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1 Eixos Temáticos: Prática clínica O refugio de Pigmalião Marta Úrsula LAMBRECHT CERLIANI TESSA El refugio de Pigmalión Resumen: La analista ofrece un momento clínico que ilustra y fundamenta la prevalente posición de un paciente frente a la pérdida inconsciente del objeto primordial. Se retoman los orígenes de las investigaciones de Abraham en relación al tema de la melancolía. Con él, Freud mantuvo un nutritivo intercambio científico inspirador de trabajos pioneros en el esbozo de las teorías de relación de objeto: “Duelo y Melancolía”. Ese es un legado de una línea de pensamiento, en evolución, retomado en 1923, articulo III del “El Yo y el Ello”. Se establece una discriminación entre narcisismo y Pigmalionismo. La teorización se desliza en dirección al mito de Pigmalión puesto que el paciente, un artista de la marquetería en ébano, se apasiona por el producto de su creación aprisionándose en su obra que gana vida para él, permitiéndole de ese modo, sobreponerse a las vicisitudes del libre fluir de las oscilaciones del desarrollo emocional. Se muestran diapositivas que surgen de una asociación del trabajo escrito correlacionando la estructura del texto con manifestaciones clínicas que

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Eixos Temáticos: Prática clínica

O refugio de Pigmalião

Marta Úrsula LAMBRECHT CERLIANI TESSA

El refugio de Pigmalión

Resumen: La analista ofrece un momento clínico que ilustra y fundamenta la

prevalente posición de un paciente frente a la pérdida inconsciente del objeto

primordial. Se retoman los orígenes de las investigaciones de Abraham en

relación al tema de la melancolía. Con él, Freud mantuvo un nutritivo

intercambio científico inspirador de trabajos pioneros en el esbozo de las

teorías de relación de objeto: “Duelo y Melancolía”. Ese es un legado de una

línea de pensamiento, en evolución, retomado en 1923, articulo III del “El Yo y

el Ello”.

Se establece una discriminación entre narcisismo y Pigmalionismo. La

teorización se desliza en dirección al mito de Pigmalión puesto que el paciente,

un artista de la marquetería en ébano, se apasiona por el producto de su

creación aprisionándose en su obra que gana vida para él, permitiéndole de

ese modo, sobreponerse a las vicisitudes del libre fluir de las oscilaciones del

desarrollo emocional.

Se muestran diapositivas que surgen de una asociación del trabajo escrito

correlacionando la estructura del texto con manifestaciones clínicas que

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ofrecen herramientas para pensar los mecanismos íntimos del funcionamiento

de la mente del paciente.

La autora se vale de la alegoría de los poetas Borges y Dante Alighieri para

demarcar el desenvolvimiento del proceso analítico.

Resumo:

A analista oferece um momento clínico que ilustra e fundamenta o

posicionamento prevalente de um paciente diante da perda inconsciente do

objeto primordial. Retomam-se os primórdios das investigações de Abraham

em relação ao tema da Melancolia. Com ele, Freud mantém um nutrido

intercambio científico inspirador do trabalho pioneiro no esboço da teoria das

relações objetais “Luto e melancolia”. Esse é um legado de uma linha de

pensamento, em evolução, retomado em 1923, artigo III do O ego e o id.

Estabelece-se uma discriminação entre narcisismo e Pigmalionismo. A

teorização desliza-se em direção ao mito de Pigmalião já que o paciente, um

artista da marchetaria do ébano, se apaixona pelo produto de sua criação e fica

prisioneiro da sua obra que ganha vida para ele, permitindo-lhe, deste modo,

se sobrepor às vicissitudes do livre fluir das oscilações das posições no

desenvolvimento emocional.

Mostram-se slides decorrentes da uma associação do trabalho escrito que

correlacionam a estrutura do texto com manifestações clínicas e oferecem

ferramentas para pensar os mecanismos íntimos do funcionamento da mente

do paciente.

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A autora vale-se da alegoria poética de Borges e Dante Alighieri para

demarcar o desenvolvimento do processo psicanalítico.

