tirem a carpete, senão tenho de escrever outra vez a cena. Isto é um Miró manhoso!

PG Esta é a contracena que falávamos, não é tudo feito em simultâneo. É como no pingue-pongue, eu só toco na bola depois de o outro me passar a bola. E nem sempre mandamos a bola para os sítios mais fáceis. Nós improvisamos sem

carpete. O Miguel imagina e escreve uma carpete. A seguir vem a carpete real. O Miguel adapta. A seguir, por causa da carpete que o Miguel rescreveu, olhamos para a carpete de novo e pensamos: “eh pá, esta carpete não é boa.” Estamos sempre a passar a bola, e é ver até onde é que aguentamos isto. E atenção, o Miguel acabou agora de nos dizer: “não me tirem esta carpete!” A pressão é constante.

E os livros, de onde vêm? Da vossa casa?

RC Da nossa casa espero que não, senão vou ter que os carregar!

PG O D. Maria tem imensos...

Faz lembrar uma história muito divertida do César Monteiro, no Vai e Vem. Ele chegou ao décor e disse, “mas que livros são estes?”, encontrou qualquer coisa de que não gostava e começou a atirar os livros todos pela janela. Essa ideia do livro para encher, não. Não interessa se não se vê, livro é livro.

PG Também vamos chegar a isso. Aqui os livros vão-se mesmo ver.

MCC A certa altura o que acontece na voz off é que ela começa a ver coisas que nós, os espectadores, com a distância não apanhamos. Vê o livro que está ali, e depois a certa altura até cita uma página.

Muda a escala.

MCC Há uma lógica entre as cenas e a voz off, uma progressão: primeiro parece uma didascália. Depois não é bem uma didascália porque está a descrever aquilo que acontece — só que depois de acontecer, como se estivesse a entrar fora do tempo. Depois começa a ter pensamento, a pensar sobre o que está a ver. E depois começa a influenciar o que está a acontecer, toma conta do espetáculo. Ou seja, ao princípio só está a acompanhar, a reagir ao que acontece,

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e a pouco e pouco começa a voar um bocado — é uma espectadora: está a ver o espetáculo, e depois começa a pensar e a preencher buracos, a lembrar-se de outras coisas. E depois a ideia é, a certa altura, começar a escrever, tornar-se uma escritora, que escreve o espetáculo.

RC Isto da voz off foi um dos pontos de partida da criação, surgiu como uma premissa formal independente das outras.

Estavam a dizer há bocado que vai ser uma voz feminina. Porquê, para não poder ser o Miguel?

PG Essa é uma das razões. Achámos que devia ser uma voz feminina. Quando há um homem a falar, é muito fácil que seja logo o autor. Uma espécie de deus… E também gosto da ideia de que a pessoa que falta em cena — a filha representada pelos pais — seja do mesmo sexo que a espectadora. E claro, talvez por ser pai de uma filha.

E o título? Estava a ver aí uma pasta com o título antigo riscado. Porque aos filhos não se muda de nome aos três anos — “Ah afinal tens mais cara de Mónica...”

RC Chamámos-lhe uma coisa porque tínhamos mesmo de ter um título.

PG Mas acho mal dar-se nome aos filhos antes de olharmos para eles. Antes de os conhecermos.

MCC Eu por acaso ao meu primeiro filho não dei: nós já tínhamos uma ideia de um nome, mas depois quando o vi: “não pode ser, ele tem cara de João.”

PG É como o texto, é igual, é o mesmo problema de se dar o título antes: quando nasceu o texto afinal não se podia chamar aquilo.

RC Aqui podíamos mudar e por isso mudámos. Isto foi uma discussão imensa. Temos uma lista enorme...

PG Faz sentido que assim seja. Escolher o título é também escolher o conceito, o nome justo para a experiência que vamos propor. Este título é inspirado num filme do Víctor Erice que se chama La Morte Rouge. A dada altura ele está a falar do cinema onde ia quando era pequenino e onde começou a ver filmes e fala dessa primeira infância como uma espécie de “terreno selvagem”.

Não conhecia essa expressão do Erice. Onde “terreno selvagem” ecoou para mim foi num momento em que a voz off diz as fases do desenvolvimento da criança segundo....

RC Segundo a escola. São os objetivos do jardim de infância para uma criança dos 3 aos 5 anos.

Então há um contraponto entre qualquer coisa que está supostamente controlada e que se consegue prever, aos x anos deve ser capaz disto e daquilo (e mesmo do ponto de vista de uma casa, tem-se estantes com livros, uma zona de sala de estar, uma de jantar, uma ordem), mas na verdade é um terreno selvagem, estás sempre um bocado a lutar e não sabes muito bem o que é que te vai aparecer — como a encomenda.

MCC É isso mesmo. O selvagem irrompe. E não tem de acontecer nada de especial.

PG É como se a qualquer momento pudéssemos ver um casal com uma cria numa gruta. Mas de repente não é uma gruta, é uma casa, eles não estão nus, estão vestidos, não há um leão à espreita, mas há a televisão que nos fala do perigo que está próximo.

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Quais foram os pontos de partida?

RC A nossa experiência enquanto pais, de uma pessoa de cinco anos, a experiência do Miguel que também é pai.

MCC Mas eu já não me lembro de nada.

RC Depois de algum trabalho, percebemos rapidamente que não íamos fazer isto da perspetiva da criança, na medida em que não só não nos lembramos de quase nada da nossa primeira infância, como nunca nos conseguiríamos colocar agora no corpo de uma criança de cinco anos. No fundo essa impossibilidade é onde assenta o mistério da infância, e queríamos trabalhar com esse mistério, com a impossibilidade de aceder a essa perspetiva.

