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Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014 VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara) 1 Resumo: Tudo é precoce em Rimbaud. Do latim, dominado na infância, até o ‘eu é um outro’ na adolescência, o grande poeta francês condensou em poucos anos de trabalho literário uma poesia que continua a confundir o leitor até hoje. Palavras-chave: poesia; poeta visionário; poesia moderna. A imensidão poética de Rimbaud “(...) ao meu redor/ Rimas espalho.” (Arthur Rimbaud) A febre começou na adolescência e se intensificou aos 17, em Paris. Febre literária. Arthur Rimbaud (1854-1891) ganhou a amizade de Paul Verlaine (1844- 1896) e um período de criação literária de quatro anos. Nem bem havia feito 21, e veio o abandono e, em seguida, o silêncio. O derradeiro silêncio literário dos 17 anos seguintes; depois, a morte. A morte encerra tudo? Há quase uma década, em 2004, foi comemorado o sesquicentenário do nascimento de Rimbaud, e sua memória permanece muito presente. No Google, hoje, 29 de setembro de 2013, o termo “Rimbaud” apresenta 6.290.000 resultados. É um número expressivo. Ser citado em mais de seis milhões de links diz muito a respeito do interesse que o poeta desperta. 1 Renato Alessandro dos Santos, 41, é professor do curso de Letras do Centro Universitário Moura Lacerda. Faz doutorado em Estudos Literários, na UNESP, de Araraquara, e é autor de Mercado de pulgas: uma tertúlia na internet (Multifoco) e da dissertação A revolução das mochilas: de On the road à lenda de Duluoz – a literatura beat de Jack Kerouac (FCL/Ar/UNESP). É editor do site Tertúlia . E- mail: [email protected] .

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RIMBAUD

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Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014 VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)1 Resumo: Tudo precoce em Rimbaud. Do latim, dominado na infncia, at oeuumoutronaadolescncia,ograndepoetafrancscondensouem poucosanosdetrabalholiterrioumapoesiaquecontinuaaconfundiro leitor at hoje. Palavras-chave: poesia; poeta visionrio; poesia moderna. A imensido potica de Rimbaud (...) ao meu redor/ Rimas espalho. (Arthur Rimbaud) Afebrecomeounaadolescnciaeseintensificouaos17,emParis.Febre literria.ArthurRimbaud(1854-1891)ganhouaamizadedePaulVerlaine(1844-1896)eumperododecriaoliterriadequatroanos.Nembemhaviafeito21,e veio o abandono e, em seguida, o silncio. O derradeiro silncio literrio dos 17 anos seguintes; depois, a morte.A morte encerra tudo?Hquaseumadcada,em2004,foicomemoradoosesquicentenriodo nascimento de Rimbaud, e sua memria permanece muito presente. No Google, hoje, 29desetembrode2013,otermoRimbaudapresenta6.290.000resultados.um nmero expressivo. Ser citado em mais de seis milhes de links diz muito a respeito do interesse que o poeta desperta. 1RenatoAlessandrodosSantos,41,professordocursodeLetrasdoCentroUniversitrioMoura Lacerda.FazdoutoradoemEstudosLiterrios,naUNESP,deAraraquara,eautorde Mercadode pulgas:umatertlianainternet(Multifoco)edadissertao Arevoluodasmochilas:de Ontheroad lendadeDuluozaliteraturabeatdeJackKerouac(FCL/Ar/UNESP).editordositeTertlia.E-mail: [email protected]. )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 53 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014Mas a morte encerra tudo, afirma o verso de Alfred Tennyson (1809-1892). Se estivessevivo,hoje,Rimbaudestariacomaimpossvelidadede159anos.A suposio absurda, mas uma coisa certa: no importa a idade, o poeta sempre ser lembradocomooadolescenteatrevidoquecortejoualiteraturae,semtitubear, deixou-a a ver navios, ou barcos brios. Restou o celebrado retrato feito por tienne Carjat (1828-1906) para fixar o mito de cone rebelde. A despeito das fotografias dos anosposterioresquechegaramdefrica,foiCarjatquemregistrouaimagemdo Rimbaud altivo e digno dos maiores festins da juventude. Um Che Guevara literrio. Um guerrilheiro rebelde literrio. Essa a imagem que vale mais de mil palavras.Masmuito,muitodistantedissotudo,literatura,oqueimportaoque Rimbauddeixouaelacomoherana,e,estendendoamo,tambmaoleitor,que, fascinadoeconfusocomosversosdopoeta,athojenoentendeoquelevou Rimbaudaabandonarasmusasaorelento,desprotegidas,longedaqueleque,por elas, foi cada vez mais distante, at perder-se na derradeira imensido de sua prpria poesia, cuja plenitude apenas uma das trs linhas temticas do autor nesse perodo.AdalbertoLuisVicente,autordeUmaparadaselvagem(2010),afirmaque,em um primeiro momento, os poemas so marcados pelo sentimento de liberdade e de idealismoinfantilequesetratadeumapoesiaquedeixatransparecerum sentimentodeplenitude,motivadopelaexpansodoeupoticojuntonaturezae pela intensidade das sensaes que a afloram (Vicente 2010: 21).Asoutrasduaslinhastemticasdaprimeirafaseresgatamoperodode revolta,motivadoemboapartepelaguerrafranco-prussiana,emqueospoemas investemcontraaordemburguesa,ahipocrisiadaguerraedareligio,e,em seguida, a poesia marcada pela vidncia, em que Rimbaud atrela o desconhecido inveno de um verbo novo que marca a ltima etapa desse perodo fundamental para a compreenso das realizaes posteriores (Vicente 2010: 22). Avidnciacomodogmaemtodo,ouseja,comodesregramentodetodosos sentidos, s se manifestar pouco antes de sua partida para Paris, em 1871 (Bernard apud Vicente 2010: 40). Convencionalmente, essa fase estende-se de A consoada dos rfos (Les trennes des Orphelins), de 1870, at O