ELEGIA RENASCENTISTA: ESTUDO E TRADUÇÃO DAS ELEGIAS … · Alex dos Reis Saraiva CRB-7 / 6462...

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ELEGIA RENASCENTISTA: ESTUDO E TRADUÇÃO DAS ELEGIAS DE JACOPO SANNAZARO CINTHYA SOUSA MACHADO Rio de Janeiro 2017

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  • ELEGIA RENASCENTISTA: ESTUDO E TRADUÇÃO DAS ELEGIAS DE

    JACOPO SANNAZARO

    CINTHYA SOUSA MACHADO

    Rio de Janeiro

    2017

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    ELEGIA RENASCENTISTA: ESTUDO E TRADUÇÃO DAS ELEGIAS DE

    JACOPO SANNAZARO

    CINTHYA SOUSA MACHADO

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação em Letras Clássicas da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro como

    quesito para obtenção do Título de Doutora em

    Letras Clássicas.

    Orientador: Prof. Doutor Anderson de Araújo

    Martins Esteves.

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2017

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    ELEGIA RENASCENTISTA: estudo e tradução das elegias de Jacopo Sannazaro

    Cinthya Sousa Machado

    Orientador: Professor Doutor Anderson de Araújo Martins Esteves

    Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Letras Clássicas. Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Arlete José Mota _________________________________________________ Membro interno 1: Professor Doutor Ricardo de Souza Nogueira _________________________________________________ Membro interno 2: Professora Doutora Fernanda Lemos de Lima _________________________________________________ Membro externo 1: Professor Doutor Francisco de Assis Florêncio _________________________________________________ Membro externo 2: Professor Doutor Luiz Karol _________________________________________________ Membro interno: Professor Doutor Rainer Guggenberger (suplente) _________________________________________________ Membro externo: Professor Doutor Airto Ceolin Montagner (suplente)

    Rio de Janeiro

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    Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário: Alex dos Reis Saraiva CRB-7 / 6462 M149e Machado, Cinthya Sousa

    Elegia renascentista: estudo e tradução das elegias de Jacopo Sannazaro / Cinthya Sousa Machado.- Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2017. 109 p.; 30 cm. Orientador: Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves Tese (Doutorado em Letras Clássicas) UFRJ/FL/ Programa de Pós-graduação

    em Letras Clássicas, Rio de Janeiro, 2017. 1. Poesia neolatina. 2. Elegia. 3. Renascimento. 4. Sannazaro I. Título.

    CDD 871

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    RESUMO

    Elegia renascentista: estudo e tradução das elegias de Jacopo Sannazaro Cinthya Sousa Machado

    Orientador: Professor Doutor Anderson de Araújo Martins Esteves

    Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Clássicas.

    Jacopo Sannazaro nasceu em Nápoles em 1458 e é considerado um dos melhores poetas neolatinos do Renascimento italiano. Em língua latina, compôs obras em diferentes gêneros, entre eles, destaca-se o livro de elegias: Elegiarum Libri tres. Originalmente, usada por poetas gregos para um amplo campo temático, a elegia foi aprimorada na Época de Augusto por Propércio, Tibulo e Ovídio e possui uma temática variada: a amorosa, a patriótica e a do exílio. No Renascimento, houve a revalorização da literatura clássica, logo Sannazaro não só escreveu em latim, mas também se inspirou nos melhores escritores, utilizando o mesmo metro e a mesma temática. Logo, pretende-se, em nossa tese, discorrer sobre o gênero elegíaco desde a Antiguidade, na Grécia e em Roma, até o Renascimento, com o fito de apresentar as influências da literatura clássica na composição das elegias renascentistas, assim como identificar as inovações poéticas feitas por Sannazaro. A obra Elegiarum Libri tres é composta por três volumes, contudo julgou-se ser mais coerente estabelecer como corpus as elegias consoante suas temáticas, dessa forma, foram escolhidas: 1, 3 (Ad amicam), de caráter amoroso; 1, 6 (In funere Sarri Bracantii Lucretia uxor), de caráter fúnebre; 1,9 (Ioviani Pontani de studiis suis et libris) de crítica literária; 1,10 (Ad Ioannem Sangrium Patricium Neapolitanum, de suo immaturo obitu) sobre o exílio; 2,1 (Ad Alfonsum Ferdinandi filium Aragonium Siciliae regem), panegírico; 2,2 (In festo die divi Nazarii martyris qui poetae natalis est), genethliacon; 2,7 (Ad Iunianum Maium praeceptorem), contra o amor; 3,3 (Deos nemorum invocat in extruenda domo) de temática intimista.

    Palavras-chave: elegia; Sannazaro; poesia neolatina; Renascimento; intertextualidade.

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    ABSTRACT

    On Renaissance elegy: an inquiry into and translation of Jacopo Sannazaro’s elegies Cinthya Sousa Machado

    Orientador: Professor Doutor Anderson de Araújo Martins Esteves

    Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Clássicas. Born in Naples in 1458, Jacopo Sannazaro is held to be one of the best neolatin poets of the Italian Renaissance. In Latin, he composed pieces in different genres, among them his book of elegies – Elegiarum Libri tres –, stands out. Originally used by Greek lyric poets for a wide range of subject matter, the elegiac genre was enhanced in the Age of Augustus by the Roman poets Propertius, Tibullus and Ovid. As a poetic vehicle for conveying strong emotions, the genre covers a variety of themes: erotic elegies celebrate love; patriotic elegies manifest loyalty to the sovereign; and the mournful ones mostly grieve for life in exile. During Renaissance, a revalorization of classical literature happened For that reason, Sannazaro not only wrote in Latin, but was also inspired by the best classical poets, having used the same meter and dealt with the same themes. Our dissertation aims at discussing the development of the elegiac genre from Antiquity, in Greece and Rome, until the Italian Renaissance, in order to unveil the influence of classical literature on the composition of Renaissance elegies, as well as to identify poetic innovations made by Sannazaro. The work Elegiarum Libri tres is composed of three volumes; however, we regarded as being more coherent to compile the corpus of our study with elegies according to their themes. Thus, the following poems have been chosen for analysis and translation: 1, 3 (Ad amicam), as an elegy about love; 1, 6 (In funere Sarri Bracantii Lucretia uxor), funeral poem; 1,9 (Ioviani Pontani de studiis suis et libris) as an elegy which deals with literary criticism; 1,10 (Ad Ioannem Sangrium Patricium Neapolitanum, de suo immaturo obitu) about exile; 2,1 (Ad Alfonsum Ferdinandi filium Aragonium Siciliae regem), as an elegy with a panegyric characteristic; 2,2 (In festo die divi Nazarii martyris qui poetae natalis est), as a birthday poem; 2,7 (Ad Iunianum Maium praeceptorem), as two elegies against love; and 3,3 (Deos nemorum invocat in extrude dome) as an elegy with an intimate theme. Keywords: Elegy; Sannazaro; neolatin poetry; Renaissance; intertextuality.

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    ZUSAMMENFASSUNG

    Zur Elegie der Renaissance: Analyse und Übersetzung der Elegien von Jacopo Sannazaro

    Cinthya Sousa Machado

    Orientador: Professor Doutor Anderson de Araújo Martins Esteves Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Clássicas. Jacopo Sannzaro ist 1458 in Neapel geboren und wird als einer der besten neulateinischen Dichter der italienischen Renaissance angesehen. Auf Latein verfasste er Werke in verschiedenen Textsorten; unter ihnen ragt hervor sein Buch der Elegien – Elegiarum Libri tres. Urspünglich von griechischen Dichtern für ein weites thematisches Feld benutzt, wurde die Textsorte Elegie in der Epoche des Kaisers Augustus von Properz, Tibull und Ovid zu noch grösserer Wirkung gebracht. Als poetisches Mittel zum Ausdruck intensiver Gefühle, behandelt die Textsorte vielfältige Themen: Liebe, Patriotismus und Leben im Exil. Während der Renaissance vollzog sich eine positive Neubewertung der klassischen Literatur. Deshalb hat Sannazaro nicht nur in lateinischer Sprache geschrieben, sondern hat sich auch von den besten klassischen Dichtern inspirieren lassen, derartig dass er dasselbe Versmass benutze und dieselben Themen behandelte. Die vorliegende Dissertation beabsichtigt die Entwicklung der Textsorte Elegie von der Antike, in Griechenland und Rom, bis zur Renaissance darzustellen, in der Absicht sowohl die Einflüsse der klassischen Literatur auf die Dichtung der Renaissance-Elegien aufzuzeigen, als auch die von Sannazaro hervorgebrachten poetischen Neuerungen zu identifizieren. Wie der Name schon sagt, besteht das Werk Elegiarum Libri tres aus drei Büchern; wir sahen es jedoch als kohärenter an, die Elegien unseres Korpus nach ihren Themen zu ordnen. Dementsprechend haben wir folgende Gedichte für die Analyse und Übersetzung ausgewählt: 1, 3 (Ad amicam), als eine erotische Elegie; 1, 6 (In funere Sarri Bracantii Lucretia uxor) Trauergedicht ;1,9 (Ioviani Pontani de studiis suis et libris) als eine Elegie die Literaturkritik behandelt; 1,10 (Ad Ioannem Sangrium Patricium Neapolitanum, de suo immaturo obitu) über das Exil 2,1 (Ad Alfonsum Ferdinandi filium Aragonium Siciliae regem), als panegyrische Elegie; 2,2 (In festo die divi Nazarii martyris qui poetae natalis est), als ein Geburtstagsgedicht; 2,7 (Ad Iunianum Maium praeceptorem), als Elegien gegen die Liebe; 3,3 (Deos nemorum invocat in extruenda domo) als Elegie mit einem intimistischen Thema. Schlüsselwörter: Elegie; Sannazaro; neulateinische Dichtung; Renaissance; Intertextualität.

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    AGRADECIMENTOS A meu orientador, Anderson Martins, pelo carinho e confiança nesse desafio; A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas; À CAPES, pela bolsa concedida durante minha pesquisa; Ao meu grande amigo e professor Hans Peter Wieser, pela fundamental auxílio bibliográfico; A Josef Stemp, funcionário da Biblioteca Estadual da Baviera, da Universidade Ludwig-Maximilian, pela ajuda imprescindível a raro acervo bibliográfico; Aos meus colegas helenistas Wladimir Lamenha e Alexandre Rosa pela amizade e apoio; Ao meu colega latinista Fábio Frohwein com quem tive o prazer de conviver em minha jornada acadêmica; A meu esposo, Alex, por seu amor incondicional; Às minhas irmãs Janaynna, Nayara e Cybelle; À minha mãe, Cleuda, a quem sempre pretendo orgulhar.