Introdução

Limitar-me-ei a ilustrar o posicionamento prevalente de um paciente frente ao

sentimento de perda do objeto primordial.1 Acredito não ser descabido elevar

este exemplo ao nível de paradigma da clínica da contemporaneidade e a

formação defensiva – às vezes falida, embora repetidas – de lidar com os

limites do objeto materno que opera para desmentir ou ocultar a carência

infindável de uma perda original.

Abraham (1924/1970) estabeleceu uma correlação entre melancolia e luto

arcaico. Traçou ele um quadro que chamou de depressão primaria da infância

como precursora da melancolia. E, mais: partindo das evidências clínicas, nos

diz (p. 117), que não pode haver dúvida de que uma crise de depressão

melancólica é provocada por um desapontamento amoroso, cujo efeito

patógeno inconsciente desencadeia a repetição da experiência traumática

infantil original.

1 Termo cunhado por Abraham, depressão primária

seria precursora da melancolia (Freud, 1926/1987, p.

78). No capítulo III do “Projeto de uma psicologia”, três ensaios (Freud, 1905/1989, pp. 204-205) fazem

referência ao estado de desvalimento da criança e aos perigos específicos de cada época da vida capazes

de precipitar uma situação traumática, acarretada pela perda do amor ou da mãe como objeto. A angústia

seria uma reação diante da ausência do objeto. A angústia primordial do nascimento se originaria a partir

da separação da mãe (Freud, 1926/1987, p. 130)

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Circunscrevo e rastreio, aqui, alguns desdobramentos do conceito

kraepeliniano de melancolia, tomando o viés psicanalítico: fundamentalmente,

Freud, Abraham e Klein. Na psicanálise, o artigo inaugural foi “Luto e

melancolia” (Freud, 1917/2010), nutrido por um vasto intercâmbio científico nas

correspondências com Karl Abraham, 1907-1926. (Freud & Abraham,

1965/1979).

Além de se tratar de um complemento metapsicológicos da teoria dos sonhos,

é um legado de uma linha de pensamento, em evolução – retomado em 1923,

artigo III do O ego e o id. “Luto e Melancolia” é o texto pioneiro no esboço da

teoria das relações objetais. Em termos gerais, podemos dizer que tanto o luto

como a melancolia são respostas ante uma perda. O enlutado sabe o

que/quem perdeu: é consciente dessa perda. Como consequência, a libido

pode ser retirada do objeto perdido e se reinvestida em outros objetos.

O melancólico pode, assim mesmo, ter alcance de quem perdeu – embora

desconheça o que nessa perda foi perdido. Ele não tem consciência de que a

perda impactou o próprio Eu. A carga de libido mantém-se retraída no ego.

Partes egoicas, inconscientes, identificam-se com o objeto abandonado, que

lhe infligirá críticas mordazes.

Parafraseando Freud, “a sombra do objeto recai sobre o Ego”: do que se

depreende que o conflito não é mais entre o ego e o objeto – como no luto –,

mas, sim, entre partes inconscientes do ego e essa instância crítica

internalizada, o superego.

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Em 1924, Freud renomeia o termo melancolia: substitui-o por “psiconeuroses

narcísicas” (p. 181), o que, além de diferenciá-lo das outras psicoses, vai

despojá-lo do pesado caráter patológico que nele incidia.

Valiosas contribuições das teorias das posições kleinianas caminham também

no sentido de estabelecer somente uma diferença de grau nesses fenômenos,

tendo de se focar principalmente o aspecto quantitativo:

Algumas flutuações entre a posição esquizo-paranóide e a depressiva sempre ocorrem e fazem

parte do desenvolvimento normal. Portanto, não se pode traçar uma divisão clara entre dois

estágios do desenvolvimento; além disso, a modificação é um processo gradual e os fenômenos

das duas posições permanecem por algum tempo entrelaçados e interagindo em alguma

medida. No desenvolvimento anormal essa interação influencia, penso eu, o quadro clínico de

algumas formas tanto de esquizofrenia quanto de distúrbios maníaco-depressivos. (Klein,

1946/1991, p. 35)

Particularmente, sou da ideia que traumas sofridos na mais precoce infância

não constituem condição suficiente para abalar definitiva e irreversivelmente a

estrutura mental. A clínica de nossos dias vem ao encontro e nos mostra os

inúmeros instrumentos psíquicos defensivos que a psique disponibiliza para

evitar sucumbir na franca patologia.

