ELIAS COIMBRA DA SILVA O TEXTO ENQUANTO...

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ELIAS COIMBRA DA SILVA O TEXTO ENQUANTO TERRITÓRIO / PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO NA REDEFINIÇÃO DO PENSAR: Uma contribuição a partir de Mil Platôs Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados, para a obtenção do título de Mestre em Geografia Orientador: Prof. Dr. Jones Dari Goettert Dourados, MS – 2010

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ELIAS COIMBRA DA SILVA

O TEXTO ENQUANTO TERRITÓRIO / PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO NA REDEFINIÇÃO DO PENSAR:

Uma contribuição a partir de Mil Platôs

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados, para a obtenção do título de Mestre em Geografia Orientador: Prof. Dr. Jones Dari Goettert

Dourados, MS – 2010

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD 901.01 S586t

Silva, Elias Coimbra da O texto enquanto território. / processo de territorialização

na redefinição do pensar : uma contribuição a partir de mil platôs. / Elias Coimbra da Silva. – Dourados, MS : UFGD, 2010.

95f. Orientador: Prof. Dr. Jones Dari Goettert Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade

Federal da Grande Dourados. 1. Geografia - Metodologia. 2. Território – Conceito. 3.

Deleuze, Gilles, 1925-1995.“Mil platôs” – Crítica e interpretação. 4. Guattari, Félix, 1930.“Mil platôs” – Crítica e interpretação. I. Título.

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ELIAS COIMBRA DA SILVA O TEXTO ENQUANTO TERRITÓRIO / PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO NA REDEFINIÇÃO DO PENSAR: UMA CONTRIBUIÇÃO A PARTIR DE MIL PLATÔS

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE Presidente e orientador______________________________________________________

2º Examinador_____________________________________________________________

3º Examinador_____________________________________________________________

Dourados, ______ de ______________ de ______.

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Aos meus pais e amigos, pelo apoio ao longo desses dois ou

três últimos anos.

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AGRADECIMENTOS

Aos colegas de mestrado e aos professores e funcionários (da universidade

ou mesmo dos serviços terceirizados) que colaboraram para minha curta vivência na

universidade (UFGD) e na cidade de Dourados,

especialmente aos colegas de república: Bil e Robinson, pelas horas

agradáveis de companhia

e aos professores do Programa (PPGG), pela aposta (temerária) em mim e

em minhas idéias.

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“No fundo da sala – nessa velha sala querida do Vieux Colombier que dava para cerca de trezentas pessoas – meia dúzia de folgazões tinha aparecido à sessão na esperança de umas graçolas. Oh! Nem duvido que fossem apertados – pelos amigos fervorosos de Antonin Artaud distribuídos na sala. Mas não: depois de uma tentativa tímida de fazer chinfrim, mais razão não houve para se intervir... Assistimos todos a um prodigioso espetáculo que era: Antonin Artaud a triunfar, a inspirar respeito à galhofa, à estupidez insolente; a dominar...

Eu conhecia há muito tempo Artaud, e sua miséria e o seu gênio. Pois mais admirável do que nunca ele me pareceu. Do ser material só restava o expressivo. A grande e desengonçada silhueta, o rosto consumido numa labareda interior, aquelas mãos de quem se afoga estendidas para um auxílio indefinível, ou torcidas numa angústia, ou envolvendo as mais das vezes estreitamente a sua face, a ocultá-la e logo depois a mostrá-la, tudo nos falava da miséria humana abominável, uma espécie de maldição implacável que apenas encontrava fuga num lirismo furioso e só capaz de atingir o público por cintilações imundas, imprecatórias e cheias de blasfêmia.

Também ali se encontrava, claro está, o maravilhoso actor que o artista poderia vir a ser; no entanto, o que ele ofertava ao público era a sua própria personagem, e fazia-o com uma espécie de cabotinismo sem vergonha onde uma autenticidade total transparecia. A razão deitava-se a bater em retirada; e não só a sua como da assembléia inteira, de nós todos, espectadores daquele drama atroz, reduzidos ao papel de malévolos comparsas, meias-tijelas, cascas-grossas. Oh! Nem uma só pessoa, na assistência, tinha vontade de rir. Forçava-nos a entrar no seu jogo trágico de revolta contra tudo aquilo que nós admitíamos e para ele, mais puro, era inadmissível.

[...]

Ao sair da memorável sessão, o público calou-se. Podia dizer-se o quê? Acabávamos de ver um homem miserável atrozmente sacudido por um deus, como se estivesse no limiar de uma gruta profunda, antro secreto da sibila onde não tolera nada profano, onde era exposto um vates como num Carmelo poético, oferecido a implacáveis iras, aos abutres devoradores, ao mesmo tempo sacerdote e vítima... Sentia-e vergonha do regresso, a um lugar no mundo, onde o conforto se constrói de compromissos.”

André Gide, no prefácio de ARTAUD, Antonin. A arte e a morte. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena, 1985.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS................................................................................................... 08

LISTA DE ABREVIATURAS E SÍMBOLOS............................................................ 09

Resumo......................................................................................................................... 10

Abstract......................................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 12

1. PARTE “TEÓRICA” DO TEXTO......................................................................... 16

1.1. Território enquanto poder – primeiro significado proposto.................................. 16

1.2. De Território/Poder aos Agenciamentos............................................................... 21

1.3. Conceito de Espaço............................................................................................... 29

1.4. Rizoma................................................................................................................... 31

1.5. Retornando ao trabalhado – elementos a serem destacados.................................. 38

2. PARTE “FÁTICA” DO TEXTO............................................................................ 42

2.1. Um objeto?............................................................................................................ 42

2.2. Sobre território como fronteira do conhecimento.................................................. 52

2.3. Território do texto como desterritorialização e reterritorialização do

autor/pensamento.................................................................................................... 56

2.4. Agenciamento – um exemplo pessoal................................................................... 62

2.5. Reterritorialização da pesquisa – a questão da verdade no erro............................ 66

2.6. Território/Terra – por um discurso mais formal.................................................... 72

A TÍTULO DE CONCLUSÃO.................................................................................... 81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 86

ANEXOS..................................................................................................................... 94

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Diagrama dos Agenciamentos....................................................................... 96

Figura 2 – Tangram inteiro (A) e figuras que se pode montar com suas partes (B)....... 97

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LISTA DE ABREVIATURAS E SÍMBOLOS

AMC = Agenciamento maquínico de corpos.

ACE = Agenciamento coletivo de enunciados.

Degeano = O neologismo Deleuzo-guattariano, ou seja: aquilo que é relativo a G. Deleuze

e F. Guattari.

TERDESTERRETER = Processo Territorialização/desterritorialização/reterritorialização.

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RESUMO

Este texto, cuja fundamentação teórica é marcada por filósofos críticos e

controvertidos, tais como Foucault, Derrida, Adorno e, principalmente os franceses

Deleuze e Guattari e, portanto, visa discutir, mais do que afirmar as soluções que a ciência

– da forma que ela se constitui – tem promulgado, pretende discutir o conceito de

Território e o âmbito de suas articulações (ou virtualidades) “instrumentais”. Na tentativa

de relativizar o conceito para mostrar-lhe os limites, fiz um percurso muito menos histórico

que semiótico, onde associei autores e, conseqüentemente usos (do conceito em questão),

até culminar na obra dos dois franceses supra citados: o amplo texto denominado “Mil

Platôs”. Deste livro, ou melhor, conjunto de livros (e de Platôs), faço uso não só quanto a

alguns conceitos-chave, como Agenciamento e Rizoma, mas também quanto ao próprio

método erigido, para discorrer aqui (nesta dissertação), sobre minhas problemáticas. Sendo

que o resultado, embora não seja virtuoso – sobretudo em termos de “produto” – se

mostrou surpreendente, mesmo para mim, tendo constituído uma etapa crucial para a

digestão do Complexo Teórico (de “Mil Platôs”), esboçando assim, perspectivas

interessantes de futuras reflexões geográficas.

PALAVRAS-CHAVE

Território-processo, Agenciamento, Rizoma, Poder e Cientificidade.

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ABSTRACT

This text, whose theoretical basis is marked by critical and controversial

philosophers such as Foucault, Derrida, Adorno, and especially the French Deleuze and

Guattari, and therefore want to discuss, rather than state solutions that science – the way

it it is – has promulgated, will discuss the concept of territory and the scope of their

pragmatic relationships (or capabilities). In an attempt to relativize the concept to show the

limits of it, I took a route much more semiotic than historical, which I associated authors,

and consequently uses (to the term in question), culminating in the work of two French

cited above: “Thousand Plateaus”? This book, or rather series of books (and Plateaus), I

not only use a few key concepts such as Agency and Rhizome, but the method itself

erected to discuss here about my problems. As the result, although it is not virtuous –

especially in terms of “product” – proved to be surprising, even to me, having been a

crucial step for the digestion of conceptual complexity (from “Thousand Plateaus”),

outlining well, interesting perspectives future geographical reflections.

KEYWORDS

Territory as Process, Agency, Rhizome, Power and Scientificity.

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INTRODUÇÃO

Uma abordagem da história desse conceito tão impreciso quanto caro à Geografia,

ou seja, Território, talvez não dê conta de delimitá-lo, traçar-lhe as fronteiras, mesmo

porque deveríamos falar em histórias mais do que numa História de qualquer conceito.

Desde a identificação de Território com “paisagem natural”, como o fez Maquiavel, no que

serviu de fulcro para uma tradição antropológica, passando depois por Hobbes, até as

modernas definições de Deleuze e Guattari, a gama de interpretações é ampla demais para

permitir qualquer acordo.

Talvez por isso o debate seja o ponto principal em que concordam (no mínimo

tacitamente) os principais antagonistas, dois dos quais deverei apontar nesta dissertação,

num primeiro momento, para exemplificar a riqueza do problema que constitui essa

conceituação de Território. É útil adiantar também que dois sentidos, especialmente,

chamaram a atenção no tal embate entre geógrafos e antropólogos e por isso as discussões

iniciais serão permeadas por eles.

Esses sentidos, que são dois momentos, são fruto das discussões de dois autores,

um italiano e outro inglês: Maquiavel e Hobbes. A partir desses dois autores, apesar das

sutilezas entre as várias acepções, pode-se construir, respectivamente um sentido de

Território como aquilo que chamamos hoje de Meio Ambiente; e um outro sentido,

ligeiramente diverso, de Território como um recurso, ou como uma reserva de valor; sendo

que o primeiro sentido está mais presente no pensamento dos antropólogos e este segundo,

igualmente entre o pensamento dos geógrafos e dos antropólogos.

A construção dessas duas quase categorias assemelha-se com as construções

(categóricas) de Haesbaert (2006). Na realidade, ambos os sentidos estão contidos nas

classes de Território que, segundo Haesbaert, diferem segundo os materialistas (em

oposição aos idealistas) e segundo seu caráter absoluto; muito embora, quanto ao sentido

hobbesiano, seria possível falarmos num híbrido entre o absoluto e o relacional, ou seja,

num Território ao mesmo tempo concreto e como fruto das relações sociais.

Por outro lado e ainda falando da gama de sentidos de Território, a soma de várias

acepções não contribui em nada para se alcançar uma definição coerente de determinado

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conceito (inclusive o presente); tampouco o “descobrimento” do conteúdo original de um

conceito serve para entendê-lo “mais” do que um conteúdo contemporâneo possa servir.

Isso, entretanto, não deve se constituir num problema, uma vez que nas ciências

humanas as definições são muito escassas e/ou passíveis de toda sorte de controvérsia.

Sendo que tal não se dá por uma espécie de “culpa” – e esse conteúdo moral talvez seja

adequado porque uma certa busca para sanar esse problema tem sido empreendida sob a

égide de cientificidade, ou seja, uma solução para o “erro” que constitui uma ciência (as

humanas) que não tem rigor metodológico.

A questão, como lembraria Adorno (1980), é que o objeto das Ciências Humanas

(no caso desse autor, especificamente a Sociologia) não se presta a uma neutralização a

partir da qual a teoria conseguiria construir enunciados precisos, logo, conceitos

inequívocos; neutralização essa de caráter metafísico. Os enunciados em Ciências

Humanas já nascem sem neutralidade porque (por exemplo) seus teóricos são parte

inseparável do objeto.

Assim, tenta-se alcançar na primeira parte deste trabalho, uma aproximação do

conceito de Território, mais que uma definição propriamente dita. Essa aproximação, por

seu turno, deverá ser construída lentamente, com base em algumas proposições, ou seja,

será uma explicação, mas sem, contudo, abrir mão da compreensão1 – atributo das

ciências humanas.

Para tanto, lança-se mão, sobretudo, da teoria de Deleuze e Guattari, ou melhor, do

complexo teórico contido na obra “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”, ressaltando os

conceitos de Agenciamento Maquínico de Corpos, Agenciamento Coletivo de

Enunciações, Rizoma e Linhas de Segmentaridade; além dos conceitos de Espaço e Poder,

como suporte argumentativo. Ao final desse exercício, concluirei que não existe Território,

mas Processo de Territorialização/Desterritorialização/Reterritorialização; processo esse

meio estranho à epistemologia geográfica do modo como ela tem se constituído; e,

processo esse, “total”: com componentes físicos e simbólicos.

1 “Winch se opuso frontalmente a los postulados positivistas que afirmaban la existência em la sociedad de uniformidades semejantes a las de la naturaleza, y trató de demonstrar que la noción de sociedad humana entraña um esquema de conceptos que es lógicamente incompatible con los tipos de explicaciones proporcionadas por las ciencias naturales, ya que las reacciones humanas son más complejas de las de los otros seres vivos y poseen, además, diferencias esenciales respecto a las de ellos. Es outra vez la ‘comprensión’ lo que aparece como via para entender las motivaciones de los actos humanos.” (CAPEL, 1981, p. 419).

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Os conceitos discutidos nesta parte são aqueles apresentados no “Relatório de

qualificação”, tendo sofrido pequenas “reformas”. O objetivo era formar um anteparo

teórico para sustentar a segunda parte do trabalho. Contudo, esclarece-se que o objetivo do

trabalho apresentado na qualificação tinha como foco a questão do território a partir das

vivências e processos inerentes a cultura Guarani Mbyá e, para tal, o uso dos referenciais

dos dois pensadores franceses acima delineados serviriam como uma ferramenta

metodológica, como se entende a esta na tradição das pesquisas acadêmicas, como base

para se discutir tal problemática.

Diante da complexidade da questão, a banca qualificadora achou por bem indicar

que a dissertação teria mais a contribuir se delimitasse a temática a ser abordada aos

referenciais de Deleuze e Guattari, entendendo que o destrinchar do arsenal conceitual dos

mesmos demandaria, como demandou, um esforço intelectual que atenderia a que se espera

de um trabalho de mestrado. Isso fez que a abordagem sobre a questão territorial pela

perspectiva dos Mbyá fosse deixada para um momento posterior de minha evolução

intelectual, ao mesmo tempo que, o sentido dos referenciais teóricos cobravam uma outra

forma de apresentação de texto, assim como de envolvimento do autor na própria

problemática proposta.

Foi convencionado que se deveria discutir, não mais o território “em si”, dos Mbyá;

mas sim, a partir do (território) detectado por alguns autores que estudam a mobilidade

desse grupo Guarani, frente aos aspectos desterritorializantes implementados quando do

contato dessa cultura com os referenciais hegemônicos da cultura urbana, tecno-científica e

mercadológica de nossa sociedade não indígena; que o melhor e mais adequado, para não

se perder os rumos da dissertação, era aprofundar na relação territorialização,

desterritorialização e reterritorialização, enquanto conceitos necessários para se

fundamentar uma base de referência aos estudos geográficos, independente, no caso, de ser

aplicado a uma cultura ou outra.

Nesse momento, clareou-se a questão, ao mesmo tempo em que apontou para o

sentido de ser pesquisador na relação com o objeto pesquisado. O Território passou a ser

um processo em que o texto acaba materializando seus novos referenciais e entendimento.

Diante desses novos desafios, a mudança do título da pesquisa, de seus objetivos e de sua

forma de apresentação teve que reverberar essa nova situação.

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Feito isso, o texto que aqui visa atender essas orientações, em sua primeira parte

pontua um pouco dessas mudanças de abordagem, assim como desdobra o referencial

teórico necessário para que, na segunda parte, intitulada “fática”2, ensaie aplicações dos

conceitos discutidos, nas circunstâncias do Agenciamento-chave, ou seja, a condição da

própria dissertação ser o objeto da pesquisa; ser o território no qual os processos de

desterritorialização dos referenciai iniciais se reterritorializaram em outras perspectivas e

formas de pensar e escrever. Esse exercício, que é mais prático que teórico, se justifica à

luz do próprio complexo teórico (“Mil Platôs”) que alicerça meus argumentos, posto que,

para os autores, não existe teoria senão em torno de um problema:

“[...] um enunciado, um conceito só tem sentido em função do problema a que se referem. [...]. os problemas são atos que abrem um horizonte de sentido, e que subentendem a criação dos conceitos: uma nova postura do questionamento, abrindo uma perspectiva inabitual sobre o mais familiar ou conferindo interesse a dados até então reputados insignificantes. [...].” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 48).

Assim, os conceitos serão postos em funcionamento, inclusive quanto ao problema

que originou esta pesquisa, qual seja: a delimitação do conceito de Território; tendo em

vista a superação da discrepância entre, de um lado, uma racionalidade realista (e

representacionista) que vigora na quase totalidade dos textos contidos nas “Referências

Bibliográficas”, ao final desta dissertação – o que exemplifica muito bem uma certa

hegemonia dessa racionalidade – e, de outro lado, a racionalidade a que nos convida

participar a obra de Deleuze e Guattari, “Mil Platôs”. Obra essa que, entre outras virtudes,

nos coloca em face dos acontecimentos aos quais os conceitos são aplicáveis – num

exercício de “desabstração” das idéias, pari passu de conciliação entre os rivais

ontológicos da tradição ocidental de ciência: o sujeito e o objeto.

2 Apostei na polissemia do termo, ou seja, fático como uma referência a “fato” e fático como uma função de manutenção da interlocução: “Função Fática (ou de contato): está ligada no contato, visando estabelecer prolongar ou interromper a comunicação, testando para verificar a eficiência do canal, ou seja, estabelecendo e mantendo contato com o interlocutor.” (http://www.brazilianportugues.com/index.php?idcanal=335).

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1. PARTE “TEÓRICA” DO TEXTO

“[...]. É verdade os filósofos dizerem que o real é o virtual destruído; sem grande exatidão contudo, pois que é o virtual plenamente realizado, o virtual agindo. [...].” (KIERKEGAARD, 1979, p. 321-322).

1.1. Território enquanto poder – primeiro significado proposto

Como anteriormente aqui apontado, poderíamos considerar dois sentidos

generalizantes de Território como se tratassem-se de “tradições” – embora não o sejam de

fato, mas apenas rótulos, ou melhor, apenas aqueles sentidos que me chamaram a atenção

em especial, quando das leituras realizadas durante esta dissertação. São essas “tradições”:

a Maquiavélica e a Hobbesiana. Creio que esse é primeiro ponto. Essas generalizações se

mostram bem úteis na medida em que, embora as teorias que as justifiquem sejam já um

tanto antigas – Maquiavel viveu na séc. XV e Hobbes no séc. XVI – o sentido de Território

(o conteúdo do conceito) que elas apresentavam outrora, ainda pode ser considerado

válido; se não, vejamos! Maquiavel tinha em vista que o Território é o conjunto da

hidrografia, geomorfologia, flora etc, de uma determinada área, ou seja, o Meio Ambiente

que é também o palco das guerras entre os Estados:

“[...] ao mesmo tempo que aprende [o príncipe] a conhecer a natureza dos lugares, como se elevam as montanhas e desembocam os vales, como se estendem as planícies, qual é a natureza dos rios e dos pântanos, e estuda tudo isto com mui grande cuidado, pois é-lhe proveitoso de duas maneiras: primeiro, aprende a conhecer o seu país e, portanto, a saber como melhor o poderá defender; segundo, possuidor do conhecimento prático e teórico da paisagem, compreenderá facilmente a situação de qualquer outro lugar que porventura venha a ter necessidade de analisar, porque as colinas, os vales, os campos, os rios e os pântanos existentes, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança e afinidade com os de outras províncias, de modo que, graças ao conhecimento geográfico de uma província, se pode facilmente conhecer outras. [...]”. [grifo meu] (MAQUIAVEL, 1976, p. 79).3

3 Apesar do termo Território estar ausente – sequer o termo “conhecimento geográfico”, de cujo a frase destacamos, aparece no texto original; no qual encontramos a seguinte frase: “tal che dalla cognizione del sito di una provincia si può facilmente venire alla cognizione dell’altre” – ainda assim, a referência é clara, a uma certa concepção de Território segundo a qual, “a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra”.

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Trata-se de uma naturalização do espaço cuja causa talvez esteja ligada ao contexto

cultural ou mesmo seja fruto de uma relação menos urbana com o entorno. Séculos depois,

percebemos na referência de Leroi-Gourhan, que esse sentido ainda é preservado, inclusive

sua separação (tradicionalíssima) entre sociedade e natureza:

“O aspecto normal do território primitivo, do território dos australantropos ou dos arcantropos, será sem dúvida difícil de definir, mas, a partir dos paleantropianos, a existência atestada de cabanas ou tendas torna os termos comparáveis aos dos primitivos atuais. Se aplicarmos aos australantropos e aos arcantropos normas tiradas ao mundo animal chegaremos, aliás, a termos muito vizinhos: o território do primatas ou dos carnívoros pode ser vasto, mas oferece pontos de fixação alimentar e de refúgio que não existiriam numa superfície sem relevos e sem limites.” [grifo meu] (1985/a, p. 152).

Este, parece, é o sentido que território ocupa no imaginário de grande parte das

pessoas; é natural que, em se tratando de um tremendo simplismo, além de que nós

geógrafos precisamos ficar atentos contra isso, procurei criticar tal acepção ao longo de

quase todo este texto.

Não muito distante dele (do sentido), percebemos uma repetição em Foucault –

embora muitos dos seus textos empreendam algumas das mais densas reflexões acerca de

questões geográficas –, repetição da separação entre sociedade e natureza, porém, ao

mesmo tempo, o reconhecimento do “territorialicismo” da sociedade:

“Daí o fato de que a polícia nos séculos XVII e XVIII foi, a meu ver, essencialmente pensada em termos do que poderíamos chamar de urbanização do território; Tratava- se no fundo de fazer do reino, de fazer do território inteiro uma espécie de grande cidade, de fazer que o território fosse organizado como urna cidade, com base no modelo de urna cidade e tão perfeitamente quanto urna cidade. [...]”. [grifo meu] (FOUCAULT, 2008, p. 452).

É essa característica política assumida pelo Território – ele já não é externo aos

homens, não está além das muralhas do burgo – que corresponde ao sentido que “apelidei”

de hobbesiano. É nessa transição entre a visão antropológica – poderíamos chamar de

primitivista? – e a visão política lato sensu, transição que sumariamente exemplifiquei com

os dois autores: Leroi-Gourhan e Foucault, que se encontra uma sutileza que quero apontar

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como “um pontapé inicial” à dissertação, qual seja: o “Território é o Corpo do Estado”; o

que equivale dizer que a função do Território se modifica. Se antes o Território era apenas

um certo onde, matematicamente mensurável em: longe/perto, maior/menor, ou seja, ele

estava fora do Estado porque o Estado, como um agricultor, possuía seu próprio Território,

se era possível pensar assim; já não podemos mais, agora, na acepção hobbesiana, com a

construção de uma idéia mais abrangente, qual seja: o Estado Nacional – podemos dizer

que a função do Território é Realizar o Estado.

Hobbes lança mão de uma teoria política “cosmológica” (que tenta explicar tudo a

partir de poucos princípios fundamentais) que nos recorda Newton – seu contemporâneo –

sendo que a Razão de Estado substituirá a Gravitação Universal. Podemos notar que, para

além da utilização do termo Território – que nos remete à idéia de palco, de exterioridade –

existe em Hobbes o prenúncio de uma teoria organicista/economicista acerca da função do

Território (território-capital?):

“Essa matéria, a que geralmente se chama bens, em parte é nativa e em parte é estrangeira. Nativa, quando pode ser obtida dentro do território do Estado. Estrangeira, quando é importada do exterior. E como não existe território algum sob o domínio de um Estado (a não ser que seja de uma extensão imensa) que produza todas as coisas necessárias para a manutenção e movimento do corpo inteiro, e poucos são os que não produzem alguma coisa mais além do necessário, os bens supérfluos que se obtêm no interior deixam de ser supérfluos, e passam a suprir as necessidades internas, mediante a importação do que pode ser obtido no exterior, seja através de troca, de justa guerra ou de trabalho. Porque o trabalho de um homem também é um bem que pode ser trocado por benefícios, tal como qualquer outra coisa. E já houve Estados que, não tendo mais território suficiente para seus habitantes, conseguiram, apesar disso, não apenas manter, mas até aumentar seu poder, em parte graças à atividade mercantil entre um lugar e outro, e em parte através da venda de manufaturas cujos materiais eram trazidos de outros lugares.” (HOBBES, 1983, p. 150).

