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Uma excelente coletânea de contos policiais primorosos.

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Prezado leitor do MISTÉRIO MAGAZINE:

De tal monta tem sido o encarecimento das utilidades e servi-ços que o leitor por certo não se surpreendeu ao pagar seis cruzei-ros pelo seu exemplar do MISTÉRIO MAGAZINE. Já há de ter nota-do (e sentido) que o fenômeno abrangeu a totalidade dos órgãos de imprensa. As razões são conhecidas e não vamos repeti-las. Tam-bém não constitui segredo para ninguém que o personagem central de todo este drama continua sendo o PAPEL, cada vez mais caro e escasso e de importação dia a dia mais problemática. Esta ma-téria essencial à indústria gráfica atingiu um nível de preço quase proibitivo, circunstância que veio agravar ainda mais o crônico e debatidíssimo problema do livro brasileiro. O papel, em verdade, é um dos grandes culpados. Mas não queremos atribuir-lhe toda a responsabilidade pela situação. Continuam subindo os salários, o custo das diferentes matérias-primas, as despesas gerais de fabri-cação. Nada há que contenha a maré montante.

E não se pode prever qual será o desfecho da presente con-juntura (esta palavra caiu na moda e esconde evidentemente muita coisa misteriosa). A esfinge — será a inflação? — aí está, pronta para devorar-nos, se não a decifrarmos. E quem, afinal de contas, mais indicado para decifrá-la que o sagaz leitor do MISTÉRIO MA-GAZINE?

Que neste Ano Novo de 1952 a paz se torne uma realidade e que você, caro leitor, realize todos os planos que sonhou, são os votos sinceros que faz o editor

Henrique d’Ávila Bertaso

osebodigital.blogspot.com

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MISTÉRIO - MAGAZINEEDIÇÃO BRASILEIRA DO ELLERY QUEEN’S MYSTERY MAGAZINE

HISTÓRIAS DE DETETIVES

O Comissário Danwood emCRIME NA PREFEITURA - H. A. Z. Carr

Nick Glennan emO POLICIAL “TICO TICO” - MacKinlay Kantor

Dr. Frank Belling emIN VlNO VERITAS - Lawrence G. Blochman

Sam Spade emSÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ - Dashiell Hammett

HISTÓRIAS DE CRIMES

O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS - Valma Clark

O HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO - Lord Dunsany

O CRIME PERFEITO - Ben Ray Redman

OS CRIMES DO ESPANTALHO - A. E. Martin

MITRÍDATES O REI - RobeRts Morley

OH TEMPO, EM TUA FUGA - Vincent Cornier

N0 32 JANEIRO DE 1952

Mistério-Magazine é a edição brasileira do “Ellery Queen’s Mystery Magazine”, Copyright de “Mer-cury Publications, Inc.” É publicado mensalmente pela “Revista do Globo S. A.” Henrique d’Ávila Bertaso, diretor, João Freire, gerente. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, Redação, Gerência e Oficinas, Rua Barros Cassal, 82 e 86, Tel. 9-1112. End. Tel. “Reviglobo”. Preço: número avulso em todo o Brasil, Cr$ 6,00; Assinatura anual, Cr$ 70,00. Escritório no Rio de Janeiro: Rua México, 128 (sobreloja) — Fone 22-9382. Escritório em São Paulo: Rua Fortaleza, 35 — Fone 32-1103. Escritório em Curitiba: Rua Barão do Rio Branco, 41. Caixa Postal, 612. Agentes e correspondentes nas princi-pais localidades do país. Todos os direitos, inclusive o de tradução em outras línguas, reservados pelo “Mercury Publications Inc.” nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, México e todos os outros países qúe participaram na Convenção Internacional e da Convenção Pan-Americana de Direitos Au-torais.

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MISTÉRIO MAGAZINE

N.° 32

Direitos Autorais

O POLICIAL “TICO-TICO”, por MacKinlay Kantor, direitos reserva-dos em 1933 pela Detective Fiction Weekly; CRIME NA PREFEI-TURA, por A. H. Z. Carr, direitos reservados em 1951, por Mer-cury Publications, Inc.; O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS, por Valma Clark, direitos reservados em 1923 por Valma Clark; O HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO, por Lord Dunsany, direi-tos reservados em 1951 por Mercury Publications, Inc.; O CRIME PERFEITO, por Ben Ray Redman, direitos reservados em 1928, por Ben Ray Redman; SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ, por Dashiell Hammett, direitos reservados em 1932 pela Crowell-Collier Publishing Co.; OS CRIMES DO ESPANTALHO, por A. E. Martin, direitos reservados em 1948 por Mercury Publications, Inc.; IN VINO VERITAS, por Lawrence G. Blochman, direitos reservados em 1941, por Crowell-Collier Publishing Co.; MITRÍDATES O REI, por Morley Roberts, direitos reservados em 1949, por Mercury Publica-tions, Inc.; OH TEMPO, EM TUA FUGA, por Vincent Cornier, direi-tos autorais reservados em 1951, por Mercury Publications, Inc.

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A. H. Z. CARR

VENCEDOR DE UM SEGUNDO PRÊMIO

A maior parte dos leitores do Mistério Magazine não esquece-rá tão cedo “O Julgamento de João-Ninguém”, de A. H. Z. Carr, que conquistou o segundo prêmio no nosso Quinto Concurso Anual. Na opinião dos Editores, essa foi uma das melhores e mais originais histórias por nós lidas na última década, e que tivemos o privilégio de publicar nestas páginas, desde a criação do Mistério Magazine.

No concurso do ano passado, A. H. Z. Carr novamente conquis-tou um segundo prêmio, mas desta vez com uma história detetivesca muito diferente. Como o próprio Carr escreveu aos Editores, “Crime na Prefeitura foi a minha primeira tentativa de fazer uma história detetivesca formal, e ao escrevê-la, senti um respeito ainda maior pelos mestres da arte!’

Não se deixem, porém, enganar pela modéstia de Mr. Carr. Sua primeira tentativa, que é a história que se segue, “repleta de pistas, de suspeitos e de deduções”, é uma das quais se orgulharia qualquer “mestre da arte”. ‘

Como todas as histórias de Mr. Carr, “Crime na Prefeitura” tem a sua origem, sua causa aproximada, numa combinação dos incidentes da vida real e de uma imaginação fértil. Há alguns anos, num feriado, Mr. Carr encontrou-se com um grupo de altos políticos, e ficou fascinado com a visão específica que tinham da vida. Então, mais tarde, teve uma palestra com um funcionário de um Instituto Meteorológico que lhe expôs as complicações comerciais, provenien-tes das previsões do tempo, e da chuva artificial. E nestas duas fon-

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tes de informações, Mr. Carr colheu os ingredientes essenciais para fazer a sua “sopa”. Mas da maneira como se formou exatamente o enredo da sua história, Mr. Carr já a esqueceu no fundo da memória, bem como a origem certa do seu narrador —- muito embora Babe Higgins, o narrador, seja indubitavelmente a síntese da todos os policiais que Mr. Carr conheceu e gostou no decorrer da sua própria vida. . .

CRIME NA PREFEITURA

H. A. Z. Carr

CONFIDENCIALMENTE, fui eu que conduzi o Comissário à conclusão do caso Holcombe. Se você não acredita, pergunte a êle. Êle sempre diz que gosta de ter-me por perto por causa da minha boca de bebê. Êle está brincando, é claro. . . Na polícia me chamam de Babe Higgins, pois tenho seis pés e duas polegadas de altura, e peso cento e dez quilos.

Recebemos a notícia sobre Holcombe, pouco antes das elei-ções. O Comissário precisava ir lá, naturalmente. Política. E eu atrás, na qualidade de seu guarda-costa, e sob as ordens de Sua Excelência, o Prefeito, Johnny Connors, para estar sempre no ser-viço. E isto acontecia desde que o Comissário terminara com o sin-dicato do jogo. e soubemos que alguns daqueles tipos tinham-no ameaçado. O Prefeito disse que não queria se arriscar a perder o melhor Comissário de Polícia que a cidade já tivera.

Na reunião, Johnny Connors estava sentado perto de nós. Usava gravata marrom, segurava a piteira vazia, inclinada para um lado à sua maneira habitual, e em seus lábios bailava um sorriso, mas podia-se ver os círculos em volta dos seus olhos tornarem-se cada vez mais escuros à medida que o tempo passava. Os rapa-zes estavam fazendo força pela vitória, e o quinto orador repetiu a mesma coisa que tinham dito os quatro primeiros: “cada voto tem valor, o partido tem que arrecadar votos amanhã, e vencer”, e por minha vez, fiquei pensando:

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— Tomara que esta seja a última vez que eu tenha de assistir a estas coisas, por dois anos, vença quem vencer.

Mas um policial uniformizado apareceu e alcançou-me um bilhete, murmurando: “Para o Comissário Danwood”.

Dei-o ao Comissário. Êle leu. Levantou-se e desceu calma-mente para a platéia. E eu atrás dele. Quando passou pelo Prefeito, vi que este piscou para o Comissário e cochichou: “Para onde vai, Danny?” O Comissário sorriu e foi saindo. Na sala de espera esta-va o Inspetor Stotter, que é um camarada esperto, embora fale e pareça-se com um professor de colégio. Êle disse:

-— Comissário, cheguei agora mesmo da Prefeitura, e creio que o senhor deve saber logo. Atiraram no Dr. Holcombe.

Precisei de alguns instantes para me lembrar de quem êle estava falando. Holcombe é o sujeito que faz chuva — aliás, fazia, porque Stotter disse que êle estava morto.

O Comissário franziu as sobrancelhas e disse:— Que coisa! Êle era um rapaz tão direito!Quando o Prefeito requisitara Holcombe da Universidade do

Estado, muito embora fosse do partido oposicionista, os jornais falaram muito. Aquela foi uma ótima ocasião para o Prefeito se esquecer dos partidos políticos, porque a seca que nos apareceu, parecia não ter mais fim. Os reservatórios estavam com o nível baixo, não só os do estado, como também os dois outros grandes localizados dentro dos limites da cidade. Embora o povo achasse graça em não tomar banho, também andava meio preocupado, e na Prefeitura todo o pessoal andava tonto, tentando atender às queixas. Foi então que Holcombe, pilotando o seu avião, começou a espalhar gelo seco sobre as nuvens, e toda vez que isto acontecia, lá vinha uma chuvarada. Alguns diziam que êle tinha sorte, e que fazia algum passe de mágica antes de jogar a cartada. O nível dos reservatórios subiu um pouco, Holcombe tornou-se então uma es-pécie de herói popular, e Johnny Connors granjeou a confiança do povo, por tê-lo empregado.

O Comissário ficou ali na sala e pensou durante um segundo. Sempre que olho para êle, imagino o modo pelo qual os detetives dos livros têm a petulância de afirmar que conhecem uma pessoa só pela aparência. Além do seu aspeto envelhecido, o Comissário

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tem um rosto comum: cabelos grisalhos, aliás, os que sobraram, e que são muito poucos; nariz pontudo, queixo largo e olhos firmes e azuis. No seu casaco solto, que estava usando àquela noite, po-deria ser tomado por qualquer coisa: um homem de negócios, um advogado ou um político. Na realidade, êle era apenas um policial. E nunca passou disto: recruta, paisano, sargento-detetive, tenen-te, inspetor, inspetor-chefe, mas sempre policial. Quando Johnny Connors mandou chamá-lo, dizendo que o queria para novo Co-missário de Polícia, creio que ninguém se surpreendeu mais do que o próprio Comissário. Mas foi um gesto inteligente do Prefei-to. Naquela ocasião êle vinha sendo atacado pelos jornais, porque o Departamento estava cheio de empistolados e mal-organizado: cheio de trapaças e coisas esquisitas. Ele sabia que o Comissário era popular entre os repórteres, que os jornais chamavam-no de policial honesto, e diziam que se alguém pudesse limpar a Força Policial, este alguém só poderia ser êle. Tinham razão. Êle despediu os que protegiam a jogatina e reorganizou o Departamento. Dois anos depois não se reconhecia mais a Força, pois fora moralizada.

Todo o mundo estava satisfeito, menos o Comissário. Êle não gostava ficar sentado numa escrivaninha a dar ordens. E continu-ava lamentando não estar mais lá com os rapazes. Certa vez êle me disse, muito sério: — “Babe. se alguém me trouxer outro relatório- hoje, dê-lhe um tiro”. É claro que estava brincando porque mesmo quando está cansado e aborrecido, êle diz: — “Babe, a política é um negócio sujo. Sinto raiva só em pensar o que vai ai pela cidade, e no que está sendo encoberto. Graças a Deus que o meu Departamento está limpo”.

— Claro que está, chefe — respondi, e êle bateu no ombro, sorrindo.

Agora, disse a Stotter:— Como foi que Holcombe morreu?— Com uma bala na fonte esquerda. Não pode ter sido sui-

cídio. A arma desapareceu, bem como a cápsula detonada. Pelo orifício, parece que foi um calibre 32. O médico-legista estava exa-minando o ferimento quando saí.

Um homem baixo, usando um paletó bem cortado, e trazendo uma pasta, saiu do auditório e acendeu um cigarro. “Era baixo e o

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seu cabelo era escuro, e por um instante pensei que fosse o Prefei-to, mas depois verifiquei que era Lloyd Thompson, seu cunhado, e seu assistente. Quando Johnny Connors nomeou-o seu assistente, depois da morte de Mrs. Connors, há alguns anos atrás, alguns reclamaram que era proteção, mas disseram-me que Thompson é mesmo bamba no seu cargo.

Ao avistar Thompson, o Comissário lembrou-se de perguntar a Stotter:

— Os jornais já souberam disto?— Não — retrucou Stotter. — Achei que era melhor guardar

segredo durante algumas horas.— Muito bem — concordou o Comissário. Voltando-se para

Thompson disse:— Mr. Thompson, depois que o Prefeito terminar o discurso

desta noite, poderá dar-lhe um recado meu? Peça-lhe para ir à Pre-feitura, assim que a reunião terminar. Não quero perturbá-lo antes do discurso.

— Terei o máximo prazer, Danny — respondeu Thompson. Eis como é êle: chamando o Comissário pelo apelido, como fazia o Prefeiro. Imita Connors em tudo.

— Importa-se de dizer sobre o que se trata, Danny? — per-guntou êle.

O Comissário hesitou, mas por fim disse:— Verá como é imprescindível que isto não transpareça antes

do Prefeito ter falado. O Dr. Holcombe foi assassinado esta noite, na Prefeitura.

Thompson deu um assobio.— Céus! Não imagina os cabeçalhos de amanhã? “CRIME NA

PREFEITURA”!— Temo que sim — concordou o Comissário.— Diabos! — exclamou Thompson. — Não pense que não

sinto a morte de Holcombe, mas a eleição está tão próxima, que alguns milhões de votos, de um modo ou de outro, poderiam abalá-la. Poderia arruinar-nos, a menos que tomemos providências ime-diatas — disse êle, todo sorrisos e amabilidades para o Comissário. — Mas sei que podemos contar com a sua cooperação, Danny.

—- O primeiro passo — disse o Comissário — é dar o meu

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recado ao Prefeito.— Isto será um golpe para Johnny — acrescentou Thompson.

— Estamos trabalhando desde as quatro horas da tarde, e apesar daquele sorriso. sei que êle está exausto.

— É, eu sei — disse o Comissário. — Mas é melhor começar-mos.

Saímos para o carro que estava esperando por Stotter. Era uma noite escura e cheia de nuvens, mas estava quente e o Comis-sário não me deixou buscar o seu chapéu e o sobretudo. O chofer ligou a sirena e o carro adquiriu velocidade.

— Vamos, conte tudo — pediu o Comissário.Stotter contou:— O médico-legista disse que a morte se deu entre as seis

e as sete desta noite, talvez perto das sete, no escritório de Hol-combe, na Prefeitura. Uma Mrs. Barkowsky encontrou-o. Ela é a arrumadeira. Isto foi por volta das nove e meia, quando entrou no escritório para limpá-lo. Êle estava sentado, ou melhor, debruçado sobre a escrivaninha.

— Bill — disse o Comissário — há pouco você disse que o doutor estava examinando o ferimento, à procura da bala. Creio que um 32, disparado contra uma têmpora, bem de perto, faria com que a bala saísse pelo outro lado.

— Isto também tem me preocupado Stotter. — Quando per-guntei ao doutor, êle disse que a bala podia ter-se desviado pela parede craniana, e assim, seguido a curva interna do crânio, em vez de atravessá-lo. Mas o que realmente me deixou abismado, é que não havia sinais de pólvora em volta do ferimento. Quem quer que tenha atirado, parece que acertou o alvo, mesmo de longe.

— Alguém ouviu o tiro?— Ninguém, até agora — respondeu Stotter. — Mandamos

chamar a secretária de Holcombe, uma moça chamada Maxine Austin. E também o camarada que tem escritório ao lado de Hol-combe: Dr. Kreedlin.

Eu conhecia aquele camarada, Kreedlin. Lá na Prefeitura era uma farra, porque quando Johnny Connors estava em apuros, con-tratava logo um novo consultor, e o tal Kreedlin foi o primeiro que o Prefeito agarrou, quando a seca começou a tornar-se uma ameaça.

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Era engenheiro, e tinha grandes idéias e fazia muitos planos, mas nada aconteceu até que Johnny deu pela história, e mandou cha-mar Holcombe, que fêz chover.

— Pensei que o Prefeito já não tratava mais com Kreedlin há muito tempo — continuou o Comissário. Mas eu não fiquei surpre-endido. Johnny Connors tinha horror de despedir os que trabalha-vam para êle, mesmo que fossem incompetentes.

— Não, Kreedlin ainda está na lista de pagamento — comen-tou Stotter. — Dizem que êle tem muito boas relações aqui na Pre-feitura. Além dele e da secretária, mandei chamar mais dois ou-tros, um dos quais pode bem ser o assassino. Um deles é Frankie Coletti.

Dei um assobio, porque Coletti era um dos membros do sin-dicato do jogo, sujeito duro, que ainda trabalhava pela cidade, em-bora não fosse no mesmo setor.

Stotter continuou:— Holcombe escreveu uma carta a Coletti, marcando encon-

tro entre as cinco e seis horas de hoje. Encontrei a cópia na sua escrivaninha. E às sete estava morto.

— Ah! — exclamou o Comissário. — Quem é o outro que você mandou chamar?

— Uma mulher. Vera Loomis. Conheceu Bill Loomis, dono do Parque de Diversões Mohawk, do outro lado do rio? É a viúva dele, e creio que agora está dirigindo o parque. Encontrei uma carta dela para Holcombe. Estava escrita num tom ameaçador. Achei que era melhor chamar a ambos, Coletti e Mrs. Loomis para fazer algumas perguntas, sem contudo expor as razões.

— Isto mesmo. Mais alguma coisa, Bill?Stotter meneou a cabeça.— Nada foi tocado no escritório. Nem sinal, de luta. O trinco

da porta estava limpo. É claro que teremos que nos concentrar no motivo, e esperar uma oportunidade. Infelizmente isto teve que acontecer bem na véspera das eleições. A imprensa terá um dia cheio. E Johnny. . .

— O Prefeito — emendou o Comissário.— Isto é, o Prefeito — repetiu Stotter — há de querer o retrato

do assassino na primeira página dos jornais, amanhã de manhã

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cedo.O Comissário concordou. Desembarcamos do carro em fren-

te à Prefeitura, onde estavam mais dois outros carros policiais, e lá dentro as luzes estavam acesas. Stotter nos conduziu por uma porta lateral a um corredor comprido, de mármore, no fim do qual chegamos a uma porta onde se lia: Dr. Richard Hotcombe, Consultor Meteorológico do Prefeito. Era uma sala estreita e comprida, limpa e asseada, pintada de verde-claro e com caixílho branco na porta. As escrivaninhas de Hokombe e da secretária, eram de nogueira.

Os encarregados de tirar as impressões digitais e o doutor já tinham terminado as suas tarefas e ido embora, quando entramos. No meio da sala, coberto por um lençol, estava um cadáver. O Te-nente Harris, que é um bom sujeito, esperava para apresentar o seu relatório. Fêz continência ao Comissário e disse para Stotter:

-— O caso vai ser difícil. Nenhuma impressão digital sobre a escrivaninha, além das dele. A cápsula detonada era a de um 32, conforme o senhor disse, e mandei-a para o Departamento de Balística.

— Então tudo o que sabemos — disse Stotter com fisionomia sombria — é que alguém atirou em Holcombe, na têmpora esquer-da, enquanto êle estava à escrivaninha, e que morreu instantane-amente?

— Isto mesmo — concordou Harris.Neste meio tempo, o Comissário levantou a ponta do lençol

e olhou para o cadáver. Holcombe tinha sido um sujeito possante. O que se notava mais eram suas sobrancelhas escuras e muito cerradas, e o seu queixo, que denotava grande força de vontade. Vendo-o ali, morto, lembrei-me do camarada das notas de dez dó-lares. Como era mesmo o seu nome? Hamilton.

Depois de alguns momentos o Comissário disse com um sus-piro:

— É melhor tirá-lo daqui.Harris deu a ordem a um policial que estava do lado de fora e

em seguida entraram outros e o levaram. O Comissário sentou-se na cadeira de Holcombe, e olhou para a escrivaninha. No mata-borrão cinza havia uma mancha de sangue, onde descansara a cabeça de Holcombe. Os outros objetos eram o que se poderia es-

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perar: um jogo para escritório, uma dúzia de cachimbos, um pote de fumo, alguns livros, uma caixa de madeira, contendo alguns papéís, e umas tabelas de aparência técnica.

— Estas são as cartas de que lhe falei — disse Stotter, che-gando-se à caixa de madeira. — Estavam na gaveta da escrivani-nha.

O Comissário leu-as, e quando terminou, passei uma vista d’olhos. Uma era uma cópia em papel amarelo, de uma carta para Mr. Frank Coletti, Hotel Lancaster, Park Avenue, e dizia:

Prezado senhor Coletti. Minha secretária disse-me que o se-nhor telefonou, pedindo que eu o chamasse por telefone na segunda-feira à tarde. Se deseja me ver, estarei no meu escritório na Prefeitu-ra, segunda-feira, entre cinco e seis horas. Atenciosamente.

A outra carta era timbrada em azul e vermelho: Parque de Diversões Mohawk — Administração. Estava escrita em tinta azul, numa caligrafia ampla:

Prezado Dr. Holcombe. Se o senhor não ouvir a razão, terei que tomar providências, como já o avisei. Atenciosamente, Vera Loomis.

— Eles já vieram? — perguntou o Comissário.— Falei com Mrs., Loomis pelo telefone, e ela disse que talvez

não possa sair do parque antes da uma hora que é quando fecha. Então perguntei, e amanhã de manhã? Ela quis saber por que era, mas disse-lhe apenas que tornaria a chamá-la. Ainda estamos pro-curando por Coletti. Kreedlin, Mrs. Barkowsky e a moça estão ali no outro escritório.

O Comissário continuou na cadeira, e pôs-se a olhar em volta do aposento, sem perder nada. Um escritório comum. Arquivos, cadeiras com assento de couro, e algumas fotografias de nuvens na parede. Tive a impressão de que o Comissário estava contente por entrar novamente no campo de um outro assassinato. O modo como virava os olhos e passava a mão pelo queixo, fazia-me lem-brar um gato arquitetando um plano para apanhar um peixinho dourado. Ninguém dizia nada.

Depois, ele se levantou, foi até a porta. Percebi então, que no caixilho branco, do lado de dentro da porta, havia um pequeno ris-co escuro, à altura dos olhos do Comissário. Ninguém notaria, se não estivesse prestando muita atenção. O Comissário tocou-o com

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a ponta dos dedos e exclamou: “Ah!”— Vi isto — disse o Tenente Harris. — Parece-me que alguém

encostou um cigarro, ou um charuto aí.O Comissário voltou à escrivaninha e disse a Stotter:— Teremos que tentar sobre o motivo, como você disse, Bill.

Encarregue-se do interrogatório, que eu ficarei ouvindo, se estiver de acordo.

— Ótimo — respondeu Stotter.— Mrs. Barkowsky está levando a coisa muito a sério — co-

mentou Harris.— Muito bem — disse Stotter.— Então falaremos com ela em primeiro lugar.Quando entrou, vi que era baixa e gorda; tinha um rosto ver-

melho e uma fisionomia triste; e seu sotaque era polonês. Chorou, porque pensava suspeitássemos dela. Mas Stotter falou com suavi-dade, e ela contou como entrou no escritório, acendeu a luz, viu o cadáver, gritou e saiu correndo, à procura de um policial.

Stotter olhou para o Comissário, que indagou:— A senhora gostava do Dr. Holcombe, Mrs. Barkowsky?— Oh, sim — balbuciou ela. — Era um homem muito direito.

Tão bonito, e sempre com um sorriso nos lábios. Quando traba-lhava até mais tarde, e eu entrava, sempre me dava boa-noite, e perguntava como ia o meu filho, que está doente há seis semanas.

— Compreendo — disse o Comissário. — E creio que a senho-ra sempre limpava o escritório dele com todo o cuidado, não é?

— Como se fosse a minha própria casa — retrucou ela. — Sem uma sujeirínha. Êle sabia que eu limpava bem. Uma vez êle disse que eu era “A Duquesa da Limpeza”.

— Quando arrumou o escritório pela última vez? — pergun-tou êle. — Ontem?

—- Não. Ontem era domingo. Limpei-o sábado de tarde.Êle quis saber se ela se recordava de ter limpado o caixilho

da porta, e ela disse:— Sim, pois sábado é o dia da faxina. Então eu lavei até a

porta.O Comissário foi até lá e apontou para o pequeno risco.— Se isto estivesse aqui no sábado, a senhora acha que teria

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notado e passado um pano?—- Oh, sim — respondeu ela — eu não deixo nada sujo neste

escritório.— Muito obrigado — disse o Comissário, e ela saiu, sentindo-

se melhor.Stotter ficou espantado.— Não percebi nada, Comissário.— Um detalhe insignificante. Talvez nem seja nada. Eu es-

tava apenas tentando descobrir, quando foi que esse cigarro, ou o que quer que tenha sido, encostou-se ao caixilho, É natural que ela tivesse deixado passar um fiozinho destes, mas o resto está ima-culado, portanto, suponho que foi feito depois que ela limpou pela última vez. É só isto.

— Mas o que se pode conseguir de um cigarro que foi en-costado ao caixilho de uma porta? — perguntou Harris, de cenho cerrado.

— Estou apenas tateando — disse o Comissário. — Quem é o seguinte?

— Maxine Austin — respondeu o Inspetor. E poucos minutos depois entrou uma moreninha que teria atraído qualquer um de nós, uma Vênus pequenina, embora fosse pálida, e tivesse círcu-los vermelhos em volta dos grandes olhos escuros. O seu vestido era vermelho escuro. Trajava um casaco de fazenda preta e um chapéu, nada espetacular, mas nela, ambos pareciam elegantes. Seu corpo era todo cheio de curvas suaves, onde a gente gosta que elas estejam. Por um instante pensei que ela ia fraquejar, quando olhou ao redor do escritório, mas conseguiu controlar-se Stotter foi muito delicado, e o Comissário ofereceu-lhe um cigarro, que ela aceitou logo, e em seguida vieram os fatos. Tinha vinte e quatro anos. Morava num apartamento com mais duas moças. Trabalha-va na Prefeitura havia três anos. Seis semanas atrás, fora contra-tada por Holcombe, como estenógrafa. Não o conhecera antes, e gostava bastante dele.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance para encontrar o assassino! — exclamou ela. — Qualquer coisa!

Stotter conseguiu saber que Holcombe passara fora do escri-tório todo o dia, e que não recebera visitas. Ela saíra de lá às cinco

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horas, um pouco mais cedo do que de costume, porque precisava fazer umas compras, e Holcombe dissera que estava bem.

— Êle estava aqui quando a senhorita saiu? — perguntou Stotter.

— Sim, sentado diante da escrivaninha. Estudando os seus relatórios sobre o tempo. Quando eu disse “até logo”, êle olhou para mim e disse: “Até logo, Maxine”.

— A senhorita o chamava de Richard? — perguntou Stotter.— Oh, não. Sempre de Dr. Holcombe. Mas êle me chamava

de Maxine. Dizia que era bastante idoso para ser meu tio. Mas não era verdade. Tinha somente trinta e seis anos.

— Que espécie de homem era êle? — perguntou o Comissá-rio.

Ela hesitou.— Na aparência, despreocupado —- disse ela devagar. — Mas

levava muito a sério o seu trabalho, e às vezes era até muito seve-ro.

— Alguma vez foi severo com a senhoríta? — perguntou Stot-ter.

— Oh, não. Sempre foi muito bom para mim. Era apenas uma coisa que eu pressentia em sua personalidade. Não creio que êle era muito religioso, mas mesmo assim, tinha princípios rígidos, como uma pessoa religiosa.

Stotter olhou-a de cima para baixo, e isto era o que eu estive-ra fazendo desde que ela entrara no aposento, e disse:

— O Dr. Holcombe era solteiro, compreendo. Êle saiu com a senhoríta alguma vez?

Seu rosto enrubesceu e ela falou:— Sim, duas vezes. Só para jantar, quando tivemos que tra-

balhar até tarde da noite. Mas foi só isto.Ela remexeu-se na cadeira, descruzou as pernas bem-feitas e

tornou a cruzá-las novamente.— Compreendo — murmurou Stotter. — Suponho que êle

saía com outras moças de vez em quando. Ouviu-o telefonando para elas?

Ela não gostou daquilo.— Eu não tinha ciúmes dele, se é isto que o senhor quer di-

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zer. Eu gostava dêle, gostava muito, mas os seus encontros eram lá com êle. Nunca procurei escutar as suas conversas particulares.

Bem se podia ver que Stotter não acreditava nela.— Ora, Miss Austin, a senhoríta está querendo nos dizer que

não ouvia quando o Dr. Holcombe telefonava a outras mulheres...— Não! — exclamou ela. — Eu tinha o meu trabalho para

fazer. Não sei quais eram as suas amiguinhas.Então ela tomou fôlego e exclamou:— O senhor está supondo que eu. . . que eu. . .— Não estou supondo nada — retrucou Stotter. — Apenas

tentando formar um quadro.Mas ela estava furiosa quando o Comissário fêz uma pergun-

ta. — Estou interessado nas tabelas que o Dr. Holcombe esta-

va examinando quando a senhoríta deixou esta sala, Miss Austin. Eram aquelas que estão sobre a escrivaninha?

Isto a acalmou. Controlou-se, olhou para as tabelas e res-pondeu:

— Sim, creio que sim. — E depois continuou, como se sen-tisse orgulho de saber tanto. — São comunicações de umidade e temperatura de hora por hora, nos diferentes lugares e á diferentes altitudes. Êle as usava para decidir se faria ou não um vôo. Sábado elas indicavam que as condições eram favoráveis e êle subiu no avião, e foi por isto que sábado de tarde e à noite tivemos aquele grande aguaceiro. Uma vez êle disse que iria ficar mal perante os jogadores de golfe, porque já era o terceiro sábado seguido que êle sacudia as nuvens.

— Êle estava planejando outro vôo para breve? — indagou o Comissário.

— Oh, sim. Disse que a formação de cumulus sobre a cida-de era muito prometedora. Ouvi-o dizer a diversas pessoas pelo telefone, que com um pouco de gelo seco pensava poder garantir outra chuvarada sobre a área metropolitana, o que ajudaria os re-servatórios da cidade. Estava estudando os últimos comunicados quando eu saí.

— E sobre este tal Coletti? — perguntou Stotter.— Quem? Oh, Mr. Coletti. A semana passada êle telefonou

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duas vezes e disse que desejava que o Dr. Holcombe fosse até a sua casa. Sábado de manhã, segundo penso, o Dr. Holcombe escreveu-lhe uma carta dizendo. . .

— Sim, eu a vi — interrompeu Stotter. — Holcombe sabia qnem era Coletti?

— Não, creio que não. Êle disse que o nome não lhe era estra-nho, mas não podemos saber de onde.

— A senhorita nunca ouviu falar no famoso gangster Frankie Coletti? — perguntou Stotter.

— Oh, aquele Coletti? — exclamou ela. — Nunca sonhei. . . não não pensamos nisto.

— Então não viu Coletti?— Não — retrucou ela. — O senhor pensa que êle. . . que êle

atirou...— Ainda não fomos tão longe — disse Stotter. — E acerca

de Mrs. Loomis?— Não sei nada a respeito dela — respondeu a moça — exceto

que ela telefonou ao Dr. Holcombe e eles tiveram uma discussão.— Sobre?— Não tenho certeza. Ouvi apenas o que dizia o Dr. Holcom-

be. Tudo o que êle dizia era que estava atendendo ao interesse público, e a filosofia dêle era a seguinte: “Puxar a corda e deixar a chuva cair onde era preciso”. Êle disse a ela que, se uma vez come-çasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte, não teria mais fim. Disse que Mrs. Loomis teria simplesmente que fingir que êle e o seu gelo seco faziam parte da natureza.

— Ouviu outras conversas que podem ter relação com o cri-me? — perguntou Stotter. — Nada?

Ela parou e pôs-se a pensar.— Bem — disse por fim. — Eu saí do escritório por um ins-

tante antes das cinco horas, e quando voltei, o Dr. Holcombe esta-va falando com alguém. Não sei com quem era. Ouvi alguma coisa porque eu não estava batendo à máquina e ela estava falando séria e asperamente para êle.

— Que dizia? — indagou Stotter. — Era sobre o reservatório de Long Park. Ouvi-o dizer:

“Não pode me dizer que o nível do reservatório de Long Park está

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baixo devido à seca”. Depois continuou: “Não tente dizer a mim o que devo fazer. Se eu quiser me encarregar disto, fá-lo-ei. Não pode me eliminar.”

— Êle não disse mais nada sobre isto? — perguntou Stotter.— Nem uma palavra. Voltou a ler os relatórios e eu disse até

logo e saí.O telefone tocou. Harris foi atender, escutou por uns minutos

e disse:— Muito bem, espere aí. — Voltou-se para o Comissário. Co-

letti. Está em casa, podemos ir até lá e êle estará esperando com o seu advogado, mas não virá aqui, a menos que seja com uma ordem, porque não fêz nada.

— Diga-lhe que iremos.Harris obedeceu. Então o Comissário voltou-se para Maxine:— Alguém esteve aqui neste escritório sábado à noite ou do-

mingo?— Não — exclamou a moça. — Só o Dr. Holcombe e eu tí-

nhamos as chaves. Eu não estive aqui, e depois de fazer a chuva, sábado, êle foi para o campo, passar o fim de semana com seus amigos.

— O Dr. Holcombe fumava cigarros? — quis saber o Comis-sário.

— Nunca o vi fumar nada além de cachimbo — respondeu ela.

— Muito obrigado -— disse o Comissário, e deixaram-na ir para casa.

Stotter ficou olhando para o chefe como se tivesse algumas perguntas a fazer, mas o Comissário falou:

— Vamos dar uma olhadela em Kreedlin.Antes que mandassem chamá-lo, ouvimos passos no corre-

dor de mármore, e a porta abriu-se e surgiu Sua Excelência, Johnny Connors.

Era da mesma altura do Comissário, mas a semelhança li-mitava-se aí. O Comissário parecia-se com qualquer outra pessoa, mas Johnny era um só e o único. Parado ali, no seu casaco solto, e usando chapéu preto, os cabelos crespos e grisalhos, sobrance-lhas escuras, e rosto firme, era tão elegante como qualquer galã de

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cinema.— É um caso muito triste, Danny — exclamou êle. — Não

preciso dizer-lhe que gostava de Holcombe. Quero que se faça uma prisão rápida do criminoso. Onde estamos?

— Apenas nos fatos — respondeu o Comissário.Thompson, que estava logo atrás, carregando o sobretudo do

Prefeito, deu o seu parecer:— Temos esperança de que o senhor venha a prender o crimi-

noso esta noite, Sr. Prefeito. Deixando de lado o nosso sentimento por Holcombe, e falando claro, isto poderia nos custar uma porção de votos.

— Isto não tem importância, Tommy — retrucou o Prefeito.— Uma boa quantidade deles dependerá da declaração que

fizermos, — acrescentou Tommy. — Poderíamos encontrar um gru-po político que fizesse piorar mais ainda a falta dágua, e isto preju-dicaria o resultado da eleição.

-— Não se preocupe por minha causa, Danny — explicou o Prefeito. — Mas tiraria um grande peso das nossas cabeças, se esta história aparecesse completa e solucionada, nos jornais de ama-nhã. Tem alguma idéia de quem poderia ter feito isto?

— Ainda não, Sr. Prefeito — respondeu o Comissário. Sempre chamava Johnny pelo seu título.

— Bem, sei que tendo você como encarregado, tudo o que fôr possível fazer, será feito. Se souber de alguma coisa, mande-me avisar imediatamente. Tommy e eu estaremos no escritório. Tere-mos que mandar o caso para a imprensa, e acertar alguma coisa. Mas em primeiro lugar, precisamos descobrir quais são os parentes mais próximos de Holcombe, e dar-lhes a notícia da maneira mais suave possível. Vamos, Tommy.

— Saíram para o vestíbulo, enquanto eu segurava a porta aberta para eles. Pelas costas, com os casacos soltos e os chapéus pretos, êle e Thompson pareciam uma dupla de dançarinos: Fred Astaire e Gene Kelly, ou outra dupla qualquer.

Depois que êle se foi, Stotter falou:— Com tudo o que êle tem na cabeça, ainda pode se lembrar

dos parentes de Holcombe.O Comissário concordou.

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— Vamos ver Kreedlin.Um policial sai para chamá-lo e neste meio tempo o Comis-

sário diz para Stotter:— Que foi que você disse acerca de Kreedlin ter boas rela-

ções?Era uma pergunta sensata, porque ninguém gosta de pisar

nos calos de quem tem boas relações, se pode evitá-lo. No entanto, Stotter não podia auxiliar muito. Disse apenas:

— Foi o que ouvi — que um graúdo o recomendou ao Prefei-to.

Kreedlin entrou. Era magro, estatura mediana, tinha o rosto ossudo e usava óculos; seu modo de falar era áspero e agressivo.

— Sinto que Holcombe tenha morrido, mas não vejo ra-zões para que isto nâo possa esperar até amanhã. Tiraram-me da cama.

— Sente-se — falou Stotter. Kreedlin sentou-se, jogou fora um toco de cigarro e em segui-

da acendeu outro que retirou de um maço amarrotado que estava no seu bolso, e colocou-o no canto da boca. Stotter começou. O sujeito disse que estívera no seu escritório até quase sete horas. Sabia que Holcombe estava vivo logo depois das seis, porque êle tinha ido ao toilette dos homens e passara pela porta de Holcombe” naquela hora e ouvira vozes. Não, não sabia se uma das vozes era de Holcombe, pois só ouvira um leve murmúrio. Não sabia quem estava no escritório com Holcombe. Ainda falavam quando êle vol-tara. Não ouvira o tiro. Achava que Holcombe estava vivo quando fora para casa, porque embora não ouvisse vozes, quando passou pela porta, ouvira-o espirrar.

— Viu alguém no corredor quando saiu? — perguntou Stot-ter.

— Não — respondeu Kreedlin. — Estes empregados sempre saem cedo. Nunca trabalham à noite. Todos os escritórios estavam vazios.

O seu tom de voz era desdenhoso.— Então não viu ninguém? Comecei a pensar que as coisas não estavam muito boas para

o lado de Kreedlin. O doutor dissera que Holcombe morrera antes

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das sete — e segundo o próprio testemunho de Kreedlin, Holcombe ainda estava vivo quando saiu do escritório pouco antes das sete. O assassino deveria estar por ali àquela hora, mas Kreedlin disse que não o vira e nem ouvira o tiro. Talvez tivesse se apercebido disto, porque de repente mudou a cantiga:

— Espere. Eu vi alguém. Uma mulher. Uma mulher alta. Ti-nha me esquecido dela até agora. Eu a vi do lado de fora, no cor-redor. Ela estava olhando para as placas do edifício, e quando eu passei por ela, pôs-se a caminhar.

— Pode descrevê-la? — perguntou Stotter.— Bem — falou Kreedlin, meio receoso. — Eu não olhei de

perto para ela, mas tenho a impressão que tinha os cabelos verme-lhos e sardas. Agora é que estou recordando.

Bem pude ver que Stotter não deu muita importância ao fato, mas disse a Harris:

— Veja se consegue saber de alguma mulher alta, cabelos vermelhos e sardenta, que tivesse andado por aqui por volta das sete horas.

O Comissário fêz uma pergunta:— Gostava do Dr. Holcombe? Kreedlin hesitou um pouco, mas respondeu:— Sim.— Aprovava o seu método de evitar a falta dágua?Meu amigo, isto foi a conta. Foi o mesmo que furar uma bo-

lha. Saiu uma porção de coisas. Kreedlin achava que Holcombe era um impostor. A chuva que caía toda a vez que êle subia de avião era porque sabia que iria chover mesmo, mas fingia que era o autor do fenômeno.

— Truque de publicidade — dizia Kreedlin cada vez mais ex-citado. Largou o cigarro e acendeu outro, e disse ao Comissário:

— Isto não era método para evitar a falta dágua. Deve-se procurar a origem do problema. Erosão do solo. Drenagem. Reflo-restamento.

Começou a expor os seus planos de abastecer o suprimento dágua da cidade, por muito tempo, e a dizer que êle era um enge-nheiro de verdade e não um farsante.

O Comissário interrompeu:

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— Creio que o Prefeito não favoreceu o seu plano, não foi?— Êle disse que não era politicamente prático na ocasião —

respondeu Kreedlin.— Mas o manteve no emprego. Kreedlin ficou vermelho:— Êle deve saber que os meus serviços um dia serão úteis à

cidade.— Há poucos momentos, Mr. Kreedlin, o senhor falou nos

empregados públicos com um tom de voz que eu reconheci bem. Não se considera um empregado público, também? —- perguntou o Comissário.

— Claro que não — exclamou Kreedlin. — Não um emprega-do comum. Estou aqui como consultor.

— E ainda assim — continuou o Comissário. — Como con-sultor, evidentemente continua a esperar que lhe seja pago o salá-rio depois que suas idéias foram rejeitadas?

Kreedlin ficou nervoso.— Isto é comigo. Sei que serei útil ao Prefeito.— Sem dúvida — disse o Comissário. — Mas o senhor se con-

sidera um engenheiro ou profissional, mais do que um empregado público?

— O que tem isto a ver com este assassinato? Já lhe disse que não ouvi o tiro. E isto é tudo o que lhe interessa.

O Comissário continuou como se fosse uma máquina:— Em que trabalhava antes de vir para a Prefeitura?— Era engenheiro consultor da Companhia de Construção

“Kreedlin”, antes de vir para cá. Meu irmão é o presidente. Isto chega para o senhor?

Naturalmente eu conhecia o nome. Eles trabalhavam muito para a cidade, mas nunca liguei o nome com este Kreedlin.

O Comissário aquiesceu:— E o senhor deixou um emprego de tanta importância só

para trabalhar para a cidade?— Era o meu dever de cidadão — disse Kreedlin — ajudar a

enfrentar a falta dágua.O Comissário ficou a olhar para êle sem dizer palavra, por

alguns segundos. Depois falou:— Falou com o Dr. Holcombe pelo telefone esta tarde?

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— Não. Por que haveria de falar pelo telefone quando o meu escritório fica bem aqui ao lado?

— Foi a Companhia Kreedlin que construiu o reservatório de Long Park? — indagou o Comissário.

Kreedlin franziu as sobrancelhas e perguntou:— Sim, e que tem isto?— O senhor ouviu alguma coisa sobre um defeito na cons-

trução do reservatório? — perguntou o Comissário. — Assim como uma rachadura na base de cimento, e que faria o nível dágua estar anormalmente baixo?

— Mentira! Isto foi apenas uma desculpa de Holcombe, por-que não era capaz de elevar o nível de lá.

— Ah! — exclamou o Comissário. — Então ouviu falar nisto. Quem lhe contou?

— Não me lembro. Foi apenas um rumor, desses que a gente ouve por aí.

Stotter pegou a deixa:— É melhor dizer que o senhor tinha um ressentimento con-

tra o Dr. Holcombe.Isto aplacou Kreedlin. Êle olhou cautelosamente em volta.— Eu estava sentido, mas não direi que tivesse um ressenti-

mento profundo.— Apenas uma pergunta de praxe — disse Stotter. — O se-

nhor possui alguma arma?Kreedlin exaltou-se:— Isto é ridículo, mas vá lá, se é isto que o senhor quer: não.

Não tenho nenhuma arma e nem acesso a nenhuma.Stotter disse-lhe que podia ir embora, mas que ficasse de

prontidão de manhã bem cedo, e Kreedlin saiu sem dizer mais nada.

— Êle poderia ter um motivo — disse Stotter para o Comis-sário — mas se êle é o nosso homem, creio que teremos dificuldade em prová-lo.

— Vamos ver Coletti — disse o Comissário.Coletti morava num hotel grã-fino e tinha um apartamento

muito agradável. Quando chegamos êle trajava um roupão de seda e fumava charuto. Era um homem forte, de rosto magro e bigodi-

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nho fino. Bem que eu gostaria de amassar-lhe a cara, porque foi êle um dos que ameaçaram o Comissário, mas aquela não era ocasião para tal. Com êle estava um advogado gordo e baixo, que quase não dizia palavra, apenas ficava sentado escutando.

— Ora vejam — disse Coletti. — O Comissário em pessoa! A que devo tão imerecida e inesperada honra?

— Pare com a farsa —- disse Harris, e Stotter prosseguiu:— Queremos apenas umas respostas a certas perguntas.

Você visitou o Dr. Prichard Holcombe na Prefeitura esta tarde?Coletti levantou o rosto e olhou para Stotter e depois para o

Comissário, antes de responder.— Sim. E daí?— A que horas?— Um quarto para as seis. Por quê? — perguntou Coletti co-

meçando a ficar inquieto.— Quanto tempo ficou com êle? — perguntou Stotter.— Talvez uns dez minutos, talvez quinze — respondeu Coletti

agora preocupado. — Desde quando existe algum mal, em um ci-dadão visitar um empregado público?

Stotter sorri, mas não é um sorriso bonito.— Nenhum mal, a menos que este empregado público venha

a ser assassinado por volta da hora em que o cidadão o foi visitar.—- Assassinado! — gritou Coletti. — Com os diabos! Que é

que vocês estão querendo empurrar para cima de mim?— Se você não o praticou, não tem nada que se preocupar

— disse calmamente o Comissário. — O que queremos saber na realidade, é por que você foi ver Holcombe?

Coletti pôs-se a falar ligeiro:— Eu o conhecia há anos. . .— Não seja bobo — interrompeu o Comissário. — Holcombe

escreveu-lhe marcando um encontro. Êle não sabia quem você era. Pense bem e diga a verdade, se não quiser ser preso como testemu-nha importante. O que tinha a dizer a Holcombe?

— Espere um pouco —- disse Coletti e foi conferenciar com o advogado. Depois falou:

— Pois bem, vá lá. Não há nada ilegal sobre isto. Eu tinha uma pequena transação e queria discuti-la com Holcombe.