barco brio (Le bateau ivre), de1871,poemasqueabremefechamPoesias,livroqueregistraoprimeiroperodo, mas que no pde ser organizado pelo poeta como a maior parte de sua obra. Em Poesias, a crtica j observa a presena de, ao menos, dois poemas em que a vidncia podeserressaltada:VoyelleseLebateauivre,que,comparadossprimeiras estrofes do autor, tm a distino de um Rimbaud mais ousado e genial, como os cem versos de O barco brio, poema escrito aos 17, podem comprovar.Aparentemente, seus versos pouco ou nada ou quase nada tm a ver com avidadopoeta.Aparentemente,pois,maistarde,emUmatemporadanoinferno (1873),aprosapoticairrecordaraintimidadetirnicaqueRimbaud(oesposo infernal) dispensa a Verlaine (a virgem louca), em Delrios, uma das passagens da obra que, a muitos leitores, evoca dados biogrficos. Mas cabe ressaltar: tratando-se de Rimbaud, o que realmente biogrfico em Uma temporada no inferno? (Rimbaud 2006: 49). Emseusprimeirosversos,ummeninosonhadoreandarilhoecomas madeixas apinhadas de piolhos cantarola palavras ao sabor do vento, como nestes )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 54 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014doisquartetosdeversosalexandrinosdeSensao(Rimbaud2009:41),poema traduzido por Ivo Barroso. Nas tardes de vero, irei pelos vergis, Picado pelo trigo, a pisar a erva mida: Sonhador, sentirei um frescor sob os ps E o vento h de banhar-me a cabea desnuda. Calado seguirei, no pensarei em nada: Mas infinito amor dentro do peito abrigo, E como um bomio irei, bem longe pela estrada, Feliz qual se levasse uma mulher comigo. Maro de 1870 um Rimbaud andarilho que sada a estrada. Do outro lado do mundo, nos EstadosUnidos,desdequepublicouFolhasderelva(Leavesofgrass)em1855,Walt Whitman (1819-1892) passou a conter, tambm, dentro de si, o universo todo e, mais tarde,nosculoseguinte,outrospartiriampelaestrada,comoJackKerouac(1922-1969),queemhomenagemaopoetarebeldefrancsescreveriaumextensopoema, Rimbaud (traduo de Albino Poli Jr.): Arthur! On tappela pas Jean! Nascido em 1854 praguejando em Charle- ville abrindo portanto caminho para o abominvel assassinato de Ardennes No se admira que seu pai tenha partido! Ento aos 8 anos voc entrou pra escola Pequeno Grande Latinista, quem diria! Em outubro de 1869 Rimbaud est escrevendo poesia em greco-francs Sem passagem foge de trem pra Paris, o miraculoso guarda-freios mexicano o joga pra fora do trem veloz, pro Cu, onde ele no mais viaja porque oCu est em todo lugar ----------------------------------------------- Longas caminhadas lendo poemas entre os Montes de Feno de Genet O Voyant nasceu, o vidente enlouquecido faz seu primeiro Manifesto )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 55 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014d cores s vogais & s consoantes curiosos cuidados, fica sujeito influncia de velhas Bichas Francesas que o acusam de constipao do crebro e diarreia da boca Verlaine o convoca pra Paris com menos aprumo do que quando expulsou garotas pra Abissnia Merde!, grita Rimbaud nos sales de Verlaine ----------------------------------------------- (...) Por essa poca j se suspeita que o Degenerado Arthur seja um poeta Uivando no poro Rimbaud escreve Uma estao no inferno, Sua me estremece Verlaine manda dinheiro & tiros Pra Rimbaud ----------------------------------------------- Iluminatins! Stuttgart! Estudo de lnguas! A p Rimbaud viaja & olha atravs dos passos alpinos para a Itlia, procurando trevos da sorte, coelhos Reinos Encantados & a sua frente nada menos que o velho Canalleto e a morte do sol sobre velhos casares venezianos ----------------------------------------------- Visando o Egito, ele mais uma vez preso na Itlia por isso volta pra casa pra poltrona profunda mas em seguida vai de novo pra Chipre pra dirigir um bando de tra- balhadores numa pedreira com o que se parece esse ltimo Rimbaud? Poeira de pedras & costas negras & picaretas & gente tossindo, o sonho surge )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 56 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014na mente africana do francs, ----------------------------------------------- Finalmente ele comea a contrabandear armas ----------------------------------------------- Cairo para o vero, vento amargo de limo & beijos no parque empoeirado onde garotas sentam de pernas cruzadas ao entardecer pensando em nada Harar! Harar! Levado de maca para Zeyla lamentando o dia em que nasceu o barco retorna ao castelo de giz Marseille mais triste queo tempo, que o sonho, mais triste que a gua Carcinoma, Rimbaud devorado pela doena de viver demais Amputaram sua linda perna Ele morre nos braos de Isabelle sua irm & antes de subir ao Cu manda seus francos para Djami, Djami o garoto Harari seu servo fiel 8 anos no Inferno Africano do Francs & tudo resulta em nada, como Dostoivski, Beethoven ou Da Vinci Portanto, poetas, descansem um pouco & calem-se: Nada jamais surgiu do nada. (Kerouac 1984: 53)