Não mais a idéia, então, de um Território substrato (alicerce) sobre o qual se

constrói as cidades e a Cultura, stricto sensu, mas o plano concreto do Estado, inclusive

como uma “inscrição” das relações de poder. Sendo que, poder, para Hobbes, é a soma dos

“bens” (como na citação acima) e mesmo, em se tratando do Estado, a soma dos homens

que constituem um certo patrimônio do Estado. Nesse sentido, Hobbes não se distancia

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muito de Ratzel e de sua idéia de protagonismo do Estado nas relações de poder (Raffestin,

1993, p. 15).

O conceito de Poder em Hobbes, também oferece um importante viés econômico,

uma vez que “[...] define o poder como os meios (bens) de que um homem dispõe para

obter qualquer bem futuro.” (BERNARDES, 2002, p.34). Portanto o Poder, para ele, não é

simplesmente um estoque de bens, mas o significado desses bens (seu valor) num sistema

econômico, ou melhor, a capacidade relativa que esses bens possuem de gerar outros bens

no futuro; o que avalizaria a cobiça individual (BERNARDES, 2002, p. 35) – os bens não

são um fim em si, mas são meios (de produção) – e, conseqüentemente, também avalizaria

seu remédio: uma autoridade central.

De certa forma, mesmo que o significado fosse mais variável que o de Território

(eu não saberia dizer), o conceito de Poder – dentre muitos autores, não exclusivamente da

geografia – e o mesmo conceito de Território, acabam sendo associados4 e, desta forma,

discutidos correlativamente. Então, a partir de agora, vou partir desse ponto (traço) sem

admitir que ele é fundamental, ou seja, que ele tem maior significância que qualquer outro

para se compreender o Território. Inclusive, a partir de certo momento (especificamente no

fim deste capítulo), vou relativizar a importância do mesmo traço.

Esse, ou seja, o Poder, podemos, para além de Hobbes, começar definindo-o como

a capacidade de sujeição, que, por outro lado, poderíamos, utilizando um possível cognato,

interpretar como capacidade de obrigar, de ordenar alguém ou algo e, por outro lado,

como a capacidade de fazer alguém ou algo um sujeito (na relação sujeito/objeto). Coracini

(1992, p. 19) nos oferece esses dois sentidos para o termo sujeito: o súdito, escravo,

submisso; e o agente. Em seu texto, ela coloca na epígrafe uma citação de Louis Althusser

4 Raffestin (1993), por exemplo, insiste nesse aspecto. Mesmo Bourdieu (1998), embora utilize a expressão Campo Social – para significar o Campo dos Campos, ou seja, a sociedade – e com a seguinte definição (p. 135): “Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição actual [sic] pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: [...]”; enfim, ainda que não lance mão do conceito de Território, me parece que: Campo Social é, praticamente, um sinônimo; e, assim, a utilização (pelo autor) do conceito de Poder como fundamental para o entendimento do de Território, se aproxima da utilização proposta, por enquanto, em meu texto. Senão vejamos (p. 134): “As propriedades actuantes, tidas em consideração como princípios de construção do espaço social, são as diferentes espécies de poder ou de capital que ocorrem nos diferentes campos. O capital [...] representa um poder sobre um campo (num dado momento) e, mais precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho passado (em particular sobre o conjunto dos instrumentos de produção), logo sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produção de uma determinada categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e de ganhos.”

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(Aparelhos Ideológicos do Estado), para reforçar essa idéia e, segundo a qual, “a forma

sujeito é [...] a forma de existência histórica de todo indivíduo” e tal forma é imposta a

todo indivíduo-agente.

Poderíamos, por conseguinte, começar partindo da proposição segundo a qual o

poder é um produto das relações sociais5 – o que não exclui, evidentemente, as relações de

produção. Ele é objetivo e, desta forma, o Objetivo sujeitaria o Subjetivo (ordenaria, numa

acepção; e faria dele o que é ele é, num sentido mais declarado do termo sujeito, noutra

acepção) – isso não deixa de ser um tipo de determinismo geográfico! Se não vejamos.

Numa tentativa de definição a partir do pensamento de Foucault, Raffestin (1993, p. 53),

nos explica:

“1. O poder não se adquire; é exercido a partir de inumeráveis pontos; 2. As relações de poder não estão em posição de exterioridade no que diz respeito a outros tipos de relações (econômicas, sociais etc), mas são imanentes a elas; 3. O poder vem de baixo; não há uma oposição binária e global entre dominador e dominados; 4. As relações de poder são, concomitantemente, intencionais e não subjetivas;”

Ora, as duas primeiras características vão ao encontro ao que Coracini chama

submissão e a quarta ao que ela se refere como a qualidade do agente (para não usar o

termo multívoco: ação); enquanto que a terceira característica sugere uma relação dialógica

entre os pólos. Por isso venho asseverando que o Poder é, necessariamente, uma relação.

Seja ela assimétrica ou dissimétrica (RAFFESTIN, 1993, p. 61-64) é a forma do Poder.

Percebemos que o poder não é delimitável, mas tampouco abstrato, pois ele se

exerce. Apenas numa circulação6 – que é a relação – podemos perceber sua presença;

5 “Uma ‘relação social’, na definição de Weber, consiste em ‘comportamentos de várias pessoas que são ajustadas e orientadas nos seus significados para a dependência mútua’. As relações sociais podem ser abertas e transitórias como uma troca econômica; ou podem ser formações (Gebilde) relativamente fechadas e duradouras como uma guilda artesanal ou um Estado político. As ações sociais – e especialmente as relações sociais – podem ser afetadas pela crença dos agentes na ‘existência de uma ordem legítima’. A ‘validade’ de uma ordem para os participantes pode estar baseada na ‘tradição’, na ‘fé’ no ‘recém-revelado ou exemplar’, no compromisso com o ‘valor racional’ ou na crença na ‘legalidade’ de ‘estatutos positivos’”. (RINGER, 2004, p. 159). 6 Devemos ser cuidadosos com a utilização desse termo já tão desgastado pela história da Economia, pois, se o Poder fica visível na sua forma-circulação, não quer dizer que se produza aí. Raffestin (1993, p. 56) citando Deleuze e Foucault nos lembra que o Poder é inseparável do saber e nos alerta para uma definição de trabalho enquanto energia informada o que, conseqüentemente, nos impõe uma reflexão análoga à da Economia Política Marxiana sobre a instância da Produção. No caso de Marx, trata-se da Produção do Valor, cuja forma é a mercadoria (inclusive a mercadoria-dinheiro) e cuja a instância de Produção é o trabalho. É

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jamais estaticamente. O que há de “objetivo” no Poder é justamente esse tecido reticulado

que Raffestin aponta como sendo esses “inumeráveis pontos”, ou seja, mesmo havendo um

sujeito do Poder (o monarca, o patrão etc.), o Poder não lhe pertence; sua condição é

privilegiada no tecido (digamos: central), mas o privilégio é externo ao privilegiado, é a

posição que ele ocupa e não fruto de alguma virtude insubstituível do monarca (soberano

etc.). Assim, temos que o Poder é não-concreto e não-ideal, ao mesmo tempo.

Por outro lado, essa objetividade (a choiséité de Durkheim) pode ser entendida

como uma característica de todo Fato Social: “A objetividade do mundo social significa

que este faz frente ao homem como algo situado fora dele.” (BERGER & LUCKMANN,

1974, p. 123). O Poder não é privilegiado nessa ontologia, na qual não se pode falar em

materialidade – chamemos assim – de qualquer Fato Social, para além do seu “exercício”

pelos homens.

A que se lembrar, por fim, que a identidade entre o Poder e o Soberano (ou mesmo

a Soberania), aliás, tem raízes profundas em nossa visão de mundo. Não é outra a

perspectiva presente em Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, onde Kratós (o Poder) está

entificado, assim como a Violência, e ambos se prestam a garantir a execução da pena

imposta por Zeus por ter Prometeu furtado o fogo divino (símbolo da razão), dando-o aos

homens. Maquiavel (1976), neste sentido, é emblemático! Chegando, inclusive a

indissociar o exercício do Poder e o exercício da Violência.

1.2. De Território/Poder aos Agenciamentos

Agora, essa reflexão sobre o Poder sofre uma mudança de direção; mas retém, em

todo caso, a proposição de que o Poder se dá no interior das relações sociais. Vamos voltar

à “alegoria” do tecido reticulado. Numa tentativa de pensarmos esse tecido o qual, a

princípio, posso identificar como sendo o território (ou, no mínimo, parte dele),

poderíamos recorrer à interessante acepção de Agenciamentos Maquínicos de Corpos

necessário encontrar a instância na qual o Poder é produzido para sabermos como o Território participa. Minha primeira impressão é que ele é o onde dessa instância.

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(utilizemos a sigla, AMC, para facilitar) e Agenciamentos Coletivos de Enunciações

(utilizemos ACE, também), contida nas obras de Deleuze & Guattari.

Para entendermos os ACE, segundo Deleuze & Guattari (1995/b) os explicam,

devemos partir da teoria dos Speech Acts, segundo John Langshaw Austin, seguido por

John Searle e outros, a formulou7. Tal teoria tem como mérito fundamental sistematizar

uma nova concepção de linguagem que, desde “Investigações Filosóficas” de Wittgenstein,

vinha sendo aventada e, segundo a qual, não há correspondência precisa entre linguagem,

pensamento e sentido8. O sentido, no caso da teoria de Austin, como elemento extra-

lingüístico, deveria ser determinado empiricamente e não mais analiticamente. Austin

propôs que os enunciados, ao contrário do que a tradição da lógica afirmava, não são

necessariamente verdadeiros ou falsos, pois há um tipo de enunciado, o performativo, que

não descreve fatos, ou seja, não se refere a um acontecimento que poderíamos, verificando-

o, falseá-lo ou confirmá-lo9.

As palavras de ordem de Deleuze & Guattari são esses enunciados performativos

que, pela força ilocucionária ordenam, questionam, expressam (na acepção de afetividade)

etc. Assim, num certo plano lingüístico, dizer é fazer, pois não se pode auferir, por

exemplo, a veracidade/falsidade de uma ordem, de uma questão, enfim de uma expressão.

Por outro lado, existem as chamadas “condições de felicidade” do performativo10. Elas

tornam eficaz ou não o ato ilocutório:

“Em primeiro lugar, é necessário fazer intervir as circunstâncias [...]. Alguém pode gritar ‘decreto a mobilização geral’; esta será uma ação de infantilidade ou demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 20-21).

7 A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro “How to do Things with words”. 8 RANGEL, E. F. M. Uma nova concepção de linguagem a partir do percurso performativo de Austin. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura , Ano 01, n.01, 2º Semestre de 2004. http://www.letramagna.com/elianedefatimamanentirangel.pdf (acessado em 25 de junho de 2009). 9 Um exemplo citado por Deleuze & Guattari (1995/b, p. 18-19) é a sentença judicial que declara o acusado em culpado, ou seja, produz uma transformação; e isso com a mera frase: “Eu declaro Fulano culpado da acusação de...” 10 Uma aplicação dessas condições ao conceito de Securitização pode ser lida em: DARIO, D. M. Didier Bigo e a utilização da sociologia de Bourdieu para repensar a segurança internacional. Perspectiva Internacional, v. 1, n.1, 2008, p. 4-15.

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As circunstâncias englobam, igualmente (além da posição no Campo), um tempo e

um espaço adequados, ou seja, todas externas ao ato de fala (extralingüísticas). Por

exemplo, se a noiva disser “eu aceito”, antes do casamento, o ato será ineficaz; ou ainda se

o disser fora da igreja... Na segunda parte desta dissertação voltarei a falar da importância

das circunstâncias.

Assim, as palavras de ordem provocam alterações incorpóreas no estado das coisas;

e, claro, não nos objetos propriamente ditos (haverá algo como “objetos propriamente

ditos”?), mas nos Eventos e Fatos Sociais. Deleuze teria partido do conceito estóico de

lekta que, justamente, traduz as transformações meta-espaciais e meta-temporais

exprimíveis em linguagem:

“As the product of the synthesis of forces, events signify the internal dynamic of their interactions. As such, on Deleuze’s interpretation, an event is not a particular state or happening itself, but something made actual in the State or happening. In other words, an event is the potential immanent within a particular confluence of forces. Take as an example a tree’s changing colour in the spring. On Deleuze’s account, the event is not what evidently occurs (the tree becomes green) because this is merely a passing surface effect or expression of an event’s actualisation, and thus of a particular confluence of bodies and other events (such as weather patterns, soil conditions, pigmentation effects and the circumstances of the original planting). Therefore we ought not to say ‘the tree became green’ or ‘the tree is now green’ (both of which imply a change in the tree’s ‘essence’) but rather ‘the tree greens’. By using the infinitive form ‘to green’, we make a dynamic attribution of the predicate an incorporeality distinct from both the tree and green-ness which captures nonetheless the dynamism of the event’s actualisation. The event is not a disruption of some continuous state, but rather the state is constituted by events ‘underlying’ it that, when actualised, mark every moment of the state as a transformation.”11 (STAGOLL, 2005, p. 87).

11 “Como o produto da síntese de forças, eventos significam a dinâmica interna dessas interações. Deste modo, na interpretação de Deleuze, um evento não é um estado particular ou acontecimento em si, mas algo que se fez atual no estado ou acontecimento. Dito de outro modo, um evento é o potencial imanente no interior de uma confluência particular de forças. Usando como um exemplo uma árvore mudando de cor na primavera. Segundo Deleuze, o evento não é o que evidentemente acontece (a árvore se torna verde) porque isto somente é um efeito superficial ou expressão da actualização de um evento, e assim de uma confluência particular de corpos e outros eventos (tais como padrões climáticos, condições do solo, efeitos de pigmentação e as circunstâncias primordiais da plantação). Então, não devemos dizer ‘a árvore ficou verde’ ou ‘a árvore é verde agora’ (em ambos os casos se insinua uma mudança na ‘essência’ da árvore), mas sim ‘a árvore esverdeou’. Usando a forma do infinitivo ‘esverdear’, fazemos uma atribuição dinâmica do predicado uma incorporeabilidade distinta da árvore e da esverdeação que captura, no entanto, o dinamismo da actualização do evento. O evento não é um rompimento de algum estado contínuo, mas antes o estado é constituído através de eventos sob os quais ‘vai estando’; e quando atualizado, indica cada momento do estado como uma transformação.” [Trad. autor].

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Tais alterações, por seu turno, são as variáveis do ACE (DELEUZE &

GUATTARI, 1995/b, p. 23) que, por outro lado, podem vir a se agrupar em Regimes de

Signos, sem que isso implique algum tipo de silogismo do tipo: se “A” está contido em

“B” e “B” em “C”, logo, “A” está contido em “C”. O ACE corresponderia, (mutatis

mutandis) a uma sintaxe, em relação a um léxico de palavras de ordem e, enfim, uma

semântica do Regime de Signos. Ele outorga a qualidade performativa que faz das palavras

de ordem o que são para, através da sugestão da sujeição, produzir as transformações

incorpóreas que não podem produzir-se per se e nem fora do discurso.

“[...] Conseqüentemente, quando perguntamos qual é a faculdade própria à palavra de ordem, devemos reconhecer nela características estranhas: uma espécie de instantaneidade na emissão, na percepção e na transmissão das palavras de ordem; uma grande variabilidade, e uma potência de esquecimento que faz com que nos sintamos inocentes diante das palavras de ordem que seguimos, e depois abandonamos, para acolher outras em seu lugar; uma capacidade propriamente ideal ou fantasmática na apreensão das transformações incorpóreas; uma aptidão para apreender a linguagem sob a forma de um imenso discurso indireto. Faculdade do ponto no teatro e de quem o escuta, faculdade da canção que coloca sempre uma ária em uma ária, em uma relação de redundância, faculdade mediúnica na verdade, glossolálica ou xenoglóssica.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 24).

O Corpo que ele, o ACE, percorre, é extra-escalar, por isso a insistência dos autores

franceses no discurso indireto. Não sou “Eu”, não é “Você”, é o enunciador atópico e

abstrato tecendo vozes (do ego, do alter, do id) para se fazer ouvir e para o qual não existe

biografia, mas sempre uma historiografia. As circunstâncias que tornam eficaz o ato

ilocutório – como aqui abordado – demonstram que, embora deva intervir uma voz humana

(apesar de que poderíamos pensar numa máquina como, por exemplo, um semáforo,

escrevendo no lugar de acender uma luz verde, ao dizer: “o trânsito está aberto”), a palavra

de ordem, posto seja extra-escalar, freqüentemente parte do corpo de uma instituição, seja

através de seu representante, seja através de uma coletividade (num processo eleitoral, por

exemplo).

É importante que, até aqui, tenha ficado claro a definição de ACE. É necessário

falar agora sobre os AMC e, para entendê-los, é fundamental que tenha havido uma

completa assimilação do que quer que seja ACE – um não é compreensível sem o outro.

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Um primeiro ponto a considerar é que Deleuze & Guattari buscam discorrer, na

primeira parte do vol. 2 de “Mil Platôs”, acerca da relação entre linguagem e mundo – por

isso eles falarem em “lição das coisas” e “lição dos signos” (p. 26). Sobre essa relação

Wittgenstein (1999, p. 41) nos diria: “O denominar aparece como uma ligação estranha de

uma palavra com um objeto.” De todo modo, a proposta contida em “Mil Platôs” é de que

essa relação não é necessária (a arbitrariedade de que Hjelmslev faz menção12), porém

tampouco insignificante – muito ao contrário!

Para começar, podemos pensar em dois vetores: um do ACE e outro do AMC. É

interessante não falarmos em grandezas escalares, mas em vetoriais, quando tratarmos dos

agenciamentos, pois devemos evitar uma certa estática que se mostra muito presente nas

ciências. Cada um dos dois vetores, em sua dinâmica, em seu “deslocamento” contínuo,

seria um agenciamento. Pensemos neles (os vetores) seguindo uma direção e sentido

temporais num eixo horizontal e se afastando mutuamente ou se aproximando, num eixo

vertical de territorialização. Pensemos também que não são retas (como no diagrama “A”,

no Anexo 1)13 e tampouco, digamos, ondas, com freqüência idêntica (como no diagrama

“B”, do mesmo anexo).

Em alguns momentos, o vetor do AMC faz interseção com o vetor do ACE

(assinalei-os com círculos pretos). Em outros, esses vetores se distanciam (assinalei-os

com setas pretas na referida figura). Os momentos de interseção, Deleuze & Guattari

explicam como conseqüência da desterritorialização, enquanto que os momentos de

distância, eles explicam, conseqüentemente, a partir da territorialização.

O fato de que, ainda fazendo referência a Figura I, devamos excluir os diagramas

menores (A e B) segue da premissa segundo a qual: “[...] a independência das duas linhas é

distributiva, e faz com que um segmento de uma reveze, sem cessar, com um segmento da

outra, que se insinue ou se introduza na outra.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 28).

No diagrama “A”, partiríamos da premissa de que a linha da expressão nunca se relaciona

com a linha do conteúdo14. Enquanto que no diagrama “B”, há a premissa de que se

relacionam, mas de maneira coordenada (como se uma “lógica” metafísica fosse uma

essência da qual os agenciamentos são manifestações similares).

12 HJELMSLEV, 1978, p. 190-191. 13 Vide “Anexos”, no fim desta dissertação. 14 Na epistémê vigente até o século XVI a representação era absoluta, ou seja, as palavras eram tidas como um reflexo das coisas, logo translúcidas, sem densidade (FOUCAULT, 1999, p. 23).

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No diagrama principal, conforme os agenciamentos vão se desenrolando (ou, dito

de outro modo, sendo postos na duração) eles tendem a um tipo de biostasia, ou seja,

encontram um ótimo temporalmente relativo (que representei na mesma Figura como a

distância maior entre os vetores), no qual territorializam melhor os elementos do seu

domínio (as coisas, para o AMC; os signos, para o ACE). A um certo momento, essa

tranqüilidade é rompida – eis a resistasia – e um agenciamento se encontra (ou, pelo

menos, busca fazê-lo) com outro para se reterritorializar. Talvez para recuperar uma certa

propriedade de agregar, ainda não perdida pelo outro agenciamento!? Me parece que esse

“agregar”, reconhecem os autores com outro nome: consistência:

“[...] E a articulação dos dois aspectos do agenciamento [Corpos e Enunciações] se faz pelos movimentos de desterritorialização que quantificam suas formas. É por isso que um campo social se define menos por seus conflitos e suas contradições do que pelas linhas de fuga que o atravessam. Um agenciamento não comporta nem infra-estrutura e superestrutura, nem estrutura profunda e estrutura superficial, mas nivela todas as suas dimensões em um mesmo plano de consistência em que atuam as pressuposições recíprocas e as inserções mútuas.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 32).

Me parece igualmente que a definição (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 26),

de forma da expressão e de forma do conteúdo como sendo, respectivamente, o

“encadeamento dos expressos” e a “mistura de corpos”, com referência ao ACE e ao AMC,

não dá conta da physis, ou melhor, da nómos dos agenciamentos. O mais apropriado talvez

seria falarmos em Sistema de Ações15, para dar conta da forma do AMC.

De qualquer maneira, subsiste uma questão: o “motor”. A produção das

transformações incorpóreas, os atos da fala e, mesmo as ações, têm seu motor. O que é essa

vontade de agir? A “Vontade de Potência” (NIETZSCHE, 1999, p. 445)? Ou o desejo que

atravessa um “Corpo sem Órgãos” de ponta a ponta (DELEUZE & GUATTARI, 1996)?

15 O Sistema de Objetos só pode fazer sentido e mesmo funcionar, quando, em conjunto com ele, funciona o Sistema de Ações: “O espaço não pode ser estudado como se os objetos materiais que formam a paisagem tivessem uma vida própria, podendo assim explicar-se por si mesmos. Sem dúvida, as formas são importantes. Essa materialidade sobrevive aos modos de produção que lhe deram origem ou aos momentos desses modos de produção. Mas, como lembra Baudrillard [O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973], a ‘única coisa que nos dá conta do real não são as estruturas coerentes da técnica, mas as modalidades de incidência das práticas sobre as técnicas ou, mais exatamente, as modalidades de obstrução das técnicas pelas práticas.’” (M. SANTOS, 2002, p. 105).

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Posteriormente, quando a relação conceitual tornar mais pertinente, abordar-se-á com mais

propriedade essa questão do desejo.

Enfim, esse conceito (de Agenciamento), a respeito do qual foi apontando que

servia para entender o tecido reticulado do poder (no início do presente capítulo), tem uma

“proximidade” com o próprio conceito de Poder; mas, não devemos pensar nessa

proximidade como uma equivalência.

Não devemos ignorar a crítica que Habermas faz a Hannah Arendt, ou seja, o Poder

não é intrinsecamente democrático – como a proposição da “ação social em concerto” quer

supor (GOMES, 1997, p. 96). A violência estrutural de Habermas16 nos levaria a pensar na

distância entre o conceito de Poder (esse violento) e o de Agenciamento, uma vez que um

elemento basilar os separa: a evidência, a visibilidade do Poder face o silêncio do

Agenciamento. Por outro lado, isso é resultado mais de matrizes teóricas distintas, do que

de distinções ontológicas, de forma que uma certa acepção de Poder, sobretudo aquela

foucaultiana, continua sendo válida para as reflexões acerca do conceito de Território.

Por ora, como explicam os dois franceses, todo Agenciamento é territorial e, se

devemos reconhecer que nesses Agenciamentos ocorre a interpenetração das referências

(política, econômica, estética – para não usar o adjetivo “cultural”), sendo essas referências

inseparáveis dos respectivos poderes (no duplo sentido de sujeitar: o agente e o submisso),

podemos então arriscar uma definição de Território que:

αααα Considere o Espaço Geográfico seu anteparo e não o Espaço Topográfico; segundo

uma determinada concepção de Território (aquela que Maquiavel, por exemplo,

pretendeu);

ββββ Não queira distinguir no Poder, um componente econômico, outro político, outro

simbólico etc., como se a qualidade do Campo alterasse a qualidade do Poder que lhe é

precedente e mesmo, talvez, transcendente;

16 HABERMAS, Jurgen. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sérgio P. (orgs). Habermas. São Paulo: Ática, 1987. p. 100-118.