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— Que espécie de transação? — perguntou o Comissário.— É que eu jogo um pouquinho no prado.Isto era até engraçado, porque sabíamos que êle ainda anda-

va às voltas com apostas.— As vezes a gente pode ganhar algum dinheiro, se se conhe-

ce os cavalos e se chove na hora exata. Eu queria apenas ter uma idéia de quando Holcombe planejava gelar as nuvens perto do local das corridas. Perfeitamente legal, como eu disse. Seria muito bom para mim, se eu soubesse da informação.

—- Compreendo -— disse o Comissário. — Uma pequena transação comercial.

— Claro, é isto. Um pequeno negócio particular.O Tenente Harris ficou impaciente e perguntou:— Que disse Holcombe? Coletti sorriu:— O idiota não quis saber de nada. Ofereci-lhe uma quantia

razoável, mas êle fêz uma conversa comprida, que era um cientista disposto a servir o público e que não queria juntar dinheiro para si, nem para ninguém mais. Pensei que talvez conseguisse, fazendo mais pressão, mas vi que êle era um desses sujeitos cabeçudos, por isso, resolvi desistir. Nada de mal-entendidos, disse-lhe eu, en-quanto ficar de boca fechada e não contar a ninguém a minha pro-posta. Foi tudo o que aconteceu. Então eu fui embora. Êle estava bem quando eu saí, sentado à escrivaninha.

Aquela era a sua versão, e não mudou nem uma palavra, quando Stotter lhe fêz as outras perguntas. Êle disse que, depois de deixar Holcombe, poucos minutos depois das seis, foi direta-mente para um night club: O Papagaio Vermelho, do qual é um dos donos. Lá tomou umas bebidas, jantou, assistiu ao primeiro show. Uns vinte camaradas poderiam prová-lo. Por fim Stotter pergunta:

— Você tem um revólver ou uma pistola calibre 32?O pequeno advogado pulou:— A menos que o senhor tenha justificativas para suspeita,

que não pode ter, êle não responderá perguntas sobre armas,— Não faz mal — disse o Comissário para Stotter. — Não ar-

ranjaremos mais nada aqui. Oh, espere. — Voltou-se para Coletti:— Você fuma cigarros?

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Coletti olhou para o Comissário como se o achasse tolo:— Não, tenho horror a êles. Só charutos.E foi tudo, exceto que, depois do Comissário ter passado pela

porta, eu tropecei e pisei com toda a força no pé de Coletti, que estava de chinelos, e êle soltou um urro. Então eu disse com muita polidez:

— Desculpe, Mr. Coletti. Queira perdoar. Foi um acidente. É engraçado como os acidentes acontecem aos sujeitos que falam em atacar o Comissário. Era melhor você se lembrar disto.

Então eu fui embora, enquanto êle ficou dizendo coisas feias.

No carro, o Comissário olhou para o relógio e disse:— Que tal uma corrida até o Parque de Diversões Mohawk,

Bill? Ainda é cedo.— Boa idéia — concordou Stotter, e disse ao chofer para an-

dar ligeiro. A sirena começou a gemer e logo chegamos ao túnel do centro da cidade e subimos por uma estrada de onde se viam as luzes da roda-gigante e da montanha russa.

Chegando ao parque, fomos diretos para o escritório, que fica à entrada, logo atrás da bilheteria, e perguntamos por Mrs, Loomis. Um homem que estava contando a féria da noite, nos disse que ela estava lá pelo parque e foi até a porta para nos indicar o caminho.

— Não posso deixar este dinheiro aqui — disse-nos êle — mas com certeza os senhores a encontrarão na primeira barraca de tiro ao alvo, logo na primeira esquina.

— Ela gosta de atirar? — perguntou o Comissário.— Se gosta! -— exclamou o sujeito. —- Ela costumava fazer

um ato de tiro mágico num circo, e depois comprou a concessão de tiro ao alvo nesta parte. Foi assim que ela conheceu Loomis. Agora é dona de tudo.

Havia uma multidão em volta da tenda de tiro ao alvo, e po-dia-se ver o brilho dos olhos de Stotter, porque a mulher que eles estavam admirando era alta, com o rosto coberto de sardas e o seu cabelo era avermelhado, preso para trás. Ficamos ali parados a assistir ao espetáculo. Que mulher! Andava pelos trinta e cinco anos, e era do tipo que poderia me agradar — um pouco forte de-mais, talvez, mas com uma cara mais ou menos. E era grande em

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tudo, sem no entanto ser gorda. Vestia slacks azuis e uma blusa de lã cinzenta, que lhe desenhava um belo perfil e eu ouvi o Tenente Harris dar um leve assobio. Mas apesar de tudo, continuei a olhar para os tiros. Atirava com dois revólveres antigos e fazia todas as peripécias: apagava seis velas com seis tiros; olhando por um es-pelho, atirou por sobre o ombro, derrubando uma carreira de ca-chimbos; abanava a arma e acertava todas as vezes num alvo. Um homem atrás do balcão era encarregado de renovar a munição das armas, e toda a vez que ela atirava, a multidão aplaudia.

— Que tal, rapazes? — perguntava ela numa voz grave, que soava como a do Texas, e eles gostavam e ela ficava contente.

Harris murmurou ao meu ouvido:— Se ela atirou em Holcombe, não provaremos nada com um

teste de nitrato para encontrar grãos de pólvora.Percebi logo o que êle queria dizer. Por fim ela pára, e quando

a multidão se alinhou em frente ao balcão para tentar alguns tiros, ela se voltou para nós e Stotter falou com ela. Ela nos fitou com um olhar azul e frio e disse:

— Não sei o que querem comigo, mas venham ao meu escri-tório.

Era um lugar confortável, com boas cadeiras, e quando está-vamos sentados, Stotter tomou a palavra:

— Mrs. Loomis, a senhora pode nos ajudar, respondendo apenas a algumas perguntas, e não lhe roubaremos muito tempo. Primeiro, para apressar as coisas, quer nos dizer onde esteve esta tarde, entre as seis e as sete horas?

Mrs. Loomis franziu a testa, mas respondeu:— Na minha casa, em River Drive.— Conhece o Dr. Richard Holcombe?— Falei com êle pelo telefone. Mas suponhamos que o senhor

me diga para que é tudo isto.Ela falava como um homem, diretamente. E Stotter respon-

dia da mesma maneira.— O Dr. Holcombe foi assassinado.— Assassinado?! — exclamou Mrs. Loomis. — Sinto muito.

Êle parecia ser um bom homem, quando falei com êle. Mas e que tem isto a ver comigo?

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— A senhora escreveu ontem uma carta ao Dr. Holcombe — continuou Stotter — mostrando-lhe a mesma. — O que queremos da senhora, é uma explicação.

— Certamente. É muito simples. Como sabe, sou dona do Parque de Diversões Mohawk, herdei-o do meu marido. Talvez não saiba, mas é um negócio muito próspero. No comêço deste ano, com bastante despesa, renovei o parque todo. Até mesmo mandei construir um pavilhão de danças, e instalei aquecimento interno e um jardim tropical. Fica tão quente, quando está ligado, que os freqüentadores podem dançar todo o ano, mesmo no inverno, como se estivessem viajando para o sul. Eu trouxe uma banda famosa e comprei uma licença para bebidas, e tivemos um bom início. Uma das nossas atrações é o concurso de danças nas noites de sábado. Arranjei tudo e fiz propaganda e, francamente, é aí que fazemos mais dinheiro, porque o perdemos durante a semana. O senhor bem pode imaginar, que prejuízo eu tenho quando chove três sá-bados seguidos.

— Atribui isto às atividades do Dr. Holcombe?— A que mais? Por que tinha êle de escolher as noites de sá-

bado para os seus vôos? Por que não nos dias de semana? Estou tão ansiosa como qualquer outra pessoa para terminar de uma vez com esta falta dágua, mas por que teria o meu negócio de sofrer? Foi isto que eu pedi a êle pelo telefone.

— Que disse êle? —- perguntou Stotter.— Disse que escolhia a ocasião em nue houvesse grandes

formações de nuvens sobre a cidade, e aconteceu que elas estavam boas, nas noites de três sábados consecutivos. De qualquer forma, êle estava mais interessado em encher os reservatórios da cidade, disse-me êle, do que encher o meu parque de diversões.

— Quando foi esta conversa? — quis saber Stotter.— Na semana passada — têrça-feira — disse ela. — Pedi-lhe

pelo amor de Deus que me desse uma oportunidade e deixasse passar o sábado, e êle apenas fêz uma referência acerca de dei-xar a chuva cair onde quisesse. Então no sábado, quando choveu novamente, fiquei muito aborrecida. Foi aí que eu lhe escrevi esta carta.

— Referiu-se a tomar providências — falou Stotter.

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— Oh. Eu queria dizer providências legais. Disse a Holcombe que se êle continuasse assim, eu iria exigir dele e da cidade uma indenização de um milhão de dólares. Com franqueza, eu não pen-sava ter a oportunidade de arrecadá-los, mas imaginei que a publi-cidade valeria alguma coisa.

— Foi só isto? — perguntou Stotter. — Não teve outro contato com Holcombe?

— Nenhum — respondeu ela.— Nunca o visitou em seu escritório? — Não. Stotter olhou-a nos olhos e não disse nada por uns instantes.

Ela permaneria têsa e quieta. Então o Inspetor falou:— Não é melhor a senhora pensar outra vez, Mrs. Loomis?— Que quer dizer?— Suponhamos que eu lhe diga — explicou Stotter em voz

muito baixa —- que por volta das sete horas desta noite uma tes-temunha a viu no corredor da Prefeitura, em direção ao escritório de Holcombe.

Stotter estava em parte blefando, é claro — e eu, aceitaria a palavra de Mrs. Loomis, em vez da de Kreedlin. Mas ela se descon-trolou.

— Oh, meu Deus! — e seu rosto ficou branco, sob as sardas. Stotter ficou tão contente que quase bateu no próprío peito, porque aquêle parecia ser o desenlace que êle estivera almejando.

— Vamos ver os fatos — ordenou. — O que aconteceu quando a senhora viu Holcombe?

Mrs. Loomis passou a mão sobre os cabelos vermelhos e mostrou-se desesperada.

— Não fui eu — exclamou ela em voz baixa. — Tenho três filhos. Sou uma mulher de negócios. Eu nem conhecia Holcombe. Pareço ser capaz de assassinar um estranho? Ou qualquer pessoa, por este motivo?

Stotter disse apenas:— Vejamos os fatos.— Não esconderei nada. Esta questão era muito importante

para mim. Estou devendo muito aos Bancos, e estava contando com a seca para ajudar o negócio. Estas chuvas freqüentes, princi-

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palmente nos sábados, estavam me danando. No sábado passado eu achei que devia fazer alguma coisa. Foi então que escrevi uma carta ao Dr. Holcombe. Esta tarde telefonei-lhe outra vez.

— A que horas? — interrompeu o Tenente Harris.— Um pouco depois das cinco, creio eu — disse ela. — E eu

lhe falei em mover uma ação. Não iria ficar de lado e deixá-lo arrui-nar o meu negócio. Se tivesse que fazer chuva, que o fizesse tarde da noite, quando os clientes do parque já tivessem ido para suas casas. Deu-me a mesma resposta: precisava colocar o bem público acima de qualquer interesse particular. Mas não se mostrava zan-gado, e eu pensei que talvez pudesse convencê-lo. Perguntei-lhe, que tal se eu o fosse ver aquela noite, e se êle poderia esperar até que eu chegasse lá. Disse-me que estava bem, que de todo jeito precisava estar no escritório, e então marcamos encontro para as sete horas. Cheguei à Prefeitura pouco antes das sete, e procurei o número do seu escritório, nas placas da sala de espera. Lembro-me de ter visto um homem. Com certeza foi aí que fui vista. Então eu entrei no corredor. Na minha frente, lá no fundo do corredor, alguém saía daquele escritório, mas êle andava muito depressa, e quando cheguei em frente, já tinha dobrado para o outro lado, de modo que não cheguei a vê-lo bem. Estava carregando qualquer coisa, uma valisa talvez.

— Tem certeza que era um homem e não uma mulher carre-gando uma bolsa? — perguntou Stotter.

— Tenho uma idéia de ter visto calças compridas — disse Mrs. Loomis, pensativa. — Deve ter sido homem. De roupa escura. A não ser que fosse uma mulher de slacks.

— Que aconteceu depois? Mrs. Loomis continuou:— Bati e não obtive resposta. Então experimentei a maçaneta

e a porta se abriu. A luz estava apagada, mas da janela vinha bas-tante claridade para que eu pudesse ver que havia alguém sentado à escrivaninha, meio debruçado sobre ela. Pensei que Holcombe estivesse dormindo e disse: “Boa-noite”. Quando êle não respon-deu, tornei a falar: “Desculpe, mas creio que é melhor acender a luz”. Procurei o comutador e quando olhei para Holcombe nova-mente, vi que estava morto.

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— Tocou nele? — perguntou Stotter.— Não. Fiquei horrorizada. Quando cheguei perto vi o orifício

na cabeça dele, e percebi que não havia mais nada que eu pudes-se fazer por êle, coitado! Então fiz uma asneira. Fiquei com medo de que suspeitassem de mim, se soubessem da discussão que eu tivera com êle. Agora, bem quando estou tentando pagar os em-préstimos dos Bancos, uma publicidade má, como a de eu estar metida num assassinato, poderia arruinar-me. Olhei para fora e não havia ninguém, então fui embora. Não pensei que alguém ti-vesse me visto.

— A senhora limpou o trinco da porta e o comutador com o seu lenço? — perguntou Harris.

— Ora, não!— Não ficou preocupada de deixar impressões digitais?— Estava muito assustada para pensar nisto. Além do que,

eu estava de luvas — voltou-se para Stotter e prosseguiu. — Eu não queria fazer nada errado, estava apenas tentando proteger a mim e a minha família.

Stotter interrogou-a acerca de uma arma. Ela nos mostrou um Colt 45, que guardava na escrivaninha, e também uma licença para usá-lo, mas afirmou que nunca usara um 32.

— Mais um ou dois pontos, Mrs. Loomis — pediu o Comissá-rio. — A senhora fuma?

— Não muito — respondeu ela, mostrando-se surpreendida. — Uns cigarros de vez em quando.

— Fumou enquanto esteve no escritório de Holcombe? — per-guntou o Comissário.

— Não, senhor.— Sobre o homem que a senhora disse ter visto no corredor.

Pode lembrar-se de alguma coisa mais sobre êle? Era alto ou bai-xo?

Ela hesitou.— Creio que não era alto. Mas não me lembro bem. Foi ape-

nas um relance.— Mrs. Loomis, não vou prendê-la desta vez, mas a senhora

deve compreender que se colocou muito mal, não comunicando este crime — disse Stotter. — Agora a senhora vai para a sua casa

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e lá permanecerá até que possamos ver em que pé ficam as coisas. Amanhã saberá qualquer coisa.

— Muito. Mas eu lhe disse a verdade. Toda a verdade. É tudo o que eu sei.

De volta ao escritório de Holcombe, na Prefeitura, Stotter dis-se:

— Para mim a história de Mrs. Loomis parece verdadeira. Pessoalmente, neste momento estou mais interessado em Kreedlin. Êle estava bem perto quando Holcombe levou o tiro. Êle tinha ciúmes de Holcombe. E se estava tentando evitar a propagação do caso de Long Park, tinha um forte motivo para o crime.

— O que diz a respeito de Kreedlin é verdade, Inspetor — disse Harris. — Mas há um ponto que me atormenta. Duvido que êle seja um atirador tão bom que consiga acertar na têmpora de Holcombe, a uma distância considerável, para não deixar nenhum vestígio de queimadura de pólvora. Mas. Mrs. Loomis poderia tê-lo feito.

— O motivo dela não é bastante forte — comentou Stotter.— Não sei — disse Harris. — As chuvaradas de Holcombe es-

tavam arruinando-a. Ela ficou desesperada por causa do negócio. E ela já conhecera o lado árduo da vida, isto bem se pode ver. Um crime não seria muita coisa para ela embora o fosse para muitos homens. Ela falou com Holcombe, e não ficou satisfeita. Pois bem, levantou-se e foi até a porta. Naquele instante êle virou a cabeça, talvez para apanhar algum papel, ou o telefone. Ela retirou um re-vólver, e a uns quinze passos, alvejou-o na fonte. Para ela isto teria sido uma canja. Depois, foi embora.

— Holcombe era do tipo de homens que se levantariam quan-do uma dama fosse sair do escritório. Neste caso, êle não teria vira-do a cabeça, e não teria sido encontrado à escrívaninha, debruçado sobre ela, — comentou o Comissário.

— Talvez dessa vez não se tivesse levantado — falou Harris. — Talvez não tivesse gostado da atitude dela. Para mim, o impor-tante é que ela tem habilidade de atirar, tem o motivo e qualidade. De um certo modo, ela estava lutando pelos filhos. Tal qual o faria uma leoa. Ela seria capaz de eliminar Holcombe, se achasse que a morte dele pudesse lhe trazer algum benefício, como por exemplo

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o de impedir que o Banco lhe fechasse as portas, ou para salvar o parque, ou ainda, se isto trouxesse conforto aos seus filhos. Além disso, creio que aquela história de ter visto alguém na sua frente, no corredor, não passa de invenção.

— Você está de acordo com isto, Babe? — perguntou-me o Comissário.

— Não, senhor. Para mim foi Coletti. Segundo imagino, pro-vavelmente Holcombe ameaçou espalhar a proposta de Coletti aos jornais, ou quem sabe, às autoridades das corridas. Isto teria dei-xado Coletti em ridículo, e isto é uma coisa que aquele sujeito não poderia tolerar. Êle não precisaria nenhum outro motivo. Êle é do tipo que mataria logo um camarada, se achasse que poderia sair-se bem. Não daria oportunidades a Holcombe para fazê-lo alvo de cha-cotas. Talvez fingisse que ia sair, desse uma espiada no vestíbulo, visse que não havia ninguém, voltasse ao escritório e atirasse em Holcombe. Havia bastante barulho na rua, devido ao trânsito, de modo que se Kreedlin ouvisse o tiro, julgaria tratar-se da descarga de algum caminhão, e não daria muita importância. Depois Coletti saiu, e ninguém o viu.

— E o homem que Mrs. Loomis viu, levando uma valisa? — indagou o Comissário.

— Se é que houve tal homem — continuei — talvez fosse qualquer funcionário que ficasse trabalhando até tarde.

— Não sei — confessou o Comissário. — Coletti foi bastante convincente quando falamos com êle.

— Uma farsa — insisti. — Provavelmente êle estava até rindo por dentro, de ter deixado um assassinato nas suas mãos e nas do Prefeito, numa ocasião tão inoportuna como esta. A meu ver, se investigássemos bem o álibi de Coletti, veríamos que êle esteve com Holcombe mais tarde do que nos disse, e que chegou ao Papagaio Vermelho depois das sete horas. Um daqueles vermes que pululam naquele antro, talvez desembuche qualquer coisa, se apertarmos com êle.

O Comissário sacudiu a cabeça.— Não estou convencido — disse êle. — Há alguns pontos

que eu gostaria de ver esclarecidos. Um deles é aquele risco no caixilho da porta.

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Stotter levantou as sobrancelhas, mas o Comissário prosse-guiu.

— O outro ponto, é o espirro que Kreedlin ouviu. Deve ter sido um espirro muito alto, se é que êle ouviu através da porta. A propó-sito, já chegou algum resultado do departamento de balística?

— Já vamos saber — disse Harris, encamínhando-se para o telefone. Pouco depois largou o fone ao Comissário:

— Pelo menos já temos alguma coisa definida. O departa-mento informou que a bala que matou Holcombe, foi disparada por um revólver munido de silenciador.

— Bom — disse Stotter. Como eu já dissera, êle era um es-pertalhão.

—- Isto explicaria o espirro. Para Kreedlin talvez o tiro soasse como um espirro. Mas isto não quer dizer que êle não atirou em Holcombe, Poderia muito bem fingir que ouvira o tiro do lado de fora da porta, e assim, despistar.

— O silenciador reduziria a velocidade da bala — disse o Co-missário — e talvez seja por isto que ela não atravessou o crânio de Holcombe. E também seria uma arma muito grande para carregar. Junte ao fato, alguém desaparecendo com uma valisa, e o que é que você conclui?

-— Comissário — disse Stotter, todo excitado — é isto! Quer dizer que Mrs. Loomis estava dizendo a verdade. Cada vez se torna mais e mais claro que o homem que ela viu foi Kreedlin. Tudo o que nos resta fazer é encontrar a arma, e desmentir a história de Kreedlin.

— Talvez — respondeu o Comissário.— Comissário, se o senhor concordar, eu gostaria de pedir

ao Juiz Rosen um mandado de busca à casa de Kreedlin. E se o senhor não precisa de Harris, seria bom que ele me acompanhasse, para comandar a busca. Faremos um teste de nitrato na mão de Kreedlin, embora supondo que tenha usado luvas. Em todo o caso, se êle tiver a tal arma, ou alguma falha na sua história, sabere-mos encontrá-la. Êle representa a única oportunidade que temos de esclarecer as coisas esta noite. Dá-me permissão de prosseguir, senhor?

O Comissário ficou em dúvida, mas afinal disse que sim.

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Pareceu-me que o Comissário queria ficar sozinho, excetuan-do-se a mim, é claro. Tornou a sentar-se na cadeira de Holcombe, e depois levantou-se, foi até a porta e olhou para o tênue risco. Parecia fasciná-lo.

Daí a um pouco êle falou:— Babe, como é que um homem faz um risco horizontal dês-

tes, com um cigarro? — Êle falou comigo, mas eu percebi que esta-va apenas pensando em voz alta, portanto, não respondi.

— Deve ter sido um cigarro — continuou êle. — Um charuto deixaria um friso mais largo. As chances são de que foi feito hoje. Creio que podemos supor assim. Parece recente. Se estivesse aí há vários dias, com a porta abrindo e fechando, e sacudindo o caixilho todas as vezes, os grânulos de cinza teriam se desprendido e caído ao chão, e o sinal estaria muito mais apagado. Além disto, Mrs. Barkowsky limpou a porta no sábado. Domingo ninguém esteve aqui. Holcombe fumava cachimbo. Segundo Maxine Austin, não tiveram visitas hoje.

— Ela fuma cigarros — sugeri. Êle sacudiu a cabeça.— Ela não tem mais de cinco pés e duas polegadas. Teria que

estar segurando o cigarro acima da cabeça, para fazer um risco desta altura. Não, Babe, parece realmente que esta marca foi feita por alguém que entrou aqui depois que Miss Austin saiu, às cinco horas.

— Sei o que o senhor quer dizer.— Isto me aborrece. Num caso onde não haja pistas diretas,

não se pode negligenciar nenhuma circunstância incomum, mes-mo que pareça pueril. Como foi que esta marca chegou aí?

— Não sei — confessei.— Ninguém levaria um cigarro na mão, à esta altura. Com

certeza estava na boca de alguém que entrou aqui depois das cin-co, esta tarde. Quem? Holcombe só fumava cachimbo. Coletti fuma charutos. Mrs. Loomis disse que às vezes fuma cigarros, e que não fumou neste escritório. Se ela estava falando a verdade sobre este ponto, significa que alguém mais visitou Holcombe, além dos três.

— Chefe — disse-lhe eu. — Isto é bom.Àquela era a primeira vez que eu o via bancando o Sherlock

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Holmes, mas podia ver que estava gostando.— Se o nosso raciocínio está certo — disse êle — podemos

imaginar um homem — ou uma mulher — talvez uma pessoa de-sesperada, um assassino, entrando por esta porta, com um cigarro à boca, e roçando-o contra o caixilho. O risco está a três polegadas acima da minha boca. Tenho cinco pés e seis polegadas. Isto sugere um homem de cinco pés e nove polegadas.

— Kreedlin! — exclamei. — É mais ou menos a altura dele e é um viciado no fumo.

O Comissário esfregou o queixo.— Como você disse, Kreedlin é o suspeito. E assim mesmo,

Babe, quantas vezes um homem, de cigarro à boca, encosta-o ao caixilho da porta? Encosta-o com força, para deixar um risco? Nes-se caso, a pessoa teria que ser muito vacilante em seus passos, não acha você, para estar tão sem equilíbrio?

—— Talvez Kreedlin tivesse tomado alguns traguínhos para ter coragem de eliminar Holcombe. Ou talvez êle tivesse lutado com Holcombe...

O Comissário sacudiu a cabeça.— Kreedlin não gostava de Holcombe, poderia estar com

medo dele por causa do irmão, mas não me deu a impressão de ser capaz de um desespero que leva um homem a matar. Minha crença é que estamos procurando por um homem desesperadíssimo e que tivesse um motivo muito poderoso.

— Não sei, não — disse eu. Olhamos para o risco.— Vamos pensar novamente — disse-me êle. — Suponhamos

um homem que tivesse aberto só uma fresta da porta para olhar o corredor? E estivesse com um cigarro na boca? E se esquecesse que o mesmo estava ali? Assim — acendeu um cigarro, soltou al-gumas baforadas, entreabriu a porta, olhou para fora, e encostou-o de encontro ao lado da porta. Sobre a pintura branca apareceu um risco estreito, três polegadas abaixo do outro.

— O senhor acertou! Mrs. Loomis! Ela tinha um motivo, como disse o Tenente Harris. Ela admitiu que abrira a porta para olhar o corredor. Ela é uma mulher alta e seria ali mesmo que o cigarro dela deixaria a marca.

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— Mrs. Loomis —- repetiu o Comissário para si mesmo. Vol-tou para a cadeira de Holcombe, abriu as gavetas da escrivaninha. Logo deparou com um maço de cigarros, quase cheio.

— É possível — disse êle. — Talvez Holcombe guardasse estes para oferecê-los às visitas. Curioso, mas eu tive que virar a cabeça para deixar aquela marca. Isto não é natural. Geralmente um fu-mante carrega um cigarro como se fosse parte de si mesmo.

— Mrs. Loomis não está habituada a cigarros — informei. — Se Holcombe ofereceu-lhe um, e ela aceitou para ser polida, e depois alvejou-o e abriu a porta para olhar para fora. . .

— Talvez. Poderia ter sido assim — disse o Comissário, reclí-nando-se na cadeira e olhando para o teto. Calei-me e fiquei espe-rando. Pus-me a imaginar como estaria Stotter se arranjando com Kreedlin, mas minha aposta agora estava em Vera Loomis. Embora não me agradasse a idéia de que ela fosse uma assassina, não po-dia compreender por que o Comissário não mandava buscá-la para assim se resolver tudo. Daí a pouco senti-me aborrecido e fui até à janela e olhei para o céu coberto de nuvens. Isto também tornou-me tedioso e resolvi lembrar ao Comissário a razão da nossa visita ali.

— O senhor acha que vai chover amanhã sem a ajuda do Dr. Holcombe? — perguntei.

O Comissário não respondeu, mas depois de uns cinco se-gundos estremeceu e indagou:

— Que foi que você disse, Babe?— Eu estava apenas imaginando se amanhã iria chover, sem

que para isso o Dr. Holcombe usasse o seu processo de gelo seco.— Foi o que pensei ter ouvido. Muito obrigado, Babe.— Por quê?— Por me dar a pista de que eu necessitava — disse êle.

Mas não parecia ter ficado satisfeito com isto. No seu rosto havia uma expressão sombria. Ficou a pensar por um instante e depois falou:

— Penso que chegou a hora de prestarmos declarações ao Prefeito. Êle deve estar ansioso para saber qualquer coisa.

Atravessamos os corredores, em direção ao grande escritório de Johnny Connors. Quando batemos, o Prefeito falou:

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—- Entre.Era uma sala enorme, com a bandeira americana hasteada

num mastro de bronze, ao lado da escrivaninha, sendo que do ou-tro lado da mesma estava a bandeira da cidade. Havia um tapete grosso, quadros na parede; sofás de couro, etc. Johnny estava sen-tado lá, junto com Thompson, e estavam trabalhando num papel. Ambos pareciam pálidos e cansados.

— Danny! — exclamou o Prefeito. -— Solucionou? Já pren-deu alguém?

— Não, Sr. Prefeito. Creio que estamos na pista, mas ainda é cedo para efetuar prisões.

— Quanto tempo ainda levará? — perguntou o Prefeito.— Tudo estará terminado dentro de algumas horas -— disse-

lhe o Comissário.— Não podemos esperar tanto, antes de dar a notícia à im-

prensa. Ficando nesse pé, seremos criticados por termos silenciado o caso. — Voltou-se para Thompson. — É melhor deixar sair assim mesmo — disse êle.

— Deixe que apareça.— Está bem, Johnny — disse Thompson, pegando o papel e

saindo.— Estou exausto — disse o Prefeito, bocejando. — Estive fa-

lando em reuniões políticas desde as quatro horas da tarde. Graças a Deus que amanhã não haverá discursos. Creio que é melhor ir para casa e ler os relatórios antes de dormir.

— Dizendo isto começou a retirar alguns papéis da escrivani-nha e colocá-los na sua grande pasta, e ao mesmo tempo falando:

— Quem foi, Danny? Quem matou Holcombe?— Ainda persiste um elemento de suposição em nossas idéias

— disse o Comissário.Johnny Connors sacudiu a cabeça com desapontamento, fe-

chou a pasta, colocou-a no chão, atravessou a sala, foi até o porta-chapéus, e vestiu o sobretudo e o chapéu. O Comissário levantou-se, também, pegou na pasta, como se a fosse levar para o Prefeito. Mas eu percebi que êle a estava examinando com cuidado, e depois de alguns segundos, pôs o dedo num buraquinho perto do fundo da pasta, numa das pontas, onde ficavam as pregas em foles. O

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Prefeito não deu pela coisa, porque estava ocupado em colocar ou-tro cigarro na piteira. Disse com impaciência:

— Bem, e quem é que a sua suposição escolheu como assas-sino?

— O senhor, Prefeito, — disse o Comissário.A princípio julguei não ter ouvido bem. Em seguida Johnny

Connors disse, muito calmo:— Você ficou louco, Danny?— Talvez — disse o Comissário, — Vou lhe dizer o que pen-

so a respeito deste crime, e então, se eu estiver enganado, poderá despedir-me e terá todo o direito de fazê-lo.

— Trata-se de uma brincadeira, não, Danny? — indagou o Prefeito, cheio de esperanças. — Mesmo que seja, é de muito mau gosto; estamos todos cansados e fora de nós, esta noite, portanto, vamos esquecer isto tudo e não falaremos mais no caso.

— Gostaria muito que fosse apenas uma brincadeira — disse o Comissário.

O rosto de Johnny ficou vermelho e êle disse:— Eu o despediria agora mesmo, se não me desse conta de

que você é um homem velho e cansado, e que não está completa-mente certo da responsabilidade do que está dizendo. Que diabo quer você dizer com esta bobagem?

— Tem razão — exclamou o Comissário. — Estou cansado e sou velho. Gostaria de ter-me demitido deste emprego há muito tempo. Mas, Sr. Prefeito, agora que já chegamos até aqui, sente-se e deixe-me explicar.

Johnny hesitou, olhou para o relógio e disse por fim:— Dar-lhe-ei cinco minutos — e sentou-se à escrivaninha.— Não demorarei muito. Há um pequeno risco de cinza de

cigarro no painel branco da porta, no escritório de Holcombe. Te-nho certeza de que foi feito pelo assassino, quando olhava para fora, para ver se a costa estava livre. Por um tempo eu julguei que deveria ter sido feito por um homem umas três polegadas mais alto do que eu ou o senhor. Depois lembrei-me da sua piteira, que o distingue dos outros. Segundo o modo como o senhor sempre a usa, a ponta do cigarro fica a três polegadas acima da sua boca. E naturalmente, estas piteiras são incômodas para usar na fresta

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de uma porta. Na verdade, seria quase impossível para um homem deixar uma marca daquelas, sem uma piteira, a menos que tentas-se deliberadamente fazê-lo.

— Meu Deus! — exclamou Johnny Connors. — E eu que pen-sei que você entendesse do seu negócio! Que espécie de policial é você? Isto é evidência?

— Não — concordou o Comissário — mas é sugestivo. Siga o meu pensamento e eu lhe darei evidência. Sabemos que a bala que matou Holcombe, saiu de um revólver munido de um silenciador. Assim equipada a arma fica grande demais para ser carregada num bolso ou num coldre. O assassino tinha que trazê-la escondida num invólucro grande, de qualquer espécie. Se Holcombe tivesse visto a arma, teria lutado, e não há sinais disso. Em vista disso, te-mos que supor que o assassino manteve o revólver escondido todo o tempo em que esteve com Holcombe. É possível que tenha atirado de dentro do próprio invólucro — que era uma pasta, segundo as minhas suspeitas. Foi por isto que não encontraram pólvora no rosto de Holcombe. Segundo eu penso, o assassino estava parado ao lado de Holcombe, com a boca do revólver a algumas polegadas da cabeça de Holcombe, e ao pretextar retirar alguns papeis da pasta, puxou o gatilho. Logo em seguida, um homem saiu apressa-damente do escritório de Holcombe. Não era um homem alto — e a pessoa que o viu pensou que poderia ter sido até uma mulher de slacks. Raros eão os homens que têm uma figura elegante, ou que usam roupas tão apertadas que façam lembrar, mesmo de leve, o corpo de uma mulher. Este homem levava qualquer coisa seme-lhante a uma pequena valisa, mas que, no caso, poderia ser uma pasta grande.

— E daí? — perguntou o Prefeito, olhando diretamente nos olhos do Comissário. — Você está perdendo tempo. Fêz uma acu-sação idiota. Prove, ou cale-se.

— Esta sua pasta grande — disse o Comissário — tem um buraquinho perto do fundo, bem onde deveria estar, caso um revól-ver fosse disparado de dentro dela.

O Prefeito riu, mas foi uma risada nervosa.— Um buraquinho na minha velha pasta — disse êle — e isto

me torna um assassino.

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— Não somente isto — continuou o Comissário. — Mas se examinarmos o interior da pasta e encontrarmos vestígios de pól-vora em volta do orifício, isto nos aproximaria mais, não é?

— Isto está indo muito longe — disse Johnny. — Minha pa-ciência tem limites. Dê-me a minha pasta. Vou para casa. Na qua-lidade de Prefeito, falando para o seu Comissário de Polícia, estou desapontado com você. Com toda esta conversa à-toa, você não sugeriu nem mesmo um motivo ou uma evidência. Amanhã trata-remos da sua demissão.

— Um momento — disse o Comissário. — O motivo. Isto atra-palhou-me, confesso. A não ser que se tratasse de um criminoso inveterado, o assassino poderia ser um homern desesperado. E o que levaria qualquer pessoa a tal desespero para matar Holcombe? Nada que eu pudesse imaginar tinha sentido, até que Babe pergun-tou se amanhã choveria sem a intervenção de Holcombe.

— E que tem isto agora a ver com tudo? Decididamente você ficou louco — disse o Prefeito.

— O senhor acreditou em Holcombe — prosseguiu o Comis-sário com firmeza. — Sabia que êle estava planejando voar ama-nhã, e que êle esperava fazer cair uma chuva prolongada. O senhor não podia suportar a idéia de ter chuva no Dia da Eleição, com as corridas paralisadas, cada voto valia muito, e com chuva a comis-são ficaria aborrecida. Uma chuvarada seria a sua ruína certa. Sua única esperança era ter muitos votos, e a chuva sempre mantém muitos eleitores longe das urnas.

— Seu idiota — disse Johnny, tornando-se furioso. — Pensa que eu seria capaz de cometer um crime por alguns milhares de votos? Julga que eu assassinaria um ótimo rapaz como Holcombe, ou qualquer outro, por política? Pensa que se eu tencionasse as-sassinar alguém, eu mesmo praticaria tal delito? Imagina que eu iria matar um homem na véspera das eleições, quando uma notícia má poderia arruinar-me? Você não diz coisa com coisa, Danny.

O Comissário conservou-se silencioso por uns instantes. De-pois falou, muito devagar:

— O senhor precisa vencer nesta eleição. Certas coisas ruins têm sido encobertas na sua administração. Caso vença a oposição, ela poderá desvendar alguns escândalos que o arruinariam.

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O Prefeito olhou para êk:— Você está de fato me acusando de assassino — disse êle,

como se não pudesse acreditar.— Holcombe era um problema para o senhor — continuou o

Comissário. — Sem dúvida pediu-lhe, gentilmente, que não voas-se amanhã. E depois, verificando que êle não ligava importância à sua eleição, e não queria suspender o seu trabalho pela cidade — achando-se apenas um cientista honesto, que tentava executar o que fora incumbido de fazer pelo povo. Por detrás daquela ma-neira amigável, êle tinha um ideal rígido e aferrado, que o senhor não esperava encontrar. Êle estava sendo pago para fazer chuva, portanto, toda a vez que havia bastante nuvens no céu, subia e espalhava gelo nelas — sem olhar para quem gostasse ou não. Pro-vavelmente êle lhe disse o mesmo que já dissera aos outros: que se uma vez começasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte, não teria mais fim. As nuvens estavam se aglomerando esta noite, assim, êle planejava voar amanhã para encher os reservatórios, e não deixaria que a política interferisse. Assim êle pensava, e deve ter sido isto o que êle disse, principalmente por não estar ao seu lado, politicamente.

— Continue — disse o Prefeito. — É uma boa história. Talvez possa se fazer na vida, escrevendo histórias de mistério, depois que fôr despedido.

O Comissário suspirou:— Holcombe estava esperando em seu escritório — talvez ti-

vessem pedido para que êle esperasse. O revólver foi para dentro da pasta. Tenho ódio só em pensar no estado de espírito que levou a pessoa a aprontar aquela arma, adaptando-lhe o silenciador. O edifício estava vazio, ou pelo menos, parecia. De qualquer forma o assassino tinha que se arriscar a ser visto. Estava desesperado. Talvez tenha feito uma última tentativa para persuadir Holcombe e então, nada conseguindo, alvejou-o.

— Já ouvi bastante — disse o Prefeito.— Creio que não — retrucou o Comissário. — Talvez esteja

interessado em saber que o assassino teve uma escapada muito mais curta do que pensou, porque um homem passou pela porta pouco antes que êle puxasse o gatilho. Depois o criminoso apa-

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nhou a cápsula vazia, apagou a luz, abriu a porta e olhou para fora. Foi aí que o cigarro, colocado numa longa piteira, deixou a marca. Creio que esta é a pior cena do crime, Sr. Prefeito — um assassino olhando pela porta, e usando a piteira da maneira habitual: num dos cantos da boca.

O Prefeito umedeceu os lábios, mas não disse nada. Olhava para o Comissário como se estivesse hipnotizado.

— O vestíbulo estava vazio — continuou o Comissário. — O criminoso limpou a maçaneta e o comutador da luz, deixou a sala e apressou-se a sair. Não percebeu que atrás dêle uma mulher apa-recera no corredor e o vira antes dêle dobrar a esquina do mesmo.

— Ela não me poderia ter visto — disse o Prefeito, e sua voz estava áspera pela primeira vez. — Eu não estava lá.

— Não? — perguntou o Comissário. — De toda a maneira, está é uma exposição crua de como o crime foi praticado, Sr. Pre-feito.

O Prefeito fêz uma profunda inspiraçâo, e quando falou, o seu antigo tom voltara-lhe à voz:

— É tempo de terminar com esta bobagem. Existe um erro fatal na sua bela história. Acontece que até saber da morte de Hol-combe, não estive na Prefeitura desde as quatro da tarde, quando falei numa sessão na cidade alta. Desde então estive sempre com outras pessoas. Cada minuto do meu tempo pode ser identificado. Não matei Holcombe, e se você fôr bastante louco para me exigir um álibi, poderei fazê-lo.

O Comissário aquiesceu:— Era isto o que eu queria ouvi-lo dizer. Acredito. Deu-me o

último argumento de que eu precisava.— Que quer dizer? — perguntou o Prefeito.— Uma das coisas que me amarraram neste caso — disse o

Comissário — á que o crime estava fora de cogitação para o senhor. Sempre o considerei um homem fundamentalmente bom e decente. Não podia imaginá-lo assassinando deliberadamente um homem bom, por um motivo egoísta.

— Bem, então. . . — disse o Prefeito.— Se o senhor não matou Holcombe — prosseguiu o Comis-

sário — então foi alguém cujo cigarro deixaria uma marca da altura

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do seu. É uma farra dentro da Prefeitura como Lloyd Thompson o imita em tudo: o modo como o senhor fuma, ou como se veste. De costas, êle tem a sua mesma aparência elegante. Êle utiliza tam-bém a sua pasta. Tinha um motivo muito mais poderoso do que o seu.

— Deixe o Tommy fora disto — disse o Prefeito. — Você não tem mais evidência contra êle do que tem contra mim.

O Comissário continuou, como se não tivesse ouvido:— A derrota nesta eleição teria sido talvez pior para Thomp-

son do que para o senhor. Considero que o senhor é um homem honesto, mas não é segredo para ninguém que anda rodeado por homens envolvidos em trapaças. A sua lealdade para com os ami-gos teria sido muito adequada a qualquer outro cargo, menos ao seu. Creio que agora ela o arruinou.

— Você acha. . . você pensa! — ironizou Johnny Connors. — Suspeitas e mais suspeitas. Onde estão os fatos?

— Sim — concordou o Comissário. — Ainda não temos bas-tante fatos. Ainda não tive tempo de descobrir se foi Thompson quem trouxe Holcombe para o seu serviço, mas creio que sabere-mos que êle era uma importante relação de Kreedlin. Ainda não tive tempo de descobrir o que Thompson e Kreedlin estavam querendo encobrir na construção do reservatório de Long Park, mas creio que descobrirei que era alguma coisa escandalosa e ao mesmo tempo perigosa para Thompson, bem como para a Companhia Kreedlin; alguma coisa que poderia mandá-los para a cadeia. Talvez não nos seja possível provar, mas minha suposição é de que foi Thomp-son quem telefonou para Holcombe, falando sobre o reservatório de Long Park, esta tarde, e tentou dissuadi-lo. Talvez tenha sido en-tão, quando Holcombe recusou-se a aceitar a pressão, que Thomp-son decidiu que êle devia morrer, antes que surgisse o escândalo. Este motivo passou-me pela cabeça, bem cedo. Mas eu não podia imaginar porque Thompson assassinaria Holcombe na véspera da eleição, quando isto poderia afetar as suas chances de ser reeleito, Sr. Prefeito. Não poderia esperar mais um dia, até que o senhor voltasse para o seu posto? Então aquela pergunta de Babe fêz-me lembrar de outro motivo, e que requeria ação imediata: caso cho-vesse amanhã, isso causaria a sua derrota.

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O Prefeito acendeu um cigarro, e sua mão estava trêmula.— Tommy esteve comigo na cidade toda a tarde.— Sem dúvida — prontificou-se o Comissário. —- O crime foi

cometido por volta da hora em que o senhor tinha ido para casa, a fim de trocar de roupa para a reunião desta noite. Creio que foi aí que Thompson voltou à Prefeitura, trazendo a sua pasta, e cometeu o assassinato. Com Holcombe fora do caminho, e não contando com uma chuva natural amanhã — e isto êle tinha que aguardar com ansiedade — êle pensava que o senhor venceria nas eleições. Na realidade, não supôs que a notícia do crime afetaria a confiança que os eleitores depositavam no senhor. Ao contrário, iria convertê-lo numa publicidade de última hora, e usá-lo como método para conquistar para o senhor a simpatia do povo. Uma vez que o se-nhor fosse reeleito, êle poderia recobrar-se no caso Kreedlin.

— Você não provou nada — disse Johnny Connorg.— Ainda encobrindo-o? Mesmo num crime? -— perguntou

o Comissário. — Eis como eu vejo Thompson depois do crime, Sr. Prefeito. Êle devia estar preocupado, sem saber o que fazer com a arma. Suspeito que a tenha conservado dentro da sua pasta du-rante toda a reunião desta noite. Andou com a pasta sempre agar-rada, mesmo quando foi até a sala fumar. Isso lhe parecia muito mais seguro do que esconder o revólver. Oh, Thompson foi inteli-gente: quem se atreveria a examinar a pasta do Prefeito, à procura da arma do crime? Se o senhor quisesse algum papel da pasta, êle apenas os alcançaria. Sem dúvida êle ainda trazia a pasta que continha a arma, debaixo do seu sobretudo, quando o senhor foi até ao escritório de Holcombe esta noite. Não posso crer que o se-nhor soubesse disto, então. Parecia dizer a verdade, quando pediu a imediata prisão do rato que matara Holcombe. Talvez Thompson só lhe tivesse confessado, depois que ficaram a sós, no seu escritó-rio. Talvez o senhor tivesse visto a arma dentro da pasta. Ou talvez êle lhe contasse voluntariamente o que tinha feito, porque contava com a sua lealdade pessoal para protegê-lo, e mesmo porque, nisto tudo está o seu próprio interesse. Êle sabia que se fosse preso, o escândalo o arrastaria com êle. E a primeira coisa que necessitava era um bom esconderijo para o revólver.

O rosto do Prefeito estava cinzento.

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— Tudo isto é uma rede de suposições. Onde está a sua pro-va?

— O revólver não está mais na pasta — disse o Comissário, olhando em volta do escritório — e Thompson não o estava carre-gando quando saiu do escritório há pouco. Far-lhe-ei uma proposta amigável. Dê a pasta a Babe, e dê-me as chaves, e deixe-nos revis-tar o seu escritório. Se não encontrarmos vestígios de pólvora quei-mada dentro da pasta, e se não encontrarmos a arma, confessarei que não posso provar nada, e pedirei demissão, e pronto.

— Por que deverei me submeter a isto? — perguntou o Prefei-to. — É um insulto ao meu escritório.

— O senhor pode recusar — disse o Comissário — mas en-tão terei que deixar Babe aqui, para ter a certeza de que o senhor não levará a pasta e o revólver, e direi aos rapazes que prendam Thompson, e consigam um mandado de busca. E se os repórteres me perguntarem por que estou pedindo uma ordem para revistar o seu escritório, terei que dar-lhes os motivos.

— Chantagem! — exclamou o Prefeito. Colocou outro cigarro na piteira e acendeu-o. Sua mão estava trêmula, mas ainda con-servava a piteira na mesma posição oblíqua.

— Danny — disse êle depois de alguns segundos — não me diga que você é outro Holcombe. Não me venha com uma porção de bobagens acerca do serviço público, nem do seu dever. Você me deve alguma coisa. Fiz de você o que é hoje. O partido tem que vencer amanhã. Você me deve lealdade, portanto, espero que não continue com isto. Você e eu estamos metidos em muita coisa. Lembre-se, se eu cair, você cairá também.

O Comissário não disse nada, só ficou olhando para êle com firmeza e daí a um instante Johnny Connors estendeu as mãos:

— Está bem — disse êle. — Você venceu. Não precisa procu-rar.

Abriu uma gaveta da sua grande escrivaninha, uma que ne-cessitava de duas chaves para abri-la, e retirou um Smith e Wes-son com um silenciador adaptado.

O Comissário levantou-se: —- Então é tudo. Diremos aos ra-pazes que prendam Thompson.