De forma similar ao que acontece na gravura “Melancolia” de Albrecht Dürer

(1471-1528), a clínica da melancolia, também reproduz um campo em ruinas,

um sequestro aprisionante no caos e a imobilidade da desesperança.

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Na obra de Dürer, a personagem central é um anjo de semblante irado e com

os cabelos e as vestes desalinhadas. Numa das mãos apoia o rosto furioso e

na outra carrega um compasso com o qual procura registrar alguma coisa. O

braço encontra-se apoiado num livro fechado (Panofsky). Ao redor da figura

alada encontram-se, em desordem e espalhados pelo chão, os mais variados

utensílios da vida ativa, todos eles sem qualquer serventia aparente.

Por analogia, esta temática renascentista nos remete à clínica de Angel como

ilustrarei a seguir:

Angel é um jovem, caçula, entre três irmãs. Nunca namorou e o tema

‘mulheres’ resultava-lhe perturbador: “São traiçoeiras e entram para se

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aproveitar”. Abandonou a escola para ‘curtir’ sua vida solitária. Facilmente

irascível, é alvo de ataques familiares por não corresponder às expectativas.

Quem o traz, pela primeira vez até mim, alega que ele está com a vida em

suspenso: “Uma ovelha desgarrada do rebanho”.

Periodicamente, se afunda na tristeza: isola-se no quarto, às escuras e o tempo

se detém para ele. Deprime-se mais ainda quando, debaixo das cobertas,

escuta, na rua, a algazarra dos jovens voltando nas madrugadas. Queixa-se de

que há vida lá fora.

De toras de madeiras nobres, esculpe peças e as preenche com a técnica da

marchetaria. “Que nem andarilho percorria as ruas na procura de madeiras de

demolição para incrustar um ébano e, de uma pernada, destruía tudo num

ataque de ira, por considerá-las imprestáveis.”

Nesses momentos em que ele se sente imprestável, todos seus projetos são

interrompidos. Outras vezes, se deleita com as obras. Contempla-as como se

fossem deuses e somente com elas consegue se relacionar. Chega a se delirar

num completo preenchimento. Seriam as obras seus personagens, seus

interlocutores, sua família, seus brinquedos?

Sem amigos nem colegas, fecha-se com elas num mundo hermético, próprio,

particular.

“Assim não poderá dar continuidade à herança familiar, vai romper com a

afamada corrente artística e pôr tudo a perder. Temo por seu fim” – a mãe

afirma, mostrando hostilidade nos gestos e na fala.

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Nesse primeiro encontro, senti dificuldades em fixar o olhar nos olhos dessa

mãe: parecia perder-me por detrás das impenetráveis pupilas, quase

paralisadas. Senti-me derrotada ao dirigir-me a ela e não encontrar ninguém.

Essa senhora contou-me, na entrevista, a peregrinação e tropeços no caminho

de sua depressão.

Espontaneamente, diz que ambos, mãe e filho, foram separados por longo

tempo no momento do nascimento de Angel: fora um parto de alto risco, com

sofrimento fetal. Depois de dois meses de incubadora, ao retornar ao lar, a mãe

demorou em reconhecê-lo como sendo seu filho. Até hoje, por vezes, olha-o

como a um estranho. Escutei dela um rosário de tragédias e contas perdidas.

Constrangida e implorando segredo, me relata um episódio passível de um

desenlace fatal, que lembra a cena da escadaria do filme O encouraçado

Potemkin, de Sergei Eisenstein (1925). Uma mãe violentamente ferida no

ventre, um bebê, em pânico, deslizando, vertiginosamente, numa escada

precipitante.