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γγγγ Proponha um Alter, um Pólo, posto que a noção de Agenciamento supõe

movimento (à guisa da Dialética Heraclitiana17?) entre um “ser” e um “não-ser” que é a

forma processual (do território) e não reificada.

Creio que seja menos complexo o segundo ponto levantado (ββββ), aquele no qual os

liames do Poder são categóricos e não específicos, de forma que os campos podem alterar-

se sem alterar-lhe a physis intrínseca: de que o Poder é, por exemplo, uma ação social em

concerto – na definição de Arendt18. Quer me parecer que, como o ACE estar além do

conceito de Escala, ou seja, ser “extra-escalar”, o mesmo se aplica ao Poder. Isso equivale

dizer, mutatis mutandis, que o Poder é “nomotético” e não “idiográfico”.

Nesse caso, restaria ainda saber se podemos falar em ‘territórios’ ou se ‘O

Território’ é, como o Poder, se não ubíquo, categórico; o que, talvez, resultaria no

postulado de que o Território, assim como o Poder, não é uma framework composta de

subterritórios, os quais a reproduzem em infra-escalas. Ao mesmo tempo, devemos, como

Raffestin (1993) o faz em relação ao Poder, atentar para o fato de que o Estado-nação não é

a esfera privilegiada do Território, porém que outros territórios se lhe interpõem (e

intrapõem), sem que a “essência” – por assim dizer – que é a territorialidade seja diversa.

No entanto, antes de adentrarmos aos demais conceitos organizadores da

abordagem, tais como rizoma e corpo sem órgãos, torna-se necessário um dobrar sobre o

17 Esse movimento tem um sentido temporal e não espacial. Na medida em que, em termos einsteineanos, o tempo é uma dimensão do espaço – a quarta dimensão – podemos imaginar, por exemplo, uma linha ligando um ponto que denominarei de Vida, a outro, que denominarei, por sua vez, de Morte. A existência de um ser-vivo, portanto, seria a trajetória que leva essa linha do ponto vida ao ponto morte. Assim, temos um movimento (um deslocamento temporal e não espacial). O importante desse deslocamento é que ele marca a dependência intrínseca entre os pólos: “Não se trata, pois, de uma ‘oposição’ no sentido de uma irredutibilidade ou de uma autonomia absoluta por parte das forças ou das pulsões que conflitam ou que se ‘opõem’ mutuamente. Aliás, não haveria sentido falar de ‘irredutibilidade’ ou ‘autonomia absoluta’ no seio de um conflito, visto que todo conflito já supõe relação de forças [...]’. (ALMEIDA, 2007, p. 48-49). Não existe vida e nem morte em-si, mas um movimento, uma trajetória entre os dois; uma vez que eles são conceitos e, como tais, abstratos. A vida não existe concretamente. O que existe é o ser-vivo e sua trajetória de vida, ou melhor, tudo o que existe de fato pode ser reduzido a um ponto numa trajetória entre dois conceitos dicotômicos. A aparente discrepância que isso produz, ou melhor, aparente indefinição, reside na conceitualização dos fatos, os quais são complexos e incompatíveis com denominações. 18 Essa noção de physis remete tanto à matéria original, quanto à dinâmica (modus operandi) do Ser (ALMEIDA, 2007, p. 47-48). Ora, H. Arendt afirma justamente que o Poder é um momento fugaz presente nas origens de uma organização social e que, em seguida, é institucionalizado na figura da Autoridade: “Mas o caráter coletivo dessa ação” [o poder] “não esgota a sua importância; é preciso ter presente que o poder é uma ação em concerto que funda uma dada comunidade [...].” (PERISSINOTTO, R. M. Hannah Arendt, poder e a crítica da “tradição”. Lua Nova - Revista de cultura e política, São Paulo, 2004, n. 61, p. 199).

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elemento conceitual que muitos entendem como pertinente por excelência à geografia.

Antes é preciso falar sobre o Espaço.

1.3. Conceito de Espaço

Abordar o conceito de Espaço qualificado como geográfico pode ter como

parâmetro inicial a definição de Leroi-Gourhan (1985/b, p. 131), por exemplo, que o

considera muito mais como sistema do que de como a coisa – não se confunde com o

“espaço natural” e não o subsume. Aliás, seguindo o raciocínio de Douglas Santos (2002),

Espaço é Espaço! Não é geográfico, físico, geométrico, mental etc.

O Espaço é concreto, mas não o vemos (experimentamos) totalmente. Talvez a

palavra mais adequada seja Prótese, ou seja, o Espaço Geográfico se superpõe ao “espaço

natural” para funcionar como tal, mas, já produzido socialmente, tem uma composição

artificial. Milton Santos (2002, p. 63), entre outros, nos permite compreender essa

proposição, posto que afirma ser o Espaço, “formado por um conjunto indissociável,

solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, [...]”. Por isso

podermos dizer que o Espaço é produzido socialmente: esses sistemas não existem sem o

trabalho humano (a ação, em referência aos corpos, junto do ato, em referência às

enunciações) dando-lhes sentido, dinâmica e forma. Uma construção embrenhada na

“artificialidade” criada pela natureza humana.

Essa “artificialidade” deve ser pensada assim mesmo (entre aspas), uma vez o

próprio “natural” é produzido (é um conceito!) artificialmente – haverá coisa mais natural

no homem que a nudez? E, contudo, a idéia de homem nu é elaboração humana, ela é tão

artificial como as roupas que servem, justamente, para caracterizarmo-nos enquanto nus,

enquanto em falta com algo necessário19.

19 “Vergonha de quê, e diante de quem? Vergonha de estar nu como um animal. Acredita-se geralmente, mas nenhum dos filósofos que vou questionar daqui a pouco menciona isso, que o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber. Logo, o fato de não estarem nus, de não terem o saber de sua nudez, a consciência do bem e do mal, em suma. Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Elas não estariam nus porque eles são nus.[...]”. (DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. P. 17).

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O Território, por sua vez, a fortiori, não pode continuar a ser entendido segundo a

definição de Maquiavel e nem pode dar-se no vazio, ou melhor, ele se materializa

(Raffestin fala, acima, que as relações de poder são não subjetivas), necessita de um plano

concreto20 para existir e podemos eleger o Espaço como tal. Isso não implica que uma

teoria do Território necessite incorporar uma teoria espacial propedêutica. O que importa é

não reificar um ou outro, ou seja, não considerar que Espaço e Território são sinônimos –

como queriam a geometria euclidiana e a física newtoniana, segundo as quais o espaço é

abstrato e absoluto, assim como o território ser uma extensão representável num gráfico

(de três dimensões) onde os pontos, ou seja, a matéria e a energia são alocados. Não

considerar, enfim, que o Território, porque se materializa, equivale ao stock de recursos

naturais, população, área etc., do qual um Estado Nação dispõe de sua área enquanto

espaço físico de valor econômico e político.

Ter em mente essa distinções, permite pensar a noção de Espaço, voltando ao

conceito de Agenciamento, não separando o Maquínico-corpóreo do Coletivo-enunciativo

num processo Territorial. Ora, os autores de “Mil platôs” asseveram, justamente, que é

preciso, enfim, pensarmos as multiplicidades – e não meramente como a soma das

unidades – e o projeto de abordar a realidade tal qual ela se nos dá, obriga a esse

procedimento anti-analítico em que se constitui o não fracionamento entre palavras e

corpos.

Não é de uma essência que se trata um agenciamento. Não é uma estrutura (como

na linguagem, para os estruturalistas21) a partir da qual se explica o desvio, mas o próprio

desvio como matéria a partir da qual o teórico produz seu modelo (DELEUZE &

GUATTARI, 1995/b, p. 52-53). O Agenciamento canaliza a própria coisa, não uma noção

que se faz dela. Mas o que é corpo sem uma representação, uma construção do que ele é e

uma enunciação sem sua referência corpórea?

20 Esse plano concreto tanto pode ser o ‘conjunto de sistemas’ de M. Santos: “Isso significaria que o território carregaria sempre, de forma indissociável, uma dimensão simbólica, ou cultural em sentido estrito, e uma dimensão material, de natureza predominantemente econômico-política.” (HAESBAERT, 2006, p. 74). Quanto pode ser o ‘ambiente’, no sentido ecológico do termo: “Partindo de um ponto de visto mais pragmático, poderíamos afirmar que questões ligadas ao controle, ‘ordenamento’ e gestão do espaço, onde se inserem também as chamadas questões ambientais, têm sido cada vez mais centrais para alimentar esse debate. Elas nos ajudam, de certa forma, a repensar o conceito de território.” (HAESBAERT, 2006, p. 76). 21 “A fim de construir uma lingüística deve-se proceder de outro modo. Esta não deve ser nem uma simples ciência auxiliar, nem uma ciência derivada. Essa lingüística deve procurar apreender a linguagem não como um conglomerado de fatos não lingüísticos (físicos, fisiológicos, psicológicos, lógicos, sociológicos), mas sim como um todo que se basta a si mesmo, uma estrutura sui generis. [...]”. (HJELMSLEV, 1978, p. 187).

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“Não há, entretanto, qualquer semelhança, nem correspondência ou conformidade analíticas dos dois planos [expressão e conteúdo]. Mas sua independência não exclui o isomorfismo, isto é, a existência do mesmo tipo de relações constantes de um lado ou do outro. E é esse tipo de relação que faz, desde o início, com que os elementos lingüísticos e não- lingüísticos não sejam separáveis, apesar de não apresentarem correspondência. É simultaneamente que os elementos do conteúdo darão contornos nítidos as misturas de corpos, e os elementos de expressão darão um poder de sentença ou de julgamento aos expressos não-corpóreos. [...]. E é esse o sentido da doutrina do juízo sintético: o de ter mostrado que havia um vínculo a priori (isomorfismo) entre a Sentença e a Figura, entre a forma de expressão e a forma de conteúdo.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p.56).

Os vetores do ACE e do AMC, justamente enquanto são distintos, têm essa

dependência recíproca: o abstrato precisa do concreto para lhe dar seu sentido e o concreto

precisa do abstrato discretizando-o. Por isso abrir mão do Espaço faz do Território um

conceito opaco, indeterminado; quase um conceito disponível. Na realidade, é de um

Agenciamento que falam Deleuze e Guattari, pois o conceito de Espaço precisa se

territorializar no conceito de Território para que o aspecto geográfico do mesmo se

desvele.

Aqui cabe um destaque à tradição metafísica que estabelece a divisão entre corpos e

enunciados; essa sombra metafísica ficou diante dos autores, os quais não puderam ignorá-

la completamente (até por uma questão epistemológica). Nesse sentido, que a relação entre

território e espaço se dará na distinção entre os elementos corpóreos e os enunciados, como

os dois tipos de agenciamento delineiam.

Demarcado esse entendimento, pode-se passar agora para a abordagem sobre

Rizoma.

1.4. Rizoma

Aqui torna-se necessário apontar o Alter (inverso) do Território. A proposta na

seqüência que, se não lógica, ao menos não me pareceu absurda: Território a partir de

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Poder (leia-se também violência); Território neutro a partir do Espaço; enfim, Território e

não-Território.

Talvez seja possível ensaiar uma definição de Território, ao menos pelo valor

heurístico disso – mais que pela convicção de que uma definição dessa natureza pode ser

proposta em tão pouco tempo. O Território é uma actualização22 espacial dos

agenciamentos. Para isso, necessário é reconhecer que o Espaço não é uma coisa23, mas

um processo, ou seja, não se presta à observação (contemplação etc.), mas à elaboração

teórica, pura e simplesmente.

Agora, caro leitor, encontramo-nos diante desse conceito novo: agenciamento; e de

sua adjetivação – necessária por este trabalho, enfim, tratar-se de um texto geográfico.

Actualização (expressão) espacial dos agenciamentos, o Território, em verdade, é outro

processo. É assim que Deleuze & Guattari (1995/a) o entendem (não explicitamente)

quando explicam:

“[...] A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orquídea imita a vespa cuja imagem reproduz de maneira significante [...].” (p.18).

Essa simbiose, conjunção da orquídea e da vespa fora de uma e de outra é um

território-processo; cujo objetivo é a reprodução da orquídea. Não se deve crer que se trata

aqui de um locus territorial, pelo fato de que a vespa “leva” a orquídea de uma parte a

22 Lanço mão desta grafia não para propor algum outro conceito, mas para acentuar um sentido, ou mesmo conotar um sentido específico para esse termo já muito “gasto”. Trata-se de considerar o sentido de ato, ou melhor, de atualização à luz do conceito de Evento deleuzeano, ao qual está intrinsecamente ligado. Creio que é desnecessário tentar discorrer sobre isso, uma vez que na “nota de rodapé 14”, desta dissertação, há uma explicação bem contundente: “Como o produto da síntese de forças, eventos significam a dinâmica interna dessas interações. Deste modo, na interpretação de Deleuze, um evento não é um estado particular ou acontecimento em si, mas algo que se fez atual no estado ou acontecimento. Dito de outro modo, um evento é o potencial imanente no interior de uma confluência particular de forças. Usando como um exemplo uma árvore mudando de cor na primavera. Segundo Deleuze, o evento não é o que evidentemente acontece (a árvore se torna verde) porque isto somente é um efeito superficial ou expressão da atualização de um evento, e assim de uma confluência particular de corpos e outros eventos (tais como padrões climáticos, condições do solo, efeitos de pigmentação e as circunstâncias primordiais da plantação). [...].” 23 “[...]. A experiência da coisa não passa por todas essas mediações, e, conseqüentemente, a coisa não se oferece a um espírito que apreenderia cada camada constitutiva como representativa da camada superior e a construiria de um lado a outro. Ela existe primeiramente na sua evidência e tôda tentativa para definir a coisa seja como pólo de minha vida corporal, seja como possibilidade permanente de sensações, seja como síntese das aparências, substitui a própria coisa em seu ser originário por uma reconstituição imperfeita da coisa com a ajuda de trechos subjetivos. [...]” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 330).

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outra, mas sim, porque a vespa leva a orquídea – como o vento às gimnospermas –, o

segmento de uma se acopla ao segmento de outra24 derivando uma terceira coisa que não é

um ser meio vegetal, meio animal, mas um processo que está aí para que a orquídea se

reproduza: um processo de reterritorialização – com suas conseqüentes desterritorialização

e territorialização.

A esse processo se aproxima outro que se delimita por meio do conceito de

Rizoma. Este é uma possibilidade de processo, um meio de se constituir um Território que

não seja aquele da arborescência – que é o hegemônico, o monoteísta, enfim, o idêntico;

mas também, antiteticamente, o “analítico”, ou seja, aquele composto por frações, aquele

cujo todo é a soma das partes. É contra isso que aqui foi anteriormente apontado o

Território categórico – como o Poder – que é também um Território sem geometria.

Assim como no Corpo sem Órgãos25, não se chega ao Rizoma, porque ele não é um

ser é um devir. Por isso eu devo falar em territorialização (o devir). Não mais a rede, nem

ainda o Campo, a territorialização nos abre a comporta de um fluxo (de poder, por

exemplo) e um fluxo aquático porque ele não tem uma forma (embora não seja essência

pura também).

O Rizoma é também como a água, com a diferença de que tem seu próprio motor. É

um tipo particular de agregado que não se baseia numa estrutura, mas também possui suas

“peças”. Mas essas peças não se arranjam, não produzem uma arquitetura e,

conseqüentemente, não se implicam mutuamente – você pode tirar uma do lugar e o todo

funciona sem ela. Aliás, elas não possuem algo como “lugar”.

O mesmo não ocorre no esquema da arborescência. Se, num organograma de uma

empresa, por exemplo, retiramos uma peça, precisamos substituí-la por outra e, o mais

importante: outra com o mesmo valor. Não precisamos pensar num castelo de cartas (outra

arborescência), ou seja, não pensar que a estrutura precisa ruir com a ausência de uma de

suas peças, mas, ainda assim, existe uma diferença radical entre um Rizoma e uma

24 Que é o mesmo que acontece no “entre” ou no “durante”: “É importante apontar que o entre é um espaço não localizável. E, que, ao mesmo tempo, ao se propor como espaço, distância e corte, o entre põe em questão as dualidades, as noções espaciais, assim como o tempo, e, impulsionando os corpos, fazem do lugar e da prática das palavras/pensamentos, uma força de extração e denúncia da individualidade enquanto ser e palavra, ou o ser da palavra, como passagem limite, que racha e dobra os cortes e as descontinuidades [...].” (FONTES, 2007, p. 49). 25 “Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO [Corpo sem Órgãos] é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem.” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 20).

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Arborescência. Parece, por outro lado, que o segundo termo está mais próximo de uma

série de práticas nossas; e de idéias.26

Deleuze & Guattari (1995/a), num capítulo intitulado “Rizoma”, elencam algumas

características do mesmo. São os princípios de conexão e de heterogeneidade, dos quais se

depreende que a história dos corpos e das enunciações é, por questões políticas,

arborescente; mas, na verdade, o que se tem aí é uma deformação do Rizoma.

Há igualmente o princípio de multiplicidade, para o qual o Rizoma não tem sujeito

nem objeto, nem unidade de medida porque não tem centro fundador, começo e fim. A

unidade de medida é sempre arbitrária e tenta extrair algo, a partir de um ponto de vista (o

sujeito), para um fim colimado (o objeto).

“Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. [...].” (1995/a, p.17).

Princípio de ruptura a-significante que indica a dinâmica, pura e simplesmente,

sem nenhuma teleologia. Em verdade, os autores falam em linhas – óbvio, pois se trata de

um movimento – e não em peças – coisa que poderia nos fazer pensar em pontos. São as

linhas de segmentaridade e as linhas de fuga. Ambas estão contidas já no Rizoma, como

possibilidade de crescimento/recrudescimento dele. É pelo fato de que existem outros

Rizomas (em última análise, todas as coisas) que as linhas de fuga podem sempre serem

convertidas em novas linhas de segmentaridade, quer no interior do Rizoma matriz, quer

no interior de um outro Rizoma (próximo).

Essa junção de elementos diversos (vide exemplo da vespa e da orquídea) que

caracteriza o Rizoma, não prova a inexistência dele, ao contrário, prova que a tal

diversidade (ela presumida) é que tem sua existência duvidosa; pois antes das partes

26 Aliás, que a idéia de arborescência tem sua origem profunda numa maneira de ver o mundo – explorada pela lógica formal mesmo antes de seu nascimento –, a obra de Hesíodo pode apontar isso; inclusive a mitologia escandinava, com a imagem da árvore-eixo do mundo: Yggdrasil, pode nos indicar tal reminiscência arquetipicamente. Ainda sobre Hesíodo: se tem atribuído a este poeta grego da Beócia a origem da Genealogia. Com seu “Teogonia”, ele começa a estabelecer um método de sistematizar a sucessão dos seres através da relação causal e da classificação. A título de curiosidade, ele também está na origem do sujeito do processo literário (SOUZA, J. C. Do mito à filosofia. In: Os Pré-Socráticos - Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996).

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(diversas) só havia o Todo. Digo: quando se diz “vespa” e “orquídea” e quando se une, se

põe em contato os dois corpos para produzir o terceiro, a existência desse terceiro não é

menos “legítima”, nem incidental ou coisa do tipo, mas é tão concreta e tão passiva de ser

denominada – poderia-se sugerir o neologismo “orquidovespea”, ou qualquer outro – e de

figurar entre outros substantivos. Penso, então, no poema:

“Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; assim como uma bala do chumbo mais pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado; qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso, relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada; assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia; qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso de homem que se ferisse contra seus próprios ossos. [...].” (MELO NETO, 1975)

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O que é essa faca, essa bala e esse relógio que não um osso, um músculo, um

coração? Ou seja, “vasos comunicantes” por onde escorre o desejo. E porque não podem

ser um Corpo sem Órgãos? E um osso, um coração, porque devemos crer que eles existem

ou que sua existência é absolutamente estanque à do bisturi e, mais ainda, à das palavras na

boca do médico? Aos gemidos que atravessam o doente (sem que nasçam Nele)? Sim, a

qualquer momento uma linha de fuga se volta na direção contrária e liga um músculo a

algum outro Agenciamento. Liga-o ao tear (por exemplo) e se reterritorializa numa

composição orgânica do capital – logo após o “conserto” do operário, cujo plano de saúde

garante a transparência, ou melhor, a plenitude de um fluxo.

Claro que João Cabral não nos fala sobre a sociologia do “herói” (em seu longo

poema em quadras), mas tão somente – como se fosse pouco! – da epistemologia dele;

trata-se de um poema que visa construir (destruindo) seus objetos27 (sobretudo o objeto

humano). Mas, como não presumir o perímetro que reduz o pesadelo ou a neurose

obsessiva de um homem a três objetos fabris? Eis um Agenciamento: uma “ordem”

silenciosa vai fundindo os três objetos ao homem. Da primeira até a terceira quadra,

assistimos à transformação do corpo em músculo e em coração; o coração que já era o

relógio prévio (e impiedoso como uma lâmina). Fisiologicamente impossível? Talvez.

Mas, o que é a Fisiologia senão uma outra ordem? A mais aceita, hoje, no ocidente, para

determinar a fronteira salubre entre corações e balas?

Voltando mais especificamente aos dois franceses, o último elemento que os

autores enumeram é o princípio de cartografia e de decalcomania. Trata-se, em linhas

gerais, do que foi apontado sobre a Arborescência, de que o Rizoma se apóia noutro

paradigma que não o da árvore-raiz. Seria o paradigma do mapa ou da decalcomania.

Contudo, para além da afirmação dos autores de que a realidade se comporta, sobretudo,

rizomaticamente, enquanto a Arborescência é resultado da história de uma determinada

metafísica – a da pre-sença28 – e que essa última é a repetição, o retorno ao mesmo, o

27 “[...]. Trata-se de uma definição que utiliza uma predicação com o verbo ser para descrever, em termos paradoxais ou inesperados, a atividade de um objeto ou conceito escondido, lembrando a adivinhação (que geralmente começa com: o que é o que é?). Assim, o enigma é uma definição que evita a definição para melhor definir, por meio de uma formulação que capta um aspecto imprevisto de um objeto ou conceito. A surpresa do ouvinte estimula a sua receptividade. Neste poema, a forma de adivinhação é logo sugerida pelo título: uma faca só lâmina não é afinal, um objeto útil, e as perguntas como Por quê? e O que isso significa? se tornam necessárias.” (PEIXOTO, Marta. Poesia Com Coisas. São Paulo, Perspectiva, 1983. P.126) 28 Do sentido per se e do sentido de cada expressão do pensamento/língua; como essência e fora do jogo, ou melhor, antes do jogo.

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recalque, quer me parecer que é muito controvertida a argumentação de que devamos

(conscientemente?) nos apoiar no Rizoma.

Se não vejamos: Leroi-Gourhan (1985/b) considera a existência de uma percepção-

memória ligada ao Espaço Irradiante e outra ao Espaço Itinerante; produtos,

respectivamente, de uma história de sedentarismo e de uma história de nomadismo

humanos. O interessante desse esquema é a produção de um discurso linear, ligado ao

Itinerante e de outro, cartográfico, ligado ao Irradiante, pois o texto, por excelência

(provavelmente com exclusão do ideográfico, do hieroglífico etc), encadeando sons a-

significantes constrói, assim, sintagmas, à guisa do modelo arborescente. Por outro lado, o

quadro, o mapa e coisa do gênero constroem o discurso cartográfico.

Mas, o Território é a actualização espacial dos agenciamentos – a questão inicial.

Outra questão é o Rizoma. Ele tem que ser pensado (como), ou melhor, ele precisa ser o

viés dessa actualização espacial; caso contrário estará condenado a uma certa cartografia,

ou seja, sempre “repetir”, sempre voltar ao mesmo, ao ponto de apoio, ao centro29. Dito de

outra maneira: nunca chegará ao Território-fenômeno, mas estará emigrando dele, por

meio (de) e com destino (a) um modelo – enquanto um lugar próprio – como nas paisagens

imaginárias: o Inferno de Dante, a Utopia de Morus, a Nova Atlântida de Bacon, a

Metropolis de Lang etc. Enfim, a repetição, não é outra coisa que não o próprio

determinismo30, ao passo que o Rizoma tende às modernas teorias da Incerteza31.

