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    O MOVIMENTO(-)CHAMA O corpo e a educao somtica em uma reflexo voltada para a prtica pedaggica

    do movimento expressivo

    Elisa Teixeira de Souza1

    Programa de Ps-Graduao em Artes da Universidade de Braslia Discute relaes entre: conceituaes de corpo, abordando pensamentos de filsofos clssicos, modernos e contemporneos; fundamentos do campo da Educao Somtica, apresentando dados referentes a alguns mtodos; e diretrizes pedaggicas para a prtica docente em dana e expressividade do movimento. Palavras-chave: Corpo. Expressividade do movimento. Dana. Educao Somtica. Pedagogia da dana.

    Discusses relations between: concepts of body, addressing thoughts of classical, modern and contemporary philosophers; foundations of the field of Somatic Education, presenting data for some method; and pedagogical guidelines for teaching dance and expressive movement. Keywords: Body. Expressiveness of movement. Dance. Somatic Education. Dance Pedagogy.

    A prtica corporal, no contexto das investigaes voltadas para a expressividade dos movimentos, consiste em uma esfera de pesquisa ampla, abrangedora de diversos mtodos, tcnicas e estudos. Cada vis de investigao, percorrendo caminhos distintos, conduz o praticante rumo ao desenvolvimento de diferentes competncias e habilidades concernentes dinmica corporal. Existem tcnicas que primam pela forma e outras pela funcionalidade do movimento. Existem mtodos que visam primordialmente proporcionar capacidades fsicas e outros que priorizam o apuramento cinestsico. Nesse artigo sero introduzidas algumas reflexes que relacionam conceitos de corpo e fundamentos do campo da educao somtica a diretrizes pedaggicas para uma prtica corporal voltada para o desenvolvimento da expressividade do movimento partindo de um vis sensitivo. Esse tema parte de uma pesquisa maior que se encontra em andamento e que visa a instrumentalizao docente na rea pela apresentao e discusso de eixos de mediao pedaggica que possam ser, sob uma perspectiva construtivista, catalizadores do processo de aprendizagem do movimento expressivo. O corpo: motivo e inspirao terica No arcabouo filosfico ocidental, a superao do paradigma da dicotomia mente-corpo transformou a oposio entre essas duas instncias em uma distino, com a dicotomia abrindo espao para a dualidade. Tentou-se ento compreender melhor a dualidade e chegou-se a um novo paradigma, o da unidade corpo-mente, inaugurado pela lgica sistmica do funcionamento dos seres e dos processos de vida. A separao entre a mente e o corpo tem suas origens em antigas teorizaes filosficas que diferenciavam o corpo da alma e identificavam relaes entre essas duas instncias. As fundaes filosficas da oposio entre o corpo e a alma, como