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    À minha amada avó (in memoriam), Gizelda,

    mulher negra e forte, cuja profissão sigo.

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    Mega biblion mega kakon.

    Calímaco

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .......................................................................................................

    1. SANNAZARO E SEU TEMPO ..............................................................................

    1.1 Giovanni Pontano ..............................................................................................

    1.2 Dinastia Aragonesa em Nápoles .......................................................................

    2. DA ELEGIA .............................................................................................................

    2.1 Na Grécia ............................................................................................................

    2.2 Em Roma ............................................................................................................

    2.2.1 Código elegíaco amoroso ................................................................................

    2.3 Elegia grega versus elegia romana ...................................................................

    2.4 No Renascimento .................................................................................................

    3. CORPVS METRIFICADO E TRADUÇÃO............................................................

    3.1. 1 I, 3 Ad amicam .................................................................................................

    3.1.2 À amiga .............................................................................................................

    3.2.1 I, VI In funere Sarri Bracantii Lucretia uxor. ...................................................

    3.2 Lucrécia, a esposa de Sarro Bracancio, em seu funeral........................................

    3. 3.1 I, IX Ioviani Pontano de studiis suis et libris ...................................................

    3.3.2 Sobre os livros de Giovanni Pontano e seus estudos .......................................

    3.4.1 Ad Ioannem Sangrium Patricium Neapolitanum, de suo immaturo obitu .......

    3.4.2 A João Sangrio, patrício napolitano, sobre sua morte precoce..........................

    3.5.1 II, I Ad Alfonsum Ferdinandi filium Aragonium Siciliae Regem.....................

    3.5.2 Ao rei da Sicília, Alfonso de Aragão, filho de Fernando..................................

    3.6.1 II, 2 In festo die divi Nazarii martyris, qui poetae natalis est.............................

    3.6.2 No dia festivo de São Nazário, mártir, que é o dia do nascimento do poeta...

    3.7.1 II, 7 Ad Iunianum Maium praeceptorem............................................................

    3.7.2 A Giuniano Maio, meu preceptor.......................................................................

    3.8.1. III, 3 Deos nemorum invocat in extruenda domo ............................................

    3.8.2. Invoca os deuses dos bosques na casa que deve ser erguida............................

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    4. ELEGIA SANNAZARIANA ...............................................................................

    4.1 Elegia I,3 ..........................................................................................................

    4.2 Elegia I, 6 ........................................................................................................

    4.3 Elegia I,9 ..........................................................................................................

    4.4. Elegia I, 10 ......................................................................................................

    4.5 Elegia II,1 ........................................................................................................

    4.6 Elegia II,2 ........................................................................................................

    4.7 Elegia II,7 ........................................................................................................

    4.8 Elegia III,3 ......................................................................................................

    5. CONCLUSÃO .....................................................................................................

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................

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    INTRODUÇÃO

    A presente pesquisa visa à tradução e ao estudo de parte das elegias contidas nas

    Elegiarum libri tres de Jacopo Sannazaro, escrito entre o final do século XV e início do século

    XVI, assim como discorrer sobre o cultivamento do gênero elegíaco no período renascentista

    a partir dessa obra.

    O Humanismo foi um movimento intelectual renascentista em que os valores éticos e

    estéticos estavam centrados no homem e na sua condição terrena. Uma de suas principais

    características eram as alusões aos clássicos e a preferência pela composição de textos escritos

    em latim clássico.

    Jacopo Sannazaro foi um escritor italiano representativo do Humanismo com a obra

    Arcádia, em que cada uma de suas doze éclogas são precedidas de prosas. Livro

    autobiográfico, escrito em italiano, sua importância deve-se às reminiscências clássicas, em

    que o poeta por causa de uma desilusão amorosa resolve deixar Nápoles, sua cidade natal, e ir

    a um lugar afastado da realidade, a Arcádia, uma região de bosques, pastores e onde o poeta

    encontraria a paz. A Arcárdia do napolitano faz referências ao mundo virgiliano nas Bucólicas

    e nos livros VI e VII da Eneida. A composição literária sannazariana também é rica em textos

    escritos em latim, em que se destacam além dos três livros de elegias, epigramas, cinco

    éclogas e o poema religioso-mitológico De partu Virginis.

    O primeiro contato com o escritor napolitano surgiu com a leitura do artigo de Maria

    Helena da Rocha Pereira, Alguns aspectos do classicismo de António Ferreira, em que a

    autora faz algumas referências às obras de Sannazaro, a Arcádia, o livro de elegias, de

    epigramas e de éclogas, e cita suas influências clássicas, Virgílio e Teócrito. A partir desta

    leitura, surgiu o interesse em perscrutar sua obra latina.

    Partindo do fato de que há poucos estudos críticos sobre a obra latina de Sannazaro,

    pretende-se fazer uma investigação sobre as fontes clássicas, gregas e romanas, utilizadas em

    sua composição elegíaca. A elegia surgiu na Grécia, com temática variada: de caráter político

    e militar, filosófico-moral, patrióticos e de dor; e, em Roma, foi aprimorada, sendo cultivada

    pelos poetas Galo, Tibulo e Propércio, que elegeram a temática amorosa, e Ovídio, que, além

    do amor, expressou a dor do exílio. Devido à pluralidade do gênero da elegia no mundo

    clássico, o estudo de algumas das elegias de Sannazaro tem como objetivo principal

    identificar quais elementos elegíacos foram expressos durante o movimento humanístico.

    Nosso ímpeto era a tradução completa do livro de elegias, contudo devido à sua

    extensão, que totaliza 1504 versos, decidiu-se fazer um recorte. O livro I é composto por onze

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    elegias com o total de 616 versos, o livro II por dez elegias com 536 versos e o livro III por

    somente três elegias com 352 versos. Nossa escolha, obviamente, não se restringiu ao número

    de versos. Após uma breve leitura, optou-se fazer a seleção das elegias de acordo com suas

    temáticas. Dessa forma, selecionamos oito elegias, do Livro I: 3 (ad amicam), de caráter

    amoroso; 6 (In funere Sarri Bracantii Lucretia uxor), de caráter fúnebre; 9 (sobre Pontano), de

    caráter biográfico sobre o maior latinista do Quattrocento; e 10 (Ad Ioannem Sangrium

    Patricium Neapolitanum, de suo immaturo obitu) escrita durante seu exílio. Do Livro II: 1 (

    sobre o rei Alfonso), panegírico, de sentimento patriótico; 2 (sobre seu aniversário), de

    sentimente alegre; 7 (para Maio, seu preceptor), sobre o sofrimento amoroso; do Livro III: 3,

    sobre a fides do poeta para com os reis depostos e a volta do exílio. Ao todo, foram traduzidos

    508 versos.

    Nossa tese está estruturada da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentamos

    parte da biografia de Sannazaro, assim como uma breve exposição sobre Giovanni Pontano e

    sobre a dinastia Aragonesa em Nápoles, já que são os protagonistas em algumas das elegias de

    nosso corpus. No segundo capítulo, discorre-se sobre o gênero elegíaco, desde seu nascimento

    na Grécia, com os principais autores e temática, até seu apogeu na Roma do período clássico.

    Apresentamos, também, o código elegíaco amoroso estabelecido pelos romanos. Traçamos

    uma comparação entre a elegia grega e romana, a fim de diferenciá-las. Por fim, delimitamos

    as temáticas estabelecidas no Renascimento através de vários fragmentos – boa parte sem

    tradução ao vernáculo- dos autores mais representativos da época, são eles: Giovanni Pontano,

    Janus Secundus, Petrus Lotichius, Joachim du Bellay, Francisco Faragonius e Joan Baptista

    Anyés; totalizando cinquenta e dois versos. É preciso fazer uma ressalva à dificuldade de

    acesso ao corpus neolatino, boa parte das obras desse período é de difícil acesso, não obstante,

    buscamos apresentar uma variada gama de autores e de temática. No terceiro capítulo,

    apresentamos o corpus latino e sua respectiva tradução, julgamos ainda metrificar todo o

    corpus, uma vez que o gênero a pressupõe, e foram feitos alguns comentários que avaliamos

    necessários, sobretudo no que diz respeito à interpretação. No capítulo derradeiro, analisamos

    a obra e discorremos sobre a intertextualidade e a originalidade de Sannazaro na composição

    de suas elegias do período renascentista.

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    1. SANNAZARO E SEU TEMPO

    Sannazaro è uno di quelli, nei quali l’uomo è più grande del poeta.

    Jacopo Sannazaro nasceu em Nápoles, Itália, no dia 28 de julho, dia de São Nazaro,

    no século XV. O ano de seu nascimento não é unânime entre seus estudiosos: Putnam (2009),

    Tallarigo (1871) e Colangelo (1819) afirmam ter sido em 1458 –pesquisadores que seguimos-

    embora Carvalheiro (2009) e Petronio (1990) acreditam ter sido antes em 1455 ou 1456.1

    Todos concordam, porém, quanto à data do falecimento, em 1530.

    Com a morte precoce do pai, em 1462, sua mãe Masella2 decidiu mudar-se, levando

    consigo os dois filhos, para Salerno, sua terra natal. Contudo, preocupada com a educação

    deles, retornou a Nápoles em 1475 e Sannazaro pôde estudar gramática, retórica, línguas e

    literaturas grega e romana, tendo como preceptores Lúcio Crasso3 e Giuniano Maio4. De

    família nobre, Sannazaro gozou do convívio da corte aragonesa e tornou-se amigo dos

    príncipes Alfonso5 e Federico6. A amizade com a família real foi tão estreita que Federico,

    quando se tornou rei, o presenteou com uma propriedade em Mergellina, perto de Nápoles, em

    1499. Como prova de sua fidelidade, Sannazaro o acompanhou ao exílio na França, no ano de

    1501, tendo retornado à cidade natal em 1504 com o falecimento do rei.