29 Um exemplo nítido dessa operação de “centrificação” é a crença, muito respeitada, de que há leis gerais regendo a realidade. Newton, por exemplo, propôs a Força Gravitacional como um centro. O problema, no caso do Rizoma, não é simplesmente limitá-lo a uma função – para a qual a lei geral serviria – mas de não poder obtê-lo dessa maneira, de não permitir seu funcionamento: “[...]. Contudo, até ao acontecimento que eu gostaria de apreender, a estrutura, ou melhor a estruturalidade da estrutura, embora tenha sempre estado em ação, sempre se viu neutralizada, reduzida: por um gesto que consistia em dar-lhe um centro, em relacioná-la a um ponto de presença, a uma origem fixa. Esse centro tinha como função não apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura inorganizada – mas sobretudo levar o princípio de organização da estrutura a limitar o que poderíamos denominar jogo da estrutura. [...].” (DERRIDA, 1995, p. 230). 30 “[...]. Esse determinismo filosófico (que não deve ser confundido com uma visão fatalista de que a história é, de certa maneira, predeterminada, ou com concepções monocausais grosseiras do processo histórico) é uma condição de nossa capacidade para compreender o que acontece ao nosso redor. O pesadelo dos romances de Kafka reside no fato de que nada que acontece tem qualquer causa aparente ou que possa ser comprovada [...].” (FOSTER, John. B. & WOOD, Ellen. M. Em defesa da história: marxismo e pós-modernidade. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. P. 201). Em maior ou menor grau, tudo aquilo que se pretende científico, resulta em alguma espécie de determinismo, ou seja, o simplismo, segundo o qual, se conhecemos as causas, podemos predizer os efeitos. 31 Como na experiência mental conhecida como “O gato de Schrödinger”: coloca-se um gato num quarto fechado com um dispositivo que pode ou não liberar veneno, conforme a ocorrência ou não de fatos aleatórios. Desta forma, enquanto o quarto não for aberto para se conhecer o resultado, existem, realmente, dois universos: aquele em que o felino está morto e aquele em que está vivo. (WIGGINS, Arthur. W.;

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É necessário, pois, seguir os vetores do AMC e do ACE. É necessário, como no

flash fotográfico, “recortar” o tempo e deter-se nas relações entre as linhas de

segmentaridade. Ao mesmo tempo, deve-se estar atento para as linhas de fuga, pois é de

um processo que cuidamos e, como na dialética heraclitiana, dito de maneira bem simples:

o processo é um ponto numa linha entre pólos. Aliás, esse é o motivo central de não se

falar aqui de um conceito de territorialização e, de um outro, de desterritorialização.

Além de que, isso seria o retorno à raiz, à “arvore centro do mundo” (Yggdrasil).

Não mais deduzir, ou classificar, ou representar. Porque essa é a permanente e

renhida retomada do mesmo, do subjetivo, da significação, da história, do centro etc. Para

entendermos o Rizoma, mesmo para praticá-lo (se é que isso é possível), deveríamos, a

priori, abandonar qualquer método, ou melhor, abandonar a crença de que um método tem

qualquer serventia; ou ainda, de que fazemos coisas com métodos. Pois, no final de todo

exercício “científico”, sempre se volta ao começo; essa volta, ela mesma a ilusão

esquizóide de quem não saiu ainda do lugar.

1.5. Retornando ao trabalhado – elementos a serem destacados

No início desta parte (“teórica”), buscou-se amarrar alguns conceitos para

fundamentar a segunda parte do trabalho. Assim, a princípio, partiu-se de um lugar-comum

na geografia, segundo o qual Território e Poder são conceitos indissociáveis.32

Naturalmente, esse “gesto” requeria que eu lançasse mão de um conceito de Poder e, então,

tendo em mente a relação entre sujeitos inseridos duplamente (agente ao mesmo tempo que

súdito) num jogo.

Durante toda esta primeira parte foi atacado o impasse acerca da natureza do Poder.

Este deve ser atacado a partir do aspecto que o Agenciamento tem uma relação direta com

sua ἐνέργεια (energeia) sem a necessidade de uma ordem transcendente no Poder; melhor

WYNN, Charles. M. As cinco maiores idéias da ciência. Trad. Roger Maioli. São Paulo: Ediouro, 2002. P. 176). 32 O principal autor de que me vali foi Raffestin (1993), embora Sack não se distancie muito da concepção de que Território e Poder pressupõe-se mutuamente. A diferença talvez seja que Sack (SACK, Robert. The human territoriality - its theory and history. Cambridge: Cambridge University Press, 1986) define territorialidade como uma estratégia de controle de uma área sob domínio.

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falando, a teoria dos Agenciamentos (em Deleuze e Guattari) não incorporou o conceito de

Poder e, portanto, o sentido do processo de desterritorialização e reterritorialização, se dá

por forças e vontades, enunciados e corpos voltados na imanência do acontecimento e não

do exercício de um poder como algo, uma coisa que se deseje ou se aplique sobre, pois é

apenas vontade de afirmar a vida.

Dito isso, torna-se plausível superar a dicotomia mantida por Rogério Haesbaert

(2006), a clássica33 dicotomia entre o “mundo” das coisas e o “mundo” das palavras

(acentuando aqui uma conotação foucaultiana); para tal propósito, lança-se mão do

conceito de Agenciamento, uma vez que a perspectiva adotada nesse conceito, fruto da

teoria dos Speech Acts, é de superação da fronteira “palavra/coisa”, sem contudo um

retorno insólito à velha tradição racionalista de transparência das palavras – o que, em

última análise, é a superação pela negação das palavras.

Haesbaert, quando optou por abordar apenas o Agenciamento Maquínico de

Corpos, na ocasião – em seu texto (2006) – na qual ressaltou a importância do conceito de

Desterritorialização em Deleuze e Guattari, fez pressupor a existência duma “lógica”

particular para ele (o AMC), em detrimento de sua inextricabilidade junto ao ACE, no

interior da teoria contida em “Mil Platôs”. A rigor, esse fracionamento viola a teoria

naquilo que ela tem como anteparo último, naquilo que a mantêm “de pé”: se fazemos

coisas ao falar, quais as conseqüências desses “atos de fala”34 no mundo dos atos

propriamente ditos? E mais: existem atos propriamente ditos para além de qualquer

conteúdo simbólico? Foi um tipo de recorte (quase todos são assim) absolutamente

arbitrário e, portanto, equivocado.

Essa foi, certamente, a digressão mais relevante do que almejamos destacar em

relação ao até agora trabalhado nessa primeira parte da dissertação. Houve, porém, um

“nó” teórico, na primeira parte e mesmo na teoria dos Agenciamentos: a força motriz, a

condição sine qua non do movimento dos fluxos, misturas de corpos e enxurrada de

palavras, ou seja, o Desejo.

33 Clássica porque ela atravessa toda uma formação discursiva, onde temos: Marx e a separação entre Relações de Produção (coisas) e Ideologia (palavras); Darwin e a separação entre Ser Vivo (palavra) e Evolução (coisa); Freud e a separação entre Pulsão (coisa) e Fala (palavra); enfim, Einstein e a separação entre o Fenômeno subatômico e os velhos conceitos newtonianos: “[...]. A partir do século XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem. [...].” (FOUCAULT, 1999, p. 409). 34 Essa é a tradução para Speech Acts.

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Apesar de sua crítica (juntamente de Foucault) à concepção lacaniana de desejo

enquanto falta – que, segundo Deleuze é uma situação histórica do bojo da qual pode se

entrever uma ideologia da escassez e da dominação –, poderia ser dito, em relação à

superabundância original do desejo35, que há, igualmente, uma utopia36 da

superabundância. Deleuze aposta em que as condições históricas do ocidente (pensamento

judaico cristão, Racionalismo etc) determinam essa maneira edipiana de “desejar”.

O que, porém, ele se esquece, é que as condições históricas e o desejo são fruto de

uma mesma physis – para não usar o termo: estrutura – e, por isso, um não deve ser

pensado como causa e o outro como efeito. Teríamos, inclusive, a possibilidade de

presumir, que o desejo constrói a utopia da superabundância como um gesto de desespero,

uma fuga da “realidade escassa” que promove sua economia (a economia do desejo); mas

não podemos realizar o exercício (de abstração) contrário, de que o desejo planeja a

escassez para sublimar-se da abundância antes que essa atitude neurótica já existisse – e

como ela existiria numa situação original de superabundância e não de escassez?

A economia desta pesquisa não permite atacar com a devida qualidade a tal

questionamento. Colocou-se tal interrogação como exercício de estar aqui pensando a

partir de Deleuze e Guattari, mas inerentemente no contexto do próprio pensamento,

imanente a ele, não em separado, como uma coisa, um objeto em si, pressupondo, por

conseguinte, uma “noção” de desejo (instrumentalmente) mais do que uma definição, um

conceito.

Volta-se, portanto, ao que é nosso objetivo. Pontua-se o conceito de Espaço pela

convicção de que não há território aespacial, mas talvez isso seja um truísmo, pois até

mesmo este texto aqui redigido é um espaço: a máquina do texto37 e, naturalmente, magis

aequo o espaço sobre o qual o texto se dá. Por isso, a referência a esse “plano” do real,

sobre o qual construímos o nosso intersubjetivo (agenciamentos) e mesmo, quem sabe, o

35 “Deleuze argumenta que a negatividade, falta característica do desejo, é instituída por meios ideológicos, a fim de racionalizar uma situação social de hierarquia ou dominação. Em conseqüência, ele procura delimitar como o recalque de um desejo original, caracterizado pela plenitude e pelo excesso, culmina na sua forma derivativa faltosa e privada. A negatividade do desejo é, então, considerada o sintoma de uma história de repressão esquecida, e a desconstrução dessa negatividade promete a liberação daquele desejo mais original e generoso (abundante e farto). [...].” (PEIXOTO JR. 2004, 119-120). 36 Na acepção em que Mannheim (1968) opõe essa à ideologia. 37 Há uma preocupação muito difundida acerca da pretensa exclusão digital, e, junto disso, o escamoteamento de que o livro tipográfico é uma máquina, um artefato, e que foi preciso aprender a manuseá-lo, assim como à escrita; situação que ainda hoje não se resolveu.

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puro subjetivo – seja lá qual for seu estatuto de existência, apresenta-se como uma

realidade espacial, que se encontra no processo de territorialização constante.

Também o Rizoma é um dos dois conceitos-chave para se entender este texto. Por

isso mesmo, na próxima parte e após algumas reflexões gerais sobre o texto, passa-se a

tratar desse conceito a partir de um paralelo entre Rizoma e Corpo sem Órgãos – chama a

atenção o fato de que a epígrafe desta dissertação põe em cena Artaud: o inventor do Corpo

sem Órgãos; ele e seu próprio corpo já quase sem órgãos.

Destaca-se a ruptura que se processa desde já, acerca da natureza dessa primeira

parte em relação à natureza da segunda: trata-se do abandono (ou tentativa) de uma

“forma” de pensar e, conseqüentemente de discorrer sobre, a realidade; e, portanto, da

adoção de outra “forma”. Não é, a rigor, novidade alguma, pois, com muito mais precisão e

robustez, é a forma como em “Mil Platôs” seus autores procedem com as reflexões

(diriam: imanentes). Daí minha adesão (embora relativa) a uma “metodologia” um pouco

heterodoxa e que se justifica, única e exclusivamente, pelo estatuto teórico compartilhado

(ou quem sabe furtado) por nós (os autores e eu).

Vai-se tentar “mostrar”, então, o que é um Agenciamento, um Corpo sem Órgãos,

etc e, ao final desse exercício, avaliar aquilo que se considera como um “resultado”.

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2. PARTE “FÁTICA” DO TEXTO

“Uma ontologia ‘plana’ e uma correspondente epistemologia ‘simétrica’; o colapso, na verdade, da distinção entre epistemologia (linguagem) e ontologia (mundo), e a progressiva emergência de uma ‘ontologia prática’, dentro da qual o conhecer não é mais um modo de representar o (des)conhecido mas de interagir com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar, de refletir ou de comunicar. A tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o diverso sob a representação, passando a ser a de ‘multiplicar o número de agências que povoam o mundo’ (Latour). Os harmônicos deleuzianos são audíveis. Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia. Multinaturalismo.” (CASTRO, 2007, p. 96).

2.1. Um objeto?

Pode-se entender este capítulo (primeiro da segunda parte do texto) como uma

espécie de introdução. Nele irá se descrever o próprio texto (o presente) enquanto esboço

de uma avaliação do mesmo.

Na verdade, ocorreu que o conteúdo deste capítulo poderia ocupar, além da própria

idéia de introdução (à segunda parte do texto), algo sobre metodologia, método, ou coisa

assim. O motivo é bem simples: na descrição das atividades buscar justificá-las

teoricamente, ou seja, fazer de uma estória uma história – o que é um texto, acadêmico, por

exemplo, senão o mesmo e originário discurso sobre a pre-sença num momento (dentro)

da ausência? Ou melhor: representação do objeto que falta? Data venia, esse timbre

sarcástico deve se repetir ao longo do texto. Por ora, o essencial é destacar que se vai juntar

as “partes”, originalmente fragmentárias e mostrar como e porque.

Vamos partir desse ponto então. A história da metafísica38 da produção oficial de

conhecimento difere, substancialmente, das condições práticas dessa produção39. De

38 Por metafísica ora podemos entender: o anteparo de uma teoria; anteparo esse, conceitual. Assim, as questões metafísicas não estão além do discurso científico – como tantos autores têm defendido – por pretensamente tratarem-se de especulações, mas sim, estão na base: “[...] contrariamente ao que em geral se supõe, [...] a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento.” (TAYLOR, Richard. Metafísica. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. P. 13-17). 39 Como em Feyerabend: “A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo, define-se um campo de pesquisa;

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maneira mais simples, há uma instituição social que, ao longo de sua história – curta, ainda

– se constituiu como produtora do “verdadeiro” conhecimento e privilegiou (tem

privilegiado ainda) esse conhecimento em si – como se houvesse qualquer coisa “em si” –

em detrimento do modus operandi de sua produção (produção do conhecimento) e de sua

reprodução (da instituição). Qual o motivo dessa discrepância? Na falta de uma resposta só

se oferece aqui este texto como tentativa de diminuir, mais que de superar tal discrepância.

A título de opinião, entretanto, mas ciente de que “o buraco é mais embaixo”,

gostaria de dizer que se considerarmos o conhecimento produzido sob determinadas

condições, quais sejam: no interior de uma determinada instituição social, a qual é

profundamente influenciada pela conjuntura econômica, política etc., além de que,

produzido (o dito conhecimento) por funcionários remunerados para tal (sejam privados ou

públicos), em suma, se considerarmos o conhecimento produzido academicamente uma

ideologia, ou, simplesmente, ideológico, então fica mais fácil entender a razão da citada

discrepância: o “cientista” abstrai as circunstâncias concretas da sua própria atividade, com

a justificativa de que elas são extrínsecas à verdade, à certeza científica – a mais certa de

todas as certezas. Assim, como em T. Adorno:

“[...] Enquanto por um lado os interesses pretensamente científicos são muitas vezes neutralização de interesses extracientíficos a se prolongarem, sob sua forma mais atenuada, pela ciência, o instrumental científico que fornece o cânone do que é científico também constitui instrumental de uma maneira não sonhada pela razão instrumental: meio para respostas a questões que têm sua origem além da ciência e que vão além dela. Até o ponto em que a racionalidade-fim-meio da ciência ignora o telos disposto no conceito do instrumentalismo e se constitui em fim único para si, ela contradiz sua própria instrumentalidade. [...]”. (1980, p. 222).

esse campo é desligado do resto da História (a Física, por exemplo, é separada da Metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo, nesse tipo de ‘lógica’, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniformes as ações de tais pessoas, ao mesmo tempo em que congela grandes porções do procedimento histórico. ‘Fatos’ estáveis surgem e se mantêm, a despeito das vicissitudes da História. [...]. A religião da pessoa, por exemplo, ou sua metafísica ou seu senso de humor (seu senso de humor natural e não a jocosidade postiça e sempre desagradável que encontramos em profissões especializadas) devem manter-se inteiramente à parte de sua atividade científica. Sua imaginação vê-se restringida e até sua linguagem deixa de ser própria. E isso penetra a natureza dos ‘fatos’ científicos, que passam a ser vistos como independentes de opinião, de crença ou de formação cultural.” (FEYERABEND, 1977, p. 21).

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Naturalmente, critica-se aqui o termo “verdade” ou “certeza”, porque a fé

depositada neles40 – e pelos motivos porque é depositada – permite isso. É a primeira

proposição metodológica aqui: este texto não se orienta no sentido de qualquer verdade,

ainda que relativa, se (e somente se) por verdade entender-se um conteúdo transcendente

(mais ou menos aquilo que se consagrou chamarmos idéias, essências etc).

O que se pretende é, não só realizar um trabalho fundamentado, única e

exclusivamente do ponto de vista instrumental, na metafísica do conhecimento científico

(mesmo quando é aqui criticado); ao mesmo tempo que se pretendo não abstrair as

circunstâncias concretas da produção do conhecimento, pelo simples motivo de que são

intrínsecas nesta dissertação, servindo como substrato argumentativo (explicativo), tanto

quanto como problematizações – no sentido de que não se produz conhecimento, senão, a

partir de problemas, como na referência de Zourabichvili (2004, p. 48).

Onde entra a geografia aqui? A resposta não se dá a partir de uma definição a priori

estabelecida com rigor e angústia. Ela acontece entre as dobras e redobras dos corpos e

enunciados em meio ao processo territorialização, desterritorialização e reterritorialização

da própria argumentação aqui realizada. É, talvez, mais próxima a uma imagem que a um

jogo de palavras. No entanto, é impossível não ver seu grau de influência, melhor dizendo:

o grau de influência de um certo objeto geográfico sobre qualquer coisa como a

“realidade”41. Por exemplo: a fronteira puramente convencional – arbitrária, diria-se em

lingüística –, a fronteira do Estado do Mato Grosso do Sul, condicionar as pesquisas (nem

todas) científicas como se lhes implicasse um recorte espacial, epistemologicamente

necessário; a divisão acadêmica do trabalho científico (vou falar melhor sobre isso, logo

em seguida) etc.

Pode parecer que este texto é pretensioso. Um leitor atento diria: “quem esse autor

pensa que é? Além de propor um conceito de território que é extremamente problemático

40 Por isso eu falo de metafísica na penúltima nota de rodapé. Os dois termos estão na base, ou seja, na metafísica do conhecimento científico. Alguns autores propalam que existe uma distinção fundamental entre os termos, sendo que para os relativistas a certeza é um mito e o objetivo da pesquisa científica pode ser a Verdade – para Popper ela, a verdade, é uma tendência histórica (BARROS, 1993, p. 22-23). Mas no final das contas, me posiciono no sentido de que os embates entre idéias se resolvem, não com a superação da pior pela melhor e rumo à verdade, mas sim com a adesão arbitrária dos cientistas a este ou àquele paradigma – como propalava Kuhn (BARROS, 1993, p. 28-31). 41 É notório meu abuso das aspas durante essa dissertação. O motivo é que faço amplo uso de ironias e como, apesar de incomum e desaconselhável em textos dessa natureza, é muitas vezes necessário ser irônico ao invés de parecer ingênuo, peço desculpas ao leitor.

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por se basear numa teoria monumental (aquela contida em ‘Mil Platôs’), teoria essa cujo

transplante para outra área do saber exigiria muita perspicácia; enfim, além dessa ousadia,

ele ainda quer discorrer sobre Antropologia e Sociologia do Conhecimento?!”

Não, na verdade não é bem isso! Em primeiro lugar a discussão paralela (sobre

Sociologia do Conhecimento) é uma conseqüência da original (sobre Território), uma vez

que a micro-política inerente à conceituação deleuzo-guattariana de Território, faz deste

texto (enquanto ato que, por sua vez, está inserido numa “cadeia” de atos extra-textuais)

um objeto rigorosamente implicado.

Além do mais, no caso da primeira parte desta dissertação, o território já é um

conceito pré-definido (quando adotado) e não vejo porque, em “Mil Platôs”, ele já não seja

geográfico (sociológico, antropológico etc). Não é o caso (minha dissertação) de adaptar o

conceito deleuzo-guattariano42, pois num e noutro caso (na minha reles dissertação e no

monumental texto ‘degeano’) o objeto é geográfico (também). Aliás, o fato de se

preocupar com o que é e o que não é geográfico, já é (fazer) geografia; sem falar que toda

divisão do trabalho é, inclusive, uma divisão espacial.43 É necessário um certo empenho

para ignorar o peso do espaço na realidade, talvez principalmente porque ele é uma

categoria do pensamento44.

Pois bem, tratando-se da geografia a ciência (por excelência) a lidar com o conceito

(indefectível) de espaço junto do conceito de Território, apresentam-se as desculpas, mais

que justificativas, para realizar a tarefa aqui proposta, qual seja:

42 Me parece tão esquisito esse neologismo de Viveiros de Castro (2007, p. 92) que proponho uma contração pela qual comutá-lo. Portanto, a partir de agora, vou lançar mão da contração degeano, para fazer referência ao pensamento articulado por Gilles Deleuze e Felix Guattari. 43 O mais do que clássico processo de divisão em etapas, “motor” da produtividade capitalista: “Primeiro, há a divisão social do trabalho, entendida como o sistema complexo de todas formas úteis de trabalho que são levadas a cabo independentemente umas das outras por produtores privados, [...]. Em segundo lugar a divisão de trabalho entre trabalhadores, cada um dos quais executa uma operação parcial de um conjunto de operações que são todas, executadas simultaneamente e cujo resultado é o produto social do trabalhador coletivo. Esta é uma divisão de trabalho que se dá na produção, entre o capital e o trabalho em seu confronto dentro do processo de produção. [...].” (MOHUN, 1988, p.112). 44 Kant diria que é uma categoria da realidade: “O espaço é uma representação necessária, ‘a priori’, que serve de fundamento a todas as intuições externas. É impossível conceber que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não exista nenhum objeto. Ele é considerado como a condição da possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação deles dependente; e é uma representação ‘a priori’, que é o fundamento dos fenômenos externos.” (KANT, 1965, p. 34 e 35). Mas vou ser obrigado a concordar com Capra que, num paralelo entre o místico D. T. Suzuki e o físico Werner Heisenberg, nos explica que a realidade é uma aproximação, um modelo teórico: “[...]. Tanto o físico quanto o místico desejam comunicar seu conhecimento e, quando o fazem com o auxílio de palavras, suas afirmações são paradoxais e cheias de contradições lógicas. [...]” (CAPRA, 1993, p. 42).

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A) Redigir um texto, uma dissertação, sobre o conceito de território, mais

especificamente sobre conceito e processo de

“territorialização/desterritorialização/reterritorialização”, contido na obra dos

autores Deleuze e Guattari: “Mil Platôs”;

B) Ao redigi-lo, estar sendo agenciamentado45, ou melhor, estar participando do

complexo corpóreo-enunciativo (o Agenciamento) que engloba a biografia de

quem redige, uma bibliografia, um texto, uma história (a “real”) com a fala dos

professores, além – claro – da disposição dos corpos (os nossos próprios, os

corpos fisiológicos, os corpos teóricos, os corpos arquitetônicos – posto minha

localização em um espaço construído – etc.);

C) Fazer o possível para trazer essas informações para o texto, ou seja, simular um

câncer e, por outro lado, tentar uma “linha de fuga”46. Sua forma é vertical, ou

seja, a forma do conceito de território – que é também o objeto – e, portanto,

nas relações paradigmáticas – não nas sintagmáticas;

D) A alteração de significado (de Território), no bojo do paradigma, sendo

“logicamente” paralela à reflexão acerca do próprio conceito – talvez se

pudesse dizer que a primeira (alteração) é a expressão da segunda (reflexão) –

sem que tal alteração corresponda a qualquer esquema evolutivo, pode ser

subdivida em momentos: discussão abstrata (nas primeiras reflexões da

primeira parte da dissertação); formulação crítica, ou melhor, reformulação do

conceito de Território, já enquanto processo etc. Esses momentos não são

estanques e muito menos sucessivos, mas são como linhas diagonais que se

entrecruzam; e por isso a defesa do conceito Я, como tentativa de superar a

contradição entre o discurso em si e o evento-discurso (o território), ou melhor,

entre o que o discurso é (ontologicamente, eticamente) enquanto fenômeno

lingüístico e aquilo que ele é (explicitamente aqui) enquanto fenômeno micro-

político.

45 Essa flexão e neologismo deriva do conceito degeano de “agenciamento”. 46 Outro conceito criado por Deleuze e Guattari.

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O fracasso numa empresa como essa é impossível, posto que esta dissertação é um

fim em si. Qualquer que seja o resultado, ele será neutro, pois um “resultado” não é a

finalidade deste trabalho; ele não tem finalidade alguma, se pensarmos na geração de um

fruto ou na consecução de um produto final. Se aqui se afirma tal negação – a negação do

conhecimento escravizado às leis metafísicas da “academia” – é pela crença (jamais a

certeza) nos limites (extremos) do conhecimento científico47, no ridículo da

institucionalização do pensamento crítico48 e (principalmente) na validade da experiência

como medida da realidade.49

Enfim, não se pode fingir que este texto não é um texto50, que ele é um vidro

através do qual o leitor vê a realidade, posto que, logo no começo de “Mil Platôs”, o texto

é um Rizoma; talvez parte de outro Rizoma; qualquer coisa menos um segmento rígido,

molar:

“[...]. Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito. Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. — e com uma máquina abstrata que as arrasta. [...].” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/a, p. 12).