Acitaoextensa,masnoemtodomomentoquesepossveller,em versos,abiografiade umpoetaeRimbaudmereciaumahomenagemdessetipo. A licenciosidade potica de Kerouac registra com admirao a vida errante do poeta )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 57 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014francs, e o retrato que faz dele no muito diferente da imagem que Edmund White (1940-)recriadovidenteenlouquecidoemRimbaud:avidadupladeumrebelde (2010).Almdisso,opoemaoportuno:eleapresentaumaimagem,aprincpio, rebeldeearrediadopoetae,emseguida,lamentaaspeasqueodestinopregaem Rimbaud,especialmente,nafasemaisdistantedeseusprimeirosmomentosde plenitude.Asrimasespalham-se.EmMinhaBomia(Fantasia),opoemaaseguir, traduzido por Ivo Barroso (1929-), eis a natureza mais uma vez como pano de fundo paraumeulricoemexpanso,quebuscaoversejardireto,mesmoqueotemada liberdade,dapartida,dolivrecursodassensaesestejacircunscritopelaforma constrangedoradosoneto(Vicente2010:27).Oleitoraindaestlongedo hermetismoque,maistarde,tomarcontadapoesiadeRimbaud,maspertodeum eu lrico romanticamente disposto a partilhar seu corao e toda sorte de esprito que ele abriga: L ia eu, de mos nos bolsos descosidos; Meu palet tambm tornava-se ideal; Sob o cu, Musa, eu fui teu sdito leal, Puxa vida! A sonhar amores destemidos! O meu nico par de calas tinha furos. -- Pequeno Polegar do sonho ao meu redor Rimas espalho. Albergo-me Ursa Maior. -- Os meus astros no cu rangem frmitos puros. Sentado, eu os ouvia, beira do caminho. Nas noites de setembro, onde senti qual vinho O orvalho a rorejar-me a fronte em comoo; Onde, rimando em meio a imensides fantsticas, Eu tomava, qual lira, as botinas elsticas E tangia um dos ps junto ao meu corao! (Rimbaud 2009: 119)

Soversosdeumdesejodeliberdadejuvenilque,comoquerapoesia, encontramressonnciaesentidoemmeionatureza.umaodeestradae liberdade.Oquedizerdessabota?Prximaaocorao,elaserveaoeulricocomo um instrumento capaz de transformar cu, orvalho, imensides fantsticas em notas, acordes, msica, enfim, que ele encontra ouvindo a natureza: Os meus astros nocurangemfrmitospuros//Sentado,euosouvia,beiradocaminho. (Rimbaud2009:119).EstetalvezsejaoRimbaudquemaisvaiaoencontrodos leitores juvenis, que se encantam pela vida errante e pela biografia difusa do poeta.Mas, ento, a poesia de Rimbaud muda.Comumsaltoestticoelstico,eleevoluietorna-semaisobscura.essa poesiaqueserobservadamaisadiante,luzdoquetemadizerHugoFriedrich (1904-1978) a respeito da potica de Rimbaud. )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 58 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014EmVnusAnadiomene,poemadePoesias,atransformaolingusticado poeta to rpida que ele nem lembra mais o Rimbaud de Sensao ou de Minha Bomia(Fantasia).asegundalinhatemticadesuapoesia.Atraduode AugustodeCampos(1931-)efazpartedopeculiarRimbaudLivre(1993),livro engendrado pelo concretista brasileiro: Como de um verde tmulo em lato o vultoDe uma mulher, cabelos brunos empastados,De uma velha banheira emerge, lento e estulto,Com dficits bastante mal dissimulados; Do colo graxo e gris saltam as omoplatasAmplas, o dorso curto que entra e sai no ar;Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,E o redondo dos rins como a querer voar... O dorso avermelhado e em tudo h um saborEstranhamente horrvel; notam-se, a rigor,Particularidades que demandam lupa... Nos rins dois nomes s gravados: CLARA VENUS; E todo o corpo move e estende a ampla garupaBela horrorosamente, uma lcera no nus. 27 de julho de 1870 (Rimbaud 1993: 25)

Asucessodeimagensmostraqueocontedoaindaestsujeito representaodarealidade,mesmoque,emseusversos,VnusAnadiomene evoqueasensaodeumpesadelo.Mas,emsuafaseseguinte,asucessolgicade eventosnemsempreserumprivilgiodapoesiadeRimbaud.Nessafase,as imagens causam estranhamento no leitor, mas um estranhamento bastante comum napoesiamparque,inicialmente,CharlesBaudelaire(1821-1867)compseque Rimbaud tanto admirou.Ivo Barroso buscou ser muito diligente em sua traduo de Rimbaud no Brasil. Seutrabalhodemaiorflegoestemtrsobrasdopoetafrancs:Poesiacompleta (1994), Prosa potica (1998) e Correspondncia (2009). Alm da traduo, ele se ocupou de prefaciar cada uma delas e de destacar uma srie de notas imprescindveis para quemsedebruasobreaobradopoeta.ElelembraqueAnadiomeneuma palavraparoxtonae,no,proparoxtona(Anadimene),comonatraduode AugustodeCamposequeseusignificadoestligadoemergentedagua, comoAfrodite,aVnusdosromanos,quenasceudaespumadomar,imortalizada noquadrorenascentistaOnascimentodeVnus(1483),deSandroBotticelli(1445-1510).AintenodoadolescenteRimbaudclara:enterraroclassicismo,e deformando-o.Rimbaudrecorreaumoxmoronessadescrioqueumcontrassensoda Vnusbotticelliana,lembraBarroso,que,citandoMichaelRiffaterre,argumenta:O quadroaquisedesenroladeumdetalheaoutronaordemestereotipadadosnus literriosbemcomonaordememqueaspartesdocorposaemdaguacoma diferenadequeaquicadadetalheestprecedidodosinalmenos(Rifaterreapud Rimbaud 2009: 325). O tradutor sugere que a Vnus de Rimbaud tambm poderia ser )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 59 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014uma prostituta, e que ela, ao levantar-se lentamente, mostrada intencionalmente de costas, para que seja possvel ver a inscrio Clara Venus, que um anagrama de Ulcera Anus, ou seja, lcera no nus, como atestam as ltimas palavras do poema (BarrosoapudRimbaud2009:326).Eaquiprecisoelogiarmaisumaveza precocidade de Rimbaud ao inscrever em surdina esse anagrama no corpo de sua Vnus e, tambm, elogiar a grande ousadia formal do poema: (...) ao deslocar pausas tradicionais do verso alexandrino para posies poucousuais,aoutilizarrimasinslitas(Vnus/nus),aooporum vocabulrio erudito e neolgico a formas de linguagem coloquial (...) e a termos considerados de mau gosto, esse soneto constitui uma tentativa derupturacomosconceitosestticosperpetuadospelatradio. (Vicente 2010: 33). Portanto,nobastassearupturanaforma,ocontedoaindaprivilegiauma