    O talento poético de Sannazaro foi reconhecido precocemente e, por volta dos vinte

    anos, foi convidado por Giovanni Pontano a entrar na Academia Pontaniana7. Importante

    círculo literário de Nápoles, a Academia foi fundada por Alfonso, o magnânimo, em 1443,

    seus membros adotavam nomes romanos ou latinizavam os seus. Dessa forma, Sannazaro

    assumiu o nome acadêmico de Actius Sincerus8. Consoante Battaglia apud Carvalheiro (2009,

    p. 16): “Syncerus traduz Nazzaro, palavra hebraica que significa puro”. É importante notar

    que o próprio Sannazaro se refere a si mesmo como Sincerus na Arcádia, sua obra mais

    famosa. Também se denomina, em algumas passagens do livro de elegias, por Actius. Quanto

    ao primeiro nome Actius, há de se destacar o que afirma Riccucci:

    1 Apesar de ser Adolf Gaspary (1891) nosso principal manual de literatura italiana, há evidentemente um erro de datilografia quanto ao ano de nascimento de Sannazaro, pois aparece 1428, em vez de 1458 (p. 297). 2 A qual Sannazaro chamava de Massilia, latinizando o nome. 3 A quem dedica a primeira de suas elegias. 4 A elegia a ele dedicada faz parte de nosso corpus. 5 Optou-se por manter Alfonso em vez de Afonso, seguindo John Hale, 1981. 6 Há, em edições, as grafias Federigo e Frederico. 7 Também chamada de Porticus Antoniana. 8 Há uma divergência na escrita: Petronio (1990) e Carvalheiro (2009) usam Syncerus e Putnam (2009) e Gaspary (1891), Sincerus – grafia a qual seguimos.

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    In greco il termine ἀϰτή, presente per esempio in Omero, significa “costa, spiaggia, riva del mare”. Il corrispondente latino è il sostantivo femminile acta, attestato, per esempio, in Cicerone e in Valerio Flacco. (...) sostantivo latino acta a far risaltare l’amore che Jacopo Sannazaro portò al mondo marino partenopeo cui sempre rese omaggio nei suoi versi, sia in latino sia in volgare9. (2000, p. 247/248)

    Também não se pode esquecer o diálogo de Pontano intitulado Actius, escrito para

    homenagear seu pupilo, Sannazaro. Essa obra revela as habilidades literárias do napolitano,

    consoante Matteo Soranzo: The subtext of Sannazaro’s self-portrait as a member of Pontano’s circle and as an interpreter of an ominous dream is Giovanni Pontano’s dialogue Actius. Pontano wrote this dialogue after 1495 and before the summer of 1501, although he was still revising and editing it in June 1499. Composed after Giuniano Maio’s death, then, this dialogue is also Pontano’s tribute to his new pupil, whose poetic skill and literary taste are used to represent the ideology of his intellectual community in the dramatic form of a dialogue10. (2009, p. 61)

    Após a morte de Pontano e com o exílio voluntário de Sannazaro, Pedro Summonte

    tornou-se o presidente da Academia. Ambos dedicaram-se a edição das obras de Pontano, o

    que fez com que Sannazaro relegasse a edição de suas próprias obras. Em 1525, presidiu a

    Academia, com o falecimento de Summonte.

    A Arcádia, publicada em 1504 (MARNOTO, 1996) por Pedro Summonte, é a sua

    obra mais importante e mais lida, tendo tido somente no séc. XVI cinquenta e nove edições.

    Romance pastoril, escrita em italiano vulgar, o jovem Sincero (nome acadêmico de

    Sannazaro) tem sua vida narrada. Após sofrer uma desilusão amorosa, resolve sair de Nápoles

    e partir para Arcádia, lugar tranquilo e idealizado, em que pode apreciar a vida de forma

    simples, junto aos pastores. A importância dessa obra deve-se ao fato de representar o espírito

    do humanismo renascentista, nas palavras de Afonso Franco: Uma volta ao mundo clássico antigo, pré-medieval. Sannazaro substitui o sobrenatural pelo natural. O seu mito é o mito grego da idade de ouro. A felicidade humana não está mais no outro mundo, mas neste mundo. A terra substitui o céu. A

    9 As traduções doravante feitas, sem referências, devem ser interpretadas como nossas. “Em grego o termo ἀϰτή, presente por exemplo em Homero, significa “ costa, praia, beira do mar”. O correspondente latino é o substantivo feminino acta, atestado, por exemplo, em Cícero e em Valério Flaco. (...) o substantivo latino acta a fazer ressaltar o amor que Jacopo Sannazaro levou ao mundo marino partenopeu à qual sempre permaneceu uma homenagem em seus versos, seja em latim, seja em vulgar.” 10 “O subtexto do autorretrato de Sannazaro como membro da Academia de Pontano e como um intérprete de um sonho grandioso é o diálogo de Pontano Actius. Pontano escreveu este diálogo depois de 1495 e antes do verão de 1501, apesar de ainda esta revisando e editando em junho de 1499. Composto depois da morte de Giuniano Maio, então este diálogo é também um tributo de Pontano ao seu novo pupilo, de quem a habilidade poética e gosto literário são usados para representar a ideologia de sua comunidade intelectual na dramática forma do diálogo.”

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    vida presente substitui a vida eterna. Viver segundo a natureza. Voltar à natureza. O novo paraíso na terra é a Arcádia, a felicidade no campo. Uma vida feliz na ida à natureza idealizada. Trata-se de um ideal idílico, um pastoralismo, um bucolismo (1978, p.30).

    Sannazaro sobressaiu-se tanto escrevendo em latim quanto em italiano vulgar. Das

    obras em latim, chegaram-nos: os 152 epigramas, bastante agressivos; as 24 elegias; as

    éclogas, em que substituiu os pastores da tradição clássica por pescadores napolitanos; e a

    epopeia religiosa, De partu Virginis, publicada em 1526 e dedicada ao pontífice máximo

    Clemente VII.

    Elegiarum libri tres é uma obra de Jacopo Sannazaro, escrita em dísticos elegíacos,

    foi editada e publicada postumamente no ano de 1535 pelo amigo Antônio Garlon11. A obra

    está dividida em três volumes e possui uma temática variada: o poeta canta o amor a

    Cassandra Marchese; fez elegias para homenagear reis; aos deuses; em comemoração a

    aniversários; elegias de crítica literária; e aos amigos. Percebe-se uma gradação na

    composição desta obra, uma vez que o livro I é composto por onze elegias com o total de 616

    versos, o livro II por dez elegias, com 536 versos e o livro III por somente três elegias, com

    352 versos. Vale destacar que a maioria das elegias, nos dois primeiros livros, é curta,

    excetuando a elegia I do Livro II ao rei Alfonso12, com 118 versos e a elegia IX, do Livro I ao

    mentor Giovanni Pontano, com 106 versos. Isso nos sugere um grande apreço do napolitano

    aos dois homenageados. Cumpre observar o que Adolf Gaspary diz sobre a nona elegia: “le

    poesie latine del Sannazaro sono ricche di eleganti rappresentazioni della natura idilica e di

    calde manifestazioni di una sincera amicizia, come specialmente la nona elegia del primo

    libro, che celebra il Pontano ed enumera gli svariati suoi scritti13”(1871, p. 303).

    1.1 Giovanni Pontano

    O poema IX do Livro I é dedicado ao amigo e mentor Giovanni Gioviano Pontano,

    presidente do círculo literário napoletano. Nasceu em Cereto, na Úmbria em 7 de maio de

    1426, de acordo com Gaspary (1891) e Colangelo (1819), e viveu até sua morte em Nápoles.

    11 A quem dedicou a elegia IV do Livro I. 12 Rei Alfonso II de Nápoles. 13 “As poesias latinas de Sannazaro são ricas de elegantes representações da natureza idílica e de calorosas manifestações de uma sincera amizade, como especialmente a nona elegia do livro dois, que celebra a Pontano e enumera seus variados escritos.”

  • 18

    Serviu aos reis Aragoneses de Nápoles, tendo sido conselheiro do rei Ferdinando I14

    durante a guerra de 1458 a 1464 contra a família Anjou e preceptor do príncipe Alfonso15,

    duque da Calábria, a quem acompanhou na expedição contra os turcos em Otranto em 1481.

    Teve intensa atividade política e tornou-se secretário real em 1487. Entretanto, perdeu o

    prestígio político quando Ferdinando I recuperou o trono de Nápoles, tomado por Carlos

    VIII16, uma vez que Pontano prestou juramento ao rei inimigo.

    Foi um grande humanista de sua época e seu prestígio culminou na presidência da

    Academia alfonsina, que logo passou a ser chamada de Academia Pontaniana. Sua

    composição literária neolatina é vasta, tendo escrito tanto em verso quanto em prosa. É válido

    o que Petronio afirma sobre Pontano: evidenció amplia cultura, viva inteligencia, aguda sensiblidad, amor y gusto por el verso elegantemente elaborado y capacidad para emplear el latín como lengua viva en la que se podían plasmar todas as formas y sentimientos de la vida moderna17. (1990, p. 186)

    Suas obras mais importantes são os tratados De prudentia e De fortuna, nos quais

    apresenta a problemática do homem humanista entre virtude e fortuna; os tratados Charon,

    Antonius, Asinus, Actius e Aegidius, que são “muy ricos en noticias sobre la cultura y la vida

    napolitana, en disquisiciones literarias, análisis variados, discusiones de retórica, ágiles y

    vivos esbozos, en un estilo suelto y personal18” (PETRONIO, 1990, p. 186); o poema

    astronômico Urania, a obra mais extensa com cincos livros e que contém as passagens de

    maior êxito; e o livro De tumulis, poema sentimental sobre sua vida, a afeição pela esposa

    Adriana Sassone e sua morte, assim como a morte precoce do filho. É considerado por alguns

    críticos como maior humanista em língua latina no Quattrocento, tendo falecido no outono de

    1503.

    1.2. Dinastia Aragonesa em Nápoles

    14 Também conhecido como Ferrante. 15 Rei Alfonso II de Nápoles. 16 Rei da França. 17 “Evidenciou ampla cultura, viva inteligência, aguda sensibilidade, amor e gosto pelo verso elegantemente elaborado e capacidade para empregar o latim como língua viva na qual se podiam moldar todas as formas e sentimentos da vida moderna.” 18 “Muitos ricos em notícias sobre a cultura e a vida napoletana, em disquições literárias, análises variadas, discussões de retórica e ágeis e vivos esboços, no estilo solto e pessoal”.

  • 19

    Alfonso, o magnânimo, anexou Nápoles ao reino da Sicília em fevereiro de 1443,

    depois de anos de luta contra os franceses, a família de Anjou. Embora tenha sido impopular,

    durante algum tempo, junto aos napoletanos pelos altos impostos, transformou Nápoles em

    um grande centro cultural e intelectual devido às medidas que favoreciam e fortaleciam os

    estudos públicos, como a fundação de nova universidade e de escolas de grego, além do

    círculo literário, como já citado.

    Ao morrer em 1458, dividiu seu reino: Napóles coube ao seu filho bastardo

    Ferdinando I e o restante de seu império para seu irmão João. O novo rei continuou a travar

    guerras contra os franceses, que eram apoiados pelos baroni, a aristocracia feudal de Nápoles.

    Essa longa guerra civil, iniciada em 1458, culminou em uma terrível vingança do rei, que

    convidou os barões para um encontro e os matou à traição no Castelnuovo em 1485.