PG Essa impossibilidade foi o que mais nos atraiu.

RC Outra coisa que também surgiu rapidamente foi o sermos nós a interpretar as três figuras, porque decidimos que não queríamos ter uma criança em cena.

Mas como é que chegaram a esta solução? Era uma ideia de partida, a criança só estar no texto e não na representação? Ou seja, às vezes nos espetáculos com crianças feitas por adultos há uma coisa de corpo que indica logo que é uma criança, e aqui não.

PG Se não nos lembramos da nossa própria infância, se não nos podemos pôr na pele da criança, então sentimos que não a podíamos trazer para o palco. O máximo que podemos fazer é tentar representá-la assumindo as nossas limitações, ou seja, só podemos ser nós a andar ali à volta, numa espécie de representação aproximada, assumidamente falhada.

RC Mas claro, podíamos ter outro ator a andar ali à volta.

PG Mas isso seria pô-lo a representar a criança, mas assim perdíamos a camada de ser sempre o pai e a mãe a fazerem de criança.

Também obriga o espectador a trabalhar mais para identificar ali a criança. E acontece uma coisa engraçada, que é olharmos para vocês os dois e começarmos a ver como seriam quando eram miúdos.

PG Isso também foram coisas que pensámos: onde é que nós nos revemos nos nossos filhos, onde é que os nossos filhos estão em nós? Onde é que vemos a infância na cara de outra pessoa, independentemente da sua idade? Isto acaba também por ser sobre essa infância que supostamente temos cá dentro.

MCC Eu não vou tanto por aí, pela infância que temos cá dentro. A ideia que me interessa aqui é a da infância como uma coisa radicalmente fora. A infância só existe porque nós já não estamos lá. Senão nem existia a palavra. Quando estás a vivê-la, não tens noção de que estás a vivê-la. É uma coisa que os adultos te dizem: “tu és uma criança...” O serem adultos a fazerem a criança aponta para isso, os corpos são essa distância, não é porque a criança esteja lá dentro.

PG Embora também sejamos dois adultos a brincar aos pais e às mães, e aí também está a criança que fomos, que somos.

MCC É engraçado que no brincar aos pais e às mães, por exemplo naquela cena em que há uma pessoa que está a limpar...

Que tu achas que é a mãe.

MCC Mas não sabes.

Sim, mas achas que é a mãe. E só quando o pai diz “para de brincar que eu tenho de limpar” é que percebes que ela não está a limpar, está a fazer de conta que está a limpar.

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MCC Isso remete para a questão do teatro.

Estão a fazer de conta que estão a fazer de conta...

PG Como o brinquedo é o mesmo...

Mas apesar dessa distância — às vezes mesmo abismo — entre a criança e o adulto, há um jogo. Por exemplo na cena da encomenda: o que de lá sai vai-se transformando, mas quem desembrulha a encomenda também se transforma. O adulto é cúmplice e faz a criança ir mais além. Há uma grande cumplicidade do adulto com o que é ser criança, senão não conseguia fazer esse jogo.

MCC É porque são duas coisas radicalmente distantes que ficam sobrepostas. Isso é que eu acho engraçado. Podemos pensar nisto também para o texto e a cena. Também são duas coisas radicalmente diferentes, mas que estão sobrepostas. Sem se anularem, mas sem dizer que se misturam.

Há aquele momento da história que o pai conta, em que a criança é feita escrava. No fundo aquilo é uma descrição muito limpa do que é a vida de uma criança: tem de fazer o que os pais lhe mandam, àquelas horas. Se tirares o dizer que é escrava, não choca nada. E de repente: “Espera aí, mas isto é mesmo assim. Mas não é. Mas é.”

MCC Por acaso ontem à noite estava a pensar nisso: isto é tudo o normal da vida de uma criança, mas escravo? Os escravos têm de trabalhar. E qual é o trabalho da criança? Ah, é comer!

RC É comer, é lavar os dentes…

MCC É engordar, é crescer.

Como na história do Hansel e da Gretel, eles só estão vivos para engordar.

MCC Mas é isso mesmo, o trabalho da criança é crescer.

As brincadeiras da encomenda partem sempre de uma situação fantasiosa, aconteceu uma coisa horrível, mas agora está tudo bem, vai ser acolhida nesta família. Mas na última história, que é só lida pelo pai, o ponto de partida é a realidade (os pais que ficaram sem dinheiro porque compraram um Opel Corsa). Em vez de salvar, aqui a fantasia (a bruxa) revela a própria realidade enquanto pesadelo (a escravidão de ser criança), o que é bastante assustador…Vocês gozam com a coisa do unheimlich, mas a peça é muito freudiana, mais as referências ao abandono infantil e aos contos de fadas. De onde é que surgiram essas ideias do Freud e dos contos de fadas? Vieram do mesmo sítio?

PG A brincadeira da encomenda tem uma raiz documental: com a nossa filha, sempre que sai do banho, fazemos sempre este jogo, dos pais que morreram. É bastante épico.

RC Já há mais de um ano, nem sabemos como é que ele surgiu. E é sempre essa história. A certa altura começou a evoluir, já não era uma criança, era um animal…

PG Ela brinca com o seu maior medo — que é perder-nos — mas em segurança, porque nós estamos ali. E às vezes diz o pior, é sinistro, ontem tinha restos dos nossos ossos do acidente. E no final dá a volta e diz: “E tu, como é que te chamas?” “Raquel”. “Raquel quê?” “Castro.” “Eu também sou Castro! E tu?” “Sou o Pedro Gil.” “Ah, eu também sou Gil, vocês são os meus pais.” Há um reencontro e nós afinal tínhamo-nos esquecido de tudo, é um sonho dentro do sonho. Também é para exercitar o medo. Aquilo dá-lhe uma angústia, mas depois…

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RC É sempre adotada pelos próprios pais...

