ELAS peça em 1 ato de João Rodrigo Ostrower PERSONAGENS · E um trânsito pra chegar aqui! É...
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ELAS
peça em 1 ato de João Rodrigo Ostrower
PERSONAGENS
Marco – 10, 34 e 54 anos;
Viviane – 30 anos;
Tânia – 32 anos;
Maria – 18 anos.
O personagem Marco é interpretado pelo mesmo ator, que deverá ter por
volta de 35 anos, e ele terá a mesma voz e o mesmo corpo nas três
épocas, sem trejeitos indicando idades diferentes, apesar de, na história,
o personagem ter idades com intervalos grandes. As personagens
femininas se parecem fisicamente, e, na peça, cada uma delas (a mãe, a
mulher e a filha) se relaciona apenas com Marco, elas não se relacionam
entre si, mesmo quando estão em cena no mesmo momento.
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A HISTÓRIA
A história se passa numa mesma casa, e as três cenas que a compõem
acontecem ao mesmo tempo, aos olhos dos espectadores, e, de alguma
forma, se cruzam, mas o público vai descobrindo que as cenas ocorrem
em épocas diferentes da vida do personagem. Os dias de cada uma das
três cenas são:
1 - Em 1970, o dia em que Marco (aqui com 10 anos) e sua mãe se mudam
para um apartamento novo para se esconderem de perseguições
políticas, e estão sem notícias do pai dele;
2 - Em 1994, o dia em que Marco (aqui com 34 anos) vai mostrar este
mesmo apartamento para vender para a então desconhecida Viviane, a
mulher com quem ele se casaria e teria uma filha.
3 - Em 2014, o dia em que Maria, filha de Marco (aqui com 54 anos) vai sair
de casa para morar com sua namorada.
CENÁRIO
Uma espécie de sala de estar, com uma poltrona clássica centralizada,
uma pequena mesa ao lado, com um livro em cima e uma vitrola num dos
cantos. Saindo da cena, pelo lado direito, seria a cozinha da casa, saindo
pelo lado esquerdo, o banheiro e quartos.
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CENA
Acendem as luzes. Marco está sentado na cadeira, permanece ali por um
tempo, quase sem se mexer, com o olhar parado, pensativo.
A campainha toca. Ele segue com o olhar parado, sem se mexer, até que a
campainha toca novamente, então ele “desperta”, levanta-se e vai até um
dos lados do palco. Viviane entra algo esbaforida. Ela carrega uma mala
de rodinhas.
Viviane (agitada) – Nossa, pensei que não tinha ninguém, já tava achando que
tinha confundido o apartamento, ou o dia marcado, ou então que a Tai tinha me
passado o endereço errado, e esse calor também, não ajuda, né? Desculpa, eu
posso usar o banheiro um segundo? Estou super apertada.
Marco (levemente surpreso) – Claro, é a segunda porta à direita.
Viviane – Obrigada!
Ela sai de cena. Ele fica observando o vazio novamente por um tempo,
depois olha, por alguns segundos, a mala que ela deixou em cena. Ele
está melancólico. Depois de pouco tempo, ela volta.
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Viviane – Pronto, agora tô aliviada... Me desculpe, eu vim direto do aeroporto,
tá uma correria danada. E um trânsito pra chegar aqui! É sempre assim?
Marco – Depende, fim da tarde é sempre mais complicado... (estende a mão
para cumprimenta-la) – Marco.
Viviane (cumprimentando) – Sim, sim, claro, Marco Aurélio, né?
Marco – Isso.
Viviane – Viviane. Com um “n” só, e com “e” no final mesmo. Eu não gosto
muito não, mas, fazer o que, né? E pessoalmente, vou ser bem franca, também
não gosto muito de nome composto, não entendo por que não escolhe ou
Marco ou Aurélio, você não acha?
Marco (entre melancólico e surpreso) – É, acho que sim, mas foi cisma da
minha mãe...
Viviane – Desculpa, ai meu Deus, olha eu falando bobagens e a gente nem se
conhece... Sabe o que é? E u tenho uma verdadeira obsessão por nomes
simples, como Maria, João, sabe?
Marco – São nomes bonitos, eu gosto também.
Viviane – Né? É ótimo o banheiro.
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Marco – Oi?
Viviane – O seu banheiro é ótimo.
Marco – Ah, sim. Obrigado. Eu gosto muito também, a gente sempre cuidou
bem de tudo aqui, a casa tá bem conservada.