Vnus incomum para a poca. Curiosamente, em 1980, mais de um sculo depois da criaodopoemaVnusAnadiomene,nocinema,olerdomovimentodessa mulherseriaevocadoporumapelculadeterrordeStanleyKubrick(1928-1999),O iluminado, filme inspirado no romance homnimo de Stephen King (1947-). Uma das cenasmaishorripilantesadopequenoDannyaoentrarnoquartoproibidodo Overlook,hotelondeele,opaieameestosozinhos,semnenhumoutrocontato humano,reclusosdurantetodaatemporadadeinvernorigoroso.Montadoemseu velocpede,omeninocirculainocentementepeloscorredoresclaustrofbicosdo gigantescohotel.Elepoderiaentraremtodososquartos,menosemum;Danny resisteporcertotempo,maslogodesiste,paradesalentodosespectadoresque torcemparaqueelenoentrenoquarto;entretanto,vencidopelacuriosidade,ele abreaporta.Noquarto,olhanadireodobanheiroev,nabanheira,levantar-se umamulhercobertadepstulaspelodorso,que,arqueado,dobra-senadireodo garoto.Essamesmamulher,comoaVnusdeRimbaud,tambmnorepresentaa beleza, mas personifica o grotesco, alm do mal em si.No romance, a cena repleta de fantasmagoria. A traduo de Betty Ramos Albuquerque: Abriu ento a cortina do chuveiro. Amulhernabanheiraestavamortahmuitotempo.Estavainchadae roxa,abarrigacheiadegasesemergindodaguafria,combordas geladas,comoumailhadecarne.OsolhosdelafixosnosdeDanny, vidradoseimensoscomobolasdegude.Sorriamaliciosa,oslbios roxosarreganhadosnumacareta.Opeitoflcido.Osplospbicos boiando.Asmosgeladasnasbordasdeporcelanadabanheiracomo garras de um caranguejo. (...) A mulher estava sentada. Aindasorrindomaliciosa,osimensosolhosvidradosfixosnele,estava sentada.Aspalmasdasmosmortasfaziamrudosnaporcelana.Seus seiospendiammurchos.Houveosominstantneodaquebrados )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 60 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014pedaosdegelo.Elanorespirava.Eraumcadver,emortohanos. (...) Otempopassou.Eelecomeavaarelaxar,comeavaacompreender queaportadeviaestaraberta,equepodiasair,quandoasmossem vida h anos, inchadas, cheirando a peixe, fecharam-se suavemente em tornodeseupescoo,eoforamtorcendoparaqueeleolhasseaquele rosto morto e roxo. (King s. d.: 222-223) VnusAnadiomeneapontououtradireoparaapoesia.Estavaabertoo caminho que levaria o leitor a um Rimbaud menos convencional. A poesia do vidente ComPoesias,encerra-seafasedeRimbauddedicadaaosprimeirosversos;a maiorpartedelesescritaquandoaindanoforaacometidopeladescobertada vidncia,exceofeitaaVogaiseaObarcobrio,comomencionado anteriormente.Aimportnciaquecadaumadascartasremetidas, respectivamente,aGeorgesIzambard(1848-1931)eaPaulDemeny(1844-1918) tem para a compreenso da obra de Rimbaud incomensurvel. Em certo momento dasegundacarta,apsumintervalodeseisminutos,elecomentacomseu destinatrio algo que faz lembrar o quanto cada leitor de Rimbaud tem de ser grato aoserviodecorreiosfrancs:extraviadasessascartas,quomaisobscuroseriao legado do poeta? O trecho a seguir faz parte da carta que procura explicar a Demeny como o poeta pode ser um vidente. Eisa.Eobservebemque,seeunotemessefaz-logastarmaisde60 centavos de porte, eu, pobre desnorteado que, h sete meses, no tenho seguradoumamoedadebronze!oferecer-lhe-eiaindameusAmantes dePariscemhexmetros,MeuSenhor,eminhaMortedeParis duzentos hexmetros! (Rimbaud apud Chiampi 1991: 122) Essetomnosemelhantealtivezcomquebuscarexplicaroqueentende por sua viso do poeta como um vidente.EmCharleville,13demaiode1871,eRimbaudescreveaprimeiracartado vidente, a Carta a Georges Izambard. Embora seu destinatrio fosse um entusiasta professordopoetaadolescente,omundosconheceriaocontedodessacartaem outubrode1926,quandoIzambardapublicariaemLaRevueEuropenne,35anos depois da morte de Rimbaud. Em uma passagem significativa, ele diz a Izambard: Trabalhar agora, jamais, jamais; estou em greve. No momento, eu me envileo o mais possvel. Por qu? Quero ser poeta etrabalhoparametornarVisionrio:osenhornocompreende absolutamentenada,eeuquasenosaberiaexplicar-lhe.Trata-sede chegaraodesconhecidopelodesregramentodetodosossentidos.Os sofrimentossoenormes,masprecisoserforte,ternascidopoeta,e )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 61 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014reconheci-mepoeta.Noabsolutamenteculpaminha.Esterrado dizer:eupenso;dever-se-iadizer:pensam-me.Desculpeojogode palavras.Eu um outro. Pior para a madeira que se julga violino, e desprezo aos inconscientes,quetergiversamsobreoqueignoramcompletamente! (Rimbaud apud Chiampi 1991: 120) Opoetapelejaparaserumvidente.Foinotriasuaopopelaindolncia, quando o trabalho estava ligado aos afazeres do dia a dia, mas no em relao ao seu trabalhocomopoeta.Amonapenavaleamonoarado,escreveemUma temporadanoinferno(Rimbaud2006:21).Trabalharagora,jamais,jamais;estouem greve, defende-se. Mas a despeito de seu horror ao trabalho braal, , antes de tudo, algumque,semarrependimentoalgum,comodiznacarta,reconhece-sepoeta. Dom?Visionrioouvidente,elepretendealcanarcommuitoesforoo desconhecido.Maisumavez,trata-sedodogmaedomtodo:avidnciapor meio do desregramento de todos os sentidos. (Bernard apud Vicente 2010: 40) Na segunda e mais importante carta do vidente, de 15 de maio de 1971, dois diasdepoisdacartaaIzambard,RimbaudofereceaPaulDemenyumahorade literaturanova(RimbaudapudChiampi1991:120),despertandooamigocomseu Cantodeguerraparisiense.Aleajactaest.Opoetaestemcasaenolhefalta tempo.horadeliberdade.Horadeexecrarosantepassados.Suaprosa