47 Mas, não creio que qualquer forma de conhecimento seja impossível, pois nesse caso poderia ser dito: o que está sendo feito agora? O problema é um tipo de conhecimento que, “vencendo a concorrência”, é vendido como o conhecimento em si. 48 Um exemplo disso é o moderno humanismo psicanalítico que Fromm, entre outros, defende. É uma crítica do homem moderno – e isso, em si, pode ser bom ou ruim, mas não vem ao caso – com um ingrediente simplista: o voluntarismo; pois para Fromm, o homem está condenado a ser livre. (GNISS, Ralph R. K. Erich Fromm - Da psicanálise social à religião humanista. Revista espaço acadêmico – Revista multidisciplinar da UEM, Maringá, Ano X, v. 10, n. 110, p. 51-61, jul. 2010). Por outro lado, temos os marxistas profissionais e outros intelectuais cujo status social privilegiado prejudica a validade do trabalho crítico que fazem. 49 Chamando a atenção para a extensão do conceito (aqui) de experiência e, sobretudo, chamando a atenção para as conseqüências da experiência; como termino escrevendo neste capítulo. Ademais, retornarei ao conceito de experiência mais a frente. 50 Essa premissa a radice da linguagem.

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Este texto não se enquadra numa descrição de pesquisa nos moldes consolidados

academicamente, da reprodução de um trabalho que contivesse, ponto a ponto uma

justificativa, uma metodologia, objetivos gerais, específicos e se fechasse numa conclusão

simetricamente previsível no final. Trata-se aqui de fazer ciências humanas, mas enquanto

conhecimento colocado na imanência das dúvidas e inseguranças do autor, de seus desejos

e ódios. Um texto que enuncia o próprio fazer do conhecimento por aquele que se coloca

humanamente pensando e redigindo esse pensar por meio dessas palavras.

Assim, o “objeto” pensado (território) se confunde com o sujeito pensante (autor)

na tentativa de se entender no mundo em que está territorializado. Nesse aspecto, o

território é teórico e experimental e ao mesmo tempo se confunde com o “método”, ou

seja, com o ato de “territorializar” à medida que uma certa ação crítica (durante a produção

do conhecimento) tenha sido institucionalizada até um ponto em que sua mera reprodução

(dissertação após dissertação) seja, justamente, desterritorializante51. Da mesma forma que

a noção de sujeito empregada é “especular”; na medida em que o texto é aonde se olha e

não (ele mesmo) o olho.

Portanto, e seguindo o raciocínio, no afã de simplificar, dividiu-se esta pesquisa

numa parte em que elabora um anteparo conceitual “importado” dos “Mil Platôs” – a

primeira parte; e uma segunda parte, esta aqui, em que, mutatis mutandis, aplicam-se tais

conceitos, acrescidos de uma reflexão adicional, ao território-conceito-objeto proposto.

Não se nega e nem se faz vista grossa ao fato deste texto apresentar incidentes na

pequena história de sua elaboração. Imprecisões (ora redundâncias, ora obscuridades),

técnica da redação etc., em suma: o documento aqui apresentado é o território de um texto

palmilhado e conflituosamente elaborada na interação dos leitores, aqui incluindo o autor.

Se assim for compreendido, conseguirá ser a expressão corpórea dos enunciados

delimitados pelo pensamento/vivência do conhecimento fundado em Deleuze e Guattari.

51 Ou seja, se um pensamento se pretende crítico, ele tem que ser produtivo e não reprodutivo (HORKHEIMER, 1980, p. 122-123): a reprodução da crítica é lógico e meramente uma simulação. De forma que, caso isso ocorra em outras dissertações (pode ser ou pode não ser) de ciências humanas, e caso elas auto intitulem-se “críticas”, esse seria um ato falho. Aqui, busco (com grande ou pouco êxito) territorializar para não apenas falar o Território quando, o locus onde falo, é privilegiadamente um Território, ou seja, busco escapar à armadilha da falsa crítica; e isso, talvez, me faça um crítico (?).

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Algo como uma experiência do território, sem o conceito52, uma vez que o conceito

situaria o território (abstração) no Território (texto) e com a atenção voltada à abstração,

caminharíamos, ao redor dela e olhando-a fixamente, ambos, dentro do texto (o próprio

território). Quando o melhor seria descrever, digamos, o formato do lago (o próprio texto),

sem que estivéssemos dentro dele – o próprio Narciso afagado –, mas, como no quadro de

Caspar David Friedrich53, estando sobre a montanha.

Por outro lado, para além do conceito-coisa (o texto) – que talvez pudéssemos

chamar de experimento – o termo território deverá figurar, ainda que com significados

diversos: um marco54, enquanto significante. Isso, aliás, é outro ponto que este capítulo

deve ressaltar: a independência dos dois termos: de um lado a letra55 e de outro o corpo;

portanto, uma história dos nomes e uma história das coisas – que, normalmente, é

considerada una. Não que essas histórias não possam se tanger, se secar – afinal são

histórias56, têm um berço comum –, não é bem isso, mas o caso de que as duas irmãs não

são gêmeas.

Sob o significante “território”, pode-se acomodar um número bem grande de

significados. Desses significados é que, pretensamente, se gira em torno, botando estacas

no chão. Uma conseqüência da separação (mesmo que relativa) de significante e

significado: as metáforas, as metonímias57 etc. Diante dessa dinâmica e complexidade,

simplifica esse mundo numa espécie de mônada conceitual, substituindo esse

agenciamento de possibilidades, embora não sistematicamente, pela referência Я58, por um

motivo lógico e por outro, político.

52 Nunca vou me cansar de fazer o alerta: eu vou me aproximar ao máximo disso, mas não vou chegar nunca até lá. A promessa da Representação é exatamente oposta: morda a maçã que você terá o “Conhecimento”, ou seja, creia em mim e te darei tudo. 53 “O peregrino sobre o mar de névoa”, 1818. 54 No mesmo sentido em que, no capítulo intitulado “O Campo”, eu falo sobre o conceito de habitus. 55 A acepção de “letra”, que acabo de impor, é a mesma de Lacan (1978, p. 254): l’être-lettre. 56 Eu queria poder utilizar outro conceito, um conceito que desse conta do “presente vivo” que é o texto, dessa “caixa de Pandora” de onde pode-se tirar qualquer coisa, em qualquer ordem, porque a ordem significativa que a História impõe, ainda não tinha sido criada. 57 Talvez o oposto seja tão verdadeiro quanto. Quem sabe a separação não se produziu nesse momento permanente, poético, que gera a significação? Em todo caso, sincronicamente, o significado se erige mais através da paradigmática, que da cadeia sintagmática: “É da co-presença não somente dos elementos da cadeia significante horizontal, mas de suas contigüidades verticais, no significado, que nós mostramos os efeitos, repartidos segundo duas estruturas fundamentais na metonímia e na metáfora.” Lacan (1978, p. 246). 58 Ler a explicação disso mais adiante.

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A referência aqui estabelecida se faz pela representação59 de algo que, a rigor, é

inútil, senão pelo valor formal que corresponde a mais um coágulo no texto-território. Esse

adiamento do sentido pode ser substituído pela vivacidade do Я e o estatuto de realidade

será mantido, ou dito de outro modo: quer seja “rigorosa” a explicação, quer seja confusa,

quer seja contraditória, ela ainda é um texto60.

O texto é “científico”. O Я não só dá outras tonalidades ao texto, mas também,

desperta o sentido. É como se, ao jogar um jogo que desconhece as regras, poderá

entendê-las depois, mas jogará antes; este “jogar antes” é o sentido que se busca lapidar, na

pedra escura da comunicação61.

Enfim, o motivo (micro) político do Я é quase a quintessência de todo este texto.

Mais adiante se abordará com mais propriedade esse conceito à luz de Deleuze e Guattari.

Como simular (leia-se: representar) uma fuga da representação (leia-se simulação) negando

sua existência? Uma possível resposta: este texto consiste na própria experiência do

território, pois não se está definindo-o, mas apresentando-o à guisa da proposição de que

é algo sobre o valor da experiência para a Compreensão. Enfim, como negar a existência

da representação se é com representações que se realiza essa tarefa, de escrever este texto

em meio ao lance dados da vida em processo.

A dimensão micropolítica da representação se aproxima muito do tabu do incesto: a

realidade é que Édipo pode e quer “trepar” com Jocasta, mas a lei diz que ele não pode e

como não pode, passa a não querer62. Do mesmo modo, o significante está ao lado do

59 Eu pude “pular” de referência para representação, ou seja, de palavra em palavra, ironicamente porque meu ato está circunscrito ao significado, mais ou menos comum, dessas palavras. Dito de outro modo: eu fiz referência quando saltei. Referência é isso e, por outro lado, é comutável por representação: “[...] O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber – se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo [...]”. (FOUCAULT, 1999, p. 23). 60 Como as cartas de Kafka, que eram parte inextricável de sua ‘máquina de expressão’: “Las cartas postulan directa, inocentemente, la potencia diabólica de la máquina literaria. Maquinar cartas: no es en lo absoluto un problema de sinceridad o insinceridad, sino de funcionamento. Cartas a tal o cual mujer, cartas a los amigos, carta al padre; de todas maneras, siempre hay una mujer en el horizonte de las cartas [...]”. (DELEUZE & GUATTARI, 1978, p. 46). 61 É como dizer que “outro” entendimento se faz, no próprio ato de “entender”: a comunicação como o “entendimento em si”, o reconhecimento daquilo que eu digo como algo significativo – porém significativo enquanto forma: a “corrente” mútua da significação: “A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenada semióticas [...]. A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem.” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/b, p. 11-12). 62 “Em suma, não podemos remontar à origem da lei porque não devemos [...]”. (ŽIŽEK, 1992, p. 64). Salientando que a proibição, como termo negativo, está onde está um desejo recalcado: eis a violência da lei.

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significado – eventualmente se olham – mas cada qual tem sua biografia, sua vontade,

embora a lei diga que se trata de um espelho. Com o tempo a significação vai se exaurindo

– como as forças psíquicas do neurótico – e o que é distinto (a existência do significado e a

do significante) vai deixando de ser o que é; lentamente, como a “Flecha de Zenão” – ou

seja, os pólos tendem à mistura, mas nunca se chocam. Pois o objetivo da representação,

como Freud apenas suspeitou, é consumar o matrimônio de Eros e Thanatos, ou seja, o

“Eterno Retorno”63. Esse é o drama de Dom Quixote ao tomar a linguagem pelo mundo:

“Essa personagem, tal como é bosquejada nos romances ou no teatro da época barroca e tal como se institucionalizou pouco a pouco até a psiquiatria do século XIX, é aquela que se alienou na analogia. [...] Inverte todos os valores e todas as proporções, porque acredita, a cada instante, decifrar signos: para ela, os ouropéis fazem um rei.” (FOUCAULT, 1999, p. 67).

O que se desdobra dessa afirmação de Foucault é a diferença entre as ideologias e a

Visão de Mundo (Weltanschauung); as primeiras podem ser definidas como falsificações, ou

racionalizações (na acepção psicanalítica) de situações ligadas aos interesses do indivíduo e que

operam num nível psicológico. Enquanto que a segunda diz respeito ao pensamento de toda uma

“população” e assim pode ser definida como um Modo de Pensar. Tal compreensão, no que se

refere a formas e conteúdos num sobreplano, podemos ainda ver uma “densificação” da

violência sobre o discurso, o policiamento64.

Importa muito pouco, nesse caso, os conceitos de certo/errado, justo,

esclarecimento etc. Uma outra metafísica se impõe aí, mas não no sentido de um

“logismo”, mas de um “politismo”.65 É de controle que Foucault nos fala e, embora o tom

grave, contido em “policiamento”, o Poder e mesmo a violência, devem ser pensados como

63 “Assim o símbolo se manifesta primeiro como assassínio da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo.” (Lacan, 1978, p. 184). 64 “[...] Mendel, por seu lado, constitui o traço hereditário enquanto objecto biológico absolutamente novo [...]. Novo objecto, que convoca novos instrumentos conceituais e novos fundamentos teóricos. Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico da sua época: não era com base nessas regras que se formavam os objectos e os conceitos biológicos; para que Mendel entrasse no verdadeiro e para que as suas proposições surgissem (em boa parte) exactas foi necessário toda uma mudança de escala, o desenvolvimento de todo um novo plano de objectos em biologia. Mendel era um monstro verdadeiro, o que fazia com que a ciência não pudesse falar dele; ao passo que Schleiden, por exemplo, cerca de trinta anos antes, ao negar a sexualidade vegetal em pleno século XIX, fazia-o segundo as regras do discurso biológico e com isso formulava apenas um erro disciplinado. [...]”. (FOUCAULT, 1971, p. 9). 65 Trata-se de uma gíria que propus, para acentuar o aspecto pejorativo e não tem nada que ver com a palavra grega πολιτισµός (politismós) que significa: cultura. Falando nisso, em grego, e para fazer um serviço só, a palavra λόγος é logos e a palavra παθος é pathos (paixão, movimento).

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jogos. Daí que em “Microfísica do Poder” ele assevera que o paradigma lingüístico não é

tão fecundo às Ciências Humanas quanto o bélico: “Relação de poder não relação de

sentido” (FOUCAULT, 1999, p. 6). Então, se trata de capitular ou de fazer guerrilha, nessa

disputa entorno dos discursos.

Guerrilha: o território construído/construção por este texto é uma quase-definição

muito boa, na medida em que: primeiro, ele se afirma enquanto texto; segundo: ele se

exibe e numa exibição violenta – mas quais os elementos dessa violência? Ironia, Я,

Metaforização etc., mas tudo num plano de representação (o plano de fato, uma vez que

isto aqui é um texto) com uma vontade feroz de “desrepresentar”. Em suma:

[...] A experiência plástica do gozo na histeria remeteria mais à dimensão da presentificação (darstellung), em oposição à da representação (vorstellung), muito mais ligada à filosofia enquanto representação mental consciente ou mesmo à lingüística estrutural na qual a representação inconsciente está ligada a uma depuração do afeto pela linguagem (NERI, 2003, p. 39).

A neurose histérica66 do texto – como uma metáfora? Dúvidas, dúvidas e dúvidas.

As inseguranças refletem, ou são manifestas neste texto. A territorialidade do mesmo se

desloca, numa fratura abissal. Agora é a representação que se desterritorializa nele.

Caminha para quais linhas de possibilidades? Tudo volta ao território.

2.2. Sobre território como fronteira do conhecimento

Este texto sofreu de muitas fraturas. Ele acabou estabelecendo possibilidades

conforme as relações iam se desterritorializando enquanto verdades, reterritorializando

outras necessidades.

A idéia que o autor fazia do que quer que significasse Territorialização segundo

Deleuze e Guattari a concebiam, era ainda mais superficial em relação ao que foi se

66 Eu cheguei a pensar em intitular a dissertação por “Diário de um autoneurótico”. Por dois motivos: a forma do texto imita a forma de um diário (o francês emploi du temps). Neurótico o texto é mesmo (isso fica mais que implícito, aqui, no presente texto); talvez mais que neurótico, seja ele um sintoma de histeria; uma histeria heurística. Desisti do título logo depois que pensei nele.

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constatando quando se tentava entender o sentido de território entre os grupos indígenas

guaranis. A idéia sobre nomadismo guarani desestabilizava qualquer referência tradicional

de se pensar os conceitos científicos e aplicá-los a um objeto de pesquisa, no caos, os seres

humanos indígenas.

Em primeiro lugar eu me fundamentava na conceituação, completamente diversa,

de B. M. Fernandes (2000), segundo o qual territorialização é o avanço de uma força

econômica (no caso o capitalismo) sobre uma área de terras (no caso, dos pequenos

proprietários); avanço esse, físico e discursivo. Mas, segundo esse autor, o avanço físico é

um momento e o discursivo outro – como se a relação entre eles fosse contingente! Em

segundo lugar, como falar em nomadismo em relação a culturas que não são nem

sedentárias (segundo o modelo do “Velho Mundo”) nem nômades (ainda segundo o

mesmo modelo)? Desse modo, diferentemente daqueles brinquedos tangram (vide “Anexo

2”, no final deste texto), com o qual pode-se montar uma infinidade de figuras uma vez que

“o todo (neste brinquedo) é a soma das partes”, não me foi possível construir um arranjo

entre o conceito de territorialização a partir desse meu olhar sobre Deleuze e Guattari e

aquilo que entre os indígenas poderíamos considerar um território móvel67 – embora não

nômade.

Diferentemente do tangram, uma teoria e mesmo uma reflexão sobre teorias (no

caso desta dissertação) são agregados de conceitos só relativamente permutáveis. O

sentido de cada um desses conceitos pode ficar preservado (ainda que parcialmente) ou

pode se alterar completamente, segundo o “exportemos” ou o “importemos” de teorias

“estrangeiras”; ou ainda, de acordo com Deleuze, os conceitos (criados) originam-se de

problemas aos quais servem:

“Não há possibilidade de fazer filosofia, deleuzianamente falando, sem investir em um duplo campo: a constituição dos problemas e a criação dos conceitos que daí advêm, [...].” (VASCONCELLOS, 2005, p. 1219).

67 Como, por exemplo, na definição de Assis e Garlet (2009, p. 40): “A mobilidade, neste novo contexto, é resultante de múltiplos fatores culturais e de ordem externa, possibilitando tanto a ampliação dos limites territoriais como a manutenção e o ativamento de aspectos relacionados à religião, à economia e à organização social. Percebe-se, portanto, que o processo histórico fez com que os Mbyá utilizassem mais algumas características culturais que outras. No caso, o seu caráter caminhador constituiu-se numa estratégia para manutenção do seu ethos e para dinamizar sua relação com o espaço.”

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Pode-se, então, dizer, que chegou-se a atual “composição orgânica do capital”68

durante e não antes da redação. Foi algo como uma tomada de consciência. Se, a princípio,

pretendia-se compreender o território guarani enquanto um permanente fluxo coletivo, cuja

determinação era uma antropodicéia: a busca da Terra sem Mal, as próprias dificuldades

em aplicar um referencial teórico a partir das condições materiais e mentais com que o

grupo de indígenas vivencia sua espacialidade, levou a percepção da inadequação das

concepções até então articuladoras do olhar com que o pesquisador explicava o mundo.

Depois dessa reviravolta, depois de pensar em reiniciar a pesquisa, mas sobre outras

bases, percebeu-se o significado que escrever uma dissertação possui e a relevância desse

significado para o próprio conceito em questão: a territorialização. Assim, a partir desse

rápido histórico em que a pesquisa e o pesquisador se deslocaram de seus referenciais

territorializados até então, considera-se o seguinte: “[...], o caráter ‘único’ dos eventos

históricos, a necessidade do historiador de misturar relato e explicação fizeram da história

um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo que uma ciência.” (LE GOFF, 1990, p. 12).

Foi se avolumando em importância a necessária leitura dos dois pensadores

franceses como um caminho de possível contribuição para as angústias detectadas. A

condição rizomática – inerente a qualquer texto – fica, assim, colocada como uma

condição de, em meio aos erros teóricos, políticos e conceituais, reterritorializar a

afirmação de outros referenciais diferenciadores para a elaboração da pesquisa científica.

Nesse contexto, buscou-se novos caminhos e informações. Misturaram-se as

substâncias para compor uma matéria-prima69 territorial. Mudou-se o olhar sobre o sentido

de sociedade indígena e território.

“Daí a afirmação de que o surgimento de uma nova sociedade indígena não é apenas o ato de outorga de território, de ‘etnificação’ puramente administrativa, de submissões, mandatos políticos e imposições culturais, é também aquele da comunhão de sentidos e valores, do batismo de cada um de seus membros, da obediência a uma autoridade simultaneamente religiosa e política. Só a elaboração de utopias (religiosas/morais/políticas) permite a superação da contradição entre os objetivos históricos e o sentimento de lealdade às origens, transformando

68 Uma maneira irônica de definir a estruturação do trabalho. 69 “[...]. Chamava-se conteúdo as matérias formadas que deviam, por conseguinte, ser consideradas sob dois pontos de vista: do ponto de vista da substância, enquanto tais matérias eram ‘escolhidas’, e do ponto de vista da forma, enquanto eram escolhidas numa certa ordem (substância e forma de conteúdo). [...].” (DELEUZE & GUATTARI, 1995/a, p. 58).

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a identidade étnica em uma prática social efetiva, culminada pelo processo de territorialização.” (OLIVEIRA, 1998, p. 65).

Aparentemente, esse é o mesmo esquema presente na Ideologia. Mas, o conceito de

Ideologia (assim como o de território) é válido fora da cultura ocidental; ou mesmo fora do

contexto específico (economia industrial e européia no Séc. XIX) em que foi proposto?

Quer me parecer que o conceito de Ideologia parte do princípio, segundo o qual, o

“árbitro” (aquele que separa realidade e ilusão em gavetas distintas) pode discernir,

completamente, entre o que é o Real e o que é o Ideológico – nada mais ilusório que uma

certeza como essa! Ora, não é a realidade apenas outro conceito? Fato no qual a cultura

participa sempre como mediadora? Quer me parecer que sim e que, afinal de contas, esse

significado se aproxima bem mais daquele de Agenciamento.

O conceito de Agenciamento, assim como o de Rizoma, contribuíram para passar a

abordar a questão do território na direção do espaço como corpo sem órgãos. Mas antes de

assumir tal perspectiva. Teve que romper o que até então estava sendo feito. Reinventar o

texto, a pesquisa e o pensar.

O resultado disso tudo, foi uma rede de informações, ao mesmo tempo que de

“poderes”. Essa rede constitui, exatamente, o objeto-experimento aqui denominado

território.

Essa é a realidade do texto. Não uma história, mas um mapa; uma postura mais que

um movimento. Por isso a genialidade da percepção de Adorno:

“[...] Decorre daí que não é possível elaborar um relato argumentativo de acordo com a progressão habitual, mas é preciso recompor o todo a partir de uma sucessão de complexos parciais, todos os quais têm, por assim dizer, o mesmo peso, e são proporcionalmente ordenados de maneira concêntrica.” (ADORNO, 1970, p. 541 apud ŽIŽEK, 1992, p. 42).

Virtualmente tudo poderia estar presente em qualquer texto, enquanto Plano de

Imanência (leia-se “não-caos”), então é, justamente, uma territorialização (se e somente

se), que pode garantir a individuação de um texto qualquer. E isso só é possível porque a

territorialização possui uma camada corpórea voltada para uma camada enunciativa, ou

melhor, é como uma sereia que, sendo composta de duas partes diversas, não pode dispor

de nenhuma delas sob o risco de deixar de ser aquilo que é (e assim tornar-se peixe ou

tornar-se mulher). Assim, as fronteiras de um texto são o seguinte complexo:

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A) As coisas são agregadas tendo em vista o corpo de significação (por exemplo, o

corpo da culinária (ela imaterial) produz a junção da cebola, da pimenta, da faca, do

prato etc.) a qual remetem e;

B) As palavras se referem às coisas (eu sei que não é bem isso, mas essa é uma crença

muito difundida), como se as contivesse e, portanto, não se pode dizer qualquer

“coisa” (mesmo que se pudesse dizer qualquer palavra);

C) O Agenciamento é a garantia de dependência mútua (palavras/coisas).

Encerremos essas explicações e adentremos ao desdobrar desse processo.

2.3. Território do texto como desterritorialização e reterritorialização do

autor/pensamento

Como apontado anteriormente, a estrutura (framework) desta dissertação segue uma

orientação dividida em duas partes, sendo: uma mais ou menos, teórica; e a última, prática

(na medida do possível). Por outro lado, como apontado pela citação anterior de T.

Adorno, a escritura concêntrica e, mesmo insistindo na importância do texto (leia-se:

linguagem) como a “coisa em si” do conhecimento70, na tentativa de ressaltar a improvável

linearidade textual, uma certa simultaneidade talvez cause a impressão de que falta

organização porque a mais completa simultaneidade é um atributo da imagem (stricto

sensu) e não do texto71.