Viviane – A Tai me contou que você tá indo viajar por um tempo.
Marco – Contou?
Viviane – Desculpa, ela me falou por alto, nem sei porque que eu tô falando
isso, mas eu fiquei curiosa. Acho muito corajoso mudar assim tão radicalmente.
Marco – Mas, pelo visto, você também tá mudando.
Viviane – Sim, mas eu tô mudando de cidade, e por causa de um trabalho,
você tá indo embora do país.
Marco – Você não quer ver o resto do apartamento?
Viviane (levemente constrangida) – Claro... Perdão. Ai, perdão mesmo, eu
sou muito entrona..
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Marco – Não precisa se desculpar.
Viviane – Eu sei que você tá passando por um momento difícil.
Marco estranha ainda mais.
Viviane – A Tai me contou...
Marco – Pelo visto a Tai te contou um bocado de coisas sobre a minha vida.
Tempo. Um certo constrangimento.
Falam juntos a próxima fala.
Viviane – Bom, então eu vou dar uma olhada...
Marco – Olha, minha vez de pedir desculpas...
Interrompem quando se dão conta de que estão falando juntos.
Viviane – Tá tudo bem, imagina, bom eu vou dar uma olhada no resto do
apartamento, como você mesmo sugeriu, pode ser?
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Marco – Claro, claro, eu te mostro.
Viviane – Você vai achar muito estranho se eu te pedir pra olhar sozinha?
Marco (ele acha engraçado e ri pela primeira vez) – Um pouco, mas, claro,
fica à vontade.
Viviane (rindo um pouco também) – É uma coisa de energia, sabe? Eu sou
muito ligada nisso, não faz muito tempo não, mas eu venho me aprofundando
nisso e hoje é uma coisa importante na minha vida. Prometo que não vou
mexer em nada.
Marco (simpático) – Tá tudo bem. (ri) Bom, então, pra lá são os quartos e o
banheiro, que você já viu, e pra lá tem a cozinha, a área de serviço e um
quartinho de empregada.
Ela sorri e então sai por uma lateral da cena. Ele senta-se na poltrona
novamente, ainda sorrindo um pouco, mas o sorriso vai se transformando
num ar mais triste, até que ele volta a olhar para o vazio.
Tempo.
Entra Tânia. Marco está sentado na mesma posição da cena anterior.
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Tânia – Amanhã eu vou ter que fazer umas compras, não aguento mais comer
sanduíche, você tá com fome?
Ele não responde. Ela chega mais perto, passa a mão nos cabelos dele,
que mexe a cabeça para se desvencilhar do carinho.
Tânia – Você sabe que o que tá acontecendo não tem nada a ver com você,
né?
Marco – Hã?
Tânia – Você sabe que a culpa não é sua, né?
Marco – Eu sei.
Tânia – Quer comer alguma coisa?
Marco – Não.
Tânia – Viu seu quarto como é grande?
Viviane entra e cruza o palco enquanto fala.
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Viviane – Nossa, os quartos são gigantes, hoje em dia não se acha mais
apartamento com quarto desse tamanho, só nesses prédios antigos mesmo, é
impressionante como todos parecem uma lata de sardinha, pé direito alto
então, ninguém nem mais sabe o que é (fala enquanto cruza o palco e sai
pelo outro lado da cena, segue falando fora de cena). E essa cozinha?
Gente, não dá nem pra acreditar, parece um sonho. Pra quem cozinha, então...
Eu não sei você, mas eu adoraria saber cozinhar...
Tânia – Escovou os dentes?
Marco – Que saco!
Tânia – Não fala assim comigo!
Marco – Desculpa.
Viviane volta. Tânia suspira fundo.
Viviane – Você falou alguma coisa?
Marco – Não.
Tânia sai para o lado dos quartos.
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Viviane – Você sempre morou aqui?
Marco – Não, a gente mudou pra cá quando eu tinha 10 anos, mais ou menos.
Viviane – Deve ter sido ótimo morar aqui criança, eu adoraria que meus filhos
crescessem aqui no bairro.
Marco – Hoje em dia deve sim, eu não tenho muita memória da minha infância.
Viviane – jura?
Ele concorda com a cabeça.
Viviane – Eu lembro de tudo...
Ela analisa o ambiente, olha os móveis, toca em algumas coisas, alisa o
piso com os pés.
Tempo.