    1 Doutoranda pelo Programa de Ps-Graduao em Artes da Universidade de Braslia (UnB), mestre pelo

    mesmo Programa e licenciada em dana pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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    ressalta Leandro Neves Cardim (2009), se do em Plato (429-347 a.C.). De acordo com o autor, antes da prevalncia do pensamento platnico, as relaes estabelecidas entre o corpo e a alma pelos filsofos pr-socrticos no se davam por uma lgica bipolar, mas estavam estreitamente ligadas a aspectos cosmolgicos e eram fruto de relaes mais elementares estabelecidas entre os quatro elementos da natureza: a gua, a terra, o fogo e o ar. Cardim enfatiza que na Teoria das Ideias Plato polariza a alma, defendendo que ela preexiste ao corpo e que tem em si mesma seu princpio de movimento, enquanto ao corpo dada a funo de morada e veculo da alma. Segundo Cardim, quando a tendncia platnica de opor as duas instncias atinge seu pice, o corpo considerado priso e tmulo da alma. Porm, quando busca a harmonia, o corpo tratado como signo da qualidade da alma. De todo modo, no platonismo, a alma se assemelha ao que divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma nica, ao que indissolvel e possui sempre do mesmo modo identidade [...], enquanto o corpo [...] equipara-se ao que humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligncia, ao que est sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idntico (PLATO, 1972, p. 80 apud CARDIM, 2009, p. 24). Diferenciando seu pensamento do de Plato, Aristteles (348-322 a.C.) concebia a alma como forma interior da vida. Sua abordagem vai pelo vis da anlise do organismo vivo enquanto conjunto formado por corpo e alma (CARDIM, 2009). Haveria a substncia e o ente. O corpo seria o ente: um organismo, um objeto, ou um corpo celeste (MARCONDES, 2005). O que diferencia o homem dos outros seres vivos tornando-o um animal poltico so suas funes intelectiva e sensitiva (CARDIM, 2009). Nessa diferena, a inteligncia artstica desempenha uma importante funo (MARCONDES, 2005). Na Idade Mdia, os estudiosos religiosos mantiveram a guarda de grande parte dos registros da filosofia clssica. Segundo Carlos Lopes de Mattos (2004), durante o fim do perodo medieval, a filosofia aristotlica representou um grave obstculo f propagada pela igreja catlica, pois ignorava a criao e providncia divina, considerava o mundo eterno e incriado, concebia Deus enquanto motor imvel do universo. A noo de alma enquanto forma do corpo organizado rompia com o fundamento religioso da destinao humana sobrenatural. Pretendendo ressignificar o pensamento de Aristteles, Toms de Aquino revisou obra do filsofo reconciliando o pensamento de Aristteles aos dogmas catlicos. A razo poderia provar a existncia de Deus; o movimento do universo teria uma causa primeira divina. Contudo, como comenta Cardim (2009), cerca de quatro sculos aps a tese de Toms de Aquino, os argumentos tomistas foram considerados, luz da fsica mecnica de Galileu, inconsistentes pelos filsofos modernos. Nesse contexto, Ren Descartes (1596-1650) prope o mtodo como necessidade para uma slida construo do saber. Segundo Cardim (2009), enquanto para Aristteles o mundo movimento e a alma movimento que habita o corpo, para Descartes o mundo uma grande mquina, o corpo uma extenso dessa mquina e a alma o esprito pensante. Corpo e alma so coisas separadas, independentes entre si. Porm, a distino no reside na oposio. Nas palavras de Cardim:

    A concepo cartesiana de corpo no de estilo platnico, no sentido de que o sensvel seria oposto ao inteligvel. Ela tambm no de estilo aristotlico - a alma como forma do corpo [...] tambm no derivada da concepo tomista, para a qual seria preciso evocar a encarnao para

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    justificar a idia aristotlica. Enfim, ela no materialista, pois no se trata, para Descartes, maneira de Epicuro (c. 341-270 a.C.), de considerar a alma como um composto material de tomos, o que terminaria por negar a existncia da alma. Para Descartes, o corpo deve ser apresentado em uma dupla perspectiva: ao mesmo tempo vivo e inerte, corpo que sou e corpo que tenho (CARDIM, 2009, p. 31, grifo nosso).