    Com a morte de Ferdinando I em 1495, começam novamente as guerras pelo trono.

    Alfonso II, seu filho, assume o trono, mas Carlos VIII, rei da França, invade Nápoles, a fim de

    tomar o poder. Alfonso, extremamente impopular, abdica do trono a favor de seu filho

    Ferdinando II19, em uma tentativa frustrada de manter a dinastia Aragonesa no trono. Pouco

    durou a dominação francesa, pois, com a ajuda de Fernando II de Aragão20, rei da Sicília e

    primo de Ferdinando II, a dinastia Aragonesa foi restabelecida. Entretanto, o rei de Nápoles

    falece em 1496, e seu tio Federico de Aragão o sucede. Seu reinado durou pouco tempo, pois

    uma expedição francoespanhola reconquistou Nápoles e Federico teve que se retirar ao exílio

    na França em 1501.

    19 Também chamado de Ferrandino ou Ferrantino. 20 Conhecido como rei católico.

  • 20

    GENEALOGIA

    ALFONSO, O MAGNÂNIMO: REI DE ARAGÃO EM 1416 – 1458 REI DA SICÍLIA EM 1420 - 1458 REI DE NÁPOLES EM 1443 – 1458

    ↓ (filho)

    FERRANTE OU FERDINANDO I: REI DE NÁPOLES 1458-1494

    ↓ (filhos)

    ALFONSO II: REINADO 1494-1495 FEDERICO I: REINADO 1496 A 1501 ↓ (filho) ↓(filho) FERDINANDO II: REINADO 1495 – 1496

    FERDINANDO III: DUQUE DA

    CALÁBRIA EM 1496

  • 21

    2. DA ELEGIA

    Neste capítulo, apresentamos o gênero elegíaco, desde seu nascimento na Grécia

    antiga, os precursores em Roma, Galo e Catulo; e seu desenvolvimento com a tríade de

    poetas: Tibulo, Propércio e Ovídio. Discorremos, também, sobre sua recepção na época do

    Renascimento na Europa, trazendo fragmentos de alguns dos principais elegíacos dessa época.

    Na Antiguidade clássica, o termo elegia sempre esteve relacionado a um tom de

    lamento. Em Eurípides, élegos possui um sentido fúnebre (ALBIN, 1976), por isso, acredita-

    se que desde sua origem esse gênero era próprio para ser utilizado para se falar do sofrimento

    humano, que poderia ser o amoroso, o fúnebre, as reflexões das incertezas da vida etc.

    O gênero elegíaco caracteriza-se, sobretudo, pela métrica: era escrito

    obrigatoriamente em dísticos elegíacos que correspondem a um hexâmetro e a um pentâmetro

    datílicos. Cumpre observar também que além da métrica, nessa pequena estrofe, deveria haver

    uma unidade sintática e semântica.

    O verso hexâmetro, herdado do gênero épico, possui seis pés, em que os quatro

    primeiros podem ser dátilos21 ou espondeus,22 o quinto pé tem de ser um dátilo – daí o nome

    hexamêtro datílico – e o sexto pé pode ser um espondeu ou troqueu23. O verso pentâmetro

    possui cinco pés, constituído de dois hemistíquios incompletos, ou seja, de dois pés e meio

    cada. No primeiro hemistíquio, os dois pés podem ser dátilos ou espondeus e o meio pé é

    sempre longo. No segundo hemistíquio, deve haver obrigatoriamente dois pés dátilos e o meio

    pé pode ser de sílaba longa ou breve. É válido o que afirma Pierre Grimal, sobre o pentâmetro:

    “il est certain que le distique, avec son pentamètre formé en réalité de deux tripodies

    dactyliques catalectiques juxtaposées, venant après l’ampleur d’un hexamètre dactylique

    régulier24” (1978, p. 117). Dessa forma, a estrofe elegíaca apresenta o seguinte esquema:

    Hexâmetro:

    ¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │¯ ͝

    ou

    ¯ ¯ │ ¯ ¯ │ ¯ ¯ │ ¯ ¯ │¯ ͝ ͝ │ ¯ ¯

    21 Dátilo corresponde a uma sílaba longa, seguida de duas breves, no esquema: ¯ ͝ ͝ . 22 O espondeu corresponde a duas sílabas longas : ¯ ¯. 23 Troqueu corresponde a uma sílaba longa e outra breve: ¯ ͝ . 24 “É certo que o dístico, com seu pentâmetro formado na realidade de dois meio-hexâmetros datílicos catalépticos justapostos, vindo após o amplo hexâmetro datílico regular”.

  • 22

    Pentâmetro:

    ¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │ ¯ │ ¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │ ¯

    ou

    ¯ ¯ │ ¯ ¯ │ ¯ │ ¯ ͝ ͝ │ ¯ ͝ ͝ │ ͝

    Exemplos:

    Dónèc è│rís fé │líx, múl│tós nùmè│ rábìs à│mícós; 1 2 3 4 5 6

    Témpòrà│sí fùè│rínt │núbìlà,│sólùs è│rís25 (grifo do autor)

    1 2 1/2 1 2 1/2

    ταῦτα μαθὼν ἀγαθοῖσιν ὁμίλει, καὶ πότε ϕήεις

    ̄ ˘ ˘ ̄ ˘ ˘ ̄ ˘ ˘ ̄ ̄ ̄ ˘ ˘ ̄ ̄

    εὖ συμβουλεύειν τοῖσι ϕίλοισιν ἐμέ

    ̄ ̄ ̄ ̄ ̄ │ ̄ ˘ ˘ ̄ ˘ ˘ ˘ 26

    A relação da épica com a elegia fica evidente em Ovídio, na elegia I, 1 dos Amores.

    O eu-elegíaco que compunha versos épicos percebe seus versos serem subtraídos pelo deus

    Amor em hexâmetros alternados. Assim, o eu-poético vê-se obrigado a compor dísticos

    elegíacos.

    No tocante à temática da elegia, há em Roma uma delimitação bem clara. Por isso, a

    elegia romana pode ser subdivida, consoante António Ezquerra, “desde el punto de vista

    temático - en elegía erótica, elegía patrótica, elegía fúnebre o elegía de exilio27” (2007, p.194).

    2.1 Na Grécia

    A partir do século VII a. C., a elegia foi cultivada por um número variado de poetas

    na Grécia. Nesse período, a chamada elegia grega arcaica tem como seu fundador Calino de

    Éfeso, embora sejam de Arquíloco as mais antigas composições poéticas subsistentes em

    25 Exemplo retirado de Johnny Mafra, 2010. 26 Exemplo e métrica retirados de Glória Onelley, 2009. 27 “Desde o ponto de vista temátiico – em elegia erótica, elegia patriótica, elegia fúnebre ou do exílio”.

  • 23

    dísticos elegíacos. Albin Lesky (1976, p. 143) justifica essa cronologia, por ser aquele mais

    velho e por apresentar recursos típicos à elegia.

    Faz-se importante destacar o quadro cronológico dos elegíacos gregos da época

    arcaica, quanto a sua sucessão: Calino de Éfeso (660 a.C.); Arquíloco de Paros (650 a.C.);

    Tirteu (640 a.C.); Simônides (630 a.C); Mimnermo de Colofônio (630 a.C.); Sólon (600 a.C);

    Hiponax (540 a.C.); Xenófanes (530 a. C.) e Teógnis de Mégara (500 a.C).28

    Nesse primeiro momento da elegia grega, os temas são diversos e podemos destacar: o canto de exortação militar e patriótica, dirigido à colectividade dos cidadãos, como também a reflexão sobre temas pessoais, morais e existencias, normalmente levada a cabo num amiente de simpósio. Exprimem-se por essa via ora preocupações de carácter cívico e político, ora reflexões acerca da via (sic) e do amor. O seu carácter é frequentemente sentencioso (“gnómico”). (CITRONI, 2006, p. 552).

    A obra poética de Calino perdeu-se quase por completo, tendo chegado aos tempos

    atuais somente vinte versos, considerados substanciais. No pequeno fragmento a seguir, pode-

    se perceber a temática de exortação militar, assim como a influência de Homero, ao ressaltar o

    ambiente bélico. Eis os versos iniciais: Até quando ficais acomodados? Quando tereis valente ânimo, jovens? Não tendes vergonha de seus convizinhos, assim folgados em excesso? Em paz pareceis vos assentar, mas a guerra ocupa toda a terra. (BRUNHARA, 2012, p.26)29

    Cabe notar que Calino nos apresenta uma linguagem relativamente simples, apesar

    do uso de figuras de estilo. Ressalte-se aqui a importância do verbo inicial. Em uma primeira

    tradução, Rafael Brunhara, em 2008, traduz “Até quando jazeis inertes?”, em tradução de

    2012, a expressão “jazeis inertes” foi substituída por “ficais acomodados”. Essa alteração do

    verbo é importante, uma vez que afirma que “seu sentido primeiro denota simplesmente o ato

    de acomodar ou reclinar-se, que é o mesmo verbo empregado para designar a postura dos

    convivas no simpósio” (2012. p 26-7). Assim, nesse fragmento percebe-se que o ambiente

    simpótico30 era um dos locais próprios à prática da elegia.

    Arquíloco compôs sátiras, epodos, elegias. Embora seja considerado um dos

    fundadores do gênero elegíaco, juntamente com Calino e Tirteu, é mais famoso pelas suas

    invectivas. No tocante à elegia, apesar da influência homérica, faz constante oposição à épica,

    28 Cronologia retirada de Elina Cancela (1990, p. 95). 29 Optou-se por não fazer a citação do original grego, em nenhuma das citações a seguir. 30 Rafael Brunhara define o simpósio “como uma festividade altamente ritualizada, com regras específicas, que se dava após o banquete propriamente dito (...) e privilegiava o ato de beber.” (2012, p. 24)

  • 24

    uma vez que busca novos valores a serem usados pelos poetas. Há de ressaltar, ainda, a

    temática militar, a exortação e o consolo ao amigo, na elegia 7 D.

    Assim como os antecessores, Tirteu compôs elegias de caráter moral e político, nelas

    também se encontra uma constante influência homérica, devido à sua linguagem. As guerras

    entre Esparta e Messênia pelas quais passou se fazem presente em suas composições poéticas.

    Seu tom sempre exortativo faz transparecer como participou ativamente da crise política que o

    cercava. Pois é belo que um valente varão morra tombado nas primeiras linhas, lutando pela pátria; Mas abandonando sua cidade e os férteis campos para mendigar, dentre todas é a coisa mais vergonhosa; vagando com a cara mãe, o velho pai, 5 com os filhos pequenos e a mulher desposada31. (BRUNHARA, 2008, p. 30)

    Tendo sido soldado espartano, Tirteu, acredita-se, entoava, ao som da flauta, suas

    elegias durante as expedições, exortava os campanheiros às batalhas. Modificou o conceito

    homérico da areté32, na famosa passagem “ésa es la virtud (areté), ése entre los hombres el

    trofeo mejor y la gloria más bella al alcance de un joven guerrero33” (EASTERLING,

    KNOX, 1990, p. 150). Com efeito, a virtude utilizada na épica passou à virtude no campo

    militar.