Tânia volta falando.
Tânia – Bom, vamos deitar?
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Marco – Eu não vou conseguir dormir.
Tânia – Vai sim.
Marco – Não, não vou, vou ficar acordado que nem ontem, anteontem...
Tânia – Aqui vai ser diferente.
Ele não responde.
Viviane – Adorei a vitrola, ela fica?
Marco – Fica.
Viviane sorri.
Tânia se aproxima dele e volta a fazer cafuné nele, dessa vez ele não
mexe a cabeça, então ela segue fazendo.
Tânia – Eu conto uma história.
Marco – Não quero.
Tânia – O que é que você quer, então?
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Tânia – Eu quero meu pai.
Maria entra em cena por um dos lados, tem alguns discos de vinil com
ela, está digitando num celular, cruza a cena pelo fundo, e sai do outro
lado, como se passasse do lado da cozinha para o lado do quarto.
Tempo.
Tânia – A gente já conversou sobre isso.
Marco – Não conversou nada...
Tânia (não sabe muito bem como falar) – Eu já te falei sim, meu bem, o seu
pai, ele...
Jorge (corta, gritando) – Eu quero meu pai!
Tânia (baixando o volume da voz) – Não grita! Assim você vai acordar a sua
irmã!
Tempo
Viviane – É silencioso aqui, né?
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Marco – É, só quando tem jogo que é mais barulhento, em geral quartas e
domingos à noite?
Viviane – Você gosta?
Tânia – Desculpa.
Marco (fala para Viviane) – Do que?
Viviane – De futebol, tá tudo bem com você?
Marco – Sim, por que?
Viviane – Você parece um pouco aéreo, mas, também, você pode ser assim
sempre, você é?
Ele está pensativo.
Tânia – Desculpa, vai, meu filho, eu também tô triste, que nem você...
Marco (fala para Viviane) – Não, não, mas acho que você tem razão... Hoje
eu... Enfim, acho voltar aqui meu deixou um pouco saudoso, é só isso.
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Viviane – Por causa da sua mãe, né?
Ele estranha a pergunta dela.
Maria entra em cena novamente, cruzando o palco mais uma vez, no
sentido inverso agora, como se passasse do lado do quarto para o lado
da cozinha, e então sai de cena.
Viviane (fala antes de Maria sair completamente de cena) – A Tai me falou.
Marco – A Tai é meio fofoqueira, né?
Viviane – Ela é super do bem, e parece gostar muito de você, me falou super
bem de você.
Marco – É?
Viviane – Super.
Ele ri, meio sem graça, e ela, em seguida, faz o mesmo. Ela fica olhando
em silêncio para ele.
Tânia - Eu também tenho muitas saudades do seu pai.
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Marco – Eu sei, mãe, não me trata como criança.
Tânia (fala como se estivesse incentivando o filho) – Desculpa, eu sei, 10
anos já é uma década completa, não é mais idade de criança.
Ele abre um sorriso largo e genuíno que é, ambiguamente, tanto uma
resposta pro elogio da mãe quanto para introduzir a próxima fala,
direcionada à Viviane.
Tânia – Bom, então vou dar uma varridinha aqui nessa sala enquanto o sono
não vem.
Ele concorda com a cabeça, ainda sorrindo.
Tânia sai de cena.
Marco (fala para Viviane, ainda sorrindo) – eu gosto.
Viviane – Hã?
Marco – Eu gosto de futebol, você perguntou...
Viviane – Sim, há horas... Pra quem não tinha memória...
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Marco (simpático) – Memória recente eu tenho.
Viviane – E o que você tá achando dessa seleção?
Marco –Tenho certeza de que vai ser tetra.
Viviane ri e sustenta um sorriso até a próxima fala dela.
Maria fala entrando, ela tem um bilhete nas mãos.
Maria (apontando o bilhete para o pai) – Não vai ser penta, óbvio que não.
Marco (fala para Maria) Tenho certeza que vai ser penta.
As duas falam ao mesmo tempo as duas falas abaixo.
Maria – Essa Copa é do Messi, o cara é um monstro em campo.
Viviane - Esse time tá uma merda, a argentina vai ser campeã!
Marco (como se falasse para si mesmo, mas serve com resposta para
ambas) – A Argentina nunca mais vai ganhar uma Copa.
Maria e Viviane (novamente juntas) – E o Brasil vai?