— Um momento — pediu.o Prefeito. — Isto me liquidará. Não

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tenho calma suficiente para aturar a sujeira que virá. Não há nada que eu possa fazer por Tommy — e Mrs. Connors está morta. . . — êle ínterrompeu-se e disse:

— Você foi sempre um bom amigo, Danny.O Comissário ficou ali parado, pensando.— Sou apenas um policial — disse êle por fim — e não é da

minha conta fazer julgamento morais, mas compreendo o que quer dizer.

Quando eu ia me aproximar da arma para apanhá-la, o Co-missário afastou-me.

— Obrigado, Danny.— Está bem — disse o Comissário. — Vamos, Babe.Comecei a fazer objeção, mas êle me interrompeu e dirigimo-

nos para a porta.— Adeus, Danny — disse o Prefeito.— Adeus, Johnny — disse o Comissário, e foi aquela a única

vez que eu o ouvi chamar o Prefeito de Johnny.Saímos para o vestíbulo, fechando a porta atrás de nós. O

Comissário ficou quieto, esfregando o queixo com a mão e pare-cendo muito triste. Depois de alguns segundos ouvimos um ruído como se fosse um espirro no escritório do Prefeito.

— Eu gostava dêle — disse o Comissário. — Mas agora gosto dêle mais do que nunca.

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Se você conhece esta, então nada feito. . .Quando MacKinlay Kantor veiu para Nova York em 1931 ou

1932 ainda mantinha no carro uma placa do Estado de Iowa, Uma vez, quando dirigia pelas proximidades do Holland Tunnel, seu carro foi detido por um pelotão inteiro de polícias de Jersey City que revis-taram tanto o carro como Mr. Kantor com uma meticulosidade que somente poderia ser encontrada num romance de ficção. Mr. Kantor perguntou-lhes se andavam a procura de um carro roubado. Não, mas a verdade é que andavam a procura de um homem, um homem perigoso. (Era naqueles dias que Dilinger e outros bandidos anda-vam às soltas pelo país afora).

Cerca de um ano mais tarde, MacKinlay Kantor se havia tor-nado um assíduo colaborador da revista “Detective Fiction Weekly”. Uma noite, quando saia de automóvel de Nova York, Mr. Kantor co-meteu uma pequena infração dos regulamentos do tráfego (e quem poderia censurar-lhe por isto depois de conhecer o tráfego de New Jersey?), fazendo com que lhe caísse em cima outro batalhão de po-lícias de Jersey City. Mais uma vez fizeram Mr. Kantor sair do carro e realizaram uma busca em regra.

Aconteceu, porém, que vários dos polícias eram os mesmos que haviam detido Mr. Kantor um ano antes, e quando “Mac” se identificou, os zelosos policiais, com suas memórias fotográficas, lembraram-se dele. Além disso, conheciam Mr. Kantor muito bem.

Como é fácil de imaginar, durante o ano anterior, haviam fica-do conhecendo Mr. Kantor através das páginas da revista. Todos, sem exceção, eram maníacos por histórias de detetives, e gostavam dos contos de Mr. Kantor. E foi assim que eles fizeram com que Mr. Kantor se detivesse no posto policial, e passasse ali toda a noite a

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ouvi-los contar-lhe suas experiências pessoais.Eis aqui uma destas histórias reais, contadas petos próprios

policiais, e que causou tanto sucesso entre os detetives de verda-de...

O POLICIAL “TICO-TICO”

MacKinlay Kantor

DOIS homens se detiveram em frente à porta de um aparta-mento barato, nos fundos do segundo piso de um edifício de uma rua de Acola, e tocaram a campanhia. Ambos traziam revólveres.

A três quadras de distância, num restaurante na esquina das ruas Lead e Bellman, o Inspetor Nick Glennan levantou-se e diri-giu-se para o balcão de cigarros, exibindo suas botinas de verniz e seus punhos duros de goma, e comprou um pacote de goma de mascar.

— Um dia e tanto — disse Nick Glennan à caixeira.— Formidável — concordou ela.— Porque — continuou Glennan — há uma espécie de prima-

vera num dia assim. Mas não vai durar muito. — Meteu o pacote de goma no bolso de dentro e alisou algumas rugas imaginárias do uniforme.

— Ora esta! — disse uma voz atrás dele.— E haverá algo de extraordinário num dia de primavera em

março? — perguntou outro.Glennan mudou de côr. Conhecia aquelas vozes. . . Conhecia

as duas.Voltou-se e lançou um olhar de desprezo para os dois homen-

zarrões que numa mesa saboreavam os últimos pedaços de um bife de filet mignon.

— Como vai o “Tico-tico?” — perguntou o maior dos dois. Era o irmão de Nick, o Sargento Dave Glennan do Departamento de In-vestigações. Era quinze anos mais velho do que Nick e vinte quilos mais pesado, com notável parecença a um bugio atarracado.

— O “Tico-tico” vai tão bem de saúde e tão satisfeito como se

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se exibisse no seu Cadillac. . .Dave deu uma risadinha.. Seu companheiro, Pete MacMahon,

sorriu também para o jovem e atirou-lhe amistosamente um pali-to.

-— Você sempre leva Dave a sério demais, garôto.— E por que êle não acaba com esta história de “Tico-tico?”

Êle também já usou os arreios, no seu tempo.— Mas não servindo no Jardim Zoológico — grunhiu Dave.— E o que há de mal no Jardim Zoológico? Você acha que não

há necessidade de proteção policial nos parques?— Há sim — concordou o irmão. — Afinal de contas a gente

nunca sabe as surpresas que os ursos podem pregar à gente. Po-dem fugir e morder alguém. E já uma vez foi uma velha que caiu de cabeça no lago. Além disso alguém poderá roubar a estátua do General Sherman de seu pedestal diante do aquário, um dia des-tes. E se algum fedelho se apresentar de nariz sujo, não se esqueça de assoá-lo. Está nos regulamentos. Pràticamente, é como uma postura municipal.

Mas, no edifício da rua Acola, alguém abriu a porta daquele apartamento barato, e um dos homens levantou a coronha do re-vólver e fê-la descer, depressa e com muita força.

Nick sacudiu os ombros e ajeitou-se dentro do uniforme.— Algum dia ainda vou mostrar p’ra vocês, narigudos, que

trabalhar no parque, como “Tico-tico”, é tão importante como o serviço que vocês fazem.

— Sim, qualquer dia destes. . . — concordou Dave de boa vontade. Bocejou e deu uma palmadinha na barriga arredonda-da. Nick pensou na grande cicatriz côr-de-rosa e proeminente que adornava aquele protuberante abdômen, e se sentiu um tanto en-vergonhado. Dave era um sujeito e tanto, não havia dúvida, e como irmão não poderia haver melhor. Mas êle, Nick, nem sempre podia evitar de aborrecer-se com as caçoadas do outro, que o tratava como criança.

Nick estava na polícia havia apenas seis meses. E não seria um “Tico-tico”, não trabalharia no parque a vida inteira. Dave tinha

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de saber disso. E só porque Dave era polícia havia doze anos, e ti-nha sido ferido, promovido e condecorado, e meio morto e apareci-do nos jornais, não era motivo para que fizesse troça dele, e assim, em público ainda por cima.. .

— Vamos andando, Dave? —— perguntou MacMahon, olhan-do para o relógio.

Pagaram a conta e se dirigiram para a porta. Nick ajustou o boné, espanou com os dedos um microscópico átomo de poeira do uniforme e seguiu-os.

— A que horas você entra? — perguntou MacMahon a Nick Glennan.

— Daqui a hora e meia.Dave Glennan abriu a bocarra, num sorriso divertido.— Mas que devoção ao dever! Você poderia estar muito bem

em casa, com Alice, e já anda a estas horas por aqui, com os arreios em cima, e pronto para uma inspeção.

— Alice gosta de me ver cuidar do serviço — disse Nick alti-vamente.

— Mas isto é o mesmo que trabalhar uma hora e meia a mais, de graça. — Dave cortou com os dentes a extremidade do charuto, e deu uma palmada no ombro do irmão. Nick tornou a lançar-lhe um olhar entre zangado e desconfiado. — Meu filho, — disse-lhe Dave — você é um polícia e tanto. Olha só estes punhos, Pete! Es-tão como espelhos.

O jovem Glennan tentou vencer seu crescente aborrecimen-to.

— Mas o que é que vocês dois vêm de extraordinário? — per-guntou êle.

— A magreza um tanto suspeita. Mas espera até que chegues aos trinta e oito. Então não caminharás mais, vais rolar. Todos os Glennan juntam carne para aquentar-lhes os ossos.

— Mas comigo não vai se dar isto — assegurou-lhe Nick.Os dois detetives dobraram em direção à rua Bellman, e Nick

tomou a direção oposta, onde o parque mostrava seus arbustos, ao sol do meio dia, a uma quadra mais adiante.

— Dá um adeusinho a Alice por mim. Qualquer noite destas eu apareço por lá para comer uma sopinha feita por ela.

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— Espero que ela prepare a sopa para você com óleo de ríci-no. Até logo, MacMahon. Até logo, gordinho.

—- Não vás te perder no parque, “Tico-tíco”.Nick Glennan não se dignou a retrucar a tais conselhos. Ca-

minhou pela rua afora, magoado e com seu orgulho ferido. “Tico-tico”! Ora, aqueles dois montes de banha! Disse de si para si que de qualquer modo êle bem desprezava as linhas do corpo de qualquer um deles, desde os grandes pés chatos, e continuando pelas proe-minentes até as cabeças carecas.

Ora, só porque Dave era sargento e usava roupas civis e teve seu retrato nos jornais. . . Dave bem lhe parecia um colchão com pernas e braços.

Nick continuou a caminhar em direção ao parque, o boné inclinado um pouco para um lado, os braços balançando-se com elegância, os passos leves e ligeiros. Quando passava pelos carros estacionados junto ao cordão da calçada, dava uma olhadela nos números deles. Afinal de contas, o seguro morreu de velho, e algum dêles poderia ser um carro roubado, constante da última lista que lhe havia sido fornecida, e que êle recordava mentalmente.

Embora somente entrasse de serviço às duas horas da tarde, e tivesse uma hora e meia de descanço, o entusiasmo pelo serviço o afastara do pequenino apartamento onde êle e Alice passavam o seu segundo ano de casados. E aquilo êle fazia diariamente. Gosta-va de andar fardado. Gostava de estar de serviço, mesmo antes da hora. Os Glennan eram assim. Houve um avô de cara avermelhada que chegou mesmo a meter-se no meio de uma horda de anarquis-tas, há muito tempo. O pai de Níck e Dave estava agora oficialmen-te aposentado, mas algo mais que a necessidade fazia com que se metesse num fardamento de polícia de um banco particular, embo-ra seu cabelo já fosse tão branco como algodão.

Nick mantinha o queixo elevado. Seus olhos viam tudo. e achavam tudo em ordem: o céu muito azul do fim do verão, o sol quente despejando-se sobre as paredes de tijolos nus, a caravana de criança e suas amas que se dirigiam para o parque. Com os de-dos bateu no revólver azulado que pendia de encontro ao quadril, dentro do coldre polido. . . “Tico-tico”, hein! Eles ainda veriam. . .

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O homem de casaco marrom segurava a mulher, torcendo-lhe os braços, enquanto ela se debatia.

— Amarra-a, Jack. Depois trataremos de abrir aqui por esta dobradiça.

— Vocês podem matar-me — soluçou a mulher por entre os dedos que lhe comprimiam a boca, — Podem matar-me... matar-me...

Pete MacMahon e Dave Glennan chegaram à interceção das ruas Acola e Bellman, e voltaram-se para a direita.

— Qual é o número, Dave?— 3419.— Sim, e que há de novo?— Apperson disse que devemos observá-la. Apartamento

Doze. Alguém telefonou e disse que havia algo estranho ali.—- Teria sido algum da quadrilha?— Não. Apenas um vizinho. Nada de mais, pois do contrário

eu teria trazido uma patrulha. Apperson disse-me que se eu andas-se por aqui nos próximos dias, que desse uma olhadela. Pois já está em tempo, e andamos por aqui, de sorte que não seria de mais se a gente desse uma espiada.

MacMahon cuspiu fora um pedaço meio mascado de charu-to:

— Êste negócio devia ficar afeto à delegacia do distrito.— É verdade; e vais ver que tudo isto resulta em nada.— Acho que é isto mesmo — concordou Pete. — Lá está. Deve

ser aquela casa lá, do outro lado da rua.Caminharam por detrás de um carro que se encontrava esta-

cionado e se aproximaram da entrada da frente do número 3419 da rua Acola. Era um edifício pobre e de aparência feia, de uns cinco anos, mas já manchado e de reboco quebrado nos cantos. Dave Glennan não teve dúvidas de que havia de cheirar a uma mistura de gin, couve-flor, e panos molhados, logo que meteu o pé pára o lado de dentro. Meio pensão, meio casa de apartamento, sua presença prejudicava toda a fileira de pequenos e sóbrios edifícios da vizinhança.

-— Parece um buraco de ratos — murmurou MacMahon.

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— Pelo menos tem o cheiro. É, parece. E é mesmo um buraco de ratos — grunhiu Dave.

Avançaram para o vestíbulo, empurraram para um lado um sujo carro de criança e um velocípede, e examinaram a engordura-da caixa de endereços e campanhias.

— Apartamento Doze — leu Glennan. — Frank R. Johnson.— Devia ser Jones ou Smith — observou MacMahon. — Os

Johnsons estão ficando muito comuns hoje em dia.— Bem, provavelmente é um vagabundo que bate na mulher,

ou coisa parecida — o volumoso polegar avançou para comprimir a campanhia, depois hesitou. — Os vizinhos estão sempre se me-tendo quando há encrencas de família — filosofou êle. — Provavel-mente foi assim que a coisa veiu a furo. Mas de qualquer modo, não gosto da aparência disto aqui. Experimenta aquela porta do vestíbulo.

Pete torceu o trinco.— Fechada — informou.— Não vou tocar a campanhia — disse Dave, surpreso de sua

própria obstinação. — Vamos pelos fundos. . .— Aí vem alguém — disse MacMahon, dando um passo para

trás quando uma mulher de meia-idade, com um cesto de com-pras abriu a porta pelo lado de dentro. A manopla de MacMahon segurou a porta, mantendo-a aberta quando a mulher passava. A mulher voltou-se e soltou uma exclamação de surpresa.

— Da polícia — informou simplesmente MacMahon.A mulher murmurou alguma coisa em italiano, e sacudiu a

cabeça.— Vá andando, dona — ordenou Dave.— Há alguma coisa com ela? — perguntou MacMahon.— Nada. Uma velhota dos confins da Sicília. E não há dúvida

de que não se chama Johnson.— Bem — disse Pete — de qualquer modo nos abriu a porta.— Eu me encarrego da porta dos fundos — disse Glennan.

Uma certa suspeita começava a nascer-lhe no cérebro; êle não acreditava em premonições, e na realidade nada sabia a respeito disso. Mas havia sido guardião da segurança pública nos últimos doze anos, e aquele edifício não lhe cheirava bem. Nem tampouco o

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nome de Frank R. Johnson, junto à campanhia.Em tais circunstâncias, sabia que um criminoso encurralado,

surpreendido quando o chamavam pela porta da frente, geralmen-te tenta fugir pelos fundos. Com sua inclinação natural, escolheu para si o posto de perigo.

— Você pelos fundos, e eu na porta da frente — recitou Mac-Mahon. Tirou o relógio. — Quanto tempo?

— Tenho de encontrar a escada dos fundos e me postar junto à porta — disse Dave. — Pelo menos cinco minutos. Sete será me-lhor; sete minutos. Então você bate e dá um adeusinho p’ra eles na porta da frente.

— Tenho a impressão que você vai ter trabalho com o tal sujeito.

Glennan deu de ombros e olhou para o relógio.— Pois a uma e dez você dá um toque na campanhia.

A mulher de cabelos côr de palha estava amarrada numa cadeira, uma mordaça na boca, e os olhos arregalados. Quando mudava a direção do olhar, voltava-o para a pilha feita pelo lado de dentro da porta do apartamento. . .

Jack esvaziou a gaveta de uma escrivaninha no meio do ta-pete, mexendo rapidamente no meio das coisas que caíram da gaveta.

— É o diabo. Êles o esconderam em alguma parte, Spando.O homem de sobretudo marrom dirigiu-se à porta da cozi-

nha. Nos cantos da boca tinha rugas brancas, feias.— Então ela terá de falar. De qualquer modo eu gostaria de

saber onde estava aquele garôto.— Eu ouvi a porta da cozinha fechar-se pouco antes dela

entrar.— Era ela. Ela fechou a porta, quando batemos em Al.— Quando você bateu, isto sim. Não devia ter batido tão for-

te.— Mas como poderia saber que êle tinha cabeça de vidro?— Mas teria sido melhor, agora temos um cadáver nas

mãos.— E haverá dois, se ela não falar. . . e se não falar depressa.

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O guarda Nicholas Glennan caminhava pelo largo passeio do lado oeste, que conduzia justamente ao coração do parque. Ca-minhar não é bem o têrmo. O guarda Nicholas Glennan desfilava em parada. Não estava, entretanto, com um uniforme por demais decorativo, nem estava inútil. Era jovem e bonito, e de porte aus-tero, e naquele momento, como em todos os outros, parecia-lhe que Deus havia sido bondoso para com êle, deixando-o viver e ser guarda civil. Sim, mesmo que fosse um simples guarda de parque, um “Tico-tico”.

Dave. . . grandalhão. . . gordo. . . Bah. . .Por toda a parte garotos armaram brigas: garotos já cresci-

dos, às dúzias, formando grupos e quadrilhas. Garotos em bicicle-tas, zigue-zagueando perigosamente por entre os lagos e piscinas; meninas com vestidos de cores vivas. E regimentos de bebês, todos muito bem acomodados em seus carrinhos. Quando Nick olhava para aquelas crianças, aparecia em seu rosto uma expressão que era mais do que simpatia, ou prazer pelo serviço, ou entusiasmo: Algo mais elevado e também um pouco triste.

Êle e Alice sempre haviam querido ter um pequeno. Mais de um. Mas agora estavam casados havia quase dois anos e o garoto que tanto queria nem sequer havia sugerido a sua vinda. . . Alice chorava, às vezes. Queria um menino, e tinha a intenção e chamá-lo Nick. Aliás, desde que se casaram que ela planejava pôr ao filho o nome de Nick. Bem, mas dois anos não são ainda uma vida. Afinal de contas ainda podia vir.

Êle se conformava com aquela vã esperança. Pois não podia esquecer-se do que lhe havia dito o velho Dr. Fogarty, que êle ja-mais poderia ser pai. A vida era coisa engraçada. Não havia razões para coisas como esta... Dave era solteiro, e talvez assim nem hou-vesse mais nenhum Glennan para ser polícia.

O quartel da polícia do parque ficava situado mais para o norte, mas Nick Glennan caminhou na direção do sul. Tinha a in-tenção de atravessar o Jardim Zoológico, contornar a ampla curva da lagoa, e por aí chegar ao quartel na hora.

Naturalmente haveria os grupos de sempre, diante das jaulas dos ursos, tanto no passeio de cima como de baixo, Nick desceu al-

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guns degraus e passou para o passeio inferior que era por um lado flanqueado pelas jaulas dos lobos e raposas. Como cheirava muito mal por lá, não se formavam grupos de curiosos.

O garotinho estava metido no meio de uma touceira, no outro lado do canteiro, quando Glennan o viu. Era ainda muito pequeno, vestia um macacão azul e uma suéter barata; não trazia chapéu e evidentemente o mundo era mau para êle. Chorava com uma vozi-nha monótona, meio sufocada.

Os braços compridos de Glennan estenderam-se na direção do pequeno e retiraram-no da touceira.

— Que é isto, Buddy? — perguntou.Os olhos cheios de lágrimas do pequeno brilharam de admi-

ração. Nick tomou a criança no colo.-— Como é que você sabe o meu nome, polícia? — perguntou

a vozinha quebrada.— Bem, eu mesmo nem sabia. Então tu te chamas Buddy,

hein? Bonito nome. Estás perdido?-— Eu mesmo vim pra cá — disse Buddy, soluçando forte-

mente.— Aposto que tua mamãe não sabe disso — sorriu Nick.Buddy sacudiu a cabeça, num gesto sério.— Não. Ela não sabe. Ela foi embora, uma vez. Os homens

levaram ela numa caixa grande.— Ah, sim? — resmungou Glennan, embaraçado. — Bem,

mas aposto que o teu pai também não sabe que vieste para cá.— Não tenho pai, não. Tenho um boneco grande, chamado

Popeye.— Sim, — disse Nick, — e estás também com as mãos frias.

Mas onde é que moras, Buddy.O rapazinho apontou na direção da entrada da rua Bellman.— Moro lá. Deve ser muito longe daqui. Vi um homem dar na

cabeça do tio Al, e disparei para o Jardim Zoológico.Aquela informação perturbou a serenidade de Glennan. Es-

queceu-se de que um menino perdido devia ser levado imediata-mente para o quartel da polícia do parque. Esqueceu-se de que ainda não estava de serviço. . . o que aliás não tinha nenhuma importância. Esqueceu-se mesmo das mãos frias de Buddy.

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—- Então, — perguntou Nick — viste um homem dar uma pancada na cabeça do tio Al? Quando? E quem é o tio Al?

— Êle é ruim — disse o menino. — Me surra. Olhe aqui.Havia uma mancha roxa no rostinho do pequeno.— Ah, sim? — fez Nick, suavemente. — Então êle te bateu,

hein? Quando?— Umas seis vezes, ou dez, ou quatro vezes. A tia Ida chorou.

Eu gosto da tia Ida. Mas não gosto do velho tio Al. Eu gostava que a mamãe viesse de volta, daquela caixa grande.

Glennan murmurou, mais para si mesmo:— Pudera! É claro que havias de gostar. — Nick Glennan

pigarreou, sorriu e sacudiu o garotinho nos braços. — Olha aqui — disse-lhe êle. — Goma de mascar! — Com alguma dificuldade conseguiu tirar o pacote de goma de dentro do bolso da túnica, e Buddy agarrou-o logo com a mãozínha suja.

— Agora escuta aqui, rapaz — disse Nick, olhando-o com se-riedade. — Tu sabes que os polícias gostam sempre de saber como é esta história de homens que dão pancada na cabeca dos outros, não é? Que é que sabes a respeito deste tal que deu no tio Al? Afinal de contas quem é?

— Ê um homem grande. Não gosto do jeito dele... Gosto de goma.

Caminhou pela alamêda com o trêmulo rapazinho nos bra-ços, Glennan foi se informando a respeito daquela história. Buddy, pelo que parecia, morava num edifício muito grande. Estava brin-cando com seu boneco Popeye na escada, e estava muito quietí-nho, quando viu os homens tocarem a campanhia da porta do seu apartamento. Parece que o garoto, num lugar meio escondido da escada pôde observar sem ser visto. O tío Al abriu a porta, e um dos homens desferiu-lhe um golpe na cabeça, derrubando-o junto a porta.

De qualquer modo, Buddy não ficou mais ali para ver o que acontecera depois que a porta se fechara, com a entrada dos dois homens. Buddy correra para o Jardim Zoológico. Tia Ida já o trou-xera uma vez ao Jardim Zoológico e êle conhecia o caminho. Fica-va, pensava o garoto, a uns cem quilômetros de distância da sua casa, ou talvez a seis, ou mesmo a dez. E êle gostava mesmo era de

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goma de mascar.— Sim — concordou o guarda Glennan, abstratamente. —

Goma de mascar é uma coisa boa.Estavam agora no passeio lateral do parque, e quando o guar-

da Glennan levantou a mão, um táxi se deteve rapidamente junto ao cordão do passeio.

Nick suspendeu a criança em direção à porta aberta.— Escute aqui, seu guarda, — disse o chofer — agora mesmo

tenho um chamado. . .—- Claro, — interrompeu Glennan, — e foi este o chamado.

Torne a direção oeste, para a rua Bellman. Não vá muito depres-sa... nem muito devagar. — Subiu no carro e se colocou ao lado do garoto.

— É um carro e tanto — disse Buddy.— É verdade — concordou Glennan, pondo o garoto sentado

sobre o joelho, quando o carro passava pelas árvores da avenida. — Vamos ver agora, Buddy, se tu sabes mesmo onde fica a tua casa. Quando vieste pra cá atravessaste uma rua?

— Sim — respondeu Buddy — mas eu olhei antes p’ros la-dos.

Glennan disse então ao chofer:— Continue, então. Atravesse a rua Lead.— O caminho é este — disse Buddy. — A gente vai por aqui.

Sei ou não sei o caminho para o Jardim Zoológico? — e os olhinhos cinzentos olharam sérios para o polícia. — Mas se nós formos para casa, voltamos outra vez para o parque?

— Claro que voltamos. Mas passaste também por esta esqui-na, hein?

— Por aqui mesmo — o dedinho sujo apontou na direção da rua Acola. — Mas não gosto de tio Al. Gosto mais de você.

Glennan assentiu com um gesto de cabeça, e acrescentou:— E de goma de mascar, não?— Sim, — respondeu Buddy, sinceramente, — de goma de

mascar também.

Spando olhava para Ida Carrier, aliás Irene McCoy, aliás Ida Johnson. Sua boca torceu-se com desprezo quando passou

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os olhos pelo corpo caído do homem, Albert Carrier, aliás Lutero McCoy, aliás Franck R. Johnson. Voltou-se então para a mulher amarrada na cadeira.

— Êle se apagou, como uma vela — disse. -— Bateu a bota, compreende? Liquidamos com êle. Que diabo! o homem tinha a cabeça mais mole que uma casca de ôvo. Agora você vai dizer onde está a bolada, e vai falar ligeiro, está ouvindo? Vocês são dois ta-peadores...

Jack Novack afrouxou a mordaça na boca machucada de Ida. A resposta veio então, raivosa: — Eu ainda vou ver vocês dois mor-rerem como ratos. . .

— Pode ser — riu Spando. — Tira os sapatos dela, Jack. — Que tal um cigarrinho na sola do pé, hein? — acendeu um cigarro e inclinou-se. O homem não estava blefando. A expressão do seu rosto era a de um torturador num calabouço medieval.

A mulher soluçou.— Ah! meu Deus. Não posso... não adianta — o cotovelo,

amarrado, tentou mover-se grotescamente. — Está lá. Naquele aquecedor. É ôco. Al parafusou aquilo no chão. Tirando a tábua detrás a gente abre. Está lá dentro, ainda na pasta.

— Todo? — Havia vinte e seis mil na pasta do pagador da companhia.

— Al tirou dois mil. E eu tirei um pouco, também, quando a coisa andava ruim. O resto está lá — a mulher começou a chorar, com voz rouca.

Spando deu uma risadinha. Dirigiu-se à cozinha em busca de uma chave de fenda, e voltou, começando a afrouxar os parafusos do assoalho enquanto Jack puxava a estufa para cima. O aparelho desprendeu-se com um baque seco, e Spando começou a examinar a tábua que o fechava pela parte de trás.

No corredor, acariciando com a mão o seu grande relógio de bolso, Pete MacMahon ouviu o rumor de vozes. Não podia perceber as palavras, mas somente aquele rumor de vozes excitadas. O pon-teiro dos minutos alcançou o número dez do mostrador, justamen-te quando o aquecedor desprendeu-se lá dentro, com ruído.

Pete tornou a colocar o relógio no bolso, e premiu o botão da campanhia ao lado da porta.

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Spando moveu-se rapidamente pela sala colocando-se ao lado de Ida Carrier. Através do bolso do casaco marrom, o cano duro de uma pistola encostava à cabeça da mulher.

— Pergunta quem é — comandou em voz baixa.Os dedos de MacMahon bateram na almofada da porta.— Quem é? — perguntou uma voz que poderia ter sido a Ida

Carrier.— É da polícia — disse Pete MacMahon.Os olhinhos de Spando como que sorriram:— Diga-lhe que já vai abrir — murmurou.— Já vou abrir.Jack Novack tirou sua pistola automática e apontou para

Ida, de uma posição abrigada. Com uma das mãos no bolso, Span-do dirigiu-se calmamente para a porta, desprendeu a corrente do “pega-ladrão” e abriu rapidamente a porta.

MacMahon encarou-o admirado. Conhecia aquela cara, mas não teve tempo. Spando não lhe deu muito tempo. Meteu-lhe duas balas através do bolso do casaco. Pete cambaleou contra a porta que ficava em frente, do outro lado do corredor e a pistola de Span-do continuou a funcionar. Pete era um osso duro, mesmo gordo assim, e levou bastante tempo para morrer.

Os joelhos começaram a curvar-se e o sangue saltou-lhe da boca e do nariz, mas, apesar de tudo, conseguiu tirar o revólver e puxar o gatilho antes de cair, de bruços. A bala atravessou a mão de Spando e foi atingir Ida Carrier, que se encontrava justamen-te atrás dele. Ela não chegou mesmo a ficar sabendo o que ocor-ria. Tudo foi muito rápido, e surpreendente. A cabeça caiu-se para diante, Ida soltou um pequeno gemido, débil como um lamento.

A porta fechou-se com violência.Spando sacudiu a mão que sangrava. Soltava imprecações e

seus olhos giravam nas órbitas.— A bala acertou nela — exclamou Novack. — Acertou

nela...— Bem — disse Spando. — Muito bem. Agora não poderá

dizer nada. Segura aquela pasta.Inclinou-se sobre a mesa, fêz saltar o pente vaziu da pistola e

colocou outra carga. Seu casaco estava completamente manchado

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de sangue.Dave Glennan batia na porta dos fundos. Somente então êle

compreendera, pois os estampidos da pistola de grosso calibre ain-da ressoavam em seus ouvidos. Dave agarrou uma pesada lata de lixo e batia com ela de encontro à porta, enquanto com a mão es-querda continuava a empunhar o revólver.

Da porta da cozinha Novack disparou sobre êle, para matar. Tinha agora nas mãos uma pasta cheia de dinheiro e estava an-sioso por ver-se livre daquela incômoda montanha de carne que se encontrava em seu caminho, de maneira que Spando pudesse descer pela escada dos fundos. Poderia muito bem haver reforços da polícia na frente.

A bala atravessou a lata de lixo e raspou na ilharga de Dave.— Chega — exclamou este. — Larguem as armas ou então

eu. . .Dois tiros soaram, como resposta.Glennan então atirou também. O primeiro tiro atingiu a porta

logo acima da cabeça de Novack, que retrocedeu. Então o corpulen-to policial avançou, mantendo o seu inútil escudo, e mandou para frente mais um mensageiro sob a forma de uma carga de chumbo.

A porta da cozinha fechou-se por um momento, e isto deu a Spando á oportunidade que desejava. Jack continuava atirando, da entrada, mas Spando passara para a despensa, onde havia uma pequena janela, pelas costas de Dave, e foi fácil meter uma bala entre os ombros do detetive. Dave caiu junto à soleira da porta, com a lata de lixo e tudo.

— Pela frente — gritou Novack para seu companheiro ferido. — Nosso carro está lá. Não há mais polícias lá embaixo, porque senão já estariam aqui.

— Então não sei? — rosnou Spando, passando por sobre o corpo, de Pete atravessado na porta da frente. Embaixo uma mu-lher soltava gritos enquanto gente amedrontada corria escadas abaixo.

— Mrs. Franchetti — gritava uma menina. — Mrs. Franchet-ti, chame a polícia.

— Saia do caminho! — gritou Novack, e com um empurrão atirou a garota para fora do corredor. Spando deixou um rastro de

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sangue, contorcendo-se de dor enquanto corria.Os dois chegaram ao vestíbulo do edifício justamente no mo-

mento em que o guarda Nicholas Glennan saltava de um táxi ama-relo. Já ao dobrar a esquina ouvira a gritaria. Mrs. Franchetti, de-bruçada numa janela do segundo andar gritava para todo o mundo o que estava acontecendo.

Nick era apenas um “Tico-tico”, um polícia do parque, e natu-ralmente alheio ao caso. Aquilo tudo acontecera tão rapidamente! Mas seu rosto tomara uma expressão séria; empalidecera e seu olhar era duro. — Desça! —- ordenou a Buddy, e saltou pela porta aberta do táxi. O chofer levantou as duas mãos e sumiu-se atrás do guidom.

Spando e Novack saíram correndo do vestíbulo para topar cara a cara com Nick Glennan. Viram a odiada sarja caqui do uni-forme e a estrela brilhante. E o guarda estava justamente tirando o revólver.

— Toma conta deste! — gritou Spando.Novack começou a atirar, mas Nick avançava muito depres-

sa. Novack tinha o hábito de fazer pontaria baixa, um hábito muito ruim. Um pedaço de fazenda saltou da aba da túnica de Glennan, mas o seu punho já atingira Novack no queixo. E quando este caiu, chocou-se em Spando, e a bala dirigida contra o coração de Nick Glennan bateu contra o concreto do pavimento.

O homem do casaco marrom ensangüentado soltou um grito que era ao mesmo tempo um gemido e uma imprecação. Êle e Nick Glennan estavam agora a dois metros de distância, com as armas disparando ininterruptamente. Nick pensou que alguém chegara por trás e lhe desferira uma cacetada no quadril; alguém também lhe atirara um tijolo sobre o ombro esquerdo.

Mas êle estava muito ocupado em meter seis azeitonas de chumbo no corpo de Spando e não entregou os pontos enquanto não tivesse realizado tal coisa. Quando isto aconteceu, Nick Glen-nan deixou-se cair sentado no chão, tornou a carregar seu revólver com a mão direita, mantendo o cano na direção da cabeça de Jack Novack até que de dentro de um carro da patrulha policial alguém lhe gritasse:

— O. K. Agora deixe a coisa conosco. . .

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Sentia-se como que aliviado e tinha até vontade de rir, e pe-diu que não assustassem Alice quando lhe telefonassem, e então puzeram-no deitado sobre um tapete, dentro do edifício, até que uma uivante ambulância chegasse.

Trouxeram também, de dentro da casa, uma coisa enorme e gorda que se sacudia e soltava pragas. Virou o rosto e encarou o irmão, Dave.

— Estou mais ou menos — informou. — Onde está Pete?— Fizeram o serviço nele — murmurou o Sargento Dave

Glennan. — Morreu. . . Mas. . . estão dizendo que você liquidou a dupla...

— Um só — respondeu-lhe Nick — mas derrubei o outro, e de qualquer modo não escapa. Quem eram?

— Um deles era Jack Novack — informou Dave — e acho que o outro deve ser Micky Spando. Sempre achávamos que foram eles que fizeram o serviço no pagador da Packing American. . . Lá em cima ficaram um homem e uma mulher mortos. Acho que deve ser toda a troupe.

— Um deles trazia uma pasta.— Por ter sido por causa de uma trampolinagem lá entre eles,

que brigaram por causa do roubo.Uma mulher curvou-se sobre Nick Glennan e murmurou:— Mister, aquele garotinho no táxi. . . A tia e o tio dele. . .

estão mortos, no décimo segundo.— Quem é? — perguntou Dave.Os médicos entraram c começaram a examiná-los. Do lado

de fora, começaram a soar sirenas por toda a parte. Nick girou a cabeça, de maneira a poder sorrir para Dave:

— Um garotinho perdido, no parque. Êle me disse qualquer coisa e eu vim cair aqui nesta enrascada.

— “Tico-tico”! — disse suavemente Dave, e fechou os olhos. — Bah! Um garoto perdido no parque... , Deus meu! — e então, voltando-se para o médico: — Que é que o senhor acha do furo, doutor? Será que estou. . . liquidado?

— Deixe-se disso, homem — atalhou o doutor. — O chumbi-nho está aí dentro, no peito. P’ra liquidar você seria preciso cortar o coração pela metade.

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Uma mulher segurava Buddy no colo, enquanto Dave e Nick eram levados, nas padiolas.

— Escuta, Dave -— disse Nick, apontando para o garoto. — Aquele é o pequeno. Alô, Buddy!

— Ouvi os tiros — disse Buddy, — Que barulhão!Os vizinhos aproximavam-se do pequeno, lamentando a si-

tuação:— Ora, o coitadinho. . . Sem ninguém no mundo.— Sem ninguém? Vocês vão ver — disse-lhes o guarda Nick

Glennan, — esperem até que eu fique bom — e, voltando-se para Buddy: — Nós vamos passear bastante no Jardim Zoológico, hein, Buddy?

Dave sacudiu a cabeça, ao ouvir isto, e murmurou:— No Jardim Zoológico... Bah... o “Tico-tico”!— Mas tão duro de roer quanto você — disse-lhe Nick, rindo.

E os dois estenderam as mãos, que, unidas formaram uma ponte entre as duas padiolas.

As ambulâncias que os levaram afastaram-se, uivando.

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IN VINO VERITAS

Lawrence G. Blochman

O GORDO xerife tirou os pés de cima da mesa e fitou curio-samente o homenzinho de óculos e de atitudes corretas que se postava diante de si.

— O senhor não tem absolutamente a aparência de um po-licial, Dr. Belling — disse êle. — Nem mesmo de um policial dos Estados da costa do Atlântico.

O Dr. Belling sorriu.— Para falar a verdade — explicou — fui designado pela po-

lícia estadual especialmente para este caso. Em realidade sou pro-fessor de viticultura da Escola Agrícola, e a polícia julgou que meus conhecimentos especiais poderiam ser de utilidade no caso Tolman. Diga-me agora o que sabe o senhor a, respeito de Henry Tolman.

— Bem. . . — hesitou o xerife. — Toda a gente por aqui natu-ralmente conhecia o Velho Tolman — disse êle. — E conhecíamos Henry, o filho dele, quando era apenas um garoto. Mas quando Henry começou a crescer estava fora daqui a maior parte do tempo, no colégio. Então, quando fêz vinte e um anos, foi mandado para a Europa para aprender o negócio de vinhos na França e na Itália. Três anos depois o velho morreu e deixou a Henry estes vinhedos. Henry voltou para a Califórnia seis meses depois de lhe têrmos telegrafado. Usava uma barba meio ruiva — parece que todos os rapazes americanos que passam uns tempos na Europa voltam de lá com barbas. Era muito natural que êle nos parecesse diferente, mesmo que não fizesse mais de três anos desde a última vez que o

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vimos. O que é que faz com que o senhor julgue que se trata de um impostor, Dr. Belling?

— Se êle não fôr um impostor, pode bem ser um assassi-no — replicou o Dr. Belling. — Faz poucas semanas, a polícia de Nova York encontrou um esqueleto nos matos situados a uns trinta quilômetros dá cidade. Evidentemente o esqueleto já se achava lá havia vários anos e os poucos fragmentos de roupa e outros restos não foram suficientes para estabelecer a identidade do morto. Não havia maneira alguma de identificar-se mas o caso é que, dentro da caixa craniana havia uma bala. A Delegacia de Desaparecidos informou que o esqueleto poderia ser de um malandro e ex-contra-bandista de bebidas chamado Rusty Hull, que havia desaparecido seis anos antes. Hull não tinha prontuário policial, de forma que a polícia não podia se basear senão na sua altura aproximada e na cór dos cabelos, o que, aliás, combinava muito bem com os dados de Henry Tolman, segundo descobri depois. A polícia voltou aos matos onde o esqueleto fora achado, e a uma centena de metros do local em que os restos haviam sido encontrados achou um relógio de ouro com a seguinte gravação: A Henry Tolman, no dia de seu vigésimo-primeiro aniversário.

Continuando suas investigações, a polícia descobriu que Tol-man e Rusty Hull haviam sido vistos juntos em Nova York. pou-co antes de Hull haver desaparecido. Tal fato era perfeitamente natural, uma vez que Hull tinha muitas ligações com fabricantes de vinho e que datavam dos tempos da Lei Sêca. Era possível que Tolman tivesse matado Hull e deixado cair o relógio quando escon-dia o cadáver no mato. Muito mais provável, entretanto, é que Hull tivesse assassinado Tolman a fim de apresentar-se como o herdeiro de um rico proprietário de vinhedos, e que o relógio tivesse caído enquanto carregava o corpo de Tolman de um automóvel para o mato. Estou averiguando esta última hipótese, e é por isto que quero avistar-me com Tolman.

O xerife dirigiu-se para o seu carro.—- Eu o levarei até os vinhedos — disse. — Mas para mim,

parece-me nada haver contra Henry Tolman. Naturalmente êle teve seis anos para arranjar o seu álibi, mas êle conhece tudo o que o pai fazia a respeito de viticultura.

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— É justamente para verificar isto que estou aqui -— disse o Dr. Belling. — Posso não entender de investigações policiais, mas conheço o meu ofício. Foi por isto que telefonei a Tolman hoje de manhã, dizendo-lhe que represento um consórcio de leste interes-sado em comprar-lhe as vinhas.

— E o senhor acha que se êle fôr um impostor acreditará nesta história?

-— Espero que não; acho porém que êle ficará desconfiado. Vamos?

O xerife conduziu o Dr. Belling por uma distância de oito quilômetros pela estrada ensolarada. O vale do norte da Califórnia, com suas casas de pedra como que aninhadas em meio às encos-tas cobertas de vinhedos, poderia bem parecer uma paisagem de algum pais europeu, refletiu Belling quando o carro deixou a es-trada principal e enveredou por um caminho que subia a encosta cultivada.

— Êste é o vinhedo de Tolman — anunciou o xerife.— Pare um momento aqui, faça o favor — pediu o Dr. Belling,

e saltou do carro, caminhando um pouco entre as vinhas. Exami-nou os troncos, as folhas e os cachos que amadureciam.

— Uvas Sylvaner — disse, quando tornava a subir no carro. — Delas se faz um vinho branco muito agradável.

— Por aqui chamam estas uvas de Riesling da Califórnia -— disse o xerife.

— Há poucos vinhedos de Riesling verdadeira, na Califórnia — explicou o Dr. Belling, — e estas aqui não são. A verdade é que a uva Sylvaner dá um vinho que se parece bastante com o Riesling, no seu aspecto geral.

O carro gemeu engrenado em segunda quando subia em di-reção às casas de pedra no alto da colina, onde o barbado Henry Tolman os esperava. Convidou os dois homens a entrarem para uma sala de estar muito fresca, cheia de um mobiliário antigo, fo-tografias desbotadas de pessoas da família, e cortinas com laços. Uma carta, pela metade, jazia em cima da mesa.

Depois de terem conversado a respeito de vinhos em geral, e em particular des vinhedos de Tolman, este disse:

— O senhor pode dizer aos seus chefes, Dr, Bellíng, que mi-

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nhas vinhas não sofreram nunca falta de cuidados. Meu pai não participou do pânico que se apoderou da Califórnia por ocasião da Lei Sêca. Continuou sempre a fabricar vinho, e do bom. Não teve, portanto, de recomeçar tudo, quando a lei foi suspensa. Lembro-me muito bem que, pouco antes de eu ir para a Europa, meu pai engarrafou um vinho que disse ser o melhor Riesling já feito neste Estado. Vou ver se posso encontrar uma garrafa. Sei que ainda res-tam algumas, e gostaria que o senhor provasse. Lembro-me ainda de ter escrito os rótulos.

Quando Tolman saiu da sala, o xerife piscou os olhos para Belling:

— E eu não lhe disse? Êle vai provar que há dez anos morava aqui.

Tolman voltou com uma garrafa empoeirada e coberta de teias de aranha e colocou-a ao lado da carta que ficara pela me-tade. Saiu então em busca de copos e de um saca-rolhas, dando a Belling e ao xerife plena oportunidade para comparar o talhe de letra da carta com o das palavras escritas no rótulo empoeirado da garrafa. A letra era idêntica.

— Vê? — perguntou o xerife.Tolman voltou para servir o vinho. O Dr. Belling mantinha

seu copo levantado contra a luz. Aspirou a fragrância que dele se exalava. Admirou-lhe a côr pálida, seu exquisito bouquet antes de sorvê-lo. Encheu então a boca e moveu a língua.

O vinho era excelente, com um gosto próprio bem acentua-do.

— Magnífico vinho, não é mesmo Dr. Belling? — perguntou Tolman.

Bellíng tomou outro gole, fechando os olhos para melhor apreciar o sabor da bebida.

— Perfeito — disse por fim. — Perfeito demais para servir à sua história. Prenda este homem, xerife.

— Como?. . . O quê?— Você vai voltar para Nova York, Rusty Hull, para ser julga-

do pelo homicídio de Henry Tolman.— Mas Henry Tolman sou eu! — Você é Rusty Hull — insistiu Bellíng — e este magnífico

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vinho foi feito, engarrafado e rotulado nos últimos três ou quatro anos. Se você fosse Henry Tolman, você saberia mais sobre o as-sunto para não vir tentar dizer que este vinho tem dez anos. Você então saberia que o vinho branco feito de uvas Sylvaner alcança o máximo de sabor aos três anos, e que, ao contrário da maioria dos vinhos que mantêm suas qualidades durante dezenas de anos, de-pois de engarrafados, as melhores qualidades deste desaparecem após alguns anos. Este vinho é brilhante. Depois de dez anos da garrafa estaria um vinho ordinário, sem brilho, insípido.

O xerife baixou o copo e fêz tilintar um par de algemas.— Um momento, xerife — disse o Dr. Belling. — Antes de vol-

tarmos ao trabalho, vamos terminar esta garrafa.

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SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ...

Dashiell Hammett

SAMUEL Spade disse:— Chamo-me Ronald Ames. Desejo falar com o Sr. Binnett...

Sr. Tímothy Binnett.— O Sr. Binnett está reposando, senhor — respondeu ime-

diatamente o mordomo.— Pode saber quando poderei falar com êle? Trata-se de as-

sunto importante. — Spade pigarreou: — Eu. . . acabo de voltar da Austrália, e se trata de uma das propriedades do Sr. Binnett, no além-mar.

O mordomo girou nos calcanhares, dizendo:— Vou ver senhor — e já começara a subir a escada principal,

antes mesmo de terminar a frase.Spade enrolou um cigarro e acendeu-o.O mordomo voltou.— Lastimo ter de dizer-lhe que o Sr. Binnett não pode ser

perturbado neste momento, mas o Sr. Wallace Binnett, sobrinho do Sr. Tímothy, receberá o senhor.

— Obrigado, — respondeu Spade, seguindo o mordomo es-cada à cima.

Wallace Binnett era um homem esguio, elegante e moreno, mais ou menos da mesma idade de Spade — trinta e oito anos — que se levantou sorridente de uma poltrona forrada de brocado, dizendo:

— Prazer em conhecê-lo, Mr. Ames. — Indicou com um ges-

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to uma outra poltrona, e tomou-se a sentar. — O senhor vem da Austrália?

— Cheguei hoje de manhã.— O senhor tem negócios com o Tio Tim?Spade sorriu e abanou a cabeça:— Bem... não se poderia chamar propriamente de negócios,

mas tenho uma informação que penso que êle precisa conhecer. . . sem perda de tempo.

Wallace Binnett fitou pensativamente o chão por alguns ins-tantes, depois olhou para Spade, e respondeu:

— Farei o possível para persuadi-lo a receber o senhor, Mr. Ames, mas, francamente, não sei se terei êxito.

Spade sorriu, um tanto surpreendido:— Por quê? — perguntou.— Êle tem atitudes. . . singulares, em certas ocasiões. Não é

que. . . Sim, êle está perfeitamente bem, mas tem excentricidades de uma pessoa de idade e. . . às vezes se torna difícil tratar com êle.