    No trecho grifado, identifica-se a tese inexplicada de Descartes de que a coisa pensante e a coisa extensa formam uma unidade. Cardim ressalta que Descartes deixou em aberto o problema da conciliao entre sua tese da heterogeneidade das substncias e sua tese da interao fsica. Para ele prprio, a explicao da unio no era possvel, pois ela s poderia ser apreendida pelos sentidos. Pode ajudar no entendimento desse impasse cartesiano a ideia de que a distino posta a partir de sua unio, o dualismo posto do prprio interior da unio, e no o contrrio (CARDIM, 2009, p. 35). Sendo assim, a distino um gesto terico, no sendo possvel na vida prtica separar o que diz respeito a apenas uma ou outra substncia. Crtico de Descartes, e em torno de uma gerao mais novo que ele, Baruch Espinosa (1632-1677), como explica Marcos Andr Gleizer, defende que a alma e o corpo so uma s e mesma coisa expressa de duas maneiras diferentes (ESPINOSA apud GLEIZER, 2005, p. 22). De acordo com Gleizer, em Espinosa a alma no se distingue da natureza e por consequncia do corpo, e sim, encontra-se unida a ela. Em Espinosa Deus imanente natureza, e exerce uma potncia causal desprovida de qualquer finalidade. De modo distinto do que ocorre no sistema cartesiano, que parte da existncia do sujeito pensante e chega a Deus enquanto fundamento ltimo, o sistema de Espinosa parte de Deus enquanto causa primeira de todas as coisas, para de seu entendimento deduzir o conhecimento do Universo, incluindo seus aspectos materiais e mentais. Nesse contexto, a alma um modo finito do pensamento infinito [...] e o corpo, um modo finito da extenso infinita (GLEIZER, 2005, p. 21). Para Espinoza os contedos cognitivos da alma so produtos das afeces corporais, as quais consistem em trocas de afetos, como o desejo, a alegria, o amor e o dio. Por meio dessas trocas realizadas entre si os indivduos sofrem diversas variaes em suas composies, mantendo, contudo, suas individualidades. Na cincia espinosista da afetividade humana, o indivduo, que corpo e alma, , ao mesmo tempo, uma totalidade em relao s suas partes e uma parte dentro de uma totalidade mais abrangente, que a prpria Natureza, que por sua vez, Deus. Espinosa, assim, coloca a dimenso afetiva e perceptiva em destaque e d impulso a novas perspectivas filosficas. Com o desenvolvimento da filosofia moderna rumo filosofia contempornea, as questes metafsicas concernentes alma e ao corpo foram abrindo lugar a distintas abordagens que conceitualizaram o corpo, a mente, o eu e o indivduo por instrumentais tericos diversos. Dentre as vrias abordagens desenvolvidas, Cardim (2009) destaca a dessubstancializao do corpo e da alma trabalhada por Kant, o corpo objetivo e o corpo subjetivo em Husserl, a anlise desenvolvida por Nietzsche da conscincia e da razo como instrumentos do corpo, a ambiguidade da experincia do corpo prprio em Merleau-Ponty, a histria poltica do corpo em Foucault e o corpo sem rgos em Deleuze. Posteriores aos filsofos citados por Cardim, surgem os representantes de vertentes da filosofia relacionadas s cincias cognitivas, as quais abrem perspectivas

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    diferenciadas, como os estudos em torno do tema geral do embodyment, a mente

    dispersa na carne2. Estes estudos trabalham em perspectivas interdisciplinares que utilizam conhecimentos da neurologia, da biologia, da semntica e da lingustica, dentre outros, e tm sido usados como embasamento terico e espao propulsor de questes para pesquisas desenvolvidas em distintas reas do conhecimento, como a educao, a psicologia, a fisioterapia e as artes. Dentre esses autores, esto George Lakoff, Mark Johnson, Hilary Putnam e Steven Pinker.

    George Lakoff e Mark Johnson propuseram no ano de 1999 o conceito embodied mind a partir de trs sentenas, como exps John Sowa: A mente inerentemente corporificada. O pensamento na maioria das vezes inconsciente. Conceitos abstratos so em grande medida metafricos (SOWA, 1999, p. 631, traduo nossa). Segundo Sowa, a partir de concluses das cincias cognitivas, os autores defenderam que a razo humana, enquanto um tipo de razo animal, est incondicionalmente ligada a peculiaridades do crebro assim como ao corpo como um todo, e que o senso de realidade do homem depende fortemente tanto de processos inconscientes ocorridos na mente, quanto de processos corporais e suas interaes com o ambiente. O ponto central da teoria de Lakoff e Johnson, a concepo das metforas enquanto processo cognitivo semntico nascido inconscientemente de mecanismos da percepo e da ao corporal, aponta para uma via dupla de interferncia existente entre processos orgnicos e pensamento. Lakoff e Johnson pretenderam com isso descortinar a condio ilusria do objetivismo, a falcia da verdade absoluta. Se a experincia corporal a base das formulaes cognitivas, nenhum pressuposto da razo pode estar alm da diversidade cultural e da experincia subjetiva (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Teorias como a da mente dispersa no corpo oferecem um embasamento significativo, ou um argumento comparsa a aportes tericos da educao somtica. No conceito de potncia especfica do sensvel, utilizado por Suely Rolnik (2007), tambm se encontra outro aporte e reforo terico para os pressupostos bio-psico-sociais trabalhados na educao somtica. O conceito de Rolnik reporta condio de vulnerabilidade do ser frente ao outro, no que concerne s relaes estabelecidas entre a subjetividade, a sensibilidade e a sensoriedade na construo dos vnculos entre os indivduos. Essa potncia a prpria abertura do ser, o corpo integrado ao mundo. Para Rolnik, que exerceu fortes conexes com Deleuze e Gattari, no corpo que se situa a cartografia dos sentimentos, ideias e desejos vividos. Pelas texturas sensitivas os seres formam um continuum, uma dimenso fluida. Tal discusso trabalhada pela autora encontra hoje sustentao na neurocincia. O corpo: usina de significados Como expe o neurologista Antnio Damsio (1996) em seu livro O Erro de Descartes, que publicou em ingls, a lngua original, no ano de 1994, a histria muscular guarda cargas emocionais e senhas de acesso a sentimentos estruturais, que so aqueles que servem de base para todos os sentimentos voltados a outras pessoas e ocasies. De acordo com Damsio, esses sentimentos fundamentais esto