70 Nem sempre é útil ressaltar, com aspas, o cuidado necessário com esse ou aquele termo, então, venho aqui acrescentar uma citação, mesmo que eu não tenha a intenção de “esclarecer”: “Heidegger discute várias palavras gregas relacionadas a conhecimento. Techne, ‘habilidade, talento, arte’, não é, ele insiste, ‘um fazer e produzir, mas o Wissen que sustenta e guia todo brotar humano em meio aos entes’. O correlato (e parente) grego de wissen é eidenai, originalmente ‘ter visto’, portanto ‘saber’, e a fonte de eidos, ‘forma’, e idea, que Heidegger considera em geral como o que é visto, um ‘aspecto’. Mas, assim como wissen, eidenai é frequentemente utilizado para saber que, o que etc. Conhecer uma pessoa é às vezes eidenai, às vezes gignoskein, que, com seu substantivo gnosis, tem muitas vezes uma qualidade de conhecimento por familiaridade. Episthastai, ‘saber etc’, é, para Heidegger, ‘ser perito [vorstehen, lit. ‘estar diante de’] em algo, entender de algo’. O substantivo derivado episteme, ‘conhecimento’, significa ‘aproximar-se de algo, entender daquilo, dominá-lo, penetrar seu conteúdo substancial’. Aristóteles lhe deu o significado de ‘ciência’, mas em um sentido distinto da ‘pesquisa’ [Forschung] científica moderna e do experimento.” (INWOOD, 2002. p. 21-22). 71 “A busca do simultâneo explica esse fascínio pela imagem espacial [...]. Mas dizendo ‘simultaneidade’ em vez de espaço, tenta-se concentrar o tempo em vez de o esquecer. ‘A duração assume assim a forma ilusória

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Mallarmé consegue um efeito assim. Não é necessário dizer que em poesia a

linguagem é apresentada em um estado completamente distinto72 daquela utilizada aqui.

De qualquer forma, em “Um lance de dados”73 permite uma leitura, mais que

sintagramaticamente heterodoxa, ontologicamente – com tudo que a história desse conceito

carrega – diferenciada. É aquela disposição vertical e, mais que isso, diagonal, do

raciocínio, que “tortura” a duração.

Sobre simultaneidade, sobre esse efeito, não se arrisca uma representação, uma

teorização, ou melhor, não uma ontologia, mas talvez uma ética. Do ponto de vista ético –

alguns chamariam a este ponto de vista: “justificativa”, assim como se diz: “metodologia”,

“objetivo geral” etc – e isso é que parece necessário dizer, o fato de lançar mão dos

mesmos conceitos oriundos da “parte teórica” deste texto, explicando-os em função dos

“acontecimentos” – e o contrário: os acontecimentos à luz dos conceitos – não é

simplesmente arbitrário.

Essa estratégia cubista74: lançar luz sobre a mesma coisa, mas do outro lado dela,

ou seja, vê-la de outro ângulo – tendo parecido a melhor maneira de realizar a

simultaneidade – se justifica, apesar da repetição dos conceitos escolhidos antes desta

metade da dissertação – na qual foram deixados os velhos pressupostos e assumir uma

postura muito mais crítica –, não pelo fato de que os conceitos sejam indefectíveis, sejam

de um meio homogêneo, e o traço de união entre estes dois termos, espaço e duração, é a simultaneidade, que se poderia definir como a interseção do tempo com o espaço’ [Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience]. Nesta exigência do plano e do horizontal é na verdade a riqueza , a implicação do volume que se torna intolerável ao estruturalismo, tudo o que da significação não pode ser disposto na simultaneidade de uma forma. Mas será por acaso que o livro é em primeiro lugar um volume? E se o sentido do sentido (no sentido geral de sentido e não de sinalização) for a implicação infinita? [...] Se a sua força residir numa certa equivocidade pura e infinita que não deixa tomar fôlego, que não permite nenhum descanso ao sentido significado, levando-o, na sua própria economia, a ainda fazer sinal e a diferir?” (DERRIDA, 1995, p. 45). 72 Bem entendido, a poesia moderna e em oposição à clássica; embora a retórica nem sempre fora, e ao longo de toda a história da poesia, o “destino” da linguagem. O trovadorismo andaluz, por exemplo, prova que uma certa linguagem, digamos, metaforicamente carregada, não é uma invenção moderna: “[...] A lírica andaluz está a reclamar uma apreciação estética em profundidade: a sua rica e exotíssima imagética, muito distante dos quadros retóricos da poesia trovadoresca provençal, recorda muitas vêzes as metáforas mirabolantes da poesia contemporânea. [...]”. (SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. 2. ed. Rio de Janeiro: Grifo, 1972. P. 370). 73 Esse texto, de 1897, além de afirmar, do ponto de vista do conteúdo, a premência do caos obre a ordem, ainda (e do ponto de vista da forma) impõe uma multiplicidade sintagramática (em respeito à idéia de caos), infringindo assim a “lei da escrição”, ou seja, a maneira “correta” de escrever; que é linear. Mallarmé traça trajetórias de versos que respeitam mais à semelhança tipográfica, que à abstração lógica, causal, das orações. 74 Na poesia cubista, freqüentemente, o poeta mostrava todas as superfícies do objeto – simulando a pintura de seu mesmo estilo – através da artimanha da repetição; mas a cada nova repetição, ele mudava a definição do objeto. Há um exemplo bem apropriado, nesta dissertação: aquele poema de João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”.

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transcendentalmente necessários, mas porque, sejam lá quais fossem os conceitos e mesmo

que randomicamente concebidos, os conceitos servem aos fatos (HABERMAS, 1980, p.

278-279).

A questão não é “elaborar” um conceito e enfiar os fatos dentro – o problema não é

tão simples. Não existe esse negócio, a priori, de fatos. Mesmo que não sejam criados a la

fiat lux, mesmo que ser não é só ser percebido75, mesmo com isso tudo, os fatos são

criados; intersubjetivamente, mas são criados.

Os ditos conceitos são: Território, Poder, Espaço, além dos conceitos degeanos,

propriamente ditos – inclusive as flexões des-re-territorialização. Eles são inerentes à

discussão levada a cabo, e de tal modo, que até poderia ser dito que não houve escolha; os

conceitos se imporam.

Creio que esse pode ser um terminus a quo: este momento, agora, pode ser o

epicentro, o redemoinho. A imagem do redemoinho é muito precisa; é uma quase-

definição. De seu centro, o texto (mesmo a pesquisa) arrasta o corpo do autor (enquanto

um fato). O corpo humano é composto por mais de setenta por cento de água e,

paradoxalmente, no redemoinho, o corpo arrastado se afoga. Acabam sendo dois corpos, o

corpo do sumidouro e o corpo do autor que escreve sobre o corpo no redemoinho.

Com essa cena, sugere-se que, se de um lado o autor é o sujeito dos significantes

inscritos neste locus (aqui, sobre o papel), é também assujeitado pelo “sistema de signos”76

(a estrutura) e, mais ainda, pelo “fluido” rizomático. Assujeitamento esse – abandonando

agora aquela noção inicial de Poder e lançando mão da outra (melhor) de Campo – diluído

no mesmo frasco do sujeito; ou, dito de outro modo, fluxo entre passivo e ativo e não soma

ou “média” entre os pólos.

“[...]. A filosofia que habita na coerção da linguagem, recalca essa descentração interna, essa dependência da rede lingüística que concerne a seu próprio interior, [....]. Reconhecer essa ‘primazia do objeto’ é, segundo Adorno, a única maneira de ‘salvar a subjetividade’: a partir do momento em que fazemos do sujeito a origem de sua atividade, o Princípio Ativo do movimento de sua ‘expressão’/‘exteriorização’, já perdemos a dimensão própria da subjetividade, o sujeito já fica em algo de ‘objetivo’, ‘substancial’, ‘reificado’. Em outras palavras, o sujeito em questão aqui não pode ser o nó do sentido a que os sinais se refeririam

75 No ilustre aforismo de G. Berkeley: “esse est percipi”. 76 Essa é a definição de Língua, segundo F. Saussure.

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como ponto de apoio, a Origem vivificadora da letra morta, ou seja, o ‘sujeito do significado’; [...] cabe concluir, radicalmente, que é justamente o significante que constitui o único locus do sujeito em sua não-identidade [...].” (ŽIŽEK, 1992, p. 47-48)

Que seja feito o texto então, juntando as peças tomadas emprestadas – nunca se saberá

completamente o movimento de cada uma delas, mas alguém saberá? Troubetzkoy, Chomsky,

Searle? E no final o texto apresentar-se-á como aqueles sulcos na areia, ou seja, que o texto é o

caminho inevitável que só poderá ser descoberto em sua prática e logo em seguida o vento o

apagará:

“[...]. O poeta de escritura só pode entregar-se à ‘infelicidade’ que Nietzsche chama sobre aquele – ou promete àquele – que ‘esconde em si desertos’. O poeta – ou o Judeu – protege o deserto que protege a sua palavra que só pode falar no deserto; que protege a sua escritura que só pode fazer sulcos no deserto” (DERRIDA, 1995, p. 60).

Perdida, enfim, a duração. A duração da atividade de fazer sulcos na areia sequer

entra como trabalho morto; ela é, simplesmente, a parte de papel que jogamos fora, quando

do recorte do objeto; uma história cristalizada numa geografia: “A Geografia é a História

do espaço enquanto a História é a Geografia do tempo” (RECLUS apud DUARTE, 2006,

p. 12).

Esse momento (a abertura, o descobrimento do texto) é talvez o único evento

“sempre-representado”, “nunca-comunicado”; ainda que faça parte, inextricavelmente, da

Totalidade. Justamente porque há um continuum sujeito-objeto, na ciência crítica, é que

não se pode isolar os fatos, os eventos.

A imagem do mapa (sua instantaneidade, sua simultaneidade) nesse sentido é bem

fiel. Por colocar no mesmo plano todos os corpos; e na relação entre os corpos, os eventos.

É a proposta de uma “antierarquia”; é também o mais próximo do modelo do Rizoma.

Contra a perspectiva de uma autoridade que em si cria a totalidade do conhecimento é

necessária a cura através da fluidez da Totalidade; antes que o Espaço a condene a uma

concreticidade e o Tempo a uma direção.

Não é possível, impunemente, hierarquizar os eventos; com a mera justificativa de

que é ou não, este ou aquele, melhor ao interesse da escrita. Por exemplo, a escolha

arbitrária por um tema de pesquisa, o território a partir da mobilidade indígena, se

desdobrou numa série de eventos estranhos que foram se impondo. A pesquisa tornou-se

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estranha ao pesquisador – ela estava sendo reificada77. Diante do “objeto” que é o

território, prostrou-se a dificuldade de esclarecer sua “verdade”. Eventos são produzidos e

não descobertos!

“Assim, de acordo com a perspectiva descortinada por Nietzsche, o homem não é um descobridor de ‘verdades’ independentes de seu desejo de poder ou de seu instinto de sobrevivência mas, sim, um produtor de significados e, portanto, de conhecimentos que se consagram através das convenções que disciplinam os homens em grupos sociais. Conseqüentemente, a leitura – tanto em seu sentido restrito como em seu sentido mais amplo – enquanto produtora de significados é a única forma possível de relação entre homem e mundo. [...] Nesse sentido, todo indivíduo interpretante é, ao mesmo tempo, produtor e produto dos significados que necessariamente terão que ser abrigados pela comunidade em que atua e da qual faz parte.” (ARROJO e RAJAGOPALAN, 1992, p. 54).

Por outro lado, não são produzidos arbitrariamente. Eles nos levam a isso, nos

levam a realizá-los, como parte integrante deles, que somos. Magis aequo, em se tratando

de um evento como o território, aí é que ele assujeita o pesquisador, aí é que o vórtice –

retornando à metáfora do redemoinho – do texto se mostra mais pronunciado.

E da mesma forma que se perde a atividade de fazer sulcos na areia, ou seja, este

momento ainda, no qual um sujeito que se entende como um “eu” se prostra, depois de uns

poucos passos apenas, dentro do labirinto e, confundindo o som do vento com o do

provável Minotauro, vai-se alienando, confundindo seu ser como algo estranho a si,

fazendo do mundo, uma coisa e de si um “ser em si”; cada conceito e o evento-conceito vai

se fazendo coisa, objeto no outro pólo de um sujeito, também alienado de consciência de

si.

Naturalmente o texto inteiro (esta dissertação) é intersubjetivo; ele já estava

condenado, corria, assim como corre o risco, de antes de ser acabado a “ser em si”. Ainda

assim, mesmo o texto inteiro sendo (já) uma dessubjetivação, o conceito de Território aqui

77 “Na medida em que o objetivismo vê as relações entre seres historicamente atuantes como relações legais entre coisas, é rejeitado pelo método dialético que se livra do perigo da ideologização, perigo esse que permanece enquanto a hermenêutica mede e considera tais relações da mesma forma que elas são consideradas por si mesmas no nível subjetivo. [...].” (HABERMAS, 1980, p. 283). O segundo momento é o mais perigoso e é contra ele, ou seja, contra a transformação do texto em lírico, que aqui se defenderá através do “recuo” à Totalidade.

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referido é, pari passu, um evento. Também, que isso não cause a impressão de que ele

pode ser “fechado”, “enfronteirado”, enfim: definido.

Também, o texto não é a uma soma de conceitos; como se nele contivesse o

discurso inteiro78 e, assim, mais do que simultâneo (como o mapa é), ele é instantâneo. O

que remete a uma questão muito importante: ele, o texto todo, é a expressão de um

território? Pior que isso: se for a expressão de um território qualquer, um caso específico

de território, qual é a expressão do Território em si, ou seja, qual o conceito de Território?

Essa remonta àquela outra questão, de que o texto não é somente uma forma, mas

um espaçamento. A tentativa empreendida aqui de que ele seja um espaçamento exemplar,

ressaltando a imanência do sentido79, afirmando exaustivamente a estruturação de um jogo

– não mais a representação “ingênua” da realidade, uma vez que a ingenuidade do signo já

foi ultrapassada com um século de lingüística; isso sem falar em Nietzsche entre outros – é

a consciência de si, do território, ou, em termos degeanos: reterritorialização.

No ideário positivista, o discurso enche a boca com a fruta. Mastiga-se a palavra

maçã etc. Mas o que está em jogo é a instrumentalidade da maçã. Por isso então ela ficar

reduzida ao seu nome, ou melhor, à classe das frutas e essa à classe dos substantivos

comestíveis; independentemente do sabor das maçãs concretas ou do simbolismo do

pecado original80. Deste modo, a maçã pode ser permutada em qualquer substantivo, pela

operação de sinonímia, a medida de todas as coisas: a moeda. O mesmo é possível com as

palavras: o circuito da produção do texto é obscurecido pelo circuito da circulação – daí o

idealismo do conceito de comunicação, dito como sendo a “função das palavras”.

O texto não é meramente a expressão do território, ele já é o território; ou melhor:

ele se territorializa, depois se desterritorializa e se reterritorializa; e quando se

territorializa, também territorializa algo (corpos e enunciações). Por isso, também, não é

78 Há um exemplo, nesse sentido, em Wittgenstein (1999, p. 30-31). Ele atenta para o fato de que uma língua não serve somente para denominar objetos, pois há muitas palavras – um verbo qualquer, etc – que não se resumem à mera substituição dum objeto. 79 Ou seja, o sentido não está fora-antes do texto (no mundo, no sujeito transcendental kantiano etc): “[...]. A leitura e portanto a escrita, o texto, seriam para Nietzsche operações ‘originárias’ [...] com respeito a um sentido que elas não teriam de transcrever ou de descobrir inicialmente, que portanto não seria uma verdade significada no elemento original e na presença do logos, [...].” (DERRIDA, 2004, p. 23). 80 Um exemplo disso é a comparação que podemos fazer entre a água ocidental que é uma força (hidráulica) ou que é a união entre dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, com a água oriental: “[...]. A água simboliza o lado feminino da personalidade humana. A imersão na água significa a extinção do fogo e da consciência. Significa morte. Talvez isso explique porque no sistema chinês o medo é a emoção associada com a água. [...].” (TUAN, 1980, p. 26).

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“O Território em si” – é mais um território, apenas isto! Talvez aí, seja também sua

expressão e, como toda espécie expressa a existência de sua classe, ele, o texto, é

exemplar. Tudo o que for fluxo (estiver sendo ainda) pode ser territorializado e o será

por um agenciamento. Nesse sentido, o complexo teórico degeano é uma sociodinâmica,

em contraposição aos teóricos sociostáticos (descritivos):

“[...]. Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma: dentro da sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem ou animal: ‘minha casa’. O território é feito de fragmentos descodificados de todo tipo, extraídos dos meios, mas que adquirem a partir desse momento um valor de ‘propriedade’: mesmo os ritmos ganham aqui um novo sentido (ritornelos). O território cria o agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o simples ‘comportamento’ (donde a importância da distinção relativa entre animais de território e animais de meio).” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 218)

Nesse sentido, o complexo teórico degeano é uma sociodinâmica, em contraposição

aos teóricos descritivos, que precisam fixar o movimento para atender a necessidade lógica

da seqüência do discurso. Deleuze e Guattari criam os conceitos, os termos, as palavras

para darem conta do movimento do mundo no pensamento, estabelecendo um plano de

imanência do pensamento mundo, no qual a vida, cada vida, toda a vida, em seus detalhes

e em seus dilemas e dramas, passa a fazer parte do fluxo desse processo de

territorialização, desterritorialização, reterritorialização. O agenciamento permite captar

essa dinâmica como fazendo parte do meio da paisagem e não estranha a ela, ao mundo.

Como exemplificar a isso?

2.4. Agenciamento – um exemplo pessoal

Se for vermos, num dia da vida de qualquer ser humano, vão atravessar pessoas,

objetos, palavras. Esse é o conteúdo, a “matéria” ou, simplesmente, o que chamamos

“realidade”. Que ela está-aí, é difícil dizer. Se isso depende de interpretações, é uma

segunda questão.

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Tem outra coisa: a forma. Nesse “dia na vida de uma pessoa” estão presentes

corpos e palavras em um arranjo, talvez, único. Sincronicamente, quem sabe todas as

matérias e energias do que chamamos Universo estejam-aí, dentro do mesmo dia. Isso

permeia qualquer vida humana em qualquer lugar em que o seu habitar se processe na

interação com todos e qualquer outros.

Ao fazermos um corte, rizomaticamente se coloca um caso, um aspecto da

realidade que se manifesta em texto, no caso, este texto. O nome dele é Fulano, é o autor

posto diante do computador a escrever este texto. Ele não é um James Joyce, então a força

de seus atos ilocutórios não se aproxima daquilo que aconteceu em Ulysses81, mas, como

as personagens, ou todos os eventos no mesmo romance, fictícios ou não, a aproximação

entre a narrativa, do texto, e o enredo dos eventos ocorridos na vida concreta, um texto que

não é o do livro, se reverberam e se dobram em sensações e pensamentos que ampliam os

sentidos territoriais da vida das pessoas que entram em contato com o referido romance.

Tal possibilidade é a distância, mas é o que aproxima o sentido de cotidiano

agenciamentado no romance de Joyce e o exemplo aqui apresentado, a partir dos aspectos

rotineiros vivenciados por Fulano, ou seja, pelo autor deste texto científico.

A título de exemplo. Na rotina espaço-temporal em que o autor aqui se

encontra/produz, antes de escrever este parágrafo, saiu para comprar verduras e, como ao

chegar à frente da casa de uma certa senhora, a qual vende essas verduras, percebendo que

ela estava recebendo alguns familiares, virou à direita, uma rua antes e retornou. Talvez

fosse um incômodo, que não ficaria a vontade atrapalhando aquele momento em que a

“vendedora de couve” se mostrava uma mãe ou avó etc. Talvez a cena de profunda emoção

entre uma senhora e seus descendentes incomodasse o autor, atacasse nele, como uma

espetada de uma canivete afiado, dores de uma relação familiar que gostaria esquecer. Na

impossibilidade de esquecer, pelo menos, recriar com outras fantasias e imagens.

81 O romance de Joyce que, justamente, conta a história de Leopold Bloom, o protagonista, ao longo de um único dia de sua vida. “James Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia em que fez sexo pela primeira vez com sua futura companheira Nora Barnacle, à época uma jovem virgem de vinte anos, apesar de a imprensa irlandesa publicar que nesse dia eles ‘caminharam juntos’ pela primeira vez. [carece de fontes] Na verdade, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou ‘com os olhos de uma santa’, como Joyce relatou em uma carta em que relembrou o acontecido.” (WILSON, Robert A. Cosmic Trigger II: down to the earth. 8. ed. Estados Unidos: New Falcon Publications, 2002. Pp. 58/59. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bloomsday#cite_note-0).

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Retornando ao prédio, inicia conversa com o porteiro e durante a conversa relata-se,

quase que inconscientemente, o seguinte:

Certa noite fui à casa de Beltrana82, para lhe dar um recado e ela estava com uma

expressão de tremenda tristeza. No jeito que ela me olhava e em algum lugar na voz dela

eu vi as lágrimas e ouvi o choro que a tristeza tem; que, via de regra, todos conhecemos.

E, ao enunciar as palavras – friamente – que eu levara até lá, na frente da casa da infeliz,

ela me pediu: “Entre!” – como se me implorasse, como se estivesse ajoelhada e dissesse,

separados por soluços-vírgulas, pedidos de ajuda. Tive a impressão de que se eu não

entrasse na casa dela, ela se suicidaria naquela noite, que aqueles eram, talvez, os últimos

minutos de vida que ela tinha. Fui embora para não vê-la chorar – odeio ver gente

chorando – e minutos depois me ocorreu esta interpretação aqui.

Há uma hiância no “tempo para entender”, algo como uma “descontinuidade tonal

[...] modulação do tempo” (LACAN, 1978, p. 76), que vai esvaziando aquela sensação

vivida e enchendo o conceito, como dois vasos comunicantes. Parece que a partir de um

ponto crítico (ou uma faixa crítica), depois de atravessar esse ponto, fica-se impossibilitado

de agir por não ter certeza. Não querer simplesmente bater na casa dela (da Beltrana) e

perguntar se estava tudo bem! Agora, analisando esse acontecimento vislumbra-se que

aquela experiência foi confusa, foi metafórica, não “matemática”. Ela se interpunha,

sobrepunha e contrapunha ao mesmo tempo ao da cena da senhora com seus parentes e a

fuga das imagens/sensações ali presenciadas.

O porteiro estabeleceu relação com dramas particulares que vivenciou, ou ouviu de

outros, os quais desembocaram em tragédias pessoais que marcaram de forma dolorosa o

olhar o mundo para muitos que sobreviveram. O relato de dor levou ao sentido de

frustração e medo diante da eminente derrota de seu time de futebol, já que intercalava a

conversa com o acompanhar o resultado do jogo. As duas experiências se sobrepuseram

num constante balbuciar, ele só repetia a mesma desolação, de uma memória trágica, fruto

de uma perda amorosa no passado, em meio à dor presentificada e requalificada,

reterritorializada pelo relato feito e pela derrota acompanhada. Ele só reproduzia a mesma

sentença, aquele seu “never more”83.

Essa situação toda foi um agenciamento.

82 Por mesura, estou omitindo o nome de uma certa mulher. 83 O célebre bordão do Corvo, do poema homônimo de Edgar Allan Poe.

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O autor se desterritorializou desta dissertação quando saiu do apartamento onde

morava, mas novamente quando se incomodou com a cena da senhora, outra vez quando a

cena, por meio da conversa com o porteiro, resgatou a outra experiência da eminente

desterritorialização absoluta que pressentiu frente a dor de Beltrana. Essas séries de

desterritorialização instaurou a capacidade de afirmar as diferenças entres essas

existências. Passou a se reterritorializar no processo mesmo de analisar todo esse deslocar

no espaço e agenciar sentidos para os acontecimentos, desdobrando os mesmos em sua

redação. Cada um dos sujeitos, pessoas e indivíduos, que estabeleceu contato também

experimentaram esse processo, mas em graus diferentes de busca de sentido. Depois veio o

continuum cuja ponta “A” começava na história da Beltrana e cuja ponta “B” vai até o

Fulano; ou melhor, até aqui, neste capítulo.

Mas se pensarmos nele como um mapa, ou melhor, um cartograma, por onde os

fluxos imanentes e os fluxos capturados na “atmosfera” simplesmente deslizam, seria então

possível atribuir as memórias dele a este mapa. Qual ele? Tanto faz! “Ele” é só um ponto,

uma posição. Assim como eu, você, beltrana etc.

“Tudo o que for fluxo pode ser territorializado e o será por um agenciamento”. Em

algum lugar – não em algum momento! – o fluxo gangrena, o desejo reverbera: eis uma

territorialização. Qual a diferença entre o Fulano ensandecido e Artaud “consumido numa

labareda interior” (vide epígrafe no início da dissertação)? Em ambos o mesmo “furor

selvagem84”: uma tentativa amorfa de juntar as peças, de falar tudo de uma vez: o que não

é normal.