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Trechos de uma sessão com Angel

Titubeante, andando em passos curtos, Angel assoma na porta, no horário

habitual das sessões diárias. Junto ao peito, carrega um desenho em grafite

que mantinha guardado no baú herdado de seu avô. Deita-se e o aprisiona,

apertando-o no seu corpo, como se fizesse parte dele. Com um tênue fio de

voz, monocórdica, balbucia, em câmera lenta, resquícios de um mundo em

ruínas.

Que fiz comigo? Minha voz não sai. Sou um morto, meu corpo levita e não

sinto o peso das pernas ao andar como se não tivesse gravidade. Estou

mutilado. Se pudesse ter qualquer decisão na vida, será menos dolorosa que o

que estou passando. Só penso na arma. Queria vir aqui com ela na esperança

de ter coragem (de usá-la?). Vou ficar aqui no seu divã, fedendo como um

morto. Quero me afundar nele até desaparecer. Não tenho forças nas mãos

para apertar o gatilho, não tenho mais nada nem ninguém. Antes tinha minhas

peças – agora, nada. Eu me perdi, ao perder minhas obras. Que será de mim

quando não tiver mais você para me lamentar? Meu dia não passa, estou

cansado de tudo, resta-me a escuridão do meu quarto. Faz uma semana que

não me levanto, a não ser para vir aqui. Escondo-me atrás das máscaras, dos

óculos, do boné, volto para minha prisão e me jogo na cama, de roupa e tudo.

As lágrimas não brotam, meus olhos estão murchos e secos, como as toras de

madeira no tempo. Não sei se você consegue entender tudo o que falo. Minha

cabeça está bamba e roda como um pião. Levantei desorientado e tonto, como

se o centro do meu corpo estivesse deslocado de seu eixo. Passei na frente de

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uma peça já pronta, que tinha jogado no chão. Era um rosto trincado na frente

do espelho, não tive forças para segurá-la e trazê-la, então a chutei para longe.

No lugar, peguei a lâmina da anatomia do pé em branco e preto,

desmembrado, faltando pedaços, que herdei de meu avozinho.

A lúgubre imagem, delimitada por um negro fosco, remete às errantes

superfícies que não se tocam. Ao puro estilo do infindável abismo que separa

o desencontro entre uma boca e o mamilo.

Tento lhe mostrar a importância de sair do escuro e de vir aqui, a meu

encontro, – quando mais não fosse, para ouvir o som da minha voz: quiçá

sinta que assim poderia obter vida, por meu intermédio.

É que está cada vez mais difícil chegar até aqui. Ao atravessar a rua, o asfalto

vinha contra os pés e puxava-me para um lado. Eu fazia força para o outro, até

quase perder o equilíbrio. Os nervos do pé saíam da carne, a dor era cortante,

como se estivessem me arrancando a facadas a panturrilha.

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Não foram poucas às vezes em que a relação com a mãe veio à tona pela via

gráfica.

“Um menino de colo”, ele conta, que, por ser ainda pequeno, no enxergava as

coisas do mundo. “Uma mãe parecia estar ali sem enxergar ninguém”.

De certo, é o olhar nos olhos que o bebê encontra o “ser”. Esses personagens

que ele traz não se deparam no olhar, o contato entre ambos é cego. Olhos

puntiformes, sem interioridade, podem ser vistos sem ver. Ela, detrás das

vendas, da bílis negra, desenhada no rosto, na forma de óculos pretos. A boca

dele é simplesmente um ponto incomunicante dentro/fora. Em contrapartida a

boca dela remete ao coração ensanguentado, da depressão oculta, a

hemorragia persecutória da mordaz melancolia.

A importância da “vista” era um tema nodal em cada encontro:

desesperadamente, ele buscava ser visto. As venda e os olhos cegos de quem

ele sentia que lhe negava um olhar, despertava sua ira, o que o levava a

irromper em ataques ofensivos em relação à mulher e clamar por vingança.

Por vezes, me deixava apreensiva: até onde esse ódio poderia chegar? As

acusações impetradas contra ele mesmo exacerbavam-se ao extremo,

conforme afogava seus desejos agressivos contra a mãe.

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Nomeia burocraticamente, e na terceira pessoa, os personagens que ele

constrói, precedido por um artigo indefinido. “Essa é uma mãe segurando um

filho” ou: “Esse é um rosto visto por dentro da cabeça”.