    2 Tentando-se utilizar uma traduo adequada para embodied mind, algo que no caia em interpretaes

    que possam gerar equvocos, como o que pode ocorrer em mente corporificada, ou em mente encarnada ou ainda em mente fisicalizada.

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    relacionados sensao individual de conforto e desconforto fsico e sensitivo, e muitas vezes so ignorados, e assim, tm sua dimenso diminuda devido sutileza de sua manifestao e passam a ser batizados como simples tenses musculares resultantes de nossa mecnica. De fato, toda a experincia de vida do indivduo, o que compreende as esferas da subjetividade, da sensibilidade e da sensoriedade discutidas por Rolnik, est compactada em sua memria. Algumas memrias so inacessveis pela conscincia, porm, repercutem nos padres neuromusculares que ditam as reaes tnicas dos msculos. Tais reaes so responsivas s mais diversas situaes, que podem demandar a predominncia de um comportamental emocional ou racional e que repercutem em novos acionamentos dos registros neuromusculares. Devido indissolvel relao entre estado mental e estado fsico, o alcance da somatizao pode ser amplo. Entendendo-se somatizao como relao de causa e efeito entre sensao e funo orgnica, infere-se que ela pode gerar tanto desequilbrios e doenas quanto conforto e equilbrio. Assim, a motricidade, intimamente relacionada ao sistema nervoso, e os aspectos psicolgicos esto interligados e sua atuao conjunta reverbera na produtividade do indivduo. Estreitamente relacionado histria muscular pessoal, resultado de experincias e reverberaes sensitivas, est o sistema cerebral somatossensorial3, onde reside o esquema corporal cerebral, o qual consiste na representao corporal que o crebro guarda do prprio corpo, e que produto de esquemas dinmicos representativos de padres de movimentos usuais, os quais o crebro memoriza. Essas representaes que compem o esquema corporal se renovam em menor ou maior grau de acordo com a riqueza ou limitao das experincias corporais de movimento. A prtica corporal voltada para o desenvolvimento da percepo e explorao do funcionamento das estruturas locomotoras do corpo, assim como das qualidades de movimento derivadas das diversas possibilidades de investigao plstica e cinestsica do movimento, interfere potentemente nos padres neuromusculares estabelecidos, sugerindo novos caminhos para as conexes musculares nervosas. Sendo assim, interfere no processo orgnico de produo e manuteno dos sentimentos fundamentais mencionados por Damsio; aprimora o esquema corporal e potencializa a sinergia4, de forma a gerar liberao de tenses e entraves articulares, prazer cinestsico e ampliao das possibilidades expressivas do movimento. Logo, a prtica corporal fundamentada no envolvimento cinestsico consiste em potncia transformadora no apenas do estado de sade e bem-estar do indivduo, mas tambm, e significativamente, de sua expressividade corporal. Nesse contexto, as atividades pedaggicas devem abordar o corpo de modo integral no que tange s perspectivas funcional e expressiva do movimento. Devem: facilitar um estado muscular mais relaxado; tornar o indivduo consciente de suas articulaes, estrutura ssea e muscular; trabalhar a coordenao motora; fortificar e alongar os grupos musculares; sensibilizar o sentido tctil; explorar a escuta das sensaes de

    3 [...] grupo especfico de crtices cerebrais do hemisfrio direito [...] o sistema somatossensorial

    responsvel tanto pelo sentido externo do tato, temperatura e dor, como pelo sentido interno da posio das articulaes, estado visceral e dor (DAMSIO, 1996, P. 90). 4 Segundo Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, no Novo dicionrio da lngua portuguesa (1986): 1.