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Tempo curto. Tânia entra em cena varrendo o chão. Marco estufa o peito
para falar.
Marco (confiante) – Esse ano eu tenho certeza absoluta de que o Brasil vai
ser campeão.
Tânia (com alguma animação) – De novo?
Viviane (em dúvida sincera) – De novo?
Maria (debochada, e já sabendo o que ele vai falar a seguir) – De novo?
Marco – De novo.
Viviane – Caramba, dá pra ver o campo da janela?
Viviane vai para o proscênio e olha para a plateia como se estivesse
olhando a vista do apartamento. Tânia segue varrendo o chão.
Maria – Você fala isso de todas as Copas.
Marco – Não senhora, só falei das vezes que fomos campeões mesmo.
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Maria – Pai, por favor, vai, eu...
Marco (cortando) – Eu falei com a sua avó, no dia em que a gente mudou pra
cá, da Copa de 70, depois falei com a sua mãe, no dia em que a gente se
conheceu, bem no início da copa de 94, no dia em que a gente se conheceu,
aqui nessa sala mesmo, e falei pra ela de novo em 2002, tanto é que a gente
foi pra Alemanha torcer, nossa última viagem juntos...
Maria – Não mete essa... Você inventou essas histórias e acredita nelas, aí fica
contando pra ver se vira verdade...
Marco – Maria Isabel, respeita uma das poucas memórias do seu pai, tá bem?
Pode perguntar pra elas!
Tempo
Marco – Quer dizer, pra ela...
Maria abraça o pai.
Maria – Vai ser bom vender o ap, vamos guardar só as memórias boas da
vovó...
Ficam abraçados por um tempo curto, até que ela se solta dele e vai na
direção do quarto, enquanto fala.
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Maria – Vou terminar de arrumar as minhas coisas, beleza? (agora já saindo
de cena) Mas, vai por mim, esse ano a Copa vai ser dos Hermanitos
argentinos...
Marco – Nunca, a Copa é aqui! O caneco já é nosso!
Ele olha para Tânia, que segue varrendo o chão, e agora começa a
assobiar uma música, um forró clássico do final dos anos 60.
Viviane volta para o centro da cena.
Viviane – É maravilhosa a vista, mas o campo não dá pra ver, né?
Marco – Antigamente dava, mas subiram esses dois prédios na frente e agora
só dá pra ouvir a torcida...
Viviane – Vou querer.
Marco – Oi?
Viviane – O apartamento, eu quero comprar.
Marco – Que ótimo!
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Viviane – É exatamente o que eu preciso.
Maria entra, ela está digitando no celular, se divertindo.
Marco – Que tal um brinde com um vinho?
Maria – Pai, eu preciso ir daqui a pouquinho, a Tai tá me esperando.
Viviane – Claro, por que não?
Marco (fala para Viviane e para Maria) - Eu vou buscar.
Ele sai pela coxia lateral, na saída do lado da cozinha. Tânia encosta a
vassoura e senta na poltrona, pega um livro que estava na mesa e
começa a ler. Maria continua digitando no celular e Viviane volta a olhar
em volta, agora como se estivesse pensando nas mudanças que irá fazer
na decoração. Tempo.
Marco volta, ele segura uma garrafa de vinho já aberta e duas taças.
Ele entrega uma para Viviane, serve as duas taças e brindam.
Viviane – Um brinde às viradas que a vida dá.
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Marco – Às viradas.
Eles bebem.
Viviane – É ótimo esse vinho, nossa mãe do céu.
Marco sorri. Maria, que está lendo algo no celular, dá uma gargalhada.
Marco (fala tanto para Maria quanto para Viviane) – Esse vinho é incrível.
Viviane sorri.
Maria – Peraí, rapidinho, pai, já tô indo.
Maria segue digitando em seu celular e reagindo, como se estivesse
trocando mensagens. Marco bebe mais um gole e coloca a garrafa e seu
copo na mesa.
Viviane – Eu já tive várias ideias pra mudar a decoração daqui, pra deixar mais
com a minha cara.
Marco (fala para Viviane) – Já?
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Viviane – Claro, eu sou obsessiva com decoração. Amo, compro todas as
revistas, acho que eu queria mesmo era ser decoradora, ou arquiteta.
Marco (ele fala para Tânia, assim como as falas seguintes também são
para ela) – Mãe, o papai morreu?
Tânia interrompe a leitura e olha pra ele.