MCC A coisa do Freud, não sei, surgiu porque, quando se fala na infância, o Freud acaba sempre por vir à baila. E eu achei piada dizer que o Freud não percebe nada disto e que só consegue balbuciar “umlaimlich”.

RC Pensando nesse medo primordial, que nos acompanha até sermos adultos, que tem a ver com a solidão, o abandono. Não é que seja freudiano…

MCC Acho que tem a ver com uma coisa que se calhar é importante, a afirmação de que não sabemos. Estamos a lidar com uma coisa que não se sabe.

Um pouco como as etapas de desenvolvimento. Podes dizer imensas coisas, e o Freud pode ter feito imensas teorias, mas perante a coisa concreta continuas no mesmo sítio: não sabes, tens de lidar com aquilo outra vez.

RC Também tem a ver com a educação, com o teu papel enquanto pai ou mãe: tens imensa informação, mas na verdade não sabes muito bem como é que se faz.

MCC Quando se fala do Freud é sempre para tentar explicar. E o próprio Freud não era isso. Ele não estava a trazer luz…

Aliás, trouxe imensas trevas, coisas que se calhar preferíamos não saber…

MCC Pois. Quando o Freud é trazido para as conversas é sempre para a pessoa dizer que sabe como é que é. “Eu li Freud, eu não-sei-quê. Eu sei como é que é porque o Freud disse.” E se calhar foi por isso que surgiu, porque estamos a lidar com um terreno selvagem, nem sequer sabemos muito bem como é que se lida com isso.

Estava a pensar no jogo que a vossa filha faz, para lidar com o medo do abandono, e que no fundo é uma maneira de ela controlar a realidade — eles adotam-me

sempre — ligando isso ao processo e à escrita. Estão a jogar com um certo descontrolo: não sabem o que vai acontecer no meio, mas sabem que o texto vai ser escrito, que vai ser um espetáculo de teatro, e no dia 15 de janeiro vão estar ali pessoas a assistir.

PG É por causa desse tabuleiro onde se joga, também é isso que te permite ir em profundidade. Porque de outra forma, se é tão selvagem, a profundidade espraia--se para os lados e eu já não sei o que é o profundo. O profundo tem também a ver com o podermos ter referências.

Há bocado falávamos do diálogo com crianças, das respostas que respondem mas não respondem: “O que é mutilados?” “É com sangue.” Aquilo serve porque a criança aceita que fique por ali, se quisesse continuar, não servia. É como a relação nos casais, há sempre uma construção de um pacto qualquer que está sempre a ser renegociado — como na história do segundo carro. Estamos a falar muito das crianças mas não falámos dos adultos…

PG “Quando Pedro me fala de Paulo, fico a saber mais de Pedro do que de Paulo”, não é assim que o Freud diz? E é igual aqui, acho que ficamos a saber mais coisas sobre os adultos do que sobre a criança. É muito importante para nós esta noção de que não nos estamos a representar nem a nós nem à nossa filha. Outro dos pontos de partida era uma vontade muito grande de fazermos uma viagem do documental para o ficcional, do autobiográfico para o auto-ficcional. E achámos que o Miguel seria a pessoa perfeita para fazer a viagem neste sentido. Este trabalho de cocriação pressupõe muito tempo, ainda antes de se começar a cozinhar, passamos muito tempo só a discutir de que pratos é que gostamos. E primeiro, vai ser carne ou vai ser peixe? Estamos muito tempo a misturar pratos, a dar a provar uns aos outros…

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E essa insistência na carne? É sempre a carne: o que é que comeste na escola? Carne. Come a carne, come a carne. O leão também vai comer carninha… É National Geographic também.

PG Para mim faz-me todo o sentido ser carne, carne, carne, porque nós estamos cada vez mais vorazes. Eu luto para comer peixe em vez de carne e não consigo. É tudo carne, carne. Nós somos predadores, somos consumistas. A carne está aí para ficar.

RC O que aconteceu também foi que há coisas que estão lá e nós não nos tínhamos apercebido. E quando nos apercebemos, passamos a poder jogar com elas. Percebemos o potencial. Com a carne foi assim. Surgiu por causa do leão e por causa do que ela responde na escola, e de repente, pensámos, “espera aí, o que é que isto significa?”

PG E rima com selvagem. Tu perguntas: “o que é que comeste hoje?” E queres que coma coisas diferentes, “hoje foi um prato vegetariano”… E maior parte das vezes a nossa filha diz: “carne.” E tu: que medo! Carne?!

RC Não diz nada, é “carninha com massa”, ou “carninha picada”…

PG Mas eu só vejo carne!

MCC A mim vem-me logo aquela imagem, na Mónica e o Desejo do Bergman, há uma cena em que a Mónica está no meio dum bosque com um naco de carne na mão, a fugir. Lembram-se disso? A certa altura estão a roubar qualquer coisa e levam-na para uma casa, é uma casa de pessoas que têm uma casa de praia, e depois dão-lhe comida, é carne assada. Ela está sentada, e de repente pega na carne e foge. E perde--se num bosque tipo pinhal de Leiria. E de repente parece uma selvagem, está assim com um bocado de carne no meio da selva, em fuga.

A peça tem uma relação com a atualidade, mesmo que mínima: há a crise, há Paris, o acordo histórico da esquerda...

MCC Só há muito pouco tempo é que decidimos que queríamos situar isto historicamente. Mas não é tanto para comentar o momento político, é usá-lo para puxar outras coisas que vão surgir mais no final.