    Fisiol. Ato ou esforo coordenado de vrios rgos na realizao de uma funo. 2. Associao simultnea de vrios fatores que contribuem para uma ao coordenada.

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    movimento (cinestesia); e facilitar a exteriorizao dessas sensaes desenvolvendo a expressividade do movimento. Contemplando tais diretrizes, a prtica docente no mbito do movimento expressivo vem a abranger a potncia sensrio-motora do corpo, abrindo espao para a vida do movimento ser vivenciada pelo praticante. De acordo com Terezinha Petrucia da Nbrega (2010), Merleau-Ponty, em sua investigao a respeito da percepo, a identifica com o corpo em movimento, ressaltando a importncia crucial dos processos sensrio-motores como unificadores da experincia corprea:

    no o sujeito epistemolgico que efetua a sntese, o corpo; quando sai de sua disperso, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo nico de seu movimento, e quando, pelo fenmeno da sinergia, uma inteno nica se concebe nele (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 312 APUD Nbrega, 2010, p. 74).

    O corpo sensitivo: sujeito de estudo da educao somtica Ao campo do conhecimento que abarca os processos de ensino-aprendizagem das prticas corporais que se debruam fundamentalmente sobre a cinestesia buscando harmonizar processos neuromotores, a fim de alcanar autoconhecimento, prazer e cura, deu-se o nome de Educao Somtica. Essa categoria da pedagogia corporal envolve mtodos criados em diferentes contextos geogrficos e diferentes momentos histricos, como por exemplo, a Eutonia de Gerda Alexander, a Ideokinesis de Lulu Sweigard, a Anti-ginstica de Thrse Bertherat, a Conscincia pelo Movimento, de Moshe Feldenkrais, a Anti-ginstica de Thrse Bertherat e o Body-Mind Centering de Bonnie Bainbridge Cohen, conhecido como BMC. Os mtodos de educao somtica compartilham a meta maior de proporcionar o desenvolvimento integral do indivduo rumo s suas potencialidades totais, via vivncias corporais. A prtica fsica a condio essencial, ainda que em alguns momentos essa prtica possa se dar na imaginao, via visualizao de movimentos. De acordo com Mrcia Strazzacappa Hernandez (2000), o termo educao somtica foi definido por Thomas Hanna em 1983 como sendo a arte e a cincia de um processo interno relacional que engloba a conscincia, a biologia e o ambiente, encarando-se esses trs fatores enquanto um todo sinergicamente ativo (HANNA, 1983 apud HERNANDEZ, 2000, p. 22, traduo nossa). J Sylvie Fortin, menciona que o campo da educao somtica abarca uma diversidade de abordagens onde os domnios sensorial, cognitivo, motor, afetivo e espiritual se encontram em nfases diferenciadas (FORTIN, 1983, p. 16 apud HERNANDEZ, 2000, p. 22, traduo nossa). Segundo Christine Greiner (2005), os pioneiros da educao somtica elaboraram teorias inovadoras esclarecedoras de processos corporais, como organizao postural, imagem corporal, padres neuromotores e dinmica do corpo em movimento. Essas teorias, as quais consistem na apresentao e discusso de fundamentos de prticas corporais, surgiram de mtodos desenvolvidos experimentalmente por volta de meados do sculo XX, em diferentes pases da Europa, dos Estados Unidos e do Canad. Em muitos casos existe uma relao temporal entre as descobertas feitas, devido ou relao de discpulo-mestre estabelecida entre alguns criadores de mtodos, ou utilizao de descobertas feitas por veteranos, o que quer dizer que conhecimentos j desenvolvidos por