Viviane (esta e as falas seguintes dela são como um monologo, que ela
vai falar como se não esperasse resposta de Marco) – Essa parede, por
exemplo, eu acho que vou pintar ela toda de amarelo.
Tânia (interrompendo a leitura) – Não!
Viviane – Ou de verde claro, talvez, pra dar mais vida.
Marco - Ele tá preso?
Tânia – Também não.
Viviane – Essa outra parede aqui eu vou derrubar.
Marco - O Serginho falou que ou meu pai morreu ou tá preso e ninguém sabe
onde.
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Viviane – Fazer uma cozinha americana.
Tânia – O Serginho não sabe de nada.
Marco - O pai do Serginho morreu e também era do partido.
Viviane – Aqui perto da janela eu vou encher de planta.
Tânia – Filho, o papai tem que se esconder por um tempo.
Viviane – Energia da natureza.
Marco – Por que?
Viviane – Amo planta.
Tânia – Pra ele não ser preso e não se machucar.
Marco – Ele fez alguma coisa errada?
Viviane – E vou colocar uma cerca, por causa do meu gato.
Tânia – Não, pelo contrário, ele fez a coisa certa.
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Viviane – O fax, se não tiver grade, ele foge...
Marco – Se ele não fez nada de errado, por que precisa ficar escondido? E por
que todo mundo tá falando que ele vai ser preso?
Viviane – Vou azulejar esse chão todo.
Tânia – Filho, vem cá, senta aqui com a sua mãe.
Ele senta no chão e encosta nas pernas da mãe, que ainda está sentada
na poltrona. Tânia faz carinho novamente na cabeça dele.
Viviane – Ai, desculpa, eu falo demais, e um golinho de vinho faz eu ficar ainda
mais tagarela, e você tão quieto...
Viviane senta-se no chão também, perto de Marco. Ele sorri.
Tânia – Um dia você vai entender, viu?
Marco (para Viviane) – Imagina, eu gosto do seu jeito, é divertido... É bom te
ouvir...
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Viviane fica olhando para ele, que a olha de volta, ela suspira, olha em
volta por um tempo. Enquanto isso, Maria finalmente guarda o celular no
bolso e pega a taça de vinho cheia que estava em cima da mesa e bebe o
seu primeiro gole.
Maria - É ótimo esse vinho, nossa mãe do céu.
Marco (para Maria) – Você é igual a sua mãe.
Maria – isso é um elogio?
Tânia – A gente vai ser muito feliz nessa casa, eu prometo.
Marco - Essa mordomia vai acabar...
Maria – Ai, pai, você não consegue, né? Curtir o momento?
Viviane – A casa tem uma energia boa.
Ele sorri, ambiguamente, um sorriso que pode servir de resposta tanto
para Maria quanto para Viviane.
Marco – Depois de um vinho, tudo fica com energia boa.
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Viviane – Não, não, eu já tinha achado antes, o vinho só me deu coragem pra
falar.
Marco – In vino veritas.
Viviane (se levantando enquanto fala) – in vino Viviane... (ela ri um riso
solto). Já volto, vou ali no meu banheiro.
Ela deixa a taça na mesa e sai de cena.
Maria – O vinho tá ótimo, mas eu preciso ir
Marco – Eu realmente não entendo.
Maria – Você não precisa entender, só aceitar.
Tempo
Tânia – Tá animado pra escola nova?
Ele faz um sinal de não com a cabeça, que serve de reposta tanto para
Maria quanto para Tânia.
Maria – Eu me apaixonei.
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Marco – E vai se sustentar como? Ela vai te sustentar?
Tempo
Maria – Isso é um problema meu.
Marco – Ela tem o dobro da sua idade.
Maria – E daí, você tinha o dobro da idade da minha mãe quando vocês se
conheceram.
Marco – É diferente.
Maria – Diferente por que? Porque você é homem e a Tai é mulher?
Marco – Não, porque a Tai te viu crescer.
Maria – e daí?
Marco – Sua mãe concorda com isso?
Maria – Ninguém tem que concordar com nada não, pai, mas ela concorda sim.
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Ele respira fundo
Viviane volta.
Viviane – Nossa, deu um calor esse vinho.
Enquanto segue o diálogo de Marco e Maria, Viviane tira o casaco que
estava vestindo e fica com uma camiseta, que tem um decote generoso.
Marco – Desde quando tá rolando isso?
Maria – Isso não importa.
Marco – Importa pra mim.