Spade perguntou então, devagar: — Ê1e já se recusou a receber-me?— Sim.Spade levantou-se da cadeira. Seu rosto de diabo louro era

inexpressivo.Binnett levantou uma das mãos, num gesto brusco:— Um momento, por favor — disse. — Farei o possível para

que êle mude de idéia. Talvez, se. . . — seus olhos escuros muda-ram subitamente de expressão: — O senhor não está simplesmente tentando vender-lhe algo?

— Não.A nova expressão dos olhos de Binnett desapareceu imedia-

tamente:— Bem, então acho que posso. . . Uma jovem entrou, excla-

mando, zangada:— Vally, aquele velho idiota. . . — e interrompeu a frase, le-

vando uma das mãos ao seio, quando viu Spade.Spade e Bínnett se haviam levantado simultaneamente. Bin-

nett falou, com brandura:

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— Joyce, apresento-lhe Mr. Ames. Minha cunhada, Joyce Court.

Spade curvou-se.Joyce Court riu-se, um tanto contrafeita, e disse:— Peço-lhe desculpar a maneira intempestiva como entrei

aqui.Era uma mulher alta, de olhos azuis, morena, de uns vinte

e quatro ou vinte e cinco anos, ombros bem postos, e um corpo forte e esbelto. Suas feições tinham um calor que compensava o que nelas faltava de regularidade. Vestia um pijama de cetim, com calças largas.

Binnett sorriu-lhe bem humorado e perguntou:— Mas a que vem tôda esta agitação?A cólera enegreceu novamente os olhos da jovem e ela come-

çou a falar. Depois olhou para Spade e disse:— Mas não devemos aborrecer Mr. Ames com nossos ma-

çantes problemas domésticos. Se êle quisesse... — aí Joyce Court hesitou.

Spade curvou-se novamente:— Claro — disse. — Sem dúvida.— Voltarei dentro de um minuto — prometeu Binnett, saindo

da sala em companhia da moça.Spade dirigiu-se à porta aberta por onde os dois haviam saído

e, permanecendo justamente do lado de dentro, pôs-se à escuta. As passadas de Binnett e sua cunhada tornaram-se inaudíveis. Nada mais se podia ouvir. Spade permanecia ali, com uma expressão sonhadora nos olhos cinzentos, quando ouviu o grito. Era um grito de mulher, agudo e trêmulo de terror. Spade estava atravessando a porta quando ouviu o tiro. Era um tiro de pistola, que ecoou, au-mentado, pelas paredes da casa.

A uns oito passos da porta. Spade encontrou uma escada, e lançou-se por ela, galgando os degraus de três em três. Dobrou à esquerda. A meio caminho, no corredor, uma mulher jazia de cos-tas, no chão.

Wallace Binnett estava ajoelhado ao lado dela, segurando-lhe uma das mãos, desesperadamente, e lamentando-se baixinho, em tom suplicante:

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— Molly, querida, minha querida! Joyce Court permanecia de pé ao lado dele, torcendo as mãos,

com lágrimas a correrem-lhe pelas faces.A mulher caída ao chão parecia-se com Joyce Court, mas era

mais velha, e o seu rosto tinha uma dureza que o da mais moça não possuía.

— Está morta; mataram-na — disse Wallace Binnett, in-crèdulamente, levantando para Spade o rosto empalidecido. Quan-do Binnett moveu a cabeça Spade pôde ver o furo redondo no ves-tido marrom da mulher bem sobre o coração, e a mancha escura que aumentava rapidamente de extensão.

Spade tocou o braço de Joyce Court:— A polícia. . . O Pronto Socorro. . . Telefone.E logo que ela correu para a escada, Spade dirigiu-se a Walla-

ce Binnett:— Quem fêz isto. . .Atrás de Spade uma voz gemeu fracamente, e êle voltou-se,

rápido. Através de uma porta aberta podia ver um velho de pijama branco deitado de través numa cama desarrumada. A cabeça, um dos ombros, e um braço pendiam para fora do leito. A outra mão apertava fortemente a garganta. Gemeu novamente e suas pálpe-bras moveram-se, mas não abriu os olhos.

Spade levantou a cabeça e os ombros do velho, recostando-o sobre travesseiros. O velho gemeu novamente e retirou a mão da garganta. O pescoço estava vermelho e com meia dúzia de arra-nhões. Era um homem magro, emaciado, com o rosto sulcado de rugas que provavelmente lhe exageravam a idade.

Sobre a mesa de cabeceira havia um copo com água. Spa-de borrifou o rosto do velho e quando os olhos dele se moveram, inclinou-se e perguntou brandamente:

— Quem foi que fêz aquilo?As pálpebras do velho ergueram-se o suficiente para mostrar

uma nesga de olhos injetados de sangue. O velho então falou com dificuldade, levando novamente a mão à garganta:

— Um homem. . . éle. . . — a tosse interrompeu-o.O rosto de Spade contraiu-se de impaciência. Seus lábios

quase tocavam o ouvido do ancião.

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— Para onde foi êle? — perguntou.A mão magra do velho moveu-se pesadamente para indicar a

parte dos fundos da casa e tornou a cair sobre o leito.O mordomo e duas mulheres aterrorizadas vieram juntar-se

a Wallace Binnett, ao lado da mulher morta no corredor.— Quem fêz isto? — perguntou-lhes Spade.Os outros ficaram a olhá-lo inexpressivamente.— Alguém deve ficar cuidando do velho — disse êle, e se di-

rigiu pelo corredor.Na extremidade do corredor havia uma escada que dava para

os fundos. Desceu dois lances e chegou, através de uma copa, até a cozinha. Não viu ninguém. A porta da cozinha estava fechada, mas quando êle a experimentou, viu que não estava fechada a chave. Atravessou um pequeno pátio em direção a um portão, que tam-bém, embora cerrado, não estava fechado à chave. Abriu o portão. Na área para qual o portão abria não havia ninguém.

Spade olhou, fechou o portão e voltou para a casa.Sentou-se confortàvelmente na ampla e macia poltrona de

couro numa sala da parte da frente do segundo andar da casa de Wallace Binnett. Havia estantes de livros e as luzes estavam ace-sas. A janela mostrava a escuridão exterior, quebrada apenas pela fraca luminosidade de um distante lampião de iluminação pública. Diante de Spade, o Sargento Detetive Polhaus, um homenzarrão mal barbeado, e de roupas escuras que testavam precisando ser passadas a ferro, sentava-se com os joelhos separados, esparrama-va-se em outra poltrona de couro; o Tenente Dundy — um homem de pequena estatura, cheio de corpo e rosto quadrado estava de pé, as pernas afastadas, a cabeça um pouco inclinada para a frente, no meio da sala.

Spade estava dizendo:— E o médico apenas me deixaria falar com o velho uns mi-

nutos. Podemos tentar novamente depois que êle tiver descansado um pouco, mas não me parece que êle sabia muito. Estava cochi-lando quando despertou com as mãos de alguém a segurar-lhe a garganta e a puxá-lo pela cama. O mais que pôde ver foi uma rá-pida olhadela no sujeito que o agarrava. Um homem corpulento, diz ele, com um chapéu mole caído sobre os olhos, moreno, com a

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barba por fazer. Pelo jeito, se parece com Tom.O sargento fez um muxoxo, mas Dundy atalhou simples-

mente: — Continue. Spade sorriu e prosseguiu:— Já se encontrava longe, quando ouviu Mrs. Binnett gritar,

à porta. Retirou então as mãos da garganta e ouviu o tiro justa-mente antes de desmaiar. Pôde ainda ver o sujeito corpulento diri-gindo-se para os fundos da casa e Mrs. Binnett caindo no corredor. Êle diz que nunca vira antes o sujeito corpulento.

— De que calibre era o revólver? — perguntou Dundy.— Trinta e oito. Bem, ninguém na casa é capaz de forne-

cer mais detalhes. Wallace e sua cunhada, Joyce, enontravam-se no quarto dela, pelo que dizem, e somente viram a mulher morta quando correram, embora julguem terem ouvido as passadas de alguém correndo para baixo, pela escada dos fundos.

— O mordomo — chama-se Jarboe — estava aqui quando ouviu o grito e o tiro, segundo consta. Irene Kelly, a empregada, estava no andar térreo, ao que diz. A cozinheira, Margaret Finn, achava-se em seu quarto, no terceiro andar, e, pelo que diz, não ouviu nada. É surda como um poste, segundo todos dizem. A porta dos fundos e o portão não estavam fechados a chave; mas, pelo que todos dizem, julgava-se que o estivessem. Ninguém diz encontrar-se na ocasião perto da cozinha ou do pátio.

Spade estendeu as mãos, num gesto que significava ter ter-minado seu relatório.

— Isto é tudo que pude saber. Dundy sacudiu a cabeça.— Não é bem assim —- disse, — E que fêz com que o senhor

viesse aqui?O rosto de Spade iluminou-se: — Talvez o meu cliente a tivesse matado — disse êle. — Êle é

primo de Wallace, Ira Binnett. Conhece? Dundy sacudiu a cabeça. Seus olhos azuis tinham uma ex-

pressão dura de desconfiança.— É um advogado de São Francisco — disge Spade — res-

peitável, etc. etc. Faz uns dois dias que veio procurar-me com uma

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história a respeito de seu tio Timothy, um velho sovina, podre de rico e bastante arrebentado pela vida que levou. Era a ovelha negra da família. Nenhum deles tinha notícias do homem havia anos. Mas há uns seis ou oito meses ele apareceu, muito alquebrado, exceto financeiramente, pois parece ter arranjado dinheiro a valer em seus negócios na Austrália, e querendo passar o resto dos dias com seus únicos parentes vivos, isto é, seus sobrinhos Wallace e Ira. Para eles estava tudo certo. “Únicos parentes vivos” significava “únicos herdeiros”, na linguagem deles. Mas pouco a pouco os so-brinhos começaram a pensar que seria melhor haver um herdeiro do que um par de herdeiros — duas vêzes melhor, em realidade — e começa — a procurar conquistar o lado fraco do velho. Pelo menos foi o que Ira me contou referindo-se a Wallace, e eu não me surpreenderia se Wallace me contasse a mesma coisa a respei-to de Ira, embora Wallace me pareça o mais esperto dos dois. De qualquer modo, os sobrinhos foram afastados, e então o Tio Tim que estava morando com Ira, veio para cá. Isto foi há cerca de dois meses, e desde então Ira não mais se avistou com Tio Tim, e não pôde mesmo entrar em contato com êle nem por telefone nem por carta. Foi por isto que êle queria um detetive particular por aqui. Não que êle julgasse que o velho pudesse vir a ser molestado, isto não! e êle bem que fêz questão de frizar tal coisa, mas êle pensava que o velho pudesse ser alvo de alguma pressão indevida por parte de interessados, e que alguém pudesse vir a intrigar com o velho o seu sobrinho Ira. Êle queria saber o que por ventura viesse a acontecer. Esperei até hoje, quando um navio acabou de chegar da Austrália, e vim até aqui, como Mr. Ames, trazendo uma hipotética informação importante a respeito das propriedades de Tio Tim, na Austrália. Tudo o que eu queria era ficar quinze minutos a sós com êle. — Spade franziu os sobrolhos, pensativamente. — Bem, não consegui os quinze minutos. Wallace me disse que o velho recusava receber-me. Não sei.

A suspeita aprofundou-se nos frios olhos azuis de Dundy.— E onde se encontra agora este tal Ira Binnett? — pergun-

tou.A expressão dos olhos cinzentos de Spade era tão vaga quan-

to sua voz:

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— Também o quisera saber — respondeu. — Telefonei para a casa dele e para o escritório e deixei-lhe um recado para vir aqui imediatamente, mas temo que. . .

Na porta do lado oposto da sala, ouviu-se a batida de nós de dedos.

Os três homens que se encontravam na sala voltaram-se para a porta.

Dundy falou:— Entre.A porta foi aberta por um polícia louro, de pele tostada de sol,

cuja mão esquerda segurava o pulso de um homem gorducho de cêrca de quarenta e cinco anos, trajando roupas bem talhadas. O polícia empurrou o gorducho para dentro da sala.

— Encontrei-o mexendo na porta da cozinha — disse.Spade levantou os olhos e disse:— Ah! Mr. Ira Wallace, apresento-lhe o Tenente Dundy e o

Sargento Polhaus.Ira Binnett falou ràpidamente:— Mr. Spade, queira dizer a este homem que. . .Dundy dirigiu-se ao policial:— Você fêz um trabalho bem-feito. Pode deixá-lo aqui.Ira Binnett corou. Pigarreou, embaraçado.— Bem. . . eu explicarei. Não foi culpa minha, naturalmen-

te, mas quando Jarboe — o mordomo — telefonou-me que o Tio Tim queria falar comigo, disse-me que deixaria a porta da cozinha somente encostada, de modo que Wallace não precisaria ficar sa-bendo.

— Por que queria êle ficar com o senhor? — perguntou Dun-dy.

— Não sei. Êle não disse. Disse somente que era muito im-portante.

— O senhor não recebeu meu aviso? — perguntou Spade.Os olhos de Ira Binnett tiveram uma expressão de espanto.— Não. Sobre o quê? Aconteceu alguma coisa? Spade dirigiu-se para a porta.— Continue — disse êle a Dundy. — Voltarei dentro de um

instante.

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Fechou a porta cuidadosamente atrás de si e subiu para o terceiro andar.

O mordomo Jarboe estava de joelhos junto a porta do quarto de Timothy Binnett, com o olho metido no buraco da fechadura. No chão ao lado dele havia uma bandeja com um ôvo, uma taça, um bule de café, talheres e um guardanapo. Spade disse-lhe:

— As torradas assim vão esfriar.Jarboe, erguendo-se sobressaltado, quase fêz derramar o

café. Tinha o rosto avermelhado:— Des... desculpe-me, senhor. Eu queria ter a certeza de que

Mr. Timothy estava acordado antes de entrar — levantou a bande-ja. — Eu não queria perturbar-lhe o repouso.

Spade, que já havia chegado até a porta, disse:— Sim, evidentemente — e, inclinando-se, espiou também

pelo buraco da fechadura. Quando se ergueu, disse em tom entris-tecido:

— Mas você não pôde ver a cama, mas somente uma cadeira e uma parte da janela.

O mordomo respondeu imediatamente:— É verdade, sim senhor. Descobri isto agora mesmo.Spade riu-se.O mordomo abafou uma tosse, parecia que queria dizer qual-

quer coisa, mas se manteve calado. Hesitou, e então bateu leve-mente na porta.

Uma voz cansada respondeu:— Entre.Spade perguntou rapidamente em voz baixa:— Onde está Miss Court?— Creio que no quarto dela, senhor. A segunda porta, à es-

querda — disse o mordomo.Uma voz cansada, de dentro do quarto, disse com paciência:— Então, entre!O mordomo abriu a porta e entrou. Através da porta, antes

do mordomo fechá-la, Spade pôde dar uma olhadela em Timothy Binnett recostado em travesseiros, em cima da cama.

Spade dirigiu-se para a segunda porta a esquerda, e ba-teu. A porta abriu-se quase imediatamente e apareceu Joyce Court.

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Permaneceu, na porta, sem dizer palavra. Spade falou:— Miss Court, quando a senhora entrou na sala onde eu me

encontrava com o seu cunhado, a senhora disse: “Wally, aquele velho idiota...” referia-se a Timothy?

A moça fitou Spade um momento, c depois respondeu:— Sim.— Teria algum inconveniente de dizer-me qual teria sido o

resto da frase?Ela respondeu, lentamente:— Não sei exatamente quem é o senhor ou por que me faz tal

pergunta, mas não tenho nenhum inconveniente em dizer-lhe. O resto da frase seria: “mandou chamar Ira”. Jarboe acabara de me contar.

— Obrigado.Ela fechou a porta antes mesmo que êle se retirasse.Êle dirigiu-se para a porta do quarto de Timothy Binnett e

bateu.— Quem está aí, agora? — perguntou a voz do velho.Spade abriu a porta. O velho estava sentado na cama. Spade disse:— Este Jarboe estava olhando pela fechadura da porta deste

quarto há poucos minutos.Voltou então para a biblioteca.Ira Binnett, sentado na cadeira que antes havia sido ocupada

por Spade, dize a Dundy e Polhaus:— E Wallace foi apanhado no craque, como a maioria de nós,

mas pelo que parece êle havia feito compras falsas, acima de suas posses, tentando salvar-se. Por isto foi expulso da Bolsa.

Dundy fêz com a mão um gesto largo, mostrando a sala e a mobília.

— Isto aqui está bastante cômodo para um homem arruina-do, hein?

— A esposa dele tinha algum dinheiro — disse Ira Binnett — e êle sempre viveu acima de suas posses.

Dundy perguntou então a Binnett:— E o senhor realmente acha que êle e a esposa não se da-

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vam bem?— Não penso — respondeu calmamente Binnett. Eu sei.Dundy fez com a cabeça um sinal de assentimentco.— E o senhor sabe também se êle andava meio caído pela

cunhada, esta tal de Court?— Isto não sei. Mas a respeito ouvi muitos rumores.Dundy pigarreou, e depois perguntou, rudemente:— E o que consta no testamento do velho?— Não sei. Não sei mesmo se êle fêz testamento — e, dirigin-

do-se a Spade, disse, inquieto: — Já declarei tudo o que sei, abso-lutamente tudo.

— Não é o bastante — disse Dundy, apontando para a porta. — Mostra-lhe o lugar em que deve ficar esperando, Tom, e traz aqui outra vez o viúvo.

O grandalhão Polhaus levou Ira Binnett para fora da sala, e voltou com Wallace Binnett, cujo rosto estava pálido e tinha uma expressão dc sofrimento.

Dundy perguntou-lhe.— Seu tio escreveu algum testamento?— Não sei — respondeu Binnett. Spade fêz, então, lentamen-

te, a segunda pergunta:— E a sua esposa, o fêz?Os lábios de Binnett contraíram-se num sorriso amargo. Pe-

sando as palavras, êle falou:— Vou dizer-lhe algo a que não devia referir-me. Minha es-

posa, realmente, não tinha dinheiro. Quando tive algumas dificul-dades financeiras, há algum tempo, passei algumas propriedades para o nome dela, a fim de garantir. Ela vendeu-as sem que eu soubesse, pouco depois. Com o dinheiro ela pagava nossas contas, nossas despesas domésticas, mas ela se recusou a me devolver o dinheiro, e me declarou que em qualquer caso, quer esteja viva ou morta, quer continuássemos casados ou nos divorciássemos, ela jamais me devolveria um centavo. E eu acreditava e ainda acredito que tal seja verdade.

— Você queria divorciar-se? — perguntou Dundy.— Sim.— Por quê?

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— Não era feliz no casamento?— Joyce Court?Binnett corou, e disse, rapidamente:— Admiro Joyce Court enormemente, mas de qualquer modo

eu haveria de querer divorciar-me.Spade falou:-— O senhor tem a certeza, a certeza absoluta, de que não

sabe de homem algum que possa corresponder à descrição feita por seu tio do homem que o agrediu?

— Tenho certeza absoluta.O som da campanhia se fêz ouvir fracamente na sala. Binnett saiu.— Na minha opinião, este sujeito, afinal de contas. . . — co-

meçou a falar Polhaus.Do andar térreo, veio, então o estampido de um tiro de pisto-

la, disparado dentro de casa.As luzes apagaram-se.Na escuridão os três detetives colidiram uns com os outros

quando se lançaram pela porta, para o hall escuro. Spade foi o primeiro a alcançar a escada. Havia atrás dele o barulho de pisa-das, mas não se podia ver até o momento de ele alcançar a curva da escada. Então, pela porta da rua vinha luz suficiente para ver o vulto negro de um homem de pé, com as as costas voltadas para a porta aberta.

Uma lanterna acendeu-se na mão de Dundy, que se encon-trava nos calcanhares de Spade, lançando um feixe de luz sobre o rosto de Ira Rinnett. Êle piscou ao encontrar-se sob o feixe de luz e apontou para algo no chão, diante dele.

Dundy voltou o feixe de luz da lanterna para o chão. Jarboe jazia ali, de bruços, sangrando por um furo de bala na nuca.

Spade murmurou alguma coisa.Tom Polhaus chegou, depois de descer barulhentamente as

escadas. Wallace Binnett chegou também logo atrás. A voz ame-drontada de Joyce Court:

— Que aconteceu? Oh! Wally que aconteceu?-— Onde é que fica a chave geral?— Do lado de dentro da porta do porão, embaixo desta escada

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— respondeu Wallace Binnett: — O que é que há?Polhaus dirigiu-se para a porta do porão, empurrando Bin-

nett para um lado.Spade pigarreou novamente e, empurrando Wallace Binnett,

lançou-se escada acima. Passou por Joyce Court e continuou, a pe-sar de seu grito de surpresa. Estava na metade da escada quando se ouviu lá em cima novo tiro.

Spade correu em direção à porta de Timothy Binnett. A porta estava aberta. Entrou.

Algo duro e de forma angular golpeou-o por cima do ouvido direito, fazendo-o ajoelhar-se no meio do quarto. Algo caiu do chão, com ruído, junto a porta, pelo seu lado de fora.

As luzes acenderam-se.No chão, no centro do quarto, Timothy Binnett jazia de cos-

tas, sangrando de uma ferida a bala no antebraço esquerdo. O ca-saco do pijama estava rasgado. Tinha os olhos fechados.

Spade levantou-se e levou uma das mãos à cabeça. Olhou para o velho caído no chão, olhou em volta para o quarto, para a pistola automática preta, no chão do corredor.

Disse:— Levanta-te, velho bandido. Levanta-te e senta-te numa ca-

deira que eu vou ver se posso parar esta sangria ate que chegue um médico.

O homem deitado no chão não se moveu.Ouviram-se passos no corredor e Dundy entrou, seguido pe-

los dois Binnett mais jovens. O rosto de Dundy estava escuro e furioso.

— A porta da cozinha completamente aberta — disse com voz interrompida. — Entraram e saíram sem ser molestados. . .

— Nada disso — replicou Spade. — O Tio Tim é o pássaro que estamos procurando — não prestou atenção ao gesto de surpresa de Wallace Binnett, ao olhar incrédulo de Dundy e de Ira Binnett. — Vamos, levanta-te —..... disse ele ao velho caído no assoalho — levanta-te e conta-nos que viu o mordomo quando olhou pelo buraco da fechadura.

O velho não se moveu.— Êle matou o mordomo porque eu lhe disse que o mordo-

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mo havia espiado pelo buraco da fechadura — explicou Spade a Dundy. — Eu também espiei, mas só vi aquela cadeira e a janela, embora já então tivéssemos feito um barulho capaz de assustá-lo e levá-lo novamente para a cama. E que tal se você afastasse a cadei-ra enquanto eu me encarrego de examinar a janela — dirigiu-se à janela e começou a examiná-la cuidadosamente. Sacudiu a cabeça, estendeu uma das mãos para trás e disse: — Dá-me a lanterna.

Dundy pôs a lanterna na mão dele.Spade levantou a janela e debruçou-se para fora, voltando a

luz para o lado de fora do edifício. Pouco depois resmungou qual-quer coisa e estendeu para fora também a outra mão, trazendo de lá um tijolo que tirou de pouco abaixo do peitoril. Colocou sobre a janela o tijolo e enfiou a mão pelo buraco que ficara na parede com a retirada do tijolo, e de lá tirou, uma coisa de cada vez, um col-dre de pistola, preto, vazio, uma caixa de cartuchos parcialmente cheia, e um envelope não selado.

Segurando estes objetos, Spade voltou-se para olhar para as demais pessoas. Joyce Court entrou com uma bacia dágua e um rolo de ataduras e ajoelhou-se ao lado de Timothy Binnett. Spade colocou o coldre e os cartuchos em cima da mesa e abriu o envelo-pe. Dentro dele havia duas folhas de papel, cobertas de ambos os lados com letra manuscrita, a lápis. Spade leu um parágrafo para si mesmo, riu, e recomeçou, lendo em voz alta:

“Eu, Timothy Binnett, em perfeita sanidade física e mental, declaro ser o que aqui escrevo a minha última vontade e testamen-to. A meus caros sobrinhos, Ira Binnett e Wallace Bourke Binnett, como reconhecimento pela amável bondade com que me receberam em suas casas e pelos cuidados que me dispensaram na velhice, eu dou e lego, em partes iguais, todas as minhas propriedades neste mundo, de qualquer espécie, ou sejam, minha carcaça e as roupas, com que estou vestido.

Lego-lhes, também, a despesa com meu enterro e as seguin-tes recordações: Primeiro: a lembrança de sua credulidade, acredi-tando que os quinze anos que passei em Sing Sing fossem vividos na Austrália; segundo: a recordação de seu otimismo, ao suporem que esses quinze anos me fizeram senhor de grande fortuna, e que se eu vivi a custa de ambos, tomei emprestado dinheiro deles e ja-

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mais gastei um centavo de meus próprios haveres devia-se ao fato de que eu era um avarento cujo tesouro eles haveriam de herdar, e não porque eu não tivesse dinheiro algum a não ser aquele que eu os fiz me darem; terceiro: pela sua vã esperança de que eu, se tivesse alguma coisa, lhes deixasse algo; e, finalmente, porque a lastimosa falta de qualquer senso de humor em ambos os impedirá ver, em tempo algum, o quanto divertido foi tudo isto. Assina e sela o presente documento. . .”

Spade levantou o olhar e disse:— Não traz data, mas está assinado Timothy Kíeran Binnett,

e com uns floreios.Ira Binnett estava rubro de cólera; o rosto de Wallace tinha

uma palidez mortal e o corpo todo lhe tremia. Joyce Court parara de pensar o braço de Timothy Binnett.

O velho soergueu-se e abriu os olhos. Olhou para os sobri-nhos e desatou a rir, e em seu riso não havia histeria, nem loucura; era um riso sadio, franco, que foi cessando pouco a pouco,

Spade disse-lhe:— Muito bem, você já se divertiu. Vamos agora falar dos as-

sassinatos.— Do primeiro não sei nada mais além do que já lhe disse, e

este aqui não é um assassinato, pois que eu apenas. . .Wallace Binnett, ainda tremendo violentamente, disse com

dificuldade, entre os dentes,:— É mentira. Você matou Molly. Joyce e eu saímos do quarto

dela quando ouvimos Molly gritar, e ouvimos o tiro e vimos quando ela caiu do lado de fora da porta do quarto de você, e que ninguém mais saiu daqui de dentro.

O velho falou, calmamente:— Bem, vou contar-lhe: foi um acidente. Disseram-me que

havia aí um sujeito vindo da Austrália que desejava falar-me a res-peito de algumas de minhas propriedades por lá. Eu sabia que havia gato escondido em tudo isto, uma vez que eu jamais havia estado lá. Não sabia se algum de meus caros sobrinhos começava a suspeitar e que me preparava uma cilada ou coisa parecida, mas eu sabia que embora Wally não estivesse metido nela êle de qual-quer maneira faria entrar o cavalheiro australiano para me ver, e

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eu talvez com isto perdesse uma das pensões em que me hospeda-va gratuitamente — disse o velho, soltando uma risadinha.

— Assim — continuou — pensei que devia entrar em contato com Ira de modo a que pudesse voltar para a casa dele se as coisas ficassem mal paradas por aqui; e, de qualquer modo, faria o pos-sível para me livrar do tal australiano. Wally sempre pensou que eu fosse meio maluco, e temia que me internassem num hospício antes que eu tivesse feito testamento em seu favor, ou que não me deixassem gerir meus Deus. Como sabem, êle ficou tendo péssima reputação, com todo aquele negócio da Bolsa de Títulos, etc, e bem sabia que nenhum tribunal haveria de nomeá-lo curador de meus negócios se eu ficasse de miolo mole. . . pelo menos enquanto eu ti-vesse outro sobrinho. . . um respeitável advogado. Assim, eu sabia que ao invés de me envolver numa situação que afinal de contas poderia fazer com que eu batesse com os costados num hospício, Ira poria porta fora esta visita, e por isto procurei dar a Molly a impressão que havia enlouquecido, e justamente porque era ela quem estava mais à mão para presenciar o espetáculo de minha repentina loucura. O caso é que ela tomou a coisa a sério demais.

Eu segurava uma pistola e, fulo de raiva, falava a respeito de estar sendo espiado por meus inimigos australianos, e que iria des-cer e meter bala no tal sujeito. Mas o caso é que ela ficou assustada e tentou arrebatar-me a pistola. Foi então que a arma disparou, e depois eu tive de fazer estas marcas no pescoço e arranjar a histó-ria do homenzarrão moreno — olhou com desprezo para Wallace, e continuou: — Eu não sabia que êle estava querendo proteger-me. Por mais baixo que fosse o meu juízo a respeito dele, nunca pen-sei que fosse capaz de descer ao ponto de proteger o assassino de sua esposa, mesmo que não gostasse dela... e tudo somente por dinheiro.

Spade falou:— Deixemos isto. E que me diz do mordomo?— Nada sei a respeito do mordomo, — replicou o velho, fitan-

do Spade com firmeza.— Você tinha de matá-lo sem perda de tempo — disse Spa-

de — antes que êle tivesse tempo de fazer ou dizer alguma coisa. E por isto você desceu sorrateiramente a escada dos fundos, abriu

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a porta da cozinha para enganar, foi até a porta da frente, tocou a campanhia, fechou a porta e escondeu-se na sombra da porta do porão embaixo da escada da frente. Quando Jarboe foi abrir a porta você o matou. O furo da bala foi feito na nuca. Depois desli-gou a chave geral, que fica justamente por trás da porta do porão, e voltou rapidamente pela escada dos fundos, e disparou a arma cuidadosamente contra o seu braço esquerdo. Cheguei porém cedo demais, e por isto você me desferiu um golpe com a pistola, ati-rou-a pela porta, e deitou-se no chão enquanto eu me recuperava do choque.

O velho resmungou novamente.— Ora, você está simplesmente... — Um momento — disse Spade, com paciência. — Não vamos

discutir. A primeira morte foi acidental, vá lá. A segunda não podia ter sido. E será muito fácil provar que todas as balas, a que feriu o seu braço esquerdo e as outras duas foram disparadas pela mesma arma. Que diferença que seja um ou outro o homicídio que viermos a provar?

Você será enforcado apenas uma vez.E, sorrindo, satisfeito, terminou:— E será enforcado.

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O VASO GREGO

Onde poderá um editor, dominado pela mania de casos de ho-micídio, descobrir boas histórias antigas sobre este assunto? Onde poderá encontrar histórias que, por uma década ou mais, talvez mesmo por uma geração, tenham sido esquecidas, deixadas de lado ou, de qualquer modo, ignoradas? As fontes, como sabemos, são muitas, embora somente nos lembremos de algumas. . . Às vezes, um leitor prestimoso trava da pena e, dirigindo-se a um editor agra-decido faz referência a uma história lida por acaso há muitos anos, e de que ainda se recorda. Em geral, este é um bom teste, pois se a impressão causada pela história, ou se o seu conteúdo permane-ce em nossa mente, é porque o conto tem realmente algo digno de ser novamente apresentado ao público, e perpetuado; além disso, é também bastante provável que, se a história foi capaz de agradar a um leitor de bom-gôsto, também há de agradar a outros. Assim, com elementos fornecidos pelo leitor, procuramos localizar a história... Acontece, também, que sejam os próprios autores que despertem a atenção dos editores para seus antigos trabalhos; e os autores são geralmente bons juizes para decidir sobre o que, no passado, reali-zaram de melhor. Quando um autor olha com carinhosa preferência para determinado trabalho, escrito há muito tempo, podemos quase apostar que bem vale a pena reler-se tal história.

E, naturalmente, há também a busca permanente, incessante, feita pelos editores, relendo velhas revistas, livros e jornais. É quase sempre um trabalho de desanimar, pois para cada história que me-reça ser reeditada, é preciso ler cinqüenta ou mesmo cem que não o merecem.

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Volta e meia, ainda, os editores topam com uma referência num velho livro didático ou num livro de crítica literária. Foi assim que encontramos a história que aqui apresentamos ao leitor. Fazia parte de uma “lista honrosa de contos escolhidos”, organizada há quase trinta anos. De início, tentamos encontrar a velha revista que o publicara. . . e não tivemos êxito. Procuramos, então, localizar a autora, Valma Clark, e finalmente fomos encontrá-la, residindo em Paris.

Pois bem, tivemos sorte, pois a autora, segundo, a carta que nos escreveu, retornara ao apartamento onde todos os seus perten-ces haviam sido depositados durante os longos anos da ocupação alemã. Poucas esperanças tinha de encontrar, após vários anos, um exemplar que contivesse a história; mas, detendo-se em meio àque-la verdadeira loja de velhas curiosidades — chaleiras, vassouras, cadeiras e todos os pertences acumulados de diferentes casas — meteu a mão dentro de uma caixa de madeira que trazia o rótulo “originais” e — vejam só — lá veio um exemplar da velha revista, com a história que procurávamos,

A autora prosseguiu, dizendo que o assassinato, por curioso que pareça, se havia misturado com o seu problema de moradia. Por três anos, Valma Clark tentara encontrar uma peça sem mobília onde ela e a irmã pudessem estabelecer-se novamente. Na mesma semana em que teve notícia de nós, que lhe indagávamos a respeito do conto que escrevera, Valma Clark achou uma casa numa cidade-zinha fora de Paris — St. Martin les Nogelles, na Normandia. Para falar verdade, era um casarão velho e feio, mas que dispunha de todos os “confortos”: água fria e quente, e banheira, Havia, não obs-tante, algo profundamente sinistro no ar, como uma aura. As janelas abriam para uma das mais aprazíveis paisagens campestres que se possa imaginar, a que não faltava sequer uma bela igreja antiga; o jardim, entretanto, estava abandonado, com a vegetação crescida e desordenada em meio à qual se elevavam pinheiros melancólicos. O porão da casa era uma verdadeira catacumba parisiense.

Valma Clark disse à irmã que gostaria de tomar de uma lan-terna e explorar aquele porão, uma vez só que fosse, pois encon-traria provavelmente um ou dois cadáveres; depois, satisfeita sua curiosidade, fecharia muito bem fechada a porta, e jamais tornaria

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a descer lá.Então, quando as irmãs estavam prestes a alugar a casa, um

amigo americano que se encontrava em Paris advertiu-as de que não o fizessem. Segundo parecia, o homem que morava por cima da garagem era um assassino às soltas. A polícia não tinha dúvidas de que matara a amante, a sangue frio. Mas o sujeito dera sumiço ao cadáver com tal habilidade e tão completamente que, depois de passar seis meses na cadeia, teve de ser posto em liberdade. Nunca pôde a polícia encontrar o corpo, e sem isso, segundo a lei francesa, o homem não podia ser condenado.

Pois bem, Valma Clark é capaz de apostar que sabe onde se encontra tal senhora.

O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS

Valma Clark

FOI num mês de agosto, era Cape Cod, quando andava eu a esquadrinhar lojas de antigüidades, em busca de um tipo especial de trempe colonial para um de nossos clientes, que topei com o Velho Erudito.

Ali, numa alva casa de campo cujos fundos davam para o King’s Highway, entre um amontoado de lanternas do Cabo e de bojadas garrafas de licor verdes e âmbar, de velhas chaleiras e trin-cos de bronze e de infalíveis castiçais, foi que encontrei, por acaso, uns apertadores de livros nos quais, pintadas de alaranjado claro, se viam algumas ninfas a brincar, sob um fundo de veludo negro. Os detalhes do rosto e dos cabelos eram desenhados com a máxima delicadeza em castanho e púrpura, como se tivesse sido usado um pincel de apenas um fio, muito fino. Era um trabalho requintado, e, em conjunto, o efeito era encantador. Subitamente, porém, algo me surpreendeu. Sim, por Júpiter! O objeto era do mesmo tipo daque-les vasos gregos — belos, antigos, com figuras em tinta escarlate. Era realmente de um estilo clássico!

Também as ninfas eram clássicas. À mais esguia era, sem

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dúvida, Nausica jogando bola com suas aías. Havia também outros motivos clássicos: uma encantadora Afrodite cavalgando graciosa-mente um forte cisne; ágeis Silênios saitítando numa gangorra. . .

A mitologia pagã, em confusão e confinada em tão pequeno espaço, nesta casa de antigüidades de Nova Inglaterra. . . Estra-nho!

Em meio à minha surpresa, meu olhar se deteve sobre outro objeto, e meu sentimento transformou-se em verdadeira admira-ção, aguçada ao ponto de se transmutar numa viva curiosidade a respeito do artista que havia realizado obra de tão cativante beleza com materiais tão grosseiros. Era uma pintura partida, como vê-nus sem um dos braços. Representava Palas Atenas, e a cabeça e os ombros de um jovem que para ela tocava uma flauta de dois tubos. A cabeça da deusa, que usava ainda o elmo dos guerreiros, inclinava-se como se estivesse a escutar a música, e sua atitude era de lassidão e de quietude, depois de árduo combate.

Aquela pintura dava uma impressão geral de serenidade, com linhas tranqüilas e naturais, mau grado as bordas ásperas e irregulares que cortavam as figuras pouco acima da cintura. Até certo ponto, ela possuía a dignidade e a sinceridade de uma obra de arte religiosa. E então notei que havia outras Atenas idênticas, que a pintura partida revelava em toda a metade dos apertadores de livros.

— Mas sòmente um profundo conhecedor da mitologia grega, e entusiasta, seria capaz de fazer isto!...

— Como disse, o senhor? — perguntou a jovem que atendia a loja.

— Isto. Mas é notável! Quem é êle? Diga-me alguma coisa a respeito. . . — supliquei-lhe impulsivamente.

— Não lhe posso dizer muito. Mora sozinho, na praia, e nos traz isto para vender. Chama-se Twining. . . Twining o funileiro, como dizem.

— Mas isto aqui... assim quebrado... que significa?Ela sacudiu a cabeça.— Êle nunca diz nada a respeito disso. Afirma apenas que

não tem o modelo do resto, e que seria um sacrilégio terminar os desenhos sem as linhas verdadeiras.

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— Hum. . . respeito e consciência. — murmurei eu, — o que é bem raro hoje em dia. Fico com os dois apertadores. Quanto cus-tam?

— Cinco dólares.— E um par de ninfas — acrescentei, pois aquilo me parecia

absurdamente barato.— Infelizmente temos sòmente um exemplar, que está sendo

usado para calçar a porta, como o senhor está vendo.— Mas não é possível! Para calçar a porta! — lamentei. —

Mas eu usarei as minhas como apertadores de livros, e colocarei entre elas os Poetas Românticos.

— Bem. . . — disse a moça, procurando subitamente reme-diar a situação, — o senhor pode deixar conosco uma encomenda para o Sr. Twining. Êle terá prazer em pintar-lhe a outra.

— Ou talvez eu mesmo possa fazer a encomenda diretamente ao Sr. Twining — exclamei. — Estou com meu carro aí, e disponho de tempo. Como é que se vai até a casa dele?

— Mas o senhor não poderá ir de carro. Deve seguir a es-trada de areia até o fim e então tomar por um estreito atalho que vai direito ao mar. Fica a cinco quilômetros adiante; não há outra casa. . .

— Não tem importância. Me meti na cabeça que havia de visitá-lo. Ah! mas vejo que a senhora não me aconselharia.

— Não é bem isto. . . É que o homem é uma espécie de eremí-ta — disse ela, corno que hesitando. — É um ancião muito polido, mas ninguém o visita.

— Pois então é tempo que alguém comece.Agradeci-lhe, procurei uma hospedaria sossegada, estacionei

meu carro para passar a noite, e nas últimas horas da tarde co-mecei o longo passeio em direção ao mar e a casa de Mr. Twining, o funileiro.

Segui por um sendeiro de areia que se alongava como um tra-ço de giz entre touceiras de arando silvestre, arbustos de roble do campo e pinheiros, através de uma paisagem desolada. Finalmente me encontrei, de súbito, em cima de alta penedia que se debruçava sobre o Atlântico.

As nuvens embaciaram o firmamento, e ao invés da clarida-

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de do poente, havia estranha luminosidade amarela pairando por sobre todas as coisas.

O mar estava muito calmo, com tonalidades verdes e de púr-pura desmaiada, e uma larga orla de espuma, abaixo do promontó-rio onde eu me encontrava, tinha uma coloração acinzentada. Mais acima, no alto da penedia, e muito próximo à borda, via-se uma dessas casas de Cape, acaçapadas e batidas pelos ventos. Subi em sua direção, e avançando com certo esforço por entre os arbustos silvestres, cheguei até a porta dos fundos.

Então, tendo como fundo uma janela mais afastada que emol-durava o mar e o céu, vi o perfil de um homem idoso, de cabelos brancos.

Sentava-se numa banqueta de trabalho, e na mão, em boa postura, tinha um pincel; mas não estava pintando. A cabeça man-tinha-se erguida e o homem escutava. Parecia quase como se es-tivesse escutando aquela estranha luminosidade amarela de que todo o ar estava embebido. Chamou-me imediatamente a atenção a extrema delicadeza e a expressão de sofrimento que lhe transpa-reciam do rosto.

Bati à porta e o velho moveu-se.— Boa-tarde — disse-lhe.Êle se dirigiu vagarosamente para a porta.— Na loja de antigüidades “Ao Ferrôlho Aberto”, disseram-me

que poderia encontrá-lo aqui. Gostaria que o senhor me conseguis-se outro apertador de livros.

— Apertador de livros? — murmurou ele.— Espero que o senhor não terá inconveniente em pintá-lo e

mandar entregar-me.— Ah! sim — fêz o ancião, e não havia dúvida de que me

seguia apenas com os olhos, enquanto seu espírito continuava a ouvir seus próprios pensamentos.

Comecei a ficar intrigado sobre como poderia despertar-lhe atenção. Uma espécie de cheiro de coisas antigas parecia envolver aquele homem, um cheiro que se evolava não somente de seu velho e surrado traje preto, de um talhe fora de moda, mas igualmente de suas maneiras e da própria inflexão de sua voz, como que rema-nescente da antiga escola.

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— As ninfas — insisti — uma das Nausicas.Com isto sua atenção foi despertada:— Ah! Nausica. . . então o senhor conhece?— Sim, . . Creio que sim.— Pois, em geral, isto não acontece; para o público comum

elas são apenas umas mocinhas brincando com uma bola -— e o velho sorriu como se ouro puro emanasse de seus próprios so-frimentos; era um sorriso diferente e amável que me conquistou imediatamente.

— Terei prazer em pintar uma Nausica para o senhor — acrescentou com formalidade, esperando que eu continuasse a manifestar minha satisfação.

— Aqui está meu nome — disse-lhe eu — talvez o senhor qui-sesse assentar o nome e endereço.

-— Sim, naturalmente. . . seu nome. — Docilmente, trouxe um bloco de notas e um lápis, e com bonita letra erudita escreveu: “Mr. Claude Van Nuys”, com o meu novo endereço em Nova York.

Com ar distraído, deixou-me que pagasse, e ficou pronto para despedir-se,

Mas não arredava pé. — São Silênios, é a deusa com o cisne é Afrodite, não é?

— Você já pode ser considerado aprovado na série A, meu filho — disse o ancião, sorrindo.

— E aquela Palas Atenas. . . um trabalho esplêndido. En-tretanto. . .

— A! Atenas! —- um tremor de pesar passou de leve sobre a físionomia do velho, que se tomou novamente reticente e vago.

Eu teria desistido de continuar, se uma terrível e imprevista lufada de vento não viesse em meu auxílio, levando em torno de nós nuvens de areia.

— Puxa! — exclamei — cobrindo o rosto contra os impactos de areia fina.

— Teremos temporal, não? — perguntei-lhe.Mas fiquei como que boaquiaberto diante da expressão de

horror e de inalterável tensão da fisionomia de Mr. Twíníng.— Uma noite má. . . — murmurou — vento e o mar, revôlto...

Foi justamente numa noite assim. . . — como que tornou a notar

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subitamente minha presença, e um alívio que me permitiria avan-çar em nossa palestra, pensei.

— Mas o senhor não pode ficar aí fora, com este vento — ar-gumentou êle, mais para si mesmo do que para mim -— será então necessário... O senhor... — disse, passando facilmente para o pa-pel de anfitrião cortês — quer aceitar o abrigo do meu teto até que passe a tempestade?

Esperou que eu o precedesse na entrada da casa, fêz com que eu me sentasse na única poltrona confortável que havia naquela sombria sala de estar, e, depois de desculpar-se, sentou-se em seu banco de trabalho e tomou novamente do pincel.

A pouco e pouco a peça se foi escurecendo. O velho esqueceu-se de minha presença e tornou ao seu murmurar, tremendo a cada lufada de vento, e detendo-se para escutar os gemidos do mar, lá embaixo.

Assim ficou trabalhando até não mais poder enxergar, e acendeu então uma vela, voltou-se para o traçado de um modelo tirado da estampa colorida de um livro. Ao seu lado havia vários volumes semelhantes, e tomei a liberdade de apanhar um deles e folheá-lo. Havia, como eu imaginara, estampas dos mais famosos vasos gregos, a maioria dos quais do período do colorido vermelho. “Douris”. . . “Eufrônlo”. . . “Híeron”. . . — li em voz alta. -— Ah! e estes magníficos lécitos brancos!

O efeito sobre o ancião foi instantâneo. Aqueles nomes — Hie-ron. . . lécitos brancos — foram como senhas mágicas.

— Então o senhor os conhece, aos decoradores de vasos gre-gos! — e deixou cair sobre mim uma torrente de entusiasmo cientí-fico, de detalhes técnicos e de datas, cheios de reverência e de amor pela beleza pura daqueles vasos.

— O senhor conhece! Conhece! — exclamou, exultando. — Veja agora a Atenas de Douris. . .

— Mas em realidade eu não conheço nada. . . —- interrom-pi, impelido àquela franqueza, pela sua manifestação de intensa sinceridade. — O conhecimento que tenho dos clássicos é geral. Trabalhamos somente com as obras dos períodos francês e inglês, em nossa casa de Harrow, de que sou comprador para atender a nossa clientela da Quinta Avenida.

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Mas o homem não queria ouvir.— O senhor fala a linguagem de quem conhece o assunto —

insistiu êle — “saiba que há quase meio século não conversava com ninguém que falasse minha própria linguagem. . . Há quase meio século que não encontrava um homem que tivesse ouvido falar de Eufrônio, o mestre pintor de cerâmica. Deus, como isto me faz re-cordar!

O velho riu-se. — O senhor me fêz uma pergunta a respeito da minha Ate-

nas! Foi o primeiro homem que compreendeu. Espere!Sorrindo como uma criança que se refere a um segredo, di-

rigiu-se à cômoda e dela tirou algo enrolado em papel. Com muito carinho desembrulhou o objeto e apresentou diante de mim a me-tade partida de um cálice grego, um cylix pintado de vermelho ao qual uma das asas estava ainda presa mas a que faltava o suporte. O velho esperou, em triunfo, a minha admirada exclamação.

Ah! — disse eu, desajeitadamente — a parte inferior é aquela mesma Atenas com o toucador de flauta. Parece. . . um belo frag-mento. . .