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    determinadas pessoas foram aprofundados, ou modificados, ou relacionados com a teoria de outras. Dentre os primeiros criadores de mtodos voltados para a educao somtica, Mabel Todd (1880-1956) pode ser considerada uma importante investigadora. Em seus estudos voltou-se para o entendimento de aspectos do funcionamento do corpo humano e seus diferentes sistemas que tornaram possvel a compreenso das representaes dos mecanismos corporais complexos, responsveis por uma mudana neuromuscular real (GREINER, 2005, p. 62). A utilizao de metforas como provocadoras de alteraes na representao que os praticantes visualizavam de seus prprios movimentos e estruturas corporais tambm foi uma frente das pesquisas de Todd. O olhar para a evoluo dos movimentos da espcie humana, por sua filognese5 e ontognese6, levou Todd a questionamentos que possibilitaram o afloramento de pressupostos de seu trabalho de reeducao postural (TODD, 1968). Ela se perguntou coisas como: Quando o homem passou a ser bpede, ganhando ampla liberdade de observao e atuao, perdendo estabilidade fsica, como se deu a associao das curvas e das retificaes do corpo para superar a fora da gravidade? O que so de fato as linhas operantes continuamente sobre nosso esqueleto? Irmgard Bartenieff (1890-1981), influente discpula de Laban, que fora danarina e fisioterapeuta direcionou parte de suas investigaes para a perspectiva da evoluo ontogentica do movimento humano, buscando sua transposio para experimentaes corporais, trabalhando em sequncias de movimento que pudessem fazer o praticante resgatar os caminhos adaptativos do movimento humano, perpassando suas etapas de desenvolvimento. Sua srie de exerccios chamada Fundamentals trabalha nessa direo, tendo como fundamento o entendimento de que o movimento segue o fluxo da respirao (BARTENIEFF, 1980). Os sistemas naturais de alavancas de peso, de conexes de ao e passividade entre diferentes partes do corpo durante os movimentos e as intenes de recolhimento e expanso do corpo e de suas partes durante os movimentos so elementos que orientaram a prtica e a pesquisa desenvolvidas por ela. Moshe Feldenkrais (1904-1984), que teve formao em fsica e era faixa preta em jud, trabalhou ao longo de suas investigaes em duas frentes: na Integrao Funcional, abordagem que desenvolveu voltada para atendimentos individuais; e na Conscincia pelo Movimento, abordagem coletiva (GINSBURG, 2000). O foco de Feldenkrais se dava na melhora da movimentao, mas a meta de seu trabalho era o desenvolvimento integral do ser humano via conscientizao corporal. Sua pesquisa pretendeu desvendar a maneira pela qual o sistema nervoso trabalha para promover e refinar a aprendizagem motora. Para Feldenkrais (1988), no se pode aumentar a sensibilidade sem reduzir-se o esforo ou estmulo inicial, sendo que a sensibilidade a pr-condio para a liberdade de escolhas, para a percepo de diferenas. Segundo Gaiarsa (1977), a relao sensibilidade-preciso a base do mtodo de Feldenkrais. A investigao dessa relao um poderoso alimento para a transformao e alterao de padres neuromotores e cognitivos, j que, como dizia Feldenkrais: Ns agimos de acordo com a nossa auto-imagem (FELDENKRAIS, 1977, p. 19).

    5 Estudo da evoluo dos aspectos constitutivos de uma espcie no que confere aos seus laos genticos

    com outras espcies e com espcies ancestrais. 6 Estudo da evoluo do organismo desde o momento da concepo at a fase adulta.