Maria – Que saco!
Marco – Não fala assim comigo!
Maria sai correndo pro quarto.
Viviane – Vou tomar uma última taça, eu tenho uma reunião, você parou ou
quer mais?
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Marco – Quero mais sim.
Viviane enche as duas taças.
Tânia volta a assobiar a mesma canção de antes, o mesmo forró clássico
dos anos 60.
Marco e Viviane estão se olhando e não falam nada por um tempo.
Tânia – Você não vai querer dormir, né?
Marco faz sinal negativo com a cabeça, um sinal que também serve para
Viviane, como se ele estivesse se dando conta naquele momento de que
está se envolvendo.
Essas duas falas seguintes são ditas em sequência imediata.
Tânia – Quer ter sua aula de dança?
Marco – Quer dançar?
Tempo curto.
Viviane – Dançar?
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Marco faz sinal de sim com a cabeça, que serve para a mãe e para
Viviane.
Viviane – Quero.
Marco se levanta, indo na direção da vitrola.
Marco – Vou colocar a música.
Ele coloca um vinil da música que Tânia havia assobiado antes.
Ele começa dançando com a mãe, ele meio sem saber como fazer, ela
levando ele. A música está num volume tal que o público consegue ouvir
as falas deles.
Enquanto eles dançam, Viviane bebe, virando, as duas taças de vinho e
fala.
Viviane – Eu sei dançar melhor quando estou mais bêbada, porque aí eu me
solto, não fico olhando pros pés, sabe? Não fico me julgando se erro alguma
coisa.
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Marco então dança com Viviane, e agora ele é um exímio dançarino, a
dança deles encaixa perfeitamente.
Maria entra.
Maria – Assim é covardia, pai... Logo essa música?
Marco e Viviane se beijam apaixonadamente. Até que ela se solta dele.
Viviane – Tô muito tonta.
Marco – Tonta?
Viviane – Já volto, acho que vou vomitar.
Marco toma Maria pelos braços e eles dançam também muito
harmoniosamente por um tempo.
Marco – Você sabe que eu te amo, né filha?
Maria – Você é um mala, isso sim, tem que controlar tudo, um pai chato
gigante.
Marco – Sua mãe falava a mesma coisa.
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Eles se soltam, a música segue tocando. Viviane volta.
Maria – Eu preciso ir.
Marco – Os vinis ficam.
Viviane – Desculpa, passei um pouco mal, mas limpei tudo.
Maria – Você me deu eles de presente no ano passado!
Marco (para as duas) – Tudo bem.
Maria sorri e sai para o quarto.
Viviane – Preciso ir pra uma reunião, a Tai vai me matar porque ela vai
perceber que eu tô bêbada.
Marco – Volta pra cá depois?
Viviane – Com certeza, agora esse apartamento é meu!
Tânia - Eu vou tomar um banho e a gente vai dormir, tá bem?
Você dorme no meu quarto hoje, combinado?
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Marco (resposta que serve tanto para Tânia quanto para Viviane) –
Combinado.
Tânia e Viviane sorriem do mesmo jeito, e fazem um gesto parecido, até
que Tânia sai na direção do banheiro.
Tânia (falando de fora da cena) – Esse banheiro tá com um cheiro horroroso!
Marco e Viviane se beijam mais uma vez, um beijo apaixonado.
Viviane – Eu vou deixar a mala aqui, tá bem?
Marco – Tá bem. Vou te levar na porta.
Viviane – Não precisa, a casa é minha, eu comprei, sua memória é tão ruim
assim que você já esqueceu?
Marco sorri. Viviane sai.
Marco (falando alto, para Viviane, que já saiu de cena) – Pode levar essa
chave que tá na porta.
Viviane (de fora de cena) – OK!
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Marco senta-se na poltrona. Depois de um tempo curto, toca um interfone,
Marco levanta-se e está indo para a cozinha para atender. Maria e Tânia
surgem na cena.
Maria – Deixa que eu atendo, pai, acho que é pra mim.
Tânia – Eu atendo, filho.
Marco senta-se novamente. Maria então retorna.
Maria – A Tai chegou, ela tá lá embaixo, tô indo...
Maria vai pegar a mala, a mesma com a qual Viviane havia chegado na
casa.
Marco – Eu nunca devia ter deixado você ter aula com ela.
Maria - Que bobagem, pai, você acha que foi por causa disso?