— Belo!? — repetiu com desdém. — Belo! Mas senhor, é o me-lhor que se conhece. . . um aristocrata dos vasos gregos. Veja! As linhas para completá-lo desenvolviam-se mais ou menos assim.

Tomou de um lápis, deitou o fragmento sobre uma folha de papel branco, e completou as figuras quebradas de Atenas e do jo-vem. Observei suas mãos, enquanto êle trabalhava: eram finas, de dedos longos, nervosos, mas seguros do que faziam.

— Vê? — perguntou. — Agora, na parte externa do cylix te-mos Atenas em sua quadriga depois da batalha. Não formam um contraste, aquela Atenas pacífica e esta outra aqui? Não é, real-mente, um artista de recursos, o homem que pôde realizar a am-bas, e tão perfeitamente. Observe o senhor os cavalos — as linhas audazes e vigorosas. Que força e leveza! É realmente uma pintura máscula. . . Eufrônio. . . — o velho Twining se deteve, e tornou a dar à exposição um cunho mais preciso. — A outra metade da taça, a exterior, mostrava Atenas atirando sua lança contra o gigante Anquelados. . .

— Mas onde está a outra metade? — perguntei. — O senhor

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deve tê-la visto, pois conhece a decifração do enigma.— Sim — respondeu êle lentamente. — Eu o vi; Deus sabe

como conheço a decifração do enigma. . .Mas êle voltou-se para mim. . . ou melhor, para o seu querido

fragmento de taça grega.— Veja o colorido! — sussurrou. — Este tom alaranjado es-

curo, e o aveludado negro e o magnífico verniz de toda a peça. . . O segredo dos ceramistas gregos morreu com eles. É perfeito até os mínimos detalhes. . .

Sentado ali, perdeu-se em reverente admiração de seu peda-ço de cylix. . . Não tocava nele; era como se aquele fragmento fosse por demais precioso para ser manuseado; mas, através dos olhos, lhe dedicava a alma. Esquecera-se dos uivos do vento que aumen-tava de intensidade e do ribombar da arrebentação cada vez mais forte.

— Isto — anunciou êle calmamente por fim — é a metade de um Eufrônio legítimo, até agora desconhecido do público.

Olhei para o objeto.— Então o senhor diz que se trata de um Eufrônio. . . até

agora desconhecido?— Sim, a assinatura estava no outro pedaço.— Mas, por Deus, achada a outra parte (e o senhor deve sa-

ber onde pois parece tão familiarizado com ela!) este fragmento vale o resgate de um rei!

— A outra metade perdeu-se; perdeu-se para sempre — disse o velho. Mas este pedaço, por si só, é digno do resgate de um rei; não em ouro, mas na moeda do conhecimento, o conhecimento que êle trará ao mundo da arte grega.

Seus olhos cinzentos alargaram-se como se enxergassem uma visão; o poeta se transmudava em cientista imaginativo.

Naquele instante eu me senti em presença de um nobre. Mas a dignidade do ancião desfez-se abruptamente. Com a velocidade de uma locomotiva que se aproximasse, o impacto em cheio da ar-rebentação do Atlântico nos atingiu, abalando, sacudindo e fazen-do gemer a velha casa até estalar como um saco de ossos soltos,

No mesmo momento a chuva começou a cair torrencialmen-te, batendo nos vidros das janelas e tamborilando infernalmente

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sobre o telhado. Afirmo que não sou covarde, mas naquele mo-mento agarrei-me à pesada banca de trabalho como se estivesse em busca de uma âncora. À luz trêmula da vela, vi o ancião colado à parede, as mãos apertadas de encontro aos olhos. Parecia estar em agonia.

Alcancei-o em dois passos.— Que tem, senhor?. . . Mr. Twining?Êle tartamudeava trechos desconexos de uma oração. Pus-

lhe a mão em cima do ombro, e subitamente êle agarrou-se a mim, como uma criança que encontra uma mão inesperada no escuro. Falava rapidamente, incoerentemente:

— Não, não; não é a tempestade. São as coisas que ela traz aqui, em minha cabeça. . . imagens. Cenas que nenhum ser nunca deveria ter vivido. Eu as vivi mais uma vez. . . torno a revivê-las ain-da. . . como Macbeth. Não me deixe sozinho! É a Sua vontade. Foi Êle que o enviou aqui, e a tempestade o detém aqui. . . É impossível o senhor alcançar a vila hoje de noite. Deverá ficar aqui comigo e ser o meu primeiro hóspede nesses últimos quarenta anos. Ouvirá minha história. . . e me julgará.

— Sim, sim. — disse-lhe eu, para acalmá-lo, levando-o para uma cadeira — naturalmente que ficarei, Mr. Twining.

Acalmou-se então, com a cabeça pendida sobre os braços que apoiava na banca diante de si. Tendo o vento amainado um tanto, êle pouco a pouco recuperou o controle de si mesmo.

— É uma loucura minha — suspirou, olhando por fim. — Às vezes temo estar ficando um pouco maluco. Mss tenho vontade de contar-lhe. . . contar a história de como encontrei o fragmento de Eufrônio. O senhor, um estranho, há de ser imparcial. Mas o se-nhor deve estar com fome.

Tornou-se novamente o anfitrião solícito, mas não molesto. Começou a preparar as coisas habilmente, na cozinha; pôs sobre a mesa uma toalha de linho branco e os talheres, e serviu-me caldo de ostras tirado de uma sopeira azul, pão preto e mel, e uma espé-cie de vinho com um bouquet digno de uma ode de Horácio.

Por fim, preparou-se para contar a história.“Eu me encontrava no estrangeiro — começou — lá por 1885,

com um ano de licença no colégio que cursava, e em companhia de

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um amigo — vamos chamá-lo Lutz, Paul Lutz. Devo dizer-lhe que eu não tinha o direito de fingir-se seu amigo, pois, sinceramente, eu o desprezava, e desprezava seus métodos e suas crenças. Sendo um de meus colegas, mais jovem do que eu, parecia ter especial predileção por mim.

Era estranho, pois era de uma família rica, e a não ser nosso comum interesse em arqueologia e assuntos clássicos — interesse que para êle era apenas um capricho, suspeitava eu — éramos como pólos opostos. Êle era astuto, brilhante mesmo, mas, . . como poderei descrevê-lo. . . Tinha os dedos grossos. Era do tipo bonito e gâté de Byron: sanguíneo e moreno.

Lutz e eu éramos rivais em mais de um sentido. Havia. . . uma jovem na cidade onde se achava nossa escola: nos recebia a ambos. Chamava-se — já agora não importa mais dizer-lhe o nome —- chamava-se Lorna, e era como o nome, uma bela jovem de ca-belos cinzentos prateados. Tinha um belo espírito, e nos olhos um brilho que era como o verso inesquecível de um poema.”

O velho ficou sentado em silêncio por algum tempo, como es-tivera diante da maravilhosa beleza daquele vaso grego, e seu rosto estranho e frágil era iluminado pelo mesmo brilho interior.

“Lutz e eu estávamos juntos em Atenas, na primavera, a ser-viço do museu da Universidade, que então mal começava a formar-se. Tínhamos à nossa disposição uma verba destinada a algum espécime valioso e rondávamos os lugares onde se realizavam es-cavações, e os mercados de antiguidades. Foi absolutamente um acaso o fato de termos ido à Acrópole justamente quando se inicia-va o trabalho de desentulho dos destroços anteriores à destruição causada pelos persas. E foi também o mero acaso que nos levou ao lugar, e justamente no momento, em que os trabalhadores desen-terravam o vaso, em dois pedaços.

Um vaso, obra do ceramista Eufrônio — e a assinatura era realmente visível através da camada formada pelo depósito de terra — ali se encontrava, no meio daqueles destroços que datavam de antes do saque perpetrado pelos persas no ano de 480! Ora, a exis-tência de Eufrônio havia sido fixada numa data consideravelmente posterior. Aquela diferença de datas era importante, e eu acabava de topar com uma descoberta capaz de fazer época! Via diante de

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mim aberto o caminho da fama.Falei com o jovem grego que dirigia as operações, e consegui

dele a promessa de que me seria permitido examinar cuidadosa-mente o objeto logo que o mesmo fosse completamente limpo. Lutz mantinha-se junto de mim, e eu notei que também êle se entu-siasmara com o vaso, embora escondesse seus sentimentos sob um ar de indiferença. Mas eu não tinha tempo para tratar de Lutz. Afastei-me dele. Segui minhas deduções através das ruas de Ate-nas, e então fixei minhas conclusões na biblioteca de clássicos da Escola Americana. Não havia erro algum nos elementos que eu co-ligira, nenhuma falha em minha lógica. Então, no pleno entusias-mo daquela façanha de mestre, voltei para o pequeno hotel onde estávamos hospedados.

Abri a porta do nosso quarto e encontrei Lutz inclinado sobre a mesa. Olhava avidamente para alguma coisa.

— Que maravilha! — disse. — E poder ajustar sem nenhuma falha...

— Santo Deus! É o cylix — exclamei.— Ê isto mesmo, meu velho! —-disse Lutz, sorrindo para

mim. — Acabo de dar-lhe um banho com água-forte. . . não, meu cuidado foi extremo, não tenha receio. E agora, que é que você acha?

— Que acho? Que posso eu achar? As cores eram como você as vê agora, brilhantes, como um esmalte negro e laranja. Esque-ça-se de teorias, e sinta simplesmente toda a beleza disso.

Estávamos ali, dois rapazes tão entusiasmados como se ti-vessem achado o tesouro do Capitão Kidd. Lembro-me que come-çamos acalorada discussão: Lutz preferia aquela Atenas forte e be-licosa que atirava a lança ao gigante, enquanto eu afirmava que a Atenas calma, sentada com a cabeça inclinada para a música de seu tocador de flauta, constituía uma expressão mais elevada de arte. Rindo, apanhei minha parte favorita do vaso, deixando Lutz de posse de sua deusa selvagem.

Então a importância da descoberta do vaso e do artigo que eu pretendia escrever voltaram a impor-se, e eu retomei a terra.

— Mas por que artes do demônio conseguiste apossar-te dele? — perguntei.

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Lutz pôs-se a rir, lançando um olhar apreensivo para o cor-redor.

— É uma longa história. Bem... Mas queres fazer o favor de passar a chave na porta, sim? Obrigado. Ora, pouco importa que aquele trabalhador grego fosse um tolo, ou se tratasse de uma questão de dracmas, ou das duas coisas ao mesmo tempo. . . O certo é que o cylix está aqui. . . é meu. . .

— Mas, de direito, pertence ao governo grego. . . ao Museu da Acrópole — protestei, dèbilmente.

— Sim, é claro que sei disso — riu-se Lutz. — Mas o caso é que êle não vai nem para o governo grego nem para a Acrópole. Afi-nal de contas, por que discutir, Twining? Você bem sabe que estas coisas acontecem todos os dias.

— Bem sei. Apesar das leis, valiosas peças clássicas são con-tinuamente embarcadas para os Estados Unidos, e na verdade, nossa própria escola já comprou espécimes de origem duvidosa.

Então a emoção de minha descoberta apoderou-se novamen-te de mim.

— O seu valor é maior do que você supõe, Lutz. Você não acha nada de estranho em encontrar um vaso de Eufrônio no meio de destroços da invasão persa? Mas como! Acorda, homem! Se Eufrônio e seus contemporâneos viveram e pintaram antes dos persas, quer dizer simplesmente que toda a cronologia dos vasos gregos deve ser empurrada para trás cerca de meio século. E isto significa também que a pintura grega se desenvolveu antes da es-cultura grega, ao invés do contrário, como em geral se acredita. Compreende você, agora? Compreende como este pequeno cylix é capaz de revolucionar todos os ‘nossos padrões de arte grega? Mas é colossal! Quando aparecer o meu artigo. . . quando fôr publicado será citado, discutido e discutido e todos os jornais. . .

— Espere um momento! — comandou Lutz. — Não vamos ainda apresentar este vaso, Você quer adiar um pouco este seu artigo? Promete?

— Não sei. onde você quer chegar — respondi, com firmeza. — Não sei a que deva fazer-lhe promessas. . .

Os olhos negros de Lutz apertaram-se, e sua face tomou uma expressão de astúcia:

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— Pelo que vejo, sua teoria depende de poder você, provar que o vaso foi encontrado sob um monte de destroços que datam da Invasão persa. A menos que possa garantir isto, toda a teoria cai por terra, Penso que você não encontrará ninguém que queira afirmar tal coisa. E se a coisa chegar a um impasse, então todo o mundo se voltará contra o que dissermos.

— Mas o vaso foi retirado dos destroços persas; você mesmo o viu hoje de manhã!

— Talvez.— Mas então você ia. . . mentir? — Talvez.— Mas por quê? Eu simplesmente não compreendo!— Você — disse Lutz suavemente — é que não compreende.

Será que me esqueci de dizer-lhe que paguei pelo vaso com cheque contra minha própria conta bancária?

— Então você não retirou o dinheiro da verba da escola?— Não. E como você vê, meu velho, você não me estava com-

preendendo bem. O vaso é meu.— O que é que você quer dizer? Lutz enrubesceu um pouco sob a pele morena.— Não é para o museu da escola. É. . . para minha coleção

particular. Pretendo fazer dele o começo da mais bela coleção par-ticular dos Estados Unidos. — E estendeu a mão para apanhar a minha metade.

Mas eu recolhi o fragmento, apertando-o de encontro ao pei-to.

— Pare com isto, Lutz, e diga-me de uma vez que de cientista você não tem nada, mas que é simplesmente um gozador. Lembre-se de que você está aqui em benefício da escola, enviado pela es-cola. . .

— E com os diabos, como tenho trabalho para ela! — inter-rompeu êle rudemente. — E continuarei a trabalhar pelos canais regulares. Mas isto é outra coisa, algo fora do comum. É completa-mente irregular, e neste caso o único responsável sou eu. Eu ficarei com este cylix e suportarei as consequências. Agora, queira ter a bondade de me devolver esse pedaço.

— Isto é que não! — respondi-lhe eu. — Se você pensa que

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pode me reduzir ao silêncio. . . me calar vendo você tirar proveito, disso. . . Não, eu vou guardar esta metade do cylix como uma ga-rantia de que você acabará compreendendo qual a atitude certa e agindo direito.

Nossa discussão tornou-se acalorada, pois Lutz pagara o cylix com seu próprio dinheiro e não tocara absolutamente na ver-ba instituída pela escola. Respondi-lhe então que se êle insistisse em se apoderar do fragmento em meu poder, eu daria parte às autoridades gregas que cuidavam para que nenhuma peça de arte fosse retirada do país sem a sanção do governo grego.

Isto o deteve. Desistiu, e até mesmo tentou chegar a bom termos comigo. Provavelmente, Lutz apenas retardou o desenlace da questão até que estivéssemos a salvo, fora da Grécia. Quanto a mim, eu estava firmemente resolvido a fazer com que minha opi-nião prevalecesse.

Entrementes, partimos para os Estados Unidos. Tomamos passagem, como havíamos planejado, num pequeno barco mercan-te que faria uma viagem em volta de algumas ilhas do Atlântico e tocaria em certos portos sul-americanos em sua rota para Nova York. Ainda mantínhamos a trégua. Cada um de nós guardava ava-ramente a sua metade do cylix e cada um de nós se mantinha alheado do outro.

Havia um entendimento implícito entre nós de que o ajuste de contas se faria quando desembarcássemos nos Estados Unidos. Mas o navio estava fadado a jamais chegar.

Estávamos no meio do Atlântico, a cerca de oitocentas milhas ao largo das ilhas do Cabo Verde, em rota para a Bahia quando se deu o choque.

Era de noite, e como soprasse um forte vento, a princípio pensei que o violento safanão que quase me lançou fora do beliche era uma vaga particularmente violenta. Então todo o arcabouço do navio começou a estalar e o ruído do motor cessou de repente, despertando-me completamente. Segurei-me a beira do beliche.

— Que é isto?— Não sei — bocejou Lutz, embaixo, saindo de um sono pe-

sado. — É melhor verificar. . . Que aborrecimento. . .Tateei à procura de uma luz, e nos vestimos quando o navio

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já adernara tanto que era impossível, manter-se alguém em pé. Não trocamos mais palavra, mas Lutz parou de vestir-se para tirar debaixo do travesseiro a caixa que continha a sua metade do pre-cioso cylix. Eu havia segurado a minha metade, colocando-a junto de mim enquanto terminava de atar os sapatos. Cada um de nós olhava para o outro com suspeita; e Lutz seguiu-me rapidamente quando eu, com meu tesouro, subi para o tombadilho do navio.

Segundo parecia, a tripulação enlouquecera, e o capitão tam-bém havia perdido completamente a cabeça, pois no tombadilho passamos por ele e o vimos soluçando, incapaz de dizer qualquer palavra coerente. Os homens lutavam para alcançar os botes sal-va-vidas, que tentavam baixar ao mar.

— Por aqui não conseguimos nada — resmungou Lutz. — Por Deus, vamos sair desta confusão!

Seguí-o, avançando contra o vento e as ondas que arrebenta-vam em cima do tombadilho.

Tropecei sobre um brutamontes que se pusera de joelhos, e choramingara como uma criança. Dei-lhe um safanão e lhe per-guntei:

— No que foi que batemos?— Recifes. O barco está afundando. . . está afundando. Que

o bom Deus, misericordioso, tenha piedade de nós. . .Lutz encontrava-se agora muito adiante, olhando pela amu-

rada do navio. Coloquei-me bem a seu lado, e segui-lhe o olhar.Lá abaixo de nós, apertado contra o costado do navio, ba-

lanceava-se um pequeno caíque, que parecia tão frágil como uma casca de ôvo por sobre aquela imensa massa preta de água que se elevava. Tinha sido arriado provavelmente no primeiro momento de confusão e depois abandonado pelos botes salva-vidas mais se-guros.

— Uma possibilidade — disse Lutz. — Vou arriscar!Voltou-se para mim, e seu olhar se deteve interrogativamente

no bolso de meu paletó onde se encontrava a metade do vaso.— Mas não sozinho! — disse eu asperamente. — Correrei o

risco com você.Ficamos a medir-nos com o olhar. Por todos os lados, em tor-

no de nós, havia o terror da tempestade, estes mesmos vagalhões

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e arrebentamentos e estrondos que estamos vendo agora. Concen-trando minha atenção sobre Lutz, observando-o, sentia meu cora-ção encher-se de ódio, lenta mas seguramente, como um jarro que se enche sob uma corrente dágua... um ódio que ameaçava trans-bordar — um ódio mortal! Então, naquela noite como a de hoje, a idéia dé assassiná-lo nasceu em mim. . . Sim, assassiná-lo!

A crise passou. Inesperadamente, Lutz cedeu.— Pois bem. Continuaremos ainda juntos. . . por algum tem-

po. . .Uma onda nos envolveu. Erguemo-nos novamente, procuran-

do verificar se o pequeno caíque não havia afundado. Não, lá estava ele, sobre as ondas, com o bojo miraculosamente para cima.

— Vamos então! — gritou Luiz. — Não há tempo a perder — disse ainda, tomando dos remos. Conseguimos nos afastar do costado do navio que afundava, e nos distanciamos rapidamente levados pelo mar.

O resto está como que borrado em minha lembrança. Recor-do-me de formas escuras. . . pedaços de destroços flutuantes, e o círculo branco de um salva-vidas vazio. Não vi o vapor afundar.

Com o romper de uma alvorada sombria, o vento parou, dan-do lugar a uma chuva contínua, enquanto os vagalhões, pouco a pouco, foram-se também acalmando e se transformando em ondas espaçadas que, após as tempestades, continuam às vezes ainda por muitas horas. . .

De qualquer modo, para encurtar a narrativa, vogamos du-rante todo aquele dia sem avistarmos sinal de um único navio. Molhado até os ossos e duro de frio, senti-me contente quando tomava dos remos enquanto Lutz dormia. Vimos que as provisões encontradas no caíque consistiam em meio balde de biscoitos, um lampião sem óleo, algumas cordas e encerados, e só.

Comíamos parcimoniosamente os biscoitos e bebíamos água da chuva apanhada no balde. Verificamos que nosso barquinho fa-zia muita água através da emenda das tábuas, na proa, e por isso juntamos na popa todo o lastro possível, e eu me ocupei em tirar o mais que podia a água do fundo.

No fim da tarde, quando a situação parecia ainda pior, per-cebemos um ponto preto no horizonte. Depois, quando a corren-

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teza nos aproximou, o ponto transformou-se numa pilha de ro-chas escuras, nuas e desabitadas. Conseguimos, com dificuldade, aproximar-nos do lado abrigado da ilha, e então, numa estreita enseada, desembarcamos. A massa de rochedos tinha talvez uns quatrocentos metros de comprimento por uns duzentos de largura. Os únicos seres que ali viviam eram gaivotas, insetos e aranhas, e alguns peixes nas águas circunvizinhas.

Estivemos juntos na ilha durante quatro dias.Durante aqueles quatro dias, meio mortos de fome e desabri-

gados como estávamos, Lutz e eu acalentávamos cada um a sua metade do cylix e mantínhamos um olhar atento sobre a outra me-tade. A tensão nervosa criada pela situação tornou-se intolerável. E, pelo que se seguiu, nem sei o que dizer de mim mesmo. Antes daquela crise eu nunca havia sido, em toda a minha vida, um ho-mem perverso.

Você compreende, procurando determinar nossa posição pelo mapa do navio da melhor maneira que podia recordar, cheguei à conclusão de que esta rocha solitária era justamente aquela que Darwín visitara e descrevera em sua investigação de ilhas vulcâni-cas. Se era realmente a ilha que eu julgava, encontrava-se fora das rotas oceânicas e por ela raramente passavam navios. As probabi-lidades de sermos recolhidos, se permanecêssemos na ilha, eram pequenas.

Não revelei tais conclusões a Lutz. Nem tampouco, depois de êle ter comido nosso último biscoito, lhe fiz referência à minha pequena reserva de carne concentrada, que eu então carregava sempre no bolso para me poupar o incômodo de refeições muito freqüentes.

Então, na segunda noite, quando Lutz dormia sob a coberta de um encerado, e eu lutava contra a fome, vi a situação com clare-za, Lutz seria o primeiro a sucumbir à fraqueza. Eu me aguentaria por mais tempo do que êle. O barquínho era nossa maior probabi-lidade de êxito, mas fazendo água como estava, não poderia servir para dois homens. Mas um só, se se colocasse na popa. . . Havia pois somente uma possibilidade. E o cylix. . . o cylix inteiro. . . em meu poder. E o artigo que eu havia de escrever. . .

Cuidadosamente, parti um pedaço da carne concentrada em

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que até aquêle momento eu não tocara.Talvez eu devesse ter vencido meu ódio e dividido com Lutz

minha magra provisão. . . não sei. Mas na manhã seguinte, deita-do de barriga para baixo sobre um rochedo, ele conseguiu, com o canivete atado numa vara, espetar um pequeno peixe. Não dividiu comigo o produto de sua pesca. Desesperado de fome, devorou o peixe, cru, e aquela cena me causou náuseas e tornou ainda mais forte minha resolução.

Invejei a resistência que daquela maneira êle havia arma-zenado, mas não duvidei do resultado final. Apesar de toda a sua constituição atlética, Lutz não tinha resistência, acostumado como estava a uma vida sem dificuldades.

— Entrementes, êle mantinha uma certa aparência de ami-zade e me tratava de forma cordial. Insistiu em juntar lenha seca para fazer um fogo no caso de um navio se aproximar, e eu o enco-rajei naquele esforço; embora não tivéssemos fósforos, êle pensou que pudesse conseguir produzir uma faísca, e conquanto eu sou-besse que aquela rocha era branda demais para servir como pedra de fogo, concordei com ele.

Eu o observava queimar energia e se tornar mais fraco de hora em hora, e esperei. . . esperei. . .

A idéia de homicídio pairava no ar, entre nós, e uma vez que tais coisas nascem, não me admiro que um ódio mortal semelhante ao meu se desenvolvesse na cabeça dele.

Mas não, e embora algumas vezes parecesse que me olhava de modo estranho, Lutz permaneceu cordial. Êle estava tão resol-vido quanto eu a conseguir a outra metade do cylix, mas afora isto continuava meu amigo na sua maneira descuidada, egoísta — tão amigo quanto havia sido antes. Como meu amigo, Lutz, grosseiro e inescrupuloso como era, jamais poderia ter imaginado o que me passava pela cabeça. Foi esse o meu grande pecado; o crime que me faz duplamente amaldiçoado: era meu amigo que eu atraíçoava, um homem ligado a mim pela amizade.

Quando, no quarto dia, cessou a chuva, um quente sol tro-pical apareceu secando as poças dágua nas rochas, que forneciam a nossa água. Senti que estava enfraquecendo. O calor naquelas rochas nuas é pior do que a chuva fria. Comecei a ter febre. Não po-

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deria esperar mais tempo. Enquanto meu companheiro mergulha-va numa espécie de modôrra, reuni umas poucas coisas dentro do caíque, guardei o meu fragmento do cylix numa reentrância oculta na proa, e então me dirigi cuidadosamente para Lutz.

Fui tomado de uma tontura. . . mas continuei. Havia en-saiado aquilo cinqüenta vezes, compreende, de modo que conhecia já todos os movimentos que havia de fazer; e embora minha lem-brança dos acontecimentos propriamente ditos não seja clara, devo ter realizado o que eu planejara. É possível que quando eu estava afastando o caíque, o despertasse, pois tenho, uma vaga lembrança de uma luta.

E quando voltei a mim, sozinho no caíque, num calmo mar azul, senti dor na garganta e mais tarde encontraria ali marcas de dedos, que perduraram por vários dias. Talvez eu o tenha realmen-te matado, e deixado naquele amontoado de rochas... não posso lembrar-me. Mas quer eu o tenha matado com minhas próprias mãos ou não, não tem importância; não há dúvida que eu o matei ao abandoná-lo lá naquela ilha esquecida e reservando-me a única possibilidade de salvamento. Eu era assassino por intenção e por frio cálculo, assassino de meu amigo e colega!”

— E o que aconteceu com o senhor? — perguntei eu ao velho Twining o funileiro.

— Fui apanhado vários dias depois, num estado de semi-consciência, por um pequeno vapor de passageiros, exatamente como eu havia previsto. Na longa viagem para os Estados Unidos, vivi como em pesadelos. Senti-me impelido a confessar a verdade ao capitão e suplicar-lhe que voltasse para apanhar Lutz, mas sa-bia que já agora era demasiado tarde. Sofri sozinho, como merecia ter sofrido.

“Havia noites em que eu sentia meus dedos afundarem-se na carne de sua garganta; outras em que eu olhava para minhas próprias mãos e não podia crer no que acontecera. Quanto à minha metade do cylix. . . Já lhe disse que não consegui apoderar-me da metade pertencente a Lutz, apesar de toda minha determinação, pois somente este fragmento foi encontrado no caíque, escondido embaixo da proa, onde eu o colocara? Este pedaço, embora em mi-nha reação eu o odeie, sempre o mantenho diante de mim como a

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lembrança, como as cinzas do meu pecado.O vapor deixou-me em Boston, e eu vim para aqui: Como o

Agrícola afundara com todos que se encontravam a bordo, para o resto do mundo eu era considerado morto. E isto era justo, como castigo por ter assassinado meu amigo por um pedaço de cerâmi-ca. Eu era inato para a sociedade humana. A pena para meu crime seguiu-se como uma seqüência natural: ser jogado fora do mundo e do trabalho que eu amava; não mais ler qualquer livro nem pôr mais os olhos em qualquer revista que tratasse do assunto que me interessava; em resumo, eu devia renunciar àquilo que era mais vital para mim. Isso seria para mim a prisão, uma prisão pior do que a que muitos criminosos já conheceram.

Encontrei esta casa afastada, entrei em contato com meu ad-vogado, e, tendo obtido dele o compromisso de manter segredo, consegui que minha pequena renda anual fosse paga regularmente a uma pessoa com o nome de T. Twining neste endereço.

Assim me instalei aqui, suplementando minha renda por meio desta pintura. Embora eu próprio tenha fixado os termos de minha prisão, tenho vivido sempre de acordo com eles. Ao todo, durante estes quarenta anos, jamais me permiti quaisquer inves-tigações e nunca ouvi notícias de ninguém que conheci nos velhos tempos. Virtualmente, eu me enterrei vivo.

Sim, o senhor está pensando que foi um erro de minha parte eu enterrar aqui, também, a metade deste valioso cylix, pois, embo-ra seja apenas um fragmento, teria sido suficiente para provar um fato histórico. Talvez eu estivesse errado. Mas, não compreende o senhor, que eu não poderia afirmar nada sem revelar minha identi-dade e dar minha palavra de cientista de que o cylix foi retirado dos destroços da invasão persa? Este caminho era perigoso. . . havia o perigo de deixar-me conduzir para os velhos tempos. E também, haveria nesse caminho honra para mim, para mim que não mereço senão desprezo.

E, sempre, no fundo do quadro, havia a história de Lorna. Não, as tentações eram muitas; não poderia correr o risco de en-frentá-las. Mas leguei minha descoberta à humanidade; deixei uma confissão escrita e uma declaração. Diga-me — o senhor veio re-centemente do mundo — não acha que seria demasiado tarde, de-

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pois de minha morte?Embora eu tivesse alguma vaga idéia das grandes descober-

tas feitas no terreno das pesquisas clássicas nos últimos anos, as-segurei ao velho Twining que talvez não fosse tarde demais.

— E desta forma — concluiu êle sua história — o senhor tem diante de si um assassino! Qual seria, pois, o seu veridicto?

—- Mas como pode o senhor ter certeza? — redargüi eu. — Se o senhor não se recorda mais dos detalhes a respeito do cylix, o senhor também deve ter esquecido outros pontos. Além disso, as probabilidades de salvamento de Lutz na ilha eram tão boas quan-to as do senhor num caíque fazendo água. Quem poderia dizer?

O velho Twining meneou simplesmente a cabeça.O vento voltou a aumentar de intensidade, e o velho deixou

cair a cabeça nas mãos. Eu o vi, naquela noite, sofrer as torturas de um espírito eternamente condenado por uma consciência extra-ordinariamente sensível.

Passada a tempestade, voltou o velho a ser o mesmo dono da casa hospitaleiro quando se despediu de mim na manhã seguinte. Saí com o sentimento de que estivera na presença do homem mais polido que jamais encontrara; de que sua história da noite anterior era absolutamente incongruente para um homem como êle. Acre-ditei haver em sua história algum fator cujo alcance eu não pudera apreender, e prometi a mim mesmo tornar a visitá-lo.

Mas o tempo foi passando. Estive no estrangeiro, na Inglater-ra e na França. Então, dois anos depois, outra vez em Nova York, achei o elo que estava faltando na história do velho erudito.

Era inevitável, suponho, que, como comprador da Casa de Harrow, eu viesse topar, mais cedo ou mais tarde, com Max Bauer. Durante um leilão particular apresentei despreocupadamente uma oferta contra a daquele rico colecionador, e com bom humor perdi para êle. Conversamos, e quando insistiu comigo para que jantasse em sua companhia naquela noite e visse seus tesouros, acedi.

Não sei por que aceitei seu convite, pois não simpatizei com êle; mas estava um tanto curioso a respeito de sua coleção, e sozi-nho na cidade, em pleno verão, de sorte que aceitaria de bom grado qualquer distração.

Foi assim, pois, que êle me fêz jantar bem, e especialmente

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beber muito bem, até à saciedade, na ornada sala de jantar de seu luxuoso apartamento.

Terminada a refeição, tendo sempre a seu lado a garrafa de licor, levou-me através de salas literalmente cheias de quinquilha-rias orientais. Blasonando, contou a história de uma ou outra das peças de sua coleção, como havia roubado um homem ali, como enganara outro acolá. Sua voz tornava-se mais grave à medida que seu entusiasmo aumentava, e eu me sentia completamente a con-tragosto, pensando em como podia pôr fim àquela visita, e retirar-me.

Evidentemente o homem trazia ali poucos amigos em situa-ção de apreciar os seus tesouros de arte, e por sob minha aprova-ção superficial, êle se tornou cada vez mais parlador, até finalmen-te convidar-me a ver sua mais apreciada relíquia, a pequena sala onde guardava as peças mais preciosas de sua coleção,

Detivemo-nos diante de uma aquarela que representava uma esguía jovem, em cinzento.

— Minha espôsa — disse o velho Bauer com um galanteio. — É o seu retrato mais recente.

Voltei-me incrédulo, desviando o olhar daquele rosto muito pálido, onde pairava um sorriso fino e sutil, meio irônico, meio fati-gado, e fitando a cara grande de meu anfitrião. . . Dei de ombros.

— Bela mulher — murmurou êle. — O quadro não lhe faz justiça. O rosto é assim, assim, mas o corpo, . . um corpo digno de ser pintado por um artista.

Desviei dele os olhos e segui o olhar cinzento da jovem até o objeto junto a ela e para o qual ela sorria ironicamente: era um vaso grego com figuras vermelhas.

Então, algo que me era conhecido naquele vaso chamou-me a atenção... como o modelo partido de um sonho já esquecera. Era o fragmento de um vaso, a metade de um cylix, no qual havia uma deusa, pintado em alaranjado, tendo na mão uma lança em riste.

— Ah! -— exclamei eu — a Atenas. . . Eufrónio!— Então você entende disso, hein? — tartamudeou o velho

Bauer, — Não são muitos os que entendem. Coisa clássica. Eu tive outrora a intenção de colecionar obras de arte puramente gregas, mas desisti. Não que eu não tivesse conseguido, se não mudasse

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de idéia, compreende, porque eu em geral consigo o que pretendo, arranjando as coisas como convém. Este aqui — disse êle, levan-tando os supercílios em direção ao vaso — foi meu único fracasso. Mas êle tem uma história — serviu-se de mais um uísque. — Quer escutá-la?

Olhei-o com atenção: os dedos rechonchudos, os lábios cheios, sensuais, a pele morena. Como era mesmo aquele nome? Sim, Lutz, era isto!

Decididamente, eu gostaria de ouvir aquela história!— Meu único fracasso — acentuou êle, recostando-se numa

poltrona. — Mas a culpa também não foi minha. Foi de um pobre diabo, um maluco. Agarrou-se a mim, representando um papel pa-ternal, e eu o tolerei como se tolera a tal gente. Mas me aproveitei bastante dele, pois naquela época eu era apaixonado pelos clássi-cos, e êle sabia alguma coisa do assunto. Alem disso, andava caído por Lorna, e ninguém poderia saber o que isto significava... Há gen-te de gosto engraçado! Mas é melhor contar a história falando do tal sujeito. Nós viajávamos juntos sob o patrocínio da Universidade...Você nem poderia imaginar que eu já fui professor universitário, hein? Pois eu topei com o tal vaso por pura sorte, e um Eufrônio autêntico, partido ao meio, mas completo. Eu queria consegui-lo, e consegui. Mas o tal sujeito — o Bonzinho — achava que o vaso devia ser entregue ao museu da Universidade. Meteu-se também na cachola de querer provar um certo ponto histórico. . . Era um sujeito esquisito, pedante, sabe como é? Foi um caro custo. Eu não tinha intenção de tornar público então a descoberta do meu Eufrô-nio. Mas o sujeito se tinha metido na cachola que havia de escrever algo a respeito. . . E você nem imagina como o homenzinho estava resolvido! E como eu não podia causar uma discussão em Atenas, onde estávamos, tive de tapeá-lo.

“Mas logo que saímos da Grécia . . . Bom, a verdade é que o navio em que viajávamos nunca terminou sua viagem. Foi ao fun-do! — e Bauer fêz floreio com o copo que tinha na mão. — Bem, pois fomos dar numa ilha deserta. Ficamos dependurados numa rocha no meio do oceano, nós dois, e o Bonzinho sempre agarrado com uma das metades do vaso, enquanto eu ninava a outra metade. Nunca passei dias menos confortáveis em tôda minha vida.”

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Bauer tomou da garrafa e despejou mais uísque no copo.— Pobre idiota. . . — continuou Bauer. — Você pensa que ele

se dava conta para onde me estava levando? Não, êle não era capaz disso. Eu tinha alguns fósforos no bolso, escondidos, compreende? E fiz uma pilha de lenha para fazer sinal ao primeiro navio que passasse. Mas eu não tinha intenção de salvar também a êle. Não, o que eu pensava era fazer com que êle saísse à deriva, no caíque.

“E era fácil, pois o homem já estava mais fraco que um gato, compreende? Chegava a estar cinzento.,, e afinal de contas êle não era nenhum fortão. Eu preferia correr o risco de ficar na ilha com um monte de lenha seca para fazer uma fogueira, e ficar com as duas partes do vaso. ..

— Assassinato? — contíuou Bauer, rindo. — É uma palavra feia, náo é? — perseguiu com o dedo trêmulo uma mosca ferida que se arrastava por suas calças. — Ora! a gente vê um sujeito matar por ódio, outro por amor. . . sempre bons e nobres motivos. Mas um verdadeiro colecionador mata por causa de um vaso. Matar é natural. . . é a coisa mais fácil do mundo. . . quando a gente tem pressa. E eu tinha pressa, compreende? Havía um barco passando, porque vi a fumaça. Meti o sujeito no caíque, mas foi preciso lutar; êle ainda tinha um resto de vida, embora o sol já o tivesse abatido bastante. Naquele caíque furado. . . ah! êle não tinha muita pro-babilidade de escapar, sem dúvida. Empurrei-o suavemente, sim, com toda a gentileza. . . assim — e Bauer mostrou como fizera, esmagando a mosca entre o polegar e o indicador — assim, até que deixou de respirar. Procurei então a outra metade do vaso, e não pude encontrá-la. Mas o fumo se aproximava, e eu não podia esperar. Talvez ela ainda esteja lá, escondida nos rochedos. Então empurrei, o barquinho, e a maré arrastou-o, afastando-o do navio que passava...

“Corri e meti fogo nos meus gravetos que fizeram uma foguei-ra dos diabos. Ao mesmo tempo procurava por toda a parte a meta-de do vaso que estava faltando. . . procurei por todas as fendas das pedras, e nada. O caíque já aparecia apenas como um pontinho, e eu nada encontrara. Todo meu trabalho fora inútil! Você compre-ende, eu tinha matado um homem... e afinal de contas, para quê? Bem, mas que fosse para o inferno; afinal, não valia muito. . .

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Mas como? O senhor ainda não vai embora. . . Pois esse foi meu único fracasso. . . Quanto ao resto, consegui tudo: Lorna e esta coleção aqui. . . tudo! Só aquela metade do vaso quebrado é que não. Pena, não é?

Eu saí daquela casa deixando Bauer a acariciar sua metade do cylix da mesma forma como o velho Twining o funileiro havia acariciado a sua com o olhar. Mas, antes de sair, meus olhos caí-ram novamente sobre o retrato da esposa de Bauer, e lembrei-me das palavras do outro homem a respeito dela: “Tinha um belo es-pírito, e nos olhos cinzentos um brilho que era como o verso ines-quecível dc um poema”.

— Amor carnal e amor espiritual — murmurei eu.Bauer foi procurar-me na manhã seguinte.— Que foi que lhe contei ontem de noite? — perguntou-me.Relatei-lhe brevemente.— Ficção! — disse êle, sacudido por um riso contrafeito. —

Bem, mas tenho de ir andando. — Poderá. . . esquecer-se disso?Apressei-me em tranquilizá-lo.— Sim — concordei. — Esquecerei. . . mas com uma condi-

ção: que o senhor vá comigo até o Cabo. . . para ajudar-me a ajui-zar o valor de uma obra antiga, e me dar seu conselho honesto de entendido. . . sem despesas.

Êle consentiu imediatamente, pois despertara em si a vaida-de do conhecedor.

Foi assim que nos dirigimos para o Cabo naquela clara ma-nhã azul, depois da chuva.

Na aldeia fiz investigações a respeito do velho Twining o fu-nilero, e preparei-me para o que havia de encontrar. Chegara a tempo, disse-me uma mulher; ela estava preocupada com o ancião, embora este não permitisse a ninguém permanecer na casa para cuidar dele.

Tomamos pelo caminho que ia dar à praia, e eu mantive Bauer alheado do assunto, respondendo vagamente às suas per-guntas. Era um dia diferente daquele em que eu pela primeira vez trilhara aquele caminho; uma manhã estranha.

O encontro fora planejado unicamente para favorecer o velho estudioso, embora, ao ajudar Twining a limpar sua consciência,

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eu também limpava a consciência de Bauer, o que aliás não podia evitar. Mas Bauer, eu assegurava a mim mesmo, não tinha cons-ciência. De qualquer modo aquilo não teria qualquer importância para êle.

Mesmo assim, era uma situação sem paralelo, pensava eu: dois homens, ambos vivos, cada qual acreditando haver assassina-do o outro. E colocar estes dois homens, frente a frente. . .

Mas a vida é poucas vezes tão espetacular como julgamos. Meus prognósticos falharam.

Além de uma faixa de grama que orlava a praia, que se torna-ra prateada sob o luar, e mais adiante, erguendo-se precariamente sobre o areal, encontrava-se a mesma casinhola cinzenta e rústica. A porta estava entreaberta, e a banqueta de trabalho, deserta. En-contramos o velho num quarto do lado do mar, deitado numa cama de nogueira preta coberta por uma colcha de retalhos.

Êle estava recostado nos travesseiros, e o rosto cansado for-mava como que uma silhueta, tendo por fundo o oceano, naquele dia de uma côr azul, tingida de manchas pálidas, tirando a prate-ado sob o sol. O velho erudito delirava, com o espírito errando em torno daquele seu antigo pecado; continuava penando pelo crime de um homicídio imaginário.

— Meu amigo — murmurou êle — o homem estava ligado a mim pela amizade. . . aquilo era a morte certa. . .

— Escute! — disse-lhe eu. — Este aqui é Max Bauer, o ho-mem que o senhor pensa haver matado! O senhor não o matou, apenas pensa que matou. Êle está aqui, bem vivo!

Mas o velho não compreendia. Repetiu apenas o nome “Max Bauer”, e voltou-se para o outro lado, com um longo estremeci-mento.

Então Bauer tagarelava ao meu ouvido:— O Bonzinho!. . . O velho Bonzinho em pessoa!— Era assim que o senhor o chamava. . . ao homem que o

senhor matou. Agora nada mais adianta, nada mais. Êle ainda está sob a ilusão. . . Jamais poderemos fazer com que compreenda o que aconteceu realmente.

— Mas como?. . .Voltei-me, impaciente, ante a insistência de Bauer, e dei-lhe

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rapidamente os elementos que faltavam para que êle entendesse tudo.

Bauer sentou-se.— Então êle tentou matar-me! O velho. . . coitado! — e pouco

depois, continuou: — Por Deus! Mas é uma sombra do que foi!Olhei para Bauer, sentado ali, corpulento e pesadão.— Sim — repliquei. — Uma sombra.Mas os olhos de Bauer já se haviam desviado de Twining e

fixado uma coisa que se encontrava sobre a colcha, e que a princí-pio êle não vira, confundida com a côr dos retalhos, uma coisa de tonalidades alaranjadas e negras.

— Mas como! É a metade que estava faltando! — exclamou êle, e agora havia realmente emoção em sua voz.

Eu me encontrava entre Bauer e o objeto, guardando o tesou-ro de Twining. E mais uma vez tentei fazer com que o velho Twining recobrasse a memória.

— Aqui está Max Bauer — insisti.Devo ter conseguido o que desejava, porque quando Bauer se

aproximou e quando eu segurei a metade do vaso, o velho fitou o rosto moreno e sensual do outro com uma expressão que revelava recordar-se de algo. Deve ter de certo modo compreendido a situ-ação.

— Sim. . . — murmurou o velho. — Que fique com ela.Tomou o fragmento de minha mão, segurou-o carinhosamen-

te durante um momento em suas velhas mãos fracas e belas, e então colocou-o nas mãos grossas de Max Bauer. Este acertou avi-damente o objeto.

— Matei-o! — tartamudeou Twining.— Matou-me coisa nenhuma! — disse Bauer, rindo, pois ago-

ra, de posse do vaso, podia dar-se ao luxo de ser generoso. — Está tudo bem, meu velho; estamos quites.

Mas Twining tateava, procurando um pedaço de papel.— Aqui está! — exclamou. — Diga-lhes como foi que. . . sim...

a pintura antes da escultura. . .— Mas por Júpiter! Há quarenta anos que o mundo sabe

disso! — explodiu Bauer, olhando cuidadosamente a declaração escrita. — Ora, pois encontraram fragmentos de outros Eufrônios

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naquele mesmo monte de destroços da invasão persa. Já provaram exatamente a mesma coisa, e Deus sabe quantas coisas mais. Fo-ram apenas fragmentos, compreende você, nada tão perfeito como este cylix.

Bauer deixou o papel cair-lhe das mãos, e eu rapidamente apanhei a confissão escrita de Twining, e mais tarde atirei-a na lareira. O velho tornou a cair no miserável estado em que antes se encontrava, sem que parecesse recordar-se do episódio.

Bauer saiu pouco depois.— Foi um bom dia para mim, Van Nuys, e eu o devo exclu-

sivamente ao senhor. Meus agradecimentos — disse, cortêsmente, da porta.

Sopitei minha aversão que lhe sentia. E assim, triunfan-te e sem preocupações, partiu para a cidade Max Bauer, a quem somente circunstâncias fora de seu controle haviam salvado de ser realmente assassinado. Iria agora acrescentar aos seus vários te-souros o vaso do velho Twining.

Eu permaneci ao lado do velho erudito, cujos instintos todos o teriam empedido realmente de cometer o homicídio que havia planejado, e fiquei a observar-lhe a agonia, vendo-o sofrer até o último momento seu pecado imaginário.

E minha esperança é que Deus, no ajuste final de contas, leve em consideração a sensibilidade dos espíritos que Êle há de julgar, e determine, assim, a cada um o castigo que merece.

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O leitor não precisa tremer. O conto premiado, de Lord Dun-sany, “O Homem Mais Perigoso do. Mundo”, embora tenha como personagens o detetive Linley e o homem mais perigoso do mundo, não é o tipo da história que o leitor deva evitar quando se encontre sozinho. Não se trata de uma única mulher, ou de um único homem, em perigo. Não acenda todas as luzes, ou feche todas as portas. Não olhe para baixo da cama, nem chame a polícia. Não, este é um conto completamente diferente. É simplesmente uma história em que milhares de seres humanos estão em jôgo — centenas de milhares, se não toda a raça humana. . .

O HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO

Lord Dunsany

JÁ DECORREU algum tempo, desde que escrevi sobre Mr. Linley, e não acredito que alguém se recorde do nome de Smithers. É este o meu nome. Mas todo o mundo conhece Num-numo, o pi-ckles para carnes e aperitivos. E eu o coloco. Quer dizer: viajo e tomo pedidos para a fábrica, ou, melhor, costumava fazê-lo, antes da guerra transtornar tudo. Alguns devem lembrar-se da história que escrevi a respeito dele, a respeito de Num-numo, quero dizer, pois Mr. Linley apareceu nela e êle é um homem que a gente não esquece com tanta facilidade; mas, se isso sucedeu, você talvez não esqueceu Steeger e o que aconteceu a Unge. Foi uma coisa horrível. Narrei tais fatos no meu conto intitulado Dois Frascos de Pickles. Mais tarde Steeger surgiu de novo: foi quando alvejou o comissário

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Slugger. Pois ninguém pôde prendê-lo por nenhum dos dois casos. Fato curioso, realmente. A polícia sabia perfeitamente que êle ha-via cometido ambos os crimes, e Linley viera e lhes contara de que maneira. Apesar disso, não o podiam prender. Bem, a polícia podia prendê-lo sempre que quisesse, mas o que eu quero dizer é que houve um veredicto de “Não Culpado”, e a polícia mostrava-se mais assustada com isso do que um criminoso com um veredicto con-trário. Assim, Steeger permanecia solto. E sobreveiu, então, o caso de um homem que cometeu três crimes, e Linley prestou, de novo, sua colaboração às autoridades. Prenderam o homem. Deflagrou, em seguida, a guerra, e o crime passou a ser considerado uma coisa insignificante, e ninguém mais ouviu falar de Steeger por um longo espaço de tempo. Mr. Linley foi nomeado para uma comissão, e quando descobriram sua capacidade, êle foi para o Ministério da Guerra, e eu fui ser o que nunca imaginara antes, ou seja, um soldado raso. Não se ouviu mais falar de Num-numo, exceto através das pequenas lamentações dos anunciantes, quando se referiam aos velhos bons tempos. Sim, fui convocado no verão de 1940, e fui estagiar num quartel próximo a Londres. Muitas vezes permanecia desperto, à noite, sob meus cobertores cinza, pensando nas bata-lhas que a Inglaterra já travara, em coisas que ouvira na escola, e nas coisas que os instrutores nos ensinavam, e procurando figurar como se pareceriam as batalhas de outrora e como é que soavam. Enquanto isso, uma batalha era travada sobre a caserna. Cheguei à conclusão de que essas velhas batalhas deveriam ser extraordi-nariamente calmas comparadas com aquelas noites. Mas não te-nho muita certeza.

Bem, aquela batalha terminou decorrido um ano. Nós a ven-cemos; nossos pilotos, quero dizer. Não tínhamos, então, tempo a perder. Foi uma época difícil. Não penso que os alemães estejam se comportando agora como então. Ultimamente eles têm fetio be-las manifestações no sentido de que sejam preservados os bens da cultura e da civilização. Não era assim, porém, que eles com-preendiam o problema, naqueles dias, em que costumavam falar na eliminação de nossas cidades. Mas não vou escrever sobre a guerra: talvez alguém se abalance a isso daqui a cem anos, e que, começando em 1914, omita os anos que vão de 1919 a 1939, e

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prossiga até que ela cesse. Desta guerra pode surgir uma história muito interessante. Vou escrever de novo sobre Mr. Linley. Isso me faz voltar ao ano de 1943. Eu estava de folga, e tinha conseguido carona num caminhão que se dirigia para Londres. Lá chegando, a primeira coisa que fiz foi dar uma volta até Lancaster Street para olhar os velhos edifícios. Queria olhá-lo simplesmente para con-vencer-me de que não vivera sempre num quarto de caserna. Ora, os velhos edifícios tinham desaparecido. Havia apenas uma quadra de capim e macegas floridas. E havia quantidade de cardo-morto. De um certo modo gostei do espetáculo, se bem que não fora isso que eu viera ver. Os edifícios — lembro-o agora — eram um tanto sujos e sombrios e tinham o nome de Clarence Gardens. Estavam agora transformados realmente em jardins; ali surgira o sol, pelo menos, e algumas variedades de flores. Presumo que não há nin-guém em Londres que de vez em quando não suspire pelo campo, e ali havia uma boa porção de campo, absolutamente silvestre. Fi-quei satisfeito, por um momento, de ver aquela quantidade de sol e de vegetação no meio de milhas de calçamento, até que pensei em todo o morticínio que se fizera necessário para que crescesse aque-les cardos. Olhei então para o ar para ver se conseguia localizar o ponto exato em que existira o nosso apartamento, pois me pareceu estranho pensar que eu já andara caminhando naquele espaço, e que estivera sentado e ouvindo Mr. Linley num determinado ponto do céu azul. Quando levantei meus olhos da vegetação, observei que um oficial, que se achava próximo, me observava atentamen-te. Perfilei-me e fiz-lhe a saudação regulamentar, ao que o oficial replicou:

— Mas então é você, Smithers!— Não pode ser Mr. Linley! — exclamei eu, pois êle parecia

tão diferente de uniforme.— Sim, sou eu mesmo — respondeu êle. — Apertamos as

mãos. E, num instante, estávamos a falar do velho apartamento.De repente êle me surpreendeu com esta declaração:— Você é justamente o homem de quem precisamos.Ora, eu já tinha desempenhado toda espécie de tarefas desde

que me haviam feito soldado, toda espécie de tarefas, mas nunca ninguém me dissera aquilo. E aqui estava Mr. Linley me fazendo

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aquela declaração, bem como se fosse verdade.— Mas para quê? — indaguei.— Dir-lhe-ei — respondeu êle. — É que aquele Steeger está

agindo de novo. — Steeger — exclamei. — O homem que comprou dois fras-

cos de Num-numo?— É esse o homem — disse Linley.— Em que é que êle anda metido agora? — perguntei. — Nas

suas velhas trapaças?— Em coisas piores.— Piores! Mas em que, caramba, se o homem já é um assas-

sino?— Êle apenas matou duas pessoas, é pelo menos o que sa-

bemos. Êle era apenas um assassino a varejo. Mas agora é um espião.

— Ah, percebo. Meteu-se agora no negócio por atacado.— Sim, e precisamos que você nos ajude a vigiá-lo.— Teria prazer em prestar-lhes o auxílio que pudesse. Onde

é que êle se encontra?— Oh, êle está aqui, está em Londres.— Mas então por que não o prendem? — perguntei.— Esta é a última coisa que devemos fazer — replicou Linley.

— Isso serviria para prevenir vários outros.— O que foi que êle fêz desta vez? — inquiri.— Ora — respondeu Linley — descobriu-se outro dia que êle

recebeu recentemente mil libras. Somerset House é quem infor-ma.

—- Terá ele assassinado outra pequena e roubado o dinhei-ro?

— Não, a coisa não foi feita com tanta facilidade — esclareceu Línlley. — Êle encontrou a pobre Nancy Elth com as suas duzen-tas libras, mas êle não pode encontrar uma pequena com dinheiro todos os dias,

— Então de onde é que vieram as mil libras? — perguntei.— Foi o dinheiro mais fácil do mundo -— declarou Linley.— Espionando?— Exatamente. É o mais bem remunerado de todos os negó-

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cios escusos que existem no mundo. Especialmente no princípio: são capazes de pagar qualquer coisa para terem um homem nas garras, se êle lhes puder ser de qualquer utilidade. E Steeger pode-ria prestar ótimos serviços. Êle é realmente um criminoso hábil, e poderia ser um ótimo espião.

— E onde é que êle está? — perguntei de novo.— Nós o localizamos — explicou Linley. — Aliás, nunca houve

muita dificuldade em se encontrar Steeger. A dificuldade sempre esteve em provar-se que êle fêz alguma coisa. Sim, aí é que está o problema, como diria Hamlet.

— E que coisa êle terá mandado dizer? — perguntei.— Nada, por enquanto — informou Linley. — Eis porque de-

sejamos que você nos ajude a vigiá-lo. Mil libras é um bom paga-mento, e deve ser por boa informação. E naturalmente o dinheiro foi entregue por algum alemão que reside neste país, ou por algum quisling ou qualquer outra peste deste tipo. Mas ainda não conse-guiram levar a informação para fora do país.

— Como é que sabe? — indaguei,— Porque há apenas uma coisa pela qual os alemães paga-

riam tanto — explicou Linley — e nós sabemos que eles ainda não a sabem.

— De que se trata, posso saber?— Onde será aberta a segunda frente — informou-me Linley.

— Presumimos que êle tenha descoberto a coisa e que outro espião lhe tenha feito um pagamento antecipado. A informação valerá um milhão se êle puder transmiti-la para a Alemanha. Cem milhões seria atribuir-lhe um preço baixo, mas eles provavelmente iriam pagar cinqüenta mil libras por ela. De qualquer maneira, sabemos que eles ainda não têm a informação, e as mil libras constituem um simples sinal. Mas o conhecimento torna Steeger o homem mais perigoso do mundo.

— Mas de que modo pôde êle descobri-lo? — perguntei.— Ainda não sabemos — foi a resposta de Linley.— Compreendo — disse eu. — Vocês precisam então que êle

seja vigiado a fim de que não abandone o país?— Oh, êle não pode sair — esclareceu Linley. — O que preci-

samos evitar é que êle transmita as informações.

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— Como tentaria êle fazê-lo? — perguntei.— Pelo telégrafo sem fio, provavelmente.— Mas de que modo?— Bem, nós conseguimos localizar todas as estações trans-

missoras — informou Linley — que operaram desde que a guerra irrompeu; mas pode muito bem haver ainda, algumas ocultas, em silêncio, esperando para a transmissão de grandes notícias como esta. E penso que localizamos todos os pombos correios, embora possa haver ainda um ou dois de que não tenhamos conhecimento. Mas é mais fácil esconder um telégrafo sem fio do que um pombo, porque você não precisa alimentá-lo.

-— E você deseja que eu o vigie?— Apenas de vez em quando — respondeu Linley. — Êle está

em Londres, e sabemos mais a respeito de todas as casas aqui do que você pode imaginar. Realmente não temos medo de que êle faça qualquer transmissão de Londres, mas não podemos respon-der pelo campo aberto, de modo que êle precisa ser vigiado para onde quer que se movimente.

— E quanto ao outro homem, o espião que o estipendiou?— Êle está muito por baixo — explicou Linley — e não pude-

mos ainda identificá-lo. Mas é apenas porque êle anda por baixo. Se êle se metesse por aí a fazer coisas com um aparelho transmis-sor, nós já o teríamos identificado. Eis porque achamos que êle não tentará desempenhar essa missão, mas a confiará a Steeger. Afinal de contas, Steeger é um sujeito espertíssimo, e não é qualquer um que depois de cometer dois crimes pode andar à solta pela Inglater-ra, Escócia e Irlanda do Norte.

— Gostaria de controlá-lo —- observei eu — se acha que po-derei fazer alguma coisa.

Mas falei de um modo um tanto hesitante, porque, embora Mr. Linley fosse tão amável a ponto de me oferecer tal tarefa, eu estava começando a perceber que ela era muito importante — man-ter em silêncio o homem mais perigoso do mundo — e, para falar a verdade, eu não era o homem próprio para receber uma tarefa tão melindrosa como aquela. Talvez pudesse se tivesse recebido melhor formação, e tivesse tido oporunidade de manejar grandes negócios desde cedo. A realidade é que passei toda minha vida, até então,

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vendendo Num-numo e nunca tive nada maior, em matéria de ne-gócio. De um riiodo ou de outro parecia que eu tinha me diminuído para ficar do tamanho de minha função; ou talvez a função tivesse somente o meu tamanho, e fora essa a razão porque ma deram, e nunca me ofereceram outra de maior significação. E agora aqui estava Mr. Línley a me oferecer uma incumbência que poderia não parecer muito importante se eu a executasse bem, mas que, se me houvesse com infelicidade e permitisse que o homem transmi-tisse suas notícias sobre onde seria aberto a segunda frente, isso podia custar a vida de centenas de milhares de criaturas. Foi por isso que frisei “se o senhor pensa que posso fazê-lo”, e pelo modo que enunciei a restrição eu mostrava a Mr. Linley que não poderia: pareceu-me que era uma maneira decente de colocar a questão. Mas Linley retorquiu: “Não há dúvida, você é o homem indicado para a tarefa.”

— Farei tudo que estiver a meu alcance. Deverei andar far-dado?

— Não — respondeu Linley. — Esse é o ponto. Não quere-mos dar a impressão de que o exército o está controlando. Ou que quem quer que seja o está observando por tal motivo. Mas de um modo ou de outro, embora você represente o perfeito soldado, nes-sa farda, à paisana você há de dar-lhe justamente a impressão que desejamos.

Claro que eu não tinha absolutamente nada de “perfeito sol-dado”, mesmo de uniforme, nem o queria, aliás. Foi bondade dele dizer aquilo, mas percebi logo sua intenção.

— Muito bem — disse eu. — Recuarei alguns anos, colocan-do-me nos dias de Num-numo e me acomodarei perto dele, e terei o cuidado para não parecer muito “militar”.

— Bem — informou Linley -— devo dizer-lhe mais uma coisa. Não precisamos de você agora. Nós o temos sob rigoroso controle. Mas se éle se aproximar de um ponto de transmissão, vamos pre-cisar de alguém extra para vigiá-lo. Êle então terá de ser observado muito de perto. Êle poderia fazer a coisa em cinco minutos, e po-deria muito bem destruir toda a Europa. Quer dizer, as partes que ainda não estão destruídas.

Estes fatos, posso dizê-lo, passaram-se em fins de junho de

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1943, quando todos os planos para a invasão da Europa estavam prontos, e os alemães estavam ainda fazendo conjeturas. E en-quanto procuravam adivinhar tinham de reforçar uma frente, de cinco ou dez mil milhas. Uma palavra de Steeger, se êle tivesse des-coberto a verdade, a reduziria a uma centena de milhas, e poupar-lhes-ia uma porção de aborrecimentos. Tal era a situação quando me despedi de Linley naquele dia estival, depois de um belíssimo lanche que me fêz servir num grande hotel, êle no seu elegante uniforme e eu um simples soldado raso. Lá não tocamos mais no nome de Steeger, mesmo quando não havia ninguém escutando. Êle não iria dizer uma única palavra sobre o assunto num recinto fechado.

Agradeci-lhe por tudo quanto fizera por mim, por se ter lem-brado de mim daquela maneira e por me ter proporcionado um lan-che tão magnífico, feito o que apanhei um ônibus e regressei para a caserna. Pouco tempo mais tarde recebi uma carta de Linley. Dizia apenas isto: “O assunto está assentado e seu comandante já rece-beu a necessária comunicação. Na manhã seguinte fui chamado ao Comando, onde me deram um passaporte e mandaram que me apresentasse ao Ministério da Guerra no mesmo dia, em serviço especial, que me seria dado a conhecer quando lá chegasse.

Assim, toquei-me para Londres e para o departamento do Mi-nistério da Guerra onde fui ordenado a comparecer. Lá recebi um traje civil e uma entrada para um concerto no Albert Hall. O que eu tinha a fazer era sentar-me na poltrona cujo número constava da entrada e tomar o máximo de interesse na música, ao mesmo tempo em que devia observar o homem sentado à minha direita.

Foi tudo o que me disseram enquanto me faziam experi-mentar o novo traje. Estavam a escovar meu cabelo quando Linley entrou. Entendiam que meu cabelo estava com um aspecto por demais militarizado. Linley me deixou tudo bastante claro. O con-certo — explicou êle — devia ser irradiado, e Steeger escolhera um lugar exatamente sob o microfone. Estavam também seguramente informados de que êle continuava retendo o segredo da segunda frente, e era quase certo que diria alguma coisa a respeito durante um dos intervalos, e o mundo inteiro poderia ouvi-lo. Claro que êle precisava ser observado durante todo o tempo, mas provavelmente

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poderia fazê-lo durante um intervalo.— E como poderei detê-lo, senhor?— Bem, estarei lá — respondeu Linley — do outro lado dele,

e penso que poderei detê-lo, mas gostaria de ter sua cooperação, especialmente se êle começar a berrar o nome do país que está para ser atacado. Terá então de fazê-lo calar ou de detê-lo de qual-quer maneira. Mas não pensamos que êle procederá desse geito. Em verdade, as probabilidades são de 1000 contra 1, porque, se o fizer, chamará a atenção e será enforcado, o que naturalmente não lhe passa pela cabeça. O que êle deve estar certo é da possibilidade de fazer algum sinal. Estarei atento, mas gostaria de contar com o seu auxílio.

Bem, isso aconteceu de manhã, e na mesma noite eu me encontrava na Albert Hall, sentado numa poltrona do meio, preci-samente na frente da orquestra, vendo um pequeno objeto pendu-rado num fio, diante de mim. Era o microfone. Reconheci-o logo, porque não se parecia com nada que eu tivesse visto antes, e um microfone devia parecer-se com aquilo. Apareceu então Linley e sentou-se à minha direita, deixando entre nós dois uma poltrona vasia. Nem sequer me olhou. Olhava para a direita e para a esquer-da, mas quando olhava para a esquerda fixava um ponto a milhas além de mim.

Entrou, então, Steeger.Nunca o vira, antes; mas se me permitem dizê-lo, sem causar

ofensa a ninguém, eu posso identificar um criminoso numa sim-ples olhada. Era Steeger em carne e osso. A orquestra começou a tocar. Era o que chamam uma sinfonia. De Beethoven. Sua quinta sinfonia, segundo entendi, e devia haver três intervalos.

Sim, estava muito bonita, e Steeger permanecia sentado, atento e sem fazer nada. Enquanto durou a primeira parte êle não fêz o menor movimento. Nem sequer abriu os lábios.

Deu-se o primeiro intervalo. Eu o observei como um gato es-preitando um cachorro. Num momento cheguei a relancear Linley, mas êle aparecia absorto na música, como se a estivesse acarician-do no espírito, e com a mão direita sob o casaco. Estava também à paisana. Observei Steeger de novo. Neste momento êle pôs a mão no bôlso interior do seu casaco, abriu a bôca e aspirou o ar. Ia tos-

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sir. Uma ou duas pessoas também tossiam um pouco, pequenos pigarros que haviam podido conter enquanto a orquestra tocava. Mas Steeger ia tossir fortemente. Podia-se prever pelo tamanho de sua respiração. No mesmo instante Linley tirou do bolso um lenço encarnado. Dirigiu-me, então, um rápido olhar e me fêz um leve sinal com a mão, dizendo-me para não fazer nada, pois eu estava justamente me inclinando para a frente procurando saber se devia tomar qualquer iniciativa. Linley reclinou-se de novo e começou a pensar na música novamente. Parecia, pelo menos, muito satisfeito e bem acomodado. Steeger tossiu, e eu o deixei, diante do sinal de Linley. Assoou o nariz um tanto ruidosamente uma e duas vezes e tossiu novamente. E, tossindo de novo, outra vez assoou o nariz, guardando, finalmente, o lenço.

Permaneceu, depois disso, tão quieto quanto Linley. Passa-dos alguns instantes a música recomeçou. E Steeger não mais se moveu ou abriu os lábios enquanto ela durou. Quando sobreveiu o segundo intervalo, olhei para Linley e êle apenas sacudiu a cabe-ça. Steeger, então, aspirou profundamente o ar e puxou do lenço, o mesmo fazendo Linley. Steeger tossiu de novo e assoou o nariz, repetiu a tossida, e novamente aspirou o ar, terminando com uma tossida e com uma assoada, precisamente como fizera antes.

E então a orquestra começou de novo. Uma bela música, imagino, se fosse possível ouvi-la. Eu, porém, estava por demais ocupado: observava Steeger. Não que êle fizesse mais alguma coisa, durante a música ou no último intervalo, ou enquanto ainda durou o espetáculo: não chegou sequer a espirrar mais.

Em verdade não há muito mais o que dizer: Linley me con-tou depois o que se passou; o que Steeger fêz, quero dizer. Poucos dias depois ocorreu a invasão da Sicília, e então Linley me falou. Obteve-me outro dia de licença, em recompensa ao útil auxílio que disse eu haver prestado, embora eu pense que o auxílio não foi tão útil assim. De fato, eu em verdade não fiz coisíssima nenhuma, mas, não obstante, aproveitei a licença e fui a Londres ver Linley. Êle me proporcionou outro almôço o qual foi muito apreciado, pois me fêz lembrar os velhos tempos, antes da guerra. Explicou-me, nessa ocasião, que sinais Steeger havia feito. Êle o fizera em código Morse. Cada tossida representava um ponto e cada assoada um

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traço. E a palavra por êle transmitida fora Etna.— Por que Etna? — perguntei.Porque era uma palavra muito mais curta que Sicília. Apenas

seis pontos e traços, explicou êle, enquanto a palavra Sicília exigi-ria pelo menos doze. Etna, ou por outro lado, era mais do que sufi-ciente. Êle, porém, não conseguiu. Havia um homem no palco com o dedo colocado num botão e observando Linley durante o tempo todo; no momento em que êle viu o lenço encarnado de Linley, seu dedo comprimiu o botão e interrompeu a irradiação. Esta, natural-mente, foi reiniciada quando a orquestra começou a tocar de novo; e tudo o que os ouvintes perderam — quer dizer, o mundo — foi o ruído da assistência se agitando na platéia, e aqui e ali um músico preparando o instrumento e os pequenos ruídos que se ouvem nos intervalos. Assim, nem sequer houve necessidade de se explicar o que sucedeu. Mas a explicação estava pronta para o caso de se ter de interromper a música.

— Qual era a explicação?— Um contratempo técnico — esclareceu Linley.Oh, há ainda outra coisa a acrescentar. Haviam-me recomen-

dado que eu me tornasse tão insignificante quanto possível e que não me parecesse com um soldado e que, por outro lado, não pa-recesse que o estava observando. Assim, o que me pareceu melhor foi apresentar-me exatamente como sou — como sou agora, quero dizer — voltando ao antigo eu, que é o meu eu real. Isso quer dizer, se quiserem saber minha opinião, que talvez ninguém conheça re-almente muita coisa sobre si próprio, ou o que realmente seja. Pois bem, abordei Steeger quando êle estava saindo e disse-lhe como estes tempos estavam ruins para os negócios, e para tudo o mais, já que ninguém podia obter coisa alguma, nem mesmo Num-numo. Tempos melhores, porém, haveriam de vir e Num-numo reapare-ceria no mercado. E eu era um bom vendedor, o que pude provar, pois trazia um ou dois formulários de pedido no bolso. Gostaria êle de autorizar um pedido? Êle receberia um frasco logo que a guerra terminasse, e pelo preço antigo, e até mesmo abaixo daquele preço se êle ficasse com meia dúzia. Nenhum pagamento seria necessá-rio antes da entrega da mercadoria. E consegui ordem para meia dúzia, e êle preencheu o formulário indicando o nome e o endereço.

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Cornelius Westerhouse, foi o que êle escreveu, residente em Ba-pham Road, 94, Wandsworth. Claro que eu sabia que não existia tal estrada e que nunca existiu ninguém com o nome de Cornelius Westerhouse. Mas de um certo modo me era agradável estar de novo realizando o meu antigo trabalho. . ,

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O CRIME PERFEITO

Ben Ray Redman

O MAIOR detetive do mundo sorveu complacentemente uns goles daquele vinho do porto alguns anos mais velho do que êle próprio e fitou com insistência, por cima da mesa, o mais íntimo de seus amigos. Por muitos anos o detetive não se permitira o luxo de ter amigos. Gregory Hare correspondeu, atento ao olhar.

— Não há dúvida — reiterou Trevor, pondo o cálice sobre a mesa — o crime perfeito é possível; requer somente um criminoso perfeito.

— Naturalmente — concordou Hare com um dar de ombros — mas o criminoso perfeito. . .

— Você quer dizer que o criminoso perfeito é um mito, a que não se pode encontrar em carne e osso?

— Exatamente — disse Hare, assentindo com um gesto de sua volumosa cabeça.

Trevor suspirou, tornou a bebericar o seu vinho, e ajustou os óculos sobre o nariz fino e aguçado:

— Sim, admito que até agora não o encontrei, mas sempre tenho esperanças.

— Esperanças de ser logrado?—- Não, tenho esperança é de ver os métodos perfeitos de

investigação postos à prova até os limites de suas possibilidades. Você sabe, um investigador bem dotado é algo mais do que um policial inspirado com um pouco de sangue de cão rastreador nas veias, algo mais do que um cientista meticuloso; é também um crí-

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tico de arte, e nenhum crítico de arte gosta de ser condenado a uma prolongada dieta de materiais de segunda ordem.

— Perfeitamente.— Este material de segunda ordem é realmente deplorável,

mas o pior não é isto. Pense você nestes crimes de segunda, tercei-ra, quarta, e Deus sabe lá de que ordem, com que nos deparamos todos os dias! E mesmo as obras-primas, os “clássicos”, são ainda trabalho malfeito quando examinados de perto: uma falha aqui, outra ali, sempre algo falso, malfeito.

— A maioria dos assassinos é feita de tolos — interrompeu Hare.

— Tolos! Naturalmente que são, e você deve sabê-lo, pois já defendeu a muitos deles. A dificuldade para a existência do cri-me perfeito é que o homicídio nunca evoca os melhores esforços produzidos pelos melhores cérebros. De regra, é trabalho de uma mente inferior, esforçando-se com astúcia por alcançar uma perfei-ção acima de suas possibilidades, ou então de um cérebro superior tão cego pela paixão que suas faculdades ficam temporariamente prejudicadas. Naturalmente há os doentes mentais homicidas, que são em muitos casos inteligentes, mas não têm imaginação e não variam seus métodos, e cedo ou tarde sua incapacidade para faze-rem outra coisa senão repetir-se a si mesmos leva-os a um passo em falso.

— A repetição é estupidez — murmurou Hare — e a estupi-dez, como já acentuou alguém, é o único pecado imperdoável.

— Certo — concordou Trevor — é; e um sem-número de cri-minosos têm pago por tal pecado. Mas, quase no mesmo número de casos, pagaram também por sua vaidade. Praticamente todos os criminosos, a menos que sejam impelidos ao crime acidentalmente, são refinados egoístas. Você sabe disso tão bem quanto eu. Têm uma tremenda confiança em sua própria força, e via de regra não são capazes de se manterem calados.

Os óculos do Dr. Harrison Trevor brilhavam, e ele não cessava de puxar o fio negro que deles pendia, enquanto falava com rapidez e precisão. Estava no seu próprio chão, e sabia do que estava fa-lando. Durante vinte anos fizera dos criminosos sua especialidade e sua presa legítima. Havia-os caçado por todos os países, e caçado

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com êxito. No andar de cima, na gaveta da cômoda de seu quarto de dormir, encontrava-se uma grande caixa de couro vermelho que guardava os símbolos visíveis desse êxito: pequenas condecorações de ouro e prata ornadas de fitas coloridas eram testemunhas mu-das da gratidão de vários governos europeus, em ocasiões notáveis, para com o maior caçador de homens de sua geração. E se Trevor falava “ex cathedra” a respeito de homicídios era porque lhe assis-tia tal direito.

Hare, por outro lado, era um ouvinte atento e respeitoso, mas, como advogado criminal de longa experiência, era homem de idéias próprias; e sempre as expressava quando não havia nenhu-ma vantagem legal em conservá-las apenas para si. E, com voz suave, expressou uma delas:

— Com que então todos os assassinos são grandes egoístas, não? E que dizer dos grandes detetives?

Trevor piscou os olhos, e depois sorriu friamente, puxando pelo fio preto das lunetas:

— A maioria dos detetives são uns asnos, concordo com você; asnos completos e presunçosos como pavões. Muito poucos são grandes. Somente conheço três. Um está agora em Viena, o segun-do em Paris, e o terceiro está. . .

Hare interrompeu-o com um gesto:— O terceiro, ou melhor, o primeiro, está nesta sala.O maior detetive do mundo assentiu com um gesto brusco

de cabeça.— Evidentemente. Aqui não cabe falsa modéstia, não é mes-

mo?— Sem dúvida. E seria difícil manter tal atitude logo depois

do caso Harrington. Puseram fim aos padecimentos do rapaz faz duas semanas, não foi?

Trevor fêz um gesto de desdém.— Sim, se você quiser chamá-la de “pobre rapaz”; era um as-

sassino intencional. Mas voltemos a esse nosso crime perfeito.— Seu — corrigiu polidamente Hare. — Ainda não aceitei a

possibilidade de um crime perfeito. E como poderia você saber que tal crime houvesse sido cometido? O criminoso nunca seria desco-berto.

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— Se êle tivesse um pouco de orgulho artístico, deixaria um relatório completo para ser publicado depois de sua morte. Além disso, você se esquece dos métodos perfeitos de identificação de criminosos.

Hare emitiu um ligeiro assobio.— Há um problema teórico para você. Que aconteceria quan-

do o detetive perfeito fosse lançado à procura do criminoso perfeito? Mas a difidade está em que não existe perfeição em parte alguma.

O Dr. Trevor, sentado muito têso, fitava seu interlocutor.— Na investigação do crime existe a perfeição.— Bem, talvez exista — admitiu Hare, rindo amistosamente.

— Você deve saber, Trevor. Mas penso que o que você realmente pretende dizer é que existe um método perfeito para desvendar cri-mes imperfeitos.

A rigidez do doutor desapareceu, e agora êle ria com seu me-lhor bom humor.

— Talvez seja realmente isto que quero dizer, sim. Mas há uma experiência que eu gostaria de fazer, de qualquer modo.

— E qual é?— É, ou melhor, seria, a experiência de exercer toda a minha

inteligência na perpetração de um crime, e depois, esquecendo-me inteiramente de todos os detalhes, usar minha habilidade e meus conhecimentos para resolver o enigma de minha própria criação. Eu me prenderia a mim mesmo ou escaparia de mim mesmo? Aí é que está a questão.

— Seria um belo acontecimento esportivo — concordou Hare — mas temo que não possa ser realizado. A dificuldade está nesta ninharia de esquecer-se dos detalhes. Mas seria interessante ver o resultado.

— Sim, seria — disse o outro, falando de modo um pouco mais sonhador do que o habitual — mas nunca podemos enxergar tão longe quanto desejamos. O meu japonês, Tanaka, tem um dito a que recorre sempre que lhe fazem uma pergunta difícil. Sorri e responde: “Fuji san ni nobottara sazo toku made miemasho”, e que significa: “Creio que se alguém subisse ao Monte Fuji veria mais longe.” A dificuldade está que, como no caso de muitos problemas, não podemos subir a montanha.

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— Sábio Tanaka! Mas, diga-me, Trevor, qual é a sua concep-ção de crime perfeito?

— Talvez não seja bem formulada, mas tenho mentalmente um esboço grosseiro que lhe descreverei tão bem como puder. Ini-cialmente, porém, vamos até à biblioteca: lá estaremos mais à von-tade, Tanaka terá assim oportunidade para limpar a mesa. Apanhe o seu charuto e venha.

Juntos, os dois homens subiram a estreita escada, o Dr. Tre-vor adiante. A casa era uma construção pesada, de tijolos nus, pelas alturas da rua 50 Leste, não longe da Madison Avenue. Seu aspecto pitoresco não poderia servir de característica de seu proprietário, mas o asseio combinava perfeitamente com êle. Não era uma casa grande, medida de acordo com os padrões da classe rica de Nova York, mas era perfeitamente mobiliada e consideravelmente mais espaçosa do que parecia da rua, pois o médico havia construído uma parte que cobria inteiramente o terreno que outrora servira de pátio. E estas novas dependências, além de incluírem a cozinha e os apartamentos dos criados, tinham um laboratório e uma sala de trabalho cujo pé direito correspondia à altura de dois andares. Um químico industrial ou um pesquisador haveria de invejar o equipa-mento que se encontrava naquele laboratório; e os fichários que se alinhavam, circundando completamente a galeria poderia fornecer a qualquer jornal um completo arquivo. Uma porta se abria da biblioteca para o laboratório, e a biblioteca propriamente dita bem poderia ser considerada o quarto ideal de estudioso. A casa do Dr. Harrison Trevor era, em suma, o lugar ideal para um solteirão, e éle jamais fora tentado a transformá-la em algo diferente. Mais de um visitante havia encontrado motivo para exclamar: “O velho Trevor sabe passar bem.”

A mesma idéia passou pela mente de Hare ao tirar as pri-meiras baforadas do excelente charuto que o amigo lhe oferecera e provar o licor que Tanaka havia colocado na mesa ao lado de sua poltrona. Também Hare desfrutava os prazeres do celibato, mas jamais tivera a habilidade de aprender a gozá-los tão completamen-te. Enfim, haveria de tomar algumas medidas que representassem melhor na rotina de sua vida. Podia dar-se ao luxo de fazer tal coisa.

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— O crime perfeito tem, naturalmente, de ser um homicídio — disse Trevor, rompendo o silêncio.

Hare torceu um pouco o busto e inquiriu:— Sim? Por quê?— Porque, de acordo com nossos padrões de julgamento, o

homicídio é o mais reprovável de todos os crimes, e, além disso, segundo meu interesse, o melhor. A vida humana é o que mais va-lorizamos e em cuja proteção mais atentamente nos empenhamos; tirar a vida humana com uma arte que evite toda a capacidade de investigação é inquestionavelmente o ideal da ação criminosa. Há nela um grau de beleza maior do que em qualquer outro crime.

— Bah! — murmurou Hare — você está fazendo disto uma coisa agradável.

— Falo ao mesmo tempo como amador e como professor de crime. Você já ouviu cirurgiões falar em “casos belos”. Pois bem, esta é precisamente a minha atitude, e em meus casos invariavel-mente, como na maioria dos outros, o paciente morre.

— Compreendo.Trevor piscou os oihos, puxou, mais uma vez pelo fio que

prendia as lunetas, e continuou:— O crime tem de ser um assassínio, e um assassínio de

modalidade particular, do tipo mais puro. Bem, qual é o tipo mais puro? Vejamos. O crime passional pode ser posto de lado imediata-mente, pois é quase impossível que possa ser perfeito. A paixão não auxilia a arte, e o sangue, quente demais, leva a um sem-número de erros. E que me diz do homicídio com finalidade de proveito material. Os assassinos desta espécie fazem o homicídio um meio, não um fim em si mesmo. Matam não propriamente para eliminar a vítima, mas a fim de tirar vantagens de sua morte. Não, não po-demos considerar o assassino por dinheiro como o tipo ideal capaz de produzir nosso crime perfeito.

O médico de nariz aguçado fêz uma pausa e manteve o cha-ruto por alguns instantes presos entre os lábios delgados. Hare observava-lhe a fisionomia com curiosidade. A completa falta de emoção daquele homem ao discutir tais assuntos não era de todo agradável — refletiu.

Trevor tirou o charuto da boca.

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— Bem, e os assassínios por motivos políticos e religiosos? Podem ser descartados imediatamente pela simples razão que, em tais casos, o homicida está sempre convencido de servir o bem pú-blico ou a Deus, e, portanto, poucas vezes faz qualquer tentativa para esconder sua culpabilidade. Mas há outra espécie a ser con-siderada: os que matam pela pura alegria de matar, os que são dominados pela avidez de sangue. Sem dúvida irá você pensar que estes constituiriam o tipo mais puro. Mas, como disse antes, os dementes invariavelmente se repetem, e esta repetição conduz à sua descoberta. E ainda mais importante é a consideração de que o artista deve possuir a faculdade de escolha, faculdade esta que o homicida nato não tem. Suas ações não são produto de sua volição, são ações obrigadas. Ora, o crime perfeito deve ser uma obra de arte, não uma necessidade.

— Você parece ter riscado muito bem todas as possibilidades — observou Hare.

O médico sacudiu rapidamente a cabeça:— Absolutamente. Há ainda um tipo de assassino, e este é o

tipo que estamos procurando: o assassino que deseja simplesmen-te a eliminação de sua vítima, que mata com o único e puro objetivo de remover sua vítima deste mundo, de livrar-se de uma pessoa cuja existência não lhe é desejável.

— Mas isto traz você de volta para o seu crime passional, não é verdade? Praticamente, todos os assassinos por ciúme — para exemplificar — são assassinos que desejam simplesmente a elimi-nação de sua vítima, não é?

—- Em certo sentido, sim, mas não no sentido mais puro. E, como disse antes, a paixão jamais pode produzir o crime perfeito. Êle tem de ser estudado, meditado cuidadosamente, e levado à prá-tica no mais absoluto sangue frio. De outro modo é absolutamente certo que há de ser imperfeito.

— Você trata desse assunto como se tivesse sangue de barata — observou Hare, quando o médico fazia uma pausa.

— Naturalmente, e este é o único jeito de se cometer o crime perfeito.

Bem, agora posso imaginar um homicídio de eliminação, puro, que seria ideal pelo menos quanto aos motivos e circunstân-

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cias. Imagine que você passou quinze anos procurando interpretar uma certa passagem duvidosa de uma ode de Píndaro.

— Ora essa! — interrompeu Hare jocosamente! — É boa!— E imagine — continuou o Dr. Harrison Trevor, não to-

mando conhecimento da interrupção — que outro estudioso tivesse sido capaz de conceber uma argumentação de molde a invalidar completamente a sua interpretação. Imagine, depois, que êle tenha revelado a você as provas que possui, e que não as tenha mostra-do a ninguém mais. Você teria aí um motivo perfeito e um perfeito conjunto de circunstâncias; somente ficaria faltando para ser ela-borado o método para levar a cabo o homicídio.

Gregory Hare sentou-se, de um salto.— Por Deus, homem! Que quer você dizer com o “método

para levar a cabo o homicídio?”O médico piscou.— Mas então, não compreende? Você teria excelentes razões

para eliminar seu rival e dessa forma salvar a própria interpreta-ção do texto, impedindo que ela sofresse uma confrontação. E nin-guém, após a morte de sua vítima e da destruição das provas, po-deria suspeitar de que você tivesse qualquer motivo. Você poderia trabalhar com absoluta liberdade; poderia concentrar-se em dois pontos essenciais: o método pelo qual a eliminação seria realizada, e, naturalmente, a maneira de dar sumiço ao cadáver.

—- Dar sumiço ao cadáver? — fez Hare, parecendo um eco involuntário das palavras do outro.

— Claro. Trata-se de um ponto muito importante, sem dúvi-da. Mas posso gabar-me de ter realizado algumas pesquisas muito valiosas neste setor.

— Sim? — murmurou Hare. — E que foi que você desco-briu?

— Eu lhe direi mais tarde — assegurou-lhe Trevor —- e não creio que diria a qualquer outro homem, porque, realmente, é mui-tíssimo simples e muitíssimo perigoso. Mas por ora quero que você compreenda muito bem que a maneira de dispor do cadáver é tal-vez a medida mais importante de todas para a realização de um crime perfeito. A ausência de um corpo de delito é curiosamente perturbadora para a polícia. Harrington poderia realmente ter con-

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seguido livrar-se do corpo de West, embora isto provavelmente não o tivesse livrado de sentar-se na cadeira elétrica há duas semanas. Êle foi muito descuidado.

Mais uma vez Hare soergueu-se na cadeira e exclamou:— Era? E por falar nisso, era sobre o caso Harrington que eu

queria principalmente falar a você esta noite.— Ah, sim? Pois bem, poderemos tratar dele, daqui a pouco.

E, por falar nisso, o caso pode ser classificado como muito próximo de um homicídio de eliminação; mas o elemento dinheiro figurava nele, dinheiro grosso, e o ouro tem a propriedade de deixar um cheiro muito forte sempre que se mistura com o crime. O motivo de Harrington foi facilmente descoberto, mas sua posição tornava, impossível tocar nele até que não houvesse, no caso, a menor pos-sibilidade de dúvida.

— A menor possibilidade de dúvida? Era justamente isto que eu queria saber. Compreenda, eu estive no estrangeiro até a sema-na passada, e só fiquei sabendo mesmo da prisão de Harrington pouco antes de embarcar. Os jornais da África do Norte não são lá muito informativos. Eu estava particularmente interessado porque conhecia muito bem os dois homens, e conhecia ainda mais a mu-lher de West.

— Sim, sim, a esposa. . . Mulher interessante. Eles estavam separados, e ela está na Europa desde há uns dois anos e meio.

— Sim, eu sei que ela tem estado lá. . . a maior parte do tem-po.

— Todo o tempo. Nunca esteve nos Estados Unidos durante este período.

— Não? Pois bem, eu a vi pela última vez em Monte Carlo, mas isto não tem importância, no momento. Desejo saber como foi que você conseguiu descobrir a pista de Harrington.

O Dr. Harrison Trevor sorriu complacente, ajustou suas lu-netas, e respondeu então, com sua maneira peculiar:

— Jamais houve coisa mais simples. A única falha foi que, finalmente, Harrington confessou. Isto até me aborreceu, porque não precisamos de confissão; as provas circunstanciais eram com-pletas.

— Circunstanciais?

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— Naturalmente. Você sabe tão bem quanto eu de que a maior parte das condenações por homicídio baseiam-se em provas circunstanciais. Ninguém envia convites para as pessoas compare-cerem como testemunhas a um homicídio.

— Não, claro que não. Desculpe.— Bem, como você provavelmente sabe, Ernest West, agente

da Wall Street e multimilionário (pelo menos segundo os jornais), foi encontrado com o coração atravessado por uma bala uma noite, há pouco mais de um ano. Êle possuía um barracão em Long Is-land, perto de Smithtown, que usava em suas caçadas e pescarias. A única pessoa que êle mantinha lá para servi-lo era uma velha zeladora, habitante da localidade. West gostava de levar uma vida simples, quando podia. Nem mesmo se fazia acompanhar por um chofer. Na noite em que foi morto, a zeladora se achava ausente, passando a noite com uma de suas filhas, que estava doente. Em seu depoimento, a mulher declarou que West a havia dispensado do serviço naquela noite, dizendo-lhe que êle podia tratar do pró-prio jantar e do café na manhã seguinte. Ela voltou no outro dia e quase morreu do choque. West foi assassinado numa sala em que conservava suas armas de caça e alguns livros, e que por sinal era a melhor peça da casa. Não havia sinais de luta. Foi encontrado caído sobre uma poltrona. A bala que o matou era de calibre 25. Fust, do Departamento de Homicídios, chamou-me logo que os ins-petores de serviço não conseguiram localizar qualquer indício, e eu me toquei para lá imediatamente. West era um homem importante, como você sabe.

O doutor puxou vaidosamente o fio que lhe prendia as lune-tas, e continuou:

— Fui para lá imediatamente, e descobri várias coisas. Em primeiro lugar, a casa era isolada, e não havia nas vizinhanças ninguém que pudesse prestar qualquer informação. O cadáver fora descoberto por um mensageiro que levou um telegrama, às sete e meia; o exame médico indicou que o assassinato fora cometido cerca de uma hora antes. Dentro de casa encontrei apenas uma coisa que me pareceu útil. Depois de mandar recolher a poeira do chão no local do crime, encontrei vários minúsculos pedaços de fio que muito obviamente deviam ter pertencido a uma roupa de

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casimira; e tais fios não combinavam com nenhum traje dos que fo-ram encontrados no guarda-roupa de West. Mas podiam ter vários meses, e de início eu não concentrei neles minha atenção. Fora da casa havia mais coisas em que ocupar minha atenção. O terreno era úmido, e duas espécies de pegadas estavam visíveis: uma de homem, outra de mulher. . .

— De mulher? — Hare era agora toda atenção.— Sim, da zeladora, naturalmente.— Ah, claro; da zeladora.— Sem dúvida. Mas era difícil identificá-las, porque o homem,

segundo parece, em conseqüência do seu nervosismo, caminhou para cima e para baixo no sendeíro que conduzia à estrada, várias vezes antes de deixar finalmente a cena de seu crime; e assim pi-sou, reformando, quase todas as pegadas deixadas pela mulher, mal restando algumas intatas.

— Coisa estranha, não é?— Muito, a primeira vista, mas em realidade bastante sim-

ples quando se pensa melhor. O assassino apressou-se em afastar-se da casa logo que disparou o tiro mortal, depois hesitou. Sentia-se confundido e não se resolvia sobre o que havia de fazer, mesmo tendo um automóvel a esperá-lo no fim da vereda. Então caminhou de um lado para outro durante alguns minutos, a fim de acalmar os nervos, e poder coordenar as idéias. Era um sendeiro estreito, e a deformação das pegadas existentes foi, é lógico, coisa acidental e inevitável.

— Êle tinha um automóvel à sua espera?Sim, um pesado carro de turismo. As marcas dos pneus eram

lisas, como também o eram as do táxi que West chamara naquela tarde para levar a zeladora. Mas havia algo interessante naque-las marcas de pneus. Havia uma excrescência dura e volumosa num deles, que deixava uma marca perfeitamente identificada na lama da estrada, cada vez que correspondia a um giro completo da roda.

— Compreendo. E ambas as espécies de pegadas terminavam no mesmo lugar?,

— Naturalmente. O táxi se detivera ali para apanhar a zela-dora, exatamente no mesmo lugar do outro.

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— Hum — fez Hare, acendendo outro charuto, e tirando uma baforada, como para refletir melhor, antes de perguntar. — E você está absolutamente certo de que a mulher não entrou no carro com o homem?

Trevor fitou Hare, sem compreender, e exclamou:— Você está dando largas à sua fantasia, Hare. A mulher era

a zeladora, e ela saiu num táxi de aluguel pelo menos duas horas antes do crime ter sido cometido. De qualquer modo, Harrígton confirmou serem corretas todas as minhas deduções, quando fi-nalmente confessou.

O Dr. Harrison Trevor estava evidentemente exasperado.— Ah! sim, naturalmente, êle confessou. Esqueci-me; descul-

pe. Mas conte-me como você o apanhou.Durante um momento o detetive olhou, incrédulo, para seu

amigo, como se temesse que o outro pudesse estar a lançar-lhe uma isca, pois as perguntas de Hare não eram as que seu espíri-to alerta geralmente fazia. Parecia que êle escondia alguma coisa. Mas Trevor pôs de lado sua suspeita e voltou à agradável tarefa de descrever seu triunfo.

— Com a bala, as pegadas, as marcas dos pneus, e os fios de lã, eu já dispunha de elementos para avançar consideravelmente. Tudo que tinha a fazer era adaptá-los de forma inequívoca a um só homem, e teria descoberto o assassino. Mas a pista nos levou logo a setores em que deveríamos mover-nos com cuidado. Com meus elementos de prova diante de mim, eu tinha de fazê-los cair sobre um indivíduo que pudesse ter tido um motivo para matar West. Pelo menos segundo todas as aparências, êle não tinha inimigos; mas, por outro lado, tinha poucos amigos. Acreditava na máxima, segundo a qual viaja mais depressa quem viaja sozinho. Não obs-tante, havia arruinado a vários homens com suas operações na Wall Street, e foi a respeito de suas operações financeiras que eu concentrei minha atenção. Lá, com às facilidades de investigação de que dispunha, descobri alguns fatos interessantíssimos. Duran-te as três semanas que precederam à morte de West, as ações ao portador da Elliott Light and Power Company haviam subido cin-qüenta e sete pontos; quatro dias depois de seu assassinato, elas caíram nada menos do que sessenta e três pontos. As investigações

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revelaram que no dia em que West foi morto, Harrington anunciara a venda de cento e trinta mil ações daquela companhia, abaixo do preço. Êle vendera abaixo do preço corrente nos dias anteriores, enquanto West comprava todas as que eram oferecidas. Os recur-sos de Harrington, embora muito grandes, não eram iguais aos de seu rival, e êle bem sabia que a menos que pudesse fazer com que as ações da Elliott tivessem realmente uma baixa espetacular, êle seria um homem arruinado. Assim, resolveu seguir o único cami-nho que lhe parecia certo: eliminar West. Foi um homicídio por causa de milhões.