envolvente:Todapoesiaantigaacabaporchegarpoesiagrega, Vidaharmoniosa. DaGrciaaomovimentoromntico,idademdia,hliteratos,versificadores (Rimbaud apud Chiampi 1991: 120-121). E, ento, enumera Ennius (Quintus) (240-169 a.C.),umdosmaisantigospoetaslatinos,Theroldus,oprovvelautordaCano de Rolando, do sculo XIII, e Casimir Delavigne (1793-1843), poeta e dramaturgo, e os coloca em uma mesma perspectiva: tudo prosa rimada, um jogo, degenerao e glriadeinmerasgeraesidiotas.Aos16anos,Rimbauddumaaulade literatura. impressionante: Aps Racine, o jogo mudou, diz ele. Durou dois mil anos(RimbaudapudChiampi1991:121).JeanBaptisteRacine(1639-1699)um marconaliteraturaclssicafrancesa.Depoisdele,vieramiluministas,romnticos, simbolistas, parnasianos e poetas modernos. O jogo mudou. uma nova poesia que se anuncia, pois, vidente, o eu um outro: Poiseuumoutro.Seocobredespertaclarim,dissonotemculpa alguma. Para mim est evidente: assisto ecloso de meu pensamento: vejo-o, ouo-o: dou um toque com o arco: a sinfonia faz seu tumulto nas profundezas,ouvemnumsaltoparaacena.(RimbaudapudChiampi 1991: 121)

Como ele que, na primeira carta, descobre-se poeta, absolutamente sem culpa alguma,ocobretambmdespertaclarimdamesmaforma.Oarcoealira. Vidente,comaeclosodeseupensamento,asinfoniadesencadeiaseuprocesso, podendosaltarvisionariamentenocentrodetudo(Umtoquedeteudedono tambor liberta todos os sons e comea a nova harmonia. (Rimbaud 2007: 239)). )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 62 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014Digoqueprecisoservisionrio,tornar-sevisionrio.OPoetatorna-se visionrioporumlongo,imensoeponderadodesregramentodetodosos sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; busca a si mesmo,esgotaneleprpriotodososvenenos,paraguardar-lhes somente as quintessncias. Inefvel tortura em que precisa de toda a f, detodaaforasobre-humana,emquesetornaentretodosogrande doente, o grande criminoso, o grande maldito, e o supremo Sbio! Pois atinge o desconhecido! Uma vez que cultivou sua alma, j rica, mais que ningum! Atinge o desconhecido, e quando, desnorteado, acabasse por perderaintelecodesuasvises,eleasviu.Quesearrebenteemseu saltoparaascoisasinauditaseinumerveis:outroshorrveis trabalhadoresviro;comearopeloshorizontesemqueooutro sucumbiu! (Rimbaud apud Chiampi 1991: 122) Ele havia comentado que a sinfonia faz seu tumulto nas profundezas, ou vem numsaltoparaacena(RimbaudapudChiampi1991:121).odesconhecido,o inefvel,que,desnorteado,opoetavidentevemsuasvises.Eparaabriraporta preciso o desregramento de todos os sentidos: Desregrarossentidossignificadeix-losagirlivremente.Asimagens (...)nascemeconformam-se,nomaisseguindoosprincpiosde verossimilhana,coernciaounocontradioqueregemomundotal qualoconhecemosetalqualnossarazooorganiza,massegundoo modo de operar do inconsciente. (Vicente 2010: 36)

Elejhaviamencionadoqueopoetavidenteatingeodesconhecido,e quando,desnorteado,acabasseporperderaintelecodesuasvises,eleasviu (RimbaudapudChiampi1991:122).Enoparapora:(...)opoeta verdadeiramenteladrodefogo.[];deverfazersentir,palpar,escutarsuas invenes;seoqueeletrazdeltemforma,eledforma;seinforme,eled informe. Achar uma lngua (Rimbaud apud Chiampi 1991: 122-123). Ele cria a forma; se disforme, ele cria o informe. o que os leitores encontram em Rimbaud, quando osversostornam-seincompreensveis.Alnguaemqueeleseexpressa,alngua francesa,dariacontadeumapoticatoousada?Mirandoofuturoemvezdo passado, essa dissonncia que encontrada em sua poesia desde ento. Nessa segunda carta, Rimbaud com tempo de sobra, como afirma ainda faz questodesaudaraspoetasmulheresdoporvir,desprestigiarotrabalhode AlphonsedeLamartine(1790-1869),deVictorHugo(1802-1885)edeAlfredde Musset (1810-1857); considerar Thophile Gautier (1811-1872), Leconte de Lisle (1818-1894) e Thodore de Banville (1823-1891) muito visionrios e, por ltimo, festeja o nomedeBaudelaire,afirmandoseroautordeAsfloresdomalonicocapazde inspectaroinvisveleouviroinaudvel.ParaRimbaud,Baudelaireoprimeiro visionrio, rei dos poetas, um verdadeiro Deus (Rimbaud apud Chiampi 1991: 124).O recado poesia moderna estava dado. Para Rimbaud, que em breve partiria para Paris, era tudo ou nada. )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 63 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014Versos que tergiversam: Rimbaud & a lrica moderna SeavidadesarjetasiluminadasfezdeRimbaudumdospoetasmais frequentadospelosleitores,sualiteraturadeacessorestritoaqualquerumdeles, sejaoleitorqueaconhecepelaprimeiravez,sejaoqueafrequentahtempose, mesmo assim, fica deriva, como o prprio barco brio de seu conhecido poema. Ele no est sozinho. Baudelaire, Stphane Mallarm (1842-1898), Guillaume Apollinaire (1880-1918),FedericoGarcaLorca(1898-1936),SalvatoreQuasimodo(1901-1968), dentreoutros,tambminsistememconfundiroleitor.EseMallarmaquelecuja esfinge detm o enigma mais difcil, Rimbaud no fica atrs, uma vez que sua poesia levaacrticaacriartermoscuriosos,comoFantasiaditatorialedesrealizaoda irrealidade sensvel, dois exemplos citados por Hugo Friedrich em Estrutura da lrica moderna,obraque,emumprimeiromomento,mostra-setoinacessvelquantoa poesia que busca esclarecer, mas que, logo, a cada pgina virada, seduzindo, procura levar o leitor a atravessar o inferno de Rimbaud e de outros poetas. MasantesdaabordagemdotrabalhodeFriedrich,caberessaltaroque escreveuoprofessorecrticoitalianoAlfonsoBerardinelli(1943-)emAsmuitas vozesdapoesiamoderna,ensaiodeDapoesiaprosa(2007),arespeitodessa tentativa de dar estrutura poesia moderna.