Marco - Você é uma adolescente.
Maria – Não sou não.
Marco – Mas age como se fosse.
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Maria – Me desculpa, mas parece que você é que nunca saiu da adolescência,
tá sempre achando que o mundo gira em torno de você.
Marco – Me respeita, Maria Isabel.
Maria – Eu te respeito, eu sempre te trato como um igual, você é que não me
respeita, Marco Aurélio.
Marco – Eu sou seu pai.
Maria – Pois devia ter sido meu pai antes, se você fosse um pouco mais
presente, me entenderia melhor.
Clima. Toca o telefone. Toca por três vezes, Maria e Marco estão se
olhando, sem falar nada, até que, finalmente, Maria atende seu celular e
passa a falar no telefone.
Maria (falando no telefone) – Oi, amor.
Tânia volta da porta da casa, está com cara de quem chorou, e,
disfarçando ao máximo, tenta passar direto para o quarto, mas é
interrompida por Marco.
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Marco - O que foi, mãe?
Maria (falando no telefone) – Tá tudo bem.
Tânia - Nada, filho, não foi nada.
Marco - Então por que você tá chorando?
Tânia - Senta aqui comigo um pouco filho.
Ela senta na poltrona e puxa Marco para ele sentar em seu colo.
Marco – Aconteceu alguma coisa com meu pai?
Maria (falando no telefone) – Eu também tô, meu amor.
Tânia – Não, filho, mas, infelizmente, aconteceu com alguns dos nossos
amigos.
Marco – O que?
Tânia – Eles foram presos.
Marco – E cadê meu pai?
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Maria (falando no telefone) – Já tô descendo, vou precisar ficar só mais um
pouquinho aqui, rolou um imprevisto familiar, me espera?
Tânia – Seu pai vai ter que ficar fora por um tempo maior.
Marco – Mais tempo?
Tânia – Mais um pouquinho...
Maria (falando no telefone) – Não vai demorar, prometo.
Marco – Que ódio dele!
Tânia - Meu filho, não fala assim, seu pai te ama muito, você sabe disso, ele
faz tudo o que pode pra ter um mundo melhor pra todo mundo...
Marco – Pra todo mundo, menos pra mim, ele nunca pensa em mim.
Tânia - Claro que pensa, é por você que ele tá fazendo as coisas que ele tá
fazendo, o mundo vai ser melhor pra você também.
Maria (falando no telefone) – Fila dupla não, de jeito nenhum, amor, tem vaga
na rua de trás.
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Marco - Ele não me perguntou o que eu queria. Eu quero ele aqui, ele nunca tá
aqui....
Tânia - Filhote, um dia você vai entender seu pai, eu tenho certeza...
Marco não responde.
Tânia – Escuta, espera um pouquinho aqui, vou pegar um papel e um lápis,
mamãe precisa escrever um bilhete, tem um amigo nosso esperando ali na
porta, ele vai entregar esse bilhete pro seu pai.
Marco – E por que meu pai não vem aqui? Ou então a gente vai onde ele tá e
fala pessoalmente?
Tânia – É perigoso, filho...
Maria (falando no telefone) – Tá bom, beijo.
Maria desliga o telefone.
Marco (fala que serve tanto para Tânia quanto para Maria) – Vai logo de
uma vez...
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Tânia sai para o quarto.
Maria – Não, não, agora a gente vai conversar! Chega de ficar adiando,
fugindo dos assuntos, se escondendo...Onde mesmo que a gente parou a
conversa?
Marco – Você tava me acusando de ser um pai ausente...
Maria – Ai, pai, não começa com esse tom, vai? Eu não quero brigar com você,
não hoje, mas me diz, honestamente, você não foi ausente?
Marco – Você sabe muito bem que, por causa do meu trabalho, eu tive que
abrir mão de...
Maria (cortando) – Eu sei, você tava sempre ocupado salvando o país, as
pessoas, o mundo inteiro, e eu tenho muito orgulho disso, mas você esqueceu
de cuidar da gente, de mim, da minha mãe.
Marco – Você tá mudando de assunto.
Maria – Tá bem, pai, tô sim, claro, porque não é o seu assunto, porque não é o
que você quer, você, você, você...
Marco – O que eu quero são netos.
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Maria – Oi? Como assim? Você tá ouvindo o que você tá falando? Você já
parou pra pensar no que eu quero?
Marco – Você não sabe o que quer, nunca soube...