    Afastando-se da exortação à luta e à política presente nos poetas anteriores,

    Mimnermo estabeleceu uma inovadora temática: a erótico-amorosa. Nos dois livros que

    compõem sua obra, uma coletânea, em dísticos elegíacos, foi intitulada Nanno, cujos

    fragmentos se conversam parcialmente. Neles não é possível identificar o teor amoroso da

    obra, entretanto as referências de outros poetas deixam transparecer seu caráter, como afirma

    Propércio: “plus in amore ualet Mimnermi uersus Homero34”.

    Além da temática amorosa, ainda há de se notar a presença da mitologia, como nos

    fragmentos 11 e 11a, em que reconta o mito do velocino de ouro. Também se sobressai a

    intensidade filosófica do carpe diem, das inquietações sobre a velhice e a morte35, como no

    trecho que se segue:

    31 Fragmento 10 W (vv.01-06). 32 Areté homérica equivale à virtude, à excelência humana, já em Tirteu a virtude será militar, a serviço da pólis. 33 “Essa é a virtude (areté), esse entre os homens o melhor troféu e a glória mais bela ao alcance de um jovem guerreiro”. 34 “Mais vale no amor os versos de Mimnermo do que os de Homero”. Elegia I, 9, v. 11. 35 Compartindo de temática similar, Simônides, nos séc. VI e V a.C., divagou sobre a brevidade da vida, as doenças advindas com a idade e morte inevitável.

  • 25

    Que vida, que prazer sem Afrodite áurea? Que eu morra, quando essas coisas não mais me interessarem, o recatado amor e as meigas dádivas do leito, tal como aparece a sedutora floração da juventude, para homens e mulheres; pois, quando chegue a velhice dolorosa, que torna o homem repugnante e mau, cruéis cuidados sempre lhe torturam a mente e nem mesmo contemplando-os alegra-se com raios do sol; mas às crianças parece hostil e, às mulheres, desprezível. Tão degradante um deus fez a velhice.36 (IN: Calíope, 1985, p. 139)

    Nesse excerto, discorre sobre suas preocupações existencias, e por isso o carpe diem

    está associado à juventude e ao amor, pois somente com aquela se pode aproveitar a vida. A

    velhice aparece em vários outros trechos e é sempre referida de forma desprezível e temerosa.

    As palavras-chave para definir a poesia elegíaca de Mimnermo são: amor, juventude, velhice,

    morte; donde se subentende uma oposição clara: amor e juventude versus morte e velhice.

    Em Atenas, Sólon foi uma voz política ativa e usou suas poesias elegíacas para esse

    fim. Tendo vivido numa época de conflitos sociais, em que a riqueza se concentrava nas mãos

    de uma minoria, lutou contra a aristocracia, defendendo o direito à terra e contra a escravidão

    até perder sua liberdade. De família nobre, propôs reformas que não foram suficientes para

    agradar nem à aristocracia nem aos camponeses. Sua poesia reflete seus pensamentos:

    Nossa cidade jamais perecerá pelos desígnios de Zeus, nem pelo querer dos bem-aventurados deuses imortais, pois a tão magnânima guardiã, filha de poderoso pai, Palas Atena, tem as mãos sobre ela. mas os próprios cidadãos, com seus desvarios, seduzidos pelas/ riquezas, 5 querem destruir a grande cidade e também o injusto espírito dos chefes do povo, que prestes estão, por causa da desmedida insolência, a sofrer muitas dores: não sabem refrear os excessos, nem controlar as alegrias presentes na paz do banquete. 10 (IN: CUNHA, 2007, p. 5537) (grifo nosso)

    Nesse famoso fragmento, Sólon apresenta um novo conceito para a hýbris38. O

    excesso ou desmedida faz referência à riqueza em demasia, a qual corrompe a sociedade.

    Curioso observar que Xenófanes, no séc. VI a.C., também readaptou a hýbris em suas elegias,

    associando-a ao excesso na bebida; além disso, seus versos são marcados pela excelência

    desportiva.

    36 Tradução de Guida Nedda. 37 Tradução de Nely Pessanha. 38 “Do ponto de vista da tragédia, é a falta ou o pecado daquele é excessivo, orgulhoso, insolente etc., qualidades pelas quais um homem entra em conflito com outro homem ou com os deuses, ou com outras forças superiores” (MAFRA, 2010, p. 76).

  • 26

    De todos os elegíacos do período arcaico, pertence a Teógnis de Mégara a maior

    coletânea de dísticos que chegou aos tempos atuais. Cerca de 1400 versos foram agrupados

    em dois livros: um de teor amoroso e outro dedicado ao jovem Cirno. Há ainda as elegias de

    exortação gnômica, dedicada a outros homens e sobre as bebedeiras nos banquetes

    aristocráticos. Por se referir a fatos históricos, é possível estabelecer uma linha temporal, em

    que os críticos acreditam ser impossível um único poeta tê-los vivido. Com efeito, parece

    evidente que houve uma compilação de vários poetas, como Mimnermo, Tirteu e Sólon, todos

    anteriores ao século V a.C..

    No segundo livro, dedicado a Cirno, o poeta que representa uma aristocracia falida

    faz uma série de conselhos a esse efebo, a fim de preservar os valores da nobreza à qual faz

    parte. A ti, por considerar-te, ensinarei precisamente aquilo que eu mesmo, Cirno, aprendi, ainda criança, dos homens de bem. Sê prudente, não obtenhas, por atos vergonhosos ou injustos, nem honrarias, nem fama, nem riqueza39. (IN: CALÍOPE, 15, p. 68) Cirno, al componer estos poemas para ti, quiero ponerles un sello, y nunca pasará desapercibido su robo, ni los alterará nadie, estropeando lo que es bueno; y todo mundo dirá: “Estos versos son de Teognis de Mégara, famoso en todo el mundo” (19-23) (EASTERLING, KNOX, 1990. p. 157)

    Nesses fragmentos, cumpre-se ressaltar duas características marcantes em Teógnis:

    sua preocupação com o futuro de sua poesia, o caráter imorredouro de seu nome através da

    literatura e a marca que quis inferir em sua obra. Esse selo, como ele mesmo fala, é discutível,

    uma vez que não se sabe se seria seu próprio nome, o de Cirno ou sua qualidade poética.

    O segundo momento da elegia grega é chamado de alexandrino ou helenístico.

    Compreende o período histórico da morte de Alexandre, o grande, em 323 a.C. e a morte da

    última rainha do Egito, Cleópatra VII, em 31 a.C. (AGUDO, 2010). Apesar da decadência das

    cidades-estado gregas e a ascensão das cidades dos reinos da Macedônia, Síria e Egito, o

    espírito grego, as artes, as ciências e até a língua grega – koinè40- foram conservados no

    Oriente Médio. Nesse ambiente, marcado profundamente pelas novas condições políticas e

    culturais, a atividade intelectual da cultura helenística foi transferida para Alexandria e

    Pérgamo. Seguindo uma nova tendência, os dísticos elegíacos, relegados por algum tempo,

    foram escolhidos para representar uma poesia breve e concisa. Ao contrário do que aconteceu

    na época arcaica, a elegia não era mais usada como instrumento político, ela era excludente,

    pois visava a um pequeno grupo delimitado e conservador. A brevidade da poesia permitia o

    39 Tradução de Glória Braga Onelley. 40 A língua comum.

  • 27

    rebuscamento sintático e estilístico, assim como o recurso à mitologia refinava-a e restringia-

    lhe o acesso.

    Filetas, natural de Cós, é o primeiro elegíaco desse período. Embora sua obra se

    tenha perdido, há inúmeras referências a ele na literatura grega e romana. Gozou de grande

    prestígio e notoriedade para seus coetâneos e gerações posteriores, sendo considerado o

    precursor da poesia helenística. O pouco que se conversa de sua obra elegíaca Deméter não é

    suficiente para tecer comentários críticos. Sabe-se que se trata de uma narrativa mitológica a

    respeito da deusa errante que outrora estivera na ilha de Cós. Talvez seguindo antecessores,

    Mimnermo e Antímaco41, que publicaram livros de elegias cujo título levava o nome de uma

    mulher, pseudônimos de seus amores na vida real, Filetas teria expressado seu amor por

    Bátide, como nos sugere Ovídio, no primeiro dístico da elegia I,6 das Tristia: Lide nec tantum dilecta poetae Clario nec Battis tantum amata Coo42 Lide não foi tão querida pelo poeta de Claros nem Bátide foi tão amada pelo de Cós.

    Também o discípulo de Filetas, Hermesianax, compôs três livros elegíacos com o

    nome de sua amada, Leôncio. Neles, havia um catálogo de heróis e heroínas lendários, deuses

    e deusas, sábios e poetas apaixonados. Narrou a expedição dos argonautas e o amor de Medeia

    e Jasão.

    Calímaco de Cirene foi o único, nessa época, que realmente morou em Alexandria.

    Viveu até uma idade avançada e foi autor oitocentos livros de prosa e poesia. Foi

    frequentemente citado pelos escritores romanos, como Ovídio, Propércio – que se

    autodeclarava o Calímaco romano- e Horácio, em Épitres 2, 2, 87-101: Discedo Alcaeus puncto illius, ille meo quis? Quis nisi Callimachus? Si plus adposscere uisus, Fit Mimnermus et optiuo cognomine crescit. Eu, Alceu, afasto-me um pouco dele e quem é ele? Quem senão Calímaco? Se parecendo pleitear mais, Torna-se Mimnermo e cresce o nome escolhido.43

    Em dísticos elegíacos, compôs os Aitia (Causas ou origens), principal obra do

    período alexandrino. Essa elegia narrativa está dividida em quatro livros de mil versos cada,

    41 Antímaco de Colofônio (séc. V-IV) compilou uma elegia narrativa sob o nome feminino de Lyde, em que através da mitologia exprime a dor pela morte da amada. 42 Original latino retirado de VELLOSO, 1952, p. 47. 43 Original latino e tradução de Paulo Martins (2009, p. 33).