Trevor deteve-se de modo a causar impressões ao outro. Hare não disse palavra.

-— Isto é mais ou menos toda a história, o resto é apenas rotina. Um dos meus homens encontrou quatro pneus, três em perfeitas condições, que haviam sido tirados do carro de turismo de Harrington e substituídos no dia seguinte ao assassinato. Foram postos numa pilha na garagem da casa de campo de Harrington. Três pneus perfeitos, veja bem; e no outro havia uma grande ex-crescência dura. Os sapatos de Harrington se adaptavam às pega-das existentes na vereda do barracão de West, e as pontas de fios de lã combinavam com o material de um dos ternos de Harrington. E, por cima de tudo, depois do homem ter sido preso, encontra-mos um revólver calibre 25, de cabo de madrepérola no seu cofre de parede. Havia sido disparado um tiro e a arma não havia sido limpa desde então. O chofer de Harrington depôs afirmando que Harrington havia levado o carro grande, de turismo, e que saíra sozinho na tarde do crime; o homem lembrava-se da data porque era o dia de aniversário de sua espôsa. Foi tudo muito simples, e mesmo os elementos de interesse existentes tiveram em parte seu valor diminuído pela confissão de Harrington. A imprensa exagerou muito a parte que representei nessa prisão. Na realidade não havia mistério algum, e se os homens que se encontravam envolvidos no caso não fossem tão ricos e tão preeminentes, o assunto teria sido virtualmente esquecido. Mas o agarramos bem a tempo; na semana seguinte ele deveria viajar para a Europa.

— Que espécie de revólver você disse que era? — Hare lançou esta pergunta tão abruptamente que Trevor teve um gesto de so-

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bressalto antes de responder.— Ora, um calibre 25, niquelado, de cabo de madrepérola.

Uma arminha bastante bonita. Harrington parecia um tanto enver-gonhado de possuir aquela espécie de brinquedo.

— Também creio que êle devesse sentir-se envergonhado. Mas. .. o cabo estava levemente lascado do lado direito ?

Trevor inclinou-se para a frente, subitamente.— Sim, estava. Mas como diabo sabe você disso?— Ora, lascou-se quando Alice o deixou cair sobre uma pe-

dra, em Davos. Nós quatro estávamos fazendo tiro ao alvo nos fun-dos do hotel.

— Alice! -— exclamou Trevor. — Que Alice? E que quer você dizer com “nós quatro?”

Hare respondeu em seguida:— Alice West, meu caro. Compreenda você, o revólver era

dela. E nós quatro éramos West, Alice, Harrington e eu. Parávamos todos no mesmo hotel na Suíça, há quatro anos.

— O revólver dela? — O médico falava agora em voz excitada. — Você quer dizer que ela deu-o a Harrington?

— Duvido-o... pelo muito que ela o amava... — murmurou Hare.

— Êle provavelmente tirou a arma das mãos dela... tarde de-mais.

— Você está falando por meio de enigmas — exclamou o de-tetive. — Que quer você dizer?

— Simplesmente que o revolverzinho serviu para executar um inocente — disse Hare, em tom cansado.

— Como, um inocente?— Bem, é que neste caso eu estou convencido de que o “cul-

pado” era uma mulher.A visível excitação de Trevor desaparecera abruptamente, e

êle estava agora calmo corno uma esfinge.— Diga-me exatamente qual a sua opinião — pediu.Hare pôs de lado a ponta de charuto.— A coisa começou em Davos, há quatro anos. Harrington

apaixonou-se por Alice West, e ela por êle. West representou o pa-pel de “empata”, não aceitando o divórcio que ela propunha. Se-

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pararam-se, naturalmente, mas isto não facilitava muito a Alice e Harrington, que queriam casar-se. No começo eu estava envolvido no caso, compreende. A princípio, por casualidade, e depois porque todos êles fizeram de mim seu confidente, em graus diversos. West portou-se como um canalha, porque não mais amava realmente Alice, simplesmente resolveu que nenhum outro homem a teria, legalmente pelo menos. E se manteve nesta atitude. . . até que ela o matou.

— Ela o matou? — repetiu lentamente o grande detetive.— Tenho disso tanta certeza como se o tivesse visto. Para

começar, foi o revólver dela que disparou o tiro, como você mesmo o provou. Eu vi aquela arma uma centena de vezes, quando atirá-vamos em garrafas e não sei mais o que, por distração. Não havia nenhum motivo para que Harrington o tomasse emprestado; êle tinha um lindo arsenalzinho próprio, não tinha?

— Sim, encontramos uns dois ou três revólveres pesados e uma pistola automática.

— Exatamente. Êle nunca teria usado um brinquedinho da-queles, em toda a sua vida; e além do mais, êle jamais teria cometi-do um homicídio. Era equilibrado demais para isto. Por outro lado, Alice é de um tipo extremamente histérico. Eu a vi ficar completa-mente fora de si, de cólera. Bonita, ah! sem dúvida, mas perigosa, e, em última análise, uma covarde. E deu provas de que era. Nunca invejei Harrington.

—- Mas ela estava na Europa, homem, quando o crime foi cometido.

— Não estava, Trevor. Estava em Montreal naquele mesmo mês, e disso tenho certeza, e Montreal não fica longe de Long Is-land. Harry Sands encontrou-se com ela no Ritz. Quando estive pela última vez em Monte Carlo vi ambos recordarem tal encontro. Ela se encontrava na Europa antes e depois do crime, mas não es-tava lá quando se verificou o crime. Além do mais, isto não é toda a história.

— Bem, e qual é? — perguntou Trevor, apertando os lábios, num ricto.

Os dedos de Hare brincavam com uma caixinha de prata, es-tôjo para fósforos. Hesitou um momento antes de responder. Então

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falou rapidamente e foi logo ao assunto.— O resto é o seguinte; como lhe disse, Alice é histérica, e

nos últimos anos, a bebida e os entorpecentes ainda a abalaram mais. Pois bem, uma noite, em Monte Cario, pouco antes de eu me despedir dela, ela chegou até o extremo. Falávamos a respeito da morte de seu marido, e eu fazia conjeturas a respeito de quem poderia ter cometido o crime. Harrington ainda não havia sido pre-so. Eu lhe perguntei, também, se ela e Harrington não estavam fazendo preparativos para o casamento. Ela desviou a pergunta, evidentemente perturbada. Então, subitamente, irrompeu em in-vectivas contra o morto, chamando-o de todos os nomes feios ima-gináveis, e finalmente meteu a mão na bolsa e tirou uma carta. Era dirigida a ela, e o carimbo do correio indicava uma data de mais de um ano atrás; estava quase rasgada nas dobras de tanto dobrada e desdobrada. Mostrou-me e insistiu para que eu a lesse. Era de West; uma carta cruel como jamais vi; de um gato para um rato, de um carcereiro para seu prisioneiro. Alice estava presa a West, e êle tinha bem a intenção de conservá-la assim. Não perdia a o-portunidade de magoá-la, de feri-la. Era realmente tão ruim que eu não quis terminar a leitura mas ela insistiu e me fêz prosseguir até o fim. Quando lhe devolvi a carta, os olhos de Alice estavam em chispas, e ela tomou-me da mão e exclamou: “Que faria você a um homem destes?” Eu evitei a resposta por um minuto, e então ela mesma respondeu: “Matava! Matava-o! Não é mesmo que você o matava?” Com a maior calma que podia aparentar, fiz-lhe ver que alguém já fizera exatamente aquilo. Então ela prorrompeu num acesso de riso perverso, como eu jamais vira. Ela então acalmou-se e disse tranqüilamente: “É engraçado que a gente possa arrebentar a cabeça de tantas inocentes garrafas sem que ninguém diga uma palavra, mas se a gente mata uma víbora humana, é enforcada. E eu não quero ser enforcada, não, muito obrigada.”

Hare fêz uma pausa, como se a narrativa o tivesse fatigado muito, e acrescentou, depois:

— Foi mais ou menos tudo o que aconteceu, e não se pode dizer que foi elogiável. Parti no dia seguinte para a África, e quase nem li os jornais enquanto estive lá. Mas eu não tinha dúvida algu-ma sobre quem havia liquidado Ernest West.

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Durante o tempo em que o ponteiro dos minutos do relógio colocado sobre o consolo da lareira fêz três pequenos saltos, houve silêncio na sala forrada de livros. Trevor então falou, e sua voz era tensa:

— Você acha que eu errei? Hare fitou-o nos olhos:— Que acha você?O detetive refugiou-se em outra pergunta:— Você tem alguma hipótese a respeito de como aquilo real-

mente aconteceu?— É difícil dizer exatamente, mas tenho a certeza de que foi

ela quem cometeu o crime. Sua referência às garrafas indicava que ela sabia qual a arma que havia sido usada; a arma que ela já usa-ra em centenas de garrafas em várias ocasiões. Meu palpite é que ela e Harrington foram juntos visitar West, a fim de ver se podiam fazê-lo mudar de opinião, afinal de contas. Mas não o consegui-ram. Então ela teria sacado daquele seu brinquedinho. Sempre o trazia consigo, na bolsa. Várias vezes eu lhe disse que era um mau costume. Atirou em West antes que êle pudesse fazer qualquer mo-vimento. E ela atirava melhor do que Harrington; este nunca teria acertado no coração de West. Saíram então da casa e tomaram o carro de Harrington; mas antes êle voltou e obliterou todas as mar-cas de suas pisadas, e, para ficar certo de que não lhe escapara nenhuma, caminhou também sobre as pegadas da zeladora. Ha-via três marcas de sapatos no caminho, Trevor, e não duas, posso apostar. Então Harrington tirou-lhe o revólver, se já não o hou-vesse tirado antes, e levou-a em seu carro para onde ela quisesse ir. Ela o deixou; deixou-o que aguentasse as consequências caso a polícia suspeitasse dele, e era próprio dele fazer o que fez. Êle a amava estremecidamente, e ela também o queria, a seu modo, que aliás não era um modo muito louvável de querer bem. Amava mais ao seu belo e alvo pescoço. — Hare teve um sorriso contrafeito, e continuou: — Ela se esquecera de que no Estado de Nova York a pena de morte não se executa por enforcamento. De modo geral, não é uma história bonita. Mas Harrington, pobre diabo, queria salvá-la mesmo que ela não fosse digna do sacrifício. Bem, o caso é que, para êle, ela merecia.

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— Mas é impossível! — exclamou Trevor, deixando escapar, as palavras a despeito de si mesmo.

-— O que que é impossível? — Que eu tenha cometido um erro.Todos nós cometemos erros, meu caro.— Não eu. — E os lábios apertados de Trevor fecharam-se

ainda mais.— Sim, é uma vergonha. Mas o que está feito está feito, —

disse Hare, dando de ombros.Trevor olhou-o com um olhar frio.— É evidente que você não compreende. Minha reputação

não me permite cometer erros. Eu simplesmente não posso come-tê-los, aí está.

Hare esboçou um sorriso de simpatia; sentia-se sinceramen-te penalizado de ver Trevor tão perturbado e tentou tranqüilizá-lo:

—- Mas a sua reputação não irá sofrer com isto. A realidade não aparecerá. Alice West morrerá dentro de uns dois anos, vítima de sua toxicomania, e ninguém jamais saberá da verdade.

— Mas você sabe.— Sim, sei. Mas podemos esquecer tudo isto.Trevor fêz com a cabeça, nervosamente, um gesto afirmati-

vo. — Sim, devemos esquecer. Compreende, Hare, precisamos

esquecer.Hare ficou a olhá-lo, intrigado.— Não se preocupe, meu velho, sua reputação está a salvo

nas minhas mãos. Não direi palavra.Trevor assentiu novamente com um gesto de cabeça:— Sim, sim, sei que você nada dirá, naturalmente. Você nada

dirá.—- E que me diz se tomássemos um trago? — perguntou

Hare, erguendo-se da poltrona.— Está ali, em cima da mesa. Não faça cerimônia. Vou ao

laboratório durante um minuto.O médico desapareceu através da porta baixa, e Hare passou

a ocupar-se com as garrafas de bebidas. Aborrecia-lhe saber que Trevor ficara tão perturbado: mas que colossal amor-próprio! Tal-

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vez tivesse sido melhor que êle, Hare, não houvesse falado naqui-lo, pois nenhuma vantagem trouxera. De qualquer modo, jamais voltaria a tratar do assunto. Servido um cálice do familiar brande, Hare olhou a bebida demoradamente contra a luz, com as costas voltadas para a porta do laboratório. Mas nunca chegou a beber, pois deixou cair o cálice quando sentiu os dedos delgados aperta-rem-se em sua garganta e a pasta de algodão com clorofórmio com-primida contra a boca e as narinas. Conseguiu apenas dizer duas palavras: — Meu Deus!

Cerca de quinze minutos depois, o Dr. Harrison Trevor olhou cuidadosamente por sobre o corrimão da escada de sua própria casa. Não havia ninguém lá embaixo, e êle então desceu rapida-mente. Na cozinha, Tanaka ouviu a porta da frente abrir-se quase imediatamente depois a voz do amo, chamando-o do patamar do primeiro piso, Tanaka atendeu sem demora.

— O Sr. Hare acaba de sair — disse o doutor — e esqueceu-se de sua cigarreira. Corre atrás dele; deve ainda estar perto.

Tanaka apressou-se em cumprir as ordens. Sim, na esquina estava um homem alto, evidentemente o Sr. Hare, mas acabava de entrar num táxi. Tanaka correu, mas antes de alcançar a metade da quadra, o auto já se afastara. Tanaka voltou para prestar contas do fracasso de sua missão.

— Que pena! — disse-lhe o amo, que o encontrou no pata-mar. — Mas não tem importância, realmente. Telefona ao aparta-mento do Sr. Hare e avisa seu criado que o Sr. Hare esqueceu-se aqui de sua cigarreira, e que êle não se preocupe. Poderás levá-la amanhã de manhã.

Tanaka desceu a fim de obedecer as determinações do Sr. Trevor, e este ficou a pensar na coincidência representada pela presença na esquina do homem parecido com Hare, que acabara de tomar um táxi. Aquela prova acidental poderia vir a ser útil, mas era desnecessária, absolutamente desnecessária; êle não precisava de nenhuma ajuda acidental. À porta da biblioteca, o detetive se deteve, e, com olhar crítico passou em revista o local da cena. Tudo estava em seu devido lugar, e de modo confortável, convencional, absolutamente no mesmo lugar. No chão não havia fragmentos do cálice quebrado; somente era visível, sobre o tapete, nódoa escura

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e úmida, que secava rapidamente. Brande e soda não deixariam mancha. Pelas feições do Dr. Harrison passou um sorriso frio, e então êle caminhou resolutamente para o laboratório, onde deveria realizar nova tarefa. Fechada a chave a porta, seu primeiro ato foi ligar o ventilador elétrico que deveria levar para um exaustor oculto todos os odores que pudessem comprometer. Então trabalhou até o clarear do dia.

O desaparecimento de Mr. Gregory Hare, eminente crimina-lista, menos de uma semana depois de seu regresso do exterior, forneceu à primeira página dos jornais matéria para prolongadas especulações. Foi o Dr. Trevor o primeiro a insistir em que se trata-va de um crime, e foi também o Dr. Trevor que trabalhou de modo absorvente no caso, com toda a assistência que a polícia lhe podia emprestar. Naturalmente que ficara profundamente sentido com o acontecimento, pois Hare fora seu amigo íntimo, e êle fora um dos últimos a ver Mr. Hare. Mas o cadáver jamais foi encontrado, e não havia provas por onde começar uma pista. Tanaka repetia o que sabia, reiterando a história do táxi, e um guarda de serviço na rua confirmou o testemunho do japonês. O senhor alto viera da direção da casa do Dr. Trevor, e o táxi partira justamente quando o criado do Dr. Trevor corria para a esquina. Mas tudo isto nada esclarecia. Um certo Louie Coxo, a quem Hare, anos antes, quando promotor, levara a uma sentença de longos anos de prisão, foi apanhado na rede policial; mas tinha um álibi perfeito. O mistério permaneceu mistério.

O Dr. Trevor e o Inspetor Furst discutiam uma tarde aque-le caso, muito depois de ter sido abandonado pelas investigações policiais. Furst ainda brincava com a idéia de que poderia não se tratar de um crime, mas o médico apegava-se à certeza de um ho-micídio.

—- Tenho absoluta certeza disso, Furst. Certeza absoluta: Hare foi assassinado.

— Bem — disse o Inspetor — se o senhor tem tanta certeza, estou inclinado a aceitar. O senhor nunca se enganou.

O doutor abriu as mãos, num gesto de modéstia:— Até agora não, Furst, até agora não; mas o excesso de con-

fiança é perigoso. Aceita um cigarro? — e estendeu uma cigarreira

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de ouro.Sob o ponto de vista da criminalogia, é de lastimar-se, e mui-

to, que, alguns anos depois, quando o Dr. Trevor estava prepa-rando suas memórias para uma publicação póstuma, a morte lhe tenha arrancado a pena da mão justamente quando havia escrito o título de um novo capítulo.

E isto porque o novo capítulo se chamava “O Crime Perfei-to”.

— O que eu gostaria de saber — disse Furst quando passou os olhos pelo manuscrito inacabado — e que crime seria esse?

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OS CRIMES DO ESPANTALHO

A. E. Martin

MONSIEUR Roget, conceituado comerciante em Paris, certo dia, a caminho do banco, foi interrompido na deserta rua Grenoir por um homem alto e magro, metido num sobretudo preto que mal lhe alcançava os joelhos. O sobretudo, embora o tempo estivesse ameno, achava-se completamente abotoado, tendo ainda a lapela soerguida para esconder-lhe o pescoço. Poido de tão velho, esse casacão, nos lugares em que rasgara, fora desageitadamente re-mendado. À primeira vista o bom merceeíro pensou que estava fa-lando com alguém que o destino golpeara com uma triste moléstia, pois duas manchas avermelhadas apareciam através de sua barba preta e curta, combinando com a rosa artificial que êle ostentava na altura da lapela. De repente, porém, passou-lhe pela cabeça que aquele esquisito interlocutor podia ser um jovem cujo crescimento tivesse se processado rápido demais. Mas essa hipótese foi logo posta de lado, a um exame mais atento de suas sobrancelhas eri-çadas. De qualquer modo, com suas luvas brancas e seu guarda-chuva deformado, com seu chapéu absurdo, através de cujas fitas verdes escapavam mechas de cabelo preto e liso, o homem tinha o aspecto de um verdadeiro espantalho.

Monsieur Roget, consciente da carteira de dinheiro que tra-zia no bolso, não se mostrou muito disposto a demorar-se, mas o estranho se colocou diante dele, inclinou-se um pouco e bateu-lhe familiarmente no ombro.

— Por obséquio, é ali a residência do advogado Henri Faure?

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— perguntou êle, apontando com o guarda-chuva semelhante a um saco.

Bem que o estranho podia ser um sujeito bizarro nas idéias como o era na indumentária, pensou o merceeiro. — Não, não, ca-valheiro — explicou êle com dificuldade — aquela, segundo me di-zem, é a residência do senhor Chefe de Polícia. Aqui — êle indicou o prédio diante do qual se encontravam — no segundo andar, está o apartamento do advogado.

— Ah! -— exclamou o sujeito, perfilando-se. — Então agora está tudo claro. Assim, se eu matasse o senhor Faure, bastava atravessar a rua e apresentar-me ao Chefe de Polícia. Por outro lado — acrescentou, sacudindo os ombros — se eu resolvesse ma-tar o homem da polícia, não precisaria senão atravessar a rua para assegurar-me a assistência de um advogado. Muito obrigado, ca-valheiro.

Inclinou a cabeça, cheirou a flor artificial que trazia na lapela e depois, tirando o chapéu delicadamente, observou:

— O tempo está esplêndido, para setembro, não lhe parece?— Ah, sim — retorquiu Monsieur Roget, hesitante, esquecen-

do as primeiras palavras do homem ante a surpresa, que o tomou, de ouvir alguém falar em setembro em pleno mês de maio. Con-vencido de que estava tratando com um louco, êle, quase perdendo a respiração, pediu “escusas ao cavalheiro”. . . e procurou afastar-se.

— Mas não há dúvida, monsieur — respondeu o sujeito, amàvelmente, enquanto o comerciante se afastava e seguindo-lhe no encalço:

— Apresente meus respeitos ao seu bom pai.Monsieur Roget, caminhando apressadamente, ia pensando

que teria assunto para muita conversa naquela tarde. Narrando seu encontro com o original sujeito, êle percebeu que diversos fre-gueses tinham observado a bizarra figura, rido da singularidade de seu traje, e notado seu cacoete de cheirar a flor que trazia na lapela e que era evidentemente artificial. Ninguém, porém, tinha conver-sado com êle e Monsieur Roget era o único exemplo de alguém que recebe o pedido de apresentar felicitações a um pai falecido havia mais de trinta anos.

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Charles, um garçon do Café Colette, estava em condições de rivalizar com o merceeiro, como centro do mexerico, pois tivera, ao que parece, uma conversa singular com o estranho. De acordo com Charles, e embora, o que mais tarde ficou evidente, o homem já tivesse colhido a informação de Monsieur Roget, êle inquiriu de novo o garçon sobre o endereço do senhor Faure.

— É um advogado — explicou o espantalho. — Um camarada violento, de sessenta anos, com cabelos côr de fogo.

— Mas não! — protestou Charles. -— Êle é um cidadão muito amável, e não tem mais de quarenta e cinco anos. É um homem distinto, se bem que um pouco gordo.

— Têm cinco filhos, sem dúvida — acrescentou o estranho, num tom malicioso.

De novo Charles protestou. — O senhor Faure é solteiro. En-tão não devo saber, se êle janta aqui todas as noites e eu tenho a honra de servi-lo?

— É um farrista, certamente.— Senhor — retorquiu Charles com certo calor —- Monsieur

Faure é de uma moralidade impecável e sua integridade profissio-nal não se discute. Todas as noites êle sai do Café Colette e se re-colhe ao seu apartamento, onde se dedica ao estudo dos processos que precisa discutir no Tribunal no dia seguinte.

— Mas por que não trabalha no escritório? — indagou o es-tranho.

— Porque, senhor — explicou Charles ao perguntador — em seu apartamento da rua Grenoir, conforme êle já me disse várias vezes, êle vive só, e na tranqüilidade do ambiente seu cérebro fun-ciona com uma agudeza impossível quando a pessoa está sujeita a interrupções.

— Não é bom que um homem viva só — disse o estranho, com aparente irrelevância, acrescentando (Charles o lembrava), com certa ferocidade: —- Estou cansado de ouvir falar nas virtudes desse homem. Chegam a dar-me dor de cabeça. Se ouvir mais a respeito dela, serei obrigado a fazer alguma coisa.

Irritado, Charles o deixou. Mais tarde ficou grandemente sur-preendido de vê-lo derramar um pó num copo dágua e enquanto a droga estava ainda em efervescência carregá-lo até o fio da calçada

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onde derramou o líquido sem prová-lo sequer. Estava resolvido a relatar a Monsieur Faure a conversa que tivera com o homem alto e estava a ponto de citar o caso da água ao proprietário do café quando, como se fosse o destino, uma nervosa mensagem, telefôni-ca trouxe-lhe a comunicação do nascimento do seu primeiro filho. Seu patrão, um bom sujeito, bateu-lhe nas costas e permitiu-lhe que saísse por umas horas para ver a esposa e dar boas-vindas ao rebento. Era uma garotinha encantadora, enorme, mas, pelo menos quanto a Monsieur Faure, escolhera um momento bastante inoportuno para chegar. Tivesse ela retardado sua vinda por meia hora e talvez Monsieur Faure fosse poupado.

Duas horas depois de Charles sair para ver sua esposa, exa-tamente quando o relógio dava nove horas, o absurdo personagem penetrou no prédio da rua Grenoir, cujo segundo pavimento era ocupado por Monsieur Faure. Seus calçados grosseiros repercuti-ram no piso de pedra do hall de entrada, chamando a atenção de uma senhora gorda e de meia-idade, que saía para tomar um ôni-bus que devia partir de um ponto situado a meia quadra dali meia hora depois. Dotada de um olho feminino para o detalhe, ela pôde, mais tarde, na delegacia, dar a descrição de sua exata aparência, e seu testemunho coincidiu tão perfeitamente com os dados forneci-dos pelo senhor Roget e por Charles, o garçon, que não subsistiu a mais leve dúvida no espírito das autoridades quanto à pessoa que a polícia devia procurar.

Ela contou como o sujeito tirara o seu chapéu absurdo e in-quirira por Monsieur Faure, como ela lhe dissera que o advogado ocupava o andar superior, e como êle lhe agradecera, segurando a flor artificial, e como, com uma polidez elegante, fizera uma alusão à ausência de neve. Ela o tinha visto subindo as escadas, com a mão direita, enluvada, segura no corrimão para sustentar-se. Somente porque transpirou abundantemente, na sua pressa de apanhar o ônibus é que ela se lembrou que era uma noite de verão e, natural-mente, não era de causar surpresa que não estivesse nevando.

Se Monsieur não se surpreendeu com a singularidade da criatura postada diante de sua porta, isso se deve possivelmente ao fato de que êle estava habituado a receber pessoas esquisitas que iam à procura de seus conselhos. Em verdade, embora poucos

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o soubessem, êle tinha muitos encontros em seu apartamento da rua Grenoir com pessoas de reputação suspeita que evitavam des-pertar curiosidade procurando-o no escritório da cidade.

O visitante perguntou:— Devo estar falando com Monsieur Faure, pois não? Posso

entrar?E foi logo se introduzindo.— Devo pedir-lhe desculpas por vir a esta hora, mas preciso

deixar Paris logo que o meu assunto esteja liquidado.— E qual é o seu problema, cavalheiro?— A fuga.— Ah, pois, não. — Monsieur Faure considerou num breve

instante se o sujeito não teria fugido de um hospital. Seu aspecto fazia supor isso. Se era assim, o melhor era conduzir o assunto com humor. — Entre — disse êle, encaminhando-o até a sua mesa de trabalho. Sentando-se, convidou o outro a sentar-se também, em sua frente,

O magro visitante pôs de lado seu ridículo chapéu e encostou seu bojudo guarda-chuva contra o lado da escrivaninha.

— Tenho algo para mostrar-lhe, que espero irá merecer sua atenção, cavalheiro — anunciou êle. — Mas primeiro devo insistir pela sua máxima reserva.

— Estamos completamente sós — assegurou-lhe o advogado. — E não espero ninguém no espaço de uma hora.

— Uma hora? Será tempo suficiente. — Levantando-se da cadeira, êle apresentou uma pequena chave. — Examine-a, doutor, por obséquio — pediu êle, e enquanto Monsieur Faure segurava o pequeno objeto, fazendo conjeturas, êle calmamente retirou uma de suas luvas brancas e a colocou no bolso do seu casacão aboto-ado.

— Parece não ser nada mais do que uma chave — ponderou o advogado, restítuindo-a, sorridente.

— É como o senhor diz — aquiesceu o sujeito alto. — Mas há ocasiões em que daríamos muito por uma chave. Quando ficamos chaveados do lado de fora ou, talvez, do lado de dentro. -—- Enco-lheu os ombros. — Mas eu cultivo meus passatempos. — Exibiu a chave na palma da mão. —- Aqui está a chave . . . mas, agora, onde

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é que ela está, Monsieur?Não fêz mais que virar a mão, cuja palma ficou, por um ins-

tante, de face para o chão, e, revirando-a, em seguida, mostrou que a chave tinha desaparecido.

— Muito bem — disse Monsieur Faure. Êle tinha uma curio-sidade infantil pela mágica. A prestidigitação, particularmente, sempre o intrigara e êle estava agora tendo a experiência de uma exibição íntima e privada. O estranho repetiu o movimento e de novo a chave apareceu-lhe na palma da mão; outro movimento e ela desaparecia.

Intrigado, Monsieur Faure perguntou: — Poderei, por obsé-quio, examinar as costas de sua mão? Sempre imaginei . . .

— Mas certamente — concordou, pronto, seu visitante, que espalhou seus longos dedos diante do nariz do advogado, manten-do a mão numa posição horizontal; depois, afrouxando os dedos, permitiu que Monsieur os examinasse um a um. Não havia chave alguma.

— O senhor realmente é muito hábil — confessou o advoga-do, admirado.

— É necessário ser hábil quando a gente precisa libertar-se de situações difíceis — explicou o outro. Enfiou as mãos nos bol-sos. — Conforme já lhe disse, Monsieur Faure, eu sou um escapo-logista. Mas, naturalmente, tudo isso é feito com trapaça. Estou certo de que o senhor não se valerá de minha confiança.

— Claro que não — replicou prontamente o advogado.O sujeito havia surgido com um par de algemas. — Estas

agora não são realmente tão temíveis como parecem — explicou. — Veja, eu consigo libertar os pulsos. Prenda-os, por obséquio. — Es-tendeu as mãos e Monsieur Faure fêz de boa vontade o que êle pe-dira. — Agora — prosseguiu o visitante, erguendo as mãos — todo aquele que olhasse diria que estou firmemente algemado. Não é?

— Sim, em verdade — concordou Monsieur Faure, pois êle tinha não só engatado as algemas como experimentado sua firme-za,

— Entretanto — observou o estranho — basta que eu deseje e. . . voilà! — As algemas caíram fazendo um som fofo no espesso tapete.

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— Extraordinário! — comentou Monsieur Faure, apoiando os cotovelos na escrivaninha e descansando o queixo nos punhos fe-chados. Afinal de contas o sujeito prometia ser interessante.

O visitante baixou-se e apanhou as algemas, pondo-as no bolso. -— É de uma simplicidade infantil — explicou êle — mas fui eu o único que encontrou a solução. Mas, já agora, há quem tente roubar-me a descoberta.

“Ah, pensou Monsieur Faure”, estamos chegando agora ao motivo da visita. Quer que eu lhe proteja os direitos. É um exíbicio-nista e isso explica a excentricidade de sua indumentária.

— Não obstante parecer simples — continuou alegando o su-jeito magro — gastei muito tempo para resolver o problema. Passei uma infinidade de horas solitárias procurando uma saída. É justo que eu não seja beneficiado?

— De modo algum — concordou advogado.-— Veja — disse o outro, de súbito introduzindo as mãos nos

bolsos e retirando de novo as algemas. — Vou demonstrar-lhe. Dar-lhe-ei, mesmo, este par, com o qual o senhor poderá impressionar seus amigos e, talvez, a própria polícia. É uma questão de pressão. Tudo que se faz preciso é estender as mãos, de preferência sobre a cabeça, procurando afastar uma algema da outra, como se fosse um prisioneiro procurando romper as cadeias. O segredo está no controle do tempo. O excesso de impaciência deve ser evitado. No momento em que as algemas são engatadas começa-se a contar até dez. Dentro de pouco tempo o senhor verá que pode manter uma conversa despistadora enquanto faz a contagem. Quando atingir o número dez, faça um leve esforço e as algemas cairão. Ei-las, experimente.

Monsieur Faure estivera inclinado para a frente, interessa-díssimo, os cotovelos apoiados ainda no mata-borrão. Imaginara-se, até, como constituindo a figura central de alguma reunião. Não tinha assuntos mundanos para explorar e êle sentia que o conhe-cimento de pequenas mágicas poderia muito razoavelmente repre-sentar um ótimo ativo. Com estes pensamentos no espírito êle ficou completamente surpreso quando o estranho de súbito segurou-lhe os punhos e, antes que êle pudesse articular uma palavra de pro-testo, o algemou. Um tanto chocado com a sem-cerimônia de seu

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cliente e secretamente aborrecido por se ter deixado colocar numa situação tão pouco recomendável, êle, não obstante, forjou um sor-riso tímido. — Ora, Ora. . . — exclamou.

O sujeito havia apanhado de novo a luva branca que antes tirara e se pôs a calçá-la displicentemente enquanto falava.

—- Agora, tudo o que se faz necessário é imaginação, meu amigo. O senhor deve dizer para os seus botões: estou a caminho da prisão. Recebi uma sentença de dez anos. Não gosto de sentir as algemas. Vou libertar-me delas. E, enquanto isso, deverá estar contando.

Sentindo-se perfeitamente ridículo, Faure soergueu as mãos algemadas sobre a cabeça. Seus lábios se moviam enquanto êle contava baixinho. “Um, dois, três. . .”

— Oh, está indo muito depressa — interrompeu o outro. — O tempo não passa com tanta rapidez. Imagine que está procurando escapar da prisão — duma prisão injusta, naturalmente -—- e não se permita mostrar-se por demais impaciente pois do contrário o desapontamento dos primeiros insucessos o desencorajará.

Agora, de novo, Um. . . reflita; dois, reflita.O advogado franziu as sobrancelhas. Esperava que nenhum

de seus amigos fosse escolher essa ocasião imprópria para visitá-lo, pois êle era um homem que inspirava consideração e o mero pensamento do ridículo o horrorizava. Desviando os olhos, come-çou a contar de novo, os braços erguidos, a corrente das algemas tensa. Parecia-lhe interminável o tempo até êle alcançar dez e dar o pequeno puxão, conforme o outro recomendara.

— Dez — repetiu êle, alto e com ênfase, e esperou. Nada aconteceu.

O escapologista o olhava gravemente. — Muito mal — obser-vou. — O senhor terá de experimentar de novo.

— Tenho receio de que não seja muito bom nessa espécie de truques -— confessou Monsieur Faure.

— Que nada! — interrompeu o sujeito alto. — O senhor deve ter paciência. Não deve desistir. O senhor não se tornou um advo-gado da noite para o dia, não é? Vamos, conte de novo. De um a dez.

Um pouco afogueado, Monsieur Faure recomeçou silencio-

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samente a contagem. As palmas de suas mãos estavam úmidas e êle podia sentir o suor gotejando da extremidade de seus dedos a escorrer-lhe pelo interior das mangas da camisa. Quando alcançou dez e, novamente, nada sucedeu, êle deixou os punhos doloridos cair sobre a escrivaninha.

— Desisto — disse êle. — Desprenda-as.— Oh, o senhor não deve se deixar vencer tão facilmente —

admoestou-o o visitante. — Apenas imagine, conforme recomendei, que o senhor está na cadeia procurando escapar. O senhor quer voltar ao seio dos amigos. Para a sua amada, talvez. Não devia de-sesperar logo após o primeiro insucesso.

— Mas eu não estou na cadeia — retorquiu Faure, irritado. — Esforçou-se em, dar uma risada meio cordial. — Acho que daria um péssimo mágico.

— Experimente uma vez mais — insistiu o outro. — Con-te silenciosamente. Entrementes, quero mostrar-lhe mais alguma coisa. — O sujeito ergueu o guarda-chuva, introduziu a mão sob o pano e separou-o do cabo, o qual êle encostou contra o lado da mesa. Seus dedos compridos e enluvados começaram a trabalhar sobre o que havia restado, manipulando as varetas aparentemente quebradas. A coisa informe começou a tomar forma. As varetas de aço transformaram-se na estrutura, o pano de cetim preto nas pa-redes de uma pequena bolsa. Colocou-a sobre a mesa.

— Perfeito, hein?— Excelente — admitiu Faure, ofegante com o seu esforço —

mas lhe pediria o obséquio de soltar. . .— Claro — disse o visitante, sacudindo os ombros de leve —

que é quase imaterial, mas quem o saberia?Monsieur Faure continuava se esforçando por retirar as al-

gemas, não mais interessado em mágicas. — Algo saiu errado — observou êle.

O outro não deu demonstração de haver ouvido. Êle apanhou o telefone da escrivaninha e despreocupadamente o colocou numa cadeira distante.

— Agora, esta bolsa e todos os outros utensílios deveriam ser garantidos por copyright legal — anunciou.

— Este sobretudo, por exemplo.

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Tirando a mísera e fúnebre peça, com rápidos e poucos movi-mentos êle a pôs do lado do avesso. O forro, que agora se tornara o pano externo, era um tecido do mais fino veludo. — Elegante, hein? — murmurou vestíndo-o de novo, e baixando gola do casaco para revelar um colarinho imaculado e uma bela gravata. — Nenhum sinal de pobreza ou excentricidade. Mais elegante do que antes.

— Muito -— grunhiu Faure, preocupado apenas em livrar-se das algemas. A ponta de seu nariz começou a comichar e êle foi obrigado a levantar os punhos manietados para afastar a irritação. Falou, então, com firmeza: — Senhor, devo insistir. . .

— Mas espere um pouquinho mais — sugeriu o escapologista, imperturbável e pousando um olhar crítico no sobretudo. — Acho que terei de realizar algumas operações próprias de alfaiate. Mas, antes, vou fechar porta para evitar a entrada de intrusos. Todos os mágicos guardam ciumentamente seus segredos — de todos, exce-to, é claro, de seus advogados. Em largas passadas chegou até a porta e torceu a chave. — O senhor não se importa, não é?

Monsieur Faure se importava muitíssimo. Desde o momento em que se viu algemado, começou a sentir-se tolo e irritado. Agora estava começando a sentir-se um pouco inquieto — para não dizer alarmado. O fechamento da porta dera ao episódio grotesco um toque de coisa sinistra. Mas não ocorria ao desalentado causídico um meio de se sair da situação. O sujeito não fizera nenhuma ame-aça, não dera nenhuma indicação de que não era mais senão um excêntrico, excessivamente vaidoso de suas absurdas invenções, e Monsieur Faure tentava convencer-se de que o homem era absolu-tamente inofensivo. O olhar dele não assustava, mas, bem, sempre é difícil saber-se. . .

Enquanto estes pensamentos lhe passavam pela cabeça — êle nesta altura tinha posto de lado a idéia de que podia livrar-se das malditas algemas com seus próprios esforços — o sujeito prosse-guia: — Mas vamos remediar a curteza do sobretudo. Não podemos encompridá-lo sem mais pano e como não podemos encompridar o sobretudo, será necessário que encurtemos o homem.

Sentou-se num ponto em que Monsieur Faure podia vê-lo perfeitamente, e bastante perto, pensava com inquietação o ad-vogado, para fazê-lo manter-se na cadeira se êle fizesse qualquer

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tentativa de movimento. Inclinou-se, então, e num instante as so-las e os saltos dos seus toscos sapatos saltaram em suas mãos. Não toda a sola, todavia. Monsieur Faure notou, pois ficara ainda um solado fininho para suportar o resto do calçado. As solas falsas tinham pelo menos quatro polegadas de espessura, com salto para equilibrar, e êle as colocou sobre a mesa, ao lado da bolsa. Tirou, em seguida, ambos os sapatos e removeu uma sola interna de uma polegada de espessura.

Pondo de novo os sapatos e parando-se de pé, as calças fica-ram compridas demais; mas, inclinando-se, êle repuxou as extre-midades, descosendo duas tiras que apresentou ao advogado para que este as verificasse. Abrindo a bolsa em que êle havia trans-formado o guarda-chuva, pôs dentro dela as solas e os saltos e as duas tiras de fazenda, fechando-a de novo. A seguir, baixou-se e arranjou a extremidade das calças, dando-lhes uma bainha impe-cável. Quando, mais uma vez, se pôs de pé, ele se mostrava cinco polegadas mais baixo do que quando entrara e suas calças, sob o sobretudo, tinham o exato comprimento de sua nova altura.

— Meu prezado senhor — declarou Faure, num tom de des-prezo -— isto tudo é muito interessante, mas eu me sinto impossi-bilitado de me concentrar enquanto algemado desta maneira. Quer fazer-me a gentileza de desprender este objeto?

— Sem dúvida — disse o estranho amàvelmente — mas pri-meiro veja uma coisa que há de provocar o seu interesse. — Re-tirou de um bolso um pequeno lenço encarnado. Umedecendo-o com a água da garrafa, existente na mesa de Monsieur Faure, êle começou a esfregar as faces. Num instante as doentias manchas de vermelho desapareceram e as faces de cada lado, sob a barba es-cura, ficaram cadavéricas, e o rosto inteiro, percebeu, apreensivo, o advogado, tornou-se subitamente mau.

-— A côr não aparece quando retirada com um lenço destes — esclareceu o visitante, colocando-o na bolsa. — Mesmo o sangue seria despistado contra um fundo assim.

Monsieur Faure sacudiu seus punhos algemados. — Eu in-sisto. . . — iniciou êle, mas o homem levantou a mão pedindo-lhe que se acalmasse.

— Tudo a seu tempo — prometeu êle. -— Dentro de poucos

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minutos, se o senhor não descobrir o segredo, eu o libertarei. En-trementes, há aqui algo que despertará sua curiosidade. — Obser-vando sua imagem num pequeno espelho da parede, êle se pôs a retirar cuidadosamente sua barba escura.

Pérolas de suor começaram a deslisar pela testa do advogado, Se, no princípio, êle desejara que ninguém o viesse encontrar na-quela situação, agora desejava ardentemente a chegada de algum visitante inesperado. Até o momento em que o sujeito fechara a porta, êle tivera receio, a despeito de seu constrangimento, de estar sendo apenas ridículo. Que belo motivo para brincadeira entre os colegas de profissão se se espalhasse a notícia de que êle se dei-xara algemar dentro de seu apartamento por um lunático inofen-sivo. Era uma espécie de situação que um homem nunca poderia permitir. Agora, enquanto o estranho removia a barba, êle pensava seriamente em pedir socorro. Lembrou-se, com um pequeno baque no coração, que ninguém o ouviria. Madame Feuille, no andar in-ferior, tomava o ônibus para a Avenida Clíchy às 9,30, com uma regularidade de relógio. Ela tinha uma certa função num night-club. E o casal do apartamento superior, três noites por semana, ia jogar bridge com amigos, no Café Colette, às terças, quintas e sába-dos! Para estar seguro, êle podia levantar-se e bater na porta, mas, além da indecência que envolvia tal retirada de seu próprio gabine-te, Monsieur Faure considerou que esta atitude podia provocar a ira do lunático. O modo de ser do louco mudava, segundo pudera observar, com a rapidez do relâmpago. Qualquer fracasso que o homem pressentisse poderia provavelmente ter as piores consequ-ências, enquanto êle estivesse lutando, algemado, para conseguir abrir a porta. Não, êle não poderia arriscá-lo. Exigiu, em vez disso, com o máximo de autoridade que pôde concentrar: — Tudo isto é muito fascinante, mas insisto, senhor. . .

— Mais ou menos dentro de três minutos — prometeu o ho-mem, e Monsieur Faure imaginou que podia perceber uma nova nota em sua voz. Notou com alarme, que o camarada estava fican-do excitado. Êle, agora, enquanto encarava o advogado, removia as sobrancelhas hirsutas e a cabeleira escura e rebelde. O cabelo, que apareceu, era grisalho. Apanhou o absurdo chapéu que an-tes usava e retirou a fita espalhafatosa. Depois, introduzindo-lhe

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a mão no interior, puxou uma fitinha e instantaneamente o cha-péu tomou outra forma e tamanho. Colocou-o na cabeça cuidado-samente, ajustando-o no ângulo certo. A cabeleira, os pêlos das sobrancelhas e a fita do chapéu foram guardados na bolsa, feito o que, com as mãos enluvadas cruzadas nas costas, êle se pôs diante de Monsieur Faure. O espantalho que o advogado admitira em seu apartamento tinha se metamorfoseado num cavalheiro elegante-mente trajado.

Monsieur Faure improvisou um sorriso amarelo.— Realmente, o senhor é um mágico.— Era.Em algum recanto obscuro do subconsciente de Monsieur

Faure algo lutava por chegar à tona. Um homem, um nome, uma situação. — Por acaso já o conhecia? — perguntou êle.

— Sou alguém que o senhor talvez tenha esquecido. — Esta-va agora virando as luvas brancas pelo avesso. Concluída a opera-ção, vestiu-as de novo e o advogado viu que elas agora faziam uma boa combinação com o seu chapéu e com o casaco. Tirou do bolso um par de óculos com aros de ouro e ajustou-os aos olhos. Seu olhar pousou na manta de seda de Monsieur Faure, que se achava num cabide, pregado na parede, juntamente com seu claro sobre-tudo. Apanhando-a, êle a alisou na palma da mão. -— O senhor permite?

Monsieur declarou, ansioso por vê-lo terminar: — Está ao seu dispor.

— É muita bondade sua, em verdade — disse o homem. Se-gurava a manta em ambas as extremidades, examinando-a, experi-mentando sua resistência. — É realmente uma manta excelente.

— Estimo que goste dela — conseguiu dizer Monsieur Faure. — E agora, seja camarada, abra estas algemas.

— Naturalmente, naturalmente — disse o outro, como se ti-vesse esquecido, e encaminhando-se na direção do advogado, com a manta na mão. Mas parou, dando de ombros. — Mas onde está a chave?

— Não seja absurdo — manifestou Faure, agora enormemen-te assustado. — O senhor a pegou. Certamente não o esqueceu, hein?

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O homem franziu o sobrolho. — Não, não, os mágicos não esquecem; esquecer é privilégio dos advogados. — Inclinou-se so-bre Monsieur Faure e olhou-o fixamente através dos óculos, seus olhos como que pegando fogo e na sua voz uma súbita tensão. O advogado recuou na cadeira. — Procure lembrar-se!

— Mantenha-se afastado! — gritou Monsieur Faure. — Não se aproxime mais. Quem é você?

— Não posso ser uma pessoa muito importante uma vez que me esqueceu. É possível — prosseguiu êle depois de uma breve pausa — que eu o tenha tido no espírito tantas vezes nos últimos anos e que não me tenha dedicado nenhum pensamento? — Seu rosto aproximou-se mais e o advogado procurou retrair-se ao seu contato. — Não fale por um instante, pois do contrário nunca mais pronunciará o nome que está procurando recordar. Deixe-me lem-brar-lhe algo ao espírito, senhor, algo talvez de pouca importância para si, mas, para mim, de enormes conseqüências. — Êle mostrou todos os dentes e foi quase com um esgar que prosseguiu: — O senhor consentiu que eu passasse dez anos na prisão. Eu tinha pouco dinheiro e nenhuma influência, e o fato de eu ser inocente provavelmente pouco significou. Minha vida e minha honra esta-vam nas mãos de meu advogado. Eu tinha posto nele toda a con-fiança. O senhor devia ter ido ao tribunal pronto e disposto a lutar pela minha liberdade, mas o apareceu lá com o pensamento tur-vado, ilógico e quase incoerente na argumentação, porque na noite anterior tinha pensado mais no seu sensual e insaciável apetite do que no homem que devia defender. Numa palavra, enquanto eu passava a noite desperto de tão ansioso, o senhor se embriagava. Esqueceu a defesa. Sua presença no tribunal foi mais um estorvo do que uma ajuda. Bem, provavelmente me esqueceu antes mesmo de eu entrar na cadeia, mas eu lá permaneci dez anos lembrando-me do senhor.

Monsieur Faure estava com os olhos saltando das órbitas. Disse num murmúrio: — Agora estou me recordando de você.

— A gente muda muito na prisão, especialmente quando se é inocente. Mas o senhor também mudará, mas mais rapidamen-te. Com um movimento hábil e incrivelmente rápido êle achegou a manta à boca do advogado, mas, apesar da rapidez, antes que a

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mordaça lhe tapasse a boca Faure gritou, não pedindo socorro, o que é muito estranho, mas um nome. Georges Dumont, foi o nome que êle conseguiu articular.