RC E depois nós estamos inseridos num contexto, e quando estamos a trabalhar e a criar material, ele acaba por aparecer. Estes acontecimentos são dos últimos meses, do tempo da criação. O espetáculo passa-se todo dentro de casa, e a realidade entra-te em casa por várias vias, seja porque viveste coisas, seja porque a tua filha aprendeu uma canção, seja porque ligas a televisão ou o rádio e a realidade entra por ali adentro.

PG Acho que é o mesmo movimento do documental para o ficcional. O irmos dessa hiper-realidade para uma hiperficção, por oposição a fazermos uma coisa distante no tempo, ou até intemporal.

MCC Para mim é mais uma questão de nos situar. Vamos situar-nos: OK, novembro de 2015. Se nós repusermos esta peça daqui a três anos continuará a ser novembro de 2015.

Conversa Com ana eliseu e Joana Frazão, a 15 de dezembro de 2015 (durante o período de ensaios, a um mês da estreia)

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esConde-esConde

João dos Santos — O movimento é a primeira forma de pensar. O bebé pensa e comunica o seu pensamento através do movimento. Dizendo adeus, dizendo não, dizendo sim, jogando às escondidas com o lençol, e fazendo o “esconde-esconde”, não é?

João Sousa Monteiro — Como é o “esconde- esconde”? JS — É a criança tapar a cara com o lençol, e depois destapá-

-la, e dar uma grande gargalhada de júbilo.JSM — É verdade! É verdade! Porque é que isso dá tanto

prazer à criança? JS — Porque quando ela se esconde deixa de ver a mãe, e isso

significa que a mãe desapareceu e que é ela que a fez desaparecer. E quando ela destapa a cara e vê a mãe, sorridente e jubilosa, entra também numa atitude de júbilo, porque é como se tivesse o poder de fazer reaparecer a mãe. Aliás, isto é muito parecido com uma história que o Freud conta sobre um sobrinho dele, que tinha um carrinho de linhas preso a um cordel e o fazia desaparecer e reaparecer, dizendo uma palavra que correspondia ao nome da mãe. Ele exercia um poder sobre os acontecimentos, sobre o meio ambiente, para fazer reaparecer a mãe quando a mãe desaparecia. Antes da palavra ligada às coisas, que já é discurso, a criança comunica sobretudo por gestos, por movimentos, por expressões de júbilo dispersas, até por palavras que não são ainda um falar, mas são já um esboço do falar.

João dos Santos, Eu agora quero ir-me embora — conversas com João Sousa Monteiro

a Civilização e o homem selvagem

Posto neste globo sem forças físicas e sem ideias inatas, incapaz de obedecer por si próprio às leis constitucionais da sua organização, que o destinam à primeira fila do sistema dos seres, o homem só pode encontrar no seio da sociedade o lugar eminente que lhe foi designado na natureza, e seria, sem a civilização, um dos animais mais fracos e menos inteligentes: verdade sem dúvida muito rebatida mas que ainda não foi rigorosamente demonstrada... Os filósofos, que foram os primeiros a emiti-la e que depois a defenderam e propagaram, deram como prova o estado físico e moral de alguns povos errantes, que consideravam

Andar aqui à voltaexcertos de textos

de vários autores

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incivilizados porque o não eram à nossa maneira e nos quais foram recolher os traços do homem no estado puro de natureza. Não, diga-se o que se disser, não é propriamente aí que se deve procurá-lo e estudá-lo. Na tribo selvagem mais vagabunda como na nação da Europa mais civilizada, o homem é apenas aquilo que dele se fizer; necessariamente educado pelos seus semelhantes, deles adquiriu os hábitos e as necessidades; as suas ideias não lhe pertencem; goza da mais bela prerrogativa da sua espécie, a susceptibilidade de desenvolver o seu entendimento através da força da imitação e da influência da sociedade.

Por conseguinte, deveria procurar-se noutro lado o tipo de homem verdadeiramente selvagem, aquele que nada deve aos seus semelhantes, e deduzi-lo dos relatos particulares sobre o pequeno numero de indivíduos que, durante o século XVII, foram encontrados, com intervalos diferentes, vivendo isolados nos bosques onde tinham sido abandonados desde a mais tenra idade.

Jean-Marc Gaspard Itard, Da educação de um homem selvagem ou dos primeiros progresso físicos e morais do jovem selvagem de Aveyron

a realidade entra pela Casa adentro

Maurice Sendak, Where the Wild Things Are

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histórias da CaroChinha

Portanto, tem de haver um grau de tolerância entre permitir que o sono dê lugar ao sonho evoluído e deixar que a criança seja capaz de encontrar uma solução simbolizada. Porque depois os sonhos que se constroem nestas inquietações de base são simbolizados em histórias tradicionais, histórias da carochinha, digamos, que põem na mesma o problema de uma certa malícia no que respeita à vida conjugal, ou no que respeita ao casamento, ou à vida íntima dos pais, mas fazem-no de uma maneira já um tanto distante daquilo que é sentido como sendo pecaminoso. Portanto, nem muito à terra nem muito ao mar. Aquilo que o adulto pode fazer é ajudar a criança a simbolizar, a encontrar soluções simbólicas, ajudar a criança através da leitura de histórias, de contos tradicionais, de desenhos, ou de outras coisas, de brincadeiras diversas, a encontrar por ela própria uma solução para esses enigmas, uma solução que é posta não em termos racionais, natural mente, mas em termos simbólicos, como elas fazem em relação à vida dos animais, ou dos bonecos, ou dos brinquedos, ou nas brincadeiras. Mesmo que a pessoa não perceba inteiramente o significado de um determinado jogo da criança, ou de um desenho que ela faz para uma história que conta, ou de uma história que ela inventa e conta, o que é verdade é que esse sonho, essa fantasia, esse jogo tem um efeito qualquer benéfico, porque a criança, através do imaginário, resolve problemas sem ter necessidade de tomar uma cons ciência completa das coisas, como acontece na psicanálise ou no tratamento psicanalítico.