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    Gerda Alexander (1908-1994) foi a criadora da Eutonia, um mtodo que tem um nome autoexplicativo, uma vez que se saiba sua etmologia: do grego, eu significa bom, justo, harmonioso; e tonos equivale tnus, tenso. Sendo assim, a Eutonia visa a harmonizao do tnus muscular. No geral, interessa-lhe respostas que possam ser dadas a perguntas como: Como procedem aqueles que fazem as coisas naturalmente bem, sem se cansar [...]? Que mecanismos pem - talvez inconscientemente - em funcionamento? (GAINZA, 1997, p. 13). Para Alexander (1983), j que toda mudana efetivada no estado corporal e na conscincia repercute no conjunto de tenses musculares, o trabalho com a tonicidade influi sobre o ser humano de modo integral. Essa a base de seus pressupostos. E a condio, que ao mesmo tempo resultado para se iniciar uma prtica em Eutonia, a presena, ou seja, a capacidade de vivenciar experimentaes corporais tendo a escuta das sensaes ativa a todo instante, por mais simples ou detalhados que sejam os movimentos. Essa condio de alerta e relaxamento fundamental tambm no aprendizado do movimento expressivo enquanto dinmicas que so danadas via entendimento dos percursos, e no da forma. Na viso de Alexander, a capacidade de apreender diferentes tnus musculares faz parte do segredo das diferentes performances artsticas de danarinos e artistas cnicos. Bonnie Bainbridge Cohen, que fora aluna de Bartenieff, assim como esta, tambm trabalha em concordncia com princpios elaborados a partir de observaes da ontognese do movimento humano, assim como de sua filognese. O Body-Mind Centering - BMC, mtodo desenvolvido por Cohen, busca o entendimento de como a mente expressa atravs do corpo em movimento e como se d a participao do sistema musculoesqueltico no metabolismo dos sistemas corporais e do corpo como um todo. O caminho de investigao se faz pelo trabalho com experimentaes de movimentos potencialmente capazes de alterar padres mentais (COHEN, 1993). Muitos dos criadores de mtodos de educao somtica foram artistas das artes cnicas, ou se relacionaram com a rea. Todd e Feldenkrais iniciaram suas investigaes amparados por estudos interdisciplinares, e tiveram discpulos que atuaram no campo da dana. Alexander e Bartenieff foram intimamente relacionados com a dana, e estiveram diretamente ligadas a nomes emblemticos da dana moderna. Gerda Alexander fora eurritmista7, tendo sido aluna de mile Jaques-Dalcroze. Seu trabalho foi bastante influente no campo da educao somtica e repercutiu diretamente na pedagogia da dana. Bartenieff fora danarina. Foi aluna de Rudolf Laban e tornou-se uma de suas mais importantes discpulas. Trabalhou como fisioterapeuta, danarina, professora de dana e de dana-terapia. Bonnie Bainbridge Cohen foi aluna de Bartenieff, teve experincias com danarinos, e atualmente trabalhando como professora e terapeuta uma voz ativa na conduo de pesquisas na rea da educao somtica, alm de ser consideravelmente influente na pedagogia da dana contempornea. Entre os campos da dana e da educao somtica, foram estabelecidas fortes relaes a partir da dcada de 1960. Porm, as influncias de um pensamento somtico na dana cnica ocidental se deram anteriormente, ainda no sculo XIX, com a propagao do sistema de expressividade gestual de Franois Delsarte no meio da

    7 Pessoa com formao em Eurritmia. A Eurritmia ser definida no texto no pargrafo seguinte. Os

    eurritmista apresentavam performances corporais que refletiam ou dialogavam com estruturas musicais.

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    nascente dana moderna norte-americana e europeia, e em um segundo momento no incio do sculo XX, com a Eurritmia, o mtodo de aprendizado rtmico corporal criado pelo suo mile Jaques-Dalcroze. Desde ento, relaes estabelecidas na cincia entre corpo e mente se refletiram em questes artsticas criativas e pedaggicas que envolviam sensao e expresso. Atualmente, os frutos dos inmeros casamentos estabelecidos entre a educao somtica e a dana beneficiam danarinos, professores, diretores e coregrafos. Conforme exposto por Hernandez (2000), a ecloso de mtodos e tcnicas de educao somtica no territrio brasileiro se deu durante as dcadas de 1960 e 1970, por intermdio de terapeutas corporais especializados em cinesiologia e fisioterapeutas que retornaram ao pas aps cursarem programas no exterior, sobretudo na Europa. Os fisioterapeutas so apontados pela autora como a principal categoria profissional responsvel pela traduo no Brasil de obras pertencentes ao domnio da educao somtica. Com a chegada dos mtodos de educao somtica ao pas, teve incio o casamento entre a dana, o teatro e a educao somtica no mbito da formao de artistas. Muitos princpios desses mtodos, assim como alguns de seus exerccios ou adaptaes deles foram disseminados no meio da dana e no meio teatral. O corpo no movimento expressivo: danar a expanso das sensaes Nas aulas de dana e de prticas corporais expressivas, o processo de aprendizagem muitas vezes pouco aproveitado devido ao fato do aprendizado se basear em um jogo de imitao mecnica entre o aluno e o professor. Essa situao acontece quando o aluno se restringe a copiar o modelo passado pelo professor de forma automtica, ou seja, sem que essa cpia seja uma adaptao. No obstante, o aluno no consegue exercer a auto-observao e busca os resultados desejados movido por expectativas formais resultantes da observao do desempenho do professor, o que acaba por limitar seu aprendizado a uma perseguio a formas. A falta de concentrao, ou de conhecimento, reverbera no nvel de apropriao com que o aluno se relaciona com os movimentos. A falta de um estado de entrega, de escuta, de disponibilidade, de tranquilidade, de curiosidade e de permisso - necessrio para se acessar qualidade no movimento, muitas vezes reflexo da ausncia de contato com fundamentos e princpios educativos. Se ciente destes, o aluno passa a aprender sendo protagonista do seu aprendizado. O que se desdobra dessa atitude protagonista a liberdade para viver o movimento, vivenciando-o na fisicalidade e na sensao. Em relao ao professor, para que o aluno possa ser protagonista de seu aprendizado, necessrio que exista uma mediao pedaggica eficiente. Nesse ponto reside a importncia de uma postura ativa no ensino, que faa uso de explicaes, demonstraes e discusses frente aos contedos. necessrio que se considere a singularidade de movimento de cada aluno; que sejam disponibilizados conhecimentos para a turma; que seja fomentada a filosofia do mover-se. A exposio dos objetivos dos exerccios e dos instrumentais para alcan-los fundamental. Havendo espao para o esclarecimento de dvidas a para a troca de ideias, focando tanto o indivduo quanto o coletivo, a perspectiva construtivista se faz presente na sala de aula. No ambiente educacional, para que o aluno e o professor estejam aprendendo,