Não disse mais nada, pois havia um joelho parecendo uma ponta de ferro contra o seu peito e porque a mordaça foi cruelmen-te apertada. Tirando uma corda fina do bolso, Dumont amarrou sua vítima à cadeira.

Foí no momento em que estava reforçando o último nó que ele ouviu uma batida na porta. Deu umas passadas rápidas sobre o espesso tapete e com o rosto colado à porta, esperou, escutando. Dentro de poucos instantes a batida se repetiu timidamente. — Quem quer que esteja batendo, deve ter ouvido Faure gritar meu nome, pensou Dumont. Êle deve estar do outro lado da porta, fazen-do-se perguntas. Alguns passos, vagarosos e hesitantes, imaginou o escuta, foram dados no corredor, descendo as escadas.

Dumont reagiu rapidamente. Bastava que o homem atraves-sasse a rua e relatasse o que ouvira ao chefe de polícia. Êle, Du-mont, tinha suportado dez anos de horrores, tendo como único consô1o a antecipação do seu triunfo final sobre o homem que o desgraçara. Não ia permitir que lhe roubassem aquela vitória. Abriu a porta, numa súbita resolução, postando-se de modo a que ninguém pudesse olhar para dentro da peça. Havia um homem na escada e já a meio caminho do andar inferior. Estava parado, pare-cendo meio inclinado a voltar para trás. Dumont viu num instan-te que era uma pessoa humilde, que reagiria timidamente a uma demonstração de autoridade. Fêz um aceno enérgico: — Venha, venha, — disse êle. — Monsieur Faure está agora desimpedido. Um relógio ao longe soou a meia hora. Dentro de trinta minutos, lembrou-se êle, o advogado teria outra visita.

O homem na escada não pronunciou palavra, mas voltou-se e subiu vagarosamente, enquanto Dumont esperou atrás da porta entreaberta pronto para fechá-la quando o outro entrasse. Meio minuto mais tarde êle fechou e chaveou a porta quase que num único movimento. O homem chegou a ver Monsipur amarrado e amordaçado. Só conseguiu murmurar “Monsieur”, . . e nada mais. A morte o interrompeu.

— Tinha de ser assim — reconheceu Dumont. — Não podia

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lutar com êle. Nem sequer sei quem êle é. Para mim foi odioso fazê-lo, mas estava em jogo a vida dele ou a minha vida. — Olhou para Monsieur Faure, que, com os olhos esbugalhados de terror, estava forçando as cordas e então mostrou-se mais sensível do que pretendia e o matou imediatamente, usando o cabo que tirara do guarda-chuva extinto, que se tinha transformado numa bengala e de cuja extremidade se projetava uma lâmina de navalha já tinta com o sangue de um homem que êle nunca vira antes daquela noite.

Tirou da bolsa o lenço encarnado e úmido, que tinha usado para remover o rouge de suas faces e limpou a parte da bengala manchada de sangue, pô-lo de novo na bolsa e comprimiu a mola que fêz a navalha reentrar no ôco da bengala. Tirou a mordaça da boca de Monsieur Faure e recolocou a manta no cabide.

Depois, recolhendo a corda que amarrava o corpo, abriu as algemas e pôs a corda, as algemas e a chave na bolsa. Olhou em torno do quarto, tendo a satisfação de verificar que tudo se tinha passado conforme desejara, dizendo-se que tudo ocorrera confor-me seus planos, exceto que usara a manta de Monsieur Faure em vez da que trouxera. Sim, tudo tinha se passado de acordo com o plano — exceto que tinha assassinado dois homens em vez de um.

A lembrança o aborreceu e olhando com desgosto para o cor-po do estranho, êle encheu um copo com a água da garrafa e derra-mou nele um pó idêntico ao que usara no Café Colette na presença de Charles, o garçom. Continuou desempenhando mecanicamente seu plano preconcebido, mas seu espírito se fixava na segunda vítima, e foi quase ausente que êle murmurou: “Para vossas dores de cabeça, cavalheiros da polícia”, e, espalhando sobre a mesa os clíps que havia numa pequena tijela, derramou nela o conteúdo do copo.

Fechou, então, cuidadosamente, a bolsa preta e a apanhou. Segurando a bengala sob o braço, tateou por um instante a lapela do casaco. A coisa que êle removeu foi atirada aos pés do advogado morto. Torceu a chave da porta sem fazer o menor ruído, abriu-a um pouco e se pôs à escuta. Então, satisfeito com a observação, saiu apressadamente. Ao descer as escadas não fêz ruído algum.

Dez minutos mais tarde Dumont estava sentado a uma mesa

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defronte o Café Colette, com a bolsa a seus pés e a bengala entre os joelhos. Tentava ler o jornal que tinha em mãos, mas continuava pensando no homem que fora visitar Monsieur Faure num mo-mento tão inoportuno. Como era estranho, ter gasto anos de sua vida planejando a morte de um homem que lhe fizera um mal e de repente, sob a pressão das circunstâncias, ser obrigado a matar outro indivíduo que nenhum dano lhe causara.

Procurava convencer-se de que devia gozar integralmente sua vingança, não se deixando sentimentalízar por causa de um intruso. Não havia dúvida que o sujeito ouvira o nome de Georges Dumont. Talvez este nome lhe tenha despertado a memória. Afinal de contas, nenhum homem passa na prisão dez anos sem uma pequena publicidade. Não, êle tinha de fazê-lo. Se não o fizesse, o sujeito ia despejar a história nos ouvidos do Chefe de Polícia, na rua Grenoir.

Pediu a Charles, o garçon, que tivesse a bondade de trazer-lhe uma aspirina e este a trouxe, sorrindo ao lembrar-se do louco que havia posto um pó em sua bebida e que, em vez de bebê-la, a derramara na sargeta. Ainda estava pensando no absurdo da coisa quando nas mesas começou a se espalhar a notícia de um duplo assassinato. Servindo o cafezinho para Georges Dumont, o garçon deu vasão à sua volubilídade.

— E pensar, senhor, que eu cheguei a falar com o crimino-so! Nesta mesma mesa. Um sujeito alto e mal vestido, na certeza um lunático. Oh, não há nenhuma dúvida quanto a isso. Muitos o viram e consta que o pobre senhor Faure, na sua luta de morte, arrancou do casaco do criminoso a flor artificial que eu próprio o vi cheirar.

Dumont mal ouvia. Talvez que o pobre diabo que batera na porta tinha uma família dependendo dele. Então, aborrecendo-se consigo mesmo, procurou justificar a morte do homem com o velho argumento. “Se eu o desejasse escapar, perderia também Monsieur Faure.” Isso era inevitável. Já que Monsieur Faure devia morrer, a sorte do outro também estava selada. Era lógico. Sua morte fora necessária. De lamentar, mas absolutamente necessária.

Percebeu, então, que tudo saira mal. Viera ao café para re-gozijar-se. Para ouvi-los comentar a notícia da morte de Monsieur

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Faure e a maneira como o fariam. Para escutar, congratulando-se com a sua habilidade. Mas, em vez disso, o que ouviu foi comen-tários sobre a morte do outro — o inocente — e sentiu, então, no fundo do coração, que dali por diante para ele não haveria paz, mas somente um remorso roedor lhe perturbando a liberdade. Liberda-de? Êle jamais seria livre.

Surpreendeu-se perguntando ao garçon: — Mas por quê? Qual a razão deste crime?

Charles sacudiu os ombros. — Algum ressentimento contra o advogado. Talvez contra todos os advogados. Porisso, quando fôr chamado para dar o meu testemunho, eu terei de contar que êle concebia Monsieur Faure como um libertino de sessenta anos, com cabelos cor de fogo. Ah, não há nenhuma dúvida de que êle tinha qualquer coisa na cabeça contra Monsieur Faure. Mas, pergunto-lhe, cavalheiro, que ressentimento poderia ter um lunático contra um sujeito surdo como uma porta, como era o pobre Jacques.

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Temos uma grande dívida com um dos “mais assíduos” leito-res do MISTÉRIO MAGAZINE pela seleção e pelo texto do conto que se segue. O leitor é Paul Kitchen, de Bayonne, Nova Jersey, e deve-mos confessar que quando Mr. Kitchen chamou nossa atenção para “Mitrídates o Rei”, de Morley Roberts, ele nos apresentou um conto de que nunca ouvíramos falar. E estamos muito agradecidos — pois não devíamos deixar de conhecer este conto fora do comum.

O único trabalho de Morley Roberts que conhecíamos era um conto bastante curto denominado “The Anticipator”, reimpresso numa das antologias de Dorothy L. Sayers. “The Anticipator” é da-quele tipo de história que, uma vez lida, permanece para sempre na memória. Foi incluída no raro e pouco conhecido livro do autor, The Grinder’s Wheel (1907), que Christopher Morley certa vez descreveu como “um achado de grande valor”.

Morley Roberts, cujo nome é raramente ouvido nestes dias de esquecimento, morreu em 1942 com a idade de oitenta e cinco anos. Seu primeiro livro foi publicado em 1877 e o último em 1941 — cin-qüenta e quatro anos de esforço criador. Durante este notável es-paço de tempo Mr. Roberts escreveu mais de cinqüenta livros, uma média de um por ano, explorando praticamente todos os gêneros da expressão literária — o romance, o conto, o drama, a biografia, e nos últimos anos de sua vida, tratados sobre a política mundial. Foi ami-go pessoal de Joseph Conrad, W. H. Hudson e Conan Doyle, e seus “hobbies” favoritos eram o xadrez e a pesca.

Já declaramos que “Mitrídates o Rei” é um conto fora do co-mum. Em verdade, é muito mais do que isso, O único epíteto que lhe convém é aquele abusadíssimo qualificativo de “único”. Mas citemos Mr. Kitchen, o verdadeiro descobridor da história: “A idéia, o pivot

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dessa história é, por certo, tal, que não me recordo de haver lido coisa semelhante em parte alguma, muito embora tudo se mostre muito simples e óbvio depois de conhecermos o desfecho... Roberts, entretanto, manipula a idéia muito divertidamente, e, além disso, consegue o “clímax” a que os senhores se referem na nota introdu-tória ao “The Stone Ear”, de Vincent Cornier. Mas em seu conto Ro-berts sobreexcede Cornier — segurando a explicação do mistério até a derradeira palavra. A solução de Cornier estava realmente em três palavras, e estas três palavras foram empregadas no começo da história, e não de uma maneira totalmente insignificativa, Roberts reserva sua solução para a última palavra, e é a única vez que tal palavra (ou significação) aparece no conto!”

Estamos de pleno acordo.Mr. Kitchen prossegue: “Presumo que irão adotar um novo titu-

lo; o atual me parece pouco feliz e obscuro.”Neste ponto discordamos de Mr. Kitchen. Não nos parece que

possamos melhorar o título de Morley Roberts. Concordamos que o titulo original não seja particularmente atraente. E êle é, por certo, obscuro. Mas o sentido do velho termo farmacêutico — mitrídate — é absolutamente pertinente, e, se bem que a aplicação a Mitrídate o Rei não seja perfeita, o termo faz parte do mistério. Mas não procure a palavra mitrídate ou Mitrídates em seu dicionário ou enciclopédia antes de ler o conto de Mr. Roberts, que se achava imerecidamente “perdido.”

MITRÍDATES O REI

Morley Roberts

O MINISTÉRIO da Guerra acha-se à esquerda de Pall Mall, para quem segue na direção de West. É uma compósita, complexa, labiríntica e protoplasmática massa de salas amorfas, corredores e cubículos, onde é fácil a um homem ou a um projeto perder-se tão completamente a ponto de nunca mais ninguém ouvir falar deles. Nele existem salas com estantes repletas de livros belos e raros, dignos de serem roubados; há outras com fósseis humanos, admi-

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ràvelmente próprios para exibição, embora não exista quem pense roubá-los; noutras há uma boa quantidade de homens capazes, mas ali inutilizados para a vida; há alguns não totalmente inutili-zados; outros há, pouquíssimos, que constituem excelentes funcio-nários, pois o próprio serviço público nem sempre consegue des-truir a natural energia de um homem. Destes, Hetherwick Coutts, da A. G. 15, era um. Aos olhos dos superiores seu concurso, era inestimável. Seus subordinados, porém, o consideravam uma bes-ta. Votavam-lhe um ódio unânime e o manifestavam sem a mínima reserva — quando êle se achava em licença ou fora da sala.

Para alcançar o departamento conhecido tecnicamente como o A. G. 15, entra-se na porta mais próxima ao Reform Club, e de-pois se pende para a direita. Depois de se andar mais ou menos cem jardas, de passar por várias portas, e de contornar cuidado-samente pilhas de caixas de papel que são humoristicarnente des-critas como “em trânsito”, o visitante depara com uma escada de pedra. Nesta altura convém-lhe chamar um mensageiro e gorgeteá-lo. Depois de uma longa e cansativa jornada o viajante alcança um corredor escuro que se assemelha à entrada de uma catacumba, e provavelmente inutiliza, seu chapéu de encontro a um bico de gás apagado. Abrindo uma porta, penetra no A. G. 15, e quase colide com eus ocupantes, que usualmente são em númeero de seis.

Hetherwick Coutts ocupava a segunda peça, com um subor-dinado, a quem um longo estágio no serviço militar, numa posição subalterna, tornara impermeável ao mau temperamento de qual-quer superior, a menos que lhe aplicassem pontapés. Justo é dizer que Coutts nunca lançou mão de tais recursos, nem jamais atirou objetos nos seus subordinados. Um divertimento sadio consiste em lançar papéis ao chão e pedir ao inofensivo cavalheiro, que os trou-xe, que os apanhe de novo.

É um meio desagradável de levantar objeções, e em qualquer emprego, salvo o de Sua Majestade, esse sistema podia dar origem a ações por ofensas e agravos. Hetherwick Coutts porém, não era grosseiro a esse ponto. Vestia-se bem, e procurava viver de acordo com a moda que lhe ditava o alfaiate. Seu forte era o sarcasmo, e uma espécie de insolência militar que adquirira de um ou dois oficiais superiores, que haviam sido relegados para os confins do

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Ministério da Guerra, como deputados-assistentes-ou-coisa-que-o-valha porque eram demasiado espertos para viver com seus re-gimentos.

É muito fácil aprender-se a zombar de alguém num grande escritório. Há a certeza de haver pelo menos um idiota na sala e, se êle é muito irascível, ou combativo em excesso para sustentar a discussão verbalmente, surge um momento em que se retira para fumar um cigarro. Então os outros podem colocar-se diante do fogo e dizer o que pensam sem receio de uma rixa, que pode muito bem terminar com arremêssos de tinteiros ou de exemplares da bíblia, na edição feita para o exército, encadernada em papel vermelho. Em alguns departamentos do Ministério do Exterior eles lutam arremessando-se maços de mensagens de felicitações dirigidas a Sua Majestade, nas quais nossa nobre rainha é cumprimentada pelo seu natalício ou por qualquer outro evento. Destas mensagens poucas, em verdade, chegam até Windsor, não obstante as cartas que lhe acusam o recebimento. Mas em Pall Mall as maiores al-gazarras e tumultos são feitas com almanaques militares ou com tocos de vela. Mas deixemos de digressões, se bem que úteis, pois foi num ambiente destes que Hetherwick Coutts ingressou na sua primeira mocidade.

Como êle era odiado! — porque não era nenhum idiota, e ti-nha uma memória prodigiosa.

— Havia um papel sobre este assunto, há cerca de dez anos — lembrava êle, com facilidade, e os funcionários do empoeirado arquivo praguejavam quando tal documento era requisitado.

— O senhor já cometeu exatamente o mesmo engano, antes, Mr. Smith, de modo que lhe falta mesmo originalidade.

E podia recordar o erro de Mr. Smith nos seus mínimos de-talhes, deixando indignado um homem tão zeloso no cumprimento do dever.

Descia, então, a particulares absurdos. Um mísero escrivão de dez pences a hora não podia cortar seus t de tal ou qual manei-ra, a menos que quisesse procurar outro emprêgo. Procedia, tam-bém, mesquinhamente, e mais de uma vez cometia erros com o propósito de admoestar um funcionário por não tê-los percebido. Às vezes tinha de assinar uma porção de papéis, anotando, em

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cada um, “nada a observar”.— Se me pedissem informações sobre a inteligência daqueles

que me ajudam — observava êle zombadoramente — eu teria de requerer um novo suprimento de papel para minuta.

Sempre fingia não ver seus subordinados se os encontrava na rua, o que o fazia naturalmente muito agradável. Se eles sou-bessem, porém, que o diretor geral, fazia o mesmo com ele, isso re-presentaria um bálsamo para suas feridas e os levaria a trabalhar animadamente durante uma semana. Bufava quando, às vezes, al-gum funcionário lhe formulava uma pergunta. Brigava com os ser-ventes. Os mensageiros o detestavam. Os ordenanças sonhavam surpreendê-lo à noite para arrancar-lhe as entranhas. O garçon que lhe servia o jantar, ou melhor, o lanche, pensava envenená-lo.

Havia outros, além do garçon, que imaginavam que a melhor coisa que podia acontecer era Hetherwick Coutts fixar residência no outro mundo e dirigir um A. G. 15 no mais profundo inferno de Dante, tendo Satã como comandante em chefe. É comum os su-bordinados odiarem o chefe, se existe alguma oportunidade de me-lhorarem de situação quando sua morte sobrevém. E quanto mais os homens sobem, mais se aguça sua insaciável ambição. Esta é a maldição do serviço público., Ocultos no recesso de sujos edifícios, seus problemas não significam nada para o mundo. Sua única am-bição gira em torno de um poder minúsculo e de uma carteira mais cheia. E se alguém, em qualquer tempo ou circunstância, odeia o homem que lhe ocupa um lugar superior, quanto mais — Ó Pobre Obscuridade! — o detestará se êle lhe barra o caminho, e não é nem velho nem incapaz, e possue uma ágil e indecente saúde. A única esperança, então, é vê-lo morrer de apoplexia. Êle tinha um rosto saudável e sangüíneo — o que os levava a pensar que isso constituía um bom sinal. Havia dois, pelo menos, que esperavam tornar-se chefes, quando Hetherwick Coutts estivesse. Odiavam-se, mas o ódio que votavam ao outro tornava-se, para eles, uma doença cada vez mais grave.

F. W. Palmer, ou Frederick Wentworth Palmer, era o homem que, de acordo com a rotina oficial, tinha a melhor chance, pelo fato de ser o mais antigo a serviço de Lyall Burke. Mas Burke era o mais capaz dos dois, e tinha uma nítida vocação para a subservi-

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ência. Coutts tinha melhor disposição com respeito a Burke do que com qualquer outro em torno dele. Já procedera com êle, várias vezes, com notável amabilidade, o que deixava Burke intrigado, à espera de qualquer surpresa.

Diante de um propósito firme, o indivíduo deve agir de um modo ou de outro. Pode esperar e esperar, mas, afinal, êle se abor-rece de tanto afiar sua navalha em vão. Precisa escanhoar alguém. Seus pensamentos evoluem conforme sua disposição. Deles brota a flor do projeto e o fruto da ação. Numa vida mais ampla, é-nos fácil darmos vasão a nossas energias, mas numa estreita rotina a raiva, o ódio, e a falta de caridade não faz mais senão florescer. Se um homem nos molesta sem saber, podemos sorrir e suportar, per-manecendo em paz. Quando, porém, nos odeia, e nós a êle, o diabo entra no embrulho, e todo o conteúdo odioso da panela da bruxa se transformará no feitiço que mal murmuramos entre dentes.

Aquele homem distribuía espinhos no caminho de seus su-bordinados. Tornara-se deshumano, bestial. Eles odiavam sua for-çada cortezia. Sob suas línguas macias se ocultava a malícia. O ciúme e a desconfiança que alimentavam entre si não era nada quando pensavam nele. Cálidos sentimentos, simulando cama-radagem, os excitavam quando pronunciavam rutilezas contra o inimigo comum. Faziam conjeturas sobre sua força vital: quanto tempo viveria êle? Perscrutavam todas as mudanças que ele reve-lava: os sinais de uma noite mal dormida levantava-lhes as espe-ranças. Quando êle se sentia realmente doente, pulso frouxo fazia o deles acelerar; quando fraquejava, os outros se tornavam mais fortes; quando êle saia, em licença, os dois se aproximavam. E, de repente, a besta voltava, tão forte, corajosa e saudável que quase desfaleciam. Congratulavam-se com êle pàlidamente como dois ve-lhacos; e, como dois velhacos, ainda, naquela noite transformavam dois lares num inferno.

Quem pôs a idéia em seus corações, quem os instruiu, quem lhes deu coragem mesmo para pensar na sua morte do modo como o fizeram? As sementes de todos os crimes se encontram em todos os corações, como as sementes de todas as altas virtudes, de todos os nobres desejos. Humilhe um homem, pode ser que êle não rea-ja, falta-lhe coragem. Com o tempo, porém, êle reagirá. Esses dois

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homens, independentemente um do outro, determinaram livrar-se de Hetherwick Coutts. Precisavam matá-lo. E muito naturalmente voltaram-se para o veneno. Estudaram a coisa em segrêdo.

Hetherwick Coutts, entrementes, comportava-se como uma exigente dona de casa, que, depois de permanecer até tarde na cama, levanta-se para descobrir pòzinhos e sujeira em todos os cantos do apartamento. Isto aqui estava errado, aquilo também: por que é que quando dava as costas tudo passava a ser mal fei-to? Tirava a pele de todos, e derramava-lhes ácido nos ferimentos, deliciado, vendo-os contorcerem-se: usava um hemisfério do seu grande cérebro para trabalhar e outro para inventar sarcasmos. Durante duas semanas êle se divertiu extraordinariamente, e esta-va já caindo na sua rotina habitual depois de conseguir que Burke e Palmer ficassem tão bons quanto suas más resoluções.

A melhor maneira de induzir seu espírito a fazer alguma coi-sa boa, sem qualquer moleza ou lentidão, ou falta de completa de-cisão, é fazer exatamente o contrário, e permanecer do lado de Ahríman sem nenhuma reserva. Cinco minutos antes de iniciar este período, li uma carta que me acusava de deixar minha imaginação escapar com suas faculdades perceptivas. Se isso é verdade, posso estar errado em pensar que deve estar além de qualquer arte, ou da prática de qualquer arte, não ter consciência nem remorso e uma paixão por envenenamento. Penso, assim, que o melhor momento que os dois subordinados de Coutts tiveram em sua vidinha de serviço miserável foi quando sc mostraram à altura e começaram a agir consoante seus impulsos reais. Mas a paixão que conduz ao crime é usualmente como a aurora de um dia úmido. Há sangue, e fogo e uma coloração de aspecto imortal a leste, mas êle se acin-zenteía quando o mar se torna frio e o vento e a chuva aparecem juntos para apagar-lhe a glória vã. Esses homens, afinal de contas, eram covardes, muito embora uma vez tenham tido a ousadia de agir. Pois tiveram.

Eles o envenenaram no mesmo dia, à mesma hora, já que alguma estranha simpatia os unia. Quando Hetherwick Coutts os insultou num tom em que concentrava todo seu desprezo, eles lhe deram uma resposta vulgar e silenciosa, pondo-lhe veneno na cer-veja. Sentaram-se à parte, num extremo da sala, e o viram esvasiar

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a garrafa. O sangue gelou-lhe nas veias, tremeram e murmuraram desculpas às suas próprias consciências. Como se sentiram mal, quando, meia hora depois das duas, êle anunciou que não estava se sentindo bem e que iria para a casa. Estavam com a garganta tão seca quanto as fontes do inferno, Foram invadidos pelo arre-pendimento e começaram a suar frio. O homem, antes de praticar um crime, deveria provar sua coragem, e não se atirar cegamente no inferno sem conhecer sua capacidade de suportar um tormen-to.

O medo que lhes ia na alma passou a refletir-se na expressão espectral da fisionomia de ambos. Começaram a olhar-se furtiva-mente, e terminaram por se temerem. — Por que será que Burke estava olhando daquela maneira? — conjetura Palmer, e idêntica pergunta se fazia Burke. Sob pretextos tolos, um passou a rode-ar a escrivaninha do outro. Olhavam-se com o rabo dos olhos. O despistamento que um notava no outro era uma confirmação. À medida que as horas passavam, mais se confirmavam suas mútu-as suspeitas. Quando o relógio deu cinco horas, os demais saíram como bestas de carga satisfeitas por ter chegado o momento de serem desatreladas. Os dois permaneceram e lavaram as mãos, como teriam lavado suas memórias enodoadas. Burke conversava com seus botões; diria que não se achava disposto a ir para casa; convidaria Palmer para jantar com êle. O mesmo pensamento se aninhava no cérebro mais lento de seu colega.

— Se quiser — disse Burke — venha jantar comigo em algum restaurante. Não me sinto com vontade de ir para casa.

— Muito bem — respondeu Palmer, com uma voz rouca. Burke sentiu-se um pouco melhor. — Jantaria aquele homem com êle se soubesse? E se êle o tivesse visto?

Saíram, assim juntos e desceram Pall Mall até Charing Cross.

— Vamos ao Gatti’s — lembrou Burke. Sentaram-se no extre-mo do longo restaurante. Ambos procuraram esconder suas faces na sombra. Mas havia pouca para os dois, e Palmer obteve o que havia.

Burke encomendou um bom jantar: sopa, vol-au-vent e um pássaro, e sugeriu champanha. Embora fosse mais miserável que a

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própria Miséria, Palmer não se mostrou surpreso. Este fato fêz com que o coração do seu anfitrião sofresse um baque.

Comeram como se estivessem a mastigar côdeas secas numa prisão, e enquanto isso se olhavam furtivamente. Beberam como se quisessem apagar um fogo interior e adquiriram mais coragem. Por tudo isso, olhavam como dois sujeitos pálidos e estranhos, nada simpáticos. Os jovens tolos e as garotas, os velhos tolos e as pequenas, de modo algum tolos para a sua geração, pareciam sensatos e grandes ao lado deles. Como há diferentes infinitos, há, também, diferentes degradações. Sentir-se grandemente amedron-tado depois de um ato deliberado é mergulhar nos abismos do mais profundo inferno. Eles continuaram a beber.

Palmer insistia em encomendar mais vinho, pelo qual êle é que pagaria. Aquilo que os levaria para a sargeta uma semana atrás não significava nada agora para ambos. Estavam estranha-mente concientes de que bebiam uma enormidade sem se sentirem afetados. Puseram-se a beber conhaque, e sua triste e extraordi-nária sobriedade fêz com que o garçon os respeitasse. Dois caniços secos, e quanto podiam beber! Levou o fato ao conhecimento do gerente, que os inspecionou para estimar-lhes a solvência. Saíram, afinal, e o ar frio da noite os afetou. Desceram o Strand e entraram num botequim para tomar um traguinho de despedida. Simulavam amizade, Burke tornou-se mais ousado.

— Para o diabo com o velho Hetherwick Coutts! — exclamou êle.

— Sim — aquiesceu Palmer, pálido como um defunto. Sua língua parecia colada. Burke olhou-o, de súbito, e Palmer deu as costas e se pôs a caminhar. Seu alegre companheiro o seguiu. Su-biram na direção de Píccadilly em silêncio.

“Gostaria de saber se êle vai para casa”, foi o pensamento que ocorreu a ambos. “Logo que êle se ver livre de mim, - êle informará a polícia”, murmuraram. Entraram em Piccadilly, eram doze horas, ou doze e meia, e véspera de 1.° de Maio. Palmer cambaleou, no próximo cruzamento, e saiu tropeçando pela ruazinha estreita, que conduz a Vine Street; a Delegacia de Polícia se encontra ali, no fun-do de St. James Hall, casa da música e da moral. Burke teve um súbito e cego acesso de raiva, soqueou Palmer fortemente e o atin-

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giu nos queixos; o outro replicou, e ambos saíram rolando, engalfi-nhados. Formou-se uma multidão de homens e mulheres, e gritos e apupos trovejaram sobre eles enquanto lutavam na calçada.

“Dois janotas brigando” — exclamou uma pequena, que um policial pôs de lado. Dentro de meio minuto eles se achavam no interior da Delegacia, pois o policial se refreara três vezes, naquela noite, para não prender alguém. Mesmo a tolerância de um policial tem limites.

Quase que brigaram de novo para cada um dizer a primeira palavra, e foram apartados rudemente por um outro policial.

— Afinal, o que houve? — indagou o delegado de plantão.— Encontrei estes dois bêbados brigando — respondeu o po-

licial.—- Êle envenenou um homem no Ministério da Guerra —

berrou Palmer, que na sua raiva, envolta em temor, lembrou-se de acusar o outro do seu próprio crime.

— Foi êle quem envenenou! — retorquiu Burke prontamente. — Eu o vi.

— Fêz o quê? — perguntou o inspetor. — Cale a boca, por favor!

Esta advertência era para Burke, e como estivesse recupe-rando sua calma e auto-contrôle, êle dobrou-se.

— Agora, senhor, repita o que estava dizendo.— Estava dizendo que esse homem envenenou Mr. He-

therwick Coutts no Ministério da Guerra, nesta tarde. Eu o vi — disse Palmer, cambaleando, pois estava completamente embriaga-do.

— E o senhor diz que êle fêz o mesmo?— Sim — respondeu Burke. — Eu o vi..O inspetor deu de ombros e os examinou curiosamente. Vi-

rou-se para um sargento, pois recém assumira a função.— Veiu alguma comunicação do Ministério cia Guerra?— Não que eu saiba — respondeu o sargento.— Acho que o melhor, então, é acomodar estes dois cavalhei-

ros por esta noite, pois se não envenenaram ninguém, eles, pelo menos, estiveram se envenenando — observou o inspetor.

Foram afastados e cada um recolhido a uma cela.

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— Coisa um tanto esquisita, não lhe parece, Bowes? — per-guntou o inspetor, afastando sua cadeira e se aproximando do fogo para aquecer-se.

— Parece, mesmo — respondeu o lacônico sargento.— Acha que houve realmente alguma coisa? — O inspetor

não pôde deixar de fazer a pergunta, pois a coisa parecia de fato muito curiosa.

— Bebedeira, chefe! — respondeu Bowes.— Amanhã cedo mande alguém ao Ministério da Guerra in-

dagar a respeito desse homem, desse Mr. Hetherwick Coutts.E na manhã seguinte o sargento cumpriu a determinação.

Às onze horas Mr. Hetherwick Coutts estava no seu costumeiro lugar, e em resposta às perguntas sobre sua saúde, declarou que se sentia muito bem, embora tivesse se sentido muito mal na tarde e na noite anteriores. Palmer e Burke nada ficaram sabendo da indagação.

— Mas eu lhe dei uma dose de atropina suficiente para matar dois homens! —- ficou Palmer conjeturando.

— Mas eu lhe dei uma dose de muscarína capaz de matar um cavalo! — disse Burke para os seus botões.

Mas acontece que estes dois venenos são antídotos.

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PRÊMIO ESPECIAL PARA O MELHOR CONTO-MIRIM

O conto “Oh Tempo em tua Fuga’ de Vincent Cornier, tem uma história curiosa. Quando pela primeira vez submetido ao Sexto Con-curso Anual do EQMM, era, na versão original, uma história de fô-lego. O enredo era complicado, mas do seu emaranhado sobressaía um magnífico argumento. — Algo de inédito, fresco e estimulante. Sentia-se que a principal idéia do enredo fora prejudicada ao invés de melhorada por todas as minúcias que a sustentavam, e que aqui se notava um exemplo onde o desenvolvimento estrutural fora preju-dicial. Foi então sugerida a Mr. Cornier uma drástica revisão em seu trabalho. Pedimos-lhe que extraísse a “grande idéia” da história, e usasse aquela, e somente aquela, como única estrutura — e por que não reduzi-la de 7000 para 2000 palavras? Nossa sugestão teve boa acolhida. Decidiu o mesmo, finalmente, reter na nova versão a principal idéia do enredo com mais uma chave, resultando que o produto melhorado confirmava o acerto desta decisão: o material suplementar dava mais riqueza à história.

Escrevia depois Mr. Cornier para a Comissão Julgadora que a revisão “exigira um trabalho gigantesco de raciocínio, mas acre-ditava ter conseguido este intento”. Em verdade, concordamos que assim tenha sido. Previnir-se é armar-se; contudo, saiba o leitor que o conto a seguir representa um trabalho de raciocínio elevado, com o risco calculado, em forma sintética.

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OH TEMPO, EM TUA FUGA

Vincent Cornier

TODOS os indícios faziam crer que o velho Benjamin Jaffa fora morto com um tiro, precisamente às quatro e trinta e seis de uma tarde de sexta-feira, dia onze de junho.

Jaffa era um rico joalheiro aposentado. O cofre em sua casa de Manor Fields, situada no vilarejo de Layethorpe, fora violado pelo assassino, que havia feito uso das chaves da vítima. Haviam sido roubadas jóias, em sua maior parte ainda desmontadas, no valor de vinte e sete mil libras. Alaric Ineby, gerente da firma de Ben Jaffa, forneceu à polícia a lista dos quilates, identidade e ava-liação das jóias. Ineby estivera em Layethorpe no dia fatal — con-tudo, estava isento de qualquer suspeita de participação no crime, tal o álibi que apresentara, Jaffa fora um vizinho amável e feliz até fevereiro daquele ano. Ocorrera então a morte de sua irmã cega, Leah. A dor transtornara-o: era agora um homem de vida reclusa e sombria. Serventes e jardineiro foram despedidos, sendo contrata-da para fazer o serviço diário a Sra. Lizzie Swires, uma mulher de hábitos negligentes.

O corpo fora encontrado na manhã de sábado pela Sra. Swi-res. Jaffa estava debruçado sobre a mesa de trabalho do estúdio. Tinha em sua mão uma caneta e sobre a escrivaninha via-se um talão de cheques aberto, estando um deles já preenchido na parte referente à data. Na sua cabeça grisalha foram constatados dois ferimentos. Um consistia em um sulco superficial — causado por uma bala que raspara o couro cabeludo, indo dai alojar-se no inte-rior de um pequeno relógio de mesa; o outro produzira uma perfu-ração fatal e fulminante na nuca.

O relógio de mesa era de uma importância vital. Ben Jaffa tinha sido um renomado colecionador de raros exemplares de re-lojoaria, e este representava o seu maior tesouro “pessoal”, porque para êle esse tinha um profundo simbolismo hebraico e também porque o mesmo fora de grande utilidade para sua irmã cega Leah. Era uma obra-prima saída das mãos de John Arnold, de Londres, no século XVIII, e estivera sempre em poder da família Jaffa. O

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relógio não possuía vidro. Em lugar de algarismos romanos ou ará-bicos, o mostrador esmaltado consistia de pequenos pontos doura-dos em relevo. Cada um destes ostentava o emblema de uma das doze tribos com as letras do alfabeto hebraico em destaque: aleph, beth, gimel, daleth, he-até yud-aleph e yud-beth, décima-primeira e décima-segunda letras. Pelo simples toque nestas letras e pontei-ros com a ponta dos dedos Leah sabia a hora de imediato.

Era o relógio principal de toda a coleção. A exigência de Jaffa quanto à precisão do tempo registrado por seus relógios, inclusive este, era tal — como relatou Alaric Ineby à polícia — que o mesmo funcionava com a exatidão de até meio segundo. O tiro que raspara o crânio de Jaffa fizera cessar o delicado mecanismo, inutilizando-o instantaneamente. Já que os ponteiros com filigrana dourada es-tavam fortemente seguros em torno de seu eixo central, nenhuma possibilidade havia de terem os mesmos desviado, para frente ou para trás, ainda que uma fração de segundo, em sua marcha.

O exame microscópico provara que, com exceção das mãos de Jaffa, nenhuma outra havia tocado no relógio durante muitas semanas — nem, aliás, as mãos grosseiras da Sra. Swires tiveram jamais permissão para limpar o estúdio.

Também pessoa alguma poderia ter improvisado uma hora falsa com o auxílio de instrumento apropriado ou outro qualquer. O magnífico mecanismo de John Arnold não era regulado por bo-tões ou controle externos. Se por ventura o marcador não mostras-se a hora certa, o mecanismo tinha de ser parado para que fosse acertado o tempo.

Alaric Ineby sempre visitava Layethorpe às sextas-feiras, pois sendo de hábitos conservadores, Ben Jaffa exigia a observância dos mesmos por parte de todos os que êle empregava. A chegada de Ineby a Manor Fields sempre se dava ao meio-dia, passando de imediato a conferenciar com Ben Jaffa, abandonando o local às duas da tarde.

Um almoço retardado aguardava-o sempre no Bay Horsc Inn — passando Ineby o resto do dia a beber, contar anedotas e jogar damas com o hoteleiro Sam Bowker.

Esta rotina fora, como de costume, cumprida naquela sexta-feira fatal, com apenas uma insignificante exceção. Ineby aparece-

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ra no hotel trajando camisa e calças esporte, passando logo a usar calções. Como seguidamente regressasse a Leeds, sua cidade natal, tomando o rumo dos pantanais, disse a Bowker que “êle precisava acostumar-se a andar com trajes apropriados para a travessia de pantanais — como todo o mundo.”

Ben Jaffa ainda estava com vida às quatro horas. A Sra. Swi-res nas sextas-feiras por essa hora costumava servir-lhe uma pe-quena refeição, ocasião em que recebia seu salário semanal. Ela então ia para casa e Jaffa empregava as horas restantes do dia a ler e a meditar, preparando-se assim para as suas visitas de sábados à sinagoga de Leeds.

O assassino devia ser conhecido do velho. Rastros num rel-vado há muito abandonado mostravam que um homem havia piso-teado a erva daninha que crescia por entre a grama, a fim de poder atingir o jardim dos fundos entrando assim em Manor Fields por trás. Jaffa teria notado esta aproximação do interior de seu estú-dio, mesmo assim, não teria se importado com o fato. . . ficando o assassino colocado por trás da vítima, enquanto esta permanecia sentada em sua escrivaninha.

Isto era tudo. O inquérito policial não podia ir além. As teste-munhas declararam, unânime, que Ineby — o único suspeito pos-sível, fora visto entrando no Bay Horse às duas e dez, e êle não poderia naturalmente ter saído dali senão depois das sete da noite; e nenhum estranho fora visto perto de Layethorpe.

Eis que surge um amigo de infância do velho Ben Jaffa — um tal de Barnabas Híldreth, um chefe graduado do Serviço Secreto. Os homens da Scotland Yard e os policiais de Leeds ficaram sur-presos, mas o comissário-assistente da Scotland socegou-os dizen-do que aceitassem Hildreth como “persona grata. . .”

O investigador-chefe Newbolt foi posto às ordens de Hil-dreth. Cada testemunha foi novamente interrogada; todas as pro-vas e declarações recolhidas em Manor Fields foram revisadas; o dossier foi inteiramente relido — observando-se apenas, conforme notara o prudente Newbolt, que Alaric Ineby, não havia sido inter-rogado. Talvez isso fosse devido à recente enfermidade de Ineby — um tanto séria por sinal. Ineby ficara acamado por um violento ataque de catapora na noite de treze. . .

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Newbolt apreciava Hildreth pela sua vivacidade e maneiras reservadas, porém impacientava-se com o seu modo curioso de conduzir as investigações. Estas pareciam fúteis, principalmente quando diziam respeito à anotação dos períodos exatos de irradia-ção solar registradas em Layethorpe no dia do crime.

— Francamente, não vejo para que serve tudo isto — res-mungou Newbolt, ao sentarem-se para beber um uísque no Bay Horse, examinando os vários relatórios.

— Que diabo tem o sol a ver com o caso? Escute, chefe, o senhor já se preocupou em dissecar a vida de mais de um dúzia de pessoas simples, e para que fim?

Hildreth apontou para os boletins do tempo e delicadamente falou: — Olhe aqui novamente o álibi de Alaric Ineby. . .

— O quê? — exclamou Newbolt, um tanto desapontado, le-vantando-se. — Por que diabo vem isto ao caso? Com licença, Sr. Hildreth, isso — isso não tem nenhum sentido! Ineby está inteira-mente afastado de toda e qualquer cogitação.

— Mas não na minha opinião. Escute, Ineby é um crimino-so astuto e diabòlicamente inteligente. Levantou em torno de si um álibi indestrutível — e eí-lo agora a rir despreocupado de tudo isto.

— Mas o Serviço Secreto — indagou com malícia Newbolt. visivelmente irritado — não poderia com sua magia desconhecida para nós, pobres policiais ignorantes, levantar uma acusação con-tra êle — hein?

— Tem toda a razão em pensar assim. Digo-lhe, porém, que Ben Jaffa era um grande amigo meu e Ineby o assassinou por di-nheiro, mas êle pagará na fôrca por isto!

— De que maneira? — interrogou Newbolt, movido por um vigor súbito, enquanto Hildreth enchia seu cachimbo num gesto evidente de quem queria fugir àquele olhar inquiridor.

— Primeiramente, valendo-me das referências que você des-prezou — disse Hildreth, tocando nos boletins metereológicos — pois eles ajudam a provar a minha teoria.

Levando-a em consideração, juntamente com o relatório so-bre a enfermidade de Ineby, que começou domingo à noite, fico convencido ser êle o homem de quem Jaffa não tinha receio, o ho-

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mem que atravessou o relvado — o homem que entrou em Manor Fields pelos fundos. Aquela tarde de sexta-feira, a não ser por uma ou duas horas de sol, esteve enublada e sufocante. Ineby primeira-mente usou calças compridas e passou depois para calções que lhe deixavam as pernas a descoberto. Nos meses de verão surgiam por estas cercanias durante séculos epidemias de catapora que deixa-vam os médicos desatinados. Dois anos atrás, vários homens da Real Força Aérea foram gravemente atacados por este mal quando participavam das manobras realizadas em todo país. Os cientistas logo entraram em ação e determinaram — conforme se verifica do relatório de julho último do Jornal Médico Britânico — a causa até então desconhecida. . . anthriscus sylvestris, uma erva daninha..

— O quê? O senhor quer dizer que uma simples erva daninha poderá comprometer o homem?

— Exatamente, pois esta erva existe em abundância no relva-do que cerca a mansão de Manor Fields. O pólen desta erva, quan-do sacudida, produz um vapor semelhante ao do gás de mostarda. Mas nos dias de sol causticante todo aquele que expõe a pele pela primeira vez, junto desta erva, é atingido pelo seu veneno pene-trante, surgindo-lhe depois de quarenta e oito horas uma erupção semelhante à da catapora. Contudo, em dias nublados, este fenô-meno não ocorre porque a erva não emite vapor, nem tampouco as pessoas de pele queimada pelo sol são por ela afetadas.

— Creio que é isto mesmo, chefe. Já estou bastante velho nesta profissão para reconhecer uma verdade quando ela é dita.

— Obrigado, Newbolt — disse Hildreth. esfregando as mãos. — Se Ineby fosse assassinar um homem para roubá-lo, como não haveria de lhe ser útil esta simulação de atravessar pantanais com trajes apropriados hein? Êle poderia fàcilmente ter vestido as calças compridas que trazia na sacola, caso temesse ficar com as pernas descobertas cheias de bolhas sangrentas, provocadas por aquela erva, e serviria igualmente a sacola para guardar o produto do roubo.

— Mas há o caso do álibi de Ineby, chefe, que é o mais impor-tante de tudo — êle é indestrutível! Ineby estava no hotel precisa-mente à hora em que foi cometido o crime.

Hildreth, refletindo um pouco, continuou. — Existiu em Lon-

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dres, no século XVIII, um tal de John Arnold. Este fizera um relógio especial para o rei Jorge III.

O monarca não gostou muito da encomenda e mandou-a de volta, qualificando-a de “uma droga de panela para ferver água”. Entretanto, saiba você, Newbolt, que este relógio ainda existe em Greenwich, e é utilizado pela nossa emissora de rádio BBC para dar a hora certa a todos os relógios de Londres. O autor genial desta obra-prima foi o mesmo que fêz aquele relógio de mesa pertencente a Jaffa, o qual comemorava a época passada pelos seus ancestrais no Cativeiro da Babilônia. O meu amigo Jaffa, como o seu próprio nome indica, era um judeu do Sefaradim, que se originou da antiga Babilônia Oriental.

“Naquela época controlava-se o tempo, na Babilônia, a noite, por meio de relógios de água, enquanto que o dia era marcado por relógio de sol. O seu funcionamento consistia na saída lenta da água de um cilindro, a qual produzia o abaixamento de um pon-teiro flutuante, registrando desta forma o tempo decorrido entre o pôr do sol até a meia-noite; o líquido entrando no outro cilindro causava a elevação de um outro ponteiro que marcava o tempo entre meia-noite e o nascer do sol. Entre os hebreus extremamente ortodoxos ainda persiste êste meio de controlar o tempo em duas fases, e o relógio de Jaffa é um destes raros exemplares.”

— Mas, ainda que tudo isto seja muito interessante, senhor, não vejo aonde quer chegar com isto. Se o relógio era de tamanha precisão, então êle apenas vem reforçar o álibi de Ineby. O assassi-nato ocorreu às quatro e trinta e seis e. . .

— As duas horas de intenso brilho solar extenderam-se das cinco e quarenta e cinco até aproximadamente oito horas. Foi du-rante êste período que Ineby atravessou o relvado, penetrando no estúdio de Jaffa. Calculo que êle fingisse ter esquecido algum che-que. Surpreendeu o velho sentado à sua escrivaninha, matando-o então com o primeiro tiro. Depois, visando propositadamente o re-lógio com a intenção de inutilizar o seu mecanismo, sem que fosse preciso tocar nele, atingiu de refilão o crânio da vítima. O seu álibi, estando assim assegurado, empreendeu o roubo.

Hildreth, abrindo sua carteira de dinheiro, mostrou a New-bolt uma fotografia do relógio hebraico. — Está vendo? Não existem

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algarismos romanos nem arábicos.Apontou para o ponto saliente que representava o lugar ha-

bitualmente ocupado pelo número onze num mostrador e tocou a seguir em cada um dos pontos dourados no mostrador. — Aqui te-mos os escudos das doze tribos com as letras do alfabeto hebraico por cima. . .

— Espere um momento! Você está tocando nestas letras de trás para diante!

— Não, não estou! Não sabe que em hebraico a leitura é fei-ta, de trás para diante? Foi baseando-se no segredo desta obra-prima de Arnold que Ineby se valeu para despistar a polícia. Estou contando progressivamente em hebraico — um, dois, três, quatro. . . O velho relógio de Jaffa, que marcava o tempo em hebraico, parará não nas quatro e trinta e seis — mas sim nas sete e trinta e quatro da noite! Ponha esta fotografia diante de um espelho e verifique isso você mesmo, Newbolt. Este original mecanismo fazia girar os ponteiros ao contrário no marcador. Compreendes? Para nós o marcador mostra quatro e trinta e seis — para Jaffa e para aquele cão ladino, Ineby, indicava a hora exata do dia. Aquela hora de sol. . .

Newbolt, tremendo, colocou a fotografia diante do espelho. Deixou então escapar um grito e corre a agarrar o telefone. . .

Para trás, volta para trás, Oh Tempo, em tua fuga. . .

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