João dos Santos, Eu agora quero ir-me embora — conversas com João Sousa Monteiro

a mãe e a bruxa

Depois de se familiarizarem com Hansel e Gretel, a maior parte das crianças compreende, pelo menos inconscientemente, que o que acontece na casa paterna e na casa da bruxa não são senão aspetos diferentes do que, na realidade, é uma experiência total. Inicialmente, a bruxa é uma figura perfeitamente agradável de mãe, pois dizem-nos como “ela os levou a ambos pela mão e os conduziu até à sua casinha. Depois, pôs-lhes comida boa à frente, leite, filhós com açúcar, maçãs e nozes. Depois, dois pequenos leitos foram cobertos com lençóis limpos, e Hansel e Gretel deitaram-se neles, pensando que estavam no céu”. Só na manhã seguinte, acordam, bruscamente, destes sonhos de felicidade infantil. “A velhota tinha só fingido ser tão generosa; na realidade, era uma maldosa bruxa...”

Isto é o que a criança sente quando é devastada por sentimentos ambivalentes, frustrações e angústias do estado de desenvolvimento edipiano, exatamente como quando da sua

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deceção de desenvolvimento pela negação da mãe em satisfazer as suas necessidades e desejos tão completamente como ela esperava. Muitíssimo transtornada por a mãe não a servir cegamente mas, pelo contrário, lhe fazer exigências e devotar--se cada vez mais aos seus próprios interesses  —  coisa de que a criança não se tinha permitido tomar consciência anteriormente —, ela imagina que a mãe, enquanto a amamentava e criava um mundo de felicidade oral, o fazia apenas para a enganar  —  tal como a bruxa do conto.

Assim, a casa paterna “junto da grande floresta” e a casa fatídica das profundezas da mesma floresta não são, a um nível inconsciente, senão dois aspetos da casa paterna: o consolador e o frustrante.

Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas

Faz outra vez

Sabemos que para uma criança a repetição é a alma do jogo, que nada lhe dá mais prazer do que “Faz outra vez!” A ânsia obscura de repetir coisas não é menos poderosa no jogo, não é menos astuciosa no seu funcionamento, do que o impulso sexual no amor. Não foi por acidente que Freud imaginou que podia detetar aí um impulso “para lá do princípio do prazer”. E de facto, toda a experiência profunda anseia por ser insaciável, anseia por regresso e repetição até ao fim dos tempos, e pelo restabelecimento da situação original da qual surgiu. “Tudo se resolveria num ápice / Se o pudéssemos fazer duas vezes.” As crianças agem segundo este provérbio de Goethe. Só que a criança não se satisfaz com duas vezes, quer a mesma coisa uma e outra vez, cem ou até mil vezes. Trata-se não só de uma maneira de dominar experiências fundamentais  —  embotando a própria resposta, conjurando experiências arbitrariamente ou através da paródia; significa também apreciar os nossos triunfos e vitórias uma e outra vez, com total intensidade. Um adulto alivia o coração dos seus terrores e duplica a sua felicidade transformando-a numa história. Uma criança cria o acontecimento inteiro de raiz e começa de novo do princípio. Talvez resida aqui a explicação mais profunda para os dois significados da palavra alemã Spielen [representar e jogar]: o que lhes é comum é o elemento de repetição. Não um “fazer como se” mas um “fazer a mesma coisa uma e outra vez”, a transformação de uma experiência perturbadora num hábito —  é essa a essência do jogo.

Walter Benjamin, Toys and Play

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Jogo e ritual

Todo o jogo se define pelo conjunto das suas regras, que tornam possível um número praticamente ilimitado de partidas; mas o rito, que também se “joga”, assemelha-se mais a uma partida privilegiada, selecionada entre todas as possíveis porque só ela resulta num certo tipo de equilíbrio entre as duas equipas. A transposição é facilmente verificada no caso dos Gahuku-Gama da Nova-Guiné, que aprenderam o futebol, mas que jogam, durante vários dias de seguida, tantas partidas quantas forem necessárias para que se equilibrem exatamente as perdidas e ganhas por cada equipa, o que corresponde a tratar um jogo como um rito. Poderíamos dizer o mesmo sobre os jogos que fazem os índios Fox, aquando das cerimónias de adoção cuja finalidade era substituir um pai ou mãe mortos por um vivo, e permitir assim a partida definitiva da alma do defunto. Os ritos funerários dos Fox parecem, com efeitos, inspirados pela preocupação maior de se desembaraçarem dos mortos, e de impedir que eles se vinguem dos vivos pela amargura e pesar que sentem por já não se encontrarem entre eles […]. Os homens deverão mostrar-se firmes para com os mortos: os vivos far-lhes--ão compreender que nada perderam ao morrer, pois receberão regularmente oferendas, tabaco e comida; em contrapartida, pede-se deles — em compensação por esta morte cuja realidade lembram aos vivos e pela tristeza que causam pelo seu falecimento — que lhes garantam uma longa existência, roupas, e o que comer.

Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage

Fases de desenvolvimento

Quarta-feira Não é um peixe. Não consigo perceber bem o que é. Emite uns ruídos curiosos e diabólicos quando não está satisfeito e diz gu-gu quando está. Não é um de nós, visto que não anda; não é um pássaro, visto que não voa; não é um sapo, visto que não pula; não é uma cobra, visto que não rasteja; tenho a certeza que não é um peixe, conquanto não tenha hipótese de descobrir se sabe nadar ou não. Fica para ali deitado, principalmente de costas, de pernas levantadas. Nunca encontrei outro animal que fizesse isso. (...) No meu entendimento, ou é um enigma ou uma espécie de insecto. Se morrer, vou desmanchá-lo e devassar-lhe as entranhas. Nunca nada me deixou tão perplexo.

Três meses depois A minha perplexidade aumenta, em vez de diminuir. Ando a dormir muito pouco. A criatura deixou de estar deitada e agora gatinha nas quatro pernas. Todavia, difere dos outros quadrúpedes porque as suas pernas anteriores são invulgarmente pequenas, o que faz com que a parte principal do corpo se espete desagradavelmente no ar, o que não é

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muito bonito. Tem uma constituição semelhante à nossa, mas o seu método de locomoção demonstra que não é da nossa raça. As pernas dianteiras pequenas e as traseiras compridas indicam ser da família do canguru, mas esta é uma notável variação da espécie, dado que o verdadeiro canguru pula, enquanto este nunca o faz.

Três meses depois O canguru continua a crescer, o que é muito estranho e desconcertante. Nunca vi nenhum que ficasse tão grande. Agora até tem pelo na cabeça; não como o pelo do canguru, mas exatamente como o nosso cabelo, só que muito mais ralo e macio, e em vez de ser preto é vermelho. (...) Capturei um Canguru verdadeiro e trouxe-o para casa, a pensar que este, estando sozinho, preferisse tê-lo como companhia do que não ter nenhum parente de todo, ou ter qualquer animal com o qual pudesse sentir familiaridade ou simpatia, neste desamparo entre estranhos, ignaros dos seus costume e hábitos, sem saberem o que fazer para o amigar. Mas foi um erro — entrou em achaques tais à vista do canguru que eu me convenci que nunca vira nenhum. Tenho pena do pobre animal barulhento, mas não tenho maneira de o fazer feliz. Se ao menos o pudesse amestrar — mas isso está fora de questão; quanto mais tento, pior é a reação. Aflige-me o coração vê-lo naqueles acessos de tristeza e paixão. Eu queria soltá-lo, mas ela não me deu ouvidos, o que me pareceu cruel e nada típico dela; mas talvez tenha razão. (...)

Cinco meses depois Não é um canguru. Não pode ser, visto que agora até se apoia ao dedo dela para andar uns poucos passos nas pernas traseiras e depois cai. Provavelmente é algum tipo de urso; todavia não tem nenhuma cauda — até agora — nem pelo, excepto na cabeça. Continua a crescer — o que é uma circunstância curiosa, porque os ursos crescem mais cedo. Os ursos são perigosos — desde a nossa catástrofe — e a mim não me agrada ter este a vaguear por casa durante muito mais tempo sem um açaime. (...)

Quinze dias depois Examinei-lhe a boca. Ainda não há perigo, contudo: só tem um dente. Ainda não tem cauda. Mas faz mais barulho agora do que nunca, principalmente à noite. (...)

Quatro meses depois (...) O urso aprendeu a dar os primeiros passos sozinho sobre as pernas traseiras e diz “papá” e “mamã”. De certeza que é uma espécie nova. Esta analogia com as nossas palavras pode ser puramente acidental, claro, e pode não ter nenhum objetivo ou significado, mas mesmo assim é extraordinária e é uma coisa de que nenhum outro urso é capaz. Esta imitação de discurso, tomada em conta com a geral ausência de pelo e a total ausência de cauda, basta para deduzir que se trata de uma nova estirpe de urso. (...)

Três meses depois Tem sido uma caçada muito, muito fatigante, mas não tenho tido sucesso nenhum. Entretanto, sem se afastar da herdade, ela capturou outro! (...) Tenho comparado o novo com o antigo, e é bastante claro que são da mesma raça. Ia embalsamar um deles para acrescentar à minha coleção, mas ela tem qualquer coisa contra, por qualquer razão (...). O mais velho já está mais amestrado; ri-se e fala como o papagaio, coisa que

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aprendeu, sem dúvida, por passar tanto tempo com ele, e por ter a faculdade da imitação altamente desenvolvida. Ficarei espantado se se revelar uma nova estirpe de papagaio, e contudo não devia, pois ele já foi tudo o imaginável desde os primeiros dias em que era um peixe.

Mark Twain, O Diário de Adão e Eva

inquietante estranheza (das unheimliChe)

