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Lngua Portuguesa Noıes de Concordncia Verbal Anderson FÆvero Rodrigues EloquŒncia singular Fernando Sabino Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou: Senhor Presidente: nªo sou daqueles que... O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular: Nªo sou daqueles que... Nªo sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem que recusa? que ele tªo facilmente caa nelas, era logo massacrado com um aparte. Nªo sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo: ... embora perfeitamente cnscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, nªo sou... Daqueles que recusa, evidentemente. Como Ø que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramÆticos registram nas suas questiœnculas de portuguŒs: ia para o singular, nªo tinha dœvida. Idiotismo de linguagem, devia ser. ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa... Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar: Nªo sou daqueles que... Daqueles que o quŒ? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traioeira pinguela gramatical em que sua oratria lamentavelmente se havia metido logo de sada. Mas a concordncia? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural? Nªo sou daqueles que, dizia eu e Ø bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiana em ns depositada... Intercalava oraıes e mais oraıes, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordncia. Ambas com aparŒncia castia. Ambas legtimas. Ambas gramaticalmente ldimas, segundo o vernÆculo: Neste momento tªo grave para os destinos da nossa nacionalidade. Ambas legtimas? Nªo, nªo podia ser. Sabia bem que a expressªo daqueles que era coisa jÆ estudada e decidida por tudo quanto Ø gramaticide por a, qualquer um sabia que levava sempre o verbo no plural: ... nªo sou daqueles que, conforme afirmava... Ou ao singular? HÆ exceıes, e aquela bem podia ser uma delas. Daquele que. Nªo sou UM daquele que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar: Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

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  • Lngua Portuguesa Noes de Concordncia Verbal

    Anderson Fvero Rodrigues

    Eloquncia singular

    Fernando Sabino

    Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

    Senhor Presidente: no sou daqueles que...

    O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

    No sou daqueles que...

    No sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem que recusa? que ele to facilmente caa nelas, era logo massacrado com um aparte. No sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

    ... embora perfeitamente cnscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, no sou...

    Daqueles que recusa, evidentemente. Como que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramticos registram nas suas questinculas de portugus: ia para o singular, no tinha dvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

    ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

    Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

    No sou daqueles que...

    Daqueles que o qu? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traioeira pinguela gramatical em que sua oratria lamentavelmente se havia metido logo de sada. Mas a concordncia? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural?

    No sou daqueles que, dizia eu e bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiana em ns depositada...

    Intercalava oraes e mais oraes, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordncia. Ambas com aparncia castia. Ambas legtimas. Ambas gramaticalmente ldimas, segundo o vernculo:

    Neste momento to grave para os destinos da nossa nacionalidade.

    Ambas legtimas? No, no podia ser. Sabia bem que a expresso daqueles que era coisa j estudada e decidida por tudo quanto gramaticide por a, qualquer um sabia que levava sempre o verbo no plural:

    ... no sou daqueles que, conforme afirmava...

    Ou ao singular? H excees, e aquela bem podia ser uma delas. Daquele que. No sou UM daquele que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

    Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

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  • Lngua Portuguesa Noes de Concordncia Verbal

    Anderson Fvero Rodrigues

    A concordncia que fosse para o diabo. Intercalou mais uma orao e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando no ser daqueles que...

    Como?

    Acolheu a interrupo com um suspiro de alvio:

    No ouvi bem o aparte do nobre deputado.

    Silncio. Ningum dera aparte nenhum.

    Vossa Excelncia, por obsquio, queira falar mais alto, que no ouvi bem e apontava, agoniado, um dos deputados mais prximos.

    Eu? Mas eu no disse nada...

    Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

    O silncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora j era, como no verso de Bilac, a agonia do heri e a agonia da tarde.

    Que que voc acha? cochichou um.

    Acho que vai para o singular.

    Pois eu no: para o plural, lgico.

    O orador prosseguia na sua luta:

    Como afirmava no comeo do meu discurso, senhor Presidente...

    Tirou o leno do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao prprio Presidente da mesa: por favor, apura a pra mim como que , me tira desta...

    Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

    Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existncia, depois de mais de vinte anos de vida pblica...

    E entrava por novos desvios:

    Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha conscincia cvica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... no sou daqueles que...

    O senhor Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. No havia mais por onde fugir:

    Senhor Presidente, meu nobres colegas!

    Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou:

    Em suma: no sou daqueles. Tenho dito.

    Houve um suspiro de alvio em todo o plenrio, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

    (F.S.)