Nosso trabalho e seu trabalho fora da sessão contribuíram para que se

aproximasse de aquele ‘outro’: cogitando, talvez, poder ser partes dele mesmo.

Paul Adolf Näcke2 introduz o termo narcismus, retomado por Freud em 1914.

“Narcisismo” alude, como todos sabemos, a uma conduta em que o indivíduo

trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual – isto é, toca

nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena satisfação, mediante esse

ato.

Consideremos, no entanto, que a criança alcança seu primeiro objeto sexual

cavalgando na função nutrícia (Freud, 1905/1989). Entenda-se com isso que as

pulsões sexuais cavalgam nas pulsões egoicas, chamadas de tipo anaclítico

(attachmenttype) “a mãe que nutre e dá prazer ao nutrir”.

Mas o que sucederia com aquelas crianças, como Angel, arrancada de seu

primeiro objeto de amor e de vida? Poderíamos lançar uma primeira suspeita:

seu desenvolvimento libidinal padeceu de alguma vicissitude, que o conduziria,

hipoteticamente, a ser escolhido por ele mesmo como seu próprio objeto de

amor, em detrimento do envelopamento aos objetos amorosos externos.

2 Nacke, Paul (1899). Médico Forense. Tese sobre “As perversões sexuais em um asilo” evoca o termo

narcisismo. (Recuperado em: http://www.encyclopedia.com/article-1G2-2896200443/narcissism.html;

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Seguindo nessa mesma direção, encontramos subterfúgios que conduzem a

um aparente pleno amor de objeto vertido do narcisismo: o filho que é dado à

luz como apêndice do próprio corpo materno, e perpetua sua eleição narcísica

no filho.

Angel veio ao mundo com um desígnio nas fantasias ancestrais: perpetuar a

linhagem genealógica quadricentenária dos afamados europeus da marchetaria

em ébano. (Lembremos que ele costumava vir às sessões abraçando no peito

imagens de obras de arte de seu avô, de quem herdara a técnica.)

Dando um passo adiante.

O estado em que a libido recai sobre o objeto para engendrá-lo – ou moldá-lo,

a partir de um modelo ideal – é denominado de pigmalionismo.3 Objeto que

cativa o mesmo sujeito, porque este permanece apaixonado por sua própria

criação, o que lhe confere uma satisfação singular, já que ligada a um prazer

narcísico extremo e por demonstrar ao ego a realização de seus antigos

desejos de onipotência.

Não se trata de uma etapa entre o narcisismo e o amor de objeto, mas, sim, de

um impasse no progresso da evolução da libido. Permanece a mesma na

metade do caminho, sobre uma linha oblíqua que conduz a uma via aberrante

na passagem da libido narcísica ao amor objetal. É uma das formas mais

eloquentes dos aspectos mortíferos do narcisismo (Kancyper, 2003).

Tomando emprestadas as palavras de Jorge Luis Borges:

3 Pigmalião foi um escultor que se apaixonou por uma estátua de marfim. Tinha visto tantas coisas sendo

criticada pelas mulheres que se desapontou com elas e passou a viver recluso numa ilha. No festival de

Vênus, ele reza para a deusa e pede-lhe uma esposa semelhante à estátua de marfim que ele fizera. Vênus

atende a súplica de Pigmalião e transforma a estátua na mulher desejada.

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O propósito que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar

um homem: queria sonhá-lo com a integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse

projeto mágico havia esgotado o espaço inteiro de sua alma ...(Borges, 1996, p. 451).

Criar um objeto – como Borges o fez em “Ruinas circulares” –, e lhe dar vida,

nos reporta ao rei de Chipre, Pigmalião, escultor que vivia em celibato numa

ilha e se apaixonou pela estátua de marfim, que ele mesmo esculpira na

tentativa de reproduzir a mulher ideal.