Tânia (voltando com um papel na mão) – Marquinho...
Maria – Olha, pai, vou ser bem dura com você, mas acho que tá na hora de
você se dar conta de uma coisa.
Tânia – Tá aqui.
Maria – Você posa de esquerdista, de humanista, de compreensivo, mas, no
fundo, no fundo, eu sei bem que seu grande problema comigo é porque você
nunca aceitou que eu sou gay, sempre fui e sempre vou ser. Você nunca foi
capaz de sequer tentar entender...
Tânia – Escrevi o bilhete, você quer mandar um recado pro seu pai?
Tempo.
Tânia - Tenta entender, filho...
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Marco (fala tanto para Tânia quanto pra Maria) – Eu tô tentando, mas não tô
conseguindo...
Maria – Você vai conseguir, mas só se tentar de verdade.
Tânia – Eu sei... Mas mamãe tá aqui.
Marco – Ele não volta mais, né?
Maria – Vai ser bom a gente passar um tempo longe um do outro, você vai ver.
Tânia – Claro que volta, filho.
Marco (fala tanto para Tânia quanto para Maria) – Duvido...
Maria – Pode confiar em mim. Pode confiar.
Tânia – As coisas vão melhorar, confia na sua mãe, tá bem? Amanhã vai ser
outro dia.
Viviane entra.
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Viviane – Oie... Voltei.. Você acredita que eu cheguei lá e a reunião durou
cinco minutos, ainda bem que era super, super perto, eu, sinceramente, fico
impressionada com/
Marco a interrompe com um beijo.
Viviane – Nossa... Uau... Eu... Bom, eu acho que eu ainda tô um pouco
bêbada, preciso ir ao banheiro de novo.
Viviane sai
Marco (para Maria) – Precisava ser tão longe?
Maria – Precisava, pai, é lá o doutorado dela, é lá que tem o curso que eu
quero fazer...
Tânia – Sabe, filho algumas coisas a gente tem que simplesmente aceitar, isso
é uma coisa que aprendi quando você nasceu, e depois convivendo com
você... Nem sempre as coisas são como a gente imagina, as pessoas nem
sempre são como a gente gostaria que elas fossem, mas, mesmo assim, as
coisas e as pessoas são bonitas exatamente como elas são.
Maria – A gente pode se falar por Skype.
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Marco (para Maria) – Eu não queria você tão longe... E pra piorar logo na
Alemanha, que tá com uma seleção perigosa e é uma ameaça pro título do
Brasil.
Maria sorri. Toca o telefone de novo. Maria atende.
Maria (falando no telefone) – Descendo.
Viviane (entrando) - Eu espero que, no futuro, essa coisa que tem em todo
filme, de reunião em vídeo conferência, seja comum, pra gente não precisar se
deslocar, juntar dez pessoas apenas pra falar meia dúzia de frases e resolver
alguma coisa, essa reunião podia ser resolvida até por telefone ou por fax.
Marco – Não sei, não... A impressão que eu tenho é que é sempre bom estar
perto, mesmo quando parece que não...
Viviane – É, pode ser... Vem cá, tem alguma comida nessa casa? Eu tô
faminta.
Marco – Não tem muita coisa...
Tânia – Vamos tentar dormir? Eu vou arrumar nossa cama. Amanhã a gente
pode matar a aula e passear, tomar um sorvete, tá bem?
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Viviane – Eu tenho uma salsicha alemã na minha mala, a gente pode misturar
com o que tem e inventar uma receita, que tal?
Maria – Te mando um zap assim que o avião pousar, tá?
Marco (fala para as três) – Combinado.
Viviane vai até a mala, pega um pacote com as salsichas e depois segue
para a cozinha, nesse meio tempo Tânia dá um beijo na testa de Marco e
vai para o quarto e Maria recolhe os vinis para depois ir pegar a mesma
mala que Viviane acabou de fechar.
Marco – Essa mala é uma lembrança que tenho da sua avó, cuida dela, tá
bem?
Maria – Essa mala era da minha mãe, pai, mas pode deixar que eu vou cuidar
sim.
Marco – Da sua mãe? Bom, não tenho certeza, não lembro bem... Agora é
sua... Por enquanto...
Maria sorri, vai até o pai e o abraça, eles se olham um pouco,
carinhosamente, e então ela sai. Ele senta na cadeira, suspira e fica
olhando para o vazio. A luz vai caindo.
Fim.