  • 28

    porém, infelizmente, ela só nos chegou parcialmente. Explicava a origem ou causa de várias

    lendas, costumes, acontecimentos históricos e práticas religiosas. No livro primeiro, o poeta,

    em sonho, encontra-se e conversa com as Musas no monte Helicão. No segundo, que forma

    evidentemente uma unidade com o primeiro, Calímaco detalha o retorno dos Argonautas44 à

    Cólquida, fala da fundação de algumas cidades da Sícilia, em o que parece continuar um

    diálogo com as Musas. No terceiro livro, pode-se destacar a narrativa da história de amor entre

    Acôncio e Cídipe; no quarto, há a famosa passagem sobre a cabeleira de Berenice, em que ela

    oferece seu cabelo para que seu esposo, Ptolomeu III, retorne são e salvo da guerra contra a

    Síria. Findando essa obra, o poeta despede-se, dando a entender que mudará de gênero, talvez

    indo ao terreno da prosa.

    Calímaco pretendeu livrar-se dos velhos modelos, da narativa bélica e cíclica e de

    cunho popular. Sua premissa era “trilhar caminhos não trilhados”, assim, a elegia grega foi

    construída para se opor à poesia épica e romper com a tradição homérica. Calímaco

    estabeleceu uma nova literatura com base no cuidado estético, alicerçada numa mitologia

    obscura. Por isso, desenvolveu-se a preocupação em falar da própria poesia, ou seja, a

    metapoesia.

    2.2 Em Roma

    A elegia romana começou a ser desenvolvida no final da Época da República e no

    ínicio do Principado. Sua originalidade reside no fato de ter agrupado em um único gênero a

    influência helenística da elegia, com o mito usado como suporte da narrativa e a recusa ao

    épico, por influência de Calímaco; do epigrama – com seu erotismo-amor - e do epigrama

    fúnebre. Além disso, o eu-elegíaco romano relatava suas experiências pessoais utilizando a

    primeira pessoa. Em Roma, criou-se um código específico para as elegias amorosas, que não

    havia na elegia grega arcaica ou helenística. Manteve a tradição estabelecida pelos gregos de

    nomear as coletâneas com os nomes fictícios de suas amadas, como vimos em Mimnermo,

    Filetas, Hermesianax e Antímaco.

    44 Acredita-se que a obra de Calímaco serviu de base para Apolônio de Rodes compor Argonáuticas.

  • 29

    Seguindo o cânone clássico, estabelecida por Quintiliano45, os principais autores

    elegíacos são: Galo, Tibulo, Propércio e Ovídio. Também referidos pelo próprio Ovídio em

    algumas passagens do seu livro Tristia, como por exemplo:

    Vergilium vidi tantum, nec avara Tibullo tempus amicitiae fata dedere meae. successor fuit hic tibi, Galle, Propertius illi; quartus ab his serie temporis ipse fui. 46 (VI, X, 50-54) (VELLOSO, 1952, p.178) (grifo nosso)

    Cornélio Galo (69-26 a.C.) é considerado, pelos críticos, como o fundador do gênero

    elegíaco em Roma, embora se tenha que creditar a Catulo ser o precursor da poesia amorosa.

    Coube a esse relatar suas experiências amorosas de forma subjetiva, tendo usado poucas vezes

    o metro elegíaco; e àquele dedicar todo um livro à amada. O título dessa coletânea, dividida

    em quatro livros, pode ter sido Amores (CITRONI) ou Lycoris (GRIMAL, 1978). É certo que,

    de acordo com Virgílio47, Galo cantou seu sofrimento de amor pela amada que devia se

    chamar, na realidade, Volumnia Cíteris, famosa atriz. Nos dez fragmentos - nove foram

    descobertos em 1979- que se atribuem a ele, Licóride48 é apresentada como domina e o eu-

    elegíaco sofre por ela ser-lhe infiel. Cabe observar, ainda, a referência mitológica ao

    pseudônimo da amada, uma vez que licóreo era o epíteto para o deus Apolo, patrono da poesia

    e música.

    Deve-se a Galo a união da elegia helenística, do epigrama erótico e dos mitos

    obscuros, que provavelmente lhe foram apresentados por Partênio de Niceia. Escravo liberto

    de origem grega, Partênio dedicou ao amigo uma obra em prosa em que supostamente narra

    histórias de amor de personagens mitológicas oriundas de autores gregos.

    Cronologicamente, Álbio Tibulo é considerado o segundo elegíaco romano.

    Pertencente ao círculo literário de Valério Messala, amigo e protetor, acompanhou-o em

    algumas expedições militares. Compôs elegias amorosas, em homenagem a Messala e opôs-se

    à guerra, buscando uma vida tranquila no campo.

    Do Corpus Tibullianum, dividido em quatro livros, somente os dois primeiros são

    comprovadamente de sua autoria. No primeiro livro, publicado em 26 ou 25 a.C., a temática 45 No famoso excerto: “Elegia quoque Graecos prouocamus, cuius tersus atque elegans maxime uidetur auctor Tibullus. Sunt qui Propertium malint. Ouidius utroque lasciuior, sicut durior Gallus.” (EZQUERRA, 2006, p. 192) (grifo nosso) 46 “Apenas vi Virgílio, os fados cruéis não deram tempo para minha amizade com Tibulo. Este foi teu sucessor, ó Galo, e Propércio daquele; eu próprio fui o quarto na ordem destes tempos”. 47 A égloga X, Virgílio dedica-a a Galo que se encontra doente de amor por Licóride. 48 Citroni usa Licóris, porém optou-se seguir a tradução sugerida por Torrinha (1945) e Saraiva (2006).

  • 30

    amorosa ganha destaque, embora apareçam elegias celebrativas e filosóficas. Somando

    oitocentos versos, as dez elegias que o compõem nomeiam dois amores: Délia e Márato. Na

    elegia primeira, Tibulo apresenta seu programa:

    o amor pela puella, recusa à guerra, a exaltação de uma vida tranqüila como proteção às preocupações que honras e riquezas angariam aos homens, o elogio ao campo, representado como o lugar ideal em que transcorre uma existência apartada. (FEDELI, 2010, p. 165)

    A Délia são dedicadas cinco elegias do livro I, a saber: 1,2,3,5 e 6. Nota-se, mais uma

    vez nesse gênero, a referência a Apolo, já que esse pseudônimo significa aquela que nasceu na

    ilha de Delos, onde esse deus era cultuado. Em resumo, o corpus deliano apresenta: a queixa

    do eu-elegíaco por estar fechada a porta da amada49, a separação dos apaixonados50, a

    tentativa de se libertar da paixão51, o sofrimento pelas constantes infidelidades52.

    Utilizando-se de um tópos alexandrino53, o eu-poético celebra, em três elegias

    (4,8,9), seu amor ao jovem Márato. Independente de ser personagem real ou fictício, Carlos

    André (2006) acredita ter havido uma atração real homoerótica na vida do poeta. De qualquer

    forma, o amor cantado resulta menos apaixonado e mais didático. Na elegia I,4, há um diálogo

    com o deus Priapo54 que se caracteriza como:

    As lições de Priapo, uma espécie de versão abreviada de uma arte da sedução, em que o objecto dessa mesma sedução, por parte do poeta e dos homens seus destinatários, serão jovens na flor da idade, revelam-se inúteis para atenuar os cuidados que corroem este amante (Idem, p. 190).

    No corpus dedicado ao amor puerorum, o eu-poético ora sofre, porque seu menino

    está apaixonado por uma mulher, ora tenta convencê-la a ceder aos encantos do amado. Por

    fim, na elegia I, 9, há o discidium dessa relação, uma vez que o amor puro e desinteressado do

    narrador foi preterido por um velho rico com muitos presentes.

    O patrono de Tibulo surge também como personagem em três elegias. Na elegia

    inicial, o eu-poético apresenta um contraste: Messala luta as guerras e Tibulo, as guerras de

    49 “Nam posita est nostrae custodia saeua puellae,/ clauditur et dura ianua firma sera.” (I,2, v. 5-6) Sob cruel vigilância se acha minha amada,/ cerra-lhe a dura porta firme trava. (ALVES, 2014) 50 “me cum mitteret urbe” (I,3, v.9) ao deixar-me partir da cidade. (Idem) 51 Saepe aliam tenui: sed iam cum gaudia adirem,/ admonuit dominae deseruitque Venus” (I, 5, v.39-40) Não raro, tive outra: quando ia gozá-la,/me fez lembrar da amada e foi-se Vênus. (Idem) 52 “nec saeuo sis casta metu, sed mente fideli / mutuus absenti te mihi seruet amor.” (I, 6, v.75-76) Sejas casta por ser fiel, mas não por medo: /que mútuo amor te inunde em minha ausência. (Idem) 53 Vale relembrar Teógnis de Mégara e o efebo Cirno. 54 Deus, comumente, representado com um falo ereto.

  • 31

    amor55. Tibulo, na realidade, acompanhou Messala em duas expedições, entretanto evidencia

    em sua poesia o repúdio às armas e à violência. Há, ainda, uma elegia em que celebra uma das

    vitórias militares de seu protetor. No mais, o livro primeiro se encerra com a invocação aos

    tempos de paz e a alusão à idade de ouro.

    No livro II, provavelmente compilado após a morte do poeta ao que tudo indica, há

    somente seis elegias. As elegias 3, 4 e 6 foram cantadas a um novo amor: Nêmesis. Nas

    palavras de Pierre Grimal, Nêmesis “personifica, efectivamente a ‘Vingança divina’; é, por

    vezes, a divindade que (...) castiga o crime” (2005, p. 326). Acredita-se, então, que esse novo

    amor feminino é uma vingança contra Délia, que tinha sido, de fato, esquecida. Nessas

    elegias, o amor aparecerá em sua forma mais negativa, uma vez que Nêmesis, diferente de

    Délia, é uma meretriz interesseira, e submete o amado à dura escravidão. Por isso,

    provavelmente, outras temáticas tenham sido cantadas nesse livro, como: as festas dos

    camponeses (II,1), as celebrações ao aniversário de um amigo (II, 2) e ao ingresso do filho de

    seu protetor, Messalino, no colégio.

    Em consonância com a tradição clássica, Propércio foi o terceiro elegíaco romano,

    embora tenha publicado seu primeiro livros de elegias antes de Tibulo, foram contemporâneos

    e compuseram suas obras simultaneamente. Provavelmente, tenha sido considerado o sucessor

    de Tibulo, por ser mais jovem.