OlivrojclssicodeHugoFriedrich,Estruturadalricamoderna,temo inegvelfascniodasimplificaoedasntese.Ameiosculodesua publicao (1956), e embora desde o incio fossem claras as suas lacunas eoseuaspectotendencioso,oleitorcontinuareconhecendoaquele fascnio. (...) Comsuadescriosistemticaesinttica,Friedrichrespondiadifusa exignciadeesclarecimento.Aotentarexplicaralgicaconstrutivade umgneroliterrioquepareciaterperdido,haviamaisdeumsculo, todo vnculo com a racionalidade e o senso comum, Friedrich forneceu umaeficazdescrioestruturaldalricamoderna:sobretudo(...)em setratandodalrica,ouseja,deumgneroliterrioquemantme exacerbasualigaocomacentralidadedosujeitopoetante.Desse modo,afusoeorearranjodosgnerosoutrofenmenotpicoda modernidadeforammenosprezados.Dastrsvozesdapoesiaque T.S.Eliotmencionouemumdeseusensaios,alricadeFriedrich encarna apenas uma. (Berardinelli 2007: 17) SegundoBerardinelli,Friedrichtendenciosoaotentarcolocartodaapoesia modernaemumamesmaestrutura.Almdisso,FriedrichnotratadeWalt Whitman,EmilyDickinsoneGerardM.Hopkins,poetasdeindubitvel modernidadeeinfluncia,ressaltaBerardinelli,mascujaobraanuncia desenvolvimentosnovecentistasmuitodiferentesdaquelesprivilegiadospor Friedrich (Berardinelli 2007: 20).QuemconheceapoesiadeWhitmansabequeBerardinellitemrazo:os versosdeFolhasdeRelvadificilmenteapresentamohermetismoqueRimbaud,por exemplo, oferece aos leitores. O professor e crtico italiano lembra que, muito alm da )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 64 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014estrutura proposta por Friedrich, pulsa uma poesia moderna que foge dessa tentativa deunificaoeque,porisso,nopodesercapturadapelaobradocrticoalemo. ParaBerardinelliessamesmaestruturaenfeixaapoesiadeBaudelaire,Rimbaude Mallarmemumlabirinto,deondeessestrsautores,quemudaramosrumosda poesia moderna francesa, no podem mais sair. (...) a lrica de que nos fala Friedrich em seu livro basta a si mesma. No necessitamaisdomundo,evitaqualquervnculocomarealidade. Nega-lheataexistncia.Fecha-senumadimensoabsolutamente autnoma.Fantasiaditatorial,transcendnciavazia,puromovimento dalinguagem,ausnciadefinscomunicativos,fugadarealidade emprica,fundaodeumespao-temposemrelaescausaise dissociadodapsicologiaedahistria:alricaque,segundoFriedrich, entrou em cena no Ocidente a partir da segunda metade do sculo XIX sobretudoisso.(...)Apsostrsextensoscaptulosdedicadosa Baudelaire,RimbaudeeMallarm(captulosemqueosdados biogrficossoquasedetodoausentes),seriapossveldizerqueessa poesiaseapresentaemseuconjuntocomoumacriaosemsujeito, uma obra sem autores. Como um sonho ou um labirinto dentro do qual osautoresaprenderamamoraredeondenopoderiamsair. (Berardinelli 2007: 21) Lrica moderna Comonapinturaenamsica,aartemodernaemgeraltemnatenso dissonanteumobjetivoemcomum.Estajunodeincompreensibilidadeede fascinaopodeserchamadadedissonncia,dizFriedrich,poisgeraumatenso quetendemaisinquietudequeserenidade(1991:15).Seadissonnciaelevaa arteaoterrenodoincompreensvelefazdissoumobjetivo,certamente,umdos objetivosdeFriedrichtentarentendercomoalricamodernalidacomtantas categorias negativas que, em todo caso, esto na essncia de versos que confundem o leitor.Adissonncianoestpresentesomentenapoesiamoderna.Emoutras formasartsticas,elatambmrepresentaumsaltoestilsticosemprecedentes.Basta ouvirAsagraodaprimavera,deIgorStravinsky(1882-1971),obraqueathoje impressionaporsuaousadia.EmAugriosdeprimavera/Danados adolescentes,amsicatorna-seimpetuosaedoce,ofluxodoritmointerrompe-se para dar lugar a uma clere profuso de notas que se misturam, levando o ouvinte mesmaincompreensoefascnioqueencontranadissonncia.Hmaisdeum sculo,acumulam-seexemplosdeumestilonoqualadissonnciatornou-se autnoma,escreveuStravinskyem1948.Transformou-seemumacoisaemsi (StravinskyapudFriedrich1991:16-17).Queodigamosespectadorespresentes primeiraapresentaodeAsagraodaprimavera,emParis,em29demaiode1913. Entrevaiaseaplausos,gritosesussuros,Stravinskyassistiaatudoaquilono totalmenteinclume,poisdesconfiavadequenoestivesseenganadoarespeitode )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 65 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014seutalento.Enoestava.Senamsicaadissonnciachegavaparaficar,napintura asvanguardaseuropeiastraziamumaforaexpressivaquemaisturvavadoque tranquilizavaoespritoqueseesforavaparacompreenderoquevia.Nosculo anterior, Rimbaud j havia mencionado:

Temosdearrancarpinturaseuhbitoantigodecopiar,parafaz-la soberana.Emvezdereproduzirosobjetos,eladeveforarexcitaes mediante as linhas, as cores e os contornos colhidos do mundo exterior, pormsimplificadosedominados:umaverdadeiramagia.(Rimbaud apud Friedrich 1991: 81) Foramessesmesmoscontornossimplificadosedominadosquetomaram contadocubismo,porexemplo,enquantoaverdadeiramagiatomavadeassalto, tambm,apoesia,comoFriedrichfazquestodefrisaraosereferirmagiada linguagemquedformapoesiadeRimbaud.Trata-sedamesmapoesiaque encontrada nos versos em prosa a seguir: Oh! as pedras preciosas que se escondiam, -- as flores que j olhavam. --------------------- (...)ohaspedras,pedraspreciosasescondendo-sedebaixoda terra, e as flores abertas! reina o tdio! e a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa no vaso de barro, no querer jamais contar-nos o que sabe, e que ignoramos.-------------------- Floresmgicaszumbiam.Osdeclivesembalavam-no.Animaisdeuma elegncia fabulosa desfilavam. As nuvens se amontoavam sobre o alto-marfeitodeumaeternidadedelgrimasquentes.(Rimbaud1985:81-82-84) Reinaotdio,masasfloreszumbemeamagiapareceinstaurar-se,deixando paratrsashorasdesperdiadasemodorrentas.Amagiareinanapoesia,numa linguagemqueultrapassatemasemotivos,ealcanasonoridadesinusitadasda lngua,numjogooscilantedecombinaesqueforamoslimitespolissmicosdas palavras.Rimbaudutilizaesteprocedimentocomumaousadiasemprecedentes, dizFriedrich(1991:91).Poressaaltura,oautordeEstruturadalricamodernaj argumentou que a poesia de Rimbaud,bemcomo a lrica moderna, no procura ser compreendida. Uma poesia que no mais considera a compreensibilidade normal, diz Friedrich, pode servir-se deste procedimento com tanto maior razo, porquanto nestapoesiaapalavra,comosonoridadeesugesto,algopartedapalavraa servio de uma tessitura lgica (1991: 92).ApoesiadeRimbaudcaminhaapassosfirmesporessaveredatrilhadapor poetasquebuscaram,nadissonncia,ojeitodeserdeseusversos;eseocontedo incomodaesurpreendeoleitor,aformatambmsevmercdessaexperincia visceral com a linguagem. o que mostra a prosa potica de Uma temporada no inferno ouospoemasemprosadeIluminaes,quandoapoesiadeixa-seatrairpelaprosa. Nosdoiscasos,trata-sedeobrahermticasobquaisquercircunstncias,enoa )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 66 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014exegesedocrticoalemoqueiriluminartotalmenteoentendimentodosleitores, comopossvelnotaremParada,umdospoemasmaisnotveiseobscurosde Iluminaes e, aqui, traduzido por Ldo Ivo (1924-2012): Pndegosmuitoslidos.Vriosexploraramvossosmundos.Sem necessidade, e com pouca pressa de aplicar suas brilhantes qualidades e experinciasdevossasconscincias.Quehomensmaduros!Olhosde idiotamaneiradanoitedevero,vermelhosenegros,tricolores,de ao picado de estrelas de ouro; fisionomias deformadas, cor de chumbo, lvidas, incendiadas; rouquides gaiatas! O andar cruel dos ouropis! Halgunsjovens,comocontemplariamQuerubim?providosde vozes estarrecedoras e de alguns recursos perigosos. Mandam-nos criar corcunda na cidade, enfeitados com um luxo repelente. o mais violento Paraso da careta enraivecida! Nenhuma comparao comosvossosFaquireseasoutrasbufonariascnicas.Emtrajos improvisadoscomogostodopesadelo,representamlamentaes, tragdiasdeladresesemideusesespirituaiscomoahistriaouas religiesjamaisoforam.Chineses,Hotentotes,ciganos,palermas, hienas,Moloques,velhasdemncias,demniossinistros,misturamos jeitospopulares,maternais,comasatitudeseasternurasbestiais.Eles interpretariampeasnovasecanessentimentais.Mestresjograis, transformamolugareaspessoaseseutilizamdacomdiamagntica. Os olhos chamejam, osangue canta, os ossos se alargam, as lgrimas e filetesvermelhosfluem.Seugracejoouterrorduraumminuto,ou meses inteiros. Sou o nico a ter a chave desta parada selvagem. (Rimbaud 1985: 88) comoseRimbaudestivessedandoumapiscadelapetulanteaosleitoresde suaobra.Oqueessaparada?Seriaumaparadadeatraesdemusic-hallno Soho, em Londres, como argumentaram V. P. Underwood e P. Arnoult? Uma feira ou umcirco(Guiraud)?UmdesfilemilitarouestudantilnaAlemanha(B.deLacoste)? Umatertliadefumantesdehaxixe(Gengoux)?Umacerimniareligiosa(Adam)? TodasessassugestessolembradasporIvoBarroso,aoobservarcomoM. Matucciqueasdiversashipteses,longedeesclareceraltimafrase,tiram-lhe inteiramente o sentido (Barroso apud Rimbaud 2007: 387). Parada, como possvel perceber,umdospoemasrimbaudianosmaisdifceisdeserinterpretadosa menosquesequeirarecorreradadosbiogrficosnomuitofundamentados, inventadosoupropaladospelopoucojudiciosocoronelGodchot,oqualafirmou queRimbaudteriasidoestupradonumacasernaemBabylone(Barrosoapud Rimbaud 2007: 387). Se o leitor admitir tal afirmao, o poema at pode fazer sentido, umavezqueoeulricoafirma:Osolhoschamejam,osanguecanta,osossosse alargam,aslgrimasefiletesvermelhosfluem.Seugracejoouterrorduraum minuto, ou meses inteiros. (Rimbaud 1985:88) Nesse sentido, oltimo verso (Seu gracejoouterrorduraumminuto,oumesesinteiros)plenamentecompreensvel ao leitor, ao dar conta de um acontecimento terrvel do passado, que no deixa de ser esquecidonopresenteenofuturopormesesinteiros.Mas,a,seriaprecisodar )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 67 