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    necessrio que haja espao para a descoberta do erro; para a experimentao do novo; para o estudo. Quando o movimento for de fato danado, e no apenas imitado, ele estar sendo apreendido, estar ocorrendo uma apropriao. Dentre os fundamentos do campo da educao somtica que se mostram muito produtivos enquanto diretrizes para contedos e mediaes pedaggicas no mbito das aulas de expressividade corporal, pode-se citar: o alinhamento corporal; o esquema corporal; a visualizao do movimento potencial; a relao entre movimento e respirao; o tnus muscular; a relao tato x contato; a explorao dos apoios do corpo no cho; a relao movimento ativo x movimento passivo; os vetores do movimento; e os padres ontogenticos e filogenticos do movimento humano. A visita a fundamentos do campo da educao somtica algo alm de uma utilidade no contexto descrito nos pargrafos acima. uma estratgia de resgate de propsitos, j que, desde a segunda metade do sculo XX, metodologias do campo da educao somtica passaram a se misturar a metodologias de dana e expressividade corporal. E isso se deu tanto no mbito de prticas voltadas para a improvisao enquanto recurso de explorao de movimentos, quanto em abordagens que ensinam sequncias pr-estabelecidas de movimento. Concluses e recomendaes O corpo, enquanto fenmeno, inquieta e inspira. Na cultura ocidental, foi tratado ao longo do tempo como fardo para a alma, como forma da alma, como mquina pilotada pela alma, etc. Na contemporaneidade, a perspectiva da unidade mente-corpo, pelo vis das cincias cognitivas, tem confirmado que para o ser humano atingir sua potencialidade de bem-estar e produtividade, necessrio viver o corpo, dialogar com as percepes, desfrutar das sensaes - harmonizar razo, ao e emoo. Considerando-se que os sentimentos bsicos so um tipo de pensamento muito relacionado aos estados orgnicos, e que desempenham uma funo de cho ou base para as estruturaes cognitivas mais complexas, nota-se que a dimenso corprea de fato muito importante, e que precisa ser levada em conta. No contexto do movimento expressivo, seja em aulas de dana ou em aulas de expressividade corporal, a busca pela espontaneidade do corpo em movimento, tanto em movimentos exploratrios livres quanto em sequncias de movimento pr-estabelecidas, tem como prerrogativa o refinamento cinestsico. A identificao e a tentativa de alterao de padres neuromusculares deve ser uma preocupao anterior ao desejo de melhoramento das formas dos movimentos, pois a superao de limitaes neuromotoras leva a transformaes na esttica dos movimentos, e a melhoramentos de desempenho. A utilizao de fundamentos da educao somtica nas aulas de dana e de expressividade do movimento proporciona ao pedaggica a capacidade de promover de modo integral o desenvolvimento de competncias expressivas nos movimentos dos alunos. O aspecto educativo dessa abordagem pedaggica se mostra em consonncia com o propsito maior da educao, que o desenvolvimento do ser humano rumo a suas potencialidades, tornando-o mais livre.

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