    São de sua autoria quatro livros de elegias. O primeiro, que a princípio teria sido

    intitulado Cynthia, é designado por Monobiblos e foi publicado ou em 29 a. C – consoante

    Pierre Grimal (1978) e António Ezquerra (2010) - ou em 28 a.C, de acordo com Mario

    Citroni (2006). Contabilizando vinte e duas elegias de caráter erótico-amoroso, a figura

    principal é a amada Cynthia. Esse pseudônimo remete, como já vimos em outros elegíacos, à

    ilha de Delos, onde havia um monte chamado Cinto, portanto faz referência a Apolo e à

    Ártemis. Nessa coletânea, Propércio relata o sofrimento causado por sua amada que não lhe é

    fiel. Há de se destacar também:

    Os dois poemas conclusivos (21; 22) são verdadeiros e próprios epigramas, sepulcral o primeiro, dedicatório o segundo; a vigésima elegia é um epílio, com a patética história de Hilas; outros poemas são dedicados a amigos e não faltam temas de polêmica literária. Disso se deduz que, no que diz respeito ao conteúdo das elegias e à sua posição num gênero literário, primeiro cancioneiro properciano inspira-se no livro de poesia alexandrino. (FEDELI, 2010, p. 167)

    55 “Te bellare decet terra, Messalla, marique, /ut domus hostiles praeferat exuuias: /me retinent uinctum formosae uincla puellae, /et sedeo duras ianitor ante fores.” (I,1 v. 53-56) “A ti convém lutar em mar, Messala, e terra /para espólios rivais expor à porta;/eu, grilhões me acorrentam de formosa dama /e, qual porteiro, fico em duras portas.” (Ibidem)

  • 32

    Inspirado nos alexandrinos, Propércio, a todo o momento, rejeita a opção pelos

    poemas épicos, assim como a carreira política. É o amor que o consome e a ele confere os

    valores da dignidade humana. Ainda na derradeira elegia dessa coletânea, o poeta

    autoapresenta-se o que pode ser interpretado como o selo de autenticidade da obra, já antes

    visto em Teógnis, por exemplo.

    Depois da publicação desse livro, Propércio obteve um êxito e fama tão grandes, que

    foi convidado por Mecenas a integrar seu círculo literário. Por isso, no livro II – bem mais

    extenso com trinta e cinco elegias - publicado em 26 ou 25 a.C., embora Cynthia ainda seja a

    temática central da obra, Propércio varia seus motivos, o que fica aparente na elegia inicial

    dedicada a seu patrono. E, mais uma vez, conclui essa compilação seguindo a tradição

    calimaquiana e recusando cantar o épico.

    A terceira coletânea que abarca vinte e cinco elegias foi composta provavelmente

    entre os anos 25 e 21 a.C.. Na maioria dessas elegias, outros temas se sobrepõem ao amor.

    Assim, Cíntia só aparece três vezes, pois “El amor, cansado, cede más de una vez a otros

    temas; el poeta habla de su arte; vaticina su glória, llora muertes illustres; rinde homenaje a

    Mecenas, a cuyo círculo perteneció, y a Augusto56” (BIGNONE, 1952, p. 300). Embora haja

    elegias amorosas, o poeta aparece mais centrado em sua própria arte poética. Ressalta-se ainda

    que o livro se encerra com o poeta relatando, o que parece ser, a separação definitiva da

    amada.

    O livro quarto é a coletânea mais distinta de Propércio devido a seu caráter

    nacionalista. Se antes tinha ambionado ser o Mimnermo romano, com a temática amorosa,

    nesse derradeiro livro sua principal fonte de emulação era Calímaco e a poesia etiológica.

    Embora o nacionalismo já se apresentasse em livros anteriores, nesse ele ocupa a principal

    parte, estando presente em nove das onze elegias compostas. Há de salientar que Propércio

    apresenta um dualismo de inspiração desde a elegia que inicia o volume, uma vez que não

    abdica da temática amorosa e Cíntia se faz presente em dois poemas.

    Na elegia I do livro IV, o eu-poético anuncia que cantará as memórias de Roma,

    contudo o adivinho Horos lhe rememora sua aptidão à poesia amorosa. Essa dualidade

    temática encontrada na obra, talvez oponha a vontade do poeta ao regime político do princeps.

    Dessa forma, Propércio apresenta quatro elegias de caráter etiológico57, inspirada na obra

    56 “o amor, cansado, cede mais de uma vez a outros temas; o poeta fala de su arte, vaticina sua glória, chora as mortes ilustres, presta homenagem a Mecenas, a cujo círculo pertenceu e a Augusto.” 57 Divisão consoante Williams Cheng Li (1985).

  • 33

    calimaquiana Aitia, a saber: II, sobre a origem do deus Vertumno58; IV, sobre a lenda de

    Tarpeia que também pode transparecer o tema do amor59; IX sobre o mito de Hércules que

    esteve presente no Lácio, de Caco e da Bona Dea60; X, sobre o culto de Júpiter Ferétrio61.

    As elegias amorosas62, embora bem diversas do amor como doença dos livros

    anteriores, está presente em quatro elegias, a saber: VII63 e VIII64, dedicadas à Cíntia,

    aparecendo morta naquela e viva nessa; III65 e XI66, em que enaltece os valores morais das

    matronas, em uma clara oposição ao comportamento das musas elegíacas; V, invectivas contra

    Acanthis. É mister esclarecer que, apesar de divididas entre etiológicas e amorosas, um tema

    não exclui outro e por isso, há divisões distintas pelos críticos. Na elegia VI, que possui tom

    mais solene, destoante das anteriormente comentadas, Propércio, em consonância com a

    propaganda augustana, celebra a fundação do templo de Apolo Palatino e o décimo quinto

    aniversário da vitória da batalha do Ácio. Deve-se observar que essa elegia se encontra em

    posição central da obra, o que lhe confere uma importância, uma vez que ressalta a opção do

    poeta em se dedicar ao tema nacionalista.

    Entre Tibulo e Propércio, as diferenças são claras: no primeiro, falta a oposição aos

    grandes gêneros, sua poesia é o recurso para atingir o coração da amada e a vida no campo é

    um dos seus principais tópoi; no segundo, a influência alexandrina é constante, tanto com

    Mimnermo quanto com Calímaco, a mitologia faz-se essencial como suporte literário da sua

    poesia e, embora se oponha a cantar poesia épica, na forma da recusatio67, adapta suas elegias

    de forma a atender às demandas político-culturais do principado.

    Ovídio é de uma geração elegíaca posterior, embora tenha conhecido os poetas

    elegíacos e sido amigo de algum deles como cita em suas elegias. Sua percepção desse gênero

    é diferente dos predecessores, por dois motivos em especial: primeiro, porque não vivenciou

    os tempos de guerras e somente a pax augustana; segundo, porque – afirmam os críticos- seus

    58 Nessa elegia, o deus etrusco Vertumno adquire fala a partir de sua estátua e explica aos que por ele passam a etimologia de seu nome. 59 Nessa elegia, conta-se a lenda da vestal que traiu Roma, entregando sua cidade aos inimigos, porque estava apaixonada. Conhecida como a traição de Tarpeia, essa lenda é muito importante para a história uma romana, pois graças a esse episódio os sabinos uniram-se aos romanos como nação. 60 Em um tom jocoso, Propércio mostra Hércules sedento, discutindo com a velha sacerdotisa e sua pugna contra o gigante Caco, além da fundação do Grande Altar. 61 Explica a origem do epíteto do deus. 62 Classificação consoante Williams Cheng Li (1985). 63 Em uma inesperada troca de papéis, é Cíntia quem, morta, nessa elegia se queixa da indiferença do amado. 64 O eu-elegíaco vinga-se de sua musa, estando numa orgia em meio de meretrizes, o que desperta a fúria de Cíntia. 65 Em forma epistolar, Aretusa ressalta seu amor sereno ao marido que está na guerra. 66 Elegia fúnebre que encerra a coletânea é considerada para muitos críticos como regina elegiarum. Foi escrita em homenagem a Cornélia, também chamada de epicédio e consolatio. 67 Recusa a cantar os gêneros sublimes, sobretudo, a poesia épica.

  • 34

    relatos amorosos não parecem se basear em sua própria experiência de vida, mas somente

    representam, de forma geral, a cultura amorosa do momento.

    Seu livro de estreia foi a obra elegíaca Amores, publicada em 20 a. C. (AGUDO,

    2010), aos vinte e três anos. Teve duas edições: a primeira, dividida em cinco livros, pode ter

    sido intitulada Corinna, seguindo a convenção dos elegíacos ao escolher o nome da mulher

    amada; a segunda, a que persistiu aos dias atuais, publicada em 4 a.C. (BORNECQUE, 1928),

    foi dividida em três partes (com 15, 19, 15 elegias cada), ao que parece, para dar mais leveza à

    leitura.

    Em Amores, Ovídio segue a tradição elegíaca estabelecida por Galo, Tibulo e

    Propércio em vários momentos: narra em primeira pessoa seu amor por uma mulher

    específica, recusa o gênero épico, apresenta elegias de motivo literário, usa elegias

    programáticas, faz referência à militia amoris68 e ao paraclausithyron69. Entretanto, ressaltam-

    se também as diferenças: a milícia de amor, antes com conotação negativa, adquire significado

    positivo, pois o apaixonado mostra-se vitorioso nessa batalha; a cultura helenística terá menos

    influência, pois Ovídio usa como referência os próprios elegíacos romanos – especialmente

    Propércio - e, por fim, usa um tom mais irônico e jocoso.

    Ovídio, em sua obra elegíaca inaugural, reduz o papel do amor a segundo plano e

    adere ao jogo galante do amor. Por mais que siga as regras convencionadas da elegia romana,

    ele as utiliza sob uma nova interpretação: o amor deixa de ser um mundo autossuficiente e

    uma opção de realização pessoal completa ao indivíduo. Em suma: “em Ovídio, o amor

    elegíaco acaba por se tornar num jogo de fingimentos reciprocamente aceites, uma espécie de

    perfeita etiqueta da sociedade galante” (CITRONI, 2006, p. 589).

    Heroides (heroínas) foi a segunda composição elegíaca ovidiana. Essa coletânea de

    cartas de amor teve sua primeira publicação entre os anos 20 a 15 a.C. (BAYET, 1965) com

    quinze70 epístolas, em que mulheres apaixonadas escrevem a seus amados ausentes. As

    personagens são as heroínas da mitologia greco-romana - com exceção de Safo, personagem

    histórica- daí o título da obra. Em uma segunda edição, em 8 a.C. (BORNECQUE, 1928),

    foram acrescentadas seis cartas que constituem pares, uma vez que apresentam as respostas

    dos amados. Para compor as vinte e uma cartas de amor, Ovídio recorreu a diversas fontes, a

    saber: a Odisseia de Homero para a carta I, de Penélope a Ulisses; a Ilíada de Homero para a

    carta III de Briseida a Aquiles, assim como as cartas pares XVI, XVII de Helena e Páris; na

    68 Convenção que diz respeito à guerra do amor. 69 Impedimento à realização do amor. 70 Há ainda uma discussão sobre a autenticidade da epístola de Safo a Fáon. (PARATORE, 1983)

  • 35

    Eneida de Virgílio para a carta VII de Dido a Eneias; nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes

    para a carta VI de Hipsípiles a Jasão; na tragédia Medeia de Eurípides para a carta XII de

    Medeia a Jasão; nas tragédias homônimas de Eurípides para a carta IV de Fedra a Hipólito, na

    carta XI de Cânace a Macareu e na carta XIII de Laodâmia a Protesilau; nas Traquínias de

    Sófocles na carta IX de Dejanira a Hércules; em Catulo, para carta X de Ariadne a Teseu; nos

    Aitia de Calímaco nas cartas XX, XXI entre Acôncio e Cidipe e nas cartas XVIII e XIX entre

    Hero e Leandro; na peça Hermione de Sófocles para a carta VIII de Hermíone a Orestes, nas

    Danaides de Ésquilo para a carta XIV de Hipermnestra a Linceu. Há ainda a carta II de Fílis a

    Demofoonte e a V de Enone a Páris de fontes desconhecidas.

    Ovídio, apesar da sua originalidade em compilar as cartas em uma única obra,

    baseou-se em seus predecessores. Além dos bilhetes do Corpus Tibullianum, serviu-se-lhe de

    referência a carta de Aretusa a seu esposo ausente, na elegia 4, 3 de Propércio. O mérito de

    Ovídio foi a união de vários fatores, a saber: a escolha intertextual das personagens; as

    técnicas de retórica – como a suasória; o estilo in medias res71, da poesia épica, e aspectos

    trágicos, como hýbris e hamartia72.

    Atendo-nos somente às composições em versos elegíacos, sua terceira obra e a mais

    emblemática foi a Ars amatoria ou Arte de amar. Dividida em três livros, os dois primeiros

    foram publicados por volta do séc. I a.C. e o terceiro no séc. I d.C.. Mais uma vez inovando o

    uso do dístico elegíaco, Ovídio faz uma alusão às técnicas da retórica (ars oratoria) e

    estabelece as regras do jogo galante, ou seja, como o homem deve-se comportar para alcançar

    os favores amorosos da mulher almejada. O código elegíaco, que vemos nos predecessores,

    nessa obra, não é vivenciado, mas dissimulado. O amante, na verdade um sedutor, conhecedor

    do jogo do amor, deve demonstrar à “amada” sua submissão e parecer aceitar as humilhações,

    como escravo do amor. Entretanto, ele não está verdadeiramente apaixonado, Ovídio lhe

    ensina a agir como um, o que acarreta uma desconstrução, em tom jocoso, dos cânones do

    gênero.

    No livro I, são ensinados o modo de agir do homem para se aproximar da mulher

    desejada e as técnicas de aproximação a fim de que sua sedução obtenha sucesso. No livro II,

    também dedicado aos homens, Ovídio lhes ensina os estratagemas para manter os amores

    conquistados. Por outro lado, o livro III foi dedicado às mulheres e pretende-lhes ensinar a

    arte da sedução.

    71 Pôr o leitor “no meio dos acontecimentos”, expressão utilizada por Horácio na Arte Poética. 72 Vide Márcia Regina da Silva (2008).

  • 36

    A Arte de amar alcançou muita popularidade em sua época, porém marca a perdição

    do poeta, uma vez que foi por sua causa – o que o próprio Ovídio confirma posteriormente73 -

    que sofreu a severa punição ordenada por Augusto74 chamada de relegatio. Conhecido

    tradicionalmente por exílio, a relegatio, embora tenha sido devastadora, era uma punição mais

    branda, pois o relegado era mandado para fora de Roma, nesse caso para a longínqua

    Tomos75, porém mantinha seus direitos como cidadão romano e suas propriedades.

    Ovídio publicou outras obras elegíacas menores como, Remedia amoris. Em um

    único livro com apenas 814 versos, é um manual que ensina a homens e mulheres curarem-se

    do amor e também os previne das artimanhas ensinadas na Ars amatoria, a fim de evitarem os

    transtornos que o amor ocasiona ao apaixonado. Prestou outra homenagem às mulheres com o

    livro Medicamina faciei femineae, lançada em conjunto ao livro III da Arte de Amar. Usando

    mais uma vez um tom didático, aconselha as mulheres como devem enfeitar-se, cuidar do

    aspecto físico e ensina receitas de beleza. Essa obra encontra-se parcialmente perdida, tendo-

    se conservado apenas cem versos.

    Retomando os cânones elegíacos, iniciou a produção poética etiológica, como fizera

    Calímaco e Propércio, intitulada de Fastos. Pretendeu cantar as festividades romanas, como

    anuncia no proêmio: “cantarei com suas causas os tempos divididos pelo ano latino/ E as

    estrelas que nascem e se põem sob a terra” (FAUSTINO, 2012, p. 127). Concebida para ser

    cantada em doze livros, de acordo com os meses do ano, Fastos tornou-se uma obra

    inacabada, com apenas seis volumes, devido à punição sofrida por Ovídio.

    Uma nova fase poética surge no desterro. Resgatando o sentido fúnebre etimológico

    da elegia, Ovídio compõe os Tristia (Cantos tristes), uma poesia autobiográfica, em que relata

    seu sofrimento com o afastamento forçado da Urbe. Compilada em cinco livros, em forma

    epistolar, enviou-os um após o outro, à medida que os terminava, aos amigos, como Messala

    (seu patrono) e a Higino e à esposa Fábia. Compôs os dois primeiros livros sobre os tormentos

    da sua longa viagem até Tomos, no Ponto Euxino, atravessando o Mar Negro, confins do

    território romano. Nos outros três livros, faz a descrição do local inóspito, do clima frio

    extremamente cruel, dos habitantes que considera bárbaros, dos costumes, da dificuldade na

    comunicação, dos povos inimigos que ameaçam assaltar sua nova cidade, reclama também da

    ausência de livros e de amigos cultos. A todo momento, tenta comover o princeps na

    esperança que lhe perdoe, reconhece sua falta, mas ressalta que não foi intencional.

    73 Embora não fosse o único motivo. 74 A punição foi decretada somente em 8 d.C. 75 Atual Constança, na Romênia.

  • 37

    Entretanto, César morre em 14 d.C. sem lhe consentir o perdão. Como continuação dos

    Tristia, Ovídio compõe nova obra em dísticos elegíacos, intitulada Epistulae ex Ponto (Cartas

    do Ponto Euxino). Repetindo os temas já abordados, mas sem tanta variação, difere da anterior

    por apresentar o nome de seus destinatários que antes preservara. Morre no desterro em 17

    d.C. sem obter o perdão e sem nunca ter podido retornar à pátria.

    2.2.1 Código elegíaco amoroso

    Criou-se com Tibulo e Propércio o mesmo código amoroso, que também foi,

    posteriormente, também utilizado por Ovídio. Faz-se mister estudar e especificar seu uso para

    uma melhor compreensão desse gênero.

    Marca da paixão irracional, um dos principais tópoi literários da elegia é denominado

    seruitium amoris76. Configurando-se como uma espécie de escravidão, o homem apaixonado

    submete-se aos caprichos da mulher amada. Numa inesperada inversão de papéis da

    tradicional sociedade romana, o amante, reduzido a escravo, sofre constantes humilhações,

    pois seu amor transfigura-se como escravidão que ele aceita resignado. É digno de nota a

    relação da escravidão com o amor, consoante Carlos André:

    Nesta servidão amorosa, a força da dependência é semelhante à que liga o escravo ao seu dono. É, digamos, uma fides sem reciprocidade, o que não deixava de ser escandaloso para um velho romano, que não aceitaria ser escravo de uma domina. A questão da reciprocidade não é irrelevante. É um dos aspectos, em certa medida, que distingue a servidão amorosa da amicitia. É que o seruus dá, mas nada espera em troca. (2006, p. 251-2)

    Outra característica encontrada é o pacto entre os amantes: foedus amoris. Apesar de

    haver uma relação ilícita com uma mulher mundana, os apaixonados estavam sob a proteção

    dos deuses para respeitar esse pacto, e seu desrespeito tornava-se um sacrilégio. O foedus

    amoris era baseado na fides – um valor tradicional romano jurídico e moral, que pode ser

    traduzido por fidelidade ou boa-fé – por isso se estruturava como uma união moral, que se

    assemelhava à matrimonial, entre os amantes. Dessa forma, nessa relação, a amada adquire

    uma condição que se equipara à do homem, podendo ser o rompimento desse pacto algo

    perdoado e renovado.

    As mulheres cantadas na poesia amorosa podem ser divididas, de acordo com

    Kenney e Clausen, em três grupos, a saber:

    76 Escravidão do amor.

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    i) la matrona, la mujer casada que disfruta de cierta independencia. Puede tener muchas relaciones, como Clodia (la Lesbia de Catulo), o puede ser fiel a su esposo como Cornelia (Prop., 4,11). ii) la femme entretenue que puede estar casada pero que más probablemente será soltera o divorciada y que tiene relaciones firmes que duran meses o años. iii) la meretrix, la prostituta con la que los hombres tienen encuentros breves, casuales77. (1982, p. 451)

    Apesar de nem sempre ficar evidente, é possível distinguir algumas dessas mulheres.

    Nêmesis de Tibulo parece ser uma meretriz, Délia, por outro lado, uma mulher casada; Cíntia

    é a mais controversa: os críticos se dividem em ser uma mulher já casada, impedida de

    contrair matrimônio com o amado, ou uma mulher solteira com muitos amantes, ou ainda,

    uma cortesã.

    As amadas dos poetas podem ser representadas através dos vocábulos: domina

    (senhora), puella (menina), amica (amiga); e também pelos adjetivos: dura (dura)78, saeua

    (cruel), docta (sábia).

    Uma das mais tradicionais convenções elegíacas é a militia amoris, a guerra do amor,

    que está diretamente relacionada à recusatio. Na militia, o apaixonado recusa uma vida

    dedicada à pátria e suas obrigações para com ela e admite que a única guerra a qual lutaria

    seriam as de amor. Tibulo, que, ao indica sua obra, lutou juntamente com Messala, canta a

    favor do amor, sendo contrário às guerras. Equipara o valor das guerras vencidas ao do amor

    conquistado. Essa é glória dos apaixonados: a realização pessoal adquire uma importância não

    antes vista. Rechaça ainda a cupidez pelo dinheiro proporcionado pelas guerras. Assim, afirma

    Propércio apud Citroni: “Não nasci para a glória nem para as armas: é esta a milícia que o

    destino me atribui” (2006, p. 573). Na recusatio, os elegí