Termo que resulta de um artigo de Freud com o mesmo nome (“Das Unheimliche”, 1919), em que o autor aborda numa perspetiva psicanalítica este conceito da estética presente, por excelência, na obra de Hoffmann. Incluindo-se no que suscita o medo, das Unheimliche é aquele terror que remonta ao que é desde há muito conhecido e ao qual se está há muito acostumado. Sendo o contrário de heimlich, conhecido, familiar, caseiro, habitual, íntimo, ligado ao Heim  —  lar, lugar aconchegante, e a Heimat  —  terra natal, das Unheimliche é o não-conhecido, que provoca uma sensação difusa de medo e de horror. Contendo heimlich igualmente o significado de em segredo, escondido, sub-reptício, o efeito do unheimlich surge quando o que deveria ficar oculto sobressai (Schelling referido por Freud). Verifica-se um deslizamento do significado da palavra heimlich para unheimlich num sentido ambivalente, ao ponto de as duas palavras opostas coincidirem. Unheimlich é algo de heimlich, íntimo-estranho: “sinto-me, por vezes, como uma pessoa que deambula de noite e que acredita em fantasmas, cada canto é-lhe conhecido e medonho” (Klinger citado por Freud). O efeito do unheimlich é conseguido por Hoffmann através da utilização do duplo nos seus diversos graus e tipo de formações, como, entre outros: a identificação, a duplicação do eu, a divisão do eu, a troca do eu e o constante retorno do igual nas personagens (caracteres, nomes, destinos) em sucessivas gerações. Para Freud, este retorno do mesmo  —  quer se trate, por exemplo de um número ao qual se atribui um significado, por aparecer de forma repetida  —  tem origem numa compulsão, a repetição que no nosso inconsciente se sobrepõe, para além do princípio do prazer, às outras pulsões. Sentimos como íntimo-estranho o que nos evoca a compulsão à repetição. O pensamento todo-poderoso que advém de uma sobrevalorização narcísica e que é próprio de uma fase infantil do desenvolvimento individual, encontrando o seu correlato no animismo e pensamento mágico dos povos primitivos, deixou em todos nós resíduos que se evidenciam sempre que temos a sensação do íntimo-estranho.

Rosa Busse, E-Dicionário de termos literários

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natureza selvagem

A Natureza nem sempre existiu. Ela não é encontrada nas profundezas da floresta, no coração do puma ou nas canções dos pigmeus; ela é encontrada nas filosofias e nas imagens construídas de seres humanos civilizados. Linhas aparentemente contraditórias são tecidas juntas criando uma natureza como uma construção ideológica com o propósito de nos domesticar, suprimir e canalizar as nossas expressões de natureza selvagem.

A civilização é monolítica e o modo civilizado de conceber tudo o que é observado também é monolítico. Quando confrontada com a infinidade de seres que existem por toda a parte, a mente civilizada necessita de categorizá-los para que possa sentir que os está a entender (apesar de, na verdade, tudo o que ela realmente está a entender é como tornar essas coisas úteis para a civilização). A natureza é uma das categorias civilizadas mais essenciais, uma das mais úteis para conter a natureza selvagem dos indivíduos humanos e para assegurar de que se autoidentifiquem como seres sociais e civilizados. (...) O conceito de natureza cria um sistema de valor social e moralidade. Por causa das linhas aparentemente contraditórias que se uniram no desenvolvimento da “natureza”, esses sistemas também podem parecer contraditórios; mas todos eles atingem o mesmo fim: nossa domesticação. Aqueles que nos dizem para “agir civilizadamente” e aqueles que nos dizem para “agir naturalmente” estão na realidade a dizer-nos a mesma coisa: “Viva de acordo com os valores externos, não de acordo com seus desejos.”

Feral Faun, A Natureza como um espetáculo — A imagem da natureza selvagem versus o selvagem

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pôr-se no lugar da Criança

A diferença entre o espaço visual de uma criança e o de um adulto está figurada na fig.12, que reproduz graficamente uma experiência comunicada por Helmholtz. Relata ele que, ainda pequeno, ao passar pela igreja da guarnição de Potsdam, notara na galeria da torre daquela alguns operários. Pediu então a sua mãe que lhe fosse buscar um daqueles bonequitos pequenos. A igreja e os operários já estavam contidos no seu horizonte, e por isso não estavam afastados, eram apenas pequenos. Tinha pois toda a razão para admitir que sua mãe podia, com os seus braços compridos, tirar os bonecos da galeria. Ele não sabia

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que no mundo-próprio de sua mãe a igreja tinha dimensões perfeitamente diferentes das que tinha no seu, e que na galeria o que havia era homens, não pequenos, mas afastados. Quanto aos animais, a situação do horizonte nos seus mundos-próprios é difícil de determinar, porque a maior parte das vezes não é fácil de experimentalmente verificar quando é que um objeto do ambiente, ao aproximar-se do sujeito, não só passa a ser maior mas também a ficar aparentemente mais próximo. […]

Não existe, de modo nenhum, espaço independente do sujeito. Se, porém, nós nos agarramos à ficção de um espaço universal, é apenas porque recorrendo a essa mentira convencional conseguimos compreender-nos melhor uns aos outros.

Jakob von Uexkul, Dos Animais e dos Homens

desensinar

Os mestres Zen eram educadores estranhos. Não pretendiam ensinar coisa alguma. O que desejavam era “desensinar” (...) para que os discípulos pudessem ver como nunca tinham visto. (...) A visão é um processo pelo qual construímos as nossas impressões ópticas segundo o modelo que a linguagem impõe. Então, para se ver de forma diferente, é inútil refinar a linguagem, refinar teorias. O refinamento das teorias só aumenta a clareza da mesmice. A pedagogia dos mestres Zen tinha por objectivo desarticular a linguagem, quebrar o seu “feitiço”. (...) Quebrado o feitiço, os olhos são libertados dos “saberes”, ganham a condição de olhos de criança: veem como nunca tinham visto. (...) A psicanálise é uma versão moderna da pedagogia Zen. Freud sugeriu que os neuróticos são pessoas “possuídas” pela memória, memória essa que os obriga a viver vendo o mundo da forma como o viram no passado. A memória torna-nos prisioneiros de passado, não nos deixa perceber “a eterna novidade do mundo”.