Mas o que é normal. Este texto não o é. Há um “valor de uso” da palavra, assim

como dos gestos (e movimentos de corpos de modo geral) e, portanto, uma Economia

Política: “[...] convém menos exprimir o real que significá-lo” (DOSSE, 1993, p. 101) –

pensaria Barthes após assistir à apresentação de “Mãe Coragem”, de Brecht. Mas, todos

crêem, desde que o Estado Nacional fez frente à fragmentação étnica ou desde que o dólar

cuidou da fragmentação monetária, que as palavras e os gestos “circulam”; pois é

evidente85. Quando não circulam é porque há um defeito na media.

84 Do poema de J. Keats: “[...] What men or gods are these? What maidens loth? / What mad pursuit? What struggle to escape? / What pipes and timbrels? What wild ecstasy?” (Ode on a Grecian Urn. In: QUILLER-COUCH, Arthur. The Oxford Book of English Verse: 1250-1900. Oxford: Clarendon, 1919). 85 “Já assinalei a predileção da pequena burguesia pelos raciocínios tautológicos (R. BARTHES, Mythologies, Le Seuil, 1957, p. 109). Ora, são justamente as falsas evidências que Barthes quer

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Um agenciamento é essa media, e a circulação é um modo de territorialização.

Assim, o autor, o porteiro, beltrana e o jogo de futebol são todos permeáveis à circulação

das enunciações e dos corpos; ou, como já dissera Bourdieu (1998, p. 97-98), o poder fluía,

e esse poder era a força de nossas ações, desejos e sentimentos. A história de Beltrana

causou incômodo, talvez para o porteiro não tão grande quanto a derrota do seu time.

Certamente havia tédio nessa conversa, um certo mal estar entre os sons e imagens ouvidas

e assistidas; gestos desencontrados, palavras que não se encaixavam e também aquele

“desespero mudo”86 de uma possível tragédia em que a desterritorialização do homem, no

caso, Beltrana, se absolutiza na morte.

2.5. Reterritorialização da pesquisa – a questão da verdade no erro

Sem classificar – pois toda classificação implica um julgamento (FOUCAULT,

1999) – entre o que é político, lingüístico, cultural etc. Vamos partir do princípio87 da

necessidade de que tudo o que está escrito num texto científico, como este, é a verdade –

não é essa a condição sine qua non? Assim, sempre que as condições estão presentes, por

conseguinte, o texto científico, dentro das condições em que foi escrito, refletindo ou

sistematizando todo um processo de pesquisa e reflexões, tem o direito, assim como o

dever, a falar a verdade.

Contudo, como já foi apontado aqui, esse trabalho errou, ou melhor, seu autor errou

durante o processo de pesquisa. Mas o erro não é uma mentira. Assumi-lo é uma questão

da verdade. Mas tal verdade não se antepõe ao erro; o que não se pode aceitar, num

trabalho, ou em qualquer situação em que a necessidade de verdade se coloca, mais que o

engodo, é a mentira.

desestabilizar, cujas máscaras pretende despedaçar. Assim, investe sucessivamente contra o catch, a operação Astra, o rosto de Garbo, o bife com fritas, os Guides Bleus, o novo Citroën, a literatura segundo Minou Drouet...” (DOSSE, 1993, p. 99). 86 Do poema de Olavo Bilac: “[...] Quem o molde achará para a expressão de tudo? / Ah! Quem há de dizer as ânsias infinitas / Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? / E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? [...].” (Inania verba. In: Poesia no Brasil: das origens até 1920. Vol. 1. Org. Sônia Brayner. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981). 87 Porque sempre partimos de princípios e depois esquecemos? Como se o que dizemos tem qualquer coisa de necessário?

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Os erros são inerentes a todo processo do conhecimento. Marx virou o Modo de

Produção Capitalista do avesso, ele nos mostrou até o último detalhe, cada escama da dura

verdade da lógica da acumulação econômica e exploração humana, mas ele errou em “A

Ideologia Alemã”, errou em suas simplificações antropológicas.88 Tentem, porém, mentir!

A transformação dos equívocos analíticos (marxianos) em programa para administrar o

mundo das relações humanas fez das verdades de seus referenciais mentiras concretas no

cotidiano das pessoas. “Ah, mas ele pode ter se equivocado” – é só dizer isso e uma teoria

estará perdoada. Mas, a mentira em nome de uma idéia de verdade é um crime.

Agora é impossível ter certeza e, nesse caso, trata-se sempre do engano, jamais da

mentira. O que quer dizer as teorias da probabilidade senão que uma palavra não designa

nada? Que é impossível dar um nome ao conhecimento, pois ele não é um nome; que o

âmago do problema está aquém do próprio sujeito: na capacidade do simbólico (Lacan,

1978, p. 140-141); enquanto que o conhecimento está além. Essa ruptura, inclusive, não é

fruto senão de sua própria história:

“A divisão, para nós evidente, entre o que vemos, o que os outros observaram e transmitiram, o que os outros enfim imaginam ou em que crêem ingenuamente, a grande tripartição, aparentemente tão simples e tão imediata, entre a Observação, o Documento e a Fábula não existia. E não porque a ciência hesitava entre uma vocação racional e todo um peso de tradição ingênua, mas por uma razão bem mais precisa e bem mais constringente: é que os signos faziam parte das coisas, [...].” (FOUCAULT, 1999, p. 177)

História essa que só pode ser pensada numa falsa hipótese segundo a qual a fratura

é só um nome, ou seja, Foucault necessitou dum locus artificial para abrigar seu discurso, o

locus anterior à fratura e que por isso nos permite enxergar uma verdade como uma forma

que essas nuvens assumiram. Em suma, “estabelecemos” a verdade a la “contrato

social”89; não adianta procurar-lhe a essência, a pré-sença.

88 Por exemplo, quando situa a “fundação” da sociedade humana (ou da cultura), no ato de produção material dos seus meios de subsistência, ou seja, nem a religião, nem política e sequer a produção simbólica: o homo economicus equivaleria ao primeiro passo do homo erectus em direção ao homo sapiens. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007). Uma afirmação como essa, enquanto os antropólogos discutem arduamente o nascimento da cultura, há tanto tempo, é, no mínimo, leviana. 89 Há um velho debate na Ciência Política acerca da natureza do Estado, sendo que, entre outras variáveis, Hobbes, monarquista, defendia que o Rei é o mandatário de Deus na terra e por isso governa como quiser, pois suas decisões são sempre as melhores; ao passo que Rousseau, “democrata”, defendia que o Estado é

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Mas, sobra ainda uma tábua de todo esse naufrágio. Isso que este texto quer

significar. Significa mais que um pacto entre a “metade das palavras” e a “metade das

coisas”; um pacto de mútua exogamia. Numa “região” entre o texto e o além do discurso

(quase junto da experiência), criando essa simultaneidade. Apresenta-se aqui o texto não

para representar um processo de pesquisa, mas como uma prensentificação “no” do

discurso e não “pelo” discurso em si desse processo, errático, mas verdadeiro. E não é

suficiente dizer, junto de Lacan (1978, p. 116) que:

“Mesmo se não comunica nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo se nega a evidência, ele afirma que a fala constitui verdade; mesmo se é destinado a enganar, especula sobre a fé no testemunho.”

Dizer que o texto desta dissertação é verdade? Não adianta dizê-lo porque isso seria

inócuo. Este texto digladiou com as angústias e crenças, assim como com o orgulho e

limitações do autor. Eram não-conceitos que pressionavam o pensar a se conceitualizar;

eram as experiências vivenciais não pronunciáveis que, apesar de serem contra a

pronúncia, estabeleciam o caldo necessário para instaurar o campo de referenciais para os

conceitos serem pronunciados enquanto verdades. É a ligação entre o real e o simbólico: a

integração – naquilo que a representação tem de mais intrínseco, ou seja, a afirmação entre

a forma e o conteúdo; ou dito de forma simples, a auto-afirmação do texto enquanto

texto90.

Essa ligação é possível porque o texto é um território. “Vim aqui fazer o texto!” é

permutável em: “vim aqui fazer o território!” Faltava só reconhecer. Não falta mais.

Por isso esta dissertação é um fim em si. Mas isso não é alguma coisa simples:

apreender a trabalhar com uma técnica no próprio ato de produzir algo no contexto de

determinada lógica maquinal, como é o caso de se fazer um trabalho científico no meio

universitário, com suas regras concretas, ou seja, os rituais, os trâmites, a linguagem

uma convenção coletiva (o contrato social): as pessoas abrem mão de parte de sua liberdade e aceitam ser governadas por um representante. 90 Mas, se a afirmação é sempre insidiosa: “Argumentando que a significação do negativo está na dependência do deslocamento do significado, Lacan afirma que a linguagem que pretensamente representa essa negatividade só o faz através de seu encobrimento. Nestas condições, de acordo com Judith Butler, ‘a positividade da linguagem é uma parte do estratagema da própria denegação’ (Butler, 1987, p. 188), e a representação é em geral compreendida como fundada numa repressão necessária do inconsciente. [...].” (PEIXOTO JR., 2004, p. 111-112). Talvez a auto-afirmação seja a única possibilidade de verdade, pois seria uma auto-negação: se a negatividade se afirma enquanto tal, ela se nega!

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apropriada e o gestual necessário, sendo que, os sentidos do referencial teórico e do objeto

abordado rompem com esse maquinário. Eis a dificuldade de se atingir a verdade. Às

vezes, o que é possível é assumir os erros.

Diante dessa finalidade da pesquisa, a única resposta possível foi que dificilmente

se encontraria um conceito unânime para o termo ‘território’, pois cada área do

conhecimento o percebe de um olhar particular. O território é uma realidade dinâmica,

espacial e temporal culturalmente construído.

O conceito de território, portanto, buscado como um objetivo final da pesquisa foi

um erro. A verdade não podia ser enunciada em palavras. Talvez sentida, como numa

definição de Kant “um universal sem conceito”. Mas aí território estaria mais para uma

figura estética, mergulhado num plano de composição artístico. Deleuze e Guattari vieram

em socorro. É processo, não é conceito fixo. São agenciamentos que permitem a

interferência entre o plano de imanência filosófico, o plano de referência científico e o

plano de composição artístico.

Fez-se o silêncio. A interpretação de um silêncio pode ir até o limite da linguagem,

instaurando burburinhos de significados outros. Novas linhas de segmentaridade presentes

nos espaços mais diversos.

A busca por reterritorializar a pesquisa, assim como o pensamento do pesquisador

no objeto a ser territorializado, o silêncio provocou um agenciamento que agregou corpos e

palavras para deixar os fluxos passarem. Das sociedades indígenas, que não possuem a

idéia ou a vivencia do território enquanto conceito, instaurou a condição de pensar essa

verdade para questionar o erro, ou seria a mentira, das chamadas sociedades territoriais

que, por possuírem uma idéia de território enrijecido para viabilizar o exercício de poderes

político, econômico e cultural, almejam que todo a diversidade cultural do mundo assim

entendam a produção espacial da existência humana.

Ademais, aquela acepção de Hobbes, em que o Território é, rigorosamente, um

objeto, não tem nenhum fundamento a medida que ele é uma coleção (virtualmente)

infinita de outros objetos, inclusive o “objeto” sociedade. Nada mais absurdo que “medir”

um território, que quilometrá-lo.

Mas, naturalmente, que existem sociedades que verbalizam e imaginam, significam

suas relações espaciais por meio da idéia de território. As “sociedades de território”,

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contudo, aqui, depois de tudo que foi discutido, é melhor estar entre aspas, pois quer alertar

que o termo território confunde-se com uma entidade que, legalmente institucionalizada, se

materializa na fisicidade da superfície terrestre, regidamente delimitado e administrado

pelo Estado-Nação. Território aí é palco físico sobre o qual os homens exercem o poder e o

domínio de uns sobre os outros.

Para, portanto, instaurar outro devir que afirme a diversidade de vivências no

mundo, de respeito à diversidade e de superação da uniformização de comportamentos,

idéias e valores, o sentido de território físico, delimitado, enrijecido e separado da própria

dinâmica da vida deve ser agenciamentado. Isso significa buscar outras formas de se

pensar a ciência, ou seja, novos planos de referência a partir de planos de imanência

filosófica que viabilizem os conceitos como inerentes ao viver, e não para se impor

transcendentalmente ao mundo humano.

Aprender com a diversidade cultural, com experiências de grupos humanos que

possuem outras línguas, outros referenciais de pensamento, outros parâmetros de criação

espacial de suas existências, só vem a enriquecer o sentido pleno de humanidade. Nesse

aspecto que, aprender com sociedades que não enrijecem a sua relação espacial num

conceito de território delimitado, para exercer o poder em si, é uma necessidade para

superarmos muito dos impasses e conflitos que atualmente vivenciamos.

A ciência, no caso também o discurso geográfico sobre as questões das relações

espaciais, busca não as diferenças, mas as semelhanças.

“Por detrás de toda a espécie de produção material humana, há algo mais do que a funcionalidade da existência dos objetos, e, segundo críticos das explicações funcionalistas, as ciências não estavam conseguindo abranger uma realidade muito mais complexa do que a palpável.” (SCHIAVETTO, 2003, p 41).

Aí, viver sem território, mas viver os processos de territorialização seria a

atualização dos aspectos necessários a todo processo de vivência na instauração de devires

afirmativos da diferença e da liberdade humana.

A título de exemplo do que está querendo aqui apontar. Quando o erro de

perspectiva se instaurou nesta pesquisa/pensamento, passou-se a buscar caminhos possíveis

– novas verdades? Foi se dando conta que não era os referenciais teóricos e os conceitos

que deveriam explicar o erro da não adequação da realidade espacial dos Mbyá, mas o que

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dessa experiência cultural poderia exercitar a aproximação de novos referenciais teóricos e

conceituais que explicassem os erros do pensamento uniformizante, da busca pelas

semelhanças do discurso científico – sempre entendendo o geográfico aí destacado.

Encontrou-se uma discussão acerca do conceito de

territorialização/desterritorialização do processo territorialização-desterritorialização-

reterritorialização, definido a partir do “Mil Platôs”. Ao analisar o sentido desse

movimento territorial, percebeu-se que ele se aproximava e permitia, a partir de um

observador parcial, estabelecer as funções de atualização das interpretações em decorrência

do sentido de mobilidade espacial dos Mbyá91.

“Diante do impacto sobre o território original, uma significativa parcelados Mbyá buscou como estratégia uma redefinição para o seu conceito de território. Nesta nova concepção, mais do que nunca, deveriam considerar a disseminada presença dos brancos ocupando a maior parte das terras, sendo cada vez mais concreta a impossibilidade de manter o isolamento e distanciamento geográficos. Os Mbyá passaram a conceber o seu território como amplo, aberto e descontínuo. E é a partir dos – guata/andanças, caminhadas, que vão redimensionando esta nova concepção de território.” (GARLET e ASSIS, 2009, p. 39).

Foi essa a revisão que, a partir da relação ao pretenso território guarani (mbyá), que

levou a pensar a possibilidade de referenciais conceituais que superassem a necessidade de

organização social a partir de território rígidos em que se exerce o poder de uns sobre os

outros. Foi desse território sem poder (poder no sentido que é possível o compreendermos

e não uma metáfora!) que permitiu pensar um saber que não se pautasse na separação entre

o pensamento e o mundo que desembocou no texto/pesquisa aqui pensado/escrita.

Partindo das referências às palavras “aqui” e “e”, ou seja, como lugares no texto; pontos no

“grande sintagma” que qualquer texto representa, toma-se a relação entre o “aqui” e as palavras

91 Muitos podem entender que a aproximação das idéias degeanas de territorialização se dá com o conceito de Tekohá, que alguns grupos guaranis elaboraram a partir do contato com a cultura branca, fortemente pautada na idéia de território delimitado. Contudo, esse conceito é uma tentativa de reterritorialização de referenciais culturais dos guaranis, aproximando-se mais de uma desterritorialização de suas experiências e processos espaciais ao lutar por um território definido legalmente. Mas os guaranis fazem parte dessa relação hegemônica ocidental capitalista. A territorialização de suas existências se dá no contexto desses contatos. Contudo, diante de uma sociedade territorial, Tekohá pode ser uma luta necessária: “Território Guarani consiste em uma cartografia delineada em experiência, criação, memória, conhecimento e reconhecimento, palavra, sentimento, movimento [...].” (DARELLA, 2004, p. 92). A questão é que temos de afirmar outros devires para a humanidade, para além do território como poder.

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que virão depois do “e”, ainda não ficou explicitado o significado de um certo termo. Por

causa da centralidade dele. Mas, enfim, last but not least...

Entre o “aqui” escrito “e” tudo aquilo que não se encontra, devido aos erros

cometidos, a verdade se realizou, ou se realiza, como o possível. Nosso pensamento

estabeleceu o necessário equilíbrio de sentido perante o caos encontrado. Mas é tudo

processo. A questão é: quais angústias novas, ou renovadas, daí serão manifestadas. O caos

continua, como sombra; uma necessidade para o pensar se exercitar em busca da ordem

provisória das sensações e pensamentos. Novos erros advirão. Eis a única verdade possível

para além deste texto.

2.6. Território/Terra – por um discurso mais formal

Visando provocar estranhamento, ao mesmo tempo que aproximação entre formas

diferentes de abordar a questão. De um lado o pensador que vivencia seu objeto e almeja

expressá-lo em um texto; de outro, o pensador que precisa abordar seu objeto para torná-lo

compreensível para um conjunto maior de potenciais leitores. Opta-se aqui em delimitar

aquela que pode ser a contribuição maior para um trabalho acadêmico. Pontuar o sentido

de território, enquanto processo, a partir do referencial teórico delineado. Apesar do tom

irônico, esse capítulo demonstrou ser necessário nessa forma de apresentação, para

inclusive delimitar melhor as demais linhas de fuga a partir da mesma polêmica territorial.

No plano de referência aqui proposto, o acontecimento que nos instiga a pensar é o

conceito de Território. Enquanto perspectiva científica, colocou-se como referência o

pensamento de Gilles Deleuze em parceria com Guattari (1995), entendemos que a ciência,

para fazer jus a sua necessidade social, precisa promover uma “parada na imagem”,

desacelerando o turbilhão temporal e limitando a extensão espacial com que o pensamento

aborda o caos imagético do mundo. Dessa forma, o conhecimento científico pode, talvez,

contribuir para o melhor agir humano sobre o infinito que é a vida92.

92 Devido à complexidade dos referenciais tomados a partir das idéias de Félix Guattari e Gilles Deleuze, optamos aqui em estabelecer um corte conforme os objetivos do projeto, mesmo sabendo que tal opção corre o risco de conflitar com a compreensão que os dois pensadores franceses possuem em relação às funções da

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O corte necessário, o que comumente se chama delimitar o “objeto de pesquisa”,

permite objetivar e se exercitar com mais pertinência a prática da linguagem científica.

Diante disso, destacam-se as potencialidades para elaboração de referenciais de

percepção/entendimento e de expressão/manifestação da ordem societária, assim como na

lógica econômica e na manifestação cultural inerente ao arranjo espacial do mundo atual.

A percepção/entendimento e a expressão/manifestação ocorrem em diversas

formas, lugares e escalas de territorialização. Aí, portanto, território é o elemento

catalisador para os desafios escalares que instigam o pensar científico. Cobra-se aí, por

conseguinte, uma abordagem geográfica que consiga dar conta dessa dinâmica escalar.

Contudo, perante a perspectiva teórica aqui assumida, o estudo que almejamos

desenvolver quanto a problemática da imagem não pode insistir numa prática usual, numa

tradição metafísica que circunscreve o pensar em separado do mundo que o motiva, qual

seja, numa relação pautada na separação entre sujeito e objeto, como partes fixas em si93.

Contribuir para uma melhor compreensão do atual estado e função do sentido de

território, tendo como referência os aspectos de diferenciação nos diversos lugares e a

dinâmica escalar em que se manifestam, força por uma postura compromissada com um

pensamento que se dobre sobre a relação território/terra, como imagem dessa relação

enquanto processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.

“A terra não é um elemento entre outros, ela reúne todos os elementos num mesmo abraço, mas se serve de um ou de outro para desterritorializar o território [...] São dois componentes, o território e a terra, com duas zonas de indiscerbinilidade, a desterritorialização (do território à terra) e a reterritorialização (da terra ao território).” (DELEUZE, GUATTARI. 1995/a, p. 113).

Vamos assim deixando mais claro nosso plano de referência com que abordaremos

a questão. Nossa perspectiva será pensar o mundo não a partir de uma separação enrijecida

filosofia, da ciência e da arte no processo de entendimento do mundo. De maneira bem sintética, Deleuze e Guattari (1997) delineiam que, na busca para tentar estabelecer conhecimento frente o caos imagético do mundo no infinito que é a vida, o ser humano exercita três formas de pensar: o filosófico, o científico e o artístico. Cada uma dessas linguagens respectivamente trabalha com determinados elementos de abordagem (os personagens conceituais na filosofia, os observadores parciais na ciência e as figuras estéticas na arte) e estabelecem um plano de abordagem (o plano de imanência na filosofia, o plano de referência na ciência e o plano de composição na arte). 93 “[...] não pensemos mais por meio do sujeito e do objeto, por ser essa uma imagem dogmática do pensamento, uma vez que supõe objetos fixos e uma consciência também fixa. Sobretudo supõe a vontade de verdade que irá, cedo ou tarde, enrijecer o pensamento e nossa interação com a vida”. (MOSTAFA, CRUZ. 2009, p. 80).

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sujeito de um lado e objeto de outro, mas, enquanto coletivo de pesquisadores, pensar a

territorialidade (presença e uso) das relações espacializadas com a terra (os diversos

lugares) em que delimitarmos a nossa abordagem.

Para tal, esse processo de elaboração de conhecimento se pauta numa dinâmica que

possui a ordem espacial dos movimentos territorializadores como inerentes aos meios em

que percebemos e elaboramos o pensamento sobre e com o mundo. São processos mais

voltados para o sentido geográfico da organização da vida.

A ordem espacial do acontecimento vivencial humano é a de presentificar em cada

lugar a tensão entre os diversos interesses e necessidades humanas, como se articulasse

diferentes planos de referenciais de leitura e produção de sentido existenciais, abrindo para

outros possíveis devires espaciais, como num labirinto em que estamos perdidos, mas

precisamos nos orientar e escolher qual o caminho. Ler esses elementos, produzir imagens

capazes de identificar os mesmos, localizar a dinâmica escalar dos fenômenos aí

acontecidos, enfim, organizar uma cartografia diferenciada e em aberto que nos permita

mergulhar nessa ordem espacial, nessa geografia caótica da vida. Talvez aí ainda não

consigamos sair do labirinto, mas poderemos, quem sabe, melhor nos localizar e orientar

nele, ou com ele.

Ler o arranjo espacial labiríntico é o que a leitura do território pode proporcionar.

Para tal, deve-se entendê-lo, a leitura, como uma espécie de clareira que revela94, mas

também oculta os referenciais que permitem balizar a dinâmica escalar delineadora dos

mecanismos com os quais as relações humanas se territorializam, desterritorializam e

reterritorializam nos lugares, expressando esse processo com dada forma, ou seja, com

imagens e características paisagísticas inerentes as condições ali manifestas. Tendo essa

perspectiva como referencial de abordagem, um aspecto se destaca. Para se aproximar de

94 O emprego recorrente do termo “clareira” tem uma relação, mas não é fiel, com Heidegger. O pensador alemão utiliza para articular o referencial ontológico de sua filosofia do “ser” enquanto verdade na linguagem, daí a questão da metafísica: “A verdade do ser como clareira mesma permanece oculta para a Metafísica” (1979, p. 158). A metafísica, que busca verdades absolutas a partir de uma divisão fixa entre o sujeito pensante e objeto pensado, não consegue vislumbrar a dinâmica subversiva do pensar enquanto encontro do homem com o mundo; Heidegger coloca que pelo pensamento a linguagem passa a ser a casa do ser, na qual o homem encontra a clareira que o revela: “O pensar atenta para a clareira do ser, enquanto deposita seu dizer do ser na linguagem como habitação da ec-sistência. Deste modo, o pensar é um agir” (1979, p. 173). Contudo, essa clareira que apresenta o ser das coisas para o homem por meio da linguagem, não revela o ser em sua inteireza. Somos seres finitos, limitados, daí a clareira revelar e ocultar, eis o mistério do conhecimento, ou seja, as sombras e silêncios obscuros da vida. Diante desses impensados é que o homem busca linguagens possíveis para pensá-los; eterna insatisfação: “Mas é o ‘ainda não’ do impensado [...] um ‘ainda não’ para quem nós não bastamos e que não somos capazes de satisfazer” (1979, p. 214).

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tal leitura a partir dessa dinâmica escalar pautada no processo território/terra, a abordagem

científica precisa dialogar com outras linguagens do pensamento.