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014ouvidosaumrelatocontroversoparaqueoleitorpudessechegaraumapossvel interpretao.Admitindo-a,teramosadramticadescriodessesabsoldadesco, codificadapelaprpriavtima,nicadetentoradachaveda verdade(Barrosoapud Rimbaud 2007: 387). AolerFriedrich,oleitordescobrequeaincompreensodeumpoemano franzeocenhodalricamoderna.exatamenteesseoobjetivoqueocrticoalemo quer alcanar com sua tese, ou seja, a de que h uma estrutura na lrica moderna que colocaemconjunoautoresquedividemamesmarbita,paradesgostode Berardinelli e de outros leitores que no pensam dessa forma. Mas, analisando o que Friedrich tem a dizer, como o leitor deve interpretar a poesia moderna? Eis a questo. Eis a resposta: (...) o caos do contedo j no se presta interpretao. Mas tal lrica torna-se interpretvel quando se penetra na tessitura de sua ao, afirma Friedrich, que vai mais longe: Porconseguinte,lgicoquetallricasetornecadavezmaisabstrata. Oconceitodoabstrato,assimcomousadoaqui,noselimitaa significadodonovisvel,noconcreto.Deveantesdesignaraqueles versos,gruposdeversos,frasesque,bastando-seasimesmos, representemdinamismoslingusticospurose,pormeiodestes, destruam at incompreensibilidade, ou no tolerem, de modo algum, umpossvelvnculoderealidadedoscontedos.Deve-seterpresente este fato ao analisar grande parte da lrica moderna, sobretudo daquela que est aparentada com o tipo da lrica de Rimbaud (1991: 75). Aodestruiraincompreensibilidade,ouaonotolerarovnculo representaodarealidade,apulgaatrsdaorelhavoltaaincomodaroleitor. Nenhumanovidade:incompreensoefascniosoosgermesdatensodissonante. Mas,emParada,oleitorfazascontas,semchegaraumresultado:no escorregadio e atrevido esse eu lrico que afirma ser o nico a ter a chave, negando ao leitor a compreenso do que possa ser ou vir a ser o significado desse poema em prosa?Eis,a,Rimbaudemsualtimafase.Comodecifr-lo?Essaumaresposta que o mais esforado professor, crtico ou leitor talvez nunca encontre. Mas qualquer um poder recorrer a Friedrich para tentar entender o que est acontecendo, e, aps lersobretranscendnciavaziaeoutrosconceitosnegativosanexadospoesiade Rimbaud, talvez encontre um pouco mais de cosmos no caos.Ser mesmo?Nofundo,oquemaispermanecenoleitor,aofinaldecadapoemade Iluminaes, a mesma dvida que acometeu ningum menos que Antonio Candido (1918-),quenoensaioAstransfusesdeRimbaud,apsanalisarosversosde Flores(Fleurs),deixaumanuvemdedvidasaomencionar:Masnotenho certezasemesmoassim(CandidoapudLima1993:116).Seosleitorestomarem Parada como exemplo da poesia moderna de Rimbaud, mas sem se lembrarem do queafirmouopoucoconfivelCoronelGodchot,mesmoessadeclaraosincerade um crtico meticuloso como Candido jamais ser surpreendente. Por qu? Basta ler e reler Rimbaud: a chave est em suas mos. )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 68 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014MISUNDERSTOOD VERSES: RIMBAUD AND THE MODERN POETRY Abstract: All is precocious in Rimbaud. From the Latin, mastered in childhood, until 'Iisanother'atteenageyears,thegreatFrenchpoetcondensedinafewyearsof literary work a poetry that continues to confuse the reader until today. Keywords: poetry; visionary poet; modern poetry. REFERNCIAS BERARDINELLI,Alfonso.Dapoesiaprosa.Traduo:MaurcioSantanaDias.So Paulo: Cosac Naify, 2007. CANDIDO,Antonio.AstransfusesdeRimbaud.In:LIMA,Carlos.Rimbaudno Brasil. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993. CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. So Paulo: tica, 1991. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna: da metade do sculo XIX a meados do sculo XX. Traduo: Marise M. Curioni (texto) e Dora F. da Silva (poesia). 2 ed. So Paulo: Duas Cidades, 1991. KEROUAC,Jack.Rimbaud.In:WILLER,Cludioetal.Almabeat:ensaiossobrea GeraoBeat.TraduodopoemafeitaporAlbinoPoliJr.PortoAlegre:L&PM Editores, 1984, p. 48-53. KING,Stephen.Oiluminado.Traduo:BettyRamosAlbuquerque.SoPaulo: Crculo do livro, s. d. RIMBAUD,Arthur.UmatemporadanoinfernoeIluminaes.Traduo,introduoe notas: Ldo Ivo. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1985. ________.VenusAnadimene.In:CAMPOS,Augustode.Rimbaudlivre.2ed.So Paulo: 1993. ________.Umatemporadanoinferno.Traduo:PauloHeckerFilho.PortoAlegre: L&PM, 2006. ________. Prosa potica. Traduo: Ivo Barroso. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ________.Poesiacompleta.Traduo:IvoBarroso.3ed.RiodeJaneiro:Topbooks, 2009. )

Renato Alessandro dos Santos (UNESP/Araraquara)VERSOS QUE TERGIVERSAM: RIMBAUD E A POESIA MODERNA 69 Londrina, Volume 12, p. 52-69, jan. 2014VICENTE, Adalberto Luis. Uma parada selvagem: para ler as Iluminaes de Rimbaud. So Paulo: Unesp, 2010. WHITE,Edmund.Rimbaud:avidadupladeumrebelde.Traduo:MarcosBagno. So Paulo: Companhia das Letras, 2010. ARTIGO RECEBIDO EM 30/09/2013 E APROVADO EM 21/11/2013