Rubem Alves, A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir

voz off

Ao nível da imagem, a distinção entre o que está in e o que está off é sem dúvida útil para a escrita de um argumento, ou para estabelecer uma planificação técnica, mas falta-lhe subtileza a partir do momento em que se trata de estabelecer uma triagem, uma classificação, uma teoria dos objetos perdidos. Porque existem, no cinema, diversas maneiras de estar off. Há objetos definitivamente perdidos (irrepresentáveis, como a famosa câmara que-filma-e-não-pode-portanto-ser-filmada, ou tabus,

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como o profeta Maomé) e objetos temporariamente perdidos (de vista), submetidos à cadência conhecida do Fort e do Da, ligados à metáfora freudiana do carrinho de linhas, suscetível de eterno retorno, para horror ou alívio do espectador. Não são os mesmos: o facto de serem declarados off não os unifica.

Mas esta distinção in/off, já discutível no que diz respeito ao registo do visual, torna-se um cabo grosso, impróprio para atar seja o que for, a partir do momento em que se trata da voz. Mal ou bem, batizamos de off a voz cujo suposto emissor está fora de campo, e vice-versa. Mas quem não verá que, ao fazê-lo, nos limitamos a distinguir o que é síncrono do que não é, reduzimos a voz ao seu duplo visual, e este duplo ao espetáculo da torção e do desenho de lábios. Fazemos corresponder a voz off a uma ausência na imagem. Creio que é preciso inverter a abordagem e reportar as vozes ao seu efeito na ou sobre a imagem.

Chamarei voz off, stricto sensu, àquela que é sempre paralela ao desfile das imagens e que nunca o interseta. Exemplo: o comentário de um documentário sobre sardinhas pode dizer o que quiser (descrever as sardinhas ou mesmo difamá-las), não tem impacto sobre elas. Esta voz, posteriormente sobreposta à imagem, montada sobre ela, só é portadora de metalinguagem. Só se dirige ao espectador, com quem faz aliança, contrato, nas costas da imagem. Esta, deixada a uma espécie de abandono enigmático, de ausência de herdeiros frenética, à força de servir apenas de pretexto à aliança comentário-espectador, ganha um certo modo de estar ali — sentido obtuso, terceiro sentido barthesiano — de que é permitido (mas é preciso ser-se perverso) desfrutar incognito. Para isso, desliguem o som da televisão e vejam as imagens entregues a si próprias. Nesse caso, a voz off tem um efeito de forçagem. Se eu disser, falando das sardinhas: “Os grotescos animais, levados por uma paixão suicidária, precipitam-se nas redes dos pescadores e atingem o cúmulo do ridículo”, este enunciado contaminará, não as sardinhas, mas o olhar que do espectador sobre elas, obrigado a haver-se com a falta evidente de ligação entre o que vê e o que ouve. A voz off que força a imagem, que intimida o olhar, que cria um double bind, é um dos modos privilegiados da propaganda no cinema. […]

Serge Daney, O órgão e o aspirador (Bresson, o Diabo, a voz off e mais algumas)

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Pistas de reflexão e trabalho

• Discutir a noção de “selvagem”, e as associações que desperta (animais em liberdade, violência, descontrolo, agressividade; primitivo, não civilizado; não cultivado, inabitado, deserto), bem como o que pode significar no título da peça: em que medida a infância pode ter a ver com um “terreno selvagem”, por oposição à idade adulta? Tentar definir a noção de “educação”. Pensar em que medida somos fruto da educação, e o que é que em nós escapa a isso.

• Pensar em que sentido a representação teatral pode ser definida como um faz-de-conta. Eleger momentos da peça em que se faz de conta (que se come, por exemplo) e momentos em que se faz de conta que se faz de conta (que se varre, por exemplo).

• Analisar o modo como na peça se representa a criança sem a ter em palco. De que modo esta peça seria diferente se estivesse em palco uma criança? E como é que os dois atores fazem de criança, fingindo sê-la? Que sinais nos indicam então que a criança está a ser representada por outro corpo?

• Falar sobre o jogo da encomenda. Perguntar aos alunos se faziam jogos parecidos, e qual a relação que tinham com os contos de fadas (quais conhecem, se lhes liam, quais são capazes de relatar de memória). Ler o conto Hansel e Grettel e identificar os pontos de contacto com o jogo da encomenda, na peça. Discutir a importância que os contos de fadas têm na infância.

• Analisar em que consiste o movimento do documental ao ficcional que é referido na entrevista. Pensar em quais serão os momentos na peça em que a separação entre documental e ficcional se dilui, e como (cena do beijo, por exemplo).

• Fazer um exercício de escrita e representação: pegar numa situação simples que tenha ocorrido entre dois alunos, escrever dramaticamente essa situação, representá-la, reescrevê-la. Analisar quais as transformações ocorridas no processo.

• Analisar a progressão da voz off na peça e quais os seus papéis. Aproximá-la de um narrador no texto de ficção, estudando as suas classificações: quanto à presença — narrador participante (autodiegético e homodiegético) e não-participante (heterodiegético) — e quanto ao saber (omnisciente, de focalização interna e externa e narrador interventivo). Como classificaríamos a voz off narradora nesta peça? Essa classificação vai-se modificando?

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F O T O G R A F I A S D E E N S A I O

• Pensar também desta voz off por relação ao cinema: como costumam ser as vozes off nos filmes, que relação estabelecem com as imagens? (Poder, informação, descrição, fonte de emissão.) Que efeitos tem a voz off sobre a nossa percepção da peça? Ver no Youtube The girl chewing gum (1976) de John Smith.

• Fazer o exercício de escolher um pequeno filme sobre a vida selvagem (por exemplo, Best’08 Anaconda Hunts da National Geographic, Youtube) e fazer uma primeira visualização sem som. Escrever colectivamente um texto voz off para essas imagens. Voltar a ver o filme desta vez com som. Analisar como a voz off altera a nossa percepção das imagens. Comparar os dois textos de voz off.

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