A paixão de Pigmalião amiúde é evocada quando o infeliz escultor lamenta-se

por amar “uma imagem surda-muda, que não se move nem se muda”. Por um

momento, parece-nos que Pigmalião e Narciso se equiparam no poema de

Guillaume de Lorris. A figura de Narciso não é um emblema do amor de si,

senão, sobretudo, o amor por uma imagem. Enquanto a paixão de Pigmalião

está representada no louco amante, que acaricia lascivamente a imagem nua,

adorando-a de joelhos. Deita-se com ela no leito, beija seus lábios gélidos e

esfria- lhe a boca. Simula um ato fálico com a estátua, servindo-se do bastão

no lugar do membro viril Agamben (2007, p. 118).

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À primeira vista, Pigmalião se relaciona com um objeto externo, sua criação

ideal, da qual se apaixona, assim como Narciso com a própria imagem.

Estamos nos movimentando no âmbito de um sistema fusional, onipotente, em

que o narcisismo está a serviço da pulsão de morte, que coabita nos meandros

de um pacto secreto entre o sujeito (Angel) e um objeto (suas obras) que,

sendo externo, tem vida somente dentro de aquele a quem lhe subtrai por

completo a carga libidinal, esvaindo-o.

Nas palavras de Borges, ouvimos: “Esse projeto mágico havia esgotado o

espaço inteiro de sua alma...”.

As obras criadas por Angel poderiam ser pensadas como uma ação

compulsiva, porque somente é capaz de fazer isso na vida na tentativa de

reconstruir o objeto perdido – idealizado –, o objeto vivo que partiu ao deixa-lo

no hospital ao nascer. A lâmina, a tela, a tora ou a pedra que se incrusta na

madeira, impossibilita o encontro com esse objeto porque o objeto a ser

encontrado é o objeto materno com vida e não a representação desse objeto.

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Quando – como neste caso – a libido não tem mobilidade, mas é estática, ela

não flui nem se ventila na troca com outros objetos do mundo: estanca-se no

conluio narcísico. Desse modo, Angel usava seu quarto como se fosse a

incubadora do hospital que o albergou e o aqueceu ao nascer. Desta maneira,

Angel e Pigmalião criam objetos especulares àqueles perdidos – sem, no

entanto, utilidade simbólica, por serem pedras ou toras. Lembremo-nos da

estátua de Moisés, esculpida por Michelangelo: após terminá-la, seu autor,

alucinado diante de tamanha e soberana beleza, a golpeou com um martelo, ao

tempo em que clamava: Perchè non parla?

Longe de tentar formular uma resposta ao Perchè non parla? Entretanto, ao

acompanhar o percurso das imagens e o relato clínico, estamos habilitados a

observar um movimento semelhante a um estado de mente aprisionador,

alienante, em que a depressão tem um carregado colorido persecutório,

sadomasoquista, cruel. A rigidez ou até a obstrução no livre fluir da oscilação

entre a posição esquizo-paranóide e a depressiva demanda a árdua construção

de um “ducto” de passagem de um extremo da margem ao outro e para tal

temos de nos defrontar com a luta constante entre a destruição e a tentativas

dos movimentos reparatórios que pode desbravar o caminho para o progresso

crucial ao desenvolvimento.

Como uma alegoria ao poeta, - e a este, nosso processo de análises - Dante,

na selva escura e selvagem, encurralado pelas feras cuja violência assassina

ameaça devorá-lo, vê uma sombra a que pede socorro, é a alma de Virgílio que

o guiará nos abismos do inferno e do purgatório para, finalmente, poder se

encaminhar até a outra margem do rio onde Beatriz o aguarda.

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Palavras-chave: Pigmalionismo – perda do objeto primordial - melancolia

Referências

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Freud, S. (2011). Neurose e psicose. In S. Freud, Obras completas: O Eu e o Id, Autobiografia e outros textos: 1923-1925 (Vol. 16, pp. 176-183). São Paulo : Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).

Freud, S., &; Abraham, K. (1979). Correspondencia [Sigmund Freud – Karl Abraham: Briefe 1907-1926]. Barcelona: Gedisa.

Kancyper, L (2003). Angustia y poder en la confrontación generacional. In L. Kancyper, La confrontación generacional: estudio psicoanalítico (pp. 15-46). Buenos Aires : Lumen, 2003.

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