As formas mais usuais de abordar o sentido de território partem de uma relação em

que o território é um objeto só passível de entendimento enquanto conceito definido

intelectualmente por um sujeito pensante. Isso significa que território passa a ser resultado

de uma idéia transcendental e rigorosamente delimitada pelo pensamento racionalizante em

si, o qual, como resultado da separação do sujeito que pensa em relação ao objeto pensado,

não consegue estabelecer o sentido de interação entre a vida pensada com o pensamento

em vida. Para deixar mais claro ao que estamos apontando, vamos fazer uso das idéias de

Felix Guattari e Gilles Deleuze95.

Deleuze e Guattari (1992) desenvolvem o entendimento do pensamento como a

capacidade humana de produzir conceitos filosóficos, afetos sensíveis artísticos e

proposições científicas, portanto, relacionando filosofia, arte e ciência como planos que

dialogam, mas não se perdem em suas características e linguagens próprias, capazes de

estipularem os sentidos do mundo enquanto acontecimento humano. Para tal, pontuam que

as formas desse pensar acontecer não pode se pautar na tradição metafísica de separar o

sujeito pensante do objeto pensado.

“O sujeito e o objeto oferecem uma má aproximação do pensamento. Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre território e a terra”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 113).

Essa forma de entendimento do pensamento como uma expressão humana que não

se restringe a dicotomia “sujeito/objeto”, mas sim pautada numa nova relação estabelecida

entre “território/terra” se justifica pelo fato de não se buscar parâmetros fixos e

supostamente inquestionáveis revelados por uma verdade final e absoluta.

95 Apesar de Guattari e Deleuze fazerem distinção entre conceitos filosóficos e os functivos/prospectos científicos, adequaremos aqui o sentido filosófico de território aos parâmetros geográficos por entender que, no discurso desses dois pensadores, a filosofia proposta se aproxima da geografia, em especial com relação a interação do corpo/pensamento imanente a terra/território enquanto acontecimento da vida (DELEUZE e GUATTARI. 1992).

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“Sugerem que não pensemos mais por meio do sujeito e do objeto, por ser essa uma imagem dogmática do pensamento, uma vez que supõe objetos fixos e uma consciência também fixa. Sobretudo, supõe a vontade de verdade que irá, cedo ou tarde, enrijecer o pensamento e nossa interação com a vida. Fazendo da imagem do pensamento uma questão de eu e o mundo, tem-se a impressão de que o pensamento está sempre em afinidade com o verdadeiro [...] Essa imagem de sujeito e objeto não é adequada porque supõe julgamentos, isto é, que podemos julgar tudo: quem e quais são os sujeitos de fato e de direito, bem como quais são os objetos merecedores de atenção”. (MOSTAFA e CRUZ, 2009, p. 80)

Portanto, pensar não é algo em que apenas uma dada forma de racionalidade,

aquela em que um sujeito, imbuído do domínio lógico do discurso rigoroso e preciso,

consegue articular a ordem dos enunciados e expressar, por fala ou por escrito, a verdade

essencial do objeto observado/pensado.

Essa forma, por eles criticada, parte do pressuposto que existe uma única maneira

de se pensar, sendo esta a que diz a verdade última dos fatos. Essa forma de exercitar

racionalmente o pensamento como se esse, através da articulação seqüencial das palavras

no discurso, transparecesse como representação, mimética ou exata, os elementos e

processos do mundo real, seja realidade empírica ou essencial96.

A justificativa para essa crença no pensamento único, que evoluiu entre causa e

efeito numa seqüência padronizada e passível de estabelecer a ordem futura, pois caminha

de uma origem inferior para uma forma superior de viver/pensar, se prende à percepção do

desenvolvimento uniforme do tempo histórico. Deleuze e Guattari (1992) assumem que a

superação dessa mentalidade limitante e enrijecida deva partir não mais do sentido

temporal, mas do referencial territorial como plano que viabiliza outras possibilidades de

se pensar e viver diferentes processos temporais; o plano espacial aponta não mais para

uniformidade da evolução, mas para o movimento diverso de

territorialização/desterritorialização/reterritorialização dos vários planos vivenciais, não

tendo uma mesma linha evolutiva, a partir de uma origem determinada que caminha para

96 A discussão aqui entre a realidade ser fundada no empírico ou na idéia, assim como a verdade que podemos descobrir dela ser por meio da “mimesis” (imitação, representação) ou por “anminesis” (recordação, ideação) tem sua matriz nas idéias de Aristóteles e Platão, portanto, na própria origem da filosofia ocidental. Aqui não cabe entrar nos detalhes dessas diferenças, mas apenas apontar que as idéias de Guattari e Deleuze criticam ambas por entender que partem do mesmo pressuposto, qual seja, que a verdade é algo logicamente revelado pelo encadeamento preciso da argumentação a partir de um sujeito que exercita a lógica do pensar sobre um objeto pensado. Mais detalhes ver: Deleuze e Guattari, 1992.

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um futuro determinado, mas são possibilidades num meio aberto. Eis o aspecto mais

contundente da filosofia desses autores, ela está entrelaçada mais a geografia que com a

história.

“A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para a forma histórica. Ela não é somente física e humana, mas mental, como a paisagem. Ela arranca a história do culto da necessidade, para fazer valer a irredutibilidade da contingência. Ela arranca do culto das origens, para afirmar a potência de um “meio”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 125)

Pensar, portanto, é a capacidade de se produzir conceitos, funções e afetos em

planos específicos que se territorializam em dado meio sem necessariamente ter um

processo retilíneo historicista de causa e efeito que os explique. Pensar, portanto,

pressupõe corpos que se movimentam em seus territórios, provocando não necessariamente

uma causa passível de dedução lógica no tempo futuro, mas sim devires de possibilidades.

Nesse sentido, os dois pensadores propõem que passemos a pensar a partir não mais da

relação sujeito/objeto, a qual se consolida numa noção de tempo historicista metafísico que

se ilude com a idéia de controle lógico do futuro, mas na noção geograficizante da relação

território/terra.

“Os autores sugerem que pensemos com base na relação entre o território e a terra. Para pensar a história estes autores deslocam o olhar do sujeito e do objeto e procuram pensar nos movimentos que esse encontro promove na terra, ou seja, os constantes processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização”. (MOSTAFA e CRUZ, 2009, p. 80)

Nessa direção, o entendimento de terra não é de algo em separado do sujeito que a

pensa, mas ela se confunde com o próprio movimento dos objetos, corpos e elementos que

a constituem, movimento esse que é o de desterritorializar as coisas, provocando novas

reterritorialidades.

“A terra não é um elemento entre os outros, ela reúne todos os elementos num mesmo abraço, mas se serve de um ou de outro para desterritorializar o território. Os movimentos de desterritorialização não

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são separáveis dos territórios que se abrem sobre um alhures, e os processos de reterritorialização não são separáveis da terra que restitui territórios”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 113)

Pensar a partir da perspectiva geográfica da relação território/terra não significa que

se deixe de considerar a relação “eu/mundo”, ou “nós/outros”, mas de passar a entender o

“nós” e os “outros” como seres que se significam mutuamente no contexto das relações

territoriais, as quais expressam os sentidos vivenciais humanos na terra em que o existir se

desterritorializa/reterritorializa.

A conseqüência dessa forma de entendimento do pensar, a partir dessa relação não

restrita ao dualismo sujeito/objeto, é o sentido de território não ser mais um mero objeto de

nossos estudos ou intervenções, estranho às relações humanas, como algo a parte, um palco

transcendental ao homem no qual este deposita seus produtos e conhecimentos. Território,

a partir dessa leitura de Deleuze e Guattari, é imanente ao acontecer das relações humanas,

as quais são movimentos de contínuos desterritorializar e reterritorializar, na produção de

outros devires possíveis de significados territoriais, no contexto da vida enquanto terra por

esses movimentos manifestada.

Para melhor entender essa relação de interação “eu/outro” na relação

“território/terra”, Deleuze apresenta o conceito de “outrem” como o elemento capaz de

congregar esses objetos, corpos e conceitos diversos do mundo num processo de

conhecimento inerente ao humano. Inicia a argumentação de que o “outrem”97 seria a

estrutura vivencial/perceptiva em que cada objeto percebido e pensado se coloca num

plano com outros objetos e idéias, o que permite estabelecer uma certa ordem de

entendimento entre essa diversidade, por mais doloroso e injusto que isso possa significar.

97 O conceito de “outrem” foi desenvolvido por Deleuze e sua aplicação sempre manteve um vínculo comum. Podemos exemplificar tal fato com duas de suas obras. Em “Diferença e Repetição”, obra que veio a público em 1968, “outrem” é a forma de entender melhor os centros que atestam os mecanismos de individuação: “Esses centros não são evidentemente constituídos pelo Eu nem pelo Eu, mas por uma estrutura totalmente diferente que pertence ao sistema Eu-Eu. Essa estrutura deve ser designada pelo nome ‘outrem’” (2006, p. 363). Em “Lógica do Sentido”, obra de 1969, Deleuze emprega o termo, através do estudo da obra de Michel Tournier “Sexta-feira ou a vida selvagem”, não só para discutir a questão da perversão como patologia, mas principalmente para entender os danos psíquicos que a ausência do “outrem” pode acarretar no ser humano na terra em que se encontra: “Ao invés de uma tese sobre a perversão, é um romance que desenvolve a tese mesma de Robinson: o homem sem outrem em sua ilha” (2007, p. 314). A conotação geográfica com esta última está bem mais presente, assim como nas obras futuras ao propor, junto com Guattari, a geofilosofia.

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A partir disso, o “outrem” passa a significar uma estrutura de campo que permite

instaurar o sentido do possível, não da resposta definitiva e esclarecedora das

incompreensões, mas da possibilidade de se caminhar, do sentido do “eu” se

reterritorializar em novas condições possíveis.

“Mas o outrem não é nem um objeto no campo de minha percepção, nem um sujeito que me percebe: é, em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz [...] Outrem é a existência do possível envolvido. A linguagem é a realidade do possível enquanto tal. O eu é o desenvolvimento, a explicação dos possíveis, seu processo de realização no atual”. (DELEUZE, 2007, p. 316-317)

O “eu”, portanto, não se coloca estranho ou anteposto ao “outrem”, o “eu” não é o

sujeito de um objeto “outrem”, nem vice-versa, pois o “eu” é a possibilidade de realização

do campo percebido e comunicado, vivido e interpretado pela linguagem e pensamento

possíveis, ou seja, é a realização da possibilidade da terra em nós, seres humanos, pois a

terra “não é a terra a não ser povoada de outrem” (DELEUZE, 2007, p. 321).

Através do “outrem”, o “eu” inerente a todo ser humano pode instaurar novas

formas de se reterritorializar, constituindo assim outras possibilidades da vida acontecer

em novos arranjos territoriais; no dizer dos pensadores, de instaurar novos “planos de

imanência” para que os seres humanos estabeleçam novas formas de encontro, de relações

que permitam a vida territorialmente acontecer em outras condições possíveis.

Dessas idéias de Deleuze e Guattari vamos percebendo que o sentido de território

pode tomar outras conotações, para além do objeto definido por meio de seus usos.

Território passa a ser entendido na dinâmica do movimento que constitui a vida enquanto

“outrem” a povoar terra; como acontecimento imanente ao existir humano em suas várias

possibilidades. Não se coloca como passível de classificação e delimitação rigorosa dos

estudos científicos, com objetivo de meramente explorá-lo ou controlá-lo em seus usos e

significados, mas é condição de um saber mergulhado no contexto da experiência vivencial

humana.

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Território, assim, não é uma questão de objeto para um sujeito que quer explorá-lo

ou apenas usá-lo, nem tampouco é apenas o meu território, lugar do sujeito que determina

a sua construção, em relação ao território do outro, objeto de disputa do meu interesse.

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A TÍTULO DE CONCLUSÃO

O indivíduo e todas as suas referências, inclusive teóricas, mudam de configuração

com a passagem do tempo que é, por sua vez, modulado de locus em locus; mas um texto

acadêmico tenta negar isso, implicitamente. Mesmo quando afirmam a mudança do objeto,

esquecem que, a cada linha do texto o sujeito é outro (o campo também outro). Como

podem afirmar a mudança se o ponto de vista não é privilegiado? E se está, o sujeito, no

mesmo Plano de Imanência que o objeto? Mas viver o fluxo não significa reproduzi-lo,

mesmo por aproximações, em um texto. O texto é registro, é interrupção, é distanciamento

para se materializar em signos e imagens o fluxo vivenciado.

O Fluxo é caos, o texto é a tentativa do pensamento organizá-lo em forma de

conhecimento e experiência coletivizada. Por isso, este texto aqui, apesar de ser fruto da

vivência de seu autor em meio ao fluxo caótico da vida, ele é um texto reproduzível; seu

valor é buscar capturar essa efemeridade, mas se for reproduzir o efêmero em sua inteireza,

então não se precisava escrevê-lo. Mas para enunciar o efêmero, precisa-se de uma ordem

que se dê em determinado plano de entendimento.

O conceito de Plano Imanência, ou de Consistência para o processo de

entendimento, nos instrumentaliza nesse sentido de ordenar conceitualmente o Caos.

Segundo se lê em Deleuze e Guattari (1997, p. 222):

“O plano consiste, abstratamente mas de modo real, nas relações de velocidade e de lentidão entre elementos não formados, e nas de composições de afectos intensivos correspondentes (‘longitude’ e ‘latitude’ do plano). Num segundo sentido, a consistência reúne concretamente os heterogêneos, os disparates enquanto tais: garante a consolidação dos conjuntos vagos, isto é, das multiplicidades do tipo rizoma. Com efeito, procedendo por consolidação, a consistência necessariamente age no meio, pelo meio, e se opõe a todo plano de princípio ou de finalidade. Espinosa, Hölderlin, Kleist, Nietzsche são os agrimensores de um tal plano de consistência, jamais unificações, totalizações, porém consistências ou consolidações.”

Dito de outro modo ele é não-caótico, porém não formado. Ele é matéria-prima

para um agenciamento que permite ao pensamento criar conceitos e, ao assim fazer,

interferir nos referenciais científicos para capacitá-los na função de atualizar o

entendimento do mundo por meio de seus parâmetros. A conseqüência disso é o discurso

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científico articulado em textos e documentos que permitem o homem, em qualquer

condição vivencial, elaborar parâmetros e significados necessários para entender o fluxo

caótico da vida.

Contudo, o próprio produzir científico está inserido na ordem economicista do

projeto societário dominante. Não está longe do mundo. Os discursos produzidos, a partir

das instâncias responsáveis pela elaboração das pesquisas e da linguagem científica,

refletem essa diversidade caótica que é o mundo. Apesar das forças em uniformizar, o

saber acaba rompendo essas fronteiras da igualação do não igual. Nessa situação as

condições de produção do conhecimento se encontram numa tensão pelo processo de se

poder fazer o “Saber”, ou seja, o conhecimento produzido numa pesquisa sendo realmente

um savoir-faire, na acepção de saber o “Saber” e fazer o “Saber”.

“Observemos que na condição atual a reflexividade ocupa o centro da vida social em todos os grupos humanos inseridos no processo de globalização. Isto implica que os valores compartilhados, mesmo que seja o estritamente necessário para assegurar o fluxo das relações sociais, devem ser necessariamente negociados e legitimados por acordos circunstanciados. Entretanto, parece que a negociação dificilmente é capaz de gerar um consenso suficientemente amplo para envolver a diversidade de grupos e sujeitos sociais. Há sempre um resíduo não pactuado, que pode gerar desconforto e ser matéria para construção de novas negociações.” (PEREIRA, 2009, p. 124).

O que pode-se se destacar para entender esse processo é que a prática da pesquisa

se dá num campo específico, mas não isolado. O conceito de Campo (BOURDIEU, 1998)

nos ajuda a pensar uma certa escala, sem contudo, eliminar a possibilidade de coexistência

entre outras. Essa “certa escala”, que pode ser denominada de “fatual”, significa uma não-

abstração da experiência onde os indivíduos participam do Espaço. Nessa “participação”,

por outro lado, é preciso destacar a fluidez, ou melhor, o fato de que o fluxo de desejo (se

considerarmos esse o “combustível” das relações sociais) o atravessa o Campo na

proporção direta de sua permeabilidade, assim:

“[...] este ganho do trabalho, que constitui em parte o interesse pelo facto [sic] de trabalhar e que é, por outra parte, efeito da ilusão constitutiva da participação num campo, contribui para tornar o trabalho aceitável para o trabalhador apesar da exploração; ele contribui até, em certos casos, para uma forma de auto-exploração.” (BOURDIEU, 1998, p. 97-98).

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Desta forma, conforme Bourdieu, quanto mais causar a impressão de objetividade,

ou seja, de racionalidade, no sentido weberiano, melhor o fluxo98, aqui entendido como

potencialidade, ou força, de divulgação das informações para um conjunto, ou grupo

social, interessado, desejoso dessas informações. Por sua vez, um fluxo, no Campo por

excelência, pode se exaurir e mesmo “migrar”, posto que a característica básica do Campo

é seu exercício, exercício do fluxo e a capacidade, desse exercício, de se efetivar no

conjunto de seus desejosos/necessitados.

Diante disso, este texto, esta pesquisa, se coloca e se assume nesse campo

acadêmico e visa atender uma necessidade, que provavelmente não é da maioria dos

pesquisadores, mas que se coloca como uma reflexão desejada e necessitada por membros

de Campo a partir da inadequação e erros dos referenciais científicos que se colocam

distantes do fluxo da vida, da dinâmica caótica do mundo em sua diversidade.

A crítica aí se reterritorializa: se a enunciação dos pesquisadores possui alguma

legalidade (força legal) e sendo proferida a partir de um ponto onde essa legalidade

encontra sua “fronteira”, um limite onde a enunciação intenta romper a ordem política ou

teórica, tanto interna aos muros quando externa aos mesmos, então, talvez, a despolitização

da enunciação devesse repolitizar-se no agenciamento maquínico de experiências espaciais

outras produzidas pelos diversos grupos e culturas humanas em seus processos de

efetivação da vida.

Concluindo agora, mas sem formular conclusões definitivas, e sim questões.

Primeiro, deve o agenciamento ter maior generalidade que o território, uma vez que a

distinção entre esses conceitos pode ser preservada e mesmo diluída no interior de

experiências espaciais vivenciadas por outras culturas, como a aqui rapidamente apontada

pelos Mbyá? Conseqüentemente seria possível estudar qualquer experiência espacial de

98 Nisso Habermas parece ter razão por se opor à Arendt, ao mesmo tempo que por estar de acordo com ela, pois o “concerto”, nesse caso, produzido mais pela máquina alienante concreta, que por uma mera superestrutura ideologizante, é garantido sim, mas violentamente; a liberdade de “jogar”, no Campo, é a outra efígie da necessidade de existir O Jogo e com regras deus ex-machina: “[...]. Atualmente, porém, o ‘adversário’, o estado de ‘alienação’ com que a teoria crítica se viu confrontada, já não é simplesmente a sociedade burguesa desenvolvida, mas, essencialmente, esse próprio projeto: a perspectiva histórica do ‘mundo administrado [die verwaltere Welt]’, da sociedade em que as relações sociais de dominação cedem lugar a um domínio pela manipulação tecnológica. O marxismo tradicional visava a substituir a ‘administração dos homens’ (as relações sociais de dominação) por uma livre associação de indivíduos exercendo em comum a ‘administração das coisas’ necessária para a reprodução da sociedade; [...] O advento do ‘mundo administrado’ trouxe uma perspectiva propriamente impensável dentro do contexto desse marxismo: a de a própria vida social, a ‘livre associação dos indivíduos’, se tornar disponível, entregue a uma manipulação tecnológica [...]”. (ŽIŽEK, 1992, p. 36-37).

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culturas e etnias outras a partir do complexo teórico degeano, ou melhor, estudar o

conhecimento produzido acerca dessas relações a partir e com o referencial de Deleuze e

Guattari?

O território como praticado pela ordem institucional da lógica mercadológica do

Estado-Nação não tem relação alguma com o “processo” degeano, mas é somente, sob o

mesmo significante, ou seja, um território enquanto uma área delimitadora de

ecossistemas, morfoesculturas, espaços construídos etc., que a grande maioria das culturas

e etnias do mundo atual estabelecem contato, com grave risco para suas tradições. Cada

grupo se encontra permanentemente exposto e sujeito a ataques.

As formas, portanto, de buscar sobreviver em meio a esse contato, acabam por ter

que incorporar os referenciais da cultura hegemonicamente praticada em escala global.

Como os referenciais degeanos podem contribuir para, dentro desse quadro, estabelecer

condições teóricas e políticas para que a diversidade seja respeita, no sentido de instaurar

devires que afirmem a diferença?

O paradoxo do território é que não importa o objeto (este sempre vai ser subjetivo),

mas sim o sujeito. O objeto sempre vai ser mediado por um sujeito “em relação ao qual”,

ou como diria Lacan (1978): a positividade da representação é uma estratégia da

denegação. O ponto de vista do pesquisador determina o território e, pior, o momento de

vista. A construção do discurso não é a soma dos nomes. Aquele que souber o nome de

todas as coisas, não sabe coisa nenhuma.

Em suma, a relação entre as palavras e as coisas muda e, além disso, há um sujeito,

como ponto de vista, tentando ligar as duas grandezas. Dito de outro modo, o território só

pode ser objetivo, na medida em que é uma estrutura intersubjetiva, ou uma garantia da

intersubjetividade. Onde alguém está “em relação a” é que deveria ser a questão. E isso

nem de longe é um truísmo.

Voltando agora para este texto, tantas vezes abordado, se transformando no

verdadeiro objeto de pesquisa. Ele pode ser tomado como um texto-agenciamento, que

busca mostrar a presença das regras mais óbvias da etiqueta da escrita acadêmica, ou seja,

o texto nasce em pedaços e depois é retificado, normalizado. Isso pode significar que o

mesmo se tornou comunicável, atendeu o que se espera de um texto. Mas o mesmo, como

elaborado, visa expressar o sentido imanente entre o pensar/escrever ciência com o fazer

ciência na condição em que a vida acontece para aquele que pensa/escreve ciência.

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Deste modo, coloca-se a questão: como diminuir a distância entre a teoria e o

experimento no próprio ato da pesquisa? Esse é um caminho viável, ou é um beco sem

saída, pois não atende os pressupostos e desejos que se espera de um trabalho científico? A

questão é de redação, método de apresentação, ou de referencial teórico, método de

pesquisa?

Porque é de um texto que se trata; não é de uma fala (a realidade) dentro da qual

quando o autor fala, vê e escuta. Somos todos griffonnêtre não mais parlêtre99, ou seja,

somos seres escritos, rabiscados, e não seres e falas completas e acabadas. Quando alguém

escreve, se cala e imita. Assim é que a linha do phoné (som) vem a ser dobrada no graphé

(escrita):

“[...]. Apresentando a escritura como um falso-irmão, ao mesmo tempo que traidor, um infiel e um simulacro, Sócrates é levado pela primeira vez a considerar o irmão desse irmão, o legítimo, como uma outra espécie de escritura: não apenas como um discurso sábio, vivo e animado, mas como uma inscrição da verdade na alma. [...].” (DERRIDA, 2005, p. 100).

Mas não uma dobradura (uma “reformação”) no sentido “histórico” disso – aquele

da simples passagem de uma articulação a outra: de uma convenção fonêmica a uma

convenção ortográfica que a subsumisse – mas no sentido “político”: as redes com seus

fluxos de conceitos são planejadas para capturar a alteridade, para denominar o desejo,

molarizar as linhas de segmentaridade.100 De modo que é um como se dobra, o problema:

quem dobra é um efeito do “como se dobra”.

99 Lacan costumava denominar o homem de “ser falante”: parlêtre (MELO, 2007, p. 48); daí minha analogia em griffonnêtre: “ser-rabiscado”, sobre a qual sigo “falando”. 100 Molarizar (endurecer) as linhas de segmentaridade até o ponto em que o endurecimento seja tomado como a essência: “Segundo um esquema que dominará toda a filosofia ocidental, uma boa escritura (natural, viva, sábia, inteligível, interior, falante) é oposta a uma má escritura (artificiosa, moribunda, ignorante, sensível, exterior, muda). e a boca só pode ser designada na metáfora da má. A metaforicidade é a lógica da contaminação e a contaminação da lógica. A má escritura é, em relação à boa, como um modelo de designação lingüística e um simulacro de essência. [...].” (DERRIDA, 2005, p. 101).

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ANEXOS

Anexo 1: Diagrama dos Agenciamentos.

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Anexo 2: Tangram inteiro (A) e figuras que se pode montar com